Leão e os medrosos – Cristina Inogés Sanz

Reprodução da obra de Maximino Cerezo Barredo, presbítero católico, religioso claretiano, artista plástico espanhol que realizou diversas obras na América Latina.

[Olhar de teóloga]

Leão e os medrosos

Cristina Inogés Sanz | 24/10/2025| 7Margens

 

Ouvimos e lemos que Leão XIV não é avesso à Teologia da Libertação, nem a Gustavo Gutiérrez, o seu expoente máximo. O Papa disse assim: “A forma como as pessoas olham para aquilo que rotulamos como Teologia da Libertação é frequentemente errónea e incompleta, porque o Evangelho prega a libertação; ele chama-nos a todos para a liberdade. Portanto, a Teologia da Libertação, na perspetiva de Gustavo Gutiérrez, por exemplo, é começar a olhar através dos olhos dos pobres e com os pobres para compreender como Deus está em nós e entre nós”. E, para que não houvesse dúvidas ou interpretações erradas, acrescentou: “Isto não significa necessariamente que se esteja a promover a ideologia marxista, embora alguns a tenham rotulado dessa forma”.

Depois disto, que já foi uma posição clara, chegou como que uma confirmação oficial daquele comentário em Dilexi Te, e por causa disso alguns estão um pouco confusos, se não mesmo completamente equivocados. Procuram interpretações de algo que não querem compreender e que nunca procuraram compreender porque isso perturbava a sua visão angelical do Evangelho. Gostariam que tudo se tivesse encaminhado na direção oposta, mas aquilo por que tanto anseiam não aconteceu e, pior ainda, já têm provas de sobra disso.

Não foi a Teologia da Libertação que colocou os pobres no lugar de Jesus. Foi o próprio Jesus quando disse: “O que fizestes a um destes meus pequeninos irmãos, a Mim o fizestes” (Mt 25). Antes de a assumirmos como nossa, a opção libertadora pelos pobres pertence a Deus.

Cristo no centro, encarnado e libertador através da sua mensagem e do seu próprio modo de vida, é uma realidade muito mais profunda do que qualquer tratado sobre a Doutrina Social da Igreja.

Criticar, atacar e distorcer esta nova abordagem da Teologia da Libertação não é mais do que um exemplo evidente da pobreza teológica em que algumas pessoas se movem, porque é a que foi ensinada durante décadas, sem dar a possibilidade de ver e aprofundar outras leituras do Evangelho e da realidade. Sem formação, ou com uma formação muito tendenciosa que pode ser ainda pior, o ataque é a única opção possível porque, como sabemos, a melhor defesa é um bom ataque. No entanto, agora, é preciso fugir das espiritualizações que esvaziam de conteúdo todo aquele que questiona, porque o conveniente é recorrer ao “sempre foi assim” — o que neste caso não é verdade — e, além disso, fazê-lo a partir de um espaço onde a encarnação de Cristo nem sequer é compreendida. Porque, se o fosse, como poderíamos fazer ver aos pobres o amor de Deus senão dentro da encarnação, que não excluiu o sofrimento humano?

A interpretação política — que a tem — que pode ter sido feita no início da Teologia da Libertação não é a única. Superados há muito os excessos da própria interpretação desta teologia por aqueles que foram os seus expoentes máximos, e ultrapassados os excessos da interpretação contrária da parte do Vaticano — porque houve de tudo —, o que temos? O que nos resta? Resta-nos proclamar um Deus que liberta com uma mensagem, o Evangelho, que somos chamados a dar a conhecer individual e comunitariamente como parte da cura de uma injustiça multifacetada que mantém muitos dos nossos irmãos e irmãs em modos de vida que nem sequer lhes proporcionam a subsistência.

 

“Preocupa-me que a voz de Leão XIV só esteja a desconcertar algumas pessoas com uma certa tendência medrosa no seio da Igreja. E quanto ao resto? Porque é que a voz deste Papa não é ouvida?” Foto: Papa Leão XIV antes de uma audiência na Praça de São Pedro. © Vatican Media

 

O que Leão XIV diz em Dilexit Te não é novo. A Teologia da Libertação já o disse, e o Evangelho disse-o muito, muito, muito antes disso. Responder e comentar sobre ela a partir do medo que a ignorância provoca ao não continuar a formar-se, lendo e estudando teologias que valham a pena porque têm o Evangelho como centro, diz muito pouco a favor daqueles que acreditam possuir a verdade e, além disso, excluem da sua linguagem palavras como “liberdade”, “justiça”, “revisão de estruturas”…

É claro que apagaram a sinodalidade das suas mentes e corações porque, para a terem presente, teriam de estar próximos dos pobres, ouvi-los — porque eles têm muito a dizer-nos —, acolhê-los e comprometer-se com eles e por eles. Isto é a verdadeira caridade, porque nos permite experimentar profundamente o amor para além do bem-estar.

Preocupa-me que a voz de Leão XIV só esteja a desconcertar algumas pessoas com uma certa tendência medrosa no seio da Igreja. E quanto ao resto? Porque é que a voz deste Papa não é ouvida? Onde está a sua presença nos grandes meios de comunicação? Quem está interessado em que não apareça neles? Seria interessante averiguar e tentar resolver isto, porque temo que silenciar, ou pelo menos tentar controlar, a voz de Leão XIV responda a interesses muito específicos.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e foi membro do Sínodo dos Bispos sobre a Sinodalidade por nomeação do Papa Francisco, depois de ter integrado a comissão metodológica de preparação. Autora do livro A Sinfonia Feminina (Incompleta) de Thomas Merton (Paulinas Editora). O texto que aqui se reproduz com a devida autorização da autora foi originalmente publicado na revista “Vida Nueva Digital“.

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