O Domingo da Palavra de Deus – 2022 – III Domingo do Tempo Comum – 23.01.2022

O Domingo da Palavra de Deus – 2022 – III Domingo do Tempo Comum – 23.01.2022

Apresentamos sugestões para o Domingo da Palavra de Deus, instituído pelo Papa Francisco e que, em 2022, se celebra a 23 de janeiro. Concretamente, sugere-se o devido destaque à Bíblia com uma procissão antes da celebração, a entronização ou gesto à Palavra antes das Leituras e o envio antes da bênção final.

  1. A BÍBLIA NOS NOSSOS CAMINHOS

Para a celebração do Domingo da Palavra de Deus, sugerimos que, antes da celebração e a convergir para ela, se faça uma procissão com a Bíblia pelas ruas da cidade ou povoação. Poderia ser organizada da seguinte forma:

Concentração: Pode ser uma igreja, praça ou largo, com espaço suficiente para a concentração dos fiéis, e a uma distância nem muito longe nem muito perto da igreja onde se celebrará a Eucaristia.

Organização da procissão: Ensaio de cânticos e explicação do modo como vai decorrer a procissão; posicionamento das pessoas que seguram as faixas, das que transportam a Bíblia (num andor ou debaixo do pálio, porque lhe devemos veneração mais que aos santos e a mesma que demonstramos para com o Santíssimo), dos acólitos e celebrante(s); etc.

INÍCIO E CAMINHADA:

  • Um leitor faz a seguinte introdução:
    Celebramos hoje o Domingo da Palavra de Deus. O Papa Francisco, em 30 de setembro de 2019, estabeleceu «que o III domingo do tempo comum seja dedicado à celebração, reflexão e divulgação da Palavra de Deus». Então, o Santo padre exortava-nos a viver este domingo «como um dia solene». Lembrando também que «a Bíblia é o livro do povo do Senhor», capaz de gerar unidade naqueles que a escutam e nela ouvem a voz de Deus Pai que pede aos seus filhos para viverem na caridade.
    Hoje, unidos pela Palavra e reunidos à volta dela, nós somos esse povo do Senhor. Maria, nossa Mãe, acompanha-nos «no caminho do acolhimento da Palavra de Deus». E como Ela, depois de a acolher no seu seio, concebendo Jesus, a levou por montes e vales enchendo de alegria o coração de quantos encontrava, também nós a vamos levar em procissão pelos caminhos da nossa terra, para que seja a Palavra de Deus a luz dos nossos caminhos. Cantemos.
  • Cântico: “A tua Lei, Senhor, é minha luz” (de frei Acílio, PV n.64, K7 É bom cantar salmos), ou outro apropriado.
  • O celebrante, depois das palavras “Em nome do Pai…” e da saudação, diz a seguinte oração:

Deus, nosso Pai,
no teu Filho muito amado, a Palavra
fez-Se carne e habitou no meio de nós.
Ajuda-nos a ser hoje incarnação e presença
de Jesus Cristo, teu Filho e nosso Senhor!
Que o Espírito que O ungiu
para anunciar a Boa Nova aos pobres,
nos faça hoje continuadores
da sua missão libertadora.
Dá-nos força e coragem para que,
dóceis à sua palavra,
que nos manda ir pelo mundo inteiro
anunciar a Boa Nova a toda a criatura,
sejamos hoje, oportuna e inoportunamente,
«servidores da Palavra»,
satisfazendo a fome e a sede da tua Palavra
a quem encontrarmos nos caminhos da vida.
Por Jesus Cristo, teu Filho,
nosso Caminho, Verdade e Vida,
que contigo vive e reina,
na unidade do Espírito Santo. (R/ Ámen).

  • Cântico: “Palavra do Senhor, Palavra da Salvação” (frei Acílio, PV n. 66), ou outro apropriado.

» Com o início do cântico, a procissão começa a andar. Sugerimos esta ordem:
– Faixas com frases alusivas à Bíblia, levadas por pessoas de tal modo distanciadas umas das outras, que possam facilmente ser lidas por quem estiver ao longo do caminho.
Por exemplo: “A Bíblia nasceu da Vida, a Vida nasce da Bíblia”; “Desconhecer a Bíblia é desconhecer Jesus Cristo”; “A Bíblia na mão e o Deus da Bíblia no coração”; “A tua Palavra, Senhor, é luz para os meus caminhos” …

– Acólitos e celebrante(s)
– Bíblia, sobre o andor ou debaixo do pálio.
– Os restantes fiéis, atrás da Bíblia.

Ao longo do caminho intercala-se o refrão e estrofes do cântico anterior com a proclamação de versículos da Bíblia sobre a Palavra. Por exemplo: Sl 18,31; Sl 119,1ss (selecionar versículos mais apropriados); Pr 30,5; Mt 4,4b; Lc 11,28; Jo 8,47a; Heb 4,12a; 1 Jo 2,5; Mt 13, 23a. Esta proclamação deve ser feita sem pressas e bem audível, guardando curtos momentos de silêncio entre as frases.

» Ao chegar à igreja onde se fará a celebração, a Bíblia é colocada no lugar, enquanto se canta um cântico à Palavra de Deus. Por exemplo: “Senhor, Tu nos chamaste…” (PV n. 92).

Esta proposta pode ser complementada ou mesmo substituída pelo CORTEJO BÍBLICO (no livro Domingo da Bíblia, pp.142-146).

  1. A BÍBLIA AINDA VIVE

No documento de instituição do domingo da Palavra de Deus, o Papa começa com a evocação da aparição do Ressuscitado aos discípulos reunidos, aos quais abre o entendimento para a compreensão das Escrituras (Lc 24,45). A Bíblia ainda vive, sobretudo na proclamação da Palavra na liturgia, ambiente orante privilegiado para a compreensão das Escrituras. Por isso, será bom que antes da proclamação das leituras se faça um gesto à Palavra. Diz o Papa: «Será importante que, na celebração eucarística, se possa entronizar o texto sagrado, de modo a tornar evidente aos olhos da assembleia o valor normativo que a Palavra de Deus possui» (n.3). Poderá ser como segue:
• Se não se fez procissão ou cortejo bíblico, alguém avança devagar com a Bíblia (fechada), desde o fundo da igreja. Ao chegar junto do altar volta-se para a assembleia.
• Enquanto a Bíblia avança, um leitor proclama o texto A Bíblia ainda vive (Domingo da Bíblia, pp. 107-108); e a assembleia pode dizer a frase “Mas a Bíblia ainda vive”.
• Depois do texto, a pessoa que levou a Bíblia abre-a, mantendo-a apresentada à assembleia. Os acólitos podem ladeá-la com as velas acesas que costumam usar-se na proclamação do Evangelho. Canta-se Vem Espírito Santo… (p.78; nesta revista, p.12); se não for possível cantar, o celebrante reza e a assembleia vai repetindo.
• A Bíblia é colocada no lugar (o andor ou o trono previamente preparado), ladeada pelas velas acesas.
• Caso se tenha feito a procissão ou cortejo bíblico, alguém vai buscar a Bíblia que já está no andor/trono e apresenta-a à assembleia em frente do altar. Depois continua da mesma forma, a partir da leitura do texto.

Esta proposta pode ser complementada ou mesmo substituída pela que é apresentada no livro Domingo da Bíblia, pp. 119-120).

  • Na homilia será oportuno realçar a importância da Palavra de Deus na vida dos fiéis. Sugerimos concluí-la com as interpelações do texto “Não digas… pergunta” (Domingo da Bíblia, p. 18- -19), ou substituí-la pelo Jogral-dramatização (idem, p.121-125).
  1. OS CAMINHOS DA PALAVRA

No documento de instituição do Domingo da Palavra de Deus, o Papa afirma que o dia dedicado à Bíblia pretende ser, não «uma vez no ano», mas uma vez por todo o ano (n. 8), alimentando-nos dia a dia da Palavra de Deus. E justifica: «A doçura da Palavra de Deus impele-nos a comunicá-la a quantos encontramos na nossa vida», se não nos aproximamos dela por mero hábito, mas nos alimentamos dela para descobrir e viver em profundidade a nossa relação com Deus e com os irmãos (n.12).
E lembra ainda um grande desafio, o da caridade: escutar as sagradas Escrituras para praticar a misericórdia (n.13). Em virtude desta necessária ligação da Palavra à vida, sugerimos ainda um

MOMENTO DE ENVIO no final da celebração, que poderá ser como segue:

  • A Bíblia é apresentada, de novo, à assembleia, em frente do altar.
    • O celebrante diz: Iluminados pela Palavra do Senhor, aconchegados pelo seu amor e por este encontro com os irmãos, vamos voltar de novo para casa e para as ruas anunciando a Boa-Nova do Senhor e testemunhando, com a vida, a fé que nos move.
    • Quem apresenta a Bíblia vai avançando devagar até ao fundo da igreja, ficando à porta com a Bíblia aberta.
    À medida que a Bíblia vai avançando, o celebrante diz:

Ide dizer aos humildes:
Não estás longe do reino de Deus. (Mc 12,34)
Ide dizer aos ricos:
Já tendes a vossa recompensa. (Mc 6,24)
Ide dizer aos governantes:
Mandar é servir os outros. (Mt 20,26)
Ide dizer às pessoas importantes:
Os primeiros serão os últimos. (Mt 19,30)
Ide dizer aos apressados:
Uma só coisa é necessária. (Lc 10,42)
Ide dizer aos soldados:
Bem-aventurados os que fazem a paz! (Mt 5,9)
Ide dizer aos preguiçosos:
Porque estais todo o dia ociosos? (Mt 20,4)
Ide dizer aos desiludidos:
Venho trazer-vos uma grande alegria! (Lc 2,10)
Ide dizer aos pessimistas:
Valeis mais que muitos passarinhos. (Lc 12,24)
(frei Manuel Rito Dias)

  • Cântico (refrão): “Ide por todo o mundo levar a Boa Nova” (PV 48), ou outro
  • O celebrante, depois de dar a bênção, diz:
    À saída, ao passar diante da Bíblia Sagrada, coloquemos a nossa mão sobre ela em sinal de fé na Palavra de Deus e do compromisso de a levar aos outros. Ide em paz e o Senhor vos acompanhe.

Este momento final da celebração pode ser muito oportuno para dar início à iniciativa A Bíblia de casa em casa (como é descrita no livro Domingo da Bíblia, p.153), para que o Domingo da Palavra de Deus possa marcar os outros domingos e semanas do ano. Se for esse o caso, a Bíblia poderia ser já apresentada e levada até ao fundo da igreja pela família que se dispõe a recebê-la em sua casa nessa semana.

 

  • Para um momento celebrativo de oração em grupo, pode escolher-se alguma das propostas incluídas no livro DOMINGO DA BÍBLIA, de Lopes Morgado (Difusora Bíblica, 2017), nomeadamente a lectio divina Alimentar-nos da Palavra (pp.171- 176) e a caminhada com jovens A Palavra no caminho (pp.164-168).

 

DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS

SANTA MISSA

HOMILIA DO PAPA FRANCISCO

Basílica de São Pedro

III Domingo do Tempo Comum, 23 de janeiro de 2022

Encontramos, na primeira Leitura e no Evangelho, dois gestos paralelos: o sacerdote Esdras coloca em lugar elevado o livro da lei de Deus, abre-o e proclama-o diante de todo o povo; Jesus, na sinagoga de Nazaré, abre o rolo da Sagrada Escritura e, na frente de todos, lê uma passagem do profeta Isaías. Estas duas cenas comunicam-nos uma realidade fundamental: no centro da vida do povo santo de Deus e do caminho da fé, não estamos nós com as nossas palavras; no centro, está Deus com a sua Palavra.

Tudo teve início pela Palavra que Deus nos dirigiu. Em Cristo, sua Palavra eterna, o Pai «escolheu-nos antes da fundação do mundo» (Ef 1, 4). Com a sua Palavra, criou o universo: «Ele ordenou e tudo foi criado» (Sal 33, 9). Desde os tempos antigos, falou-nos por meio dos profetas (cf. Heb 1, 1); por fim, na plenitude do tempo (cf. Gal 4, 4), enviou-nos a sua própria Palavra, o Filho unigénito. Por isso no Evangelho, terminada a leitura de Isaías, Jesus anuncia uma coisa inaudita: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura» (Lc 4, 21). Cumpriu-se: a Palavra de Deus já não é uma promessa, mas realizou-se. Em Jesus, fez-Se carne. Por obra do Espírito Santo, veio habitar no meio de nós e quer habitar em nós, para satisfazer os nossos anseios e curar as nossas feridas.

Irmãs e irmãos, tenhamos os olhos fixos em Jesus, como as pessoas na sinagoga de Nazaré (cf. Lc 4, 20) – fixavam-no, era um deles: Que fenómeno! Que fará este de quem tanto se fala? – e acolhamos a sua Palavra. Meditemos hoje em dois aspetos interligados da mesma: a Palavra desvenda Deus e a Palavra leva-nos ao homem. Está no centro: desvenda Deus e leva-nos ao homem.

Antes de mais nada, a Palavra desvenda Deus. Jesus, no início da sua missão, ao comentar aquela passagem particular do profeta Isaías, anuncia claramente uma opção: veio para libertar os pobres e os oprimidos (cf. 4, 18). Assim nos desvenda, precisamente através das Escrituras, o rosto de Deus como o d’Aquele que cuida da nossa pobreza e tem a peito o nosso destino. Não é patrão enrocado nos céus – uma imagem perversa de Deus! Ele não é assim -, mas o Pai que acompanha os nossos passos. Não é observador frio, distante e impassível, um Deus «matemático». É o Deus-connosco que Se apaixona pela nossa vida e empenha-Se nela a ponto de chorar as nossas lágrimas. Não é deus neutral e indiferente, mas o Espírito amante do homem, que nos defende, aconselha, toma posição a nosso favor, entra em campo e compromete-Se com a nossa dor. Nesta, sempre está presente. Eis «a Boa-Nova» (4, 18), que Jesus proclama diante do olhar atónito dos presentes: Deus está perto e quer cuidar de mim, de ti, de todos. Esta é o traço distintivo de Deus: a proximidade. Assim se define a Si próprio, quando diz ao povo no Deuteronómio: «Qual povo tem os seus deuses tão próximos de si, como Eu estou próximo de ti?» (cf. Dt 4, 7). O Deus próximo com uma proximidade compassiva e terna, quer aliviar-te dos pesos que te esmagam, quer aquecer o frio dos teus invernos, quer iluminar os teus dias sombrios, quer sustentar os teus passos incertos. E fá-lo através da sua Palavra, com a qual te fala para reacender a esperança por entre as cinzas dos teus medos, para te fazer reencontrar a alegria nos labirintos das tuas tristezas, para encher de esperança a amargura das solidões. Faz-te andar, mas não num labirinto; faz-te andar no caminho, para O encontrares dia a dia cada vez mais.

Irmãos, irmãs, perguntemo-nos: trazemos no coração esta imagem libertadora de Deus, o Deus próximo, o Deus compassivo, o Deus terno? Ou imaginamo-Lo como um juiz rigoroso, um rígido guarda alfandegário da nossa vida? A nossa é uma fé que gera esperança e alegria, ou – pergunto-me… – dentro de nós há ainda uma fé acabrunhada pelo medo, uma fé medrosa? Qual é o rosto de Deus que anunciamos na Igreja: o Salvador que liberta e cura, ou o Deus Temível que esmaga avivando os sentimentos de culpa? Para nos convertermos ao verdadeiro Deus, Jesus indica-nos por onde começar: pela Palavra. Esta, ao narrar a história do amor de Deus por nós, liberta-nos dos medos e preconceitos sobre Ele, que apagam a alegria da fé. A Palavra derruba os ídolos falsos, desmascara as nossas fantasias, destrói as representações demasiado humanas de Deus e traz-nos de volta ao seu rosto verdadeiro, à sua misericórdia. A Palavra de Deus alimenta e renova a fé: voltemos a colocá-la no centro da oração e da vida espiritual! No centro, a Palavra que nos revela como é Deus. A Palavra que nos aproxima de Deus.

E agora o segundo aspeto: a Palavra leva-nos ao homem. Leva-nos a Deus e leva-nos ao homem. Na verdade, quando descobrimos que Deus é amor compassivo, vencemos a tentação de nos fecharmos numa sacra religiosidade, que se reduz a um culto exterior, que não toca nem transforma a vida. Uma tal religiosidade é idolatria, idolatria sumida, idolatria rebuscada, mas é idolatria. A Palavra impele-nos a sair de nós mesmos caminhando ao encontro dos irmãos, animados unicamente com a força serena do amor libertador de Deus. É precisamente isto que nos revela Jesus, na sinagoga de Nazaré: Ele é enviado para ir ao encontro dos pobres (que somos todos nós!) e libertá-los. Não veio para entregar um elenco de normas nem para oficiar nalguma cerimónia religiosa, mas desceu às estradas do mundo para encontrar a humanidade ferida, acariciar os rostos macerados pelo sofrimento, curar os corações dilacerados, libertar-nos das correntes que nos agrilhoam a alma. Revela-nos assim qual é o culto mais agradável a Deus: cuidar do próximo. E desculpai se insisto nisto. Há momentos em que sobrevêm na Igreja as tentações da rigidez, que é uma perversão, e se pensa encontrar Deus tornando-se mais rígidos, com mais normas, acertando as coisas, pondo as coisas claras… Mas não é assim! Quando virmos propostas de rigidez, pensemos imediatamente: isto é um ídolo, não é Deus. O nosso Deus não é assim.

Irmãs e irmãos, a Palavra de Deus transforma-nos – a rigidez não nos transforma, dissimula – a Palavra de Deus transforma-nos penetrando na alma como uma espada (cf. Heb 4, 12). Com efeito, se por um lado consola, desvendando-nos o rosto de Deus, por outro provoca e sobressalta-nos, fazendo-nos cientes das nossas contradições. Põe-nos em crise. Não nos deixa tranquilos, se o preço a pagar por esta tranquilidade é um mundo dilacerado pela injustiça e pela fome e quem paga o preço são sempre os mais frágeis. Sempre pagam os mais frágeis. A Palavra põe em crise as nossas justificações que sempre fazem depender, aquilo que corre mal, duma coisa diferente e dos outros. Quanta amargura sentimos ao ver os nossos irmãos e irmãs morrerem no mar, porque não os deixam desembarcar! E isto é feito por alguns em nome de Deus. A Palavra de Deus convida-nos a sair às claras, a não nos escondermos atrás da complexidade dos problemas, atrás do «não há nada a fazer» – «é um problema deles», «o problema é seu» – ou «que posso fazer eu?», «Deixemo-los para lá!» Exorta-nos a agir, a unir o culto a Deus e o cuidado do homem. Porque a Sagrada Escritura não foi dada para nos entreter, para nos mimar numa espiritualidade angélica, mas para sair ao encontro dos outros e debruçar-nos sobre as suas feridas. Falei da rigidez, deste pelagianismo moderno, como uma das tentações da Igreja. E esta – a de procurar uma espiritualidade angélica – de algum modo é a outra tentação de hoje: os movimentos espirituais gnósticos, o gnosticismo, propondo-te uma Palavra de Deus que te coloca «em órbita» e não te faz tocar a realidade. A Palavra que Se fez carne (cf. Jo 1, 14), quer tornar-Se carne em nós. Não nos aliena da vida; mas mergulha-nos nela, nas situações do dia a dia, na auscultação dos sofrimentos dos irmãos, do clamor dos pobres, das violências e injustiças que ferem a sociedade e a terra, a fim de sermos, não cristãos indiferentes, mas diligentes, cristãos criativos, cristãos proféticos.

«Cumpriu-se hoje – diz Jesus – esta passagem da Escritura» (Lc 4, 21). A Palavra quer tornar-Se carne hoje, no tempo que vivemos, não num futuro ideal. Uma mística francesa do século passado, que escolheu viver o Evangelho nas periferias, escreveu que a Palavra do Senhor não é «“letra morta”: é espírito e vida. (…) A acústica exigida de nós para bem ressoar a Palavra do Senhor é o nosso “hoje”: as circunstâncias da nossa vida quotidiana e as necessidades do nosso próximo» (M. Delbrêl, A alegria de acreditar, Milão 1994, 258). Perguntemo-nos então: queremos imitar Jesus, tornando-nos ministros de libertação e consolação para os outros, realizar a Palavra? Somos uma Igreja dócil à Palavra? Uma Igreja propensa a ouvir os outros, empenhada em estender a mão para aliviar os irmãos e as irmãs daquilo que os oprime, para desfazer os nós dos medos, libertar os mais frágeis das prisões da pobreza, do cansaço interior e da tristeza que apaga a vida? É isto que nós queremos?

Nesta celebração, são instituídos leitores e catequistas alguns dos nossos irmãos e irmãs. São chamados à importante tarefa de servir o Evangelho de Jesus, anunciá-lo para que a sua consolação, a sua alegria e a sua libertação cheguem a todos. Esta é também a missão de cada um de nós: ser arautos credíveis, profetas da Palavra no mundo. Por isso apaixonemo-nos pela Sagrada Escritura, deixemo-nos interpelar profundamente pela Palavra, que desvenda a novidade de Deus e leva-nos a amar incansavelmente os outros. Voltemos a colocar a Palavra de Deus no centro da pastoral e da vida da Igreja! Assim seremos libertos tanto de qualquer pelagianismo rígido, de qualquer rigidez, como da ilusão duma espiritualidade que nos coloca «em órbita» sem cuidar dos irmãos e irmãs. Voltemos a colocar a Palavra de Deus no centro da pastoral e da vida da Igreja. Ouçamo-la, rezemo-la, ponhamo-la em prática.

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