A retórica inconsequente dos bispos católicos – uma leitura

António Marujo | 27 junho 2024 | 7Margens

Encontro do Papa e bispos portugueses no final da visita ad limina, em 24 de Maio: profissões de fé no que o Papa propõe, mas sem tradução. Foto © Vatican Media

Que encruzilhadas e horizontes se colocam hoje ao catolicismo português? Podemos olhar, por exemplo, para um documento da Igreja Católica em Portugal que refere a “complexa realidade social portuguesa”, a “inovação tecnológica, a internacionalização da economia, a integração europeia”, as “novas realidades culturais”, processos de mudança que “geram tensões” e agravam “desigualdades e injustiças”, com “efeitos graves em famílias, jovens, vários sectores profissionais, idosos e camadas sociais mais desfavorecidas. Finalmente, também “um estilo de vida marcado pelo hedonismo e pelo individualismo e um modelo económico e social excessivamente competitivo, reprodutor das desigualdades e que tende a menosprezar os valores da justiça e da solidariedade”.

Perante este diagnóstico, o que se propõem fazer os crentes? Vincar a importância da “dimensão comunitária”, pôr em prática as ideias do II Concílio do Vaticano (1962-65), encontrar a forma de presença dos cristãos nas realidades da política e da vida social.

Podemos recuar 36 anos, a Junho de 1988? Entre os dias 2 e 5, realizou-se em Fátima o Congresso Nacional de Leigos, que culminava um processo de três anos de debates, assembleias e congressos diocesanos. As citações são do texto de conclusão do Congresso, que procurava sintetizar os “sinais dos tempos no mundo” e “sinais dos tempos na Igreja”. O uso desses títulos são, porventura, a única expressão que dão ao texto um carácter datado: a expressão tinha sido recuperada pelo Papa João XXIII (1958-1963) e pelo Concílio e pretendia dizer que os católicos deveriam estar atentos à realidade e, em função dela, agir com propostas positivas de evangelização e humanização da vida e do mundo. Hoje, a expressão caiu em desuso ou, quando é utilizada, é de forma mecânica e nada convicta.

Vale a pena recuperar ainda algumas sugestões do texto, que pode ser consultado no livro com as actas do Congresso: nele se propõe um “plano global de formação permanente para todos os cristãos”; o estímulo ao “compromisso cristão” em todos os âmbitos da vida, “criando ou valorizando espaços eclesiais de diálogo e reflexão sobre as grandes questões que se põem na sociedade em que vivemos”; e também a “necessidade de cultivar uma espiritualidade ligada às realidades e situações do dia-a-dia, eliminando a separação entre a fé e a vida”.

Uma tese académica

Trinta e seis anos passaram. Mas estas longas citações estão plenas de actualidade, mas ficaram no papel. E servem para reflectir sobre o momento e várias incapacidades da Igreja Católica em Portugal – nomeadamente, das suas lideranças.

Há, desde há muito, uma retórica inconsequente do episcopado português, que não tem sido capaz de criar os dinamismos que os próprios bispos, ou instâncias por eles impulsionadas, sugerem ou propõem em múltiplas iniciativas.

O exemplo do Congresso de Leigos poderia ser desdobrado pelos congressos ou sínodos diocesanos, as ressuscitadas semanas sociais da década de 1990, o congresso da família de 2001, a dinâmica sobre “Repensar juntos a Pastoral da Igreja em Portugal” (lançada em 2010), e muitas, muitas outras iniciativas, decisões, propostas, planos. [Falando em planos: são normalmente muito pobres os programas diocesanos de pastoral, que se limitam quase só a uma listagem de iniciativas, com muito pouca ou nenhuma reflexão prévia sobre a realidade, os objectivos que se pretendem atingir e as formas de envolvimento de agentes de pastoral nos vários momentos da reflexão e da execução.]

Jorge Pires Ferreira, director do Correio do Vouga, jornal da diocese de Aveiro (e um dos raros leigos a dirigir um meio de comunicação católico) resumia esta situação há dias na Ecclesia:

“E vem aí mais um sínodo. E um jubileu. Depois de uma ‘visita ad limina apostolorum’. E de uma JMJ. E de vários sínodos. E de um Ano da Misericórdia. E o Ano da Fé. O Paulino. O da Eucaristia. O Ano Sacerdotal… O que ficou de ‘Promover a Renovação da Pastoral da Igreja em Portugal’, na sequência da ‘visita ad limina’ de 2007 (e depois ainda houve a de 2015)?

Mais, algumas propostas, com os seus ritmos, ritos e indulgências, parecem dirigir-se a um mundo que já não existe. Ou pelo menos não existe na nossa Europa. O mundo da cristandade. Mas ainda se vive nele por simulacro, por convenção, por tradição, por arrastamento. Por tudo menos por convicção.”

Seria um interessante tema para uma tese académica pegar em todas essas iniciativas que a dada altura mobilizaram a Igreja, muitas delas com documentos de conclusões e propostas, e ver o que se concretizou. A leitura do documento do Congresso dos Leigos não abre espaço ao optimismo.

Uma lista de enunciados

O exemplo mais recente destas inconsequências foi a recente visita ad limina, o encontro dos bispos portugueses com os responsáveis da Cúria Romana e com o Papa Francisco, no final de Maio, a que me referi nesta mesma coluna À Margem que na altura publiquei no 7MARGENS.

Durante a semana romana do episcopado, tivemos declarações sucessivas e enunciados genéricos sobre o que a Igreja deve fazer. Declarações e enunciados que repetem outras declarações e enunciados feitos nas últimas décadas, sem que se veja qualquer sequência no que se proclama.

Alguns exemplos, retirados do acompanhamento feito pela Ecclesia: o bispo do Porto, Manuel Linda afirmou que a pastoral do episcopado “tem de ser cada vez mais unitária”, quando se sabe que uma pecha da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) há décadas é precisamente a falta de unidade (não falo de unanimismo ou de falsa unidade, que são doentios). O que se passou com as decisões na sequência do Sínodo sobre a Família (2014-15), ou com as profundas divergências sobre o modo de enfrentar a tragédia dos abusos sexuais são os casos mais recentes.

O vice-presidente da CEP e bispo de Coimbra, Virgílio Antunes, disse que “o espírito e a verdadeira renovação nascem das ideias, nascem da reflexão, nascem da teologia, nascem da doutrina”, precisamente alguns dos factores em falta no catolicismo português. E referiu ainda que o tema da sinodalidade está na “centralidade da vida da Igreja”, também em Portugal, quando é notório que a maior parte do episcopado cumpre apenas os mínimos para, sem qualquer entusiasmo, acompanhar o processo, como ainda há dias aqui recordava Manuel Pinto.

Noutro âmbito, o presidente da Comissão Episcopal do Laicado e Família e bispo de Bragança, Nuno Almeida, defendeu ser “necessário” acelerar o caminho de dar “um maior protagonismo aos leigos na nossa Igreja”, outra conversa recorrente há pelo menos quatro ou cinco décadas. Onde está o “plano de formação permanente para todos” ou o estímulo ao “compromisso cristão” e à reflexão sobre as grandes questões da sociedade pedidos em 1988? Onde está a espiritualidade que ligue a fé e a vida? Mais protagonismo? Porque não começam os bispos por colocar leigos a dirigir instituições sociais, a tratar das contas das dioceses e das paróquias, a dirigir meios de comunicação católicos? Pelo contrário: a Rádio Renascença, pela terceira vez consecutiva, tem um padre como presidente do conselho de gerência; e muitas vezes os bispos (ou alguns párocos) chamam a si decisões, por vezes controversas e mal explicadas de gestão, compra ou venda de propriedades.

Liturgia, jovens, comunicação e bispos

O presidente da Comissão Episcopal de Liturgia e Espiritualidade e arcebispo de Braga, José Cordeiro, referiu também a sua satisfação com o “bom caminho” quanto ao trabalho de “reforma litúrgica”. Quando vemos liturgias cada vez mais frias, com cada vez menos jovens, menos participadas e rotineiras em tantos sítios, só se pode falar do com caminho da reforma dos livros litúrgicos. Isto apesar do recente Congresso Eucarístico Nacional, que pouco mobilizou as comunidades na base, ou apesar da Jornada Mundial da Juventude do ano passado, que não traduziu qualquer dinamismo de formação bíblica ou catequética dos jovens católicos que nela participaram, mantendo a adesão à fé apenas no nível da experiência emotiva – exactamente o que mais depressa se perde. Aliás, quase um ano depois, alguém ainda se recorda da JMJ para lá da bela experiência que ela constituiu? O plano de pastoral juvenil que os bispos prometiam para depois da Jornada (e que deveria ter sido lançado antes) está ainda à espera de ver a luz do dia. Em Roma, a CEP também prometia “protagonismo” aos jovens. Vamos colocar jovens a dirigir a pastoral juvenil (isso acontece em poucas dioceses)? E a organizar auscultações sobre o que deveria ser a Igreja na perspectiva dos mais novos? Talvez alguma mudança acontecesse.

O presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e bispo do Funchal (que nesta sexta-feira deverá ser nomeado para a diocese da Guarda) afirmou ainda que é preciso “mudar” a forma de a Igreja comunicar e antecipar respostas antes de os jornalistas fazerem perguntas. Conhecendo o que se passa há mais de 30 anos; sabendo que houve tentativas de mudança apenas quando os bispos Januário Ferreira e Carlos Azevedo foram porta-vozes da CEP; e sabendo que vários bispos não gostam de jornalistas e os olham com profunda desconfiança, percebe-se que esta é mais uma declaração inconsequente. Mas oxalá me engane, a partir de agora.

Uma última referência – o texto já vai longo, mas a lista poderia ser maior – para as nomeações de bispos, que o presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, sublinhou ser necessário que “seja realmente uma consulta ao Povo de Deus”.

As nomeações de bispos nos últimos anos em Portugal (mesmo se surgiram dois ou três nomes que auguram boas perspectivas) foram tudo menos resultado de participação e respeito pelas propostas e sugestões do clero local – muito menos das comunidades e do povo de Deus. A nomeação do novo bispo da Guarda, que deverá acontecer esta sexta-feira, 28, é apenas o último caso de uma longa lista que traduz a absoluta ausência de participação dos católicos, incluindo dos padres, que se sentem postos de lado.

O que faz falta

Significam estas referências e reflexões que é tudo mau na Igreja Católica em Portugal? Não, de todo. Esta leitura pretende chamar a atenção para um problema grave e crónico, e não generalizar, porque há muitas e boas excepções a tudo isto. Há imensas pessoas generosas e verdadeiramente comprometidas com a sua fé e com o autêntico serviço ao bem comum. Nem estão em causa, sequer, as pessoas concretas dos bispos citados, que em alguns casos têm manifestado uma preocupação sincera com o devir da comunidade dos crentes (e com os quais mantenho, também em alguns casos, uma relação cordial e de respeito mútuo).

Está em causa, sim, o que a CEP vem manifestando há muito: falta de horizonte pastoral, de ousadia, de dinamismo, de criatividade, de abertura à reflexão plural e não apenas às mesmas vozes de sempre, ausência de uma estratégia pensada para os problemas que a sociedade vive. Há católicos empenhados em questões sociais como os refugiados e as migrações, mas onde estão eles em outros temas como o clima ou a não-violência e a construção da paz? Onde estão eles nos sindicatos (sabendo que houve uma forte corrente católica na fundação da CGTP)? E onde estão os crentes nos partidos, quando para muitos membros da Igreja as opções de voto se reduzem hoje ao PSD-CDS, Iniciativa Liberal e Chega? E quando quase não se veem católicos que como tal se assumam publicamente – e, se são de esquerda, são quase sempre ostracizados e mal vistos? Enfim, onde está a formação para a doutrina social da Igreja, desaparecidas que estão pessoas como Acácio Catarino, Adriano Moreira, Alfredo Bruto da Costa, José Dias da Silva, Manuela Silva, Maria de Lourdes Pintasilgo e outras, que a reflectiram e promoveram?

Sabemos que os bispos (ainda) são os principais responsáveis pelas decisões, dinamismos e iniciativas lançados na Igreja. Sabemos também que há uma reduzida capacidade de mobilização das pessoas em Portugal, na Igreja e não só. Mas há uma tremenda incapacidade não só de ser consequente com os princípios proclamados como de chamar pessoas (mesmo pessoas de fora) para exercitar a criatividade e criar dinamismos. O Sínodo Diocesano de Lisboa (2014-2016) tinha como lema “o sonho missionário de chegar a todos”. Mas será que enunciados como esse são mesmo assumidos? O que se faz de criativo para, de facto, chegar a todos? A todas as pessoas, muitas delas baptizadas, que já não se consideram parte da Igreja Católica? O exemplo serve para dizer que o círculo não se alarga e não há capacidade de renovar linguagens e métodos.

Há perto de quatro anos, ouvi uma homilia no dia da festa litúrgica de Santo Agostinho. O padre perdeu-se na enunciação de generalidades sobre a fé do bispo de Hipona, numa linguagem oca para quem o ouvia. Nunca foi capaz de dizer a quem o escutava que lessem as Confissões, essa obra maior da mística, da espiritualidade e da teologia cristãs, onde tanto se aprende sobre a fé e a dúvida, sobre a aproximação e o afastamento, sobre cada pessoa pode viver no seu tempo e no seu lugar a experiência mais funda de Deus.

E é precisamente tudo isso que falta: Bíblia, Concílio, pensamento social, magistério dos papas, ousadia, criatividade, abertura ao diálogo e ao testemunho dos grandes santos e dos grandes místicos. Sem nada disto, o catolicismo português prosseguirá o seu caminho para a irrelevância que já começou a viver. Trabalhar para evitar isso será pedir muito?

 

A retórica inconsequente dos bispos católicos – uma leitura António Marujo – 7 Margens – 27.06.2024

HOMILIA DEDICAÇÃO CATEDRAL – COROAR DE ESPIRITUALIDADE A MATÉRIA DO MUNDO

Como os ramos na videira

Manda a liturgia que se comemore o aniversário da dedicação das Sés e Igrejas paroquiais, tal como fazemos com o nosso dia de anos. E essa celebração tem a categoria de “festa” ou até de “solenidade”, como é o caso, agora. Deve contar com a participação do maior número possível de fiéis, ser presidida pelo bispo ou pelo Pároco, haver sinais exteriores de alegria e entoar-se o hino de “Glória”. Trata-se de uma recordação «obrigatória» que se sobrepõe a outros festejos como possíveis memórias dos santos, por exemplo.

Mas o que é a dedicação e donde vem este hábito piedoso? Dedicar um espaço ou objeto religioso a Deus é o mesmo que o declarar exclusivo para o serviço divino. Nesta catedral, por exemplo, cabe a dimensão cultural, artística, museológica. Em caso de cataclismo, poderia ser transformada em espaço de refúgio ou refeitório de emergência. Mas isso apenas em caso de extrema necessidade. O que, praticamente, nunca se verificou e, se Deus quiser, nunca acontecerá. Para a cultura e para o exercício habitual da caridade havemos de conseguir outros espaços mais apropriados. Aqui não. Este é primordialmente para o louvor divino. Até porque a disposição dos diversos materiais objetos criam um tal ambiente espiritual que o configuram como ideal para escutar o recado, a mensagem, que Deus tem para o homem. É por isso que, anualmente, recordamos o dia em que atribuímos ao serviço exclusivo de Deus uma partícula pequena do que Ele mesmo nos dá e que a cultura e a técnica de tantos elevou como espaço belo e emblemático. Como espaço digno de simbolizar este intercâmbio entre o divino e o humano.

Uma igreja, de facto, é sempre uma nota de poesia na prosa bárbara das nossas vidas. É um espaço de silêncio e interioridade no meio do bulício e dispersão da forma como tecemos a existência. É uma possibilidade de olhar para a construção e reconhecer que esta se apresenta como sentinela do divino, como chamada de atenção, contínua lembrança para que não nos esquecermos que, por cima de nós, está Deus. É também, de alguma maneira, como que a representação de mãos postas, mãos erguidas da «cidade dos homens» na direção da «cidade de Deus». É despertador das nossas consciências, recordando que é possível a santidade no meio das desordens morais, individuais e coletivas. É, enfim, o lugar dos afetos e dos sentimentos, pois neste espaço se vertem lágrimas de alegria num casamento e lágrimas de dor num funeral, exprime-se a ternura do encanto de um batismo ou primeira comunhão e a angústia de quem pede afincadamente uma graça.

Tudo isto é que reclama que este espaço seja diferente, único. Como tal, depois da dedicação, chamamos-lhe «espaço sagrado». De facto, nós, os cristãos, não construímos igrejas para deixar marcas de civilização nem para afirmarmos um qualquer poder: fazemo-lo porque estas construções, as igrejas ou templos, constituem uma imagem da nossa vida da fé e mesmo da relação da graça divina connosco e de nós com Deus. A primeira leitura, por exemplo, apresentava essa linda metáfora do templo como nascente de uma água viva que gera mais vida e, fundamentalmente, mais qualidade de vida: “Aonde esta água chegar, as outras águas tornar-se-ão sãs e haverá vida por toda a parte. [À sua beira crescerão árvores cujos] frutos servirão de alimento e as folhas de remédio”. E o Evangelho remete-nos para a ideia de que esta casa é o lugar onde acolhemos Deus e Deus nos acolhe: foi na sua casa, transformada em templo ou igreja, que Zaqueu acolheu Jesus. Mas é lá que Jesus o acolhe no reino de Deus ao garantir-lhe que “a salvação chegou a esta casa, porque o Filho do Homem veio procurar e salvar o que estava perdido”. Daqui a passagem para a ideia que dá forma a toda a segunda leitura: estas casas lembram-nos o necessário acolhimento de Cristo já não só dentro das suas paredes de pedra ou cimento, mas no sacrário mais íntimo que é o nosso coração. A ponto de se poder perguntar como S. Paulo: “Não sabeis que sois templos do Espírito Santo e que o Espírito de Deus habita em vós’”.

É aqui que reside o grande mistério e o segredo do nosso relacionamento com o divino: sermos ou não sermos os templos vivos de Deus. E muitos não querem ser. Foi assim em todos os tempos, mas torna-se mais visível no nosso. Queremos Deus perto de nós, como polícia a quem recorrer se nos sentimos atacados pela desgraça. Mas, na nossa casa e, muito mais, no nosso coração, podem entrar cães e gatos, cobras e lagartos, mas Deus… fica à porta. Que Deus habite na igreja, muito bem: Ele lá está para quando eu precisar, como o médico está nas urgências; mas que habite em nós, isso não, porque, assim, eu imagino que sou mais livre e que, dessa forma, posso fazer o bem ou o mal que me apetecer. É a terrível dicotomia fé/vida. O que, na prática, representa um voltar as costas a Deus. É isso: queremos igrejas belas e solenes e queremos meter lá Deus; mas nós não queremos ser templos onde Deus habite!

Porém, temos o exemp lo de Alguém que não procedeu assim: é a Bem-aventurada Virgem Maria, por sinal, Padroeira desta igreja catedral. Ela não se preocupou por arranjar um «templozinho» para Deus: trouxe-O sempre consigo. Na Anunciação, o Anjo ressalta isso mesmo ao dizer: “Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é [ou está] convosco”. Isso é que faz d’Ela diferente de toda a gente, a “bendita entre as mulheres”: porque Deus está sempre com Ela e Ela está sempre com Deus. Sempre! Quando as coisas correm mal, como por exemplo, quando é preciso fugir para o Egipto, e quando há triunfo, como quando enormes multidões seguem Jesus. Está com Jesus e Jesus está com Ela na ternura do nascimento, mesmo que tenha sido num presépio, e na dor do Calvário; na incompreensão das palavras de Simeão que lhe anuncia uma “espada de dor” e na manhã dos aleluias da Páscoa.

Que esta catedral, onde celebramos os momentos cimeiros da vida religiosa da Diocese, continue como metáfora do verdadeiro templo onde Deus quer habitar: em nós, no nosso coração, na nossa vida. Edificado bem no alto deste morro da Pena Ventosa, seja expressão de uma cidade viva e dinâmica que sabe levantar as mãos para Deus e receber d’Ele a fé, a esperança e a caridade com as quais se humaniza e se torna ainda mais aberta e solidária.

Manuel Linda, Bispo do Porto – 09 de setembro de 2020

DIOCESE do PORTO
NOTA PASTORAL
VIVER, CELEBRAR E CULTIVAR A FÉ EM TEMPO DE PANDEMIA

Como os ramos na videira

Viver, celebrar e cultivar a fé em tempo de pandemia

Aos Sacerdotes e aos Diáconos,
Aos Responsáveis das Associações, Movimentos e Obras
E a todos os Fiéis Leigos da Diocese do Porto

Para além de outros efeitos nefastos, a atual pandemia de Covid-19 não só não nos permite programar o futuro com alguma clarividência como nos abriga a uma prudência acrescida, pois as informações nem sempre são as mais otimistas. Uma coisa é certa: na Europa, em geral, e entre nós, em concreto, a transmissão do vírus está em aumento assustador e os técnicos falam já num outono/inverno fortemente problemáticos. E, evidentemente, queremos ser parte da solução e não do problema.

Por outro lado, no que a nós diz respeito, a vivência, formação e celebração da fé não está sujeita a épocas favoráveis ou inoportunas nem é compatível com intervalos: é para sempre e qualquer circunstância. Por isso mesmo, é necessário, por parte de todos nós (bispos, sacerdotes, diáconos, responsáveis pelos diversos setores de apostolado e leigos em geral), um esforço para encontrar, em cada ambiente e em cada circunstância, a atitude e a resposta pastoral mais adequada. É que, se a pandemia é muito séria, a efetiva presença pastoral missionária da Igreja (diocese, paróquias, capelanias, serviços, movimentos) não é menos séria e não se pode sujeitar à oscilação das condições de qualquer género.

Rezamos e esperamos que Deus nos conceda a graça de pôr cobro à pandemia, porventura por intermédio de vacinas que se aguardam ansiosamente. Mas tudo parece indicar que a tão referida «imunidade de grupo» ou vacinação em massa não aconteçam antes do final do primeiro trimestre de 2021. Vamos, portanto, colocar como referência a próxima Páscoa que esperamos já poder celebrar com toda a alegria e liberdade. De momento, temos que ir até onde pudermos ir, mas sempre com a preocupação de não ultrapassar os limites da prudência e da legalidade.

Assim sendo, após consulta e com o contributo dos senhores Bispos Auxiliares, apresento alguns princípios básicos orientadores, sem a pretensão de estabelecer regras gerais a aplicar cegamente. As normas das autoridades de Saúde e as que a Conferência Episcopal Portuguesa já formulou são para ter sempre como referência, mormente no que diz respeito ao uso de máscaras, distância social, arejamento dos espaços, desinfeções, etc. Tudo isso deve ser levado muito a sério, pelo menos até outras orientações a que as circunstâncias nos permitam ou nos obriguem.

Tendo isto presente, eis alguns âmbitos a considerar.

  1. Catequese.Deveremos ter como referência orientadora (não cega) os procedimentos da Escola, em todos os seus níveis. Deverá ser objetivo irrenunciável: a catequese não vai parar! Reforçar o apoio missionário, afetivo, formativo e logístico aos catequistas e, porventura, tentar aumentar o seu número. Tenha-se como referência o documento do Secretariado Nacional de Educação Cristã “Orientações para catequese em tempos de pandemia”. Aproveitar a circunstância para envolver mais os pais. Se se julgar conveniente, poder-se-ia propor não haver catequese presencial todas as semanas e continuá-la, porventura diariamente, no tempo de férias escolares que coincidem com os tempos fortes da liturgia e da vivência dos mistérios centrais da nossa fé. Caso a caso, poderão ser repensadas as festas, os modos e os prazos da Primeira Comunhão e Profissão de Fé. Uma questão para os vários setores implicados: como poderá ser minorada a ausência da participação na Eucaristia dominical? No mínimo, deve realizar-se uma sessão de catequese mensal, antecedida ou seguida da Missa.
  2. Confissões.Não podemos retrair a disponibilidade para este atendimento sacramental. Suposta esta disponibilidade, será viável encontrar espaços e condições em que se cumpram a distância necessária e a discrição imprescindível. Se existirem condições para isso, pode-se usar uma sala arejada com acrílico entre o confessor e o penitente.
  3. Crismas.Veja-se se é possível encontrar modos de recuperar os Crismas adiados e de os realizar até ao fim do ano civil. Depois se verá! Nesse caso, seria necessário dividir os grupos e multiplicar as celebrações: sextas à noite, sábados de manhã e de tarde, domingos à tarde. Será necessário limitar as presenças aos crismandos, padrinhos, pais e catequistas. Embora a grande regra seja a capacidade do local onde vão ser celebrados, de forma geral, pode colocar-se como referência o número de cerca de vinte crismandos por celebração. Quer isto dizer que, temporariamente, suspendemos a norma dos Crismas vicariais e passarão a ser, na sua maioria, paroquiais. Entretanto, se o número de crismandos for reduzido, devem associar-se várias Paróquias, particularmente se confiadas ao cuidado pastoral do mesmo Pároco.
  4. Visitas pastorais.Em princípio, suspendem-se. Porém, a juízo dos Párocos e das Vigararias, não é de excluir a possibilidade de levar por diante as que estavam programadas. Neste caso, evitar-se-iam as grandes aglomerações de pessoas e centrar-se-iam em âmbitos específicos: tempo passado com o Pároco e eventual Diácono Permanente para consideração sobre as condições socioeconómicas, pastorais e outras; avaliação do cartório, registos e dignidade dos espaços litúrgicos; reunião com setores muito restritos, tais como Conselho Económico Paroquial, Catequistas, crismandos, Leitores, Acólitos e Ministros Extraordinários da Comunhão; celebração do Crisma.
  5. Sacerdotes idosos ou de risco.Os Vigários deverão identificar estas situações e sugerir aos visados prudentes substituições. Sempre e só como sugestão. Porventura, poderiam ser substituídos pelos Diáconos Permanentes colocados nessa Paróquia ou mesmo pelos da zona. Mas que ninguém se sinta marginalizado. Quando, nessa região, não se encontrarem Diáconos Permanentes disponíveis, pode-se pedir o contributo (ocasional e temporário) de algum Ministro Extraordinário da Comunhão idóneo e especificamente formado para essa função. Se as circunstâncias assim obrigarem, pode, inclusivamente, presidir a uma Assembleia Dominical na Ausência do Presbítero, seguindo o ritual editado pela Conferência Episcopal Portuguesa. A “homilia” poderá ser lida a partir de algum bom texto disponível. Mas que não haja nenhuma Paróquia sem a celebração do Domingo: Missa, na forma habitual, ou, excecionalmente, Assembleia Dominical na Ausência do Presbítero. Se alguma comunidade paroquial ficasse privada, por longo tempo, da celebração da Eucaristia, o Vigário da Vara, com o respetivo pároco, providenciariam que algum sacerdote pudesse ir aí, de tempos a tempos, celebrar a Eucaristia e renovar a sagrada reserva.
  6. Centros de culto de pequenas dimensões.Com bom tempo, a alternativa podem ser as “missas campais”; no inverno, utilizar salões paroquiais ou providenciar espaços civis adequados.
  7. Comunhão aos doentes.Cumpridas todas as normas de segurança, não se esqueça este âmbito da pastoral confiado, primordialmente, aos Ministros Extraordinários da Comunhão.
  8. Reuniões.Sejam as diocesanas, sejam as paroquiais, alternar, como já se tem feito, o presencial com o virtual. Ou mesmo ficar só neste, se as circunstâncias o aconselharem.
  9. Reuniões de Vigararia.O ideal seria que fossem presenciais. Mas as conjunturas é que determinarão a modalidade. Deverá procurar-se, na medida do possível, que os que não podem ou não devem ir possam participar virtualmente. No mínimo, deverão ter acesso rápido a informação circunstanciada do teor da reunião.
  10. Ofertórios consignados.Sabemos bem da penúria geral, particularmente de muitas Paróquias. Não obstante, sem insistir muito, todos eles devem ser lembrados. Também eles representam uma forma de abertura e sintonia com uma Igreja que não é «paroquial», mas católica.

*****

Aproveito esta oportunidade para, mais uma vez, felicitar vivamente os agentes de pastoral desta nossa Diocese do Porto, com lógico destaque para os Párocos, Reitores, Capelães e Diáconos, pela forma absolutamente brilhante como têm respondido à crise da pandemia, com frequentes sacrifícios pessoais: seja na presença junto do seu povo, com forte e serena inovação, para que nunca lhe falte o ânimo, os sacramentos e os ritos religiosos; seja no empenho para minorar o sofrimento de tantos, mormente a nível dos Centros Sociais Paroquiais e estruturas similares. O mesmo poderia dizer a respeito do grande exemplo no cumprimento das normas de segurança, por vezes até com notório exagero. Bem-hajam! Continuaremos com igual determinação e afinco.

Esta epidemia é a primeira –e certamente será a única, se Deus quiser- que nos é dado sofrer. Mas, por esse mundo fora, há milhões e milhões que passaram por momentos ainda mais dramáticos. Pensemos nas atrocidades das guerras e nos regimes políticos que executaram extermínios em massa. E tudo isso passou, graças a Deus. Pois, o Covid-19, como todos os males, também passará. Até porque Deus está presente na história da humanidade e faz dela uma história de salvação. De muitos modos e por vários meios. Mas, agora, particularmente pela ciência e pelas tecnologias aplicadas ao bem. Para mais, já sabemos como se transmite o contágio, ao passo que, por exemplo, numa guerra, nunca se sabe quando uma bomba atinge as pessoas. Por isso, temos capacidade de «defesa» muitíssimo superior àquela que tantos experimentam em situação de conflito causado pela malvadez humana. Basta que não abrademos a vigilância.

Como tantas vezes pede o Papa Francisco, que esta situação nos obrigue a repensar mais a relação do homem com a natureza, a edificarmos uma civilização mais justa a nível planetário, a sermos mais solidários e afetivos para com os débeis, a exigir do Estado que respeite e acarinhe as boas iniciativas sociais, a colocar a economia ao serviço do bem comum, a revalorizar os laços inultrapassáveis da família unida e indissolúvel, a privilegiar o essencial em detrimento do acessório. E, de maneira fundamental, a reconhecer a nossa fragilidade estrutural e consequente necessidade do Deus da misericórdia e do amor. Até porque, como diria São Paulo, “é na nossa fraqueza que se manifesta a força de Cristo” (2 Cor 12, 10).

É esta força sanante e compadecida que pedimos por intermédio da Bem-aventurada Virgem Maria para esta sua “Diocese de coração”.

Porto, 28 de agosto de 2020
+ Manuel, Bispo do Porto

“Tempo da Criação”

O bispo do Porto convidou a diocese a celebrar o “Tempo da Criação”, que os cristãos assinalam entre 1 de setembro e 4 de outubro, numa “dimensão ética”, como “fonte de espiritualidade” e promovendo “ações de sensibilização ambiental”.

CONVITE

Jardineiros No Jardim De Deus

De 1 de setembro, início do ano pastoral e escolar, a 4 de outubro, memória litúrgica de São Francisco de Assis, Patrono da Ecologia, a Igreja Católica e as Igrejas Irmãs Evangélicas colocam como sua referência especial a ligação à “Casa comum”, ou seja, à natureza, sem a qual pessoas, animais, plantas e outros seres não poderíamos sobreviver. Numa dupla perspetiva: como dimensão ética que nos obriga a específicos comportamentos respeitosos para com esta grande e bela obra de um Deus que nos oferece semelhante dádiva; e como fonte de espiritualidade, pois a contemplação da beleza da criatura ajuda-nos a admirar e amar mais o seu Criador.

Desde que o Papa Francisco nos alertou para a urgência de novas atitudes para com a natureza, com a publicação da encíclica Laudato si, esta celebração universalizou-se e passou a entrar, mais autenticamente, no rol das nossas preocupações e vivências eclesiais. Como é sabido, para assinalar o quinto aniversário desta encíclica dedicada a uma temática absolutamente nova, o Dicastério para a Promoção do Desenvolvimento Humano Integral, da Santa Sé, anunciou um ano celebrativo especial, de 24 de maio de 2020 a 24 de maio de 2021. Está a decorrer, embora o contexto de pandemia acabasse por ofuscar muitas ações que poderiam constituir grandes e motivadoras notícias.

Na Diocese do Porto, evidentemente, o tema também deu entrada no nosso Plano Pastoral. Nas “Emergências pastorais” refere-se, no nº 13, a necessidade do alargamento do “horizonte do nosso cuidado pela Casa Comum”, aliás, um dos quatro “Objetivos” para o ano de 2020/21, assim especificado: “Assumir a vocação de que Deus Pai e Criador nos confiou de guardiões da obra de Deus, como parte essencial de uma vida cristã virtuosa; acolher criativamente as propostas do Ano Laudato Si”.

Por tudo isto, convido amigavelmente os Sacerdotes e Diáconos, os Institutos Religiosos e Seculares, as Associações, Movimentos e Obras e todo o Povo de Deus, mormente por intermédio dos seus organismos mais representativos –escolas, universidades, hospitais, empresas, famílias, comunicação social, administração, autarquias, associações culturais e desportivas, artistas, etc.- a celebrarmos este tempo da Criação com ações de sensibilização ambiental, reflexão sobre a interligação da pessoa com a natureza e, se possível, com a oração de louvor pela magnífica oferta que o Criador nos concedeu.

Não faltam materiais para nos ajudar nesta vivência. Refiro, especialmente, os provenientes do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral em: (www.sowinghopefortheplanet.org/files/shftp_uploads/2020/6/Laudato_Si_Portuguese_compressed.pdf), ou da Comissão Ecuménica (seasonofcreation.org/pt/about-pt).
A nível local, entre nós, a Comissão Diocesana para o Ecumenismo (ecumenismodioceseporto.blogspot.com) já publicou válidas achegas.

O nosso Secretariado Diocesano do Ensino da Igreja nas Escolas, a quem confiei a tarefa da mobilização em favor da “Casa comum”, pretende viver o ano escolar à base deste slogan, jogando com as iniciais da sigla: “Dá cá mais 5 c’s: Crescer na Consciência do Cuidado da Casa Comum”. Creio que, com esta ou outra formulação, este desiderato deveria constituir uma preocupação de toda a Igreja diocesana.
E rezemos: “Senhor da Vida, durante este Tempo da Criação pedimos que nos deis coragem para guardar o shabat do nosso planeta. Fortalecei-nos com a fé para acreditarmos na Vossa providência. Inspirai-nos com a criatividade para compartilharmos aquilo que recebemos. Ensinai-nos a satisfazer-nos com aquilo que é suficiente. E enquanto proclamamos um Jubileu pela terra, enviai o Vosso Espírito a renovar a face da criação. Nós Vo-lo pedimos em nome de Jesus Cristo que veio proclamar a boa-nova para toda a criação”.

Porto, 27 de agosto de 2020
+ Manuel, Bispo do Porto