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Liturgia da Palavra

NATAL 2022 – Ano A – 25.12.2022

Viver a Palavra

«Um Menino nasceu para nós, um Filho nos foi dado!».

Alegremo-nos e exultemos porque Deus Se fez um de nós! Aquele que é eterno, omnipotente, omnipresente e omnisciente, o Deus sem princípio nem fim, Autor de tudo quanto vemos e conhecemos, fez-se um de nós; nasceu na humildade e na fragilidade daquele bebé nascido no presépio de Belém.

É a maravilha do Amor de Deus: um Deus que vem ao nosso encontro, um Deus que toma a iniciativa, que se aproxima de nós. Faz-se tão próximo, tão próximo, que se faz um de nós, que assume a nossa natureza! Só um Deus cheio de amor ousa levar a cabo esta missão: vir até nós e assumir a nossa humanidade.

Por isso, na contemplação do mistério do Natal, mais do que aprendermos como nos devemos comportar diante de Deus, aprendemos como Deus se comporta connosco, como Deus dialoga connosco e como entra na nossa história. Ele que «muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas. Nestes dias, que são os últimos, falou-nos por seu Filho, a quem fez herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo».

Ele vem, ligeiro sobre os montes, na colina de Belém, no estábulo por não haver lugar para ele na hospedaria, vem como mensageiro da Paz cumprindo a profecia de Isaías: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz, que traz a boa nova, que proclama a salvação». Ele traz-nos a boa notícia do amor. Haverá melhor notícia de que nos anunciarem que alguém nos ama muito e que nos quer felizes? Pois, muito bem, é essa notícia que o Menino nascido para nós nos vem trazer.

«O Verbo fez-Se carne e habitou entre nós». O Verbo de Deus é Deus dito em linguagem humana, por isso, Jesus Cristo é a Palavra feito carne, isto é, Aquele por meio do Qual Deus se dá a conhecer e faz-nos conhecer a Sua verdadeira identidade. O nascimento de Jesus marcou indelevelmente a história da humanidade, marcou o tempo e a história, fazendo com que, ainda hoje, crentes e não crentes contem o tempo antes e depois de Cristo: tudo o que acontece na história datamo-lo antes e depois de Cristo. Jesus aparece como a referência histórica por excelência. Quão bom seria se assim pudesse ser a nossa vida, que tudo o que fazemos e vivemos o fizéssemos por referência a Cristo. Sejamos audazes e corajosos e contemos os nossos dias, todos os momentos do nosso dia, a partir de Cristo, antes ou depois, ou melhor sempre depois, porque a iniciativa de amor é sempre Dele.

E se Deus se fez um de nós, se Deus quis habitar connosco, quis montar a Sua tenda no meio da humanidade, foi para nos revelar que a Sua grandeza não está nas manifestações espetaculares ou na sua omnipotência que lhe permite abanar os Céus e a Terra, mas que a Sua grandeza é a do amor. Que Ele permanece grande quando se faz pequeno e parece fraco aos olhos humanos.

No Menino do Presépio, Deus aproxima-se da humanidade, fazendo-nos saborear este mistério de proximidade, para que também nós nos saibamos aproximar uns dos outros. Apenas a distância nos empobrece, pois, a proximidade engrandece-nos e faz-nos sentir homens e mulheres mais próximos de Deus porque mais próximos uns dos outros. in Voz Portucalense   

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           Continuamos o tempo do Advento. Estamos num novo ano litúrgico – neste 2022/2023 o Ano A – em que seremos acompanhados pelo evangelista S. Mateus. Deste modo, como preparação para este ano litúrgico poderia ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

           E faremos isso (acompanhe-nos em: Abordagens VIII e seguintes – https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/). Será uma catequese bíblica que ajudará a entrar na estrutura e mensagem deste Evangelho, proporcionando a todos os fiéis um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

                                                                                             

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MISSA DA MEIA-NOITE / MISSA DO GALO

 

LEITURA I – Is 9,1-6

«O povo que andava nas trevas viu uma grande luz;»

 

Ambiente

No Livro do profeta Isaías aparece um conjunto de oráculos ditos “messiânicos”, que falam desse mundo de justiça e de paz que Deus, num futuro sem data marcada, vai oferecer ao seu Povo. No entanto, não é seguro se esses textos provêm do profeta, ou se são oráculos posteriores que o editor final da obra de Isaías enxertou no texto original do profeta…. É o caso deste texto que nos é proposto.

Se for de Isaías, o nosso texto pertence, provavelmente, à fase final da vida do profeta…. Estamos na época do rei Ezequias, no final do séc. VIII a.C.; o rei, desdenhando as indicações do profeta (para quem as alianças políticas são sintoma de grave infidelidade para com Jahwéh, pois significam colocar a confiança e a esperança nos homens), envia embaixadas ao Egipto, à Fenícia e à Babilónia, procurando consolidar uma frente contra a grande potência da época – a Assíria. A resposta de Senaquerib, rei da Assíria, não tarda: tendo vencido, sucessivamente, os membros da coligação, volta-se contra Judá, devasta o país e põe cerco a Jerusalém (701 a.C.). Ezequias tem de submeter-se e fica a pagar um pesado tributo aos assírios.

Desiludido com os reis e com a política, o profeta teria, então, começado a sonhar com um tempo novo, sem guerra nem armas, onde reinam a justiça, o direito e o “temor de Deus”. Este texto pode ser dessa época.
O “menino” aqui referenciado, da descendência de David, pode também estar relacionado com o “Emanuel” de Is 7,14-17. Trata-se, em qualquer caso, de um texto que vai alimentar a esperança messiânica e que vai potenciar o sonho de um futuro novo, de paz e de felicidade para o Povo de Deus. in Dehonianos.

A reflexão deste texto pode fazer-se a partir dos seguintes elementos:

É Jesus, o “menino de Belém”, que dá sentido pleno a esta profecia messiânica de Isaías. Ele é “aquele que veio de Deus” para vencer as trevas e as sombras da morte que ocultavam a esperança e instaurar o mundo novo da justiça, da paz e da felicidade. O nascimento de Jesus que celebramos esta noite significa que, efetivamente, este “Reino” chegou e incarnou no meio dos homens. No entanto: Ele é hoje uma realidade instituída, viva, atuante na história humana? Porquê?

Acolher Jesus, celebrar o seu nascimento, é aceitar esse projeto de justiça e de paz que Ele veio trazer aos homens. Esforçamo-nos por tornar realidade o “Reino de Deus”? Como lidamos com a injustiça, a opressão, a guerra, a violência: com a indiferença de quem sente que não tem nada a ver com isso, ou com a inquietação de quem se sente responsável pela instauração do “Reino de Deus”?

Em que ou em quem coloco a minha esperança e a minha segurança? Nos políticos que me prometem tudo e se servem da minha ingenuidade para fins próprios? No dinheiro que se desvaloriza e que não serve para comprar a paz do meu coração? Na situação sólida da minha empresa, que pode desfazer-se diante das próximas convulsões sociais ou durante a próxima crise energética? Isaías diz que só podemos confiar em Deus e nesse “menino” que Ele mandou ao nosso encontro, se quisermos encontrar a “luz” e a paz.

Reparemos, ainda, no “jeito” de Deus: Ele não se serve da força e do poder para intervir na história e para mudar o mundo; mas é através de um “menino” – símbolo máximo da fragilidade e da dependência – que Deus propõe aos homens o seu projeto de salvação. Temos consciência de que é na simplicidade e na humildade que Deus age no mundo? E nós, seguimos os passos de Deus e respeitamos a sua lógica quando queremos propor algo aos nossos irmãos? in Dehonianos

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 95 (96)

Refrão: Hoje nasceu o nosso Salvador, Jesus Cristo, Senhor.

LEITURA II – Tito 2,11-14

«Manifestou-se a graça de Deus, fonte de salvação para todos os homens,»

 

Ambiente

Tito, o destinatário desta carta, é um cristão convertido por Paulo (cf. Tt 1,4), que acompanhou o apóstolo em algumas missões importantes (participou, com Paulo, no concílio de Jerusalém – cf. Ga 2,1-2; esteve com ele em Éfeso; por duas vezes, foi enviado a Corinto, a fim de resolver conflitos entre Paulo e essa comunidade – cf. 2 Cor 7,6-7; 8,16-17) e que foi animador da Igreja de Creta (cf. Tt 1,5).

No entanto, esta carta não parece ser de Paulo; parece, antes, ser um texto tardio, surgido quando a preocupação fundamental das comunidades cristãs já não se centrava na vinda iminente do Senhor, mas em definir a conduta dos cristãos no tempo presente. Estamos numa época de certo marasmo, em que os cristãos perderam o entusiasmo inicial e em que muitos aparecem instalados, acomodados numa fé morna e sem grandes exigências. Era preciso recordar os fundamentos da fé e exortar a uma vida cristã exigente e comprometida.

Neste contexto, a preocupação fundamental do autor desta carta será apresentar uma série de conselhos práticos que ajudem os cristãos a viver, com coerência e com verdade, a sua fé no meio do mundo. in Dehonianos.

 

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes questões:

Temos consciência do amor de Deus e que a incarnação de Jesus é o sinal mais expressivo desse amor por nós? Sendo os destinatários de um tal amor, amamos Deus da mesma maneira? A nossa vida é uma resposta coerente ao amor de Deus – isto é, um compromisso autêntico com Deus e com os seus valores?

A nossa civilização ocidental institucionalizou e sacralizou uma série de valores efémeros (dinheiro, poder, êxito profissional, “status” social, bens de consumo…) e montou uma máquina de publicidade eficaz para os apresentar como a chave da verdadeira felicidade. No entanto, com frequência esses valores estão em absoluta contradição com os valores do Evangelho… Aprendemos, com Jesus, a ter um olhar crítico sobre os valores que o mundo nos propõe e a confrontar, dia a dia, a nossa vida com os valores do Evangelho?

É Cristo a nossa referência? É d’Ele que recebemos vida? O seu “jeito” de viver (no amor, na entrega, no dom da vida) foi assumido na nossa vida de todos os dias e na nossa relação com os irmãos que
nos rodeiam? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 2,1-14

«Naqueles dias, saiu um decreto de César Augusto, para ser recenseada toda a terra.»

«Enquanto ali se encontravam, chegou o dia de ela dar à luz e teve o seu Filho primogénito.»

«Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens por Ele amados».

 

Ambiente

Lucas é o evangelista mais preocupado com as referências históricas… O seu Evangelho está cheio de indicações que procuram situar com precisão os acontecimentos… No que diz respeito ao nascimento de Jesus, Lucas apresenta, também, algumas indicações que pretendem situar o acontecimento numa época e num espaço concreto… Dessa forma, Lucas dá a entender que não estamos diante de um facto lendário, mas de algo perfeitamente integrado na vida e na história dos homens.

Há, no entanto, um problema… Lucas é um cristão de origem grega, que não conhece a Palestina e que tem noções muito básicas da história do Povo de Deus… Por isso, as suas indicações históricas e geográficas são, com alguma frequência, imprecisas e inexatas. Pode ser o caso das indicações fornecidas a propósito do nosso texto, já que não é muito fácil explicá-las.

É duvidoso que Quirino, como governador, tenha ordenado um recenseamento na época em que Jesus nasceu (só por volta do ano 6 d.C. é que ele se tornou governador da Síria, embora possa ter sido “legado” romano na Síria entre 12 e 8 a.C.… Pode, realmente, nessa altura, ter ordenado um recenseamento que teve efeitos práticos na Palestina por volta de 6/7 a.C., altura do nascimento de Jesus).

De qualquer forma, convém ter em conta que Lucas não está a escrever história, mas a fazer teologia e a apresentar uma catequese sobre Jesus, o Filho de Deus que veio ao encontro dos homens para lhes apresentar uma proposta de salvação. in Dehonianos.

A reflexão sobre este texto pode partir das seguintes indicações:

O menino de Belém leva-nos a contemplar o incrível amor de um Deus que Se preocupa até ao extremo com a vida e a felicidade dos homens e que envia o próprio Filho ao mundo para apresentar aos homens um projeto de salvação/libertação. Nesse menino de Belém, Deus grita-nos a radicalidade do seu amor por nós.

O presépio apresenta-nos a lógica de Deus que não é, tantas vezes, igual à lógica dos homens: a salvação de Deus não se manifesta nos encontros internacionais onde os donos do mundo decidem o destino dos homens, nem nos gabinetes ministeriais, nem nos conselhos de administração das multinacionais, nem nos salões onde se concentram as estrelas do jet-set, mas numa gruta de pastores onde brilha a fragilidade, a dependência, a ternura, a simplicidade de um bebé recém-nascido. Qual é a lógica com que abordamos o mundo: a lógica de Deus ou a lógica dos homens?

A presença libertadora de Jesus neste mundo é uma “boa notícia” que devia encher de felicidade os pobres, os débeis, os marginalizados e dizer-lhes que Deus os ama, que quer caminhar com eles e que quer oferecer-lhes a salvação. É essa proposta que nós, os seguidores de Jesus, passamos ao mundo? Nós, Igreja, não estaremos demasiado ocupados a discutir questões laterais, esquecendo o essencial, o anúncio libertador aos pobres?

Jesus – o Jesus da justiça, do amor, da fraternidade e da paz – já nasceu, de forma efetiva, na vida de cada um de nós, nas nossas famílias, nas nossas casas religiosas, nas nossas comunidades cristãs? in Dehonianos

 

 

Para os leitores:

Missa da Meia-Noite/Missa do Galo

            Estão assinalados nos anexos os cuidados a ter com a primeira e segunda leituras.

A primeira leitura tem palavras que devem ser muito bem lidas e devagar: trevas, grande luz, multiplicastes, aumentastes, despojos, jugo, madeiro, ruidoso, manchada, etc. Há frades que devem ter um tom de voz diferente.

A segunda leitura deve merecer cuidado logo no início: Caríssimo… depois alguns cuidados com o tom de voz em parte da leitura.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

MISSA DO DIA DE NATAL

Viver a Palavra:

A liturgia deste dia convida-nos a contemplar o amor de Deus, manifestado na incarnação de Jesus… Ele é a “Palavra” que Se fez pessoa e veio habitar no meio de nós, a fim de nos oferecer a vida em plenitude e nos elevar à dignidade de “filhos de Deus”.

 

LEITURA I – Is 52,7-10

«Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a paz».

 

Ambiente

Entre 586 e 539 a.C., o Povo de Deus experimenta a dura prova do Exílio na Babilónia. À frustração pela derrota e pela humilhação nacional, juntam-se as saudades de Jerusalém e o desespero por saber a cidade de Deus – orgulho de todo o israelita – reduzida a cinzas. Ao povo exilado, parece que Deus os abandonou definitivamente e que desistiu de Judá (alguns perguntam mesmo se Jahwéh será o Deus libertador – como anunciava a teologia de Israel – ou será um “bluff”, incapaz de proteger o seu Povo e de salvar Judá). Rodeado de inimigos, perdido numa terra estranha, ameaçado na sua identidade, sem perspetivas de futuro, com a fé abalada, Judá está desolado e abandonado e não vê saída para a sua triste situação. Quando, já na fase final do Exílio, as vitórias de Ciro, rei dos Persas, anunciam o fim da Babilónia, os exilados começam a ver uma pequenina luz ao fundo do túnel; mas, então, a libertação aparece-lhes como o resultado da ação de um rei estrangeiro e não como resultado da ação libertadora de Jahwéh…. Ora, isso agrava mais ainda a crise de confiança em Jahwéh por parte dos exilados.

É neste contexto que aparece o testemunho profético do Deutero-Isaías. A sua mensagem (cf. Is 40-55) é uma mensagem de consolação e de esperança (os capítulos que recolhem a palavra do Deutero-Isaías são, precisamente, conhecidos como “Livro da Consolação”); diz que a libertação está próxima e é obra de Jahwéh.
O nosso texto está integrado na segunda parte do “Livro da Consolação” (cf. Is 40-55). Aí, o profeta (que na primeira parte – Is 40-48 – havia, sobretudo, anunciado a libertação do cativeiro e um “novo êxodo” do Povo de Deus, rumo à Terra Prometida) fala da reconstrução e da restauração de Jerusalém. O profeta garante que Deus não Se esqueceu da sua cidade em ruínas e vai voltar a fazer dela uma cidade bela e cheia de vida, como uma noiva em dia de casamento. É neste ambiente que podemos situar a primeira leitura de hoje. in Dehonianos.

Para refletir este texto, podemos servir-nos dos seguintes elementos:

A alegria pela libertação do cativeiro da Babilónia e pela “salvação” que Deus oferece ao seu Povo anuncia essa outra libertação, plena e total, que Deus vai oferecer ao seu Povo através de Jesus. É isso que celebramos hoje: o nascimento de Jesus significa que a opressão terminou, que chegou a paz definitiva, que o “reinado de Deus” alcançou a nossa história. Para que essa “boa notícia” se cumpra é, no entanto, preciso acolher Jesus e aderir ao “Reino” que Ele veio propor.

A alegria contagiante das sentinelas e os brados de contentamento das próprias pedras da cidade convidam-nos a acolher com alegria e em festa o Deus que veio libertar-nos… Se temos consciência da opressão que, dia a dia, nos rouba a vida e nos impede de ser livres e felizes, certamente sentiremos um grande contentamento ao deparar com essa proposta de liberdade que Jesus veio trazer. É essa alegria que nos anima, neste dia em que celebramos a chegada libertadora de Jesus?

As sentinelas atentas que, nas montanhas em redor de Jerusalém, identificam a chegada do Deus libertador são um modelo para nós: convidam-nos a ler, atentamente, os sinais da presença libertadora de Deus no mundo e a anunciar a todos os homens que Deus aí está, para reinar sobre nós e para nos dar a salvação e a paz. Somos sentinelas atentas que descobrem os sinais do Senhor nos caminhos da história e anunciam o seu “reinado”, ou somos sentinelas negligentes que não vigiam nem alertam e que fazem com que o Deus libertador seja acolhido com indiferença pelo povo da “cidade”? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 97 (98)

Refrão: Todos os confins da terra viram a salvação do nosso Deus.

LEITURA II – Hebr 1,1-6

«Muitas vezes e de muitos modos falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas».

 

Ambiente

A Carta aos Hebreus é um escrito de autor anónimo e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus” provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um património comum, assumido por todos os cristãos – quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo. Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé…

São, também, cristãos que facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o fervor inicial e que cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para isso, expõe o mistério de Cristo (apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança) e recorda a fé tradicional da Igreja.

O texto que nos é hoje proposto pertence ao prólogo do sermão. Nesse prólogo, o pregador apresenta a visão global e as coordenadas fundamentais que ele vai, depois, desenvolver ao longo da obra. in Dehonianos.

Na reflexão, convém dar atenção aos seguintes dados:

Celebrar o nascimento de Jesus é, em primeiro lugar, contemplar o amor de um Deus que nunca abandonou os homens à sua sorte; por isso, rompeu as distâncias, encontrou forma de dialogar com o homem e enviou o próprio Filho para conduzir o homem ao encontro da vida definitiva, da salvação plena. No dia de Natal, nunca será demais insistir nisto: o Deus em quem acreditamos é o Deus do amor e da relação, que continua a nascer no mundo, a apostar nos homens, a querer dialogar com eles, e que não desiste de propor aos homens – apesar da indiferença com que as suas propostas são, às vezes, acolhidas – um caminho para chegar à felicidade plena.

 Jesus Cristo é a Palavra viva e definitiva de Deus, que revela aos homens o verdadeiro caminho para chegar à salvação. Celebrar o seu nascimento é acolher essa Palavra viva de Deus… “Escutar” essa Palavra é acolher o projeto que Jesus veio apresentar e fazer dele a nossa referência, o critério fundamental que orienta as nossas atitudes e as nossas opções. A Palavra viva de Deus (Jesus) é, de facto, a nossa referência? O que Ele diz orienta e condiciona as minhas atitudes, os meus valores, as minhas tomadas de posição? Os valores do Evangelho são os meus valores? Vejo no Evangelho de Jesus a Palavra viva de Deus, a Palavra plena e definitiva através da qual Deus me diz como chegar à salvação, à vida definitiva? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Jo 1,1-18

«No princípio era o Verbo e o Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus».

«E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós».

«A Deus, nunca ninguém O viu. O Filho Unigénito, que está no seio do Pai, é que O deu a conhecer».

 

Ambiente

A Igreja primitiva recorreu, com frequência, a hinos para celebrar, expressar e anunciar a sua fé. O prólogo ao Evangelho segundo João (que hoje nos é proposto) é um desses hinos.

Não é certo se este hino foi composto por João, ou se o autor do Quarto Evangelho usou um primitivo hino cristão conhecido da comunidade joânica, adaptando-o de forma que ele servisse de prólogo à sua obra.

O que é certo é que o hino cristológico que chegou até nós expressa, em forma de confissão, a fé da comunidade joânica em Cristo enquanto Palavra viva de Deus, a sua origem eterna, a sua procedência divina, a sua influência no mundo e na história, possibilitando aos homens que O acolhem e escutam tornar-se “filhos de Deus”. Essas grandes linhas, enunciadas neste prólogo, vão depois ser desenvolvidas pelo evangelista ao longo da sua obra.in Dehonianos.

Na reflexão, considerar as seguintes linhas:

A transformação da “Palavra” em “carne” (em menino do presépio de Belém) é a espantosa aventura de um Deus que ama até ao inimaginável e que, por amor, aceita revestir-Se da nossa fragilidade, a fim de nos dar vida em plenitude. Neste dia, somos convidados a contemplar, numa atitude de serena adoração, esse incrível passo de Deus, expressão extrema de um amor sem limites.

Acolher a “Palavra” é deixar que Jesus nos transforme, nos dê a vida plena, a fim de nos tornarmos, verdadeiramente, “filhos de Deus”. O presépio que hoje contemplamos é, apenas, um quadro bonito e terno ou uma interpelação a acolher a “Palavra”, de forma a crescermos até à dimensão do homem novo?

Hoje, como ontem, a “Palavra” continua a confrontar-se com os sistemas geradores de morte e a procurar eliminar, na origem, tudo o que rouba a vida e a felicidade do homem. Sensíveis à “Palavra”, embarcados na mesma aventura de Jesus – a “Palavra” viva de Deus – como nos situamos diante de tudo aquilo que rouba a vida do homem? Podemos pactuar com a mentira, o oportunismo, a violência, a exploração dos pobres, a miséria, as limitações aos direitos e à dignidade do homem?

Jesus (esse menino do presépio) é para nós a “Palavra” suprema que dá sentido à nossa vida, ou deixamos que outras “palavras” nos condicionem e nos induzam a procurar a felicidade em caminhos de egoísmo, de alienação, de comodismo, de pecado? Quais são essas “palavras” que às vezes nos seduzem e nos afastam da “Palavra” eterna de Deus que ecoa no Evangelho que Jesus veio propor? in Dehonianos

 

Para os leitores:

Missa do Dia de Natal:

A primeira leitura é marcada por um tom alegre e jubiloso que anuncia a vinda do «mensageiro que anuncia a paz». A proclamação deste texto deve ser marcada pelo tom alegre e festivo, aproveitando as formas verbais no imperativo e as palavras que convidam à alegria. Deve haver um especial cuidado na frase em discurso direto presente no texto.

Na segunda leitura, recomenda-se um especial cuidado nas frases interrogativas para não acentuar apenas as palavras que antecedem o ponto de interrogação, até porque se tratam de frases afirmativas incluídas no meio da interrogativa.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

NATAL DE LUZ E DE JESUS

«Exultemos de alegria no Senhor, porque nasceu na terra o nosso Salvador», é a Antífona do Cântico de Entrada da Missa da Meia-Noite, que dá o devido tom de exultação a esta Solenidade, magnífico pórtico para este intenso feixe de Luz, Mistério de Jesus, fazendo logo ver o Natal à Luz da Páscoa, «a Páscoa do Natal», assim o diz significativamente a liturgia oriental. A Antífona da Missa da Aurora prossegue a mesma sintonia, conjugando Isaías 9,1 e Lucas 2,11, e soa assim: «Hoje sobre nós resplandece uma Luz: nasceu o Senhor». A Antífona da Missa do Dia continua a indicar o «para nós» deste Filho e do seu Mistério, trazendo ao de cima outra vez a pauta de Isaías: «Um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado» (Isaías 9,6).

A linha dos Evangelhos deste Dia é de excecional riqueza, e desenvolve-se em três movimentos: o acontecimento, o anúncio e o acolhimento. Começa com Lucas 2,1-14 (Meia-Noite), e continua com Lucas 2,15-20 (Aurora), que nos trazem o quadro histórico-geográfico do nascimento de Jesus (Lucas 2,1-7), o seu anúncio (Lucas 2,8-14) e acolhimento (Lucas 2,15-29). O nascimento de Jesus, na sua nudez, aparece narrado três vezes, nos três movimentos do texto (Lucas 2,7.12.16). Ele é claramente o centro. Aparece logo situado no decurso do recenseamento do mundo romano ordenado por César Augusto, sendo Quirino prefeito romano da Síria (Lucas 2,1-2). O reinado de Augusto estende-se por muitos anos (27 a.C.-14 d.C.), mas Pôncio Sulpício Quirino foi prefeito da Síria apenas no ano 6 d.C., sendo então que liquida os bens de Arquelau, filho de Herodes o Grande, e anexa definitivamente a Judeia ao Império Romano. O leitor menos prevenido dirá logo que há aqui uma imprecisão histórica. Acrescento então que este recenseamento foi iniciado em 7-6 a.C. por Sêncio Saturnino, prefeito da Síria durante os anos 9-6 a.C. É sabido, de resto, que a era cristã atualmente em vigor foi fixada no século VI pelo monge xiita, de origem egípcia, Dionísio o Pequeno, com um pequeno erro de cálculo que resultou no atraso de 6 ou 7 anos em relação ao nascimento de Jesus. Portanto, Jesus terá nascido 6 ou 7 anos antes do início da era cristã fixada pelo monge Dionísio. E aí está então tudo em dia: Jesus nasce quando Sêncio Saturnino dá início ao recenseamento. Dirá outra vez o leitor incauto: se assim foi, porque é que Lucas fala de Quirino, e não de Saturnino? Se repararmos bem, Lucas faz exatamente como nós fazemos hoje. Nas placas que colocamos nos edifícios públicos que inauguramos, constam os nomes das autoridades que os terminam e inauguram, e não daqueles que os iniciam. O mesmo se diga da promulgação de leis e tratados.

É ainda no quadro deste recenseamento que José, acompanhado por Maria, sua esposa, sobe a Belém para se recensear. O texto explica bem que esta deslocação se fica a dever ao facto de José ser da descendência de David (Lucas 2,3-4). Alguém poderá perguntar: então por que foi José viver para Nazaré, se ele era natural de Belém, a uns 150 km de distância? Provavelmente dentro do programa político-religioso de rejudaização da Galileia, iniciado por Alexandre Janeu (103-76 a.C.), em que colonos judeus eram incentivados a repovoar e rejudaizar a Galileia.

O próximo passo refere que não havia lugar para eles (José e Maria) na sala (Lucas 2,7). Note-se que o texto refere, de forma clara, sala, grego katályma, e não hospedaria, como se lê em muitas e preconceituosas traduções. Na verdade, Lucas sabe bem dizer hospedaria, como faz na passagem do bom samaritano (Lucas 10,34), em que usa o termo grego pandocheîonKatályma não significa hospedaria. Significa sala. Pode ser a sala do andar superior (Lucas 22,11), mas é, neste caso, a sala de hóspedes que a arqueologia pôs a descoberto no rés-do-chão de muitas das casas da Palestina do tempo de Jesus. Esta sala apresenta forma quadrada ou retangular, com um banco rochoso ao longo das paredes, destinado ao descanso das pessoas. Uma única porta de entrada dava acesso à sala a pessoas e animais. Ao fundo da sala localizava-se outra porta, que dava para um estábulo, para onde as pessoas conduziam naturalmente os animais. É neste estábulo anexo à sala de hóspedes que vai nascer Jesus, e é também aqui que se compreende perfeitamente a presença da manjedoura (Lucas 2,7 e 12).

Vem depois a cena maravilhosa da manifestação desta Notícia aos pastores dos campos de Belém. Os pastores são os últimos da sociedade, e não entram nas contas de ninguém, tal como o pequeno pastor de Belém, David, não entra nas contas já encerradas de seu pai (1 Samuel 16,10-11), mas entra nas de Deus (1 Samuel 16,11-12). Assim é também aos pastores de Belém que o mensageiro celeste anuncia a Alegria do nascimento de um Salvador para todo o povo, hoje nascido em Belém (Lucas 2,8-11).

E, deste acontecimento, o mensageiro celeste dá um sinal (sêmeîon) aos pastores e a nós: «encontrareis um recém-nascido envolto em faixas e deposto numa manjedoura» (Lucas 2,12). E, depois daquele celestial e humano Gloria in excelsis Deo e Paz na terra aos homens que Ele ama (Lucas 2,14), aí vão eles, os pastores, aqueles com quem ninguém conta e que não entram em nenhuma lista, aí vão eles apressadamente (Lucas 2,16), como Maria (Lucas 1,39), verificar (ideîn) os acontecimentos a eles dados a conhecer por Deus (Lucas 2,15), e que, como verdadeiros anunciadores, não podem calar, e devem dar também a conhecer a todos (Lucas 2,17). Note-se esta Paz diferente, que não é obra das armas, como no mundo romano, nem de acordos entre as partes, como no judaísmo palestinense, mas dom de Deus!

Cena sublime e suprema ironia. Os senhores do mundo (César Augusto e Quirino), são mencionados, mas saem logo de cena, para dar lugar aos pastores, que assumem o papel de verdadeiros protagonistas. Os senhores do mundo ocupam um único versículo cada um (Lucas 2,1 e 2). Os pastores enchem treze versículos (Lucas 2,8-20). Também lá estão Maria, José e o Menino, mas não dizem uma única palavra. A palavra é toda dos Anjos e dos pastores. Mas Maria é estupendamente retratada a «guardar todas aquelas palavras, compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,19).

Note-se ainda o sinal dado aos pastores e a nós, leitores: um recém-nascido envolto em faixas, deposto numa manjedoura. É preciso também ver já aqui a Luz da Páscoa, com o corpo de Jesus a ser envolto num lençol e deposto num sepulcro (Lucas 23,53). Mas também a sala (katályma) onde não havia lugar para eles (Lucas 2,7) reclama já a sala para comer a Páscoa (Lucas 22,11). O Evangelho do Dia (João 1,1-18) deixa-nos de joelhos em contemplação: «E o Verbo se fez carne e pôs a sua tenda entre nós, e nós contemplámos (theáomai) a sua glória» (João 1,14). Mas também: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11).

Os passos dos peregrinos e os nossos convergem Hoje para a Basílica da Natividade em Belém. Não obstante os múltiplos trabalhos de reconstrução e conservação ao longo dos séculos, a Basílica que hoje se depara ao peregrino é, nas suas linhas gerais, obra do imperador Justiniano, edificada entre 531 e 565, e é mesmo o único templo, provindo de Justiniano, que resta na Palestina. Escapou mesmo à razia dos Persas de Cosroé, em 614, contra os templos cristãos, devido ao facto de os frescos que adornam a Basílica conterem representações dos Magos, o que muito terá sensibilizado os Persas. Esta não é, porém, a Basílica primitiva. Os trabalhos arqueológicos efetuados pelo P. Bagatti em 1949-1950 mostraram, por debaixo do pavimento da atual Basílica, os traços arquitetónicos de outra grandiosa Basílica, levantada entre 326 e 333, por Santa Helena, mãe do imperador Constantino. Esta primitiva Basílica foi assolada por diversos incêndios e depois grandemente devastada pela revolta dos Samaritanos de Nablus em 529 contra o governo bizantino. Foi sobre as ruínas desta Basílica Constantiniana que o imperador Justiniano fez construir, com traços arquitetónicos diferentes, a Basílica atual.

Mas a Basílica Constantiniana também não representa o estádio primitivo do culto cristão em Belém. Este encontra-se certamente na cripta da Basílica atual, guardado num espaço retangular de 12,30 metros de comprimento por 3,50 metros de largura, para onde convergem os passos dos peregrinos. Este espaço corresponde ao estábulo anexo à já mencionada sala de hóspedes. Aí se encontra o Altar da Natividade, debaixo do qual se pode ver uma estrela de prata com a inscrição: Hic de Virgine Mariae Jesus Christus natus est [= «Aqui da Virgem Maria nasceu Jesus Cristo»]. A Basílica da Natividade guarda na sua cripta o mistério do nascimento de Jesus, da pobreza, da humildade, do amor, da paz. Daquele e daquilo que não tem lugar na sala do nosso bem-estar, poder, ódio, ostentação, tirania. Na tua casa e na tua sala há lugar para quem e para quê, meu irmão deste Dia de Natal?

Há dois mil anos Deus sonhou

E foi

Natal em Belém.

Sonha também.

Se o jumento corou

E o boi se ajoelhou,

Não deixes tu de orar também.

A notícia ecoou nos campos de Belém.

Com o celeste recital que ali se deu,

O céu ficou ao léu,

A terra emudeceu de espanto,

E os pastores dançaram tanto, tanto,

Que até os mansos animais entraram nesse canto.

Isaías 1,3 antecipou a cena,

E gravou com o fulgor da sua pena

O manso boi e o pacífico jumento

Comendo as flores de açucena da vara de José sentado ao lume,

E bafejando depois suavemente o Menino de perfume.

Enquanto os meigos animais vão comer à mão do dono,

O meu povo, diz Deus, não me conhece, e perde-se nos buracos de ozono.

Vem, Menino!

E quando vieres para a tua doirada sementeira,

Que logo cresce e se faz messe (João 4,35),

Quando assobiares às boieiras,

Chama também por mim,

Diz bem alto o meu nome,

Vamos os dois para o campo e para a eira,

E enche-me de fome de um amor como o teu,

Pequenino e enorme.

 António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Natal – Missa Meia-Noite – Ano A – 25.12.2022 (Is 9, 1-3)
  2. Leitura II – Natal – Missa da Meia-Noite – Ano A -25.12.2022 (Tito 2, 11-14)
  3. Leitura I – Natal – Missa do Dia – Ano A – 25.12.2022 (Is 52, 7-10)
  4. Leitura II – Natal – Missa do Dia – Ano A – 25.12.2022 (Heb 1, 1-6)
  5. Natal 2022 – Ano A – 25.12.2022 – Lecionário
  6. Natal 2022 – Ano A – 25.12.2022 – Oração Universal
  7. ANO A – O ano do evangelista Mateus

Domingo IV – Tempo do Advento – Ano A – 18.12.2022

18Ora, o nascimento de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José; antes de coabitarem, notou-se que tinha concebido pelo poder do Espírito Santo. 19José, seu esposo, que era um homem justo e não queria difamá-la, resolveu deixá-la secretamente. 20Andando ele a pensar nisto, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonhos e lhe disse: «José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que ela concebeu é obra do Espírito Santo. 21Ela dará à luz um filho, ao qual darás o nome de Jesus, porque Ele salvará o povo dos seus pecados.» Mt 1, 18-21

Viver a Palavra

O Tempo de Advento é um tempo paradigmático para a nossa existência cristã: viver em atitude de espera vigilante, renovar no coração a esperança de que o Senhor vem e se faz presente na nossa vida e escutar a voz de Deus que nos comunica os seus sonhos e projetos. O cristão, batizado em Cristo e sustentado pela força transformadora do Seu amor, é aquele que vive a certeza de que, em Jesus Cristo, Deus veio ao nosso encontro, assumindo a nossa natureza humana, mas que também continua a visitar-nos e a vir ao nosso encontro, no quotidiano da nossa existência, para renovar no nosso coração a certeza de que um dia virá para instaurar os novos céus e a nova terra.

Estamos na iminência da celebração do Natal do Senhor e o Tempo de Advento vai adiantado, é tempo de pararmos para nos perguntarmos como estamos a viver este tempo e como exercitamos esta atitude de espera confiante que nos forja na arte de descobrir os sinais de Deus no nosso dia-a-dia.

A profecia de Isaías que escutámos na primeira leitura já se cumpriu. A Virgem de Nazaré concebeu e deu à luz um filho, o Emanuel, o Deus connosco, Aquele que não é indiferente às nossas dores e angústias, alegrias e esperanças, mas que se faz um de nós e trilha connosco os caminhos da história. É Ele, Aquele por quem Paulo recebe a missão de Apóstolo e que conta com cada um de nós para que a Boa Nova da salvação possa ecoar no tempo e na história, chegando ao coração de cada homem e de cada mulher: «por Ele recebemos a graça e a missão de apóstolo, a fim de levarmos todos os gentios a obedecerem à fé, para honra do seu nome, dos quais fazeis parte também vós, chamados por Jesus Cristo». Somos discípulos porque aprendizes na escola da arte de amar, mas também apóstolos, porque não podemos calar as maravilhas que Deus opera e porque o amor tem de ser anunciado como força transformadora na construção de um mundo novo e diferente.

É verdade, que muitas vezes os desafios da sociedade contemporânea, os medos, as limitações e fragilidades habitam o nosso coração e nos conduzem a resoluções humanas que nos afastam do projeto de Deus. Por isso, devemos aprender a contemplar a figura de José que não cede de modo tempestivo às surpresas da vida, mas que as procura acolher no coração pela arte da escuta e do silêncio. Diante de Maria, sua noiva, que se encontra grávida antes de viverem em comum, José pensa repudiá-la em segredo. Ele não começa por fazer longos discursos e preleções. Curiosamente, não escutamos uma única palavra de José, nem nesta ocasião, nem em qualquer outra das poucas páginas evangélicas onde ele aparece. José é um homem justo, simples e bom, discreto e humilde, que nos recorda que a verdadeira riqueza não está tanto nas coisas que dizemos, mas na atitude de escuta que nos coloca a caminho com determinação e confiança para realizar os sonhos de Deus e colaborar na Sua obra de salvação.

No silêncio do sono, José recebe, num sonho, a certeza de que tudo o que está a acontecer é obra de Deus pela força do Espírito Santo e o filho que há-de nascer do seio de Maria é Jesus «porque Ele salvará o povo dos seus pecados».

Ele confia e «quando despertou do sono, José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu sua esposa». Ao contrário da anunciação a Maria, José não profere qualquer resposta, mas toma uma atitude e age de acordo com o plano de Deus. Como ele, somos chamados acolher os sonhos de Deus e agir com determinação e confiança. Deus conta connosco, com a nossa disponibilidade e prontidão, para que sejamos verdadeiros apóstolos que percorrem com alegria a estrada da santidade, aceitando o desafio de fazer do nosso coração espaço onde os sonhos possam habitar. in Voz Portucalense   

    

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No IV Domingo do Tempo de Advento estamos já na iminência da celebração do Natal do Senhor e são muitas as coisas a preparar e ultimar para a celebração familiar desta quadra natalícia. Este Domingo é uma oportunidade para convidar cada família a fazer da Ceia de Natal um verdadeiro lugar de vivência cristã, de modo particular pela oração em família. Por isso, deve convidar-se cada família a valorizar o momento de oração no início da Ceia Natalícia, acendendo uma vela ou valorizando as figuras do Presépio, porventura com o beijar do Menino no início da Ceia. Poderá ser útil a distribuição de uma proposta de oração nas eucaristias dominicais deste Domingo. in Voz Portucalense

 

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           Continuamos o tempo do Advento. Estamos num novo ano litúrgico – neste 2022/2023 o Ano A – em que seremos acompanhados pelo evangelista S. Mateus. Deste modo, como preparação para este ano litúrgico poderia ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

           E faremos isso (acompanhe-nos em: Abordagens VIII e seguintes – https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/). Será uma catequese bíblica que ajudará a entrar na estrutura e mensagem deste Evangelho, proporcionando a todos os fiéis um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

                                                                                             

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LEITURA I – Is 7,10-14

«O próprio Senhor vos dará um sinal: a virgem conceberá e dará à luz um filho, e o seu nome será Emanuel»

 

Ambiente

Em 734 a.C., Acaz sobe ao trono de Judá (o Povo de Deus está, nesta altura, dividido: a norte, há um reino formado por dez tribos, com o nome de Israel e com a capital na Samaria; a sul, há outro reino, formado por duas tribos, com o nome de Judá e com a capital em Jerusalém). Por esta época, Judá goza de alguma prosperidade económica e de relativa tranquilidade política… No entanto, as campanhas militares de Tiglat-Pileser III, rei da Assíria, rapidamente lançam os países da zona em alvoroço e anunciam tempos complicados para os pequenos reinos da terra de Canaan.

As coisas complicam-se quando Pecah, rei de Israel, tenta formar uma coligação anti-assíria, capaz de resistir às investidas imperialistas de Tiglat-Pileser III. O rei de Israel pretende que essa coligação integre a Síria e Judá. No entanto, Acaz, rei de Judá, recusa-se a embarcar nessa aventura; então Pecah, rei de Israel, e Rezin, da Síria, lançam as suas tropas contra Judá. Acaz, assustado, decide pedir a ajuda dos assírios para resistir aos invasores. O profeta Isaías, no entanto, não concorda: para ele, a única esperança e segurança com que Judá deve contar é Jahwéh, o seu Deus; confiar a segurança da nação a potências e a exércitos estrangeiros é abandonar Deus e expor o país a dependências que só podem trazer sofrimento e opressão. No entanto, Acaz insiste em pedir a ajuda da Assíria… É então que o profeta Isaías se dirige ao rei e lhe pede que, se não acredita nas suas recomendações, peça a Deus um “sinal” para decidir o que Deus quer e o que é melhor para o Povo. Acaz tem a decisão tomada e recusa pedir a Deus um “sinal”… Mas Isaías quer, mesmo assim, deixar ao rei um “sinal” de Deus… in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes linhas:

O facto decisivo, neste texto, é a afirmação de que Deus não abandona o seu Povo, mas que é e será sempre o “Deus-connosco”. A próxima celebração do nascimento de Jesus recorda e celebra esse facto fundamental: Deus ama-nos de tal forma que continua a vir ao nosso encontro… Neste tempo de espera da vinda, somos convidados a tomar consciência do amor de Deus, que se manifesta numa presença permanente a nosso lado; com Ele a dar-nos a mão e a palmilhar connosco a estrada da vida, podemos enfrentar todos os desafios.

A partir deste texto e do ambiente em que ele nasce, podemos também pôr o problema das falsas seguranças e das falsas esperanças. Acaz confiava mais na segurança dos exércitos estrangeiros do que em Jahwéh… Em que é que o homem de hoje coloca a sua confiança e a sua esperança? Para evitar um holocausto nuclear, é no equilíbrio das armas que podemos confiar? Para termos uma sociedade mais justa e mais fraterna, é nos políticos que podemos confiar? Para nos sentirmos seguros e confortáveis, é no dinheiro que podemos confiar? Para iludirmos a doença ou a morte, é nos novos medicamentos ou nos progressos da medicina que podemos confiar? Onde está a nossa “rocha segura” que não falha: em Deus ou nas estruturas humanas?

Acaz não quis ou não soube “ler” os “sinais” que Deus colocou diante dos seus olhos, não conseguiu fazer a escolha acertada e acabou por conduzir o seu Povo por caminhos de morte e de desgraça… Isto coloca-nos o problema dos “sinais”: um erro na leitura do radar pode fazer em destroços um avião ou um navio; uma falha na sinalização luminosa causa um desastre inevitável… Estamos atentos aos “sinais” que Deus semeia na estrada da nossa vida e através dos quais nos indica o caminho a seguir, ou caminhamos numa alegre inconsciência, ao sabor da corrente, desviando-nos por atalhos que nos afastam do objetivo e nos fazem sofrer? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 23 (24)

Refrão: Venha o Senhor: é Ele o rei glorioso.

LEITURA II – Rom 1,1-7

«Deus tinha de antemão prometido pelos profetas nas Sagradas Escrituras, acerca de seu Filho, nascido, segundo a carne, da descendência de David».

 

Ambiente

A “Carta aos Romanos” é uma carta escrita no final da terceira viagem missionária de Paulo. Preparando-se para partir de Corinto a caminho de Jerusalém, o apóstolo sente que terminou a sua missão no Mediterrâneo oriental e prepara-se para continuar o seu trabalho missionário no ocidente. O seu olhar dirige-se, agora, para Roma e para a Península Ibérica (cf. Rm 15,24): os seus planos passam por anunciar aí o Evangelho de Jesus…. Estamos no ano 57 ou 58.

Paulo está preocupado com o futuro da Igreja, pois manifestam-se algumas dificuldades de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, fruto das diferenças sociais, culturais e religiosas subjacentes aos dois grupos. Na comunidade de Roma, essas diferenças sentem-se com alguma intensidade e ameaçam a unidade da Igreja… Nesta situação, Paulo escreve para sublinhar aquilo que a todos une e insiste que todos – judeus e não judeus – fazem parte do mesmo Povo de Deus e devem viver no amor e na fraternidade.

O texto que nos é hoje proposto é parte da introdução à carta. Sabendo que se trata de uma comunidade que não foi fundada por ele, Paulo adota singulares precauções diplomáticas, a fim de não melindrar os cristãos de Roma. Começa por se apresentar e por definir a missão que Deus lhe confiou. in Dehonianos.

Para a reflexão, considerar os seguintes dados:

A primeira coisa que convém ter em conta, a partir do texto, é que Jesus Cristo veio ao mundo para apresentar aos homens um projeto de salvação; esse projeto é o caminho seguro para deixarmos cair as cadeias que nos oprimem e para chegarmos à vida plena que Deus nos quer oferecer. Neste tempo de Advento, esperamos a salvação de Deus, que vem ao nosso encontro oferecer-nos a vida nova.

Ser cristão é ser chamado a testemunhar no mundo essa proposta de vida nova e de liberdade. Não se trata de aceitar umas fórmulas de fé cobertas de poeira, nem de estudar nos livros um sistema filosófico ou teológico coerente, que ensinamos com lógica e com alguma pedagogia; trata-se de trazer ao mundo uma proposta viva, transformadora, libertadora, da qual damos testemunho com palavras e com gestos concretos. É isso que acontece? Testemunho a minha fé com a vida? O meu testemunho é transformador e libertador para os meus irmãos escravizados?

Para Paulo, o anúncio do Evangelho não é uma forma de sobressair, de se elevar acima dos outros, de adquirir importância e estatuto; mas é uma missão que Deus confia àqueles que elege e que deve ser cumprida com amor e com espírito de serviço. É desta forma que eu testemunho o Evangelho? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Mt 1,18-24

«O nascimento de Jesus deu-se do seguinte modo»

«José, filho de David, não temas receber Maria, tua esposa, pois o que nela se gerou é fruto do Espírito Santo»

«Quando despertou do sono, José fez como o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu sua esposa».

 

Ambiente

O texto que nos é hoje proposto pertence ao “Evangelho da Infância” na versão de Mateus. De acordo com os biblistas atuais, os textos do “Evangelho da Infância” pertencem a um género literário especial, chamado homologese. Este género não pretende ser um relato jornalístico e histórico de acontecimentos; mas é, sobretudo, uma catequese destinada a proclamar certas realidades salvíficas (que Jesus é o Messias, que Ele vem de Deus, que Ele é o “Deus connosco”). Desenvolve-se em forma de narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabbis judeus da época de Jesus). A homologese utiliza e mistura tipologias (factos e pessoas do Antigo Testamento, encontram a sua correspondência em factos e pessoas do Novo Testamento) e aparições apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) para fazer avançar a narração e para explicitar determinada catequese sobre Jesus. O Evangelho que nos é hoje proposto deve ser entendido a esta luz: não interessa, pois, estar aqui à procura de factos históricos; interessa, sobretudo, perceber o que é que a catequese cristã primitiva nos ensina, através destas narrações, sobre Jesus.

Há ainda outra questão que importa ter em conta, para percebermos o pano de fundo da narração que nos é proposta: a situação de Maria e José. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os “esponsais”); só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (as cerimónias do matrimónio propriamente dito) … Entre os “esponsais” e o rito do matrimónio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um carácter estável, de tal forma que, se surgia um filho, este era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida” como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27) … E a união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. Ora, segundo o texto que nos é proposto, José e Maria estavam na situação de “prometidos”: ainda não tinham celebrado o matrimónio, mas já tinham celebrado os “esponsais”. in Dehonianos.

Refletir a partir das seguintes questões:

Esse Jesus que esperamos é – de acordo com a catequese que a primitiva comunidade cristã nos apresenta por intermédio de Mateus – o “Deus que vem ao encontro dos homens”, para lhes oferecer a salvação. A festa do Natal que se aproxima deve ser o encontro de cada um de nós com este Deus; e esse encontro só será possível se tivermos o coração disponível para O acolher e para abraçar a proposta que Ele nos veio fazer.

Com frequência, o Natal é a festa pagã do consumismo, das prendas obrigatórias, da refeição melhorada, das tradições familiares que têm de ser respeitadas mesmo quando não significam nada… O meu Natal – este Natal que estou a preparar no meu coração – é uma celebração pagã ou um verdadeiro encontro com esse Deus libertador, cuja proposta de salvação estou interessado em escutar e acolher?

A figura de Maria é uma figura incontornável para quem prepara o Natal: é a figura que está sempre disponível para escutar os apelos de Deus e que lhes responde com um “sim” de disponibilidade total… É esse “sim” e essa disponibilidade que tornam possível a presença salvadora de Deus no mundo. Estou na mesma atitude de disponibilidade aos desafios de Deus? Sou capaz de dizer todos os dias “sim”, de forma que, através de mim, Deus possa nascer no mundo e salvar os homens?

Outra figura que nos interpela e questiona neste tempo de Advento é a figura de José… Ele é o homem a quem Deus envolve nos seus planos – planos que, provavelmente, lhe parecem misteriosos e inacessíveis – mas que tudo aceita, numa obediência total a Deus. Sou capaz de acolher os projetos de Deus – mesmo quando eles desorganizam os meus projetos pessoais – com a mesma disponibilidade de José, na obediência total aos esquemas de Deus? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura é marcada pelo diálogo com o Rei Acaz. A proclamação desta leitura deve ter em conta este diálogo, tendo atenção a questão colocada por Isaías, introduzindo-a com as palavras «Escutai, casa de David», mas também evitando dar a entoação final apenas no final da frase interrogativa, mas sublinhando a expressão inicial «Não vos basta…». Esta leitura conclui com um feliz anúncio que deve ser destacado na proclamação do texto.

A segunda leitura é o início desta carta e por isso, começa com a apresentação que faz de si o apóstolo. Deve ter-se em atenção as frases longas com diversas orações e que exige uma preparação com atenção às pausas e respirações.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

EM BICOS DE PÉS, EM SONHOS, EM SILÊNCIO

 

Sempre me encantou esta humaníssima e sensibilíssima figura de José, que o Evangelho de Mateus qualifica como «justo» (Mateus, 1,19). O termo «justiça» enche este Evangelho, fazendo-se nele ouvir por sete vezes (3,15; 5,6.10.20; 6,1.33; 21,32), e traduz o plano divino de salvação, que é a divina surpresa, e a adequação da nossa vontade a esse plano, melhor dito, a essa surpresa. Neste Evangelho, os discípulos nunca são declarados «justos», mas são chamados à «justiça», a andar no «caminho da justiça», auto destituindo-se, pondo de lado os seus projetos, e sabendo sempre dizer SIM a Deus.

Aí está, então, diante de nós o sensibilíssimo «justo» José sintonizado em alta-fidelidade, em Hi-Fi, com Deus. É assim que, em bicos de pés, no limiar do silêncio, passa discretamente da cena «pública» para o «segredo» (Mateus 1,19). Fantástico. Até Deus entende e respeita este silêncio, este «segredo» (láthra) de José, e é de mansinho, em um sonho (Mateus 1,20), que põe José a par dos seus planos, entenda-se, surpresas, que passam pela maternidade divina de Maria e pela missão esponsal e paternal de José. É o que podemos chamar, neste Evangelho de Mateus 1,18-24, de «Anunciação do Anjo a José».

Este homem manso, sossegado e silencioso (quando surge em cena, somando todos os textos em que aparece, não se lhe ouve uma única palavra!) lembra o outro José, o homem dos sonhos (Génesis 37,19), que surge no Livro do Génesis, e que com sonhos e serena sabedoria se ocupa (Génesis 37; 40; 41). Também este José sabe ler a sua história em dois teclados, distinguindo bem as coisas humanas das divinas (ou entrançando bem as coisas humanas e as divinas?!). Veja-se a forma sublime como se apresenta, desvendando-se, aos seus irmãos mais do que atónitos: «Eu sou José, vosso irmão, que vós vendestes para o Egipto. Mas agora não vos entristeçais nem vos aflijais por me terdes vendido para cá, porque foi para salvar as vossas vidas que Deus me enviou adiante de vós. Deus enviou-me adiante de vós para assegurar a permanência da vossa raça na terra e salvar as vossas vidas para uma grande libertação. Assim, não fostes vós que me enviastes para cá, mas Deus» (Génesis 45,4-8). Leitura sublime.

A missão paternal de José fica clara no facto de ser José a dar o nome ao filho que vai nascer de Maria. O nome do menino será Jesus, que surge logo explicado «porque salvará o seu povo dos seus pecados» (Mateus 1,21). E aqui se começa a abrir uma grande avenida que atravessa o inteiro Evangelho de Mateus: a avenida do PERDÃO. Esta nota soa vezes sem fim, como obra bela de Deus que nós, seus filhos, devemos imitar, perdoando também. São tantas as vezes que seria fastidioso citá-las todas aqui. Deixo só a pérola do dito de Jesus sobre o cálice: «Isto é o meu sangue da aliança, pelos muitos derramado, para perdão dos pecados» (26,28). O inciso «para perdão dos pecados» é um exclusivo de Mateus!

E é assim, descendo ao nosso nível e assumindo ou abraçando tudo o que é nosso, sem deixar nada nem ninguém esquecido ou de lado, que Jesus é «Deus connosco» (Mateus 1,23), e «connosco fica todos os dias até ao fim do mundo» (Mateus 28,20). Princípio e fim do Evangelho de Mateus. Inclusão literária

Emanuel, Deus connosco. Mateus faz aqui uma citação de Isaías 7,14, que, por graça, também hoje é objeto de leitura para nós. Mas Mateus faz uma alteração teológica fundamental. Isaías dizia: «E ela (a jovem mãe) chamará o nome dele Emanuel». Mateus altera o sujeito e o verbo e escreve assim: «E eles chamarão o nome dele Emanuel» (Mateus 1,23). Com esta mudança de sujeito e verbo do singular para o plural, Mateus faz de Jesus, não apenas o sinal de salvação dado a um povo, mas sinal de salvação para todos os povos! E a dádiva do nome por todos, por nós também, implica-nos a todos com este Emanuel.

Já se ouve a música de Isaías 7,10-14; 8,10. O cenário é a guerra siro-efraimita, que são dois exércitos, da Síria e de Israel, que põem cerco a Jerusalém, capital do Reino de Judá, no ano 734 a. C., com o intuito de depor Acaz, rei de Judá. Já se vê um Isaías firme e confiante, que, enviado por Deus (Isaías 7,3), atravessa sem medo o cenário da guerra siro-efraimita, para levar ao amedrontado e trémulo rei Acaz (Isaías 7,2), que se encontra junto da nascente de Gihôn, a inspecionar as águas, uma palavra de conforto e de esperança. Para significar melhor tudo isto, Isaías leva o seu filho, que ostenta um nome de esperança She’ar yashûb [= «um “resto” voltará»], pela mão (Isaías 7,3). Um pai, que ousa atravessar um cenário de guerra levando um filho pela mão, é, na verdade, testemunha de outra segurança! A mensagem que Isaías comunica a Acaz consta de quatro pontos: a) tem calma; b) não tenhas medo; c) segura-te em Deus; d) pede um sinal (Isaías 7,11). Já se sabe que o descrente Acaz não pedirá o sinal, diz ele, para não tentar a Deus (Isaías 7,12), isto é, hipocritamente alega uma razão aparentemente religiosa como para-vento para esconder a sua incredulidade. Ora, pedir um «sinal», nestas circunstâncias, era sinal de fé e de humildade que reconhece a sua pobreza, como se depreende do comportamento de Abraão (Génesis 15,8), de Gedeão (Juízes 6,36-40) e de Ezequias (2 Reis 20,8-11). Marcada pela incredulidade era antes a recusa de pedir esse «sinal», como sucede com Acaz, que julga Deus incapaz de se interessar pelos nossos problemas.

Pouco importa. Eis que Deus dá, de igual maneira, o seu sinal: «A jovem» (‘almah TM; parthénos LXX) concebeu e dará à luz um filho a quem porá o nome de ‘immanû ’el [= «Connosco Deus»]» (Isaías 7,14). A jovem, aqui mencionada, é, em primeira leitura, certamente Abia, filha de Zacarias, esposa de Acaz, mãe de Ezequias (2 Crónicas 29,1). O filho, cujo nascimento é anunciado é certamente, em primeira leitura, Ezequias, filho de Acaz e de Abia, que ainda não tinha dado a Acaz um herdeiro. O nascimento de Ezequias parece ter ocorrido em 733, depois da guerra siro-efraimita. Todavia, como ele não é nomeado, a promessa não se esgota na pessoa de Ezequias. Abre-se ao herdeiro dinástico de qualquer tempo, portador das promessas de Deus para o seu povo. Este «filho» dado fica assim no campo dos «sinais», de resto como Isaías e os seus filhos (Isaías 8,18), e Mateus procede de forma correta ao ver a promessa realizar-se em Jesus, como, por graça, nos é dado ouvir no Evangelho de hoje (Mateus 1,18-24). Em primeira leitura, o «sinal» dado a Acaz é que a dinastia davídica, que corria perigo em 734, se salvará. Virá mesmo um tempo de prosperidade e de paz que marcará a infância daquele menino, que se alimentará de leite coalhado e mel (Isaías 7,15), alimentos que simbolizam abundância porque são dom de Deus (Deuteronómio 6,3; 11,9; 32,13-14; Êxodo 3,8 e 17).

Por outro lado, antes que o menino atinja a idade da razão, portanto, dentro em breve, os reinos de Israel e da Síria, agora agressores, serão reduzidos a escombros (Isaías 7,16; cf. 8,3-4). O que acontece, de facto, sendo a Síria anexada pela Assíria ainda em 734, o mesmo acontecendo a grande parte do território de Israel, em 733. A paz e a felicidade dos dias de David e Salomão, ou mesmo do tempo dos Juízes, serão recordadas e vividas em Judá. É o que pretende dizer o oráculo: «O Senhor fará vir sobre ti […] dias tais como não existiram desde o dia em que Efraim se separou de Judá» (Isaías 7,17), ou seja, desde 926, data da morte de Salomão e da separação do Reino de Israel (Norte) da Corte de Jerusalém.

Logo a seguir, Isaías introduz um oráculo de desgraça sobre Judá: as águas impetuosas da Assíria virão sobre Judá e submergi-lo-ão (Isaías 8,6-8). Mas é neste novo contexto que o profeta deixa sair, por duas vezes, o desabafo: «‘immanû ’el»! (8,8 e 10). Acostagem extraordinária da salvação à desgraça! Com este suspiro, num novo contexto, a profecia do Emanuel tornou-se tradição já para o próprio Isaías. Esta tradição tem a sua história. Já não temos apenas um sentido histórico único e determinado, mas começa a história da tradição do oráculo do Emanuel que, passando por Is 9,5 e 11,1-9, chegará ao Novo Testamento (Mateus 1,23). Deus connosco sempre.

Temos também hoje a graça de receber o início da Carta de S. Paulo aos Romanos (1,1-7), em que podemos identificar a apresentação ou titulatio [«Paulo, servo de Cristo Jesus, chamado apóstolo, separado para o Evangelho de Deus»] (v.1), seguida de um longo parêntesis cristológico (vv. 2-6), o endereço ou adscriptio [«a todos os que estão em Roma, amados de Deus, aos chamados santos»] (v. 7a), e a saudação ou salutatio [«Graça a vós e Paz da parte de Deus, nosso Pai, e do Senhor Jesus Cristo»] (v. 7b). Notemos que a locução «Graça e Paz» abre todas as Cartas de S. Paulo, e «A Graça» está em todas as saudações finais, fechando todas as Cartas. Mas é ainda grandemente sintomático que, depois deste início, a Carta aos Romanos prossiga assim: «Primeiro, dou Graças ao meu Deus, por intermédio de Jesus Cristo, por todos vós…» (Romanos 1,8). Aqui está o mesmo olhar de bondade e de beleza, ícone de Paulo em oração sem fim. Na verdade, depois daquele «primeiro», ficamos à espera de encontrar um «segundo» ou um «depois», que, todavia, nunca mais aparecerá. A Graça e a Ação da Graça estão antes de tudo e preenchem tudo. Nesse sentido, é bom e justo que tomemos consciência de que não é mais suficiente um cristianismo convencional, marcado pela ação social. É hoje igualmente insuficiente a espiritualidade da militância, que persegue a causa nobre de uma Igreja viva e participada e da construção de um mundo melhor. Um serviço pastoral que se reduza a «coisas que fazer» está gasto. Passou o tempo dos cristãos meramente «praticantes». Hoje são necessários cristãos enamorados, à maneira de Paulo.

Vem, Senhor Jesus. Só um amor como o teu transformará este mundo e salvará o nosso engessado coração! O «justo» José pode ensinar-nos como te ensinou a andar, menino, a dar os primeiros passos, e também como tu, menino, lhe ensinaste a ele a andar no «caminho da justiça».

Por isso, cantemos e aclamemos, com o Salmo 24, o Senhor do Universo e nosso Salvador que vem na nossa frágil humanidade, que Ele glorifica. No primeiro andamento deste Salmo (vv. 1-6), justamente a parte hoje cantada, somos convidados a acolher este Senhor com as mãos limpas e o coração purificado. Gerhard Ebeling (1912-2001) comenta assim este Salmo arcaico: «São três os pressupostos fundamentais do texto. O primeiro é que Deus criou o mundo, e é o seu Senhor. O segundo é que devemos comparecer junto de Deus e ser interrogados sobre o que fizemos. O terceiro é que Deus vem para o que é seu, e deseja ter livre acesso. Estas são três formas elementares da experiência de Deus e da relação com Deus: nós vivemos por obra de Deus, diante de Deus, e podemos viver com Deus». E o poeta francês Paul Claudel (1868-1955), recolhendo o último tema, o da vida com Deus, exclamava: «Aqui, Deus! Aqui, o nosso Deus, o Senhor dos Exércitos, que está empenhado, através dos séculos, em transferir-nos para a sua eternidade».

Se o Senhor não construir a casa,

Em vão trabalham os que a constroem.

Se o Senhor não guardar a cidade,

Em vão vigiam as sentinelas.

Não se pode esconder uma cidade situada no cimo de um monte,

Ou sobre a linha do horizonte,

Porque alumia, alumia, alumia,

Irradia, irradia, irradia,

De noite e de dia.

Cidade de alto-a-baixo erguida,

Como um manto de orvalho caída,

Como uma ermida,

Uma jazida de luz

E de Jesus.

Tudo ao contrário do que vem nos manuais ou nos jornais,

Lançai os fundamentos no céu,

Construí desde o cume,

Sobre o gume da Palavra

Que de Deus vem

Nascer em Belém

E aqui também.

Vem, Senhor Jesus!

Vem, vem, que Te esperamos!

 D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo IV do Tempo do Advento – Ano A – 18.12.2022 ( Is7 10-14)
  2. Leitura II – Domingo IV do Tempo do Advento – Ano A – 18.12.2022 (Rom 1, 1-7)
  3. Domingo IV do Tempo do Advento – Ano A – 18.12.20200 – Lecionário
  4. Domingo IV do Tempo do Advento – Ano A – 18.12.20200 – Oração Universal
  5. ANO A – O ano do evangelista Mateus

Domingo III – Tempo do Advento – Ano A – 11.12.2022

Domingo Gaudete (Domingo da Alegria)

2Ora João, que estava no cárcere, tendo ouvido falar das obras de Cristo, enviou-lhe os seus discípulos 3com esta pergunta: «És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?» Mt 11, 2-3

Viver a Palavra

O itinerário proposto pela Liturgia da Palavra em Tempo de Advento faz ecoar uma mensagem de esperança e alegria pela certeza de um Deus próximo e presente na vida da humanidade pela incarnação de Jesus Cristo, o Filho muito amado do Pai, que assume a nossa natureza humana e revela a proximidade do Reino de Deus. Ao longo deste tempo litúrgico, desfilam diante de nós um conjunto de figuras como Isaías, João Baptista, a Virgem Maria, entre outras, que nos testemunham esta certeza alegre e jubilosa que o Senhor não abandona o Seu povo e que envia o Messias esperado para operar a salvação.

O terceiro Domingo de Advento, Domingo Gaudete (Domingo da Alegria), reforça esta nota da alegria e, por isso, a antífona de entrada da missa faz-nos cantar com as palavras de Paulo: “Gaudete in Domino semper” (Alegrai-vos sempre no Senhor, cf. Flp 4,4.5).

A alegria que ressoa neste Domingo nas nossas assembleias não é um mero sentimento superficial de contentamento ou uma alienação da realidade, convidando a um otimismo desencarnado ou a uma ingenuidade balofa de que tudo está bem. É a certeza que não obstante as dificuldades e os desafios da nossa vida pessoal e do contexto político e social em que vivemos, o nosso Deus está próximo, caminha connosco e nos convida a levantar a cabeça para que não percamos a esperança diante dos dramas da história.

Para nós cristãos, discípulos missionários de Jesus Cristo, esta alegria não é um conceito abstrato, mas tem um rosto, o rosto misericordioso de Jesus Cristo. Por isso, o Papa Francisco afirma no início da sua exortação apostólica Evangelii Gaudium: «a Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (EG 1).

Jesus é fonte perene de esperança e alegria para aqueles que depositam nele a sua confiança e o anúncio que Ele virá para salvar o Seu povo é a mais efusiva manifestação de júbilo e louvor como nos testemunha Isaías na primeira leitura: «Alegrem-se o deserto e o descampado, rejubile e floresça a terra árida, cubra-se de flores como o narciso, exulte com brados de alegria. (…) ‘Tende coragem, não temais: Aí está o vosso Deus, vem para fazer justiça e dar a recompensa. Ele próprio vem salvar-vos’».

Os profetas anunciaram e a profecia realiza-se. João Baptista, estando preso ouve falar das obras de Cristo e envia mensageiros para lhe perguntarem: «És Tu Aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?». E como é belo o modo como Jesus responde. Não se perde em explicações abstratas, mas apresenta um elenco de factos: «os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova é anunciada aos pobres». Jesus é Aquele que podemos ver e ouvir, isto é, Aquele que se experimenta pelo encontro único e irrepetível que produz uma verdadeira transformação na vida daqueles que se encontram com Ele. A força transformadora do Seu amor é verdadeiro escândalo porque entre nós está o próprio Deus revelado na nossa natureza humana e adverte-nos: «bem-aventurado aquele que não encontrar em Mim motivo de escândalo». Seremos bem-aventurados, isto é, felizes, se encontrarmos em Jesus a fonte da nossa alegria e se no meio das nossas dificuldades e desafios soubermos viver a paciente esperança que anuncia S. Paulo: «sede pacientes, vós também, e fortalecei os vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima». in Voz Portucalense        

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O terceiro Domingo de Advento é designado como Domingo Gaudete (Domingo da Alegria). Esta designação é retirada da primeira palavra da antífona de entrada da missa: “Gaudete in Domino semper” (Alegrai-vos sempre no Senhor). A celebração eucarística deste Domingo é a oportunidade de uma reflexão sobre a alegria cristã e que está tão ligada ao magistério do Papa Francisco (Evangelii Gaudium, Amoris Laetitia, Gaudete et Exsultate, Christus Vivit), onde podemos encontrar belíssimos textos e contributos sobre a alegria do Evangelho, a alegria do amor que se vive na família ou a alegria de percorrer a estrada da santidade. Inspirados nestes textos, poderá ser também oportuno nestes dias que antecedem o Natal dinamizar uma celebração ou momento de reflexão inspirado nesta temática da alegria.

                                                                                             

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Continuamos o tempo do Advento. Estamos num novo ano litúrgico – neste 2022/2023 o Ano A – em que seremos acompanhados pelo evangelista S. Mateus. Deste modo, como preparação para este ano litúrgico poderia ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso (acompanhe-nos em: Abordagens VIII e seguintes – https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/). Será uma catequese bíblica que ajudará a entrar na estrutura e mensagem deste Evangelho, proporcionando a todos os fiéis um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

                                                                                             

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LEITURA I – Is 35,1-6a.10

«Alegrem-se o deserto e o descampado, rejubile e floresça a terra árida, cubra-se de flores como o narciso, exulte com brados de alegria»

 

Ambiente

Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías são habitualmente chamados “pequeno apocalipse de Isaías”, para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27; descrevem os últimos combates travados por Jahwéh contra as nações, particularmente contra Edom e a vitória definitiva do Povo de Deus. Estes dois capítulos parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías, cujo autor é esse Deutero-Isaías que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio. Por que razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33 e, especialmente, pelo capítulo 33.

Depois de apresentar o julgamento de Deus (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a transformação extraordinária do deserto sírio, pelo qual vão passar os israelitas libertados, que regressam do Exílio. A intenção do profeta é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou. Este tema será desenvolvido em profundidade nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías. in Dehonianos.

Ter em conta os seguintes elementos:

Para os otimistas, o nosso tempo é um tempo de grandes realizações, de grandes descobertas, em que se abre todo um mundo de possibilidades ao homem; para os pessimistas, o nosso tempo é um tempo de sobreaquecimento do planeta, de subida do nível do mar, de destruição da camada do ozono, de eliminação das florestas, de risco de holocausto nuclear… Para uns e para outros, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos negros do desespero?

Os crentes não podem, contudo, esquecer que “Deus aí está”: a sua intervenção faz com que o deserto se revista de vida e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança. É com esta certeza da presença de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história.

O Advento é o tempo em que se anuncia e espera a intervenção salvadora de Deus em favor do seu Povo. No entanto, Ele só virá se eu estiver disposto a acolhê-l’O; Ele só intervirá se eu estiver disposto a receber de braços abertos a proposta de libertação que Ele me vem fazer…. Estou preparado para acolher o Senhor? Ele tem lugar na minha vida? A sua proposta libertadora encontrará eco no meu coração?

O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um novo amanhã. Ele vai, então, gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. É este testemunho de esperança que procuramos dar? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 145 (146)

Refrão: Vinde, Senhor e salvai-nos.

LEITURA II – Tg 5,7-10

«Fortalecei os vossos corações, porque a vinda do Senhor está próxima».

 

Ambiente

A carta de onde foi extraída a nossa segunda leitura de hoje é um escrito de um tal Tiago (cf. Tg 1,1), que a tradição liga a esse Tiago “irmão” do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam, acidentalmente, como filho de certa Maria (cf. Mt 13,55;27,56). Teria morrido decapitado em Jerusalém no ano 62… No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 e par. – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 e par. – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até, com frequência, à “diatribe” – um género muito usado pela filosofia popular helénica. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para dela extrair lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram na boca e no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, no geral, a carta parece dirigir-se a todos os crentes, exortando-os a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Denuncia, sobretudo, certas interpretações consideradas abusivas da doutrina paulina da salvação pela fé, sublinhando a importância das obras; e ataca com extrema severidade os ricos (cf. Tg 1,9-11;2,5-7;4,13-17;5,1-6).

O nosso texto pertence à terceira parte da carta (Tg 3,14-5,20). Aí, o autor apresenta, num conjunto de desenvolvimentos e de sentenças aparentemente sem ordem nem lógica, indicações concretas destinadas a favorecer uma vida cristã mais autêntica. in Dehonianos.

A reflexão pode partir dos seguintes elementos:

Muitos irmãos nossos fazem, todos os dias, a experiência intolerável de viver na injustiça, no medo, no sofrimento, à margem da vida, privados de dignidade… Tiago diz-lhes: “apesar do sem sentido da vida, apesar do sofrimento, Deus não vos abandonou nem esqueceu, mas vai libertar-vos; aproxima-se a dia da intervenção salvadora de Deus… Esperai-O, não com o coração cheio de revolta, que vos destrói e que magoa todos aqueles que, sem ter culpa, vivem e caminham a vosso lado, mas com esperança e confiança”.

Atenção: isto não significa instalar-se numa resignação que aliena e numa passividade que é renúncia à própria dignidade humana… Isto significa, sobretudo, não deixar que sentimentos agressivos e destrutivos tomem posse de nós, pois a libertação de Deus não pode chegar a qualquer coração dominado pelo ódio, pelo rancor, pelo desejo de vingança.

Nós, Igreja de Jesus, testemunhas do projeto libertador de Deus, temos de anunciar o projeto libertador de Deus aos escravos e oprimidos e não deixar que a luz da esperança se apague… Anunciamos a salvação aos pobres e oprimidos, com as nossas palavras e com os nossos gestos?

A salvação de Deus chega ao mundo através do nosso testemunho… Lutamos, objetivamente, para tornar realidade o projeto libertador de Deus e para silenciar a opressão, a injustiça, tudo o que rouba a vida e a dignidade a qualquer homem ou a qualquer mulher? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Mt 11,2-11

«És Tu Aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?»

«Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova é anunciada aos pobres».

«Vou enviar à tua frente o meu mensageiro, para te preparar o caminho».

 

Ambiente

Na secção precedente do Evangelho (cf. Mt 4,17-11,1), Mateus apresentou de forma sistemática o anúncio do “Reino”, manifestado nas palavras e nos gestos de Jesus, e difundido pelos seus discípulos… Agora, começa outra secção, em que todo o interesse do evangelista é mostrar as atitudes que as distintas pessoas ou grupos vão assumir diante de Jesus (cf. Mt 11,2-12,50). A narração é retomada com a pergunta dos enviados de João Baptista, que está na prisão, por ordem de Herodes Antipas, a quem o Baptista havia criticado por viver maritalmente com a cunhada (cf. Mt 14,1-5): Jesus é mesmo “o que está para vir”?

A pergunta não é ociosa… João esperava um Messias que viesse lançar fogo à terra, castigar os maus e os pecadores, dar início ao “juízo de Deus” (cf. Mt 3,11-12); mas, ao contrário, Jesus aproximou-Se dos pecadores, dos marginais, dos impuros, estendeu-lhes a mão, mostrou-lhes o amor de Deus, ofereceu-lhes a salvação (cf. Mt 8-9). João e os seus discípulos estão, pois, desconcertados: Jesus será o Messias esperado, ou é preciso esperar um outro que venha atuar de uma forma mais decidida, mais lógica e mais justiceira?

Mateus tem um interesse especial pela figura de João Baptista. Para ele, João é o precursor que veio preparar os homens para acolher Jesus. É provável que, ao fazer esta apresentação, o evangelista se queira dirigir aos discípulos de João que ainda continuavam ativos na época em que o Evangelho foi escrito… Mateus pretende clarificar as coisas e “piscar o olho” aos discípulos de João, no sentido de que eles adiram à proposta cristã e entrem na Igreja de Jesus.in Dehonianos.

A reflexão deste texto pode partir das seguintes questões:

O texto evangélico identifica Jesus com a presença salvadora e libertadora de Deus no meio dos homens. Neste tempo de espera, somos convidados a aguardar a sua chegada, com a certeza de que Deus não nos abandonou, mas continua a vir ao nosso encontro e a oferecer-nos a salvação.

Os “sinais” que Jesus realizou enquanto esteve entre nós têm de continuar a acontecer na história; agora, são os discípulos de Jesus que têm de continuar a sua missão e de perpetuar no mundo, em nome de Jesus, a ação libertadora de Deus.

Os que vivem amarrados ao desespero de uma doença incurável encontram em nós um sinal vivo do Cristo libertador que lhes traz a salvação?

Os “surdos”, fechados num mundo sem comunicação e sem diálogo, encontram em nós a Palavra viva de Deus que os desperta para a comunhão e para o amor?

Os “cegos”, encerrados nas trevas do egoísmo ou da violência, encontram em nós o desafio que Deus lhes apresenta de abrir os olhos à luz?

Os “coxos”, impedidos de andar, encontram em nós a proximidade dos caminhos de Deus?
Os presos, privados da liberdade, escondidos atrás das grades em que a sociedade os encerra, encontram em nós a Boa Nova da liberdade?

Os “pobres”, marginalizados, sem voz nem dignidade, sentem em nós o amor de Deus?

Mais uma vez, somos interpelados e questionados pela figura vertical e coerente de João… Ele não é um pregador da moda, cujas ideias variam conforme as flutuações da opinião pública ou os interesses dos poderosos; nem é um charlatão bem vestido, que prega para ganhar dinheiro, para defender os seus interesses, ou para ter uma vida cómoda e sem grandes exigências… Mas é um profeta, que recebeu de Deus uma missão e que procura cumpri-la, com fidelidade e sem medo.

A minha vida e o meu testemunho profético cumprem-se com a mesma verticalidade e honestidade, ou estou disposto e vender-me a interesses menos próprios, se isso me trouxer benefícios?

A “dúvida” de João acerca da messianidade de Jesus não é chocante, mas é sinal de uma profunda honestidade… Devemos ter mais medo daqueles que têm certezas inamovíveis, que estão absolutamente certos das suas verdades e dos seus dogmas, do que daqueles que procuram, honestamente, as respostas às questões que a vida todos os dias coloca.

Sou um fundamentalista, que nunca se engana e raramente tem dúvidas, ou alguém que sabe que não tem o monopólio da verdade, que ouve os irmãos, e que procura, com eles, descobrir o caminho verdadeiro? in Dehonianos

 

Para os leitores:

Na preparação da primeira leitura deve ter-se cuidado com a pronunciação dos nomes próprios das cidades presentes no texto: «Líbano», «Carmelo» e «Sáron». Este texto possui um conjunto de imagens que evocam a alegria e é um convite ao júbilo e ao regozijo. Por isso, a proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom alegre e exortativo de quem convida ao louvor e à festa.

A segunda leitura é um texto fortemente exortativo marcado por um conjunto de formas verbais no modo imperativo. A proclamação deste texto deve ter em atenção as formas verbais no imperativo e aproveitar a força expressiva que elas possuem.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

ENGENHARIA DIVINA

«Tendo João ouvido na prisão as obras de Cristo, por meio dos seus discípulos, mandou dizer-lhe: “És TU Aquele-que-vem, ou esperamos outro?” E respondendo, Jesus disse-lhes: “INDO (poreuthéntes), ANUNCIAI (apaggeílate) a João o que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem e os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados”» (Mateus 11,2-5).

João Batista não tem dúvidas de que Jesus é o Cristo, o Messias esperado. Se não tem dúvidas, então por que pergunta? Pergunta ou manda perguntar para dar a Jesus a oportunidade de se autoapresentar. É que João Batista representa o velho: «Todos os profetas e a Lei profetizaram até João» (Mateus 11,13). E Lucas acrescenta: «Daí para a frente é evangelizar o Reino de Deus» (Lucas 16,16). João Batista chegou ao limiar do Novo Testamento, e indicou em Jesus o Messias. Indica-o, mas não o sabe dizer, como o velho não sabe dizer o novo. O velho não tem vocabulário nem conceitos, não reúne competência, para poder dizer o novo, que é Jesus, o Cristo. E, porque não o sabe dizer, opta por dar a Jesus a oportunidade de ser Ele próprio a fazer a sua apresentação. A pergunta de João é, portanto, um sinal de sabedoria.

E a resposta de Jesus, acima transcrita, é clara, mas mais performativa do que informativa. De acordo com este belo e transformante dizer de Jesus, é o caudal da evangelização que chega até João. Que o mesmo é dizer: João é evangelizado! Ele é o primeiro «pobre», perseguido pelos poderosos, e, por esse motivo, metido na prisão de Maqueronte por Herodes Antipas, filho de Herodes o Grande, e tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), responsável pela prisão e decapitação de João Batista (Lucas 3,20; 9,9). João denunciou abertamente os erros de Herodes Antipas, e este meteu-o na prisão. João não era um «cão mudo» (cf. Isaías 56,10), embriagado à beira da estrada. No escuro das paredes da prisão de Maqueronte, João recebe a «boa notícia» que abre os seus olhos. Permanecendo embora no escuro cárcere, João Batista recebe a vista de Jesus através da boa notícia que os seus discípulos lhe transmitem: ele é o primeiro «cego» que recebe a vista, o primeiro «preso» que é libertado, o primeiro «pobre» que é evangelizado!

Mas a resposta de Jesus vai ainda mais longe, e envolve os mensageiros enviados por João em verdadeiros mensageiros do Evangelho, que requer de todos nós uma nova, exigente e envolvente metodologia. Ao empregar o verbo «anunciar» ou «narrar» (apaggélô, hebraico higgîd) na missão que lhes confia: «INDO (poreuthéntes), ANUNCIAI (apaggeílate) a João o que ouvis e vedes: os cegos veem e os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem e os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados»), tudo no presente, Jesus está a dizer àqueles mensageiros que o Evangelho não se enuncia no passado, não é acerca de algo que já aconteceu, de alguém que já por cá passou. Com este procedimento, Jesus está a dizer-nos que não podemos anunciar o Evangelho com os verbos no passado, sem nos comprometermos a fazê-lo acontecer hoje. O Evangelho conta-se, anuncia-se e enuncia-se no presente. Envolve-nos e implica-nos em fazer acontecer o que vamos anunciar e narrar. Só assim é verdadeiro o testemunho do mensageiro, que se envolve em fazer acontecer o Evangelho; só assim o destinatário pode ser igualmente envolvido na mensagem que o atinge.

Em contraponto com o Messias anunciado por João Batista, que vem para julgar já e em força em Jerusalém, empunhando o machado (ver Mateus 3,10) e a pá de joeirar (Mateus 3,12), Jesus instala-se na Galileia, como Luz das Nações (Mateus 4,12-16, cumprindo Isaías 8,23-9,1). É lá que recebe os discípulos de João e de lá os envia de volta para João, como testemunhas de um mundo novo, frágil e feliz, inclusivo e não exclusivo (veja-se a predileção de Jesus pelos pobres, doentes e pagãos), que está a nascer, e em que Jesus se diz a si mesmo recorrendo a Isaías 29,18-19; 35,5-6 e 61,1.

«Orvalho de luz» (Isaías 26,19) ou de lume, palha incendiada, vida nova a rebentar dos quatro cantos do nosso mundo inerte, em que os vivos quase já não chegam para sepultar os mortos (Sabedoria 18,12). Luzes e vozes de alegria que abrem olhos engessados, rompem ouvidos rombos, entupidos por mato e por silvas, levantam paralíticos que saltam como filhotes de gazela (Isaías 35,6), desatam línguas de mudos e nós cegos que asfixiam corações! Tantos caminhos que se abrem para os deserdados que não têm caminhos, nem luz, nem uma mão ou voz amiga, nem música de dança para ouvir. Mais do que caminhos, são passadeiras floridas, jardins e avenidas (Sabedoria 19,3), tanto sonho, tanta água, tanta luz a irromper pelo deserto, oh Isaías 35,1-6!

A avenida florida é no deserto, engenharia divina, que transporta os seus filhos queridos da escuridão da Babilónia para a luz em flor de Jerusalém. «Ele mesmo, Deus, andará por essa estrada» (Isaías 35,8), esse caminho, essa avenida. Estrada santa, passadeira de luz e de sentido, engenharia divina!

  1. Arrisca um passo nessa estrada divina, nessa estrada de luz e de graça, meu irmão do Advento. Encontrarás com certeza alguém que te levará até Belém. É importante que essa estrada de Amor, Perdão, Bondade, Justiça e Paz chegue à tua porta, à tua casa, ao teu coração. Do coração de Deus ao teu coração. Do teu coração ao coração do teu irmão.

Com paciência, persistência, humildade e amor. Sê como o camponês, que acaricia a semente, lavra a terra, visita o campo para ver crescer devagarinho a plantação. Vela também sobre o teu coração, para que não se torne duro e pesado. Vigia com amor, como quem está sempre à espera de alguém que ama, à espera do Senhor que vem. E pode vir na pessoa de um irmão. Não digais mal uns dos outros. Grande lição de Tiago 5,7-10.

Vê-se bem que o melhor e mais belo que anda por aí não é obra nossa. É engenharia de Deus a inundar de Luz este Domingo da Alegria! A nós compete-nos deixar entrar em nós esta torrente de Evangelho, e começar então a ver, sentir e dizer bem, belo e bom. Ajustar a esquadria do nosso coração por essa divina engenharia.

É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

São estes os caminhos do Advento,

Cheiinhos do vento do Espírito,

Que derruba as folhas secas das árvores,

E nos faz ver

Que somos todos como a erva,

E a nossa glória não é mais do que a flor da erva.

Mas seca a erva e murcha a flor,

E nós passamos.

Sim, estamos de passagem.

Mas sentimos no rosto,

Ou talvez no coração,

A tua aragem mansa,

Que nos enche de paz e confiança.

O Advento é uma escola de esperança

E de oração,

De coragem e de alento.

O Advento é uma viagem

Até ao nascimento

Do menino de Belém,

Lá,

E dentro de nós também.

 D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Imaculada Conceição – Ano A – 08.12.2022 (Gen3,9-15.20)
  2. Leitura II – Imaculada Conceição – Ano A – 08.12.2022 (Ef 1,3-6,11-12)
  3. Imaculada Conceição – Ano A – 08.12.20232 – Lecionário
  4. Imaculada Conceição – Ano A – 08.12.2022 – Oração Universal
  5. Leitura I – Domingo III do Tempo do Advento – Ano A – 11.12.2022 (Is 35, 1-6a.10)
  6. Leitura II – Domingo III do Tempo do Advento – Ano A – 11.12.2022 (Tg 5, 7-10)
  7. Domingo III do Tempo do Advento – Ano A – 11.12.2022 – Lecionário
  8. Domingo III do Tempo do Advento – Ano A – 11.12.2022 – Oração Universal
  9. ANO A – O ano do evangelista Mateus

Domingo II – Tempo do Advento – Ano A – 04.12.2022

1Naqueles dias, apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia. 2Dizia: «Convertei-vos, porque está próximo o Reino do Céu.» 3Foi deste que falou o profeta Isaías, quando disse:Uma voz clama no deserto:Preparai o caminho do Senhor,endireitai as suas veredas. Mt 3, 1-3

Viver a Palavra

A Liturgia da Palavra deste Domingo é marcada por um conjunto de formas verbais no modo imperativo: «acolhei-vos», «preparai», «endireitai», «arrependei-vos», «praticai», entre outras. O tom exortativo presente nas leituras que a liturgia nos oferece neste segundo Domingo de Advento impele-nos a rasgar horizontes de esperança na nossa vida pessoal e comunitária através de um dinamismo de conversão que nos coloca permanentemente a caminho e nos desafia a abrir o nosso coração à perene novidade que brota do Evangelho.

Entrar na aventura de ser cristão, abraçando com alegria e generosidade o sonho de amor que Deus tem para cada um de nós, é entrar em estado permanente de tensão entre aquilo que eu somos e aquilo que O Senhor nos chama a ser, procurando em cada dia afinar o nosso coração com o coração de Jesus, para que a nossa vida seja cada vez mais aquilo que Deus sonha para nós.

O Evangelho deste Domingo abre com a desconcertante indicação de que João Baptista apareceu a pregar no deserto da Judeia. Não posso deixar de manifestar a minha estranheza, pois, se alguém tem uma boa notícia e quer ser escutado deve procurar os grandes areópagos, as praças movimentadas e as ruas mais frequentadas. Por seu lado, João Baptista retira-se para o deserto da Judeia, aparecendo como sinal profético, não apenas por palavras, mas também por gestos e acções concretas. A Boa Notícia que João Baptista proclama implica uma mudança permanente de perspectiva. Escutar a voz que nos conduz à felicidade plena e verdadeira implica, muitas vezes, atravessar o deserto e implicará sempre a capacidade de nos retirarmos do frenesim do nosso quotidiano, do tumulto ruidoso da nossa marcha agitada, para escutarmos a Palavra que transforma o coração e a vida.

«Arrependei-vos, porque está perto o reino dos Céus». A proximidade do Reino que Deus quer estabelecer em nós e a partir de nós no mundo, para que um dia sejamos participantes da sua plenitude, faz-nos entrar numa fecunda revisão de vida. O exame de consciência que denuncia quanto há ainda a mudar no nosso coração e na nossa vida é a porta para a verdadeira felicidade. Identificando quanto em nós é ainda estraga pedregosa, abrimos o nosso coração ao aperfeiçoamento permanente e propomo-nos a uma transformação que oferece à nossa vida um novo horizonte e uma nova esperança.

João Baptista torna-se ainda mais incisivo diante dos fariseus e saduceus que se aproximam do baptismo: «praticai acções que se conformem ao arrependimento que manifestais». O arrependimento e a conversão não podem ser apenas uma inclinação do coração e um manifesto de boa vontade: têm necessariamente de se traduzir numa vida conforme o Evangelho. É o esforço permanente para que a aquilo que eu sou coincida cada vez mais e melhor com aquilo que o Senhor me chama ser.

Contudo, importa ainda sublinhar que o esforço que colocamos na nossa conversão é acompanhado pela graça de Deus que nos sustenta e fortalece neste caminho de renovação. O Espírito do Senhor que Isaías profetiza é «espírito de sabedoria e de inteligência, espírito de conselho e de fortaleza, espírito de conhecimento e de temor de Deus». São os dons do Espírito que, derramados sobre nós, reclamam a docilidade de coração para que a conversão seja eficaz e fecunda. in Voz Portucalense        

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Continuamos o tempo do Advento. Estamos num novo ano litúrgico – neste 2022/2023 o Ano A – em que seremos acompanhados pelo evangelista S. Mateus. Deste modo, como preparação para este ano litúrgico poderia ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso (acompanhe-nos em: Abordagens VIII e seguintes – https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/). Será uma catequese bíblica que ajudará a entrar na estrutura e mensagem deste Evangelho, proporcionando a todos os fiéis um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

                                                                                             

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LEITURA I – Is 11,1-10

«A justiça será a faixa dos seus rins, e a lealdade a cintura dos seus flancos.

 

Ambiente

A primeira leitura apresenta-nos um poema que alimenta o sonho do regresso a essa época ideal do reinado de David e que dá fôlego à corrente messiânica.

Não é claro o enquadramento histórico em que este oráculo aparece. Para alguns autores, contudo, este poema (e outros semelhantes) surge na fase final da atividade profética de Isaías…

Quando o rei Ezequias atingiu a maioridade e começou a dirigir os destinos de Judá (por volta de 714 a.C.), preocupou-se em consolidar uma frente anti-assíria (a potência que, nessa época, ameaçava os países da zona), com o Egipto, a Fenícia e a Babilónia. Isaías condenou essas iniciativas… Elas significavam um colocar a confiança e a esperança no poder de exércitos estrangeiros, negligenciando o poder de Jahwéh: eram, portanto, um grave sinal de infidelidade ao Deus de Judá. Essas iniciativas, na opinião do profeta, não poderiam conduzir senão à ruína da nação… De facto, as previsões funestas de Isaías realizaram-se quando Senaquerib invadiu Judá, cercou Jerusalém e obrigou Ezequias a submeter-se ao poderio assírio (701 a.C.).

Por essa altura, desiludido com a política dos reis de Judá, o profeta teria começado a sonhar com um tempo novo, sem armas e sem guerras, de justiça e de paz sem fim. Tal “reino” só poderia surgir da iniciativa de Jahwéh (os reis humanos de há muito que se haviam revelado incapazes de conduzir o Povo em direção a um futuro de paz); e o instrumento de Jahwéh na implementação desse “reino” seria, na opinião do profeta, um descendente de David. Este texto será, talvez, dessa época em que a profecia e o sonho de um mundo melhor se combinam. in Dehonianos.

Para a reflexão, considerar as seguintes questões:

Para nós, cristãos, Jesus Cristo é o “Messias” que veio tornar realidade o sonho do profeta. Ele iniciou esse “reino” novo de justiça, de harmonia, de paz sem fim… Cheio do Espírito de Deus, Ele passou pelo mundo convidando os homens a tornarem-se “filhos de Deus” e a viverem no amor, na partilha, no dom da vida… Nós, seguidores de Jesus, temos dado um contributo efetivo para que o “Reino” se torne realidade no mundo?

A Igreja deve ser o sinal vivo desse “reino” novo de justiça e de paz… É isso que acontece? Ela tem anunciado – com palavras e com gestos – o projeto de Jesus? As nossas comunidades cristãs e religiosas dão testemunho de harmonia, de entendimento, de amor sem limites?

Que a realidade do “Reino” se concretize ou não, depende também daquilo que faço ou não faço. Em termos pessoais: o que é que, nas minhas atitudes, nos meus comportamentos, é contratestemunho e impede o nascimento do “Reino” da felicidade e da paz? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 71 (72)

Refrão:Nos dias do Senhor, nascerá a justiça e a paz para sempre.

 

LEITURA II – Rom 15,4-9

«Acolhei-vos, portanto, uns aos outros, como Cristo vos acolheu, para glória de Deus».

 

Ambiente

A Carta aos Romanos – já o dissemos no passado domingo – é uma carta de reconciliação, endereçada aos romanos, mas dirigida a toda a Igreja fundada por Jesus. Pretende – numa altura em que fundos culturais diversos e sensibilidades diferentes dividiam os cristãos vindos do judaísmo e os cristãos vindos do paganismo – afastar o perigo da divisão da Igreja e levar todos os crentes (judeo-cristãos e pagano-cristãos) a redescobrir a unidade da fé e a igualdade fundamental de todos diante de Deus. Desde que optaram por Cristo e receberam o batismo, todos receberam o dom de Deus, tiveram acesso à salvação e tornaram-se irmãos, chamados a viver no amor.

O texto que nos é proposto pertence à segunda parte da carta. Nessa parte (que vai de Rm 12,1 a 15,13), Paulo exorta os cristãos a viver no amor; em concreto, dá aos cristãos algumas indicações de carácter prático acerca do comportamento que devem assumir para com os irmãos in Dehonianos.

Refletir as seguintes questões:

A comunidade cristã, como rosto visível de Cristo no mundo, tem de ser o lugar do amor, da partilha fraterna, da harmonia, do acolhimento. No entanto, com bastante frequência encontramos comunidades onde os irmãos estão divididos: criticam os outros de forma avulsa, tomam atitudes agressivas que afastam os mais débeis, discriminam aqueles que não entram na sua “panelinha”, estão aferrados ao poder e fazem tudo para dominar os outros e para afirmar a sua superioridade… Isto acontece na minha comunidade? Eu tenho algumas responsabilidades nessa situação? O que posso fazer para mudar as coisas?

Convém não esquecer que a conversão à harmonia, à partilha com os mais pobres, ao amor fraterno, ao dom da vida é algo exigente, que não pode ser feito contando apenas com a boa vontade do homem; mas é algo que só pode ser feito com a força e com a ajuda de Deus… Lembro-me de pedir a Deus a sua ajuda para vencer o meu egoísmo e a minha autossuficiência e para amar verdadeiramente os meus irmãos? Estou disposto a ir ao seu encontro e a deixar que Ele converta o meu coração e a minha vida? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Mt 3,1-12

«Arrependei-vos, porque está perto o reino dos Céus».

«Praticai acções que se conformem ao arrependimento que manifestais».

«Eu baptizo-vos com água, para vos levar ao arrependimento»

 

Ambiente

Depois do Evangelho da Infância (cf. Mt 1-2), Mateus apresenta a figura que prepara os homens para acolher Jesus: João Baptista.

João foi o guia carismático de um movimento de cariz popular, que anunciava a proximidade do juízo de Deus. Vivia no deserto de Judá, nas margens do rio Jordão. A sua mensagem estava centrada na urgência da conversão, pois o “juízo de Deus” estava iminente; incluía um rito de purificação pela água, um rito muito frequente, aliás, entre alguns grupos judeus da época. É possível que João estivesse, de alguma forma, relacionado com essa comunidade essénia que estava instalada em Qûmran: o tema do juízo de Deus e os rituais de purificação pela água faziam parte do dia a dia da comunidade essénia.

Segundo a mais antiga tradição cristã, Jesus esteve muito relacionado com o movimento de João nos inícios da sua vida pública e alguns discípulos de João tornaram-se, a partir de certa altura, discípulos de Jesus (cf. Jo 1,35-42).

Os primeiros cristãos identificaram João com o mensageiro anunciado em Is 40,3 e com Elias (2 Re 1,8) que, segundo a tradição judaica, anunciaria a chegada do Messias (Mt 11,14; 17,11; Mal 3,23-24 ou, noutras versões, 4,5-6). Nesta interpretação, João seria o precursor que vem preparar o caminho e Jesus o Messias, enviado por Deus para anunciar o reinado de Jahwéh. in Dehonianos.

A reflexão pode partir dos seguintes dados:

A questão dominante que o Evangelho de hoje nos apresenta é a da conversão. Não é possível acolher “aquele que vem” se o nosso coração estiver cheio de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de preocupação com os bens materiais… É preciso, portanto, uma mudança da nossa mentalidade, dos nossos valores, dos nossos comportamentos, das nossas atitudes, das nossas palavras; é preciso um despojamento de tudo o que rouba espaço ao “Senhor que vem”. Estou disposto a esta mudança, para que no meu coração haja lugar para Jesus? O que é que, prioritariamente, deve mudar na minha vida?

A figura de João Baptista obriga-nos a questionar as nossas prioridades e valores fundamentais. Ele não se apresenta de “smoking”, pois a sua prioridade não é brilhar em alguma festa do jet-set; nem usa gravata e camisa de seda, pois a sua prioridade não é impressionar os chefes ou mostrar que é um homem de sucesso em termos de ganhos anuais; nem petisca pratos delicados com molhos esquisitos e nomes franceses, pois a sua prioridade não é a satisfação de apetites físicos; nem promete bem-estar e riqueza aos seus interlocutores, pois a sua prioridade não é receber aplausos das massas; nem busca o apoio da hierarquia civil ou religiosa, pois a sua prioridade não é o triunfo, as honras, o poder… João Baptista é alguém para quem a prioridade é o anúncio do “Reino dos céus”. Ora, o “Reino” é despojamento, simplicidade, amor total, partilha, dom da vida… São esses valores que ele procura anunciar, com palavras e com atitudes. E quanto a mim, quais são os valores que me fazem “correr”? Quais são as minhas prioridades? Os meus valores são os valores do “Reino” ou são esses valores efémeros e fúteis a que a civilização ocidental dá tanta importância, mas que não trazem nada de duradouro e de verdadeiro à vida dos homens?

O texto evangélico deixa claro que não chega ser “filho de Abraão” para ter acesso à salvação que Jesus veio oferecer, mas é preciso viver uma vida de fidelidade a Deus. Quer dizer: não chega ter o nome inscrito no livro de registos de batismo da paróquia, nem ter casado na Igreja, nem ter posto os filhos na catequese e aparecer lá para tirar fotografias na festa da primeira comunhão (o estatuto do “cristão não praticante” faz tanto sentido como um círculo quadrado); mas é preciso uma conversão séria, empenhada, nunca acabada ao “Reino” e aos seus valores e uma vida coerente com a fé que escolhemos quando fomos batizados.

João deixa claro que receber o batismo de Jesus é receber o batismo do Espírito… Equivale a aceitar ser “filho de Deus”, a viver em comunhão com Deus, no amor e na partilha com os irmãos que caminham ao nosso lado. É esse o caminho que eu procuro, dia a dia, percorrer? in Dehonianos

 

 

 

Para os leitores:

Na primeira leitura, é necessário um especial cuidado na proclamação da lista de características do Espírito do Senhor, pois trata-se de uma enumeração que deve ser lida aos pares. Além disso, nesta leitura é importante ter uma particular atenção ao tom bucólico e poético da segunda parte da leitura onde se proclama a harmonia da criação.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na proclamação do texto, contudo, importa estar atento às pausas e respirações para uma eficaz transmissão da mensagem.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

UM MUNDO NOVO GOVERNADO POR UM MENINO

O texto do Evangelho deste Domingo II do Advento (Mateus 3,1-12) apresenta algumas notas salientes:  1) É notória a sintonia de João com Jesus, dado que ambos abrem o seu ministério, dizendo as mesmas palavras: «Convertei-vos, porque se fez próximo o Reino dos Céus» (Mateus 3,2; cf. Mateus 4,17);

2) ambos colocam o seu ministério com referência a Isaías (Mateus 3,3; cf. Isaías 40,3; 4,14-15; 8,23-9,1);

3) ambos abrem no deserto a sua missão, evocando o Êxodo do Egito, o novo Êxodo da Babilónia (Ezequiel 20,33-38) e o Êxodo do noivado de Deus com Israel (Oseias 2,16-23), mas também a febre messiânica que situava no deserto o princípio da renovação escatológica;

4) a indumentária de João Batista (Mateus 3,4) evoca a de Elias (2 Reis 1,8), com o qual é, de resto, identificado por Jesus (Mateus 11,14; 17,12-13).

Se é evocada a continuidade dos ministérios de João e de Jesus, não deixa também de ser bem acentuado o confronto entre os dois: 1) vê-se bem que João Batista anuncia um Messias juiz, que traz na mão o machado e a pá de joeirar (3,10-12), enquanto que Jesus assumirá a figura de Servo do Senhor manso e humilde (12,17-21); 2) o apelo à conversão que João faz não é dirigido aos pagãos, mas aos israelitas piedosos (3,7-10): portanto, face ao Messias juiz que vem aí, também os justos se devem converter; não é a raça de Abraão que conta, mas a fé; 3) a conversão manifesta-se em fazer fruto, uma ideia recorrente em Mateus (cf. 7,16-20; 12,33; 13,8; 21,41 e 43; 25,40 e 45…); 4) a conversão, aqui expressa pelo verbo metanoéô, não deve ser vista apenas pelo seu significado etimológico: mudar de mentalidade; seria uma maneira de ver muito intimista, mostraria o homem debruçado sobre si mesmo, sobre os seus pecados; ora, a raiz hebraica shûb, sobretudo depois de Jeremias (Isaías 31,6; 45,22; 55,7; Jeremias 3,7.10.14.22; 4,1; 8,5; 18,11; 24,7; 25,5; 26,3; 35,15; 36,7; 44,5; Lamentações 3,40; Ezequiel 13,22; 14,6; 18,23 e 30; 33,9 e 11; Oseias 11,5; 12,6; 14,1-2; Joel 2,12-13; Zacarias 1,3-4; Malaquias 3,7), não implica o dobrar-se do homem sobre si mesmo, mas o orientar-se para ALGUÉM, para Deus, com quem o ser humano cortou relações, distanciando-se e quebrando a aliança. Esta ideia de conversão como caminho de regresso a Deus estava muito disseminada no judaísmo primitivo, mas era desconhecida na religião grega; 5) à vista de Jesus que vem no meio da multidão, como verdadeiro Servo do Senhor (3,13-14), que assume as faltas da multidão, João fica confuso; na verdade, esperava um Juiz, e não um Servo solidário com o povo no pecado (por isso, vem, no meio do povo, a este batismo de penitência); 6) além disso, e contra todas as expectativas de João, Jesus não vem para batizar, mas para ser batizado (3,11.13-14); 7) o diálogo travado entre João Baptista e Jesus (3,14-15) é exclusivo de Mateus (nenhum outro Evangelho o descreve).

Faz-se notório o sonho de um Deus que desce ao nosso meio, não para nos condenar ou derrubar, mas para se tornar solidário connosco.

Isaías 11,1-10, que serve hoje de ressonância ao Evangelho, mostra muito mais o tom manso e suave do Servo do Senhor que Jesus incarna do que o martelo do Juiz que João Batista prenuncia. Isaías abre diante de nós um mundo novo, tenro e terno, que, visto desde este nosso mundo escuro e tantas vezes desumano, soa a sonho. Ei-lo desenhado nestes versos imensos: «Então o lobo habitará com o cordeiro,/ o leopardo deitar-se-á com o cabrito,/ o bezerro e o leãozinho andarão juntos,/ e um menino pequeno os conduzirá.// A vaca e o urso pastarão juntos,/ juntas se deitarão as suas crias,/ o leão comerá feno com o boi,/ e a criança de peito brincará com a víbora» (Isaías 11,6-8).

Avista-se daqui o Menino de Belém. Uma paz a perder de vista, sem princípio e sem fim. Um mundo novo governado por um menino pequeno. Vê-se bem que este mundo belo e manso não se parece nada com o nosso, cheio de raivas e de ódios, invejas, mentiras, manhas, astúcias, violências e guerras. Nenhum menino poderia governar um mundo assim. E o problema que nos assalta não está no menino; está neste nosso mundo mentiroso, fraudulento e violento.

Contra este mundo empedernido e embrutecido embate a ternura do Menino de Belém. Entenda-se bem outra vez: não é o menino que está errado; somos nós que estamos completamente errados. É por isso que somos convidados à conversão.

O mundo novo e saboroso que emerge dos textos de hoje é também sublinhado por S. Paulo nas exortações que nos dirige na Carta endereçada aos Romanos 15,4-9. Como seria belo um mundo pautado por uma verdadeira fraternidade em que todos vivêssemos sob o impulso e o alento carinhoso e criador de Deus. Na verdade, todos respiramos o mesmo alento, que o texto grego diz com o belo termo composto homothymadón (Romanos 15,6), que junta homós [= mesma] e thymós [= alma], sendo que thymós deriva de thýô [= soprar]. E que mundo maravilhoso surgiria, rompendo a crosta do egoísmo e da dureza de coração, se «nos acolhêssemos uns aos outros, como Cristo nos acolheu a nós» (Romanos 15,7). Aí está então a comunidade humana irmanada e reunida, porque todos recebemos de Deus o mesmo alento, o mesmo sopro criador (Génesis 2,7), e com uma só boca (en henì stómati) e a uma só voz cantamos os louvores do nosso Deus (Romanos 15,6). Esta linguagem e esta harmonia enchem por inteiro a comunidade primitiva (Atos 1,14; 2,46; 5,12).

Também os versos sublimes do Salmo Real 72 cantam a mesma melodia de alegria que se insinua nas pregas do coração da inteira humanidade maravilhada com a presença de Rei tão carinhoso. Também aqui encontramos a hiperbólica «idade do ouro», o grão que cresce mesmo no cimo das colinas, e a felicidade dos pobres, que serão sempre os melhores «clientes» de Deus. Extraordinária condensação da esperança da nossa humanidade à deriva.

O Senhor do Advento

É Aquele-que-Vem

Nascer em Belém,

Bater à nossa porta,

Pedir ao nosso coração

Um bocadinho de pão.

Tão pouco e tanto

Nos pede Jesus,

E para nosso espanto,

E para encanto nosso,

O Filho de Maria

Vem vestido de irmão nosso

De cada dia.

Ele anda por aí,

Ao frio e ao calor,

Rico e pobrezinho,

Nosso Senhor.

Vem, Menino,

Senhor do mundo,

Do sol e da lua,

Bate à minha porta,

Entra em minha casa,

E que, por graça,

Entre eu também na tua.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo II Advento – Ano A – 04.12.2022 (Is 11, 1-10)
  2. Leitura II – Domingo II Advento – Ano A – 04.12.2022 (Rom 15, 4-9)
  3. Domingo II do Tempo do Advento – Ano A – 04.12.2022 – Lecionário
  4. Domingo II do Tempo do Advento – Ano A – 04.12.2022 – Oração Universal
  5. ANO A – O ano do evangelista Mateus

Domingo I – Tempo do Advento – Ano A – 27.11.2022

42Vigiai, pois, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor. 43Ficai sabendo isto: Se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão, estaria vigilante e não deixaria arrombar a casa. 44Por isso, estai também preparados, porque o Filho do Homem virá na hora em que não pensais.» Mt 24, 42-44

Viver a Palavra

«Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé». A urgência do tempo que passa convida-nos a colocar os pés ao caminho, a despertar da letargia que tantas vezes nos envolve e a abraçar a fé com redobrado vigor e renovada esperança.

Com este primeiro Domingo de Advento abre-se diante de nós um novo Ano Litúrgico e com ele a celebração do único Mistério de Cristo ao ritmo dos Tempos Litúrgicos, nas Solenidades e Festas do Senhor, na veneração da Virgem Santa Maria e dos Santos. Iniciar uma etapa nova é sempre ocasião para dar graças a Deus pelo dom do tempo que nos é oferecido como oportunidade de sermos mais e melhor, mas também tempo para estabelecer propósitos e compromissos. Por isso, louvemos o Senhor pelas maravilhas que Ele opera na nossa história e pensemos naquilo que nos queremos propor e comprometer neste percurso que somos chamados a percorrer na celebração dos mistérios da nossa fé.

«Vamos com alegria para a casa do Senhor». Somos convidados pelo salmista a caminhar na alegria e na esperança este tempo de Advento. O Senhor vem! Esta esperança é uma certeza, pois Ele veio, vem e virá. Já veio na humildade e na fragilidade da nossa natureza, assumindo a nossa humanidade no recém-nascido do presépio de Belém. Vem, porque em cada dia não cessa de vir ao nosso encontro e de operar as maravilhas do Seu amor. Virá no esplendor da Sua glória, como proclamamos no Credo da nossa fé, para instaurar os novos céus e a nova terra.

Alegremo-nos e exultemos porque o Senhor vem. Façamo-lo com a vigilância a que nos desafia Jesus no Evangelho: «Vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor». É muito curioso o modo como Jesus se dirige aos seus discípulos no início do Evangelho: «Nos dias que precederam o dilúvio, comiam e bebiam, casavam e davam em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca; e não deram por nada, até que veio o dilúvio, que a todos levou». Aparentemente nada vemos de mal: comiam e bebiam, casavam-se e davam-se em casamento. Não se fala de maldade nem violência, mas há um pormenor que não nos pode escapar: «não deram por nada». Jesus alerta-nos para o perigo da indiferença. Não basta não fazer o mal, não podemos viver indiferentes, devemos ter os olhos e o coração abertos ao mundo à nossa volta e agir em conformidade com os desafios que nos são colocados. Por isso, tempo de Advento é tempo de vigilância, tempo «de nos levantarmos do sono», tempo de despertar para viver animados pela verdadeira esperança que está fundada na fidelidade de Deus, mas que implica também a nossa responsabilidade.

«Vinde, subamos ao monte do Senhor, ao templo do Deus de Jacob. Ele nos ensinará os seus caminhos, e nós andaremos pelas suas veredas». Caminhemos animados pela esperança que nasce do encontro com Deus e que abre diante de nós caminhos novos onde a Sua Palavra são a luz que orienta os nossos passos tantas vezes vacilantes e titubeantes.

Atentos e vigilantes queremos despertar do sono, pois não esperamos um ladrão que vem para roubar, mas o Deus das surpresas que nada tira mas tudo potencia e nos cumula de dons e de graças. Mas se queremos viver bem nesta atitude de espera vigilante, haveremos de o fazer como humanamente o fazemos tantas vezes, preparando a casa para aquele que queremos acolher. Que o tempo de Advento seja tempo de preparar o coração para acolher o Deus que vem para fazer dos nossos corações lugares de irradiação do Seu amor e da Sua graça. in Voz Portucalense        

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Com o primeiro Domingo de Advento damos início a um novo ano litúrgico – neste 2022/2023 o Ano A – em que seremos acompanhados pelo evangelista S. Mateus. Deste modo, como preparação para o novo ano litúrgico poderia ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso (acompanhe-nos em: Abordagens VIII e seguintes – https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/). Será uma catequese bíblica que ajudará a entrar na estrutura e mensagem deste Evangelho, proporcionando a todos os fiéis um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

Acrescentamos, porque sempre válido, útil e feito por quem tanto sabe de Bíblia – D. António Couto: Introdução ao Evangelho Segundo Mateus.          

                                                                                             

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LEITURA I – Is 2,1-5

«Não levantará a espada nação contra nação, nem mais se hão-de preparar para a guerra»

 

Ambiente

O texto de Is 2,2-4 encontra-se – com algumas variantes e uma adição – em Mi 4,1-3, o que parece favorecer a hipótese de uma fonte comum, anterior a Isaías e a Miqueias, na qual os redatores dos dois livros se teriam inspirado (embora haja quem defenda, mais simplesmente, que o texto original é de Isaías e que Miqueias apenas o reproduziu com variantes).

Pelo conteúdo estamos, provavelmente, diante de um oráculo inspirado nas grandes movimentações de peregrinos que, por alturas das festas, sobem para Jerusalém. Imaginemos, como hipótese, que o poeta contempla desde o monte Sião a chegada das caravanas israelitas que acorrem em peregrinação para celebrar uma festa popular – por exemplo, a festa das Tendas… Ele nota que essas caravanas procedem de todas as partes do território habitado pelo Povo de Deus; vê-las convergir para a cidade santa, subir pela colina em direção ao Templo onde reside Deus; à medida que se aproximam, o poeta ouve distintamente os “cânticos de ascensão” com que os peregrinos saúdam o Senhor e pedem a paz para Jerusalém e para toda a nação… Subitamente, na fantasia do poeta, a cena transforma-se: ele vê, num futuro sem data definida, uma multidão de povos de todas as raças e nações que, atraídas por Jahwéh, se dirigem ao encontro da salvação de Deus. É, provavelmente, um “sonho” destes que dá origem a este oráculo escatológico. Estamos diante de um dos oráculos mais inspirados, mais profundos e mais bonitos de todo o Antigo Testamento.in Dehonianos.

Para a reflexão pessoal, considerar os seguintes elementos:

O sonho do profeta começa a realizar-se em Jesus. Ele é a Palavra viva de Deus, que Se fez carne e veio habitar no meio de nós, a fim de trazer a “paz aos homens” amados por Deus (cf. Lc 2,14); da escuta dessa Palavra, nasce a comunidade universal da salvação, aberta a todos os povos da terra (cf. At 2,5-11), de que fala a leitura que nos é proposta. Se é verdade que todo o processo tem a marca da iniciativa divina, também é verdade que o homem tem de responder positivamente à ação de Deus: tem de escutar essa proposta, acolhê-la no coração e na vida, partir ao encontro de Deus (a leitura fala de uma peregrinação à montanha sagrada). Estamos a começar o tempo de preparação para acolher Jesus (Advento) e a proposta de salvação que, através d’Ele, o Pai quer fazer aos homens: estamos dispostos a ir ao seu encontro, a acolhê-l’O, a escutar a sua Palavra, a aderir a essa proposta de vida que Ele veio fazer?

Um olhar, ainda que desatento, ao mundo que nos rodeia, revela que estamos muito longe dessa terra ideal de justiça e de paz, construída à volta de Deus e da sua Palavra – apesar de Jesus, a Palavra viva de Deus, ter vindo ao nosso encontro há já dois mil anos… O que é que está a impedir ou, pelo menos, a atrapalhar a chegada desse mundo de justiça e de paz? Nisso, eu não terei a minha parte de responsabilidade? Que posso eu fazer para que o sonho de Isaías – o sonho de todos os homens de boa vontade – se concretize? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 121 (122)

Refrão: Vamos com alegria para a casa do Senhor.

 

LEITURA II – Rom 13,11-14

«Chegou a hora de nos levantarmos do sono, porque a salvação está agora mais perto de nós do que quando abraçámos a fé»

 

Ambiente

Quando Paulo redige a Carta aos Romanos, está em Corinto, no termo da sua terceira viagem missionária… Prepara-se para partir para Jerusalém com o produto da coleta que organizou na Macedónia e na Acaia em benefício dos “santos de Jerusalém que estão na pobreza” (1 Cor 16,1; cf. Rom 15,25-26). Paulo acha que terminou a sua missão no oriente (cf. Rom 15,19-20) e quer, agora, levar o Evangelho ao ocidente. Estamos no ano 57 ou 58.

O pretexto da carta é preparar a ida de Paulo a Espanha (cf. Rom 15,24) … Na realidade, Paulo aproveita para contactar a comunidade de Roma e para apresentar aos romanos (e aos crentes, em geral) os principais problemas que o preocupam…. Estamos numa altura em que o perigo da divisão ameaça a Igreja: de um lado, estão as comunidades de origem judeo-cristã e, de outro, as comunidades pagano-cristãs; uns e outros têm algumas dificuldades de entendimento e há um perigo real de cisão. Paulo escreve, então, sublinhando a unidade da fé e chamando a atenção para a igualdade fundamental de todos – judeo-cristãos e pagano-cristãos – no processo da salvação.

A primeira parte da Carta aos Romanos (cf. Rom 1,18-11,36) é de carácter dogmático e procura mostrar que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente; a segunda parte (cf. Rom 12,1-15,13) é de carácter prático e exorta judeo-cristãos e pagano-cristãos a viver no amor.

O texto que hoje nos é proposto pertence à segunda parte da carta. Depois de exortar os cristãos que pertencem à comunidade de Roma ao amor mútuo (cf. Rom 13,8-10), Paulo pede-lhes que estejam vigilantes e preparados, a fim de acolher o Senhor que vem. in Dehonianos.

Considerar as seguintes questões:

A questão fundamental que está em jogo neste texto é a da conversão: os crentes são convidados a deixar a vida das trevas e embarcar, decididamente, na vida da luz… As “trevas” caracterizam essa realidade negativa que produz mentira, injustiça, opressão, medo, cobardia, materialismo (e que é uma realidade que toca tantas vezes, direta ou indiretamente, a nossa existência); a “luz” é a realidade de quem vive na dinâmica de Deus… Falar de “conversão” implica falar de uma transformação profunda das estruturas e dos corações… Quais são, na sociedade, as estruturas que são responsáveis pelas “trevas” que envolvem a vida de tantos homens? O que é que na Igreja é menos “luminoso” e necessita de conversão? O que é que em mim próprio é necessário transformar com urgência?

Quase todos nós somos pessoas razoáveis e sérias e não andamos todos os dias em bebedeiras, devassidões, libertinagens e discórdias; mas, apesar da nossa bondade e seriedade, é possível que o cansaço, a monotonia, a preguiça nos adormeçam, que caiamos na indiferença, na inércia, na passividade, no comodismo; é possível que deixemos correr as coisas e que esqueçamos os compromissos que um dia assumimos com Jesus e com o “Reino”… É para nós que Paulo grita: “acordai!; renovai o vosso entusiasmo pelos valores do Evangelho; é preciso estar preparado – sempre preparado – para acolher o Senhor que vem”.

Há também, neste texto, um convite à esperança: “o Senhor vem! A noite vai adiantada e o dia está próximo”. Deus não nos abandona; Ele continua a vir ao nosso encontro e a construir connosco esse mundo novo de justiça e de paz… Por muito que nos assustem as trevas que envolvem o mundo, a presença de Deus garante-nos que a injustiça, a exploração, a morte não são o final inevitável: a última palavra que a história vai ouvir é a Palavra libertadora e salvadora de Deus. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Mt 24,37-44

«Como aconteceu nos dias de Noé, assim sucederá na vinda do Filho do homem».

«Portanto, vigiai, porque não sabeis em que dia virá o vosso Senhor».

«Se o dono da casa soubesse a que horas da noite viria o ladrão, estaria vigilante e não deixaria arrombar a sua casa.»

 

Ambiente

Os capítulos 24 e 25 do Evangelho segundo Mateus apresentam o último grande discurso de Jesus antes da sua paixão e morte. Para compô-lo, Mateus reelaborou o chamado “discurso escatológico” de Marcos (cf. Mc 13), ampliando-o e mudando substancialmente o tema central: se no discurso transmitido por Marcos a questão principal é a dos sinais que precederão a destruição de Jerusalém e do Templo, no discurso reelaborado por Mateus a questão central é a da vinda do Filho do homem e das atitudes com que os discípulos devem preparar a dita vinda.

Esta mudança de perspetiva pode explicar-se a partir da situação em que vivia a comunidade de Mateus e com as suas necessidades. Estamos na década de 80. Passaram dez anos sobre a destruição de Jerusalém e ainda não aconteceu a segunda vinda de Jesus. Os crentes estão desanimados e desiludidos… O evangelista contempla com preocupação os sinais de abandono, de desleixo, de rotina, de esfriamento que começam a aparecer na comunidade e sente que é preciso renovar a esperança e levar os crentes a comprometer-se na história, construindo o “Reino”. Nesta situação, Mateus descobre que as palavras de Jesus encerram um profundo ensinamento e compõe com elas uma exortação dirigida aos cristãos. Esta exortação fundamenta-se numa profunda convicção: a vinda do “Filho do homem” é um facto certo, ainda que não aconteça em breve; enquanto não chega o momento, é preciso preparar este grande acontecimento, vivendo de acordo com os ensinamentos de Jesus.

A linguagem destes capítulos é estranha e enigmática… Trata-se, no entanto, de um género usado com alguma frequência por alguns grupos judeus e cristãos da época de Jesus. É a linguagem “apocalíptica”, porque o seu objetivo é “revelar algo escondido” (“apocaliptô”). Em muitas ocasiões, esta revelação é dirigida a comunidades que vivem numa situação de sofrimento, de desespero, de perseguição; o objetivo é animá-las, dar-lhes esperança, mostrar-lhes que a vitória final será de Deus e dos que lhe forem fiéis.in Dehonianos.

A reflexão deste texto pode partir dos seguintes dados:

O que é que significa para nós “estar vigilantes”, “estar atentos”, “estar preparados” para acolher o Senhor? Significa ter a “alminha” na “graça de Deus” para que, se a morte chegar de repente, Deus não consiga encontrar em nós qualquer pecado não confessado e não tenha qualquer razão para nos mandar para o inferno? Significa, fundamentalmente, acolher todas as oportunidades de salvação que Deus nos oferece continuamente… Se Ele vem ao meu encontro, me desafia a cumprir uma determinada missão e eu prefiro continuar a viver a minha “vidinha” fácil e sem compromisso, estou a perder uma oportunidade de dar sentido à minha vida; se Ele vem ao meu encontro, me convida a partilhar algo com os meus irmãos mais pobres e eu escolho a avareza e o egoísmo, estou a perder uma oportunidade de abrir o meu coração ao amor, à alegria, à felicidade…

O Evangelho que nos é proposto apresenta alguns dos motivos que impedem o homem de “acolher o Senhor que vem”… Fala da opção por “gozar a vida”, sem ter tempo nem espaço para compromissos sérios; quanta gente, ao domingo, tem todo o tempo do mundo para dormir até ao meio dia, mas não para celebrar a fé com a sua comunidade cristã… Fala do viver obcecado com o trabalho, esquecendo tudo o mais; quanta gente trabalha quinze horas por dia e esquece que tem uma família e que os filhos precisam de amor… Fala do adormecer, do instalar-se, não prestando atenção às realidades mais essenciais; quanta gente encolhe os ombros diante do sofrimento dos irmãos e diz que não tem nada com isso, pois é o governo ou o Papa que têm que resolver a situação… E eu: o que é que na minha vida me distrai do essencial e me impede, tantas vezes, de estar atento ao Senhor que vem?

Neste tempo de preparação para a celebração do nascimento de Jesus, sou convidado a recentrar a minha vida no essencial, a redescobrir aquilo que é importante, a estar atento às oportunidades que o Senhor, dia a dia, me oferece, a acordar para os compromissos que assumi para com Deus e para com os irmãos, a empenhar-me na construção do “Reino”… É essa a melhor forma – ou melhor, a única forma – de preparar a vinda do Senhor.in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura, embora não apresente nenhuma dificuldade aparente nas suas palavras e expressões, requer uma boa preparação para que a proclamação deste texto seja marcada pelo anúncio de esperança e pela promessa messiânica que nele está contido.

Na segunda leitura, deve ter-se em atenção as descrições com enumerações e o tom exortativo marcado pela presença de formas verbais no imperativo.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

PARA VÓS, SENHOR, ELEVO A MINHA ALMA!

«Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Salmo 25,1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração constante. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente conta de nós, a mesma «subida» espiritual é cantada com esfuziante alegria no Salmo Responsorial (122). Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Estai atentos», «Vigiai», «Compreendei», «Estai preparados», «Sabei o dia», «Não aconteça que não deis por nada!» (Mateus 24,37-44). Vida levantada, rosto erguido para Deus. É o gesto do justo justificado por Deus (Job 22,26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de Ano litúrgico. É de Deus a palavra e a escrita que não passa.

Curiosamente a lição do Evangelho não condena a malvadez e a violência das pessoas, mas a sua indiferença, anestesia e sonolência («não dar por nada»). «Vigiar», «Estar atentos» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos banais e fúteis deste tempo dormente, e S. Paulo mostra que a busca desenfreada do sucesso e das falsas soluções da droga, da devassidão, da embriaguez, das rixas, dos ciúmes é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e bom. Não nos deixa, portanto, ver Cristo, o mais belo dos filhos dos homens (Salmo 45,3), «belo a dar a vida e belo a retomá-la, belo na Cruz, belo no sepulcro, belo no céu» (Santo Agostinho). Andamos sempre tão atarefados com inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o «coração pesado» e insensível, incapaz de ver o Filho-do-Homem-que-vem, a qualquer hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho do Homem que vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas teias e cadeias.

O escritor argentino Jorge Luís Borges deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três vezes»; «Em cada instante a clepsidra deixa cair a última gota». E o poeta brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim, sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém, com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez. Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra conta, cada copo de água conta!

Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde e nos levante da nossa letargia com novas pautas e novos acordes musicais! E que nos dê nomes novos a nós, às nossas cidades, às nossas escolas, aos nossos hospitais, às nossas ruas! UpUpUp! Luz nova lá no alto a atrair os nossos olhos embotados. Instrução nova de Deus para todos os povos, armas transformadas em relhas de arado, flores brancas em mãos ensanguentadas (Isaías 2,1-5).

E aí está S. Paulo, no final da sua carreira, a escrever desde Corinto aos Romanos (13,11-14). E aí está também o buscador Agostinho. Na sua intensa busca da verdade, foi de Tagaste para Cartago, para Milão. Homem inquieto, no polo oposto do coktail da tranquilidade e consolo, servido pela New Age ou Next Age, e de acordo com a advertência de Julien Green: «Enquanto estivermos inquietos, podemos estar tranquilos». No princípio do Outono de 386, angustiado e inquieto, Agostinho (Confissões, Livro VIII, 12) sai para o jardim da sua casa, em Milão, e chora amargamente, sentado debaixo de uma figueira. Ouve então uma criança que, na casa vizinha, cantarolava uma estranha letra: «Toma e lê!», «toma e lê!». Agostinho apercebeu-se de que não era normal uma criança trautear uma canção com uma letra assim. Foi, por isso, levado a compreender que bem podia ser um recado de Deus para ele. Entrou em casa, desenrolou à sorte as Cartas de S. Paulo que tinha sobre a mesa, e leu: «Não em orgias e bebedeiras, não em devassidão e libertinagem, não em rixas e ciúmes, mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não presteis atenção à carne através da concupiscência» (Romanos 13,13b-14).

Nesse dia e nessa hora, nasceu Santo Agostinho. Hoje podes nascer tu também, meu irmão do tempo novo do Advento. Mãos à obra, e conta sempre com a graça de Deus: «Segundo a graça que Deus me deu, como bom arquiteto, lancei o fundamento, mas é outro que constrói por cima. Mas cada um veja como constrói. Quanto ao fundamento, ninguém pode pôr outro diferente do que foi posto: Jesus Cristo. Se alguém, sobre esse fundamento, constrói com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha, a obra de cada um será posta em evidência» (1 Coríntios 3,10-13).

Enfim, ressoa hoje a voz do Salmo 122, um belíssimo Cântico de Sião, sobrecarregado de uma alegria elementar e de uma emoção visceral e instintiva. Desdobra-se em três vagas: a primeira (vv. 1-2) reúne a alegria incontida da partida e a emoção intensa da chegada; a segunda, vv. 3-5, entoa o louvor de Sião, passeia os olhos pela bela arquitetura dos seus edifícios, mas sobretudo vê Jerusalém como polo de atração e de união das tribos para louvar a pessoa (o Nome) de Deus no seu Templo; a terceira, vv. 6-9, estende uma toalha branca de paz (shalôm), três vezes dita, como vê os seus quatro ângulos, sobre a mais bela cidade, Jerusalém, yerûshalaim, popularmente interpretada como «cidade da paz (shalôm)», ainda que o seu nome signifique «Shalem a edificou», com referência a um deus dos antigos habitantes cananeus. Pouco importa. Ela é a Casa em que entram, felizes e emocionados os filhos de Deus, e experimentam a alegria da fraternidade, põem a mesa e estendem a toalha branca da paz (shalôm) e do bem (tôb), com que franciscanamente se saúdam!

Como é fácil, Senhor Jesus,
Daqui, de ao pé da tua Cruz,
Avistar a paisagem do Advento,
Compreender-lhe a mensagem,
Respirar-lhe o alento.

Daqui, de ao pé da tua Cruz de Luz,
Sem dúvida o lugar mais alto do mundo,
Mais alto e mais profundo,
Vê-se bem, com toda a claridade,
Que a lonjura do Advento não é horizontal.
Eleva-se em altura.
Como a tua túnica tecida de Alto-a-baixo,
Vertical,
E sem costura.

Tu vens do Alto, Senhor.
Tu vens de Deus.
Tu és Deus.
Tu és o Justo
Que chove das alturas
Sobre a nossa humanidade sedenta e às escuras.

Vem, Senhor Jesus,
Alumia e rega a nossa terra dura,
Acaricia o nosso humilde chão
E modela com as tuas mãos de amor
Em cada um de nós
Um novo coração
Capaz de ver.
Capaz de Te ver
Nascer
Em cada irmão.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo I -Tempo do Advento – Ano A – 27.11.2022 (Is 2, 1-5)
  2. Leitura II do Domingo I -Tempo do Advento – Ano A – 27.11.2022 (Rom 13, 11-14)
  3. Domingo I Tempo do Advento – Ano A – 27.11.2022 – Lecionário
  4. Domingo I Tempo do Advento – Ano A – 27.11.2022 – Oração Universal
  5. ANO A – O ano do evangelista Mateus

Domingo XXXIV- Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – 20.11.2022

Viver a Palavra

Ao celebrarmos a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo com que encerramos o Ano Litúrgico, o nosso olhar volta-se para Jesus, nosso Deus, Rei e Messias. Contudo, para contemplar Jesus como Rei é necessário recordar as Suas palavras: «os reis das nações exercem domínio sobre elas, e os que têm sobre elas autoridade são chamados benfeitores. Vós não deveis proceder desse modo. O maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como quem serve» (Lc 22,25-26).

Jesus apresenta um novo modo de reinar que não se define pela lógica de domínio, autoritarismo, violência ou despotismo, mas pela capacidade de amar, de ser manso e humilde, numa atitude de serviço que inaugura um Reino Novo de amor, justiça e misericórdia. Por isso, nesta solenidade somos convidados a contemplar Jesus crucificado, contado entre os malfeitores, insultado e desprezado por aqueles que dele se aproximam.

A novidade do Reino manifesta-se pelo modo como se apresenta este Rei que não está sentado num trono dourado, não possui faustosas vestes, nem uma coroa de ouro e pedras preciosas. Pelo contrário, foi despojado das suas vestes, o seu trono é o madeiro da Cruz e a sua coroa foi tecida com espinhos.

Aquele que S. Paulo nos descreve na Carta aos Colossenses como «a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura», Aquele através do qual «foram criadas todas as coisas no céu e na terra, visíveis e invisíveis», foi condenado à morte e está pregado numa cruz como um malfeitor. Mas, precisamente aqui, reina de um modo absolutamente novo, porque assume a natureza humana até às suas últimas consequências, atravessando o limiar do sofrimento e da morte porque «aprouve a Deus que n’Ele residisse toda a plenitude e por Ele fossem reconciliadas consigo todas as coisas, estabelecendo a paz, pelo sangue da sua cruz, com todas as criaturas na terra e nos céus»

A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universos foi instituída pelo Papa Pio XI em 1925. Depois da primeira grande guerra, em tempos marcados pela violência e pela falta de esperança. O papa Pio XI quer recordar aos cristãos que as desventuras e desgraças deste mundo são passageiras e não podem reinar sobre nós. Só Jesus, Rei do Universo, pode reinar sobre nós, pois Ele testemunha com a sua própria vida que o sofrimento e a morte não têm a última palavra. Só o amor pode reinar para que um mundo novo possa despontar e o Reino de Deus se possa estabelecer entre nós.

O Filho de Deus, Messias e Senhor, reina pela capacidade de se entregar, de se dar todo e até ao fim, para que cada homem e cada mulher possam encontrar Nele a fonte da Sua esperança. Na verdade, aqueles que olham o crucificado acusam-no de não se salvar a si mesmo. Mas Jesus não veio para se salvar a si mesmo, veio para cumprir a vontade do Pai, salvando e redimindo a humanidade inteira.

Por isso, contemplando Jesus Crucificado, nosso Rei e Senhor, somos convidados a contemplar Jesus como aquele malfeitor que não interroga a Cruz, mas se deixa interrogar por ela e clama: «Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza». Este condenado como afirma S. João Crisóstomo em Jesus Crucificado encontra a porta da salvação: «este ladrão roubou o paraíso. Ninguém antes dele ouviu uma promessa semelhante: nem Abraão, nem Isaac, nem Jacob, nem Moisés, nem os profetas, nem os apóstolos. O ladrão entrou à frente deles todos. Mas também a sua fé ultrapassou a deles. Ele viu Jesus atormentado, e adorou-o como se estivesse na glória. Viu-o pregado a uma cruz, e suplicou-lhe como se o tivesse visto no trono. Viu-o condenado, e pediu-lhe uma graça como se faz a um rei. Ó admirável malfeitor! Viste um homem crucificado, e proclamaste-o Deus!».in Voz Portucalense                                                                          

 

LEITURA I – 2 Sam 5,1-3

«O rei David concluiu com eles uma aliança diante do Senhor, e eles ungiram David como rei de Israel».

 

Ambiente

Por volta do ano 1007 a.C., o reino de Saul (que agrupava as tribos do Norte e do Centro) sofreu um rude golpe, com a morte do rei e de Jónatas (filho e natural sucessor de Saul) às mãos dos filisteus, numa batalha travada junto do monte Guilboá (cf. 1 Sm 31). Por esta altura, em contrapartida, David reinava (desde 1012 a.C.) sobre as tribos do Sul (cf. 2 Sm 2,1-4).

Ishboshet, filho de Saul, foi escolhido para suceder a seu pai e ainda reinou dois anos sobre as tribos do Norte e do centro (cf. 2 Sm 2,8-11); mas acabou por ter a oposição de Abner, chefe dos exércitos do Norte, que ofereceu a David a autoridade sobre as tribos que formavam o reino de Saul (cf. 2 Sm 3,12-21). Abner foi, entretanto, assassinado por Joab, general de David (cf. 2 Sm 3,26-27); e, pouco depois, também Ishboshet foi, muito convenientemente, assassinado – embora o segundo livro de Samuel se esforce por mostrar que David não teve nada a ver com esses assassínios (cf. 2 Sm 3,28-39; 4,1-12). Finalmente, os anciãos do Norte – preocupados em encontrar uma liderança forte que lhes permitisse resistir aos inimigos tradicionais, os filisteus – pediram a David que aceitasse dirigir também os destinos das tribos do Norte e do Centro.

É diante deste quadro que a leitura de hoje nos coloca. David está em Hebron – a capital das tribos do Sul – e é lá que recebe os enviados das tribos norte e do centro que lhe propõem a realeza. Estamos por volta do ano 1005 a.C. in Dehonianos.

Considerar os seguintes desenvolvimentos:

O que é que a história de David tem a ver com a Festa de Jesus Cristo, Rei do Universo? Jesus Cristo, o Messias, Rei de Israel, descendente de David, é considerado no Novo Testamento a resposta de Jahwéh aos sonhos e expectativas do Povo de Deus. Ele veio para restaurar, ao jeito de Deus e na lógica de Deus, o reino de David. Jesus é, portanto, o Rei que, à imagem do que David fez com Israel, apascenta o novo Povo de Deus (veremos, mais à frente, como deve ser entendida a realeza de Jesus). Que significa, para mim, dizer que Jesus é Rei?

O reinado de David é apresentado com um tempo ideal de unidade, de paz e de felicidade; no entanto, conheceu, também, tudo aquilo que costuma caracterizar os reinados humanos: tronos, riquezas, exércitos, batalhas, injustiças, intrigas de corte, lutas pelo poder, assassínios, corrupção… Falar do “Reino” de Jesus terá algo a ver com isto? Estes esquemas caberão, de alguma forma, na lógica de Deus? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 121 (122)

Refrão: «Vamos com alegria para a casa do Senhor».

 

LEITURA II – Col 1,12-20

«Cristo é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura».

 

Ambiente

A comunidade cristã de Colossos (situada na Ásia Menor, a cerca de 200 quilómetros a Este de Éfeso) não foi fundada por Paulo, mas sim por Epafras, discípulo de Paulo e Colossenses de origem. Como é que Paulo aparece envolvido com esta comunidade?

Daquilo que podemos perceber da carta, Paulo estava na prisão (em Roma?) quando recebeu a visita do seu amigo Epafras. Epafras contou a Paulo que a Igreja de Colossos estava em crise, pois alguns “doutores” cristãos ensinavam que a adesão a Jesus devia ser completada por outras práticas religiosas, fundamentais para a salvação e para um conhecimento mais profundo do mistério de Deus. Assim, esses “doutores” exigiam dos crentes de Colossos o cumprimento de práticas ascéticas, de certos ritos legalistas, de algumas prescrições sobre os alimentos; exigiam, também, a observância de determinadas festas e a crença nos anjos e nos seus poderes.

É possível que este quadro tivesse a ver com doutrinas orientais que começavam a circular nesta época e que iriam, mais tarde, desembocar no movimento “gnóstico”.

Contra esta confusão religiosa, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo: a adesão a Cristo é o fundamental para quem quer ter acesso à proposta de salvação que Deus faz aos homens; tudo o resto é dispensável e não deve ser imposto aos cristãos. in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes desenvolvimentos:

A festa de Cristo Rei, que encerra o ano litúrgico, celebra, antes de mais, a soberania e o poder de Cristo sobre toda a criação. A leitura que acabámos de ver diz, a este propósito, que em Cristo, Deus revela-Se; que Ele tem a supremacia e autoridade sobre todos os seres criados; que Ele é o centro de todo o universo e que tudo tende e converge para Ele… Isto equivale a definir Cristo como o centro da vida e da história, a coordenada fundamental à volta da qual tudo se constrói. Cristo tem, de facto, esta centralidade na vida dos homens e mulheres do nosso tempo, ou há outros deuses e referências que usurparam o seu lugar? Quais são esses outros “reis” que ocuparam o “trono” que pertence a Cristo? Esses “reis” trouxeram alguma “mais-valia” à vida dos homens, ou apenas criaram escravidão e desumanização? O que podemos fazer para que a nossa sociedade reconheça em Cristo o seu “rei”?

Em termos pessoais, Cristo é o centro, referência fundamental à volta da qual a minha vida se articula e se constrói? O que é que Ele significa para mim, não em termos de definição teórica, mas em termos existenciais?

A Festa de Cristo Rei é, também, a festa da soberania de Cristo sobre a comunidade cristã. A Igreja é um corpo, do qual Cristo é a cabeça; é Cristo que reúne os vários membros numa comunidade de irmãos que vivem no amor; é Cristo que a todos alimenta e dá vida; é Cristo o termo dessa caminhada que os crentes fazem ao encontro da vida em plenitude. Esta centralidade de Cristo tem estado sempre presente na reflexão, na catequese e na vida da Igreja? É que muitas vezes falamos mais de autoridade e de obediência do que de Cristo; de castidade, de celibato e de leis canónicas, do que do Evangelho; de dinheiro, de poder e de direitos da Igreja, do que do “Reino”… Cristo é – não em teoria, mas de facto – o centro de referência da Igreja no seu todo e de cada uma das nossas comunidades cristãs em particular? Não damos, às vezes, mais importância às leis feitas pelos homens do que a Cristo? Não há, tantas vezes, “santos”, “santinhos” e “santões” que assumem um valor exagerado na vivência de certos cristãos, e que ocultam ou fazem esquecer o essencial? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 23,35-43

«Se és o rei dos Judeus, salva-Te a Ti mesmo».

«Jesus, lembra-Te de Mim, quando vieres com a tua realeza».

«Em verdade te digo: Hoje estarás comigo no Paraíso».

 

Ambiente

O Evangelho situa-nos “lugar do Crânio” (alusão provável à forma da rocha que dominava o lugar e que lembrava um crânio), diante de uma cruz. É o final da “caminhada” terrena de Jesus: estamos perante o último quadro de uma vida gasta ao serviço da construção do “Reino”. As bases do “Reino” já estão lançadas e Jesus é apresentado como “o Rei” que preside a esse “Reino” que Ele veio propor aos homens. A cena apresenta-nos Jesus crucificado, dois “malfeitores” crucificados também, os chefes dos judeus que “zombavam de Jesus”, os soldados que troçavam dos condenados e o povo silencioso, perplexo e expectante. Por cima da cruz de Jesus, havia uma inscrição: “o basileus tôn Ioudaiôn outos” (“este é o rei dos judeus”).in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes dados:

Celebrar a Festa de Cristo Rei do Universo não é celebrar um Deus forte, dominador que Se impõe aos homens do alto da sua omnipotência e que os assusta com gestos espetaculares; mas é celebrar um Deus que serve, que acolhe e que reina nos corações com a força desarmada do amor. A cruz – ponto de chegada de uma vida gasta a construir o “Reino de Deus” – é o trono de um Deus que recusa qualquer poder e escolhe reinar no coração dos homens através do amor e do dom da vida.

À Igreja de Jesus ainda falta alguma coisa para interiorizar a lógica da realeza de Jesus. Depois dos exércitos para impor a cruz, das conversões forçadas e das fogueiras para combater as heresias, continuamos a manter estruturas que nos equiparam aos reinos deste mundo… A Igreja, corpo de Cristo e seu sinal no mundo, necessita que o seu Estado com território (ainda que simbólico) seja equiparado a outros Estados políticos? A Igreja, esposa de Cristo, necessita de servidores que se comportam como se fossem funcionários superiores do império? A Igreja, serva de Cristo e dos homens, necessita de estruturas que funcionam, muitas vezes, apenas segundo a lógica do mercado e da política? Que sentido é que tudo isto faz?

Em termos pessoais, a Festa de Cristo Rei convida-nos, também, a repensar a nossa existência e os nossos valores. Diante deste “rei” despojado de tudo e pregado numa cruz, não nos parecem completamente ridículas as nossas pretensões de honras, de glórias, de títulos, de aplausos, de reconhecimentos? Diante deste “rei” que dá a vida por amor, não nos parecem completamente sem sentido as nossas manias de grandeza, as lutas para conseguirmos mais poder, as invejas mesquinhas, as rivalidades que nos magoam e separam dos irmãos? Diante deste “rei” que se dá sem guardar nada para si, não nos sentimos convidados a fazer da vida um dom? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura é breve e de fácil proclamação, pede-se apenas o cuidado na pronunciação da palavra «Hebron».

A segunda leitura exige uma acurada preparação porque é um texto com frases longas e diversas orações, mas também porque é um texto de grande densidade teológica. Este texto requer uma leitura calma e cuidada nas pausas e respirações e com atenção para algumas expressões como «visíveis e invisíveis» e «Principados e Potestades». Uma leitura apressada impede a correta compreensão das palavras.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

A VERDADEIRA SOBERANIA DO AMOR

A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei» foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de ação, que já tinha fundado a Ação Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se de valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».

Antes de mais, o título de Rei, com que hoje celebramos o único Senhor da nossa vida. Pode parecer um título ultrapassado e com forte conotação ideológica, que poria Jesus ao nível dos senhores ricos e poderosos deste mundo. Para não resvalarmos para equívocos e terrenos movediços, convém anotar desde já a descrição que o próprio Jesus faz dos Reis: «Os Reis das nações, diz Jesus, dominam sobre elas» (Lucas 22,25). E a sua advertência: «Não seja assim entre vós» (Lucas 22,26). E, todavia, Jesus diz-se Rei, confirmando, neste domínio, as suspeitas de Pilatos (Marcos 15,2; João 18,37).

Para sabermos o que é que Jesus tem em vista quando se afirma como Rei, é preciso saber como é que a Escritura traça o perfil do Rei. É como quem pinta um quadro, ou melhor, dois: um díptico. No primeiro quadro, o Rei é alguém muito próximo de Deus, completamente nas mãos de Deus, sempre atento à sua Palavra, de modo que deve ter, para seu uso pessoal, uma cópia da Lei de Deus, feita pela sua própria mão, para não poder dizer que não entende a letra, e deve lê-la todos os dias, nada fazendo por sua conta, mas sempre e só de acordo com a Palavra de Deus (Deuteronómio 17,18-19). No segundo quadro, que completa o primeiro, formando um díptico, o Rei é alguém muito próximo do seu povo, sempre atento ao seu povo, em ordem a poder levar-lhe a prosperidade, o bem-estar, a saúde, a paz, a alegria, a felicidade, a salvação. Aí está, então, o retrato completo de Jesus Cristo como Rei: sempre pertinho de Deus, sempre pertinho de nós.

Tanta e quase indescritível riqueza a de um Deus, sentado no seu trono de Luz, mas que Vem, como um Filho do Homem, com o domínio novo, frágil e forte, do Amor: «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5). Da lição do Livro de Daniel 7,13-14 e respetivo contexto, vê-se bem que todos os nossos impérios prepotentes e ferozes, por mais fortes que pareçam, caem face à doçura da Palavra do Filho do Homem, que dissolve no Amor as nossas raivas e violências, manifestações das bestas que nos habitam. O Filho do Homem vence, sem combater, este combate. É assim que caem as quatro bestas ferozes que sobem do mar (Daniel 7), ele mesmo símbolo da confusão e do mal, que deixará naturalmente de existir (Apocalipse 21,1).

O domínio do Filho do Homem que nos ama, o domínio do Amor é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o domínio velho e podre da violência das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal que se foi insinuando nas pregas do nosso coração empedernido. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa tirania e prepotência!

Entenda-se bem que tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a, e, portanto, dissolvendo-a e absorvendo-a, e é só assim que a absolve. É assim que o Amor Reina, Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Chefes dos Judeus, os Soldados e Pilatos representam os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. O Reino do Filho do Homem não pode, na verdade, ser daqui (João 18,33-37). Se fosse daqui, apenas aumentaria a espiral da mentira e da violência. É de Amor novo e subversivo que se trata.

Aí está a página divina deste Último Domingo do Ano Litúrgico, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo: Lucas 23,35-43. Texto espantoso. É preciso vir um pouco atrás buscar o fio de sentido deste imenso texto. Diz, na verdade, Lucas 23,32 que «Eram conduzidos também com Ele outros dois malfeitores para serem executados». Sim, o texto diz, com espantosa precisão teológica, «outros dois malfeitores». Ao dizer «outros dois malfeitores», o texto está a dizer que Jesus, o Justo, é também um malfeitor! Aí está o Livro a abrir-se perante os nossos olhos atónitos! O quarto Canto do Servo do Senhor já dizia que o Servo Justo «Foi contado entre os malfeitores» (Isaías 53,12). Sim, Ele é um de nós! Não passa ao nosso lado ou por cima de nós, mas desce ao nosso chão, abraça-nos e absorve os nossos males.

Ouve-se depois um tema por três vezes repetido e martelado: «Salva-te a ti mesmo!» (Lucas 23,35.37.39), na boca dos chefes, dos soldados, de um dos malfeitores. Os chefes veem um falso deus, os soldados um falso rei, o malfeitor um falso messias. Tudo ídolos que vamos usando a nosso bel-prazer, sem sequer repararmos nisso. O outro malfeitor é o primeiro teólogo da Cruz. Não interroga aquela Cruz; deixa-se interrogar por ela. E avança um pedido imenso: «Jesus, lembra-te de mim quando vieres com o teu Reino!» (Lucas 23,42). De notar que estas palavras imensas, que devíamos repetir muitas vezes, são cantadas pelo povo no momento da Comunhão, no Rito grego. E Jesus responde, para imenso espanto nosso: «Hoje estarás comigo no paraíso» (Lucas 23,43). Aos sarcásticos interrogadores da Cruz, Jesus não deu qualquer resposta. Mas a este pedido, respondeu. Este Hoje entala-nos no tempo, sendo uma permanente provocação que nos faz o Evangelho de Lucas. Este é o oitavo Hoje que encontramos neste Evangelho. Eis a sequência: Lucas 2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,43.

Vale a pena, neste momento, dar a palavra a um dos grandes pregadores dos primeiros séculos cristãos, São João Crisóstomo (349-407). Disse ele: «Este ladrão roubou o paraíso. Ninguém antes dele ouviu uma promessa semelhante: nem Abraão nem Isaac nem Jacob nem Moisés nem os profetas nem os apóstolos. O ladrão entrou à frente deles todos. Mas também a sua fé ultrapassou a deles. Ele viu Jesus atormentado, e adorou-o como se estivesse na glória. Viu-o pregado a uma cruz, e suplicou-lhe como se o tivesse visto no trono. Viu-o condenado, e pediu-lhe uma graça como se faz a um rei. Ó admirável malfeitor! Viste um homem crucificado, e proclamaste-o Deus!».

Entenda-se ainda que este tempo escandaloso da Cruz é o tempo da Graça deixado em suspenso em Lucas 4,13b, no final do grande texto das tentações de Jesus na sua condição filial, batismal, em que o diabo, também por três vezes, ia dizendo: «Se és o Filho de Deus…». O narrador termina o episódio, dizendo que «o diabo se afastou dele até ao kairós, o tempo estabelecido» por Deus. Sem equívocos agora: o kairós de Deus, a torrente da Palavra de Deus que solicita a nossa resposta, e a torna imperiosa, sob pena de afogamento, é a Cruz!

Entenda-se melhor. Um «malfeitor» é alguém cuja profissão é, como o nome diz, «fazer o mal». Uma sociedade em que o usual é «fazer o mal» é uma sociedade violenta. E numa sociedade assente sobre a violência, a alternativa é: vencer ou ser vencido, matar ou ser morto. Neste tipo de sociedade, todos nós escolhemos preventivamente a primeira opção. Nem sequer será por mal, mas para nos salvarmos a nós mesmos, cada um de nós faz preventivamente o mal que pode: o ladrão e o banqueiro, o comerciante e o operário, o médico e o barbeiro, o patrão e o empregado, o padre e o assaltante, o benfeitor e o delinquente. Cada um, com os meios que tem pensa e põe em primeiro lugar o seu caso particular. Mas vai saltando à vista que, se Jesus seguisse a nossa lógica de se salvar a si mesmo, não nos salvaria a nós, porque teria, não de assumir, abraçar, sorver e sofrer a nossa violência e o nosso pecado, mas de se ver livre de nós!

Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras da calçada do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro (Génesis 4,8). Bem visto por Judas na sua pequena Carta, infelizmente pouco lida e meditada: «Aqueles que seguem o caminho de Caim são como animais sem palavra» (Judas 10-11).

«Jesus, lembra-te de mim quando vieres com o teu Reino».

Ilumina o Evangelho de hoje a página de 2 Samuel 5,1-3. Depois de ter sido ungido Rei no Hebron sobre Judá, pelos homens de Judá (2 Samuel 2,4), David é agora ungido Rei também sobre Israel, pelos anciãos de Israel que, para o efeito, se deslocam ao Hebron (2 Samuel 5,3). Não sem que antes o tenham reconhecido como membro da sua família: «Vê! Nós somos teus ossos e tua carne» (v. 1), e tenham lembrado que era desígnio de Deus que ele reinasse sobre Israel e sobre Judá (v. 2; cf. 2 Samuel 3,10). Tudo isto tem a ver com Cristo. Antes de mais, é o novo David, que reúne todo o povo e sobre ele Reina. Mas, para isso, fez-se também igual a nós, é membro da nossa família.

Temos Hoje também a graça de poder escutar um antigo hino sobre o primado de Jesus, provavelmente de língua aramaica, que Paulo incrustou na sua Carta aos Colossenses (1,15-20), mas que tem como prólogo os vv. 12-14, a inteireza da lição de Hoje. O hino é belo, teológico, denso, produzido com rima e metro, como é normal nos hinos antigos. Tudo começa com o convite à ação de graças, isto é, a fazer eucaristia ao Pai por nos ter dado a herança dos santos na luz (v. 12), arrancando-nos do poder das trevas, e transportando-nos para o Reino do «Filho do seu amor» (hyiós tês agápês autoû) (v. 13), em quem temos a redenção, a remissão dos pecados (v. 14). Este Filho do seu amor é Jesus Cristo, «Imagem (eikôn) do Deus invisível», «Primogénito (prôtótokos) de toda a criatura» (v. 15) e também «Primogénito dos mortos» e «Cabeça do corpo que é a Igreja» (v. 18). E é «n’Ele» (en autô), «através d’Ele» (di’ autoû) e «para Ele» (eis autón) que tudo foi criado (v. 16). Ele, o Senhor Jesus, é absolutamente o centro de tudo e o primeiro em tudo, desde a criação, à propiciação pelo sangue da sua Cruz (v. 20), à vida da Igreja, à Ressurreição. É sempre n’Ele e através d’Ele e para Ele, que tudo quanto existe encontra o seu caminho, sentido, enlevo (eudokía) e plenitude (plêrôma).

Enfim, ressoa hoje a voz do Salmo 122, um belíssimo Cântico de Sião, sobrecarregado de uma alegria elementar e de uma emoção visceral e instintiva. Desdobra-se em três vagas: a primeira, vv. 1-2), reúne a alegria incontida da partida e a emoção intensa da chegada; a segunda, vv. 3-5, entoa o louvor de Sião, passeia os olhos pela bela arquitetura dos seus edifícios, mas sobretudo vê Jerusalém como polo de atração e de união das tribos para louvar a pessoa (o Nome) de Deus no seu Templo; a terceira, vv. 6-9, estende uma toalha branca de paz (shalôm), três vezes dita, como vê os seus quatro ângulos, sobre a mais bela cidade, Jerusalém, yerûshalaim, popularmente interpretada como «cidade da paz (shalôm)», ainda que o seu nome signifique «Shalem a edificou», com referência a um deus dos antigos habitantes cananeus. Pouco importa. Ela é a Casa em que entram, felizes e emocionados os filhos de Deus, e experimentam a alegria da fraternidade, põem a mesa e estendem a toalha branca da paz (shalôm) e do bem (tôb), com que franciscanamente se saúdam!

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo -Ano C – 20.11.2022 ( 2 Sam 5, 1-3)
  2. Leitura II – XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – Ano A – 20.11.2022 (Col 1, 12-20)
  3. Domingo XXXIV – Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – Ano C – 20.11.2022 – Lecionário
  4. Domingo XXXIV – Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo – Ano C – 20.11.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas
  6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXXIII do Tempo Comum – 13.11.2022 – VI Dia Mundial dos Pobres

 

12«Mas, antes de tudo, vão deitar-vos as mãos e perseguir-vos, entregando-vos às sinagogas e metendo-vos nas prisões; hão-de conduzir-vos perante reis e governadores, por causa do meu nome. 13Assim, tereis ocasião de dar testemunho. 14Gravai, pois, no vosso coração, que não vos deveis preocupar com a vossa defesa, 15porque Eu próprio vos darei palavras de sabedoria, a que não poderão resistir ou contradizer os vossos adversários. Lc 21, 12-15

Viver a Palavra

A mensagem escatológica deste Domingo é um apelo à esperança e à confiança, mas também um apelo à vigilância e à perseverança. Jesus, Mestre da ternura e da bondade, não nos quer alarmar, e, por isso, dirige-se a cada um de nós para não nos deixarmos tomar pelo medo e pela angústia diante de tantas catástrofes e perseguições que hão-de acompanhar a história.

Jesus convida-nos a lançar um olhar novo sobre as realidades presentes, quer sejam belas e preciosas como as ornamentações do Templo, quer sejam dramáticas e exigentes como as guerras e perseguições que hão-de acompanhar aqueles que aderem ao Seu projeto de amor.

Diante do olhar contemplativo daqueles que admiravam «as belas pedras e piedosas ofertas» do Templo, Jesus parece iniciar um discurso pessimista e catastrófico: «dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído». Contudo, bem diferente é a Sua intenção. Ele recorda-nos que as mais belas construções, tais como as maiores desgraças são passageiras, caducas e frágeis e convida-nos a fazer uma leitura nova do tempo e da história, desafiando-nos a tomar consciência que a par destas realidades efémeras, há algo que permanece como garante de eternidade: o amor que oferecemos e recebemos, o amor que é sinal da presença de Deus na vida de cada homem e de cada mulher.

Os anúncios catastróficos do fim do mundo não são novos e percorrem a história, sobretudo nas mudanças de milénio ou de século, onde as profecias do fim do mundo, próximo e iminente são recorrentes. Recordo, por exemplo, aquele episódio em que os discípulos de S. Agostinho se aproximaram dele lamentando a violência, as desgraças e as catástrofes e perguntavam: «estará a chegar o fim do mundo?» e S. Agostinho, cheio da esperança que brota do Evangelho, respondeu-lhes: «não é o mundo que está a acabar, mas um mundo novo que quer nascer».

Na verdade, é precisamente esta a mensagem que brota do Evangelho deste Domingo. Jesus, consciente da caducidade e fragilidade das nossas vidas e conhecendo a violência e a maldade que pode brotar das nossas ações, propõe a perseverança no amor como caminho a seguir para uma transformação do mundo em que vivemos.

Não percorremos sozinhos os trilhos da história e quando as dificuldades surgirem, quando as divisões acontecerem, quando formos traídos e desprezados até por aqueles que nos são mais próximos, haveremos de recordar que «nenhum cabelo da vossa cabeça se perderá», isto é, que há um Deus que cuida de nós até ao mais ínfimo pormenor.

Todavia, a caducidade e fragilidade da nossa existência não são um convite à quietude ou à ociosidade. Como nos recorda S. Paulo, é necessário o empenho e a dedicação para que trabalhando tranquilamente sejamos merecedores do pão que comemos e possamos ser construtores desse mundo novo que Deus quer fazer irromper no tempo e na história.

É efetivamente necessário o fim do mundo, mas o fim de um mundo marcado pelo ódio, pela vingança, pela inveja e pelo egoísmo, para nascer um mundo novo, marcado pelo amor, pelo perdão, pela partilha e pela misericórdia. Cada dia e cada momento que Deus coloca em nossas mãos são uma oportunidade para nos tornamos construtores audazes da nova civilização do amor, semeadores de esperança num tempo de desencanto e testemunhas da perseverança quando tudo parece efémero e passageiro.in Voz Portucalense                                                                          

 

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Neste Domingo XXXIII do Tempo Comum, assinala-se o VI Dia Mundial dos Pobres. Para este ano o Papa Francisco escreveu uma mensagem intitulada «Jesus Cristo fez-Se pobre por vós (cf. 2 Cor8, 9)». O Papa Francisco exorta os fiéis a fazer deste dia «uma sadia provocação para nos ajudar a refletir sobre o nosso estilo de vida e as inúmeras pobrezas da hora atual». Os diferentes grupos paroquiais que desenvolvem a sua ação junto dos mais pobres podem, neste dia, apresentar as suas atividades ou até sensibilizar a comunidade para colaborar nas suas iniciativas. Contudo, este dia deve ser oportunidade para recordar que a ação sócia caritativa é uma missão de toda a comunidade eclesial e não apenas de um grupo.

                                                                

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LEITURA I – Malaquias 3,19-20a

«Para vós que temeis o meu nome, nascerá o sol de justiça, trazendo nos seus raios a salvação».

 

Ambiente

O nome “Malaquias” não é um nome próprio. Significa “o meu mensageiro”; é o título tomado por um profeta anónimo, sobre o qual praticamente nada sabemos e que se apresenta como “mensageiro” de Deus.
É, de qualquer forma, um profeta do período pós-exílio. Na sua época, o Templo já havia sido reconstruído (cf. Mal 1,10) e o culto já funcionava – ainda que mal (cf. Mal 1,7-9.12-13) … No entanto, o entusiasmo pela reconstrução estava apagado; desanimado ao ver que as antigas promessas de Deus não se tinham cumprido, o Povo havia caído na apatia religiosa e na absoluta falta de confiança em Deus… Duvidava do amor de Deus, da sua justiça, do seu interesse por Judá. Todo este ceticismo tinha repercussões no culto (cada vez mais desleixado) e na ética (multiplicavam-se as falhas, as injustiças, as arbitrariedades). Este quadro, posterior à restauração do Templo, situa-nos na primeira metade do séc. V a.C. (entre 480 e 450 a.C.).

Este “mensageiro de Deus” reage vigorosamente contra a situação em que o Povo de Judá está a cair. Coloca cada um diante das suas responsabilidades para com Jahwéh e para com o próximo, exige a conversão do Povo e a reforma da vida cultual. A sua lógica é a lógica deuteronomista: se o Povo se obstinar em percorrer caminhos de infidelidade à Aliança, voltará a conhecer a morte e a infelicidade; mas se o Povo se voltar para Deus e cumprir os mandamentos, voltará a gozar da vida e da felicidade que Deus oferece àqueles que seguem os seus caminhos.

Uma nota de carácter prático: o texto que nos é hoje proposto aparece, nas edições mais recentes da Bíblia, numerado não como 4,1-2, mas como 3,19-20. in Dehonianos.

A reflexão pode partir dos seguintes dados:

Muitas vezes temos a sensação de que o nosso mundo caminha para o abismo e que nada o pode deter. Olhamos para o mapa dos conflitos bélicos e vemos pintados de sangue o presente e o futuro de tantos povos; olhamos para a natureza e vemo-la devorada pelos interesses das multinacionais da indústria; olhamos para as pessoas e vemo-las fechadas no seu cantinho, desinteressadas das grandes questões (fala-se, até, de uma “geração rasca” e de “crise de valores” para descrever o quadro de desinteresse, de descomprometimento, de ausência de grandes ideais) … A questão é: a esperança ainda faz sentido? Este mundo tem saída? Um profeta anónimo de há 2450 anos dá voz à esperança e garante-nos: Deus não nos abandonou; Ele vai intervir – Ele está sempre a intervir – no mundo…

É preciso ter consciência de que a intervenção libertadora de Deus não deve ser projetada apenas para o “último dia” do mundo… Ela acontece a cada instante; e nós devemos estar numa espera vigilante e ativa, a fim de sabermos reconhecer e acolher de braços abertos a intervenção salvadora e libertadora de Deus na nossa história e na nossa vida.

Muitas vezes esta profecia e outras semelhantes são usadas pelas seitas (e, às vezes, até por certos grupos que se dizem cristãos, mas que seguem o mesmo percurso das seitas) para incutir medo: “está a chegar o fim do mundo e quem, até lá, não ganhar juízo, irá sofrer castigos pavorosos e ser atirado para o inferno”… Interpretar estes textos desta forma é distorcer gravemente a Palavra de Deus: eles não pretendem amedrontar-nos, mas fortalecer a nossa esperança no Deus libertador e dar-nos a coragem necessária para enfrentar os dramas da vida e da história. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 97 (98)

Refrão: «O Senhor virá governar com justiça».

 

LEITURA II – 2 Tes 3,7-12

«Trabalhámos dia e noite, com esforço e fadiga, para não sermos pesados a nenhum de vós».

 

Ambiente

Continuamos a ler a Segunda Carta aos Tessalonicenses. O seu autor dirige-se – como já vimos nos domingos anteriores – a uma comunidade que vive com entusiasmo a sua fé e que dá um testemunho vigoroso e comprometido da sua adesão ao Evangelho de Jesus, mesmo no meio das dificuldades e das perseguições… No entanto, a partida precipitada de Paulo (que teve de deixar Tessalónica à pressa para fugir a uma cilada armada contra ele pelos judeus da cidade) não permitiu que a catequese ficasse completa e que certas questões de fé fossem suficientemente desenvolvidas e amadurecidas. Uma dessas questões – que inquietava grandemente os tessalonicenses – era a da segunda vinda do Senhor.

Nesta carta percebe-se, claramente, que alguns cristãos de Tessalónica, persuadidos de que a vinda do Senhor estava muito próxima, viviam “nas nuvens”, negligenciando os seus deveres de todos os dias (2 Tes 2,1-2). Agora, a única coisa que faz sentido – dizem eles – é ter os braços, os olhos e o coração voltados para o céu, esperando a vinda gloriosa do Senhor. Esta atitude compreende-se ainda melhor à luz da antropologia grega, segundo a qual o homem deve viver voltado para o mundo ideal e espiritual, fugindo o mais possível do terreno e material; o trabalho manual – de acordo com esta perspetiva – é degradante, sem valor algum para a construção da pessoa e deve ser evitado a todo o custo… É este o enquadramento da nossa leitura. in Dehonianos.

Considerar os seguintes pontos para reflexão:

Ao contrário do que dizem alguns “iluminados”, o cristianismo não fomenta a evasão deste mundo, nem pretende fazer alienados que vivam de olhos postos no céu e passem ao lado das lutas dos outros homens… Pelo contrário, o cristianismo vivido com verdade, seriedade e coerência potencia um empenhamento sincero na construção de um mundo mais justo e mais fraterno, todos os dias, vinte e quatro horas por dia. O “Reino de Deus” é uma realidade que atingirá o ponto culminante na vida futura; mas começa a construir-se aqui e agora e exige o esforço e o empenho de todos. A minha atitude é a de quem se comprometeu com o “Reino” e procura construí-lo em cada instante da sua existência?

Nas comunidades cristãs encontramos, com frequência, pessoas que falam muito e mandam muito, mas fazem muito pouco e, muitas vezes, ainda se aproveitam dos trabalhos dos outros para se enfeitar de louros… Também encontramos aqueles que são apenas “consumidores passivos” daquilo que a comunidade constrói, mas não se esforçam minimamente por colaborar. Qual é a minha atitude face a isto? Dou o meu contributo na construção da comunidade? Ponho a render os meus dons?

A Palavra interpela também as comunidades religiosas… A vida religiosa pode ser apenas uma vida cómoda (com cama, mesa e roupa lavada garantidas) para pessoas que gostam de viver instaladas, arrumadas, sem ambições… É preciso cuidado para não nos tornarmos parasitas da sociedade (e, muitas vezes, de pessoas que vivem muito pior do que nós e que ainda partilham connosco o pouco que têm): a nossa missão é tornarmo-nos “sinais” que anunciam o mundo novo e trabalhar para que esse mundo novo seja uma realidade. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 21,5-19

«Dias virão em que, de tudo o que estais a ver, não ficará pedra sobre pedra: tudo será destruído».

«Assim tereis ocasião de dar testemunho».

«Pela vossa perseverança salvareis as vossas almas».

 

Ambiente

Estamos em Jerusalém, nos últimos dias antes da paixão. Como acontece com os outros sinópticos (cf. Mt 24-25; Mc 13), também Lucas conclui a pregação de Jesus com um discurso escatológico onde se misturam referências à queda de Jerusalém e ao “fim dos tempos”. Na versão lucana, Jesus está nos átrios do Templo com os discípulos (na versão de Mateus e de Marcos, Jesus está no monte das Oliveiras); é a contemplação das belas pedras do Templo, que leva Jesus a esta catequese escatológica. in Dehonianos.

Considerar os seguintes desenvolvimentos:

O que parece, aqui, fundamental, não é o discurso sobre o “fim do mundo”, mas sim o discurso sobre o percurso que devemos percorrer, até chegarmos à plenitude da história humana… Trata-se de uma caminhada que não nos leva ao aniquilamento, à destruição absoluta, ao fracasso total, mas à vida nova, à vida plena; por isso, deve ser uma caminhada que devemos percorrer de cabeça levantada, cheios de alegria e de esperança.

É, sem dúvida, uma caminhada eivada de dificuldades, de lutas, onde o bem e o mal se confrontarão sem cessar; mas é um percurso onde o mundo novo irá surgindo – embora com avanços e recuos – e onde a semente do “Reino” irá germinando. Aos crentes pede-se que reconheçam os “sinais” do “Reino”, que se alegrem porque o “Reino” está presente e que se esforcem, todos os dias, por tornar possível essa nova realidade. A nossa vida não pode ser um ficar de braços cruzados a olhar para o céu, mas um compromisso sério e empenhado, de forma que floresça o mundo novo da justiça, do amor e da paz. Quais são os sinais de esperança que eu contemplo e que me fazem acreditar na chegada iminente do “Reino”? O que posso fazer, no dia a dia, para apressar a chegada do “Reino”?

Nessa caminhada, os crentes sabem que não estão sós, mas que Deus vai com eles… É essa presença constante e amorosa de Deus que lhes permitirá enfrentar as forças da morte, apostadas em evitar que o mundo novo apareça; é essa força de Deus que permitirá aos discípulos de Jesus vencer o desânimo, a adversidade, o medo.

Alguns sinais de desagregação do mundo velho, que todos os dias contemplamos, não devem assustar-nos: eles são, apenas, sinais de que estamos a nascer para algo novo e melhor. O perder certas referências pode assustar-nos e baralhar os nossos esquemas e certezas; mas todos sabemos que é impossível construir algo mais bonito, sem a destruição do que é velho e caduco. in Dehonianos

 

Para os leitores:

As leituras propostas para este Domingo são de fácil proclamação, contudo, não devemos descurar a preparação de modo a um exercício mais eficaz do ministério do leitor.

Na primeira leitura, deve ter-se em atenção a expressão «diz o Senhor do Universo» que se encontra entre travessões e uma vez que é indicação do autor da mensagem deve ser lido num tom diferente do resto do texto.

Na segunda leitura, é necessário ter em conta o tom exortativo do texto com o cuidado para que não se torne um tom acusatório. Além disso, recomenda-se uma cuidada preparação das pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

É O AMOR O QUE FICA DO QUE PASSA

Eis-nos aqui, neste caminho e neste hoje. Passamos, vemos e somos vistos. Entramos no Templo ou na Igreja da nossa terra, cheia de belas pedras, painéis, lustres, imagens, talhas douradas, toalhas de linho, música e flores. Também de gente bem vestida e perfumada.

Cá fora, lá fora, as guerras continuam, como continuam as catástrofes, as crises, as riquezas, as pobrezas, os impérios, os imperadores e as tiranias, os turistas que tiram fotografias, filmam pedras que julgam interessantes, a canalha, os pardais, os pares de namorados, os velhinhos sentados na soleira da sua porta, os vendedores fanáticos de qualquer seita, que tão depressa vaticinam desastres, como fabricam e vendem mezinhas e remédios, sonhos e futuros fáceis, enlatados, prefabricados, à medida, prontos a vestir ou a viver, mas também continuam as falências, as insolvências, as dores, as doenças, as desavenças, os desentendimentos familiares.

Dentro do Templo, e não fora dele, à saída, como narram os Evangelhos de Mateus e Marcos, o Jesus de Lucas 21,5-19, que temos a graça de ouvir neste Domingo XXXIII do Tempo Comum, faz ver e compreender aos seus discípulos de ontem e de hoje como tudo é passageiro e efémero, «tão cedo passa tudo quanto passa»! Passam as belas pedras e as flores, os perfumes, os impérios, as palavras, as guerras, as tragédias!

Nós fazemos quase sempre perguntas superficiais e epidérmicas, sem sentido: «Quando, e como se poderá saber quando será o fim destas coisas, deste mundo, deste tempo?!». É evidente que Jesus não nos responde diretamente, mas adverte-nos: «Não vos deixeis enganar, nem perturbar!». E aproveita a embalagem para orientar o nosso olhar e o nosso coração para o essencial: o fim não deve desviar-nos e distrair-nos do Presente, da Presença, d’Aquele que não passa, e em Quem devemos sempre saber pôr o coração, biblicamente falando, pôr a nossa atenção.

É esta Presença, esta Voz, que Hoje nos chama e diz que nos ama, que deve reclamar toda a nossa atenção, o nosso inteiro coração. Portanto, silêncio em nós. Pausa e bemol. Tempo novo de deixar falar o Espírito (Lucas 12,12) e Jesus (Lucas 21,15). Não há lugar para atitudes de autodefesa («não prepareis a vossa defesa»), mas para «o testemunho».

No Templo ardia o fogo perpétuo no altar do incenso, cuidado e renovado duas vezes ao dia, nove da manhã e três da tarde, pelo sacerdote de turno. Esse fogo era o sinal desta Presença amante e interpelante. Nas nossas Igrejas arde permanentemente aquela frágil lamparina, luzinha acesa junto do Sacrário, que assinala esta Presença, este Presente. Não nos deixemos distrair ou perturbar com o acidental. Velemos por esta Presença essencial, que vela por nós sempre. Afinal, é «Na tua Luz que veremos a Luz» (Salmo 36,10).

Esta Luz pequenina, vou deixá-la brilhar! Está acesa no mundo para alumiar e aquecer a nossa vida, purificar o nosso coração esclerosado, empedernido, atulhado de impurezas e asperezas, e sinalizar rumos novos, tenros, ternos, verdadeiros. Cuidado convosco! Não suceda que essa luzinha, essa chamazinha que arde mansamente, se transforme num fogo ardente, incontrolável, que queima a vossa palha (Malaquias 3,19). Diz-nos Malaquias, na lição de hoje (3,19-20), que o fogo tanto pode queimar como alumiar. O problema não está no fogo. Está na palha. Deixai-vos então alumiar, e limpai já o vosso coração de toda a tralha que possa fazer com que aquela luzinha, aquela chamazinha, em vez de alumiar, se venha a transformar num fogo inextinguível. Bem nos exorta São Paulo: «Veja cada um como constrói: com ouro, prata, pedras preciosas, madeira, feno ou palha. A obra de cada um será posta em evidência. O Dia que há de vir torná-la-á conhecida, pois ele manifestar-se-á pelo fogo, e o fogo provará o que vale a obra de cada um» (cf. 1 Coríntios 3,10-13).

Trabalhai com diligência e amor. Semeai o vosso trigo, tratai-o com carinho, limpai-o da palha que o possa afogar, regai-o, colhei-o com alegria, moei-o, amassai a farinha com as vossas mãos limpas e carinhosas, acendei o forno com cuidado, cozei o vosso pão, parti-o e comei-o à vossa mesa, com uma vela acesa! Chamai o pobre, fazei-o entrar e sentar, alumiai-o e alimentai-o. Agasalhai-o. É a lição de São Paulo na Segunda Carta aos Tessalonicenses 3,7-12. Mesmo a propósito: passa hoje o Dia Mundial dos Pobres.

Sim, meus irmãos, o fio de ouro, a filigrana, que atravessa a história, é o amor. É o que fica do que passa. É, portanto, o amor que julga, isto é, que põe em crise, a nossa história e a nossa vida vã e banal. O fim do mundo é o amor que ama. O fim de um mundo. O fim do meu mundo egoísta, egocêntrico e egolátrico, assente apenas nos meus instintos e interesses. Quero dizer: aquilo que põe fim a este meu mundo vão e banal é o amor que ama, e, porque ama, é pessoal, é uma pessoa, é Deus que vem, amando, e me faz ver, amando-me, como eu tenho andado distraído e enganado, que nem tenho reparado no seu amor!

Cantai, pois, um cântico novo, que tenha a idade e a fidelidade do amor, ao Deus que vem para julgar amando, e renovar, sempre amando e acariciando, a terra do nosso coração. E levantar-se-á então, desde o santuário do nosso emocionado coração, o hino coral e universal, que é o belo Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas. Cantai, pois, um cântico novo, que tenha a idade e a fidelidade do amor, ao Deus que vem para julgar, amando, e renovar, sempre amando e acariciando, a terra, às vezes dura, do nosso coração.

No meio da bruma e da esperança

Que envolve os passos de tanta gente

Nestes dias toldados de novembro,

Há sempre uma mãozinha que se sente,

Uma luzinha que se acende,

Nos alumia, nos acolhe e nos atende.

Guia-me sempre, Luz amável,

No meio do nevoeiro que me envolve:

Sê Tu a guiar-me no caminho!

A noite é escura,

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A casa é distante:

Sê Tu a guiar-me no caminho!

Guarda Tu os meus passos!

Eu não peço para ver o horizonte distante:

Um passo de cada vez

É para mim o bastante!

Obrigado, Senhor Jesus!

Tu és a Luz que me alumia

A cada instante!

Alumia também

Cada viandante,

Que na penumbra dos dias,

Tenha perdido a fé ou o volante.

António Couto

 

ANEXOS:

      1. Leitura I – Domingo XXXIII TC – Ano C – 13.11.2022 (Mal 3, 19-20a)
      2. Leitura II – Domingo XXXIII – Ano C – 13.11.2022 (2 Tes 3, 7-12)
      3. Domingo XXXIII DTC – Ano C – 13.11.2022 – Dia Mundial dos Pobres-Lecionário
      4. Domingo XXXIII DTC – Ano C – 13.11.2022 – Dia Mundial dos Pobres – Oração Universal
      5. ANO C – Ano de Lucas
      6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos
      7. Mensagem do Papa Francisco para o VI Dia Mundial dos Pobres – XXXIII DTC – 13.11.2022

Domingo XXXII do Tempo Comum – Ano C – 06.11.2022

 

34Jesus respondeu-lhes: «Nesta vida, os homens e as mulheres casam-se; 35mas aqueles que forem julgados dignos da vida futura e da ressurreição dos mortos não se casam, sejam homens ou mulheres…

…. 38Ora, Deus não é Deus de mortos, mas de vivos; pois, para Ele, todos estão vivos.» Lc 20, 35-36. 38

Viver a Palavra

Contemplando o transcorrer do tempo, nas folhas caídas das árvores e na paisagem outonal que nos envolve, em pleno mês de novembro, onde a piedade popular nos convida a recordar os nossos familiares e amigos que já partiram, celebramos o XXXII Domingo do Tempo Comum, que entre olhares e sentimentos mais nostálgicos, nos desafia a fazer irromper a certeza da vida que tem de ecoar no coração da humanidade.

No mais íntimo do coração de cada homem e de cada mulher reside o desejo de uma vida em plenitude, uma vida cheia de sentido e prenhe de um horizonte de realização e felicidade. Muitas vezes, este desejo confunde-se com a ânsia imoderada de prolongar indefinidamente a vida sobre a terra e de nos imortalizarmos com fórmulas estéticas de perene juventude. Todavia, Jesus quer levar-nos mais longe e conduzir-nos ao cerne da vida verdadeira que só o Deus do Amor e da Vida nos pode oferecer. Na verdade, a nossa fé na ressurreição não é fruto da necessidade de existirmos para além da morte, mas a certeza daquilo que Deus é: «vida em abundância». A nossa fé na ressurreição brota precisamente da descoberta de um Deus que gera vida, que cria e recria a partir do amor e, por isso, «não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos».

A narrativa do Segundo Livro dos Macabeus é testemunho da heroicidade e a fé no Deus vivo daqueles sete irmãos presos juntamente com sua mãe. Nem a «força de golpes de azorrague e de nervos de boi» foram suficientes para os demover da sua inabalável certeza: «o Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis».

Esta certeza da vida que brota de Deus é levada à plenitude em Jesus Cristo, Aquele que se levantou vitorioso do túmulo na manhã de Páscoa. Diante dos saduceus, que interpelam Jesus com aquele episódio quase anedótico da mulher que desposa os sete irmãos, Ele é objetivo e preciso: a vida eterna, a vida plena e cheia de sentido, não é apenas um decalcar da nossa vida sobre a terra, não é uma mera revivificação ou uma reanimação, é a RESSURREIÇÃO, que é o mesmo que dizer uma vida absolutamente nova inserida num horizonte de realização e felicidade que transcende os nossos conceitos e esquemas para nos colocar diante do Deus que é absoluta novidade e imenso mistério de vida e amor.

A história contada pelos saduceus é a história de uma paternidade sete vezes falhada, de vida não transmitida que, por oito vezes, desemboca na morte. Por seu lado, a história que Jesus conta é a história da vida verdadeira de Deus, vida transmitida e oferecida em abundância, dada pelo Deus vivo e Deus dos vivos, Paternidade não falhada, mas concretizada no tempo e na história pela força do Espírito Santo, Senhor que dá a vida.

Negar a ressurreição é negar a vida e equivale a negar a própria existência de Deus: «se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa pregação e vã é também a vossa fé» (1 Cor 15,14). Se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos não é pelo facto de terem desposado mulheres e gerado filhos, mas porque são filhos do mesmo Deus, herdeiros da vida de Deus, participantes deste novo dinamismo de vida e amor onde «nem se casam nem se dão em casamento», mas «são como os Anjos, e, porque nasceram da ressurreição, são filhos de Deus». in Voz Portucalense                                                                          

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De 30 de Outubro a 6 de novembro decorre em Portugal a Semana dos Seminários com o tema «Não te envergonhes de dar testemunho de Cristo» (2 Tim 1,8).

A Comissão Episcopal Vocações e Ministérios já disponibilizou online os vários subsídios de apoio para esta semana (http://www.ecclesia.pt/cevm/): a mensagem para esta semana, uma pagela de oração, cartaz, duas catequese, admonições e preces para a liturgia e uma proposta para reflexão pessoal ou grupo sinodal. Cada comunidade paroquial é chamada a dinamizar de diferentes formas e nos mais diversos momentos comunitários esta importante dimensão da ação pastoral da Igreja, sublinhando-se as atividades de dinamização vocacional junto dos jovens e os momentos de oração comunitários pelas vocações e pelos seminários

                                                               

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LEITURA I – 2 Mac 7, 1-2.9-14

«O Rei do universo ressuscitar-nos-á para a vida eterna, se morrermos fiéis às suas leis».

 

Ambiente

Em 323 a.C., Alexandre, o Grande, morreu e o império foi dividido pelos seus generais (“diadocos”). A Palestina (desde 333 a.C., integrada no império de Alexandre) ficou, inicialmente, nas mãos dos Ptolomeus (que dominavam ainda o Egipto e a Fenícia). No entanto, a partir do ano 200 (batalha das “fontes do Jordão”), a Palestina passou para as mãos dos Selêucidas (outra família de generais de Alexandre, que já dominava a Síria e a Mesopotâmia).

Os Ptolomeus tiveram uma atitude relativamente tolerante para com o judaísmo e respeitaram, no geral, as tradições e a fé do Povo de Deus; mas, sob a autoridade dos Selêucidas, sobreveio uma fase em que a cultura helénica se tornou mais agressiva, ameaçando pôr em causa a sobrevivência do judaísmo. Foi, sobretudo, no reinado de Antíoco IV Epifanes (175-164 a.C.) que o helenismo foi imposto – inclusive pela força – ao Povo de Deus. Muitos judeus – apostados em manter vivas as suas tradições – foram perseguidos e mortos.

O texto que nos é proposto coloca-nos neste ambiente. Conta-nos o martírio de uma mãe e dos seus sete filhos, que se recusaram a violar a fé e as tradições judaicas e foram mortos por isso. Trata-se, provavelmente, de uma tradição popular (embora com um substrato histórico), transmitida oralmente durante algum tempo, antes de ser integrada no segundo livro dos Macabeus. O autor não dá qualquer indicação acerca do lugar do martírio, nem do nome dos sete irmãos. in Dehonianos.

Refletir a partir das seguintes linhas:

Como é que termina a nossa vida? Os sonhos que procuramos concretizar, as nossas realizações mais queridas, que é que valem se nos espera um dia, inevitavelmente, a morte? Estamos condenados a deixar e a perder tudo aquilo que amamos? A nossa morte é uma viagem fatal em direção ao nada? Estas perguntas são eternas; e, há cerca de 2100 anos, um catequista de Israel já as colocava… A sua fé ditou-lhe, no entanto, a certeza de que a vida continua para além desta terra. É essa certeza que ele nos deixa, neste texto; e é essa experiência de fé que ele nos convida a fazer.

Quem acredita na ressurreição não pode deixar-se paralisar pelo medo (muitas vezes é o medo que limita a nossa existência e nos impede de defender os valores em que acreditamos) … Pode comprometer-se na luta pela justiça e pela verdade, na certeza de que as forças da morte não o podem vencer ou destruir. É essa certeza que animou o testemunho de tantos mártires de ontem e de hoje…. É essa certeza que anima a minha luta e que dá força ao meu compromisso?

É, sem dúvida, inspiradora a “teimosia” com que estes irmãos defendem os valores em que acreditam. Num mundo em que o que é verdade de manhã, deixou de ser verdade à tarde, em que o partido dos oportunistas tem cada vez mais simpatizantes e em que todos os meios são legítimos para alcançar certos fins, o testemunho destes mártires é uma poderosa interpelação…. Somos capazes de defender, com verdade e verticalidade aquilo em que acreditamos? Somos capazes de lutar, ainda que contra a corrente, pelos valores que nos parecem mais significativos e duradouros? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 16 (17)

Refrão: «Senhor, ficarei saciado, quando surgir a vossa glória».

 

LEITURA II – 2 Tes 2, 16 – 3, 5

«O Senhor dirija os vossos corações, para que amem a Deus e aguardem a Cristo com perseverança».

 

Ambiente

Já vimos no passado domingo que a Segunda Carta aos Tessalonicenses (que alguns admitem não ser de Paulo) nos coloca frente a uma comunidade cristã fervorosa, que vive com empenho e generosidade o seu compromisso cristão apesar das provações, constituindo mesmo um modelo para as comunidades vizinhas (cf. 1 Tes 1,7-8); no entanto, a comunidade a que esta carta se destina é, também, uma comunidade com algumas dúvidas e inquietações em questões de doutrina – nomeadamente no que diz respeito ao “dia do Senhor” (isto é, à segunda vinda de Jesus). De resto, Paulo aproveita a ocasião para corrigir comportamentos, fazer alguns pedidos e exortar a uma fidelidade cada vez maior ao Evangelho de Jesus. in Dehonianos.

A reflexão da Palavra pode fazer-se a partir dos seguintes elementos:

Este texto obriga-me a tomar consciência de que é com a ajuda de Deus que o crente consegue viver na fidelidade ao Evangelho, enquanto espera a vinda do Senhor. Tenho consciência de que é d’Ele que brota a minha fidelidade ao Evangelho, ou considero que as minhas vitórias e conquistas, neste campo, se devem apenas a mim, aos meus méritos e qualidades?

É com a ajuda de Deus que o missionário tem a coragem de anunciar fielmente o Evangelho e de vencer as dificuldades, as injustiças, as incompreensões, as oposições que são obstáculo ao seu trabalho e ao seu testemunho. Tenho consciência de que é na oração – minha e dos meus irmãos – que encontro a força de Deus? Quando, como apóstolo, tenho de enfrentar a oposição e a incompreensão do mundo, confio em Deus, peço-Lhe ajuda, ou deixo que o medo e o desânimo tomem conta do meu coração e me levem a desistir da missão que Deus me confiou?

O pedido de rezar “uns pelos outros” convida-nos a tomar consciência da solidariedade que deve marcar a experiência comunitária. O cristão nunca é uma pessoa isolada, mas o membro de uma família de irmãos, chamados a viver no amor, na partilha, na entrega da vida, como membros de um único corpo – o corpo de Cristo. É preciso tomar consciência dos laços que nos unem, sentirmo-nos responsáveis pelos nossos irmãos, partilhar as suas dores e alegrias, fazer nossos os seus problemas e, no nosso diálogo com Deus, ter presente as necessidades de todos. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 20, 27-38

«Aproximaram-se de Jesus alguns saduceus que negam a ressurreição».

«Que os mortos ressuscitam, até Moisés o deu a entender no episódio da sarça ardente».

«Não é um Deus de mortos, mas de vivos, porque para Ele todos estão vivos».

 

Ambiente

Este texto situa-nos já em Jerusalém, nos últimos dias antes da morte de Jesus. É a altura das grandes controvérsias com os líderes judaicos (essas controvérsias representam, para Lucas, a última oportunidade que Deus dá ao seu Povo, no sentido de acolher a salvação). Discussão após discussão, torna-se claro que os líderes judaicos rejeitam a proposta de Jesus: prepara-se, assim, o quadro da paixão e da morte na cruz.
Os adversários de Jesus são, no contexto em que o Evangelho deste domingo nos coloca, os saduceus. No tempo de Jesus, os saduceus formavam um grupo aristocrático, recrutado sobretudo entre os sacerdotes da classe superior. Exerciam a sua autoridade à volta do Templo e dominavam o Sinédrio (no entanto, a sua autoridade nessa instituição não era absoluta desde que os fariseus aí haviam chegado). A sua importância política era real, ainda que muito limitada pela presença do procurador romano. Politicamente, eram conservadores e entendiam-se bem com o opressor romano…. Pretendiam manter a situação, para não ver comprometidos os benefícios políticos, sociais e económicos de que desfrutavam.

Para os saduceus, apenas interessava a Lei escrita – a “Torah”. Negavam que a Lei oral (que era essencial para os fariseus) tivesse qualquer valor. Este apego conservador à Lei escrita explica que negassem algumas crenças e doutrinas admitidas nos ambientes populares frequentados pelos fariseus. Por isso, não aceitavam a ressurreição dos mortos: nenhum versículo da “Torah” apoiava essa crença.

No seu conflito com os fariseus, estava em jogo uma certa visão da sociedade e do poder. Os fariseus não viam com agrado a “democratização” da Lei promovida pelos fariseus e pelos seus escribas. Esta “democratização” apresentava o inconveniente de fazer os sacerdotes perder a sua autoridade como intérpretes da Lei. Diante do povo, os saduceus mostravam-se distantes, severos, intocáveis. in Dehonianos.

 

A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes elementos:

A questão da ressurreição não é uma questão pacífica e clara para a maioria dos homens do nosso tempo. Há quem veja na esperança da ressurreição apenas um “ópio do povo”, destinado a adormecer a justa vontade de lutar pela construção de um mundo mais justo; há quem veja na ressurreição uma forma de evasão, face aos problemas que a vida apresenta; há quem veja na ressurreição uma ilusão onde o homem projeta os seus desejos insatisfeitos… Convencidos de que a vida se resume aos 70/80 anos que vivemos neste mundo, muitos dos nossos contemporâneos constroem a sua existência tendo apenas em conta os valores deste mundo, sem quaisquer horizontes futuros. Que sentido é que isto faz, na perspetiva da nossa fé?

A ressurreição é, no entanto, a esperança que dá sentido a toda a caminhada do cristão. A fé cristã torna a esperança da ressurreição uma certeza, pois Cristo ressuscitou e quem se identifica com Cristo nascerá com Ele para a vida nova e definitiva. A nossa vida presente deve ser, pois, uma caminhada tranquila, confiante, alegre – ainda quando feita no sofrimento e na dor – em direção a essa nova realidade.

A ressurreição não é a revivificação dos nossos corpos e a continuação da vida que vivemos neste mundo; mas é a passagem para uma vida nova onde, sem deixarmos de ser nós próprios, seremos totalmente outros… É a plenitudização de todas as nossas capacidades, a meta final do nosso crescimento, a realização da utopia da vida plena. Sendo assim, há alguma razão para temermos a morte ou para vermos nela algo que nos priva de alguma coisa importante (nomeadamente a relação com aqueles que amamos)?

A certeza da ressurreição não deve ser, apenas, uma realidade que esperamos; mas deve ser uma realidade que influencia, desde já, a nossa existência terrena. É o horizonte da ressurreição que deve influenciar as nossas opções, os nossos valores, as nossas atitudes; é a certeza da ressurreição que nos dá a coragem de enfrentar as forças da morte que dominam o mundo, de forma que o novo céu e a nova terra que nos esperam comecem a desenhar-se desde já.

Temos de ter muito cuidado com a forma como falamos da ressurreição aos homens do nosso tempo, pois podemos pensá-la, explicá-la e projetá-la à luz da nossa vida atual e corremos sérios riscos de nos tornarmos ridículos. O que podemos fazer é afirmar a nossa certeza na ressurreição; depois, temos de confessar a nossa incapacidade de conceber e de explicar esse mundo novo que nos espera (como a criança no seio da mãe não compreende nem sabe explicar a vida que a espera no mundo exterior). in Dehonianos

 

Para os leitores:

Na primeira leitura é necessário ter em atenção a pronunciação das palavras «azorrague» (azorrágue) e «ressuscitar-nos-á». Além disso pede-se especial cuidado para as frases mais longas, as frases interrogativas e a convicção presente no discurso direto de cada um dos irmãos.

A segunda leitura é um texto aparentemente fácil, mas que exige uma apurada preparação nas pausas e na articulação das diversas frases e orações. Chama-se a atenção para a palavra «perseverança» que frequentemente é mal pronunciada, pois o “s” deve ler-se como “s” e não “z”.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

VAI COM DEUS

Tendo atravessado Jericó e também o coração de Zaqueu, como vimos no Domingo passado (Lucas 19,1-10), Jesus sobe para Jerusalém, «chora sobre ela» (Lucas 19,41), entra no Templo (Lucas 19,45), e nele começa a ensinar o povo demoradamente (Lucas 20,1), última etapa do seu ministério público. É a ensinar no Templo que os saduceus o encontram e pretendem «tramá-lo» avançando com a estranhíssima história da mulher casada sucessivamente com sete irmãos, porque um a um iam morrendo sem deixar descendência, quadro evangélico posto diante dos nossos olhos neste Domingo XXXII do Tempo Comum (Lucas 20,27-38). Esta estranha história assenta na chamada «Lei do levirato» [do latim levir = cunhado], que manda que, se a uma mulher casada morrer o marido sem deixar descendência, o irmão do marido deve desposar a mulher para dar uma descendência ao seu irmão (ver Deuteronómio 25,5-10). O tema da mulher que, por este processo, desposa sete maridos era também um lugar-comum no folclore judaico, como se pode ver em Tobias 6,14.

Os saduceus, descendentes do sumo-sacerdote Sadoq, constituíam a alta burguesia sacerdotal e liberal de Jerusalém. A religiosidade conservadora que defendiam assentava apenas na Tôrah de Moisés escrita, constituída pelos Livros do Génesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronómio. Não reconheciam autoridade a nenhuma tradição oral, ao contrário dos fariseus. Também ao contrário dos fariseus, os saduceus não acreditavam na ressurreição. E é este ponto preciso que pretendem atacar e pôr a ridículo, quando contam a Jesus a história da mulher e dos seus sete maridos, para no final lhe deixarem a pergunta sarcástica: «Na ressurreição, de qual dos sete será esposa, uma vez que, nesta vida, os sete a tiveram por mulher?» (Lucas 20,33). Claro que a pergunta visa desacreditar e pôr a ridículo a mentalidade popular, cultivada por algumas correntes farisaicas, que passava da ressurreição uma imagem demasiado materialista, segundo a qual os defuntos ressuscitariam tal como foram sepultados, com o mesmo aspeto, com as mesmas roupas e com as mesmas enfermidades. Assim, cegos, surdos, mudos, coxos ressuscitariam igualmente cegos, surdos, mudos, coxos, para que pudessem ser reconhecidos, e apenas mais tarde seriam curados.

A resposta de Jesus é original no método e nos conteúdos. Claro que afirma a ressurreição. Opera, porém, uma clara distinção entre «este mundo» e o «mundo que há de vir», mostrando que este não é um decalque do primeiro, e mostrando também a nossa inaptidão e inabilidade para passar de um mundo para o outro. Este «outro» não é, na verdade, regido por nós, seja qual for a nossa maneira de pensar. É regido por Deus, de quem somos «filhos» (Lucas 20,36), isto é, recebedores de vida. Belíssima janela aberta para a grande teologia da divinização por graça. Na sua resposta, Jesus não cita nenhum texto bíblico que fale explicitamente de ressurreição, evitando assim as infindáveis discussões académicas. De forma surpreendente e inesperada, cita Êxodo 3,6, em que Deus se revela a Moisés como «Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob» (Lucas 20,37).

Com este procedimento, Jesus vai diretamente ao coração das Escrituras, à Revelação do Deus vivo. A história contada pelos saduceus era a história de uma paternidade sete vezes falhada, de vida não transmitida que, por oito vezes, desemboca na morte. A história que Jesus conta é a história da vida verdadeira de Deus, vida transmitida, dada pelo Deus vivo, e Deus dos vivos, Paternidade não falhada, mas realizada. A ressurreição, como a mostra Jesus, não é a reanimação de um cadáver ou um simples prolongamento desta vida. Os «filhos da ressurreição» e «filhos de Deus» são aqueles que põem toda a sua esperança em Deus, o único verdadeiro vivente. Os que vivem como «filhos do Deus vivente» recebem de Deus a vida que não morre. A não ser assim, terá que se dizer que Deus não é o Deus da vida, o que até para os saduceus seria um absurdo.

Portanto, negar a ressurreição é negar a vida, e equivale a negar a própria existência de Deus. Se Abraão, Isaac e Jacob estão vivos, não é pelo facto de terem desposado mulheres e gerado filhos, mas pelo facto de serem eles mesmos «filhos» de Deus, para sempre recebedores da vida de Deus. Na ressurreição, isto é, na ordem nova da vida de Deus, o marido, a mulher e os filhos gerados não são identificados pela sua relação esponsal, paternal, maternal ou filial, mas apenas pela sua relação de filiação divina (hyiothesía) (cf. Romanos 8,15-16; Gálatas 4,5), a única verdadeira relação originária e que não pode ser abolida, a mesma que define e identifica os anjos.

Vida em plenitude, apenas dada e recebida da única fonte da vida, nunca falhada, nunca terminada, vida sem ocaso. Vida grande e bela, musical, angélica música da água a jorrar da fonte divina inesgotável. «Deus de Abraão, Deus de Isaac e Deus de Jacob, não de mortos, mas de vivos». Com o estupendo testemunho do filósofo francês Blaise Pascal que, desde 1654 até à sua morte, ocorrida em 1662, trazia, cosido no forro do seu manto (na verdade, cosia e descosia, consoante mudava de roupa), um pergaminho escrito, que começava com a parte final do Evangelho de hoje: «Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacob./ Não dos filósofos e sábios./ Certeza, Certeza. Sentimento, Alegria, Paz,/ Deus de Jesus Cristo./ Deum meum et Deum vestrum (João 20,17)./ O teu Deus será o meu Deus./ Esquecimento do mundo e de tudo, exceto Deus./ Ele não se encontra senão pelos caminhos ensinados no Evangelho…». Este pessoalíssimo testemunho constitui o chamado Mémoriale de Pascal, escrito em 1654, segunda-feira, 23 de novembro, entre as dez e meia da noite e a meia-noite e meia. Após a sua morte, um criado encontrou o pergaminho com os dizeres mencionados cosido no forro do seu manto.

No ano 167 a.C., o selêucida Antíoco IV Epifânio desencadeou uma violenta perseguição antijudaica, cujos ecos se podem ver, por exemplo, no Segundo Livro dos Macabeus, Capítulos 6 e 7, um extraordinário díptico que mostra no Capítulo 6 a fidelidade heroica do velho Eleazar, e no Capítulo 7 a mesma atitude por parte dos sete jovens irmãos Macabeus. É este segundo episódio (2 Macabeus 7,1-2.9-14) que hoje escutamos e que faz eco ao Evangelho. A narrativa está cheia de heroicidade e de fé no Deus vivo. Estes sete jovens e a sua mãe afirmam aqui, de forma clara, a Ressurreição, aludida em muitas outras passagens do Antigo Testamento. Mas vale sempre a pena recuperar o quadro de Eleazar, um ancião de 90 anos, que também afirma e defende corajosamente a sua fé perante os perseguidores pagãos. Os dois quadros, do velho ancião e dos sete jovens e sua mãe, formam um belíssimo díptico que devemos colocar em lugar bem visível para os olhos do nosso coração, como se fosse, e é, um quadro de família. A tinta dos quadros ou das narrativas do Livro dos Macabeus, citando nomes e acontecimentos verdadeiros, é também de teor edificante. O Livro de Daniel, escrito provavelmente no Outono do ano 164 a.C., lê os mesmos acontecimentos também com o objetivo de encorajar os judeus piedosos a permanecerem firmes na sua fé durante a perseguição do tirano Antíoco IV Epifânio. No dizer deste Livro (12,1-3), pessoas como Eleazar ou os sete jovens irmãos Macabeus e sua mãe são os mestres sábios (maskkilîm) e justificadores (matsddîqîm), isto é, dadores de vida: ensinam, não teorias, mas a vida verdadeira, dando a sua vida por amor: é assim que vencem os violentos, não se opondo a eles, mas amando, isto é, dando a vida e dando vida, ensinando a viver. Estes novos sábios e justificadores são, diz o Livro de Daniel, as novas estrelas que brilham para sempre! Todas as outras (do cinema, da canção, do futebol) são cadentes e decadentes.

Belo podermos ver hoje Paulo a rezar (2 Tessalonicenses 2,16-3,5), juntando, com um verbo no singular, «Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu consolação eterna e esperança boa na graça, console os vossos corações» (vv. 16-17). A oração de Paulo é de intercessão a favor dos Tessalonicenses. Depois pede aos Tessalonicenses que rezem por ele, para que a palavra do Senhor corra pelo mundo inteiro e seja por todos acolhida e suavize todos os corações.

O Salmo 17 está em perfeita harmonia com a liturgia que hoje celebramos. Levanta-se um justo perseguido e apresenta a Deus o seu atestado de inocência (vv. 1-5). Desde o coração (pensamento), passando pela boca (palavra), continuando pelos pés (caminhos, passos), o orante expõe-se todo diante de Deus, para que Ele possa verificar a retidão da sua vida. A um cristão que reza atentamente o Salmo, pode esta confissão parecer um pouco farisaica, mas pretende tão só afirmar a adesão a Deus e ao bem por parte do orante. A segunda parte (vv. 6-15) é uma súplica vigorosa e apaixonada em que o orante perseguido pede a Deus que, do armazém da sua ira, tire a espada da vingança e abata os seus inimigos, cujo coração, boca e olhos estão cheios de maldade e violência. Mas vai mais longe o orante na sua súplica intensa, e pede que Deus espalhe o terror e faça beber a taça da sua ira também aos filhos dos seus adversários e aos filhos dos seus filhos. E, assim como pede que sejam saciados de fel os seus inimigos, pede também que ele próprio seja saciado de doçura (v. 15). Também este intenso e alargado pedido de vingança pode soar mal a ouvidos cristãos. Trata-se, porém, do realismo bíblico da oração. O orante sente o que sente, e diz a sua amargura a Deus, rezando. Rezando, desinstala da sua alma aqueles sentimentos, e entrega-os a Deus. E é óbvio que Deus não pensa, diz e age como nós: «Na verdade, os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, e os vossos caminhos não são os meus caminhos» (Isaías 55,9).

  António Couto

ANEXOS:

      1. Leitura I – Todos os Santos – Ano C – 01.11.2022 ( Ap 7, 2-4.9-14)
      2. Resto Leitura I e Leitura II – Todos os Santos – 01.11.2022 (1 Jo 3, 1-3)
      3. Todos os Santos – 01.11.2022 – Lecionário
      4. Todos os Santos – 01.11.2022 – Oração Universal
      5. Leitura I – XXXII DTC – Ano C – 06.11.2022 (2 Mac 7, 1-2.9-14)
      6. Leitura II – XXXII DTC – Ano C – 06.11.20232 (2Tes 2, 16-3,5)
      7. Domingo XXXII Tempo Comum – Ano C – 06.11.2022 – Lecionário
      8. Domingo XXXII Tempo Comum – Ano C – 06.11.2022 – Oração Universal
      9. ANO C – Ano de Lucas
      10. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXXI do Tempo Comum – Ano C – 30.10.2022

 

5Quando chegou àquele local, Jesus levantou os olhos e disse-lhe: «Zaqueu, desce depressa, pois hoje tenho de ficar em tua casa.» 6Ele desceu imediatamente e acolheu Jesus, cheio de alegria. Lc 19, 5-6

Viver a Palavra

Jesus continua a sua longa viagem até Jerusalém e pelo caminho entra em Jericó e atravessa toda cidade. O nosso Deus não é um anónimo ou desconhecido que vive lá longe no pico de uma nuvem e que, tendo criado tudo o que existe, nos abandonou à nossa sorte. O nosso Deus caminha connosco, vem ao nosso encontro, cuida da obra das Suas mãos como afirma o Livro da Sabedoria «vós amais tudo o que existe e não odiais nada do que fizestes; porque, se odiásseis alguma coisa, não a teríeis criado».

Somos pequenos e frágeis diante da grandeza de Deus para quem «o mundo inteiro é como um grão de areia na balança, como a gota de orvalho que de manhã cai sobre a terra». Contudo, a grandeza de Deus reside precisamente no seu modo de amar infinitamente e de perdoar surpreendentemente, mesmo quando a nossa fragilidade e pecado parecem ser irremediáveis e colocar-nos num beco sem saída.

Deste modo, não obstante a nossa fragilidade e o nosso pecado, ou melhor, sobretudo por causa da nossa fragilidade e do nosso pecado, em Jesus Cristo, Deus continua a atravessar as nossas vilas e cidades e não cessa de cruzar os nossos caminhos, porque o médico vem para os doentes e Ele vem com um coração cheio de ternura e amor para abraçar, salvar e redimir todos os pecadores.

O Evangelho narra o grande encontro de Deus com a humanidade, mas este grande encontro concretiza-se no encontro único e pessoal que Jesus estabelece com aqueles que encontra no caminho. O texto do Evangelho que escutamos este Domingo apresenta-nos Zaqueu, homem de pequena estatura, que impedido pela multidão de ver Jesus, «correu mais à frente e subiu a um sicómoro».

Para ver Jesus, é necessário sair da multidão indiferenciada e ousar a singularidade. É necessário aprender a arte de procurar, deixando-se encontrar por Aquele que nos precede sempre no caminho. Como afirmou o Papa Bento XVI na homilia do dia 6 de janeiro de 2012, se o coração de cada homem e de cada mulher é um coração habitado pela inquietação e pela procura de Deus, também «o coração de Deus vive inquieto, e foi por isso que se pôs a caminho até junto de nós – até Belém, até ao Calvário, de Jerusalém até à Galileia e aos confins do mundo. Deus vive inquieto connosco, anda à procura de pessoas que se deixem contagiar por esta sua inquietação, pela sua paixão por nós; pessoas que vivem a busca que habita no seu coração e, ao mesmo tempo, se deixam tocar no coração pela busca de Deus a nosso respeito».

Zaqueu deixou-se tocar por este Jesus que «veio procurar e salvar o que estava perdido». Zaqueu não dá aos pobres para ser salvo, mas porque acolheu a salvação em sua casa e se deixou tocar por Deus.

Jesus entra em casa de Zaqueu para estar com ele. Não o acusa dos seus pecados, não lhe aponta o dedo, nem tão pouco o repreende. Entra em sua casa, senta-se à mesa com Ele, olha-o com amor e ternura. Foi precisamente este encontro íntimo e pessoal que transformou o coração de Zaqueu e o abriu à partilha para com aqueles a quem prejudicou.

Bem diferente do olhar e da atitude de Jesus é o olhar e a atitude daquela multidão, que não se contentando em impedir Zaqueu de se aproximar de Jesus, ainda murmura quando Jesus decide ir hospedar-se em sua casa. Quantas vezes, como esta multidão nos deixamos levar pelos julgamentos apressados e pelas murmurações tão pouco evangélicas. Por isso, é urgente cultivar na nossa vida este olhar de amor que oferece ao mundo a certeza do amor misericordioso e terno de Deus que continua a visitar-nos de tantos modos e que de modo tão especial se senta connosco à mesa da Eucaristia e se oferece em alimento para que a certeza da salvação ecoe no tempo e na história e cada homem possa cantar: «louvarei para sempre o vosso nome, Senhor, meu Deus e meu Rei».in Voz Portucalense                                                                          

LEITURA I – Sab 11,22-12, 2

«De todos Vos compadeceis, porque sois omnipotente, e não olhais para os seus pecados, para que se arrependam».

 

Ambiente

O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento (aparece durante a primeira metade do séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o justo e o ímpio no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os egípcios (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh). O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, só Jahwéh garante a verdadeira “sabedoria”, a verdadeira felicidade.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do livro (cf. Sab 10,1-19,22). Nessa parte, recorrendo, sobretudo, à técnica do midrash, o autor faz a comparação entre os castigos que Deus lançou contra os “ímpios” (os pagãos) e a salvação reservada aos “justos” (o Povo de Deus).

Depois de descrever como a “sabedoria” de Deus que se manifestou na história de Israel (cf. Sab 10,1-11,14), o autor faz referência ao pecado dos egípcios, que rendiam culto “a répteis irracionais e a bichos miseráveis” (Sab 11,15); e manifesta o seu espanto de que o castigo de Deus sobre os egípcios tenha sido tão moderado e benevolente (cf. Sab 11,17-20). Porque é que Deus foi tão moderado e não exterminou totalmente os egípcios? É a essa questão que o nosso texto responde. in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes elementos:

O Deus que este texto apresenta é uma figura benevolente e tolerante, cheia de bondade e misericórdia, que não quer a destruição do pecador, mas a sua conversão e que ama todos os homens que criou, mesmo aqueles que praticam ações erradas. Ora, todos nós conhecemos bem este quadro de Deus, pois ele aparece-nos a par e passo… Mas já o interiorizámos suficientemente?

Interiorizar esta “fotografia” de Deus significa “empapar-nos” da lógica do amor e da misericórdia e deixar que ela transpareça em gestos para com os nossos irmãos. Isso acontece, realmente? Qual é a nossa atitude para com aqueles que nos fizeram mal, ou cujos comportamentos nos desafiam e incomodam?

Muitas vezes, percebemos certos males que nos incomodam como “castigos” de Deus pelo nosso mau proceder. No entanto, este texto deixa claro que Deus não está interessado em castigar os pecadores… Quando muito, procura fazer-nos perceber – com a pedagogia de um pai cheio de amor – o sem sentido de certas opções e o mal que nosfazem certos caminhos que escolhemos. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 144 (145)

Refrão: «Louvarei para sempre o vosso nome, Senhor, meu Deus e meu Rei».

 

LEITURA II – 2 Tes 1,11-2, 2

«Oramos continuamente por vós, para que Deus vos considere dignos do seu chamamento».

 

Ambiente

Forçado a deixar Filipos, Paulo chegou a Tessalónica pelo ano 50. Segundo o seu costume, pregou primeiro aos judeus na sinagoga, obtendo algum sucesso; mas os judeus – incomodados pelo testemunho de Paulo – sublevaram a multidão e o apóstolo teve de abandonar, à pressa, a cidade. De lá, dirigiu-se para Bereia, Atenas e, depois, Corinto.

Em Tessalónica ficou uma comunidade entusiasta e fervorosa, constituída na sua maioria por pagãos convertidos… Mas Paulo estava inquieto, pois chegaram-lhe notícias da hostilidade dos judeus para com os cristãos de Tessalónica; e essa comunidade, ainda insuficientemente catequizada, com uma fé muito “verde”, corria riscos. Paulo enviou Timóteo a Tessalónica, para saber notícias e encorajar os cristãos… Quando Timóteo voltou, Paulo estava em Corinto. As notícias eram boas: os tessalonicenses continuavam a viver com entusiasmo a fé e a dar testemunho de Jesus. Havia, apenas, algumas questões de doutrina que os preocupavam – nomeadamente a questão da segunda vinda do Senhor. Paulo decidiu-se, então, a escrever aos cristãos de Tessalónica, animando-os a viverem na fidelidade ao Evangelho e esclarecendo-os quanto à doutrina sobre o “dia do Senhor”. Estamos no ano 51.

Embora não haja qualquer dúvida de que a Primeira Carta aos Tessalonicenses provém de Paulo, há quem ponha em causa a autoria paulina da Segunda Carta aos Tessalonicenses. De qualquer forma, a Segunda Carta aos Tessalonicenses é considerada pela Igreja um texto inspirado que deve, portanto, ser visto como Palavra de Deus. in Dehonianos.

Considerar, para a reflexão pessoal e comunitária, as seguintes linhas:

No nosso caminho pessoal ou comunitário, rumo à salvação, Deus está sempre no princípio, no meio e no fim. É preciso reconhecer que é Ele quem está por detrás do chamamento que nos foi feito, que é Ele quem anima e dá forças ao longo da caminhada, que é Ele quem nos espera no final do caminho, para nos dar a vida plena. Tenho consciência desta centralidade de Deus? Tenho consciência de que a salvação não é uma conquista minha, mas um dom de Deus?

Ao longo do caminho, é preciso estar atento para saber discernir o certo do errado, o verdadeiro do falso, o que é um desafio de Deus e o que é o fanatismo ou a fantasia de algum irmão perturbado ou em busca de protagonismo. O caminho para discernir o certo do errado está na Palavra de Deus e numa vida de comunhão e de intimidade com Deus. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 19,1-10

«Zaqueu, desce depressa, que Eu hoje devo ficar em tua casa».

«Hoje entrou a salvação nesta casa, porque Zaqueu também é filho de Abraão».

«O Filho do homem veio procurar e salvar o que estava perdido».

 

Ambiente

O episódio de hoje coloca-nos em Jericó, o oásis situado nas margens do mar Morto, a cerca de 34 quilómetros de Jerusalém. Era a última etapa dos peregrinos que, da Pereia e da Galileia, se dirigiam a Jerusalém para celebrar as grandes festividades do culto judaico (o que indica que o “caminho de Jerusalém”, que temos vindo a percorrer soba condução de Lucas, está a acabar).

No tempo de Jesus, é uma cidade próspera (sobretudo devido à produção de bálsamo), dotada de grandes e belos jardins e palácios (por ação de Herodes, o Grande, que fez de Jericó a sua residência de inverno). Situada num lugar privilegiado de uma importante rota comercial, era um lugar de oportunidades, que devia proporcionar negócios chorudos (e também várias possibilidades de negócios “duvidosos”).

O personagem que se defronta com Jesus é, mais uma vez, um publicano (neste caso, um “chefe dos publicanos”). O nosso herói é, portanto, um homem que o judaísmo oficial considerava um pecador público, um explorador dos pobres, um colaboracionista ao serviço dos opressores romanos e, portanto, um excluído da comunidade da salvação.in Dehonianos.

 

A reflexão pode partir das seguintes linhas:

A questão central posta por este texto é, portanto, a questão da universalidade do amor de Deus. A história de Zaqueu revela um Deus que ama todos os seus filhos sem exceção e que nem sequer exclui do seu amor os marginalizados, os “impuros”, os pecadores públicos: pelo contrário, é por esses que Deus manifesta uma especial predileção. Além disso, o amor de Deus não é condicional: Ele ama, apesar do pecado; e é precisamente esse amor nunca desmentido que, uma vez experimentado, provoca a conversão e o regresso do filho pecador. É esta Boa Nova de um Deus “com coração” que somos convidados a anunciar, com palavras e gestos.

A vida revela, contudo, que nem sempre a atitude dos crentes em relação aos pecadores está em consonância com a lógica de Deus… Muitas vezes, em nome de Deus, os crentes ou as Igrejas marginalizam e excluem, assumem atitudes de censura, de crítica, de acusação que, longe de provocar a conversão do pecador, o afastam mais e o levam a radicalizar as suas atitudes de provocação. Já devíamos ter percebido (o Evangelho de Jesus tem quase dois mil anos) que só o amor gera amor e que só com amor – não com intolerância ou fanatismo – conseguiremos transformar o mundo e o coração dos homens. Na verdade, como é que acolhemos
e tratamos os que têm comportamentos socialmente inaceitáveis? Como é que acolhemos e integramos os que, pelas suas opções ou pelas voltas que a vida dá, assumem atitudes diferentes das que consideramos corretas, à luz dos ensinamentos da Igreja?

Testemunhar o Deus que ama e que acolhe todos os homens não significa, contudo, branquear o pecado e pactuar com o que está errado. O pecado gera ódio, egoísmo, injustiça, opressão, mentira, sofrimento; é mau e deve ser combatido e vencido. No entanto, distingamos entre pecador e pecado: Deus convida-nos a amar todos os homens e mulheres, inclusive os pecadores; mas chama-nos a combater o pecado que desfeia o mundo e que destrói a felicidade do homem. in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura apresenta frases longas e com várias orações, pelo que se deve ler pausadamente e devagar articulando as diversas orações. Além disso, possui algumas interrogações que exigem uma correta pronunciação para uma eficaz proclamação da leitura.

Na segunda leitura, um primeiro cuidado a ter é na proclamação dos destinatários da Carta de S. Paulo «Tessalonicenses». Este texto exige ainda uma especial preparação nas pausas e respirações tendo em conta que as quebras do texto não correspondem com as pausas da proclamação do mesmo.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

HOJE NA TUA CASA É PRECISO QUE EU FIQUE

É preciso vir atrás, ao Domingo XIII do Tempo Comum, que celebrámos em junho, para assistirmos ao início do caminho de Jesus da Galileia para Jerusalém. Foi nesse Domingo proclamado o Evangelho de Lucas 9,51-62. Aí começava também o caminho longo e intenso da formação de Jesus aos seus discípulos de todos os tempos.

Estamos agora, quatro meses depois, no Domingo XXXI do Tempo Comum, dia 30 de outubro, e Jesus atravessa a cidade de Jericó, antes de entrar na última etapa do seu percurso, 27 km de uma longa subida que o levará a Jerusalém. Jericó é um belo e aprazível oásis que se estende por cinco quilómetros, situado a cerca de 300 metros abaixo do nível do mar. Jerusalém situa-se a cerca de 800 metros acima do nível do mar. O caminho de Jesus, e dos seus discípulos com Ele, torna-se agora, portanto, uma intensa subida física e espiritual.

A assinalar esta passagem de Jesus por Jericó, aí está mais um encontro decisivo, instrutivo e salvador de Jesus (Lucas 19,1-10), «que veio PROCURAR e SALVAR o que estava perdido», como Jesus diz de si mesmo no final da narrativa (Lucas 19,10). No início da narrativa é-nos apresentado um homem, de nome Zaqueu, que era rico e chefe de publicanos, e que PROCURAVA VER (ezêtei ideîn) QUEM É (tís estin) Jesus (Lucas 19,2-3a).

Cruzam-se o início e o final da narrativa, cruzando estas duas PROCURAS: Jesus PROCURA salvar o que está perdido; Zaqueu PROCURA ver quem é Jesus. Note-se bem que a narrativa não diz que Zaqueu PROCURAVA ver Jesus, o que equivaleria a ver o seu rosto, o seu aspeto, a roupa que vestia… Diz, antes, que Zaqueu PROCURAVA ver quem era Jesus. Entenda-se, portanto, que o que Zaqueu PROCURAVA ver não era o rosto, o aspeto, o exterior de Jesus, mas a sua identidade, a sua intimidade, o seu modo de ser e de viver.

Diz ainda o nosso belo texto que Zaqueu não conseguia ver quem era Jesus por causa da multidão, por ser de pequena estatura (Lucas 19,3b). Numa primeira vaga de leitura, fica-se com a impressão de que Zaqueu era um homem baixo e que, por esse motivo, atolado no meio da multidão, não conseguia realizar o seu objetivo de ver quem era Jesus. Numa segunda vaga de leitura, percebemos melhor por que razão Zaqueu não podia ver quem era Jesus por causa da multidão. É que, sendo ele chefe de publicanos, então era um traidor à sua pátria judaica, colaboracionista com os ocupantes romanos, cobrando impostos aos seus irmãos de raça e levando-os aos romanos. Traidor, colaboracionista, explorador e ladrão, Zaqueu era o odiado Zaqueu. Salta à vista que não podia estar no meio da multidão, que, se o descobrisse, o cobriria de insultos, cuspidelas, pontapés…

 É esta a verdadeira razão que o faz correr adiante (onde não estava a multidão), e subir a um sicómoro (Lucas 19,4), para, daí, escondido na densa copa do sicómoro, poder ver e não ser visto, ficando, portanto, a coberto da multidão.

Mas também fica claro que, de dentro da copa do sicómoro, Zaqueu conseguiria certamente ver Jesus, mas não quem era Jesus. Para ver quem é Jesus, a sua identidade e intimidade, a sua maneira de ser e de viver, é preciso um encontro com Jesus. É aqui que entra o outro PROCURADOR, que é Jesus. Levanta os olhos, vê Zaqueu escondido na copa do sicómoro, e diz-lhe de imediato: «Zaqueu, desce depressa: HOJE na tua casa é preciso que eu fique!» (Lucas 19,5).

Zaqueu desceu depressa e recebeu Jesus com ALEGRIA (Lucas 19,6). Zaqueu começa aqui a ver quem é Jesus: não o insulta, não o exclui, não o empurra. Chama-o, acolhe-o, inclui-o! Em contraponto, a multidão viu e reprovou, dizendo: «Foi hospedar-se em casa de um pecador» (Lucas 19,7). Mas em casa, tu a tu, Zaqueu pode continuar a ver quem é Jesus, e vai virar do avesso a sua vida toda, DANDO, DANDO, DANDO. Aos pobres e àqueles (muitos) a quem roubou. E Jesus pode dizer com verdade: «HOJE veio a salvação a esta casa!» (Lucas 19,9). É o HOJE, que se ouve por oito vezes no Evangelho de Lucas (2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,43), que é o Evangelho aberto ao meio, rasgando também o tempo ao meio, deixando-nos sempre num HOJE que nos compromete.

Conclusão sempre nova para Zaqueu e para nós: Zaqueu não dá aos pobres para ser salvo, mas porque foi salvo!

A lição do Livro da Sabedoria 11,22-12,2 constitui um belíssimo contraponto musical e poético com o Evangelho de hoje. Deus e o mundo. Diante de Deus, e está sempre diante de Deus, o mundo é como uma gota de orvalho que cai de manhã sobre a terra e se evapora (v. 22). E o homem é como a flor da erva, bela mas frágil, e, por isso, seca. Mas já o teu Espírito trabalha o nosso barro (12,1). Tu és o Senhor do Sim, amas e sustentas tudo o que criaste (v. 24), corriges com lentidão, tens a paixão da educação pelo perdão (12,2). A todos fazes graça e repartes misericórdia, esqueces os pecados, em ordem à conversão (v. 23). Tu és primeiro, a tua Palavra é primeira, o teu amor é primeiro, o teu perdão é primeiro, o teu chamamento é primeiro. Nossa é a resposta, a conversão e a gratidão.

No pequeno extrato da sua 2 Carta aos Tessalonicenses 1,11-2,2, hoje também lida, Paulo afirma a sua oração sem cessar para que os cristãos de Tessalónica permaneçam firmes na sua vocação para que seja glorificado neles o Nome do Senhor Jesus, e n’Ele sejam eles também glorificados pela sua graça. Paulo adverte de seguida que ninguém se impaciente nem perturbe no que diz respeito à Vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, que não está iminente, mas requer uma espera, não preguiçosa, mas operosa, como advertirá adiante (3,6-15).

Para saborearmos melhor todos os sabores da liturgia deste Domingo, fica bem cantar com alegria renovada o grande hino alfabético que é o Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração. Orígenes classificava este Salmo como «o supremo cântico de ação de graças», e Agostinho viu-o como «a oração perfeita de Cristo, uma oração para todas as circunstâncias e acontecimentos da vida». E enquanto saboreamos as imensas riquezas que nos vêm de Deus: a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9), usando, para o efeito, toda a gama de sabores e todas as letras do alfabeto, continuemos a cantar: «Quero louvar para sempre o vosso Nome» (Salmo 145,1).

 D. António Couto

ANEXOS:

      1. Leitura I – XXXI DTC – Ano C- 30.10.2022 (Sab 11,22-12,2)
      2. Leitura II – XXXI DTC – Ano C – 30.10.2022 ( 2 Tes 1, 11-2,2)
      3. Domingo XXXI Tempo Comum – Ano C – 30.10.2022 – Lecionário
      4. Domingo XXXI Tempo Comum – Ano C – 30.10.2022 – Oração Universal
      5. ANO C – Ano de Lucas
      6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXX do Tempo Comum – Ano C – 23.10.2022 – Dia Mundial das Missões

 

10«Dois homens subiram ao templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos. 11O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: ‘Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. 12Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.’13O cobrador de impostos, mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: ‘Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.’ 14Digo-vos: Este voltou justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se humilha será exaltado.» Lucas 18,10-14

Viver a Palavra

Jesus continua a Sua longa viagem até Jerusalém, fazendo de cada encontro uma oportunidade para anunciar a novidade do Evangelho que é Ele próprio e para comunicar este jeito novo de ser discípulo que se traduz num modo novo de ser e de estar, porque é um modo novo de servir e amar. Seguir Jesus Cristo significa colocar-se com Ele a caminho, assumindo um novo modo de se relacionar com Deus e com os outros.

Cada batizado é chamado a viver o mandamento novo do amor, num amor absolutamente centrado em Deus e universalmente alargado aos irmãos, afinando o Seu coração com o Coração de Jesus, para que a Sua vida faça ecoar no tempo e na história a mais bela melodia do amor e da ternura.

«Estar sempre com Jesus, este é o meu programa de Vida», assim afirmava o jovem Beato Carlo Acutis que assumindo desde tenra idade o desejo de seguir Jesus, depressa percebeu que tudo isso só é possível numa vida de intimidade e relação com Deus através da oração.

A Liturgia da Palavra deste Domingo convida-nos a pensar no modo como rezamos e no modo como nos situamos diante de Deus e dos irmãos: «Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros». Jesus conta esta parábola para mim e para ti, para que sejamos capazes de nos libertar do egoísmo e da arrogância que tantas vezes nos habitam e que necessariamente influenciam a nossa relação com Deus e com os irmãos.

A verdadeira oração cristã é chamada a ser lugar de verdade e de autenticidade. Efetivamente, diante de Deus não pode ser de outra forma, pois estamos diante Daquele que tudo sabe, que conhece bem a nossa vida e que, não obstante tudo isto, nos ama e nos acolhe para nos apontar o caminho da verdadeira felicidade.

Quer a primeira leitura quer o Evangelho afirmam com toda a clareza que a Deus agrada a oração do pobre e do humilde, daquele que se reconhece pecador e não teme apresentar os seus fracassos e fragilidades, para que o bom Deus tomando tudo em Suas mãos nos possa moldar pela força transformadora da Sua ternura e da Sua misericórdia.

«Dois homens subiram ao templo para orar; um era fariseu e o outro publicano». Estes dois homens dirigem-se para o mesmo lugar e levam consigo o mesmo objetivo: orar. Contudo, como são diferentes a atitude e a postura de cada um: «o fariseu, de pé» e «o publicano ficou à distância e nem sequer se atrevia a erguer os olhos ao Céu; mas batia no peito». Como é diferente o conteúdo da oração de cada um: o fariseu apresenta os seus créditos diante de Deus e a fatura de tudo quanto tem feito, por seu lado, o publicano de coração arrependido apresenta os seus fracassos e fragilidades e invoca a compaixão de Deus.

Na nossa oração, tal como na oração do fariseu e do publicano, revela-se a nossa imagem de Deus, de nós próprios e dos outros. Por isso, parafraseando um provérbio popular, poderíamos dizer: «diz-me como rezas e dir-te-ei quem és».

A nossa vida orante deve ser o lugar da verdade daquilo que nós somos e daquilo que o Senhor nos chama a ser. Diante de Deus, somos todos mendigos e pecadores, mas reconhecemos como afirmava Pascal que «a grandeza do homem está na consciência da própria miséria». A nossa fragilidade e pecado não são um obstáculo à nossa relação com Deus, mas o lugar oportuno onde Deus manifesta o Seu amor e a Sua misericórdia e, assim, somos chamados a colocar-nos diante de Deus de mãos estendidas, ainda que vazias e sujas, para serem preenchidas pela graça.

Só as mãos vazias podem receber, só o coração que se libertou do egoísmo e da arrogância se pode preencher do amor e da graça e só os braços abertos podem abraçar o irmão que se cruza connosco na estrada da vida.

Batizados em Cristo, façamos da nossa vida um lugar de intimidade e encontro verdadeiro com Deus para que nos saibamos situar de um modo novo diante dos irmãos. Assim a nossa oração deixará de ser um momento isolado, para se tornar o compasso que marca o ritmo da nossa existência.in Voz Portucalense

 

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O Domingo XXX do Tempo Comum é o Dia Mundial das Missões. Deste modo, este Domingo constitui-se como uma oportunidade para refletir na dimensão missionária da Igreja que faz parte da sua identidade enquanto anunciadora do mistério redentor de Jesus Cristo, o Enviado do Pai. Para este ano o Santo Padre escreveu uma mensagem intitulada «Sereis minhas testemunhas (Act 1,8)». No contexto deste Domingo e deste mês dedicado às missões, cada comunidade cristã é convidada a encontrar momentos de oração, reflexão e partilha sobre esta dimensão tão importante da vida cristã. São vários os subsídios já publicados, de modo particular, o Guião Missionário 2022/2023 das Obras Missionárias Pontifícias (https://www.opf.pt/guiao-missionario/). in Voz Portucalense

LEITURA I – Sir 35,15b-17.20-22a

«Quem adora a Deus será bem acolhido e a sua prece sobe até às nuvens».  

 

Ambiente

O livro de Ben Sira foi escrito nos inícios do séc. II a.C. (entre 195 e 171 a.C.), numa altura em que os selêucidas dominavam a Palestina e a cultura helénica – cada vez mais omnipresente – colocava em risco a cultura, a fé e os valores judaicos. O autor do livro (Jesus Ben Sira), preocupado porque muitos dos seus concidadãos se deixavam seduzir pelos valores estrangeiros e negavam as raízes do seu Povo, escreve para defender o património cultural e religioso do judaísmo, a sua conceção de Deus, do mundo, da eleição e da aliança. Procura convencer os seus compatriotas de que Israel possui na sua “Torah”, revelada por Deus, a verdadeira “sabedoria” – uma “sabedoria” muito superior à “sabedoria” grega.

O texto que nos é proposto insere-se num pacote de sentenças em que Jesus Ben Sira procura apontar aos seus concidadãos o caminho da verdadeira “sabedoria” (cf. Ben Sira 34,21-35,26). Esse “caminho” passa pela prática de uma “religião verdadeira”, isto é, pelo cumprimento rigoroso dos mandamentos da “Torah”, nomeadamente no que diz respeito à vivência da justiça comunitária e ao respeito pelos direitos dos mais pobres… Nestas sentenças, Jesus Ben Sira avisa que Deus não pode ser comprado com atos de culto, por parte daqueles que praticam a injustiça e que escravizam os irmãos. O apelo do autor vai, portanto, no sentido de que sejam cumpridos os mandamentos da Lei e sejam respeitados os direitos dos pobres e dos débeis. É essa a verdadeira religião que Deus exige do homem. Aqueles que pretendem ser sábios não podem cometer injustiças de manhã e à tarde aparecer no Templo a afirmar a sua fé e a sua comunhão com Deus, através da oferta de vultuosos sacrifícios de animais. Isso seria, praticamente, comprar Deus e fazer dele cúmplice da injustiça… E Deus não aceita esse esquema.in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes sugestões:

Este texto põe, antes de mais, o problema do que é fundamental na experiência religiosa…. Sugere que a “verdadeira religião” não passa pelos ritos, mas por uma vida verdadeiramente comprometida com os mandamentos, nomeadamente com o mandamento do amor aos irmãos… Não é verdadeira a religião daqueles que pagam as festas da paróquia, mas não pagam justamente aos seus operários; não é verdadeira a religião daqueles que ao domingo depositam na bandeja do peditório algumas notas gordas, mas não respeitam a dignidade e a liberdade dos outros; não é verdadeira a religião daqueles que fazem “promessas”, para que Deus os ajude a concluir com êxito um negócio duvidoso em que alguém vai sair prejudicado… Uma religião desligada da vida é uma religião falsa, incoerente, hipócrita, com a qual Deus não quer ter nada a ver…

O texto revela também, uma vez mais, que o nosso Deus tem um fraco pelos pobres, pelos débeis, pelos oprimidos, por aqueles que o mundo considera “vencidos” e sem peso. Atenção: Deus ama-os e não deixa passar em claro qualquer injustiça cometida contra eles ou qualquer comportamento que viole a sua dignidade. E os crentes, “filhos de Deus”, são convidados a atuar com a mesma lógica de Deus… Sou, como Deus, sensível ao apelo dos pobres, vítimas da injustiça, da segregação, da exclusão? Luto, com coerência, contra tudo o que gera morte, infelicidade, exploração, injustiça, miséria? Aqueles que não encontram lugar na mesa dos privilegiados deste mundo encontram, através de mim, o rosto misericordioso e bondoso do Deus que os ama?

A oração do pobre e do desvalido chega sempre aos ouvidos de Deus… Deus não vira, nunca, as costas a quem chama por Ele e vê n’Ele a esperança e a salvação. Isto é algo que eu devo ter sempre presente, nomeadamente nos momentos mais dramáticos da minha existência, quando tudo cai à minha volta. A Palavra de Deus que hoje nos é oferecida garante-nos: Deus escuta a oração do pobre (e, no contexto bíblico, dizer que “escuta” significa dizer que Ele se prepara para intervir e para trazer àquele que sofre a libertação e a vida). in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 33 (34)

Refrão: «O pobre clamou e o Senhor ouviu a sua voz».

 

LEITURA II – 2 Tim 4,6-8.16-18

«O Senhor me livrará de todo o mal e me dará a salvação no seu reino celeste».

 

Ambiente

Mais uma vez a liturgia traz-nos um texto da Segunda Carta a Timóteo. Embora atribuída a Paulo, trata-se (como, aliás, já vimos nos domingos anteriores) de uma carta escrita por um autor desconhecido, em finais do séc. I ou princípios do séc. II. Para os crentes da segunda geração cristã, é uma época de perseguições, de divisões, de heresias e, portanto, de confusão e de desânimo. Nesse contexto, um cristão anónimo, usando o nome de Paulo, escreveu a pedir aos seus irmãos na fé que se mantivessem fiéis à missão que Deus lhes confiou. O seu objetivo era revitalizar a fé e o entusiasmo dos crentes. in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes linhas:

Paulo foi uma das figuras que marcou, de forma decisiva, a história do cristianismo. Ao olharmos para o seu exemplo, impressiona-nos como o encontro com Cristo marcou a sua vida de forma tão decisiva; espanta-nos como ele se identificou totalmente com Cristo; interpela-nos a forma entusiasmada e convicta como ele anunciou o Evangelho em todo o mundo antigo, sem nunca vacilar perante as dificuldades, os perigos, a tortura, a prisão, a morte; questiona-nos a forma como ele quis viver ao jeito de Cristo, num dom total aos irmãos, ao serviço da libertação de todos os homens. Paulo é, verdadeiramente, um modelo e um testemunho que deve interpelar, desafiar e inspirar cada crente.

O caminho que Paulo percorreu continua a não ser um caminho fácil. Hoje, como ontem, descobrir Jesus e viver de forma coerente o compromisso cristão implica percorrer um caminho de renúncia a valores a que os homens dos nossos dias dão uma importância fundamental; implica ser incompreendido e, algumas vezes, maltratado; implica ser olhado com desconfiança e, algumas vezes, com comiseração… Contudo, à luz do testemunho de Paulo, o caminho cristão vivido com radicalidade é um caminho que vale a pena, pois conduz à vida plena. Concordo? É este o caminho que eu me esforço por percorrer?

Convém ter sempre presente esse dado fundamental que deu sentido às apostas de Paulo: aquele que escolhe Cristo não está só, ainda que tenha sido abandonado e traído por amigos e conhecidos; o Senhor está a seu lado, dá-lhe força, anima-o e livra-o de todo o mal. Animados por esta certeza, temos medo de quê? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 18,9-14

«Jesus disse a seguinte parábola para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros».

«Meu Deus, tende compaixão de mim, que sou pecador».

«Todo aquele que se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado». 

 

Ambiente

Mais uma vez, Lucas coloca-nos no “caminho de Jerusalém”, para nos deixar uma lição sobre o “Reino”. Desta vez, Jesus propõe uma parábola “para alguns que se consideravam justos e desprezavam os outros”. Os protagonistas da história são um fariseu e um publicano.

Os “fariseus” formavam um dos grupos mais interessantes e com mais impacto na sociedade palestina do tempo de Jesus. Descendentes desses “piedosos” (“hassidim”) que apoiaram o heróico Matatias na luta contra Antíoco IV Epifanes e a helenização forçada, eram os defensores intransigentes da “Torah” (quer da “Torah” escrita, quer da “Torah” oral – isto é, dos preceitos não escritos, mas que os fariseus tinham deduzido da “Torah” escrita); no dia a dia, procuravam cumprir escrupulosamente a Lei e esforçavam-se por ensinar a Lei ao Povo: só assim – pensavam eles – o Povo chegaria a ser santo e o Messias poderia vir trazer a salvação a Israel. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus. No entanto, o seu fundamentalismo em relação à “Torah” será, várias vezes, criticado por Jesus: ao afirmarem a superioridade da Lei, desprezavam muitas vezes o homem e criavam no Povo um sentimento latente de pecado e de indignidade que oprimia as consciências.

Os “publicanos” estavam ligados à cobrança dos impostos, ao serviço das forças romanas de ocupação. Tinham fama de utilizar o seu cargo para enriquecer de modo imoral; e é preciso dizer que, na generalidade, essa fama era bem merecida. De acordo com a Mishna, estavam afetados permanentemente de impureza e não podiam sequer fazer penitência, pois eram incapazes de conhecer todos aqueles a quem tinham defraudado e a quem deviam uma reparação. Se um publicano, antes de aceitar o cargo, fazia parte de uma comunidade farisaica, era imediatamente expulso dela e não podia ser reabilitado, a não ser depois de abandonar esse cargo. Quem exercia tal ofício, estava privado de certos direitos cívicos, políticos e religiosos; por exemplo, não podia ser juiz nem prestar testemunho em tribunal, sendo equiparado ao escravo. in Dehonianos.

 

Para refletir e atualizar este texto, considerar os seguintes dados:

Este texto coloca, fundamentalmente, o problema da atitude do homem face a Deus. Desautoriza completamente aqueles que se apresentam diante de Deus carregados de autossuficiência, convencidos da sua “bondade”, muito certos dos seus méritos, como se pudessem ser eles a exigir algo de Deus e a ditar-Lhe as suas condições; propõe, em contrapartida, uma atitude de reconhecimento humilde dos próprios limites, uma confiança absoluta na misericórdia de Deus e uma entrega confiada nas mãos de Deus. É esta segunda atitude que somos convidados a assumir.

Este texto coloca, também, a questão da imagem de Deus… Diz-nos que Deus não é um contabilista, uma simples máquina de recompensas e de castigos, mas que é o Deus da bondade, do amor, da misericórdia, sempre disposto a derramar sobre o homem a salvação (mesmo que o homem não mereça) como puro dom. A única condição para “ser justificado” é aceitar humildemente a oferta de salvação que Ele faz.

A atitude de orgulho e de autossuficiência, a certeza de possuir qualidades e méritos em abundância, acaba por gerar o desprezo pelos irmãos. Então, criam-se barreiras de separação (de um lado os “bons”, de outro os “maus”), que provocam segregação e exclusão… Isto acontece com alguma frequência nas nossas comunidades cristãs (e até em muitas comunidades religiosas). Como entender isto, à luz da parábola que Jesus hoje nos propõe?

Nos últimos séculos os homens desenvolveram, a par de uma consciência muito profunda da sua dignidade, uma consciência muito viva das suas capacidades. Isto levou-os, com frequência, à presunção da sua autossuficiência… Os desenvolvimentos da tecnologia, da medicina, da química, dos sistemas políticos, convenceram o homem de que podia prescindir de Deus pois, por si só, podia ser feliz. Onde nos tem conduzido esta presunção? Podemos chegar à salvação, à felicidade plena, apenas pelos nossos próprios meios? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura é constituída por um conjunto de sentenças sapienciais e, por isso, a sua proclamação deve ser preparada de modo que as diversas frases, respeitando as pausas e respirações, não apareçam como afirmações isoladas, mas encadeadas e articuladas entre si.

Na segunda leitura, deve ter-se em atenção as frases mais longas e sobretudo aquelas divididas com o sinal de pontuação ponto e vírgula, para que se possam fazer as pausas adequadas e a proclamação expresse toda a força do texto que S. Paulo apresenta

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

REZAR E EVANGELIZAR É A MANEIRA DE SER DA IGREJA

Domingo XXX do Tempo Comum. Aí está, no Evangelho de hoje (Lucas 18,9-14), mais uma parábola de Jesus direitinha ao nosso orgulhoso coração. Trata-se da famosa parábola do fariseu e do publicano, que sobem ao Templo para rezar. O narrador fornece-nos, a abrir e a fechar a parábola, a respetiva chave de interpretação. Abre assim: «Contou ainda esta parábola para alguns que, convencidos de serem justos, desprezavam os demais» (Lucas 18,9). E a fechar: «Todo aquele que se exalta será humilhado, e aquele que se humilha será exaltado» (Lucas 18,14b). A intenção de Jesus não é, portanto, mostrar-nos a radiografia religiosa de duas figuras públicas e emblemáticas do seu tempo: um fariseu e um publicano. A intenção de Jesus é que a parábola nos atinja a nós, e dissolva o orgulho e a arrogância que nos habitam e orientam a nossa vida, quer na nossa relação com Deus, quer na nossa relação com o próximo.

O facto de nos ser dito que os dois homens subiram ao Templo para rezar, é para os colocar e nos colocar, não numa situação qualquer, mas numa situação-limite, dado que, de acordo com o fortíssimo dizer de Jeremias, «aproximar-se de Mim» (lageshet ʼelay), diz Deus, implica «empenhar [ou penhorar] o coração» (ʽarab ʼet-libbô) (Jeremias 30,21). «Empenhar o coração» no sentido estrito e técnico de «pôr o coração no prego», de «penhorar o coração», no contexto das «casas de penhores». Salta à vista que «penhorar o coração» é pôr a vida em risco, é como subir a um poste de alta tensão, onde vemos escrito: «perigo de morte». É, pois, nesta situação-limite, que são colocados os dois homens de hoje, e nós também. Esta situação dá às coisas uma seriedade imensa e intensa. Vejamos como tudo se passa.

Vem primeiro a radiografia do fariseu. Entenda-se sempre, não de um homem da classe dos fariseus do tempo de Jesus, mas do farisaísmo que há em mim, em nós. O que a radiografia nos mostra é, então, um fariseu cheio de si, afogado em si, autossuficiente e autorreferencial. Já a água lhe dá pelo pescoço, dada a situação de proximidade com Deus em que ousou colocar-se, mas nem por isso «põe o coração» na situação-limite em que se encontra. Para espanto nosso, na sua oração, não pede auxílio, não estende a mão; antes, procede a um estranho ritual de auto incensação e debita faturas e palavras que não atravessam as nuvens. Mais parecem pedradas no charco em que alegre e orgulhosamente se afunda, agora já com a água a entrar-lhe pela boca adentro. Em breve as velas do coração ficarão encharcadas, e a embarcação afundar-se-á. À superfície, a boiar, antes de se afundarem também, um monte de faturas e de palavras inchadas. É assim que vive e reza o fariseu que há em mim, em nós. A balança do deve e haver com Deus, pensa o fariseu e pensamos nós muitas vezes, está claramente desequilibrada a seu e a nosso favor. Aí estão as faturas que Deus terá de nos pagar: «Jejuo duas vezes por semana [a lei mandava jejuar uma vez] e pago o dízimo de todos os meus rendimentos» (Lucas 18,12). Julga o fariseu, portanto, e julgamos muitas vezes nós também com ele, que temos muito crédito acumulado face a Deus. E, por isso, até nos damos ao luxo de dar graças (eucharistéô) a Deus por não sermos como os outros, que vemos como ladrões, injustos e adúlteros, nem como este reles publicano (Lucas 18,11), estes, sim, cheios de dívidas para com Deus. Convenhamos que esta é uma estranha forma de dar graças a Deus, isto é, de «fazer eucaristia»! Este fariseu que eu sou acha-se com direitos adquiridos sobre Deus e sobre o próximo, de tal modo que facilmente os julgo e condeno. A sua oração não atravessa as nuvens, como a do humilde (Ben-Sirá 35,21); desfaz-se contra as paredes da sua arrogância.

Ao fundo, sempre ao fundo, da cena, vislumbra-se um verdadeiro e assumido pecador. Coisa tão rara e, por isso, tão cara. Sim, este pecador, este publicano, leva a sério a situação-limite que é rezar, que supõe verdade. Não vale a pena mentir à beira da morte, à beira da vida dada! Sim, é um publicano, um cobrador de impostos, coletor de dinheiro público, daí o publicano [do latim publicanus], é um traidor à pátria judaica, um vendido aos invasores romanos, um ladrão, porque, naquela profissão, sempre se cobravam uns cobres a mais. Mas tem ainda coração. Por isso, bate com a mão no peito, e pede a Deus a esmola do perdão, rezando assim: «ó Deus, sê-me propício (hilásthêtì mou: imp. aor. pass. de hiláskomai), a mim, que sou pecador» (Lucas 18,13). É assim que põe a andar a sua pobre embarcação. É assim que reza o publicano que há em mim, em nós. É a verdadeira respiração ou oração do nosso coração. Conclui Jesus de forma solene: «Eu vos digo: “este desceu justificado (dedikaiôménos: part. perf. pass. de dikaióô) para sua casa; o outro não”» (Lucas 18,14a). Este justificado, no modo passivo, chamado passivo divino ou teológico, diz-nos que esta justificação é obra de Deus, não nossa. Diz bem São Paulo: «não com a minha justiça, a da lei, mas aquela através da fé em Cristo, a de Deus» (Filipenses 3,9; cf. Romanos 3,28). Na verdade, justificar significa transformar um pecador em justo. Então, justificar é perdoar. E, neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer («quem pode perdoar os pecados senão Deus somente?») (Lucas 5,21), dado que, transformar um pecador em justo é igual a Criar ou Recriar um homem novo. E da ação de Criar também só Deus é sujeito em toda a Escritura. Atenção que diante de Deus, não há justos. Há apenas justificados!

Pode ajudar-nos um belo conto judaico, edificante, sobre a verdadeira oração, que vai de encontro à parábola de Jesus, hoje escutada, e que mostra a oração como abandono a Deus e em Deus, louvor, súplica, confissão. O protagonista é David, depois do pecado de adultério com Betsabé e do homicídio de Urias. David apresenta-se diante de Deus, e diz somente: «Pequei, Senhor!», calando-se logo e ficando em silêncio. Por que se cala? pergunta o narrador. Porque se vê semelhante àquele pobre, esfomeado, com as roupas rotas, que um dia teve a sorte de poder entrar no palácio, à presença fulgurante do rei. Chegado à beira do trono, não disse nada, não obstante a insistência dos cortesãos para que implorasse a ajuda do rei. Na verdade, não precisava de palavras. O seu próprio corpo, a sua miséria, era um pedido mais forte do que qualquer palavra.

O precioso Livro de Ben-Sirá, que uma vez mais temos a graça de folhear, ler e escutar, mostra-nos como Deus está atento ao indigente, à viúva, ao órfão, ao deserdado, ao humilde, e diz-nos que a sua oração atravessa as nuvens (Ben-Sirá 35,15-22). Belíssima expressão que se cruza com a palavra fecunda de Deus que, como a chuva, atravessa as nuvens para baixo e para cima, enchendo de alegria a nossa terra abençoada (Isaías 55,10-11). Diz ainda o sábio que a viúva, o pobre, o órfão, os humildes não dão descanso ao seu coração em oração a Deus, enquanto Deus não olhar para eles com olhos de bondade (Ben-Sirá 35,21). É exatamente o modo como reza o publicano: «ó Deus, olha para mim com a bondade do perdão», com aquele olhar maternal da bênção sacerdotal (Números 6,25-26).

Reza, meu irmão. Como vês, rezar não é para beatos ou beatas de trazer por casa. Rezar é para militares, pois requer a coragem das situações-limite, podendo, de facto, mudar a nossa vida inteira. Bem, hoje, a confissão de São Paulo na reta final da sua vida: «Combati o bom e belo combate, terminei a carreira, guardei a fé» (2 Timóteo 4,7). E a bela doxologia final, que nos mostra um Paulo sempre em oração: «A Ele a glória pelos séculos dos séculos. Ámen» (2 Timóteo 4,18).

Aí está, a fazer ressoar no nosso coração as páginas deliciosas deste Dia de Domingo, o Salmo 34, que põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah) que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah) que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o seu olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Ou talvez mais do que isso. Na versão grega deste v. 9, muito utilizado no momento da comunhão, também nas liturgias de rito bizantino, lê-se: «geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios» («Saboreai e vede que Bom é o Senhor»), em que o adjetivo chrêstós, «bom», é lido na pronúncia viva: christós, o que vem a resultar, na atualização cristã: «Saboreai e vede que Cristo é o Senhor». Belo e saboroso, sem dúvida. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés». E São Francisco de Assis, no Pequeno Testamento, ditado em Siena, à pressa, a Frei Benedetto da Prato, aí por abril ou maio de 1226, poucos meses antes da sua morte, ocorrida em 3 de outubro desse mesmo ano, recomenda aos seus irmãos que amem sempre nossa senhora, a santa pobreza.

Celebra-se, também, neste XXX Domingo do Tempo Comum o Dia Missionário Mundial. A ideia da instituição de um Dia dedicado à reflexão acerca da dimensão missionária da Igreja, bem como à oração, comunhão e partilha da vida com os nossos irmãos mais necessitados e com todos os missionários espalhados pelos cinco continentes foi apresentada ao Papa Pio XI em 1926 pelas Obras da Propagação da Fé. Dando logo seguimento à sugestão apresentada, o Papa Pio XI, conhecido como «o Papa das Missões», instituiu, nesse mesmo ano de 1926, o Dia Missionário Mundial, que, a partir de então, se tem celebrado anualmente. É já 96.º Dia Missionário Mundial que celebramos.

 D. António Couto

ANEXOS:

      1. Leitura I – XXX DTC – Ano C – 23.10.2022 (Sir 35, 15b-17.20-22a)
      2. Leitura II – XXX DTC – Ano C – 23.10.2022 (2 Tim 4, 6-8.16-18)
      3. Domingo XXX Tempo Comum – Ano C – 23.10.2022 – Lecionário
      4. Domingo XXX Tempo Comum – Ano C – 23.10.2022 – Oração Universal
      5. ANO C – Ano de Lucas
      6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos
      7. Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial das Missões – 23.10.2022

Domingo XXIX do Tempo Comum – Ano C – 16.10.2022

 

 6E o Senhor continuou: «Reparai no que diz este juiz iníquo. 7E Deus não fará justiça aos seus eleitos, que a Ele clamam dia e noite, e há-de fazê-los esperar? 8Eu vos digo que lhes vai fazer justiça prontamente. Mas, quando o Filho do Homem voltar, encontrará a fé sobre a terra?» Lc 18, 6-8

Viver a Palavra

Desde pequeno, que sempre me fascinou a imagem que a primeira leitura coloca à nossa reflexão. Recordo os desenhos animados de Domingo que contavam “As mais belas histórias da Bíblia” e que num dos seus programas falava sobre esta batalha do Povo de Israel contra Amelec e como me impressionava ver que não eram apenas as forças do Povo de Israel que lhes trazia a vitória, mas a oração de Moisés, auxiliado por Aarão e Hur, sobre o monte.

A beleza deste quadro bíblico que evoca a minha infância revelou-me sempre a certeza de que Deus luta connosco nas batalhas de cada dia e nos auxilia nos desafios e aventuras que a vida nos oferece. É verdade, que muitas vezes as batalhas a travar são difíceis e que os nossos braços começam a vacilar, os nossos pés tornam-se titubeantes… Mas não caminhamos sozinhos! Quantas vezes como Moisés, na estrada da vida, encontramos mãos prontas e disponíveis como Aarão e Hur para nos ajudar a orar sem desfalecer, a manter as mãos erguidas para o alto e a reconhecer que “Ele está connosco” e é a fonte da nossa força e coragem.

Com o salmista somos convidados a cantar: «o nosso auxílio vem do Senhor que fez o Céu e a Terra». Como é belo conceber a aventura da vida de pés bem assentes na terra, para nos fazermos aos caminhos da missão, mas simultaneamente de olhos postos no Céu recordando a meta da nossa vida. Assim, de braços levantados em oração podemos recordar sempre que «o Senhor é quem te guarda, o Senhor está a teu lado, Ele é o teu abrigo». Temos como auxílio o Deus de Israel, o Deus das vitórias, o Pai do Senhor Jesus Cristo e, por isso, caminhamos confortados e animados por esta força que fortalece os nossos passos vacilantes. Não há nada a temer porque o Senhor é o meu auxílio e a minha confiança. Aquele que me dá força e caminha comigo nos trilhos da vida e da história é o Senhor que fez o Céu e a Terra. É este Deus grande e forte para quem os impossíveis se tornam possíveis pela certeza do Seu infinito amor e da sua incomensurável misericórdia.

Mas, então, o que devo fazer, consciente de que o amor de Deus me envolve e protege? Devo rezar sempre, sem desfalecer nem desanimar! Permanecer de braços levantados invocando o auxílio do Senhor, mesmo quando tudo parece perdido, pois para Jesus não há caminhos sem saída. Devo estar atento a quantos parecem desanimar na estrada da vida e ser como Aarão ou Hur uma mão que ampara os seus braços e os ajuda a rezar. Devo rezar por aqueles que não sabem rezar, por aqueles que perderam a vontade de o fazer, por aqueles que mais precisam da minha oração. A oração é a mais antiga e universal rede social, pois nos coloca em união e ligação, uns com os outros e todos unidos com Jesus. Unidos uns com os outros e todos juntos ao Deus e Senhor das nossas vidas que nos aponta o caminho da eternidade.

Iluminados pela Palavra de Deus que como afirma S. Paulo «é útil para ensinar, persuadir, corrigir e formar segundo a justiça», percorramos os caminhos da nossa existência guiados pela Palavra da Escritura, alimentados pelo Pão da Eucaristia e animados pela força do Espírito Santo.

Rezemos sempre! Rezemos sem desanimar! De braços levantados, sabemo-nos portadores da mais bela certeza: «o meu auxílio vem do Senhor que fez o Céu e a Terra». Pequenos, frágeis e débeis como a viúva do Evangelho, sabemos que só em Deus podemos encontrar abrigo e, por isso, lhe batemos à porta insistentemente, porque a porta que Deus nos abre nos aponta o caminho da Ressurreição e da Vida, o caminho do Amor e da Misericórdia.

Não obstante tudo isto, «quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra?».in Voz Portucalense

LEITURA I – Ex 17,8-13

«Quando Moisés tinha as mãos levantadas, Israel ganhava vantagem».

 

Ambiente

A primeira leitura de hoje situa-nos no contexto da caminhada dos hebreus pelo deserto (antes da entrada na Terra Prometida) e no quadro de um confronto violento entre os hebreus e um grupo de habitantes do deserto.
Os inimigos que, neste episódio, os hebreus tiveram de enfrentar são designados como “Amalek”. As listas de Gn 36,12.16 ligam-nos à descendência de Esaú, o que os torna etnicamente aparentados com os hebreus… Seja como for, trata-se de tribos nómadas, violentas e agressivas (Dt 25,17-19 faz referência a uma emboscada montada pelos amalecitas aos hebreus em marcha pelo deserto e ao assassínio de alguns membros da comunidade do Povo de Deus que, sedentos e esgotados, caminhavam na retaguarda da coluna), que habitavam o Negev (cf. Nm 13,29; Jz 1,16) e que se opuseram, desde o início, à penetração israelita na Terra Prometida.

Mais tarde, estes mesmos amalecitas aparecerão como adversários de Saúl (cf. 1 Sm 15) e de David (cf. 1 Sm 30). Para os hebreus, são os inimigos por excelência. Segundo a Melkhita sobre o Êxodo, rabi Eliézer dizia: “Deus jurou pelo trono da sua glória que, se qualquer uma das nações viesse para se fazer prosélita, seria recebida; mas Amalek nunca seria recebida na sua casa”.

Para entendermos cabalmente o texto que aqui nos é proposto, convém ainda recordar que as tradições sobre a libertação (Ex 1-18) têm como objetivo primordial fazer uma catequese sobre o Deus libertador, que salvou o seu Povo da opressão e da morte, que o fez atravessar a pé enxuto o mar Vermelho e o encaminhou através do deserto… Não interessa aqui a reportagem jornalística do acontecimento; importa a catequese sobre esse Deus a quem Israel é convidado – pela história fora – a agradecer a sua vida e a sua liberdade. in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes coordenadas:

O que nós temos no Livro do Êxodo não é o retrato de um Deus injusto e parcial, que ajuda um Povo a derrotar e a chacinar outros povos; mas é uma catequese em que um Povo, olhando para a sua história numa perspetiva de fé, constata a presença e a ação de Deus nesse processo de libertação que os trouxe da escravidão para a liberdade. Os teólogos de Israel quiseram ensinar – embora servindo-se de formas de expressão típicas da sua época – que Deus não ficou de braços cruzados diante do sofrimento do seu Povo e que, por isso, veio ao seu encontro, conduziu-o, deu-lhe forças e permitiu-lhe ser senhor do seu destino… Portanto, é a Deus que Israel deve agradecer a sua salvação. Hoje, somos convidados a percorrer um caminho semelhante e a descobrir o Deus libertador vivo e atuante na nossa história, agindo no coração e na vida de todos aqueles que lutam por um mundo mais justo, mais livre e mais humano. Israel descobriu que, no plano de Deus, aquilo que oprime e destrói os homens não tem lugar; e que, sempre que alguém luta para ser livre, Deus está com essa pessoa e age nela.

É exatamente por a ajuda de Deus ser decisiva na luta por um mundo mais livre e mais humano que os catequistas de Israel sublinham o papel da oração… Quem sonha com um mundo melhor e luta por ele, tem de
viver num diálogo contínuo, profundo, com Deus: é nesse diálogo que se percebe o projeto de Deus para o mundo e se recebe d’Ele a força para vencer tudo o que oprime e escraviza o homem. A oração que dá sentido e conteúdo à intervenção no mundo faz parte da minha vida? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 120 (121)

Refrão: «O nosso auxílio vem do Senhor, que fez o céu e a terra».

 

LEITURA II – 2 Tim 3,14-4,2

«Assim o homem de Deus será perfeito, bem preparado para todas as boas obras».

 

Ambiente

A segunda leitura oferece-nos, mais uma vez, um trecho da Segunda Carta a Timóteo. Recordamos (outra vez) que a redação desta carta deve ser colocada nos finais do séc. I ou princípios do séc. II, numa altura em que as comunidades cristãs se debatiam com as perseguições organizadas, a falta de entusiasmo dos crentes e as falsas doutrinas… O autor desta carta pretende convidar os crentes em geral (e os animadores das comunidades, em particular) a redescobrirem o entusiasmo pelo Evangelho e a defenderem-se de tudo aquilo que punha em causa a verdade recebida de Jesus, através dos apóstolos. in Dehonianos.

A reflexão e partilha podem fazer-se de acordo com as seguintes linhas:

Dizer que a Escritura é inspirada por Deus significa que ela contém as palavras que Deus quer dirigir-nos, a fim de nos indicar o caminho para a vida plena… No dizer de Leão XIII, a Escritura é “uma carta outorgada pelo Pai celeste ao género humano viandante longe da sua pátria, e que os autores sagrados nos transmitiram” (Providentissimus Deus, nº 4). A Escritura deve, pois, assumir um lugar preponderante na nossa vida pessoal e na vida das nossas comunidades cristãs. Isso acontece? Que lugar ocupa a leitura, a reflexão e a partilha da Palavra de Deus na minha vida? Que lugar ocupa a Palavra de Deus na vida e na experiência das nossas comunidades cristãs? O que é que assume um valor mais determinante na experiência cristã: as práticas rituais, as devoções particulares, as leis e os códigos, ou a Palavra de Deus?

Porque a Palavra de Deus aparece envolta em roupagens e géneros literários típicos de uma época e de uma cultura determinada, é preciso estudá-la, aprender a conhecer o mundo e a cultura bíblica, compreender o enquadramento e o ambiente em que o autor sagrado escreve… As nossas comunidades cristãs têm o cuidado de organizar iniciativas no campo da informação e do estudo bíblico, de forma a proporcionar aos nossos cristãos uma informação adequada para compreender melhor a Palavra de Deus? E quando há essa informação, os nossos cristãos têm o cuidado de a aproveitar? Porquê?

A leitura que nos foi proposta chama, também, a atenção daqueles que estão ao serviço da Palavra: eles devem anunciá-la em todas as circunstâncias, sem respeito humano, sem jogos de conveniências, sem atenuarem a radicalidade da Palavra; e devem, também, preparar-se convenientemente, a fim de que a Palavra se torne atraente e chegue ao coração dos que a escutam… É assim que procedem aqueles a quem a Igreja confia o serviço da Palavra? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 18, 1-8

«Jesus disse aos seus discípulos uma parábola sobre a necessidade de orar sempre sem desanimar».

«E Deus não havia de fazer justiça aos seus eleitos, que por Ele clamam dia e noite?»

«Mas quando voltar o Filho do homem, encontrará fé sobre a terra?».

 

 

Ambiente

O Evangelho apresenta-nos mais uma etapa do “caminho de Jerusalém”. O texto que hoje nos é proposto vem na sequência do discurso escatológico sobre a vinda gloriosa do Filho do Homem (cf. Lc 17,20-37). A parábola do juiz e da viúva deve, pois, ser entendida neste ambiente.

Trata-se de um texto que não tem paralelo noutro evangelista; no entanto, é similar à parábola do amigo importuno que vem pedir pão a meio da noite e que é atendido por causa da sua insistência (cf. Lc 11,5-8).
Não esqueçamos que Lucas escreveu o terceiro Evangelho durante a década de 80… É uma época em que as comunidades cristãs sofrem por causa da hostilidade dos judeus e dos pagãos e em que já se anunciam as grandes perseguições que dizimaram as comunidades cristãs no final do séc. I. Os cristãos estão inquietos, desanimados e anseiam pela segunda vinda de Cristo – isto é, pela intervenção definitiva de Deus na história para derrotar os maus e salvar o seu Povo. in Dehonianos.

Na reflexão, podem ser considerados os seguintes aspetos:

Porque é que Deus permite que tantos milhões de homens sobrevivam em condições tão degradantes? Porque é que os maus e injustos praticam arbitrariedades sem conta sobre os mais débeis e nenhum mal lhes acontece? Como é que Deus aceita que 2.800 milhões de pessoas (cerca de metade da humanidade) vivam com menos de três euros por dia? Como é que Deus não intervém quando certas doenças incuráveis ameaçam dizimar os pobres dos países do quarto mundo, perante a indiferença da comunidade internacional? Onde está Deus quando as ditaduras ou os imperialismos maltratam povos inteiros? Deus não intervém porque não quer saber dos homens e é insensível em relação àquilo que lhes acontece? É a isto que o Evangelho de hoje procura responder… Lucas está convicto de que Deus não é indiferente aos gritos de sofrimento dos pobres e que não desistiu de intervir no mundo, a fim de construir o novo céu e a nova terra de justiça, de paz e de felicidade para todos… Simplesmente, Deus tem projetos e planos que nós, na nossa ânsia e impaciência, não conseguimos perceber. Deus tem o seu ritmo – um ritmo que passa por não forçar as coisas, por respeitar a liberdade do homem… A nós resta-nos respeitar a lógica de Deus, confiar n’Ele, entregarmo-nos nas suas mãos.

Para que Deus e os seus projetos façam sentido ou, pelo menos, para que as aparentes faltas de lógica dos planos de Deus não nos lancem no desespero e na revolta, é preciso manter com Ele uma relação de comunhão, de intimidade, de diálogo. Através da oração, percebemos quem Deus é, percebemos o seu amor e a sua misericórdia, descobrimos a sua bondade e a sua justiça… E, dessa forma, constatamos que Ele não é indiferente à sorte dos pobres e que tem um projeto de salvação para todos os homens. A oração é o caminho para encontrarmos o amor de Deus.

O diálogo que mantemos com Deus não pode ser um diálogo que interrompemos quando deixamos de perceber as coisas ou quando Deus parece ausente; mas é um diálogo que devemos manter, com perseverança e insistência. Quem ama de verdade, não corta a relação à primeira incompreensão ou à primeira ausência. Pelo contrário, a espera e a ausência provam o amor e intensificam a relação.

A oração não é uma fórmula mágica e automática para levar Deus a fazer-nos as “vontadinhas”… Muitas vezes, Deus terá as suas razões para não dar muita importância àquilo que Lhe pedimos: às vezes pedimos a Deus coisas que nos compete a nós conseguir (por exemplo, passar nos exames); outras vezes, pedimos coisas que nos parecem boas, mas que a médio prazo podem roubar-nos a felicidade; outras vezes, ainda, pedimos coisas que são boas para nós, mas que implicam sofrimento e injustiça para os outros… É preciso termos consciência disto; e quando parece que Deus não nos ouve, perguntemos a nós próprios se os nossos pedidos farão sentido, à luz da lógica de Deus. in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura apresenta apenas alguma dificuldade na pronunciação de alguns nomes próprios que exigem uma correta preparação para uma correta proclamação: «Amalec», «Refidim» e «Hur».

A segunda leitura é marcada pelo tom exortativo do discurso de Paulo a Timóteo pelo que esta natureza do texto deve ser tida em conta na proclamação para transmitir toda a força literária da mensagem veiculada. As formas verbais no imperativo, proclamadas com expressividade, ajudarão a uma maior eficácia da leitura

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

BATIZADOS E ENVIADOS: A IGREJA DE CRISTO EM MISSÃO NO MUNDO

Depois da semente pequenina, pequenina, que é a fé, e que pode virar do avesso a nossa vida, depois do samaritano leproso curado, agradecido a Jesus e salvo, eis-nos, neste Domingo XXIX do Tempo Comum, perante uma viúva desprotegida no campo social, económico e jurídico, mas persistente no seu clamor por justiça.

A Bíblia insiste que ninguém deve afligir ou menosprezar uma viúva ou um órfão, pois se o fizer, e se a viúva ou o órfão gritarem a Deus, o seu grito será escutado e os seus opressores duramente castigados (Êxodo 22,21-23). Juntamente com o estrangeiro e o pobre, a viúva e o órfão fazem parte do rol das chamadas personae miserabiles, pessoas miseráveis, sem proteção social, económica ou jurídica, mas que, para sua defesa, podem contar sempre com a mão protetora de Deus, que sobre elas coloca o seu manto protetor ou pálio.

A impressão da pobre viúva do Evangelho de hoje (Lucas 18,1-8) é que o seu pedido esbarra contra uma porta fechada, quase blindada, que tem por detrás o coração fechado com nó cego de um juiz agnóstico, portanto, sem Deus, e insensível, incapaz de se condoer com as dores seja de quem for. O retrato que dele faz o narrador mostra-nos um juiz fechado a Deus (à sua bondade, à sua grandeza e à sua vontade) e aos homens, que ostenta um coração empedernido, e não um «coração que vê», para usar a bela expressão do Papa Bento XVI.

Sem nunca abrir a porta ou o coração aos apelos da viúva, o juiz de coração fechado com nó cego acaba, todavia, por ceder aos gritos persistentes da viúva, não porque o seu coração se tenha amaciado ou o nó cego desatado, mas para se ver livre do incómodo causado pelos gritos persistentes da viúva.

Do menor para o maior, à boa maneira rabínica. Se assim faz o juiz de coração fechado com nó cego, quanto mais e mais depressa fará Deus aos seus eleitos que a Ele gritam dia e noite?

Note-se que o narrador nos dá a chave logo no início, para podermos abrir a parábola e entrar na sua correta compreensão. Na verdade, introduz-nos assim na parábola: «Disse-lhes uma parábola sobre a necessidade de REZAR sempresem descanso» (Lucas 18,1). E no final insiste nos eleitos que gritam a Deus dia e noite (Lucas 18,7). Rezar com persistência. Não tanto para que Deus faça agora o que lhe pedimos, mas para que a nossa fé permaneça acesa! «Quando vier o Filho do Homem, encontrará a fé sobre a terra?» (Lucas 18,8).

É, de resto, sabido que o Evangelho de Lucas é também conhecido como o Evangelho da oração. Aqui deixamos, para quem o desejar e achar útil, os principais acenos. 1) Este Evangelho apresenta cenários de oração a abrir (Lucas 1,10 e 13; 2,37) e a fechar (Lucas 24,53), formando aquilo que se chama uma inclusão literária ou envelope, como que a dizer que o inteiro Evangelho está repleto de oração. 2) Este Evangelho é de longe o que apresenta mais vezes Jesus a rezar sozinho, como modelo de oração: Lucas 3,21; 5,15-16; 6,12-16; 9,18-20; 9,28-36; 10,21; 11,1; 22,31-32; 22,39-46; 23,33-34; 23,44-46. 3) É este Evangelho que nos apresenta as mais belas e inesquecíveis figuras de oração: Maria, com o magnificat (Lucas 1,46-55); Zacarias, com o benedictus (Lucas 1,68-79); Simeão, com o nunc dimittis (Lucas 2,29-32); o coro celeste, com o gloria in excelsis (Lucas 2,14). 4) É ainda este Evangelho que salienta alguns traços fundamentais da oração: a persistência, no chamado «amigo importuno» (Lucas 11,5-13) e na figura de hoje, a «viúva importuna» (Lucas 18,1-8), e a humildade, como veremos no próximo Domingo, na parábola do fariseu e do publicano (Lucas 18,10-14).

Não se pode descurar hoje a colagem ao belo modelo de oração da viúva, do texto do Êxodo 17,8-13, que nos mostra Moisés também a rezar sem descanso no cimo da colina. Salta à vista que a vitória sobre Amalec não resulta da espada de Josué, mas da oração de Moisés! É como quem diz que a oração dia e noite, sem descanso, é a chave da nossa vida em todas as suas circunstâncias.

É ainda de uma beleza inexcedível o alcance dos versículos 15 e 16 do mesmo Capítulo 17 do Livro do Êxodo que estamos a seguir. YHWH-nissî [= «Yahveh-minha bandeira»], a bandeira ou o pálio de YHWH nas minhas mãos. É outra vez o manto ou o pálio carinhoso de Deus que nos protege sempre. Usamo-lo nas procissões, mas também nas horas mais dramáticas, quando precisarmos de «cuidados paliativos» … Foi a este manto, a este «pálio», que a medicina foi buscar o «paliativo». Saiba-o ou não. Porque não o devia nunca esquecer. Com quanto carinho devemos saber envolver os doentes, os sofredores, os pobres, as viúvas e os órfãos, os deserdados, e os moribundos…

São Paulo adverte hoje Timóteo (2 Timóteo 3,14-4,2), seu discípulo e cooperador dileto, que as Escrituras não transmitem apenas um saber, que há que estudar, aprender e ensinar. Ele acentua que as Escrituras têm o poder (dýnamis) de nos comunicar a sabedoria que conduz à salvação. É esta dinâmica que se deve manifestar em tudo o que fazemos. Oportuna e inoportunamente. Portanto, sempre.

O Salmo 121 é um delicioso hino inserido na coleção dos chamados «Cânticos das peregrinações» ou «subidas», que se estendem do Salmo 120 ao 134. O sonho do peregrino, que se lhe vê nos olhos e no coração, é o Senhor, que habita nas alturas de Sião. Por isso, enquanto atravessa montes e vales, leva já os olhos fixos no «monte Sião, belo em altura, alegria de toda a terra» (Salmo 48,3), e vai dialogando no seu coração acerca d’Aquele que é o seu auxílio (ʽezer) e o criador do céu e da terra (vv. 1-2). Depois desta fixação no seu Senhor, que reside em Sião, o salmista passa a contemplar Deus como o seu «guardador», três vezes o nome shômer [= «guardador»] (vv. 3.4.5), três vezes o verbo shamar [= «guardar»] (vv. 7[2 x].8), uma maneira de dizer um Deus protetor e atento, como a mãe que vela sobre o bebé, para seguir o belo dizer de Alonso Schökel: «Imagino uma cena noturna. Um bebé no berço que baloiça, docemente movido pela mãe que vigia. O vai e vem do berço, que poderia provocar medo, traz serenidade, porque o bebé sente a presença da mãe… No vai e vem da nossa vida, «levantamos os olhos» expectantes e descobrimos a presença vigilante de Deus, que nos tranquiliza». Vem depois a imagem da «sombra» protetora, que protege do sol escaldante do deserto, mas também dos raios nefastos da lua (vv. 5-6). No Próximo Oriente Antigo, os raios lunares eram temidos, podendo, como se pensava, causar febres, cegueira e loucura. E, mesmo entre nós, o termo «lunático» é aplicado a pessoas com comportamentos esquisitos e extravagantes. O Deus «guardador» reaparece no final, para nos guardar quando saímos e quando entramos (v. 8a), portanto, sempre. Pode entender-se do nosso movimento diário, mas também desde o nascimento até à morte, pois o verbo «sair» (yatsaʼ) também significa «nascer», e entrar pode aludir também ao túmulo. O acerto final «desde agora e para sempre» (v. 8b). Esta maneira forte de dizer deixa sob a guarda de Deus, não apenas o segmento da nossa cronologia humana, mas também o futuro misterioso do depois da morte. Graças a Deus.

 D. António Couto

ANEXOS:

      1. Leitura I – Domingo XXIX Ano C – 16.10.2022 (Ex 17, 8-13)
      2. Leitura II – Domingo XXIX Tempo Comum – Ano C – 16.10.2022 (2Tim 3, 14-4, 2)
      3. Domingo XXIX Tempo Comum – Ano C – 16.10.2022 – Lecionário
      4. Domingo XXIX Tempo Comum – Ano C – 16.10.2022 – Oração Universal
      5. ANO C – Ano de Lucas
      6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXVIII do Tempo Comum – Ano C – 09.10.2022

 

Onde estão os outros nove? 18Não houve quem voltasse para dar glória a Deus, senão este estrangeiro?» 19E disse-lhe: «Levanta-te e vai. A tua fé te salvou.» Lc 17, 17-19

Viver a Palavra

«Permite ao menos que se dê a este teu servo uma porção de terra para um altar».

Este é o pedido do general sírio Naamã, na primeira leitura deste Domingo, que diante da recusa de Eliseu em aceitar um presente de reconhecimento pela sua cura, pede ao menos uma porção de terra para um altar para louvar o Deus de Israel pelas maravilhas que realizou na sua vida.

Como é belo este pedido! Deseja assinalar um lugar, que seja sinal do louvor e da gratidão pelo bem que Deus realizou na sua vida. «A vida é para ser cantada apesar de todos os imponderáveis» (João Guerra), e na verdade, Naamã ainda não fez a descoberta que será plena e total em Jesus Cristo: «o grande templo é o Coração do Homem». Somos convidados a descobrir e redescobrir em cada dia a beleza de uma vida que se faz lugar das maravilhas de Deus. Esta deveria ser a primeira oração de cada um de nós: «permite ao menos que se dê a este teu servo uma porção de terra para um altar». Permite ao menos, que em cada dia eu saiba ter um coração agradecido ao Deus do Amor e da Vida, ao Deus da Ternura e da Bondade.

O Evangelho de hoje diz-nos que dos dez leprosos que invocam a cura para a sua doença, apenas um voltou para agradecer. Na verdade, esta é a história da nossa vida. Só um dos dez leprosos curados voltaram para agradecer! Só 10%! E como é a nossa vida e a nossa oração? Será que mais de 10% da nossa vida e da nossa oração são gastos para agradecer o bem que Deus faz na nossa vida?

O Papa Francisco, comentando este texto, interpela-nos: «como é importante saber agradecer, saber louvar por tudo aquilo que o Senhor faz por nós! Assim podemos perguntar-nos: somos capazes de dizer obrigado? Quantas vezes dizemos obrigado em família, na comunidade, na Igreja? Quantas vezes dizemos obrigado a quem nos ajuda, a quem está ao nosso lado, a quem nos acompanha na vida? Muitas vezes consideramos tudo como se nos fosse devido! E isto acontece também com Deus. É fácil ir ter com o Senhor para Lhe pedir qualquer coisa, mas voltar para Lhe agradecer…».

O desafio que a Liturgia da Palavra de hoje nos lança é precisamente este: ter um coração humilde e agradecido. Na verdade, só o coração plasmado e preenchido de humildade pode ser um coração verdadeiramente agradecido, pois só quem humildemente reconhece que é Deus o protagonista de todo o bem que se realiza na sua vida, pode cantar o mais belo hino pelas maravilhas que o Senhor opera.

Façamos da nossa oração de hoje uma oração diferente! Façamos silêncio e pensemos em quantas coisas boas o Senhor nos oferece! É verdade, começamos a fazer silêncio e pensamos, não há nada de bom, as coisas nem sempre correm bem, há tantas coisas menos boas e até más a acontecer em cada dia… Mas não há apenas nuvens e trevas diante de nós, também há rasgos de luz e de ternura, de bondade e misericórdia. Eduquemos o nosso coração para saborear o que Deus realiza de belo, pois gastamos tanto tempo da nossa vida a lamentar o que é mau e não nos lembramos de agradecer quanto de bom acontece. Como o salmista cantemos: «diante dos povos manifestou Deus a salvação» e façamos da nossa vida um hino de louvor e gratidão, mesmo quando as dificuldades e obstáculos assaltam a nossa vida, pois, como afirma o Apóstolo: «se morremos com Cristo, também com Ele viveremos; se sofremos com Cristo, também com Ele reinaremos». in Voz Portucalense

LEITURA I – 2 Reis 5,14-17

«Naamã foi ter novamente com o homem de Deus e confessou a sua fé no Senhor».

 

Ambiente

A primeira leitura deste domingo situa-nos no reino do Norte (Israel), durante o reinado de Jorão (853-842 a.C.). Os reis de Israel – preocupados em fazer do seu país um estado moderno e em marcar o seu lugar no xadrez político do antigo Médio Oriente – mantêm, por esta altura, um intercâmbio muito vivo com os povos da zona. Em termos religiosos, essa política traduz-se numa invasão de deuses, de cultos e de valores estrangeiros, que ameaçam a integridade da fé jahwista. Apesar de Jorão ter tirado “as estátuas que seu pai tinha erigido a Baal” (2 Re 3,2), é uma época em que os deuses cananeus assumem um grande protagonismo e Baal substitui Jahwéh no coração e na vida de muitos israelitas.

Nesta fase, o profeta Eliseu assume-se como o grande defensor da fé jahwista continuando, aliás, a obra do seu antecessor Elias. Eliseu fazia parte de uma comunidade de “filhos dos profetas” (2 Re 2,3; 4,1) … Trata-se, provavelmente, de um círculo profético cujos membros eram os seguidores incondicionais de Jahwéh e aqueles em quem o Povo buscava apoio, face aos abusos dos poderosos.

7No capítulo 5 do segundo Livro dos Reis, os autores deuteronomistas contam-nos a história do general sírio Naamã: considerado um dos heróis da Síria, era leproso; mas, informado por uma serva de que em Israel havia um profeta que podia curá-lo do seu mal, veio ao encontro de Eliseu, carregado de presentes. Eliseu mandou, apenas, que Naamã se banhasse sete vezes no rio Jordão (cf. 2 Re 5,1-13). in Dehonianos.

A reflexão e partilha podem fazer-se considerando os seguintes dados:

A leitura convida-nos, antes de mais, a tomar consciência de que é de Deus – desse Deus que tem um projecto de salvação para o homem – que recebemos a vida plena. A constatação desse facto atinge uma importância primordial, numa época em que somos diariamente convidados a colocar a nossa esperança e a nossa segurança em ídolos de pés de barro (para alguns, podem ser o “poderoso médium” ou a “vidente/taróloga/espírita” que garantem a solução para o mau olhado, a inveja, os males de amor, o insucesso nos negócios, etc.; para a maioria, são o dinheiro, o poder, a moda, o comodismo, o êxito, a casa com piscina, o Ferrari ou o último programa de televisão que faz ganhar vinte mil contos e abrir a janela da fama…). É em Deus que eu coloco a minha esperança de vida plena, ou há outros deuses que me seduzem, que dirigem a minha vida e que são a minha esperança de realização e de felicidade?

Convém também não esquecer que a proposta de salvação que Deus faz se destina a todos os homens e mulheres, sem exceção. O nosso Deus não é um Deus dos “bonzinhos”, dos bem-comportados, dos brancos, dos politicamente corretos ou dos que têm o nome no livro de registos da paróquia… O nosso Deus é o Deus que oferece a vida a todos e que a todos ama como filhos; o que é decisivo é aceitar a sua oferta de salvação e acolher o seu dom. Daqui resultam duas coisas importantes: a primeira é que não basta ser batizado (e depois prescindir d’Ele e viver à margem das suas propostas); a segunda é que não podemos marginalizar ou excluir qualquer irmão nosso.

A história do sírio Naamã levanta, ainda, a questão da gratidão… É preciso que nos apercebamos que tudo é dom do amor de Deus e não uma conquista nossa ou a recompensa pelos nossos méritos ou pelas nossas boas obras. Estou consciente de que é de Deus que recebo tudo e manifesto-Lhe a minha gratidão pela sua presença, pelos seus dons, pelo seu amor?

Aqueles que recebem de Deus carismas para pôr ao serviço dos irmãos: sentem-se apenas instrumentos de Deus e procuram dirigir os olhares e a gratidão dos irmãos para Deus, ou estão preocupados em sublinhar os seus méritos e em concentrar em si próprios a gratidão que brota dos corações daqueles a quem servem. in Dehonianos

SALMO RESPONSORIAL Salmo 97 (98)

Refrão: «Diante dos povos manifestou Deus a salvação».

LEITURA II – 2 Tim 2,8-13

«Se sofremos com Cristo, também com Ele reinaremos».

 

Ambiente

Continuamos a ler a segunda Carta a Timóteo… Para percebermos a mensagem que o texto nos propõe, convém recordar que esta carta (escrita por um autor desconhecido que, no entanto, se identifica com o apóstolo Paulo) nos coloca, provavelmente, no contexto dos finais do séc. I ou inícios do séc. II, numa altura em as comunidades cristãs sentiam arrefecido o entusiasmo dos inícios, conheciam a perseguição e estavam a ser perturbadas pelas heresias e pelas falsas doutrinas. O autor exorta Timóteo (e, na pessoa de Timóteo, todos os crentes, em geral) a perseverar na fé, a conservar a sã doutrina recebida de Jesus e a dedicar-se totalmente ao serviço do Evangelho. in Dehonianos.

Considerar os seguintes dados para a reflexão e partilha:

O autor da Segunda Carta a Timóteo recorda, aqui, algo de central para a experiência cristã: a essência do cristianismo é a identificação de cada crente com Cristo. Isto traduz-se, concretamente, no entregar a própria vida em favor dos irmãos, se necessário até ao dom total. Identifico-me de tal forma com Cristo que sou capaz de O seguir no caminho do amor e da entrega?

A opinião pública do nosso tempo está convencida de que uma vida gasta no serviço simples e humilde em favor dos irmãos é uma vida fracassada; mas o autor da Segunda Carta a Timóteo garante que uma vida de amor e de serviço é uma vida plenamente realizada, pois no final da caminhada espera-nos a ressurreição, a vida plena (são os efeitos da nossa identificação com Cristo). O que é que, para mim, faz mais sentido? No meu dia a dia domina o egoísmo e a autossuficiência, ou o amor, a partilha, o dom da vida? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 17,11-19

«Ao entrar numa povoação, vieram ao seu encontro dez leprosos».

«Disseram em alta voz: «Jesus, Mestre, tem compaixão de nós».

«Levanta-te e segue o teu caminho; a tua fé te salvou».

 

Ambiente

Mais uma vez Lucas apresenta um episódio situado no “caminho de Jerusalém” (esse “caminho espiritual”, ao longo do qual os discípulos vão aprendendo e interiorizando os valores e a realidade do “Reino”).

No “caminho” de Jesus e dos discípulos aparecem, portanto, dez leprosos. O leproso é, no tempo de Jesus, o protótipo do marginalizado… Além de causar naturalmente repugnância pela sua aparência e de infundir medo de contágio, o leproso é um impuro ritual (cf. Lev 13-14), a quem a teologia oficial atribuía pecados especialmente gravosos (a lepra era o castigo de Deus para esses pecados); por isso, o leproso não podia sequer entrar na cidade de Jerusalém, a fim de não despurificar a cidade santa. Devia afastar-se de qualquer convívio humano para que não contaminasse os outros com a sua impureza física e religiosa. Em caso de cura, devia apresentar-se diante de um sacerdote, a fim de que ele comprovasse a cura e lhe permitisse a reintegração na vida normal (cf. Lev 14). Podia, então, voltar a participar nas celebrações do culto.

Um dos leprosos (precisamente aquele que vai desempenhar o papel principal, neste episódio) é samaritano. Os samaritanos eram desprezados pelos judeus de Jerusalém, por causa do seu sincretismo religioso. A desconfiança religiosa dos judeus em relação aos samaritanos começou quando, em 721 a.C. (após a queda do reino do Norte), os colonos assírios invadiram a Samaria e começaram a misturar-se com a população local. Para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se…. Após o regresso do exílio da Babilónia, os habitantes de Jerusalém recusaram qualquer ajuda dos samaritanos na reconstrução do Templo e evitaram os contactos com esses hereges, “raça misturada com pagãos”. A construção de um santuário samaritano no monte Garizim consumou a separação e, na perspetiva judaica, lançou definitivamente os samaritanos nos caminhos da infidelidade a Jahwéh. Algumas picardias mútuas nos séculos seguintes consolidaram a inimizade entre judeus e samaritanos. Na época de Jesus, a relação entre as duas comunidades era marcada por uma grande hostilidade.in Dehonianos.

A reflexão e partilha podem tocar as seguintes questões:

A “lepra” que rouba a vida a esses “dez” homens que a leitura de hoje nos apresenta representa o infortúnio que atinge a totalidade da humanidade e que gera exclusão, marginalidade, opressão, injustiça. É a condição de uma humanidade marcada pelo sofrimento, pela miséria, pelo afastamento de Deus e dos irmãos, que aqui nos é pintada… Lucas garante, no entanto, que Deus tem um projeto de salvação para todos os homens, sem exceção; e que é em Jesus e através de Jesus que esse projeto atinge todos os que se sentem “leprosos” e os faz encontrar a vida plena, a reintegração total na família de Deus e na comunidade humana.

É preciso ter uma resposta de gratidão e de adesão à proposta de salvação que Deus faz. Atenção: muitas vezes são aqueles que parecem mais fora da órbita de Deus que primeiro reconhecem o seu dom, que o acolhem e que aderem à proposta de vida nova que lhes é feita. Às vezes, aqueles que lidam diariamente com o mundo do sagrado estão demasiado cheios de autossuficiência e de orgulho para acolherem com humildade e simplicidade os dons de Deus, para manifestarem gratidão e para aceitarem ser transformados pela graça… Convém pensar na atitude que, dia a dia, eu assumo diante de Deus: se é uma atitude de autossuficiência, ou se é uma atitude de adesão humilde e de gratidão.

Como lidamos com aqueles que a sociedade de hoje considera “leprosos” e que, muitas vezes, se encontram numa situação de exclusão e de marginalidade (os sem abrigo, os drogados, os deficientes, os doentes terminais, os idosos abandonados em lares, os analfabetos, os que vivem abaixo do limiar da pobreza, os que não têm telemóvel nem internet, os que não vestem de acordo com a moda, os que não pactuam com certos valores politicamente corretos, os que não consomem produtos “light” e não têm uma silhueta moderna, os que não frequentam as festas sociais nem aparecem nos programas televisivos de sucesso…): com desprezo, com indiferença, com medo de ficar contaminados ou como testemunhas da bondade e do amor de Deus?

Curiosamente, os dez “leprosos” não são curados imediatamente por Jesus, mas a “lepra” desaparece “no caminho”, quando iam mostrar-se aos sacerdotes. Isto sugere que a ação libertadora de Jesus não é uma ação mágica, caída repentinamente do céu, mas um processo progressivo (o “caminho” define, neste contexto, a caminhada cristã), no qual o crente vai descobrindo e interiorizando os valores de Jesus, até à adesão plena às suas propostas e à efetiva transformação do coração. Assim, a nossa “cura” não é um momento mágico que acontece quando somos batizados, ou fazemos a primeira comunhão ou nos crismamos; mas é uma caminhada progressiva, durante a qual descobrimos Cristo e nascemos para a vida nova.in Dehonianos

 

Para os leitores:

Na primeira leitura recomenda-se o cuidado na pronunciação do nome do profeta «Naamã» e na articulação do diálogo entre Naamã e o Eliseu.

A segunda leitura é marcada pelo tom exortativo de Paulo a Timóteo e que deve estar presente na proclamação deste texto. Além disso, pede-se um especial cuidado na proclamação das frases condicionais da última frase para que se aproveite toda a riqueza presente no texto.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

UM CORAÇÃO SAMARITANO

De há muito que seguimos Jesus no seu caminho para Jerusalém. No seu caminho, que é o nosso itinerário ou currículo de formação. É por isso que devemos pôr toda a atenção em tudo o que se passa. No episódio do Evangelho proclamado no Domingo passado (XXVII do Tempo Comum), Lucas 17,5-10, fomos nós que pedimos a Jesus: «Aumenta a nossa fé!» (Lucas 17,5). E Ele foi ao campo buscar a metáfora da semente pequenina e do serviço humilde e dedicado do servo que serve em tudo e sempre o seu Senhor.

No seguimento imediato, o Evangelho proclamado neste Domingo XXVIII do Tempo Comum, Lucas 17,11-19, continua a glosar a temática da fé, e põe diante de nós dez leprosos que empregam todas as suas forças para, com voz grande, se fazerem ouvir por Jesus. É a Jesus que dirigem o seu pedido, nestes termos: «Jesus, Mestre, Faz-nos Graça!» (Lucas 17,13). Aquele «Faz-nos Graça!» soa, no texto grego, eléêson hêmãs, cujo eco ainda hoje ressoa no nosso «Kýrie, eléêson» («Senhor, Faz Graça»). «Fazer Graça» é um dizer muito bíblico, que o pensamento ocidental desconhece, com que nós pedimos a Deus que, como uma mãe cheia de ternura, nos embale nos seus braços e olhe para nós com o seu olhar carregado de bondade maternal. Note-se, porém, que esta relação maternal, carinhosa e gratuita, não assenta em nenhum determinismo. Não é movida pelos laços do sangue ou beleza atraente ou simpatia, para o valor, de acordo com a pedagogia grega, mas é devida a todos, até aos inimigos e àqueles com quem não simpatizamos e excluímos das nossas relações, os pobres, o estrangeiro, o órfão, a viúva, os refugiados, os descartados, para o desvalor, de acordo com a pedagogia bíblica.

Note-se que os leprosos, devido à sua doença contagiosa, eram excluídos da sociedade, literalmente excomungados, e obrigados a andar longe dos povoados, não se podendo aproximar de ninguém. E, à vista de alguém, deviam gritar: «Impuro, impuro!», para que as pessoas se desviassem deles, de acordo com as prescrições que podemos ver no Livro do Levítico 13,45-46.

O Evangelho diz-nos que se trata de um grupo de dez leprosos, certamente judeus e samaritanos. Já sabemos que os judeus não se dão com os samaritanos (cf. João 4,9). Mas aqui, afinal, andam juntos uns e outros. É bem verdade que a doença, a miséria, a dor, os sofrimentos juntam as pessoas, sem olhar a credos e raças! E o grito que lançam juntos a Jesus é igualmente estranho e significativo, dado que, no seu grito, chamam a Jesus “Mestre” (epistáta) (cf. Lucas 17,13), eles que têm necessidade de cura e não de ensinamentos, pois, ainda que o desejassem, nem sequer podiam ir à escola. Então é como se estes leprosos estivessem a pensar em nós, a fazer-nos compreender que Jesus veio sobretudo curar os males do espírito e iluminar o escuro dos corações, desfazer os preconceitos que toldam tantas vezes a nossa vida quotidiana!

É claro que Jesus escuta o seu pedido (nós é que não sei!), e manda que se vão apresentar aos sacerdotes, para que estes, dentro das suas competências de autoridade sanitária de controlo (Levítico 13,2-3), os pudessem declarar curados da lepra. Note-se bem que Jesus os manda apresentar-se aos sacerdotes, antes de os curar, como quem diz que requeria deles uma fé total na sua capacidade de os curar. Eles partem, sinal da plena confiança que depositam em Jesus, pois, quando se põem a caminho, ainda continuam possuídos pela lepra. Na verdade, é depois de partirem, enquanto caminham, que se sentem curados! (Lucas 17,14).

O centro do episódio começa agora. Os holofotes do narrador põem em grande destaque um dos dez leprosos que, sentindo-se curado, interrompeu a sua viagem e voltou para trás, louvando a Deus com voz grande, e veio agradecer a Jesus, prostrando-se aos seus pés! O narrador informa-nos que era um samaritano (Lucas 17,15-16), portanto herético, estrangeiro, excluído, marginalizado, descartado, da região «daquele estúpido povo que habita em Siquém», para o dizer com as palavras de Ben-Sirá 50,26. É-nos permitido deduzir ainda que este samaritano se sente pobre e devedor a Deus pela graça concedida, enquanto que os restantes, talvez todos judeus, não sentiram tal necessidade, bem pelo contrário, porque o seu pensamento teológico os levava a pensar que era Deus que estava em dívida para com eles, e que, portanto, Jesus não terá feito mais do que devia!

Jesus louva a fé deste excluído, e deixa entender que a fé não consiste simplesmente em cumprir ordens, mas também em proclamar a boa nova da salvação, em reconhecer a graça recebida diante daquele que a concedeu, com uma voz tão grande como o grito com que antes se lha pediu. Esta voz nova de louvor e de alegria precede mesmo o cumprimento dos ritos de purificação, precede qualquer rito, interrompe qualquer viagem, passa à frente de qualquer negócio. É já a segunda vez que Lucas nos mostra um samaritano a interromper a sua viagem. A primeira vez foi naquela estrada que descia de Jerusalém para Jericó, quando um samaritano se debruçou por amor sobre um homem meio morto (cf. Lucas 10,33-34). O viajante mesmo é Jesus. O seu discípulo, atento e sensível, segue o Mestre, e, ao seguir o Mestre, corta estradas velhas, abre estradas novas! Parte sempre de Jesus, chega sempre a Jesus, princípio e meta de todo o seu caminhar discipular.

O contraponto musical vem naturalmente do sírio Naamã, que se vê curado da sua lepra seguindo as instruções do profeta Eliseu, a quem recorre (2 Reis 5,14-17). Na verdade, Naamã tem de se desfazer, primeiro, de todas as evidências e de todo o tom negocial e diplomático, tem de cair abaixo da sua importância, das suas vestes de gala, das grandes somas de dinheiro. Naamã tem apenas de aprender a colocar-se nas mãos de Deus, para renascer puro como uma criança (2 Reis 5,14). E uma criança apenas confia e recebe. Nada tem. No seguimento da história, somos levados a ver a ambição de Guiezi, servo de Eliseu, que fraudulentamente foi atrás dos bens de Naamã. Disse-lhe Eliseu: agora podes comprar vinhas e olivais, servos e servas, mas a lepra de Naamã se apegará a ti!

Deus é fiel e não pode dar o dito por não dito, diz Paulo a Timóteo (2,8-13), a quem incentiva a proclamar a Palavra de Deus. Paulo está preso. Mas a Palavra de Deus anda sempre à solta, e mais dia menos dia há de encontrar-nos, para nos salvar. Jesus veio, de facto, procurar e salvar o que estava perdido (Lucas 19,10). E aí estamos outra vez a fechar o círculo com o Evangelho de hoje na mão.

Levantar-se-á sempre, desde o santuário do nosso coração emocionado, o hino coral e universal, que é o belo Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas. Cantai, pois, um cântico novo, que tenha a idade e a fidelidade do amor, ao Deus que vem para julgar, amando, e renovar, sempre amando e acariciando, a terra, às vezes dura, do nosso coração.

 Kýrie, eléêson, faz-nos graça, Senhor, e dá-nos um coração samaritano.

 

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – Domingo XXVIII TC – Ano C – 09.10.2022 (2 Reis 5, 14-17)
    2. Leitura II – Domingo XXVIII TC – Ano C – 09.10.2022 (2 Tim 2, 8-13)
    3. XXVIII Domingo Tempo Comum – Ano C – 09.10.2022 – Lecionário
    4. XXVIII Domingo Tempo Comum – Ano C – 09.10.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas
    6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXVII do Tempo Comum – Ano C – 02.10.2022

 

5Os Apóstolos disseram ao Senhor: «Aumenta a nossa fé.» 6O Senhor respondeu: «Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a essa amoreira: ‘Arranca-te daí e planta-te no mar’, e ela havia de obedecer-vos.» Lc 17, 5-6

Viver a Palavra

«Até quando, Senhor, chamarei por Vós e não me ouvis?».

Esta pergunta que abre a primeira leitura da Liturgia da Palavra deste Domingo parece refletir os nossos sentimentos em tantas circunstâncias da nossa vida. Quantas vezes, diante do drama do mal e do sofrimento, diante de dificuldades e dores pessoais ou alheias, colocamos esta pergunta: «até quando, Senhor?». Com estas ou outras palavras semelhantes, elevamos até Deus as nossas dúvidas e incertezas e imploramos de Deus uma luz, uma resposta, um sentido. Esta interrogação exprime o mistério da nossa pequenez, diante da grandeza de Deus.

Por isso, o drama e o mistério do sofrimento, do mal e das dificuldades da nossa vida conduzem-nos à confiança em Deus, abrem-nos à esperança no Senhor do Tempo e da História e desafiam-nos à verdadeira fé que nasce da certeza de que não caminhamos sozinhos. Confiamos Naquele que tudo sabe e depositamos Nele toda a nossa esperança pois sabemos que o Seu amor e a Sua paz brilham na nossa vida, mesmo quando as nuvens e as sombras parecem esconder o Sol da Esperança que brilha sobre nós.

Como os Apóstolos, queremos dizer: «aumenta a nossa fé». Senhor, somos frágeis e pequenos, por isso, aumenta a nossa fé, fortalece a nossa confiança e conduz-nos pelas sendas do Teu amor. Mesmo quando o nosso coração se parece tolher diante das dificuldades, fazei-nos recordar sempre as palavras do Salmo: «se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações». Queremos um coração aberto à bondade e à misericórdia de Deus que nos faz ver na fé e no serviço o caminho que nos abre à verdadeira confiança.

«Se tivésseis fé como um grão de mostarda!». A fé, tal como os homens, não se mede aos palmos. Por mais pequena e frágil que possa ser a nossa vida, pelo poder e pela força do amor de Deus ela poderá ser sempre lugar das mais belas maravilhas do amor de Deus. Por isso, dizia S Ambrósio de Milão a propósito desta passagem: «Foi num jardim que Cristo foi preso e sepultado; Ele cresceu neste jardim e até foi aí que ressuscitou. E assim se tornou uma árvore. Vós também, semeai Cristo no vosso jardim. Com Cristo moei o grão de mostarda, prensai-o e semeai a fé».

Acolhamos este desafio! Diante do sofrimento ou das realidades das quais tantas vezes desconhecemos o sentido, façamos como Maria que «conservava todas estas coisas, meditando-as no seu coração» (Lc 2,19). A confiança Naquele cujo amor nunca falha, há-de conduzir-nos ao caminho certo e abrir a nossa vida a esse horizonte maior de realização e felicidade que só Deus, em Jesus Cristo e na força do Seu Espírito conhece.

Na Igreja da Imaculada em Baku, no Azerbaijão, a 2 de outubro de 2016, o Papa Francisco, comentando esta passagem do Evangelho, afirmava que neste texto estão presentes duas dimensões fundamentais da vida cristã: a fé e o serviço. O papa usava a imagem dos tapetes tradicionais daquele povo e dizia-lhes que assim como os seus belos tapetes, confecionados artesanalmente, precisavam da trama e da urdidura para fazer tão belas obras-primas, também a vida cristã, para que se torne uma bela obra-prima deve ser construída com a trama da fé e a urdidura do serviço. Deste modo, a fé e o serviço, unidos na força do Espírito Santo, serão o caminho que nos conduzem à santidade.

Animados pela alegria de servir por amor, caminhamos conscientes que somos servos inúteis porque o mundo já está salvo, mas, desafiados pelas palavras de S. Paulo, queremos reavivar a consciência dos dons que o Senhor deposita em nossas mãos para que sejamos testemunhas audazes do serviço por amor com gestos corajosos e proféticos que anunciem a grandeza do amor de Deus nos pequenos grãos de mostarda que semeamos na estrada da vida. in Voz Portucalense

LEITURA I – Hab 1,2-3; 2,2-4

«Vede como sucumbe aquele que não tem alma reta; mas o justo viverá pela sua fidelidade».

 

Ambiente

Sobre a vida e a personalidade de Habacuc, não sabemos nada: o título do livro não indica o lugar do nascimento do profeta, nem o tempo histórico em que o profeta viveu. A menção dos “caldeus” (Hab 1,6) parece situar a proclamação de Habacuc na época em que os babilónios, depois de desmembrarem o império assírio, procuravam impor o seu domínio aos povos de Canaã. Estaríamos, pois, nos finais do séc. VII a.C….
O rei de Judá é, nesta altura, Joaquim (609-598 a.C.). Trata-se de um rei fraco, incompetente, que explora o povo, que deixa aumentar as injustiças e cavar um fosso cada vez maior entre ricos e pobres; além disso, o rei desenvolve uma política aventureirista de alianças com as superpotências da época… Apesar das simpatias pró-egípcias de Joaquim, Judá sente já o peso do imperialismo babilónio e vê-se obrigado a pagar um pesado tributo a Nabucodonosor. Prepara-se a queda de Jerusalém nas mãos dos babilónios, a morte de Joaquim, a deportação do seu filho e sucessor Joaquin (que reinou apenas três meses – cf. 2 Re 24,8) e a partida para o exílio de uma parte significativa da classe dirigente de Judá (primeira deportação: 597 a.C.).in Dehonianos.

 

A reflexão e partilha podem fazer-se de acordo com as seguintes linhas:

Com frequência encontramos pessoas que nos questionam acerca da relação entre Deus, a sua justiça e a situação do mundo: se Deus existe, como é que Ele pode pactuar com a injustiça e a opressão? Se Deus existe, porque é que há crianças a morrer de cancro ou de fome? Se Deus existe, porque é que os bons sofrem e os maus são compensados com glória, honras e triunfos? Se Deus existe, porquê o sofrimento inocente? Estas são as questões que, hoje, mais obstaculizam a crença em Deus… A nossa resposta tem de ser o reconhecimento humilde de que os projetos de Deus ultrapassam infinitamente a nossa pequenez e finitude e que nós nunca conseguiremos explicar e abarcar os esquemas de Deus…

Sobretudo, importa perceber que os caminhos de Deus não são iguais aos nossos. Deus tem o seu próprio ritmo; e o ritmo de Deus não é o ritmo da nossa impaciência, da nossa correria, do nosso egoísmo, dos nossos interesses… Do ponto de vista de Deus, as coisas integram-se num “todo” que nós, na nossa pequenez, não podemos abarcar. Resta-nos respeitar – mesmo sem entender – o ritmo de Deus.

Além disso, precisamos de aprender a confiar em Deus, a entregarmo-nos nas suas mãos, a sentir que Ele é um Pai que nos ama e que, aconteça o que acontecer, está a escrever a história por caminhos direitos (embora os caminhos pelos quais Deus conduz o mundo nos pareçam, tantas vezes, estranhos, misteriosos, enigmáticos, incompreensíveis). Há que confiar na bondade e na magnanimidade desse Deus que nos ama como filhos e que tudo fará, sempre, para nos oferecer vida e felicidade.

Mesmo sem entender, a nossa missão é continuar a dar testemunho… Deus chama-nos a denunciar tudo o que impede a realização plena do projeto de felicidade que Ele tem para o homem (a injustiça, a violência, a repressão, o egoísmo, o medo…); mas quanto ao tempo exato e aos moldes da intervenção salvadora e libertadora de Deus no mundo e na história pessoal de cada homem ou mulher, isso só a Deus diz respeito. in Dehonianos

SALMO RESPONSORIAL Salmo 94 (95)

Refrão: «Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações».

LEITURA II – 2 Tim 1,6-8.13-14

«Exorto-te a que reanimes o dom de Deus que recebeste pela imposição das minhas mãos».

 

Ambiente

A Segunda Carta a Timóteo contém, como a primeira, conselhos pastorais de Paulo para o seu grande colaborador e sucessor na animação das Igrejas da Ásia: esse Timóteo que acompanhou Paulo nas suas viagens missionárias e que, segundo a tradição, foi bispo de Éfeso.

Também aqui, é muito duvidoso que seja Paulo o autor deste texto. Os argumentos são os mesmos que vimos, a propósito da Primeira Carta a Timóteo: linguagem diferente da utilizada habitualmente por Paulo, estilo diferente, doutrinas diferentes e, sobretudo, um contexto eclesial que nos situa mais no final do séc. I ou princípios do séc. II do que na época de Paulo (o grande problema destas cartas já não é o anunciar o Evangelho, mas o “conservar a fé”, frente aos falsos mestres que se infiltram nas comunidades e que ensinam falsas doutrinas).
De qualquer forma, quem escreve a carta (e que se apresenta na pele de Paulo) diz encontrar-se na prisão e pressentir a proximidade da morte. Exorta insistentemente Timóteo a perseverar no ministério e a conservar a sã doutrina. É uma espécie de “testamento”, no qual Timóteo (que aqui representa todos os animadores das comunidades cristãs) é convidado a manter-se fiel ao ministério e à doutrina recebidos dos apóstolos. in Dehonianos.

A reflexão e partilha podem partir dos seguintes dados:

A interpelação do autor da Segunda Carta a Timóteo dirige-se, antes de mais, a todos aqueles que um dia aceitaram o Batismo e optaram por Cristo… Na verdade, o mundo que nos rodeia apresenta imensos desafios que, muitas vezes, nos desmobilizam do serviço do Evangelho e dos valores de Jesus. É por isso que é preciso redescobrir os fundamentos do nosso compromisso. Quais são os interesses que influenciam a minha vida e que condicionam as minhas opções: os meus gostos pessoais, as indicações da moda, as sugestões da sociedade, ou as exigências e os valores do Evangelho de Jesus?

Como é que eu revitalizo, dia a dia, o meu compromisso com Cristo e com os irmãos? Há muitos caminhos para aí chegar… Mas a comunhão com Deus, a oração, a escuta e partilha da Palavra de Deus, os sacramentos são formas privilegiadas para redescobrir o sentido das minhas opções e do meu compromisso com Deus. Isto faz sentido, para mim? É este o caminho que venho procurando seguir? Mantenho com Deus esse diálogo necessário?

O nosso texto interpela de forma direta os animadores das comunidades cristãs. Convida-os a redescobrir, cada dia, esse entusiasmo que lhes enchia o coração no dia em que optaram pela entrega da própria vida a Cristo e aos irmãos. Convida-os a despirem-se da preguiça, da inércia, do comodismo e a fazerem da sua vida, em cada dia, um dom corajoso ao “Reino”. É isso que acontece comigo? Sou forte, corajoso, sem medo, quando se trata de vencer as dificuldades que me impedem de me dar a Cristo e aos outros? O que me impulsiona é o amor, ou são interesses próprios e egoístas? Sou uma pessoa moderada e de bom senso, que não trata os irmãos da comunidade de forma agressiva e prepotente?

No texto há, ainda, um convite a conservar a doutrina verdadeira… O que é que isto significa: um conservar inalteradas as fórmulas e os ritos, ou um redescobrir cada dia o essencial, adaptando-o sempre às novas realidades e aos novos desafios que o mundo põe? Como é que sabemos se estamos em consonância com a proposta de Jesus? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 17,5-10

«Aumenta a nossa fé».

«Se tivésseis fé como um grão de mostarda, diríeis a esta amoreira: ‘Arranca-te daí e vai plantar-te no mar’, e ela obedecer-vos-ia.».

«Somos inúteis servos: fizemos o que devíamos fazer».

 

Ambiente

Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém” e a deparar com as “lições” que preparam os discípulos para o desafio de compreender e de dar testemunho do “Reino”. Desta vez, o nosso texto junta um “dito” de Jesus sobre a fé e uma parábola que convida à humildade.

Nas “etapas” anteriores, Jesus tinha avisado os discípulos da dificuldade de percorrer o “caminho do Reino” (disse-lhes que entrar no “Reino” é “entrar pela porta estreita” – Lc 13,24; convidou-os à humildade e à gratuidade – cf. Lc 14,7-14; avisou-os de que é preciso amar mais o “Reino” do que a própria família, os próprios interesses ou os próprios bens – cf. Lc 14,26-33; exigiu-lhes o perdão como atitude permanente – cf. Lc 17,5-6); agora, são os discípulos que, preocupados com a exigência do “Reino”, pedem mais “fé”.
O “dito” sobre a fé que ocupa a primeira parte do Evangelho que hoje nos é proposto aparece numa forma um pouco diferente em Mt 17,20 (um “dito” análogo lê-se também em Mc 11,23 e Mt 21,21, a propósito da figueira seca). No estado actual do texto, é muito difícil definir o contexto original do “dito” de Jesus, o seu enquadramento e o seu significado… Aqui, no entanto, ele serve a Lucas para manifestar a preocupação dos discípulos com a dificuldade em percorrer esse difícil “caminho do Reino”. in Dehonianos.

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes coordenadas:

A “fé” é, antes de mais, a adesão à pessoa de Jesus Cristo e ao seu projeto. Posso dizer, de facto, que é a “fé” que conduz e que anima a minha vida? Jesus é o eixo central à volta do qual se constrói a minha existência? É Jesus que marca o ritmo e a cor das minhas opções e dos meus projetos

O “Reino” é uma realidade sempre “a fazer-se”; mas apresentam-se, com frequência, situações de injustiça, de violência, de egoísmo, de sofrimento, de morte, que impedem a concretização do “Reino”. Como é que eu – homem ou mulher de fé – ajo, nessas circunstâncias? A minha “fé” em Jesus conduz-me a um empenho concreto pelo “Reino” e entusiasma-me a lutar contra tudo o que impede a concretização do “Reino”? A minha “fé” nota-se nos meus gestos? Há algo de novo à minha volta pelo facto de eu ter aderido a Jesus e pelo facto de eu estar a percorrer o “caminho do Reino”? Quais são os “milagres” que a minha “fé” pode fazer?

Nós, homens, somos, com frequência, muito ciosos dos nossos direitos, dos nossos créditos, daquilo que nos devem pelas nossas boas ações. Quando transportamos isto para a relação com Deus, construímos um deus que não é mais do que um contabilista, que escreve nos seus livros os nossos créditos e os nossos débitos, a fim de nos pagar religiosamente, de acordo com os nossos merecimentos… Na realidade – diz-nos o Evangelho de hoje – não podemos exigir nada de Deus: existimos para cumprir, humildemente, o papel que Ele nos confia, para acolher os seus dons e para O louvar pelo seu amor. É nesta atitude que o discípulo de Jesus deve estar sempre.

De certas pessoas diz-se que “não dão ponto sem nó”, para descrever o seu egoísmo e as suas atitudes interesseiras. Porque é que fazemos as coisas? O que é que motiva as nossas ações e gestos: o amor desinteressado, ou o interesse pela retribuição? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura abre com um conjunto de perguntas dirigidas ao Senhor. Estas perguntas traduzem o clamor do profeta diante da injustiça e iniquidade. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ter atenção o tom interrogativo e interpelador com o texto inicia. Na leitura das frases interrogativas, deve evitar-se a excessiva entoação no final da frase, no ponto interrogativo, mas aproveitar a partícula interrogativa como lugar da entoação (“até quando”; “porque”). Em contraponto com a interpelação interrogativa do profeta está a resposta de Deus que anuncia a certeza da sua ação salvadora no tempo oportuno.

Na segunda leitura, Paulo exorta a Timóteo a reavivar o dom de Deus que lhe foi concedido. A proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom exortativo, tendo em atenção as diversas formas verbais no imperativo

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I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

SEMEAR A FÉ NO CAMPO E NA CIDADE

Falo do umbral do outono, de uma praça carregada de metáforas. Moro aqui debaixo deste céu. Claro que durmo ao relento. Sou pobre e puro. Pedinte apenas à porta do espírito. Como os plátanos no púlpito das praças, abrigo os pássaros. Atiram-me pedras os meninos. O meu lugar é aqui, de bruços nas palavras, pedra a pedra construindo o pátio do poema. É assim que hoje enfrento, em estilo diferente, mas de frente, os dizeres deste Domingo XXVII do Tempo Comum.

Oiço bater à porta. Serás tu ainda? Que fruto trazes nas tuas mãos despidas? Um balde? O mar? O mar num balde? As rochas a estalar? O lume a arder em febre? Uma estrela cadente envolta em neblina?

Trazes a história de uma semente pequenina, microscópica. Dizes, para espanto meu, que, lançada à terra, dela nascerá uma árvore grande, em cujos ramos vêm abrigar-se os pássaros do céu, fazendo dela uma lareira carregada de alegria. E dizes, outra vez para espanto meu, que a FÉ tem o tamanho e o virtuosismo dessa semente pequenina, que semeada no meu coração e no coração do mundo pode desenraizar o que nos parece seguro, sólido, assegurado, empedrado, empecadado, fazer ruir os nossos cálculos mais estudados, fazer florir o alcatrão das nossas estradas, fazer sorrir a nossa história desgraçada, arrancar embondeiros, plantar no mar aquilo que parece só poder viver na terra.

Acrescentas logo, sempre para espanto meu, que uma vida de serviço e da máxima simplicidade é a melhor. E que é também a melhor pregação, uma vez que, como nos ensinou o Papa São Paulo VI, na sua Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, n.º 41, «O homem con­temporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então, se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas». Servir por amor. Sem tempo nem contrato. Sem cláusulas. Doação total. Dar a vida como tu, Senhor e Servo. Não se trata de dizer que sou um servo inútil (achreîos), se o serviço que prestei ao meu Senhor foi útil. Trata-se simplesmente de dizer que sou apenas um servo, e que tudo me vem da liberalidade do meu Senhor. Servo apenas servo (Lucas 17,10), que não passa de servo, não sobe na carreira, servo que se cumpre e esgota como servo, portanto, servo servido pelo seu Senhor, como ensina a parábola de Lucas (12,37). A fé é esse vínculo firme e fiel ao meu Senhor e ao meu irmão.

Para me dizeres tanto, foste buscar metáforas ao campo: a semente, as árvores e o servo (Lucas 17,5-10). E, uma vez no campo, levas-me a visitar o jardim de Habacuc (1,2-3, 2,2-4). Poucos saberão, mas Habacuc é o nome de uma planta de jardim. Está de passagem. De manhã viceja, à tarde seca. É preciso ir depressa. Até porque Habacuc ainda tem de ir à cidade e escrever num grande painel publicitário que «o não-reto perecerá, mas o justo viverá pela FÉ» (2,4).

A FÉ é a tal sementinha de nada, do tamanho do grão de mostarda, que pode virar do avesso a nossa vida, a nossa casa, a nossa rua, a nossa cidade, a nossa história. Um dito rabínico do tempo de Jesus afirmava que vale mais um grão de mostarda que um cesto de melancias. Vale também aqui o verso belíssimo da Primeira Carta de São João que a liturgia nos faz cantar hoje ao Aleluia: «Esta é a vitória que venceu o mundo: a nossa fé» (5,4).

Corre e demora-te a ver esse painel, metáfora erguida na cidade, e aprende a FÉ, isto é, a FIDELIDADE. São Paulo demorou-se longamente a contemplar esse painel, de tal maneira que gravou os seus dizeres na alma e em Romanos 1,17 e Gálatas 3,11.

Sim, Timóteo (2 Tm 1,6-8.13-14), escuta bem, reacende o dom de Deus que arde em ti, não tenhas vergonha do Evangelho, dá testemunho de Jesus Cristo, guarda a FÉ!

Sim, não nos é permitido adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos, infecundos, insensíveis, tipo «tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol), e para nós, cristãos, é o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de graça e de bondade e de fé que um dia Jesus ensinou e todos os dias mostrou aos seus discípulos.

Deita com ternura a semente na terra:

É o seu berço natural;

E adormece suavemente,

Tu e a semente.

A semente não erra,

A semente não mente,

Adormece na terra.

Aparece depois um fiozinho de erva,

Nasce e cresce,

Uma flor floresce,

Um fruto amadurece,

Um pássaro desce,

E reza e canta e dança e prova e agradece

Ao Senhor da messe.

Senhor Jesus,

Dá-me um coração puro e transparente

Como uma nascente,

Como uma semente,

E ensina-me a ser simples e leve

Como aquele pássaro que do céu desce,

E reza e canta e come e agradece.

 D. António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – XXVII DTC – Ano C – 02.10.2022 (Hab 1, 2-3; 2, 2-4)
    2. Leritura II – XXVII DTC – Ano C – 02.10.2022 (2 Tim 1, 6-8.13-14)
    3. Domingo XXVII Tempo Comum – Ano C – 02.10.2022 – Lecionário
    4. Domingo XXVII Tempo Comum – Ano C – 02.10.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas
    6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXVI do Tempo Comum – Ano C – 25.09.2022

Viver a Palavra

 

Viver com os olhos e o coração abertos sobre mundo: eis o desafio que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos coloca.

Seguir Jesus e abraçar a proposta de amor que Ele nos lança implica viver atento ao mundo à nossa volta, vencendo a globalização da indiferença que parece assolar o mundo em que vivemos. Na verdade, aquele que quer partir na aventura do serviço por amor deve procurar conhecer e amar o mundo, pois, «o mundo amado apaixonadamente por Deus não pode deixar de ser amado por nós» (P. Virgínio Rotondi).

Jesus conta-nos a parábola conhecida como «o rico avarento e o pobre Lázaro». Esta parábola apresenta um nítido contraponto entre um rico e um pobre. Um rico que se veste sumptuosamente com púrpura e linho fino e um pobre vestido de chagas. Um rico que se banqueteava esplendidamente e um pobre que desejava apenas saciar-se das migalhas da faustosa mesa do rico. E depois de um destino comum – a morte – eis que este contraponto continua, mas agora invertendo-se a sorte: um pobre colocado pelos Anjos ao lado de Abraão e um rico, na mansão dos mortos, em tormentos.

Este rico aparece anónimo, definido apenas pelas suas próprias riquezas, que ao invés de serem possuídas por ele, já possuíram de tal modo o seu coração que o fazem viver indiferente ao mundo à sua volta. Mas este pobre tem nome próprio, chama-se Lázaro. Curiosamente, é a única parábola onde uma personagem tem nome próprio. Este nome evoca a casa de Betânia, casa da amizade e da ressurreição, a casa do nardo puro. Na verdade, o pobre tem o nome do amigo de Jesus e o seu rosto e o seu nome estão gravados no coração de Deus. Não podemos esquecer as palavras de Jesus quando afirmava: «sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25,40).

Efetivamente, o rico não fez mal a Lázaro, não o tratou mal, não o afastou, não o agrediu nem o expulsou. Este rico ignorou Lázaro e o seu pecado é a indiferença. Como afirma Ermes Ronchi: «o verdadeiro contrário do amor não é o ódio, mas a indiferença, para a qual o outro nem sequer existe, é apenas uma sombra entre os cães».

Este homem rico, atolado pelos seus inúmeros pertences e haveres, não consegue ver além de si próprio e dos seus bens. Contudo, após a morte, destino comum para ricos e pobres, aquele rico, nas profundezas do abismo, vê Lázaro. É a primeira vez que nesta parábola este rico vê alguma coisa para além de si próprio. Mas o que vê é ainda para colocar ao seu serviço: «Pai Abraão, tem compaixão de mim. Envia Lázaro, para que molhe em água a ponta do dedo e me refresque a língua, porque estou atormentado nestas chamas».

As riquezas não são um mal em si mesmas. Bem sabemos que os bens materiais são necessários para a nossa subsistência e até conhecemos o drama daqueles que não têm as condições necessárias para uma vida digna. Contudo, é necessário libertarmo-nos de tudo aquilo que nos impede de ver a realidade à nossa volta e nos torna indiferentes ao mundo e aos outros.

Outra importante protagonista desta parábola é a morte, preciosa memória dos limites que marcam o tempo da aventura humana. Ela é frequentemente removida pela consciência com comportamentos e atitudes que nos dão uma ilusão de imortalidade. Possuir muitos bens, um estilo de vida luxuoso, que se manifesta na qualidade do que se veste, do carro que se possui e no quotidiano banquetear-se lautamente sem nada partilhar, eis uma tentativa, tão sedutora quanto ilusória de evitar a angústia da morte.

Contudo, como nos recorda Paulo, apenas «a justiça e a piedade, a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão» nos podem sintonizar com a vida de Deus e rasgar horizontes de esperança que inauguram no aqui e agora do tempo e da história, a vida plena que um dia esperamos saborear no Céu.in Voz Portucalense

LEITURA I – Am 6,1a.4-7

«Agora partirão para o exílio à frente dos deportados e acabará esse bando de voluptuosos».

 

Ambiente

Continuamos com Amós, o profeta de Técua, de quem já falámos no passado domingo. Estamos em meados do séc. VIII a.C. (por volta de 762 a.C.), no reino do Norte (Israel). As conquistas de Jeroboão II criaram bem-estar, riqueza, prosperidade; no entanto, a situação de desafogo não beneficia toda a nação, mas um grupo privilegiado (no qual podemos incluir os nobres, os cortesãos, os militares, os grandes latifundiários e os comerciantes sem escrúpulos). Nasce, assim, uma classe dirigente poderosa, cada vez mais rica, que vive instalada no luxo, que explora os pobres e que, apoiada por juízes corruptos, comete ilegalidades e prepotências… Do outro lado, estão os pobres, vítimas inocentes e silenciosas de um sistema que gera injustiça, miséria, sofrimento, opressão. É neste contexto que o “profeta da justiça social” vai fazer ouvir a sua denúncia profética.

O texto que hoje nos é proposto pertence ao género literário dos “ais” (vers. 1). Começa com uma interjeição (“hwy”) que é, habitualmente, usada em lamentações fúnebres. A palavra corresponde ao grito com que as carpideiras acompanham o cortejo fúnebre… É o terceiro “ai” de Amós; os outros dois aparecem em Am 5,7 (a propósito da justiça e dos tribunais) e em Am 5,18 (a propósito do culto). Os profetas utilizam, normalmente, esta palavra como introdução a um oráculo que anuncia o castigo: indica que certas pessoas ou grupos se encontram às portas da morte por causa dos seus pecados. in Dehonianos.

 

Para a reflexão e partilha, considerar as seguintes questões:

O quadro pintado por Amós descreve, em pormenor, situações bem conhecidas de todos nós…. Pensemos nas festas do jet-set e nas quantias gastas em roupas, em joias, em perfumes, por aqueles que as frequentam; pensemos nas quantias gastas em noites de jogatana por gente que paga miseravelmente aos seus operários; pensemos nos governantes que malbaratam os dinheiros públicos e que nem sequer vão a tribunal porque há sempre uma maneira de fazer com que o crime prescreva… E, por contraste, pensemos nos operários que arriscam a vida em obras perigosas, porque o patrão não quis gastar uns trocos com sistemas de segurança; pensemos naqueles que ganham salários mínimos, trabalhando duramente para enriquecer um patrão prepotente e sem escrúpulos, mas que ao fim do mês não têm dinheiro para pagar o infantário dos filhos; pensemos nos trabalhadores clandestinos que não recebem o salário ao fim do mês, porque o patrão desapareceu sem pagar; pensemos naqueles que recebem pensões de miséria e que vivem em condições infra-humanas porque a sua magra reforma mal dá para pagar os medicamentos… Um cristão pode conformar-se com estes contrastes? Que podemos fazer? Como reivindicar, com coragem profética, um mundo mais parecido com o projeto de Deus?

Convém, também, aplicarmos o questionamento que a mensagem de Amós exige a nós próprios… Muito provavelmente, não frequentamos as festas do jet-set, nem usamos dinheiros públicos para pagar os nossos divertimentos e esbanjamentos… Mas, numa escala muito menor, não teremos os mesmos vícios que Amós denuncia nesta classe rica e ociosa? Não nos deixamos, às vezes, arrastar pelo desejo de ter, comprando coisas supérfluas e impondo sacrifícios à família para pagar as nossas manias de grandeza? Não gastamos, às vezes, de forma descontrolada, para pagar os nossos pequenos vícios, sem pensar nas necessidades daqueles que dependem de nós? E os religiosos e religiosas com voto de pobreza não gastam, às vezes, de forma supérflua, esquecendo que vivem das ofertas generosas de pessoas que têm menos do que eles? in Dehonianos

SALMO RESPONSORIAL Salmo 145 (146)

Refrão: «Ó minha alma, louva o Senhor».

 

LEITURA II – 1 Tim 6,11-16

«Tu, homem de Deus, pratica a justiça e a piedade, a fé e a caridade, a perseverança e a mansidão».

 

Ambiente

Continuamos a refletir a Primeira Carta a Timóteo. Timóteo é esse cristão natural de Listra, filho de pai grego e de mãe judeo-cristã que acompanhou algumas das viagens missionárias de Paulo, a quem Paulo confiou a coordenação pastoral das igrejas da Ásia e que, segundo a tradição, foi o primeiro bispo da Igreja de Éfeso. O autor (que se apresenta como Paulo, embora a atribuição desta carta ao apóstolo seja – como já vimos nos domingos anteriores – bastante problemática) traça, para edificação de Timóteo, o retrato do “homem de Deus”.
O contexto das “cartas pastorais” coloca-nos, presumivelmente, nos inícios do séc. II d.C., numa altura em que as heresias – nomeadamente de tipo gnóstico – começam a incomodar os cristãos. Embora continue a discutir-se o “ambiente” em que as cartas pastorais aparecem, o certo é que se trata de uma época em que a comunidade cristã começa a sofrer a influência de “falsos mestres”, que difundem doutrinas estranhas (o autor da carta traça o quadro dos “falsos mestres”: são orgulhosos, ignorantes, discutem questões sem importância, fomentam a inveja, a discórdia, os insultos, as suspeitas injustas, as invejas e ciúmes e estão preocupados com as questões do lucro – cf. 1 Tim 6,4-6)… Neste “ambiente”, é importante sublinhar as características do verdadeiro discípulo, através de quem a verdadeira fé é transmitida. in Dehonianos

Para a reflexão e a partilha, ter em conta os seguintes dados:

O retrato aqui esboçado do “homem de Deus” define os traços do verdadeiro crente: ele é alguém que vive com entusiasmo a sua fé, que ama os irmãos (que trata todos com doçura, com paciência, com mansidão) e que dá testemunho da verdadeira doutrina de Jesus, sem se deixar seduzir e desviar pelas modas ou pelos interesses próprios. Identificamo-nos com este modelo?

A proposta que aqui é feita a Timóteo deve, sobretudo, caracterizar a vida daqueles que têm responsabilidades na animação das comunidades cristãs. Os animadores das nossas comunidades são, efectivamente, pessoas cheias de amor, de mansidão, de paciência, de capacidade de doar a vida e de servir os irmãos? São pessoas que transmitem, com fidelidade e coerência, o projecto de Jesus, ou são pessoas que transmitem doutrinas próprias, condicionadas pelos seus interesses? Na vida e no testemunho dos animadores das nossas comunidades, nota-se a vontade de dar um verdadeiro testemunho de Jesus e da sua proposta de salvação, ou nota-se a busca de privilégios, de títulos e de honras sociais? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 16,19-31

«Havia um homem rico, que se vestia de púrpura e linho fino e se banqueteava esplendidamente todos os dias».

«Um pobre, chamado Lázaro, jazia junto do seu portão, coberto de chagas».

«Filho, lembra-te que recebeste os teus bens em vida, e Lázaro apenas os males».

 

Ambiente

A leitura que hoje nos é proposta apresenta mais uma etapa do “caminho de Jerusalém”. A história do rico e do pobre Lázaro é um texto exclusivo de Lucas. Não é possível dizer se se trata de uma parábola procedente de uma fonte desconhecida, ou se é uma criação do próprio Lucas… De qualquer forma, trata-se de uma catequese (desenvolvida ao longo de todo o capítulo 16 do Evangelho segundo Lucas) em que se aborda o problema da relação entre o homem e os bens deste mundo. Jesus dirige-Se, aqui, aos fariseus (cf. Lc 16,14), como representantes de todos aqueles que amam o dinheiro e vivem em função dele. in Dehonianos.

A reflexão e partilha podem partir das seguintes questões:

Talvez a catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta nos pareça, à partida, demasiado radical: não temos o direito de ser ricos, de gozar os bens que conquistámos honestamente? No entanto, convém termos consciência de que cerca de um quarto da humanidade tem nas mãos cerca de 80% dos recursos disponíveis do planeta; e que três quartos da humanidade têm de contentar-se com os outros 20% dos recursos. Isto é justo? É justo que várias dezenas de milhares de crianças morram diariamente por causa da fome e de problemas relacionados com a subnutrição, enquanto o primeiro mundo destrói as colheitas para que o excesso de produção não obrigue a baixar os preços? É justo que se gastem em festas sociais quantias que davam para construir uma dúzia de escolas ou meia dúzia de hospitais num país do quarto mundo?

O Vaticano II afirma: “Deus destinou a terra com tudo o que ela contém para uso de todos os homens e povos; de modo que os bens criados devem chegar equitativamente às mãos de todos (…). Sejam quais forem as formas de propriedade, conforme as legítimas instituições dos povos e segundo as diferentes e mutáveis circunstâncias, deve-se sempre atender a este destino universal dos bens. Por esta razão, quem usa desses bens, não deve considerar as coisas exteriores que legitimamente possui só como próprias, mas também como comuns, no sentido de que possam beneficiar não só a si, mas também aos outros. De resto, todos têm o direito de ter uma parte de bens suficientes para si e suas famílias” (Gaudium et Spes, 69).

  • Como me situo face aos bens? Vejo os bens que Deus me concedeu como “meus, muito meus, só meus”, ou como dons que Deus depositou nas minhas mãos para eu administrar e partilhar, mas que pertencem a todos os homens?

Por muito pobres que sejamos, devemos continuamente interrogar-nos para perceber se não temos um “coração de rico” – isto é, para perceber se a nossa relação com os bens não é uma relação egoísta, açambarcadora, exclusivista (há “pobres” cujo sonho é, apenas, levar uma vida igual à dos ricos). E não esqueçamos: é a Palavra de Deus que nos questiona continuamente e que nos permite a mudança de um coração egoísta para um coração capaz de amar e de partilhar. in Dehonianos

 

Para os leitores:

Na primeira leitura, com a exceção da palavra «voluptuosos», não existe nenhuma palavra difícil ou uma construção frásica mais exigente. Deste modo, pede-se apenas a atenção no tom da proclamação da leitura onde o Profeta Amós, em nome de Deus, denuncia violentamente uma classe dirigente ociosa, que vive no luxo à custa da exploração dos pobres. Sem exageros, este tom condenatório, deve estar presente na proclamação da leitura.

Na segunda leitura, S. Paulo exorta o seu interlocutor na prática da caridade e das boas obras. Por isso, é necessário ter em atenção o vocativo presente no início da leitura, bem como as diversas formas verbais no imperativo – «combate», «conquista», «ordeno-te» e «guarda» – para que toda a riqueza do texto esteja presente na proclamação da leitura

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I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

LÁZARO TEM DE SAIR OUTRA VEZ DA PARÁBOLA

A parábola que nos é dado escutar neste Domingo XXVI do Tempo Comum, conhecida por «O rico avarento e o pobre Lázaro», narrada em Lucas 16,19-31, tem duas coisas únicas: a primeira reside no facto de ser a única parábola de Jesus em que uma personagem ostenta nome próprio, Lázaro, nome emblemático que significa «Deus ajuda»; a segunda tem a ver com o facto de que Jesus não dá qualquer explicação da parábola, nenhuma chave de interpretação nos é dada por Ele.

A parábola mostra em claríssimo contraponto um RICO e um POBRE, de nome LÁZARO. Do RICO é dito que se vestia luxuosamente de púrpura e linho fino, em contraponto com o POBRE LÁZARO que se apresentava coberto ou vestido de chagas. Do RICO é dito que se banqueteava sumptuosamente, em contraponto com o POBRE LÁZARO, esfomeado, que bem desejava comer os restos do miolo do pão com que o RICO limpava a gordura das suas mãos, de que resultavam pequenas bolas, que atirava depois aos cães!

O RICO é absolutamente insensível, apresentado em contraponto até com os próprios cães, que lambiam as chagas do POBRE LÁZARO! A questão de fundo nem está em que o RICO hostilize o POBRE. Está em que nem sequer o vê!

Enfim, morre o POBRE LÁZARO e morre também o RICO, e o nevoeiro começa a dissipar-se. LÁZARO é acolhido no seio luminoso de Abraão. O RICO cai nos braços de um lume inextinguível que o aperta e atormenta.

É então que o RICO levanta os olhos, e começa a ver alguma coisa para além de si mesmo. Mas o que vê, ou quem vê, é ainda para tentar pôr ao serviço do seu «eu» muito autorreferencial. É assim que vê finalmente, só agora, o pai Abraão e LÁZARO. A Abraão vê-o como pai (Lucas 16,24). Mas ao POBRE LÁZARO ainda não o consegue ver como um irmão, mas apenas como um servo que agora lhe pode ser útil. Primeiro, para refrescar a língua do RICO (Lucas 16,24). Depois, para avisar os cinco irmãos do RICO, ricos, insensíveis e insensatos como ele (Lucas 16,27-28). O RICO continua afinal a pensar nos RICOS, e ainda se quer servir, para esse efeito, dos pobres…

A resposta de Abraão é esclarecedora e decisiva. Há um abismo entre nós e vós. Claro que o abismo que AGORA não é possível transpor é o abismo cavado em vida pelo RICO separando-se do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve ouvir a voz do POBRE. É, portanto, HOJE que o RICO deve escutar Moisés e os Profetas.

A parábola é imensa. É como uma faca apontada ao coração dos RICOS de hoje, que continuarão a fazer as suas reuniões faustosas e vistosas, mas continuarão a não cumprir sequer os «Objetivos de Desenvolvimento do Milénio», estabelecidos em 2000 para erradicar doenças e reduzir para menos de metade a pobreza extrema. A pobreza afinal é dos outros, que nós não conhecemos de lado nenhum, ainda que estejam doentes e esfomeados ali mesmo à nossa porta! Pensam como o RICO da parábola.

Lembremo-nos de que, no imaginário da Idade Média, o POBRE LÁZARO, que significa «Deus ajuda», saiu da parábola e se transformou numa personagem histórica, padroeiro dos leprosos e mendigos. É assim que nascem os «Lazaretos», edifícios destinados a albergar e tratar os deserdados e doentes. E, no século XVII, S. VICENTE DE PAULO, cuja memória a Igreja celebra em 27 de setembro, que dedicou toda a sua vida aos pobres, fundou os Padres LAZARISTAS (sempre sobre a memória do POBRE LÁZARO), para continuar essa bela missão de tratar os pobres com carinho. E, no século XIX, o beato FRÉDÉRIC OZANAM fundou as CONFERÊNCIAS VICENTINAS, que alicerçou sobre uma frase de S. VICENTE DE PAULO: «A caridade é inventiva até ao infinito».

Está à vista, irmãos, que o POBRE LÁZARO tem de voltar a sair da parábola para nos incomodar e nos colocar todos os dias no caminho da criatividade da Caridade!

E aí temos outra vez Amós (6,1-7) a bater à nossa porta, a desassossegar o nosso sossego, a desmoronar os nossos belos palácios de marfim, a surpreender-nos enfartados e bêbados, deitados por aí em qualquer divã. O retrato feito nos vv. 4-6 é considerado como a melhor e mais ampla descrição da vida luxuosa dos ricos em todo o Antigo Testamento. Estendidos, isto é, reclinados (ver também Amós 2,8), para comer e beber, não o pão e o vinho da bênção de Deus e da partilha com os necessitados, mas o pão do crime e o vinho da violência (Provérbios 4,17). Mas também semelhantes à palha, deitada, e não de pé, como a árvore plantada, de acordo com as imagens vegetais utilizadas no Salmo 1 para retratar o insensato em confronto com o justo. A árvore plantada, portanto, de pé, está viva, respira o vento, dá fruto. A palha, essa, está deitada, é levada pelo vento, não dá fruto, mas é a casca do fruto. Ricos, orgulhosos, altivos, atulhados de excessos, de luxos e de lixos, mas completamente indiferentes aos pobres – «não se afligem com a ruína de José» (6,6) –, o retrato traçado desta confraria dos «estendidos» só é comparável, porventura, com a parábola lucana do rico e do pobre Lázaro, que hoje também tivemos a graça de ouvir nos nossos ouvidos. Mas aí estão também já os Assírios para pôr fim àquilo que tantas vezes julgamos seguríssimo, senão eterno. Sim, os habitantes da Samaria irão nus e descalços para o exílio na Assíria. E um dia hão de chegar os arqueólogos, que descobrirão debaixo das ruínas os restos deste mundo podre e dissoluto!

E a solene exortação de São Paulo a Timóteo, seu discípulo dileto, que hoje nos visita outra vez (1 Timóteo 6,11-16). Começa o v. 11a, com uma forte advertência a Timóteo a fugir destas coisas. Quais coisas? É preciso visitar atrás os vv. 4-6, onde se encontra um elenco de vícios, como o orgulho, controvérsias, conflitos de palavras, inveja, contendas, blasfémias, más suposições, lutas infindáveis, a piedade como fonte de lucro. No v. 7, encontramos esta verdade: «Nada trouxemos para o mundo, nem dele coisa alguma podemos levar». E ainda a grande sabedoria condensada no v. 10: «A raiz de todos os males é o dinheiro». Ora bem, é disto tudo que Timóteo deve fugir, para perseguir um elenco de virtudes, como a justiça, a piedade, a fé, o amor, a paciência, a mansidão (v. 11b). Paulo exorta depois Timóteo a combater (agônízô) o bom e belo combate (agôn) da fé, para conquistar a vida eterna (v. 12a), e a fazer uma boa e bela profissão de fé (homología), como Jesus Cristo fez diante de Pilatos (vv. 12b-13).

É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

 

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – XXVI DTC – Ano C – 25.09.2022 (Am 6, 1a.4-7)
    2. Leitura II – XXVI DTC – Ano C – 25.09.2022 (1 Tim 6, 11-16)
    3. XXVI Domingo Tempo Comum – Ano C – 25.09.2022 – Lecionário
    4. XXVI Domingo Tempo Comum – Ano C – 25.09.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas
    6. A CULPA NÃO É SÓ DO PADRE – Uma reflexão em 6 pontos

Domingo XXV do Tempo Comum – Ano C – 18.09.2022

Viver a Palavra

É possível que o Evangelho proponha como modelo a imitar um administrador desonesto?

Na verdade, ao lermos o Evangelho proposto para este Domingo encontramos uma parábola que nos deixa sempre um pouco perplexos e nos faz inquirir qual a razão pela qual Jesus escolhe um administrador que é acusado de esbanjar os bens do seu senhor para narrar esta parábola. Mais, este administrador é elogiado precisamente pelo seu senhor, não pela sua danosa administração, mas pela esperteza e prontidão com que reagiu ao despedimento do qual foi alvo.

Alguns exegetas, tentando reduzir o impacto e estranheza causados pela narrativa, recordam o costume palestinense dos grandes proprietários de confiarem as suas propriedades a administradores locais, dando-lhes grande margem de manobra, desde que, no final do ano, entregassem ao senhor o que tinham acordado. Deste modo, este administrador a única coisa que fez foi retirar aos devedores do seu senhor aquela que seria a sua parte do lucro, garantindo assim que uma vez despedido, tivesse quem o acolhesse.

Contudo, Jesus não centra a sua parábola na desonestidade deste homem e nem a recomenda nem a censura. O administrador desta parábola e o discípulo de Jesus pertencem a duas formas bem distintas de olhar a vida e os outros: um obedece à logica do mundo e o outro à logica do Reino. Porém, o discípulo de Jesus é convidado a aprender do administrador não a ser desonesto, mas a forjar a capacidade de decidir com prontidão, inteligência e largueza.

Neste momento difícil em que é descoberto, este administrador demonstra sobretudo capacidade de aceitação da realidade («que hei-de fazer, agora que, o meu senhor, me vai tirar a administração?»), o reconhecimento dos seus próprios limites, das suas capacidades e impotências («para cavar não tenho força, de mendigar tenho vergonha») e, por fim, toma uma decisão e faz uma escolha, preparando um futuro para si, efetuando gestos que lhe abrem novas possibilidades no futuro. Por isso, a exemplaridade deste homem não está no seu mau proceder como administrador, mas em discernir realisticamente a situação crítica em que se encontra e agir em conformidade, com prontidão e inteligência.

Os «filhos da luz» devem aprender a discernir o tempo e a hora, devem reconhecer a proximidade do Reino e construir a sua existência com gestos prontos de conversão que preparam o nosso coração para a vida eterna para a qual somos chamados.

O administrador que engana e rouba, que faz saldos de última hora, é também capaz de transformar os seus bens em amizade. Aflito, aquele homem oferece trigo e azeite, serve-se do dinheiro para ser acolhido e amado. Ao desperdício sucede o dom. A riqueza, habitualmente, fecha as casas, constrói muros, põe alarmes e portas blindadas. Agora, pelo contrário, o dom abre aquele homem à relação com os outros, colocando o dinheiro ao serviço da amizade.

Os bens deste mundo, necessários à nossa sobrevivência, não devem ser um fim em si mesmos. Não devem ser eles a possuírem-nos, mas nós a possuirmos os bens para que os possamos colocar ao serviço do bem, do amor e da verdade.

«Arranjai amigos com o vil dinheiro, para que, quando este vier a faltar, eles vos recebam nas moradas eternas». É mais feliz quem tem mais amigos e não quem tem mais dinheiro. A nossa capacidade de amar transforma o mundo em que vivemos num lugar melhor e mais feliz e prepara o nosso coração para o Reino que esperamos saborear um dia em plenitude.

Na verdade, os bons administradores são os que imitam a gratuidade divina e o perdão do Pai, semeando o bem, a bondade e a ternura e assim, como recorda uma das fórmulas de bênção do rito do matrimónio: «sede testemunhas do amor de Deus no mundo, socorrendo os pobres e todos os que sofrem, para que eles vos recebam um dia, agradecidos, na eterna morada de Deus». in Voz Portucalense

LEITURA I – Am 8, 4-7

«Escutai bem, vós que espezinhais o pobre e quereis eliminar os humildes da terra».

 

Ambiente

Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C., durante o reinado de Jeroboão II. É uma época de prosperidade económica e de tranquilidade política: as conquistas de Jeroboão II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a entrada de tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e têxtil) desenvolveram-se significativamente… As construções da burguesia urbana atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.
A prosperidade e o bem-estar das classes favorecidas contrastavam, porém, com a miséria das classes baixas. O sistema de distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os direitos dos menos poderosos.

É neste contexto que aparece o profeta Amós. Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é profeta profissional; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época. in Dehonianos

Para refletir, considerar as seguintes questões:

Os esquemas de exploração descritos por Amós não são uma infeliz recordação de um passado que não volta; pelo contrário, trata-se de uma realidade que os pobres dos nossos dias conhecem bem… A única coisa que é diferente é a sofisticação das técnicas utilizadas pelos maníacos do lucro. De resto, especula-se com bens de primeira necessidade, que as multinacionais vendem a preços exorbitantes (basta pensar naquilo que se passa em relação a certos medicamentos, indispensáveis para combater certas doenças e que são vendidos a peso de ouro aos países do quarto mundo); basta pensar na publicidade, que gera necessidades nos pobres, que lhes promete paraísos ilusórios, que os leva a endividarem-se até porem em causa o seu futuro; basta pensar nos produtos adulterados, impróprios, que são introduzidos pelos especuladores na cadeia alimentar e que põem em causa a saúde pública e a vida das pessoas…

Amós garante: Deus não esquece este quadro e não pactua com quem explora as necessidades dos outros, a miséria, o sofrimento, a ignorância. Na realidade, o nosso Deus não suporta a injustiça e a opressão. Ele não está do lado dos opressores, mas dos oprimidos; e qualquer crime contra o irmão é um crime contra Deus. Se há entre os cristãos quem explora estes esquemas desumanos de lucro, quem oprime e explora os pobres (embora ao domingo vá à missa, faça parte do conselho económico da paróquia e dê quantias significativas para as obras da Igreja), convém que tenha isto em conta.

Que podemos fazer para denunciar estes esquemas desumanos? Hoje fala-se cada vez mais em boicotar os produtos de certas multinacionais que se distinguem pelo seu envolvimento em questões injustas… Não será um caminho possível? Somos sensíveis a estas questões e estaremos dispostos a dar o nosso contributo? A Igreja não devia ter uma voz clara e firme (tão clara e tão firme como a que usa para denunciar outras situações, nem sempre tão graves) para gritar aos homens que a exploração e o lucro desmedido não fazem parte do projeto de Deus? in Dehonianos

SALMO RESPONSORIAL Salmo 112 (113)

Refrão: «Louvai o Senhor que levanta os fracos».

 

LEITURA II – 1 Tim 2, 1-8

«Ele quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade».

 

Ambiente

Continuamos a ler a Primeira Carta a Timóteo. Recordamos aquilo que já dissemos no passado domingo: este Timóteo, nascido em Listra, de pai grego e de mãe judeo-cristã, é um companheiro inseparável de Paulo, a quem Paulo confiou importantes missões e a quem encarregou da responsabilidade pastoral das Igrejas da Ásia Menor. Segundo a tradição, foi o primeiro bispo da comunidade cristã de Éfeso.

Esta carta – já o dissemos, também, no passado domingo – dificilmente provirá de Paulo (a linguagem, o estilo, a teologia, sugerem que este texto está longe de Paulo; além disso, há um fator mais decisivo: esta carta apresenta um modelo de organização da Igreja que é, claramente, posterior a Paulo); no entanto, apresenta-se como escrita por Paulo a Timóteo, instruindo-o acerca da forma de organizar a comunidade cristã e a vida cristã dos fiéis. in Dehonianos

 

A reflexão e partilha podem fazer-se a partir das seguintes linhas:

O autor da Primeira Carta a Timóteo deixa claro que a oração não pode ser a expressão de uma vida vivida em “circuito fechado”, em que o crente apresenta a Deus, exclusivamente, os seus problemas, as suas questões, os seus desejos, os seus pedidos, e em que, eventualmente, lembra a Deus aqueles que lhe são próximos; mas a oração tem de ser a expressão da comunhão e da solidariedade do crente com todos os irmãos espalhados pelo mundo inteiro – conhecidos e desconhecidos, amigos e inimigos, bons e maus, negros e brancos… Todo o crente, no seu diálogo com Deus, tem de deixar transparecer a ilimitada capacidade de amar e de ser solidário com todos os homens. É assim a nossa oração?

A oração só faz sentido se for a expressão de uma vida de comunhão – comunhão com Deus e comunhão com os irmãos. Portanto, não é impossível rezar e, ao mesmo tempo, cultivar sentimentos de ódio, de intolerância, de racismo, de divisão. Como me situo face a isto?

Também fica claro, neste texto, que a salvação não é monopólio ou privilégio de alguns, mas um dom universal que Deus oferece a todos os homens, sem exceção. Esta universalidade acentua a nossa ligação a todos os homens, a nossa solidariedade com todos. Sinto-me, verdadeiramente, irmão de todos, responsável por todos? As dores e as esperanças de todos os homens – mesmo aqueles que eu nunca vi – são as minhas dores e esperanças? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 16, 1-13

«Um homem rico tinha um administrador, que foi denunciado por andar a desperdiçar os seus bens».

«E o senhor elogiou o administrador desonesto, por ter procedido com esperteza.».

«Não podeis servir a Deus e ao dinheiro».

 

Ambiente

O Evangelho que nos é proposto apresenta-nos mais um passo do “caminho para Jerusalém”. Desta vez, Jesus não Se dirige aos fariseus, mas aos discípulos e, através deles, aos crentes de todos os tempos… Com uma história que apresenta contornos de caso real, tirado da vida, Jesus instrui os discípulos acerca da forma como se hão-de situar face aos bens deste mundo. in Dehonianos

A reflexão e partilha podem considerar as seguintes linhas:

O mundo em que vivemos decidiu que o dinheiro é o deus fundamental e que tudo deixa de ter importância, desde que se possam acrescentar mais uns números à conta bancária. Para ganhar mais dinheiro, há quem trabalhe doze ou quinze horas por dia, num ritmo de escravo, e prescinda da família e dos amigos; por dinheiro, há quem sacrifique a sua dignidade e apareça a expor, diante de uma câmara de televisão, a sua intimidade e a sua privacidade; por dinheiro, há quem venda a sua consciência e renuncie a princípios em que acredita; por dinheiro, há quem não tenha escrúpulos em sacrificar a vida dos seus irmãos e venda drogas e armas que matam; por dinheiro, há quem seja injusto, explore os seus operários, se recuse a pagar o salário do mês porque o trabalhador é ilegal e não se pode queixar às autoridades… Que pensamos disto? Ser escravo dos bens é algo que só acontece aos outros? Talvez não cheguemos, nunca, a estes casos extremos; mas até onde seríamos capazes de ir por causa do dinheiro?

Jesus avisa os discípulos de que a aposta obsessiva no “deus dinheiro” não é o caminho mais seguro para construir valores duradouros, geradores de vida plena e de felicidade. É preciso – sugere Ele – que saibamos aquilo em que devemos apostar… O que é, para nós, mais importante: os valores do “Reino” ou o dinheiro? Na nossa atividade profissional, o que é que nos move: o dinheiro, ou o serviço que prestamos e a ajuda que damos aos nossos irmãos? O que é que nos torna mais livres, mais humanos e mais felizes: a escravidão dos bens ou o amor e a partilha?

Todo este discurso não significa que o dinheiro seja uma coisa desprezível e imoral, do qual devamos fugir a todo o custo. O dinheiro (é preciso ter os pés bem assentes na terra) é algo imprescindível para vivermos neste mundo e para termos uma vida com qualidade e dignidade… No entanto, Jesus recomenda que o dinheiro não se torne uma obsessão, uma escravidão, pois Ele não nos assegura (e muitas vezes até perturba) a conquista

dos valores duradouros e da vida plena. in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura da profecia de Amós é a condenação daqueles que colocando a sua segurança nos bens deste mundo espezinham e oprimem os pobres. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ter em conta este tom, tendo em atenção as frases interrogativas e o tom ambicioso de quem pela ganância tudo quer. Além disso, é importante ler com um tom diferente a frase final onde Deus promete não esquecer as obras do Seu Povo.

Na segunda leitura, deve ter-se em atenção as frases longas com diversas orações próprias da literatura paulina. Deste modo, deve haver um especial cuidado nas respirações e nas pausas para uma eficaz proclamação da leitura.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

TÃO POBRE, TÃO POBRE, TÃO POBRE…, QUE SÓ TINHA DINHEIRO!

O uso cristão da riqueza preenche quase por completo o Capítulo 16 do Evangelho de Lucas. Digo «quase», porque temos de excluir apenas uma breve palavra sobre a lei (Lucas 16,16-17) e outra, brevíssima, sobre o divórcio (Lucas 16,18). Dividindo o Capítulo em duas grandes partes, ficamos então com duas belas parábolas de Jesus: a primeira (Lucas 16,1-13), conhecida como «O administrador desonesto», será proclamada neste Domingo XXV do Tempo Comum, e a segunda (Lucas 16,19-31), conhecida como parábola do «Rico avarento e do pobre Lázaro», será proclamada no Domingo seguinte, XXVI do Tempo Comum.

A parábola do Administrador desonesto, que escutaremos neste Domingo XXV, tem sempre desorientado quer os leitores e ouvintes que a leem ou ouvem com simplicidade e bom senso, quer os exegetas que pretendem captar os seus segredos e penetrar nos seus veios mais profundos. E o problema reside nisto: é possível que o Evangelho proponha como modelo a imitar um homem desonesto?

Os exegetas enveredam habitualmente, para atenuar o mal-estar sentido, pelos costumes em uso na Palestina, em que as terras eram muitas vezes propriedade de grandes senhores, em muitos casos estrangeiros, que deixavam no terreno administradores locais, a quem davam grande margem de manobra, desde que, no final do ano, entregassem ao senhor o que tinham acordado. Neste sentido, é facilmente compreensível que o administrador ou feitor, de acordo com os negócios feitos, podia também obter licitamente os seus lucros, e que tenha sido com a sua parte dos lucros que o administrador, em nada prejudicando o seu senhor, tenha levado a efeito aqueles descontos que vemos nesta parábola.

Explicação aparentemente fácil e sensata, mas que não pode ser levada em conta. É demasiado equilíbrio para tão pouca explicação! Em boa verdade, a parábola não chama a atenção para a desonestidade do administrador, nem para os meios a que recorreu para fazer amigos. Claramente, a sua desonestidade não interessa a Jesus: não a condena, e tão pouco recomenda que a imitemos. Em vez disso, Jesus chama a nossa atenção para a prontidão e inteligência com que o administrador procede, sem permitir que o assalte, nem por um momento, a hesitação.

É verdade que o administrador da parábola e o discípulo de Jesus que a escuta, pertencem a duas maneiras diferentes de estar na vida e de proceder: o primeiro obedece à lógica do mundo; o segundo à do Reino. Trata-se evidentemente de duas maneiras diferentes de encarar a vida. Não obstante, o discípulo de Jesus, de acordo com o andamento da parábola, deve aprender do administrador, não a ser desonesto, mas a capacidade de decidir com prontidão, inteligência e largueza. É isto que está em causa. É que, face ao Reino de Deus, o discípulo de Jesus deve ser igualmente rápido, hábil e perspicaz a tomar decisões. Não há, de facto, urgência maior. É quanto resulta do ensino de Jesus no caminho.

Mas a grande questão que salta da parábola é ainda esta: e Jesus não esbanja também os bens do Pai, o amor, o perdão, a misericórdia? Surge, portanto, uma segunda e inevitável questão: e nós, discípulos de Jesus, que vimos e ouvimos estas coisas no caminho, guardamos ciosamente estas riquezas divinas só para nós, ou desperdiçámo-las com largueza e alegria como Jesus?

A parábola contada por Jesus permite ainda uma correta compreensão sobre a função do dinheiro. O dinheiro é para servir o homem, mas torna-se muitas vezes o seu dono, diante do qual nós nos prostramos, segurança enganadora, falso sucedâneo de Deus, ídolo, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve também para dizer a fé e a confiança em Deus. É como quem diz que podemos equivocar-nos radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5). No nosso caso e nesta sociedade moderna, pode tratar-se de belos edifícios plantados no meio das cidades. É aí que estão os bancos! O historiador das religiões, David Flüsser, atravessava um dia a cidade de Atenas enquanto refletia sobre a fé, grego pístis, no Novo Testamento. E quando levantou os olhos, deparou-se com grandes letras no frontal de um edifício. Leu: trápeza tês písteôs, à letra, banco de fé, em termos modernos, banco de crédito! Veja-se, hoje, com olhar lúcido, o logro ou o lodaçal das nossas arquitetadas seguranças!

Daí a muito bíblica e oriental advertência de Jesus: «Ninguém pode servir a dois senhores», donde: «Não podeis servir a Deus e ao dinheiro» (Lucas 16,13). De notar que o Livro de Ben-Sirá já advertia com sabedoria: «Muitos pecam por amor ao dinheiro. Aquele que procura enriquecer faz todas as falcatruas». E ainda: «Como se introduz um pau entre as junturas das pedras, assim se intromete o pecado entre a venda e a compra» (Ben-Sirá 27,1-3).

O livro de Amós, de que hoje ouvimos também uma pequena perícope (8,4-7), caustica severamente a exploração dos pobres, a corrupção e o lucro fácil. O mundo de Amós é de oito séculos antes de Cristo. Mas o seu Livro parece ter sido escrito hoje, dada a sua tremenda atualidade. A lição de hoje abre com a chamada «fórmula de atenção» (Ouvi), que introduz habitualmente oráculos de desgraça, e dirige-se aos ricos e latifundiários, que vendem o trigo aos necessitados, enganando-os e roubando-os sorrateiramente, usando balanças, medidas e pesos falseados, comprando o trabalho dos pobres por um par de sandálias! Como se vê, sendo embora o texto do séc. VIII a.C., parece que estamos a ler um compêndio moderno de economia e comércio, que tem em vista apenas o lucro fácil a custo seja do que for. O oráculo termina referindo que para um tal comportamento de roubo, para cúmulo disfarçado de seriedade, não há amnistia: «nunca o esquecerei», diz Deus (v. 7). O efá, de que se fala no texto (v. 5), usado para medir cereais, equivalia a 45 litros. O sheqel ou siclo, de que também se fala no v. 5, pesava 11,4 gramas. A moeda propriamente dita aparece no séc. VIII na Anatólia, e pouco depois na Grécia. O sheqel é o nome atualmente usado para designar a moeda israelita.

Chega-nos hoje mais uma extraordinária lição de São Paulo na sua 1 Carta a Timóteo 2,1-8. Primeiro que tudo (prôton pántôn), rezar por todos os homens, usando todas as modalidades da oração: súplicas (deêseis), orações intensas (proseuchaí), pedidos (enteúxeis), ações de graças (eucharistíai) (v. 1). Depois, a afirmação da vontade salvadora universal de Deus, nosso Salvador, que quer que todos os homens sejam salvos, e ao conhecimento da verdade venham (v. 4). Dois movimentos: um da parte de Deus, nunca anulável; outro da nossa parte, que nos devemos pôr em movimento em ordem ao conhecimento profundo, pessoal, íntimo, experimental (epígnôsis) da verdade, que é o amor fiel e fiável de Deus por nós. Em continuidade, o único mediador entre Deus e os homens, o homem Jesus Cristo, que se entregou a si mesmo por nós (vv. 5-6). A seguir, a razão de ser do próprio Paulo e da sua missão de anunciador (kêryx) e apóstolo (apóstolos) (v.7). Por último, como ao princípio, a vontade de Paulo de que todos rezem em toda a parte (v. 8).

E ficamos com a música inebriante do Salmo 113, o Salmo que abre o fascículo dos Salmos 113-118, catalogados como o «pequeno Hallel da Páscoa» ou «Hallel egípcio», cantados no decurso da Ceia da Páscoa hebraica, de que o Talmude registra uma imagem sugestiva, deixando supor que, no decurso da Ceia da Páscoa, se levantava das casas dos hebreus um suspiro de louvor que perfurava os tetos e chegava ao céu: «A Páscoa é saborosa como a azeitona, e o Hallel deve atravessar os tetos das casas para chegar ao trono de Deus». O Salmo 113, sessenta palavras hebraicas, apresenta três belos andamentos: o primeiro, vv. 1-3, convida os orantes a encher de louvor o espaço todo visto na sua linha horizontal (do nascer ao pôr do sol: oriente-ocidente) e o tempo todo (agora e sempre). Este louvor intenso dirige-se à pessoa do Senhor, expressa pelo Nome do Senhor (três vezes). O segundo andamento, vv. 4-6, desenha uma linha vertical no sentido descendente (céu-terra), e mostra a transcendência, a glória e a incomparabilidade de Deus, sentado no alto, nos céus, mas amorosamente debruçado sobre a terra. Portanto, o nosso Deus não é um Deus impassível e abstrato, fechado nas paredes douradas da sua eternidade, mas é um Deus que se interessa por nós. O terceiro andamento, vv. 7-9, desenha agora uma linha vertical no sentido ascendente (terra-céu), e mostra Deus em ação no nosso mundo, levantando do pó e do esterco os indigentes, e fazendo da estéril, por todos desprezada, mãe honrada e feliz, habitante digna na casa do Senhor. Grande Hino de Louvor, que faz comunhão na vertical e na horizontal, e que nos junta a todos na bênção (. 2), hebraico berakah, grego eulogía, que desenha um mundo de bondade e de bem, de pensar bem, dizer bem, querer bem, fazer bem. Bendizer ou dizer bem une, como sabemos. Une-nos uns com os outros e todos com Deus. É a Eucaristia. Ao contrário, maldizer ou dizer mal separa, como também sabemos.

Mas nunca nos esqueçamos que não pode ser o dinheiro a comandar a nossa vida. Nunca nos devemos esquecer da história daquele fulano que era tão pobre, tão pobre, tão pobre…, que só tinha dinheiro!

D. António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – Domingo XXV Tempo Comum – Ano C – 18.09.2022 (Am 8, 4-7)
    2. Leitura II – Domingo XXV Tempo Comum – Ano C – 18.09.2022 (1Tim 2,1-8)
    3. Domingo XXV do Tempo Comum – Ano C – 18.09.2022 – Lecionário
    4. Domingo XXV do Tempo Comum – Ano C – 18.09.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XXIV do Tempo Comum – Ano C – 11.09.2022

Viver a Palavra

A Liturgia da Palavra deste Domingo é uma verdadeira visita guiada ao coração de Deus. Jesus revela-nos o rosto do Pai e abre-nos uma janela com vista direta para o Seu coração cheio de amor e misericórdia. Deste modo, tal como afirmou o Papa Francisco na primeira homilia dominical do seu pontificado: «a mensagem de Jesus é sempre a mesma: a misericórdia. A meu ver – humildemente o afirmo –, é a mensagem mais forte do Senhor: a misericórdia».

Deste modo, estamos no centro da mensagem evangélica e contemplamos a identidade de Deus, a sua ontologia, que necessariamente caracteriza todo o Seu agir e o modo como se relaciona connosco. O nosso Deus é o Deus do amor e da alegria, o Deus do perdão e da festa que não permite que o nosso pecado, que o mal e o sofrimento tenham a última palavra.

A nossa fragilidade e o nosso pecado não são um obstáculo à misericórdia de Deus, mas uma oportunidade de encontro com a ternura do Pai que rasga diante de nós um horizonte de esperança pela estrada sempre nova da conversão.

Como o Povo de Israel, também nós, peregrinando rumo à pátria celeste, tantas vezes nos desviamos do caminho e construímos bezerros de metal fundido, depositando a nossa vida e a nossa esperança em quem não nos pode salvar. Na verdade, já não temos Moisés a interceder por nós, mas o próprio Deus, revelado em Jesus Cristo, como mediador da Nova e Eterna Aliança, que pela Sua morte na Cruz nos redime e salva e nos recorda o amor persistente do pastor que perdeu a sua ovelha, da mulher que não sabe da sua dracma e do pai que respeitando a liberdade do seu filho o vê partir para longe.

Estamos diante do capítulo quinze do Evangelho de S. Lucas, uma longa e única parábola em três andamentos. Diante da indignação dos escribas e fariseus que murmuram entre si porque Ele acolhe os publicanos e pecadores, Jesus conta-lhes esta parábola. Jesus dirige-se a eles e neles a todos e cada um de nós.

Jesus acolhe a todos: publicanos e pecadores, escribas e fariseus. Para todos, Jesus tem uma palavra de amor e de esperança, de interpelação e provocação. Na verdade, estas parábolas dizem-nos que tanto nos podemos perder lá longe como a ovelha e o filho mais novo, como nos podemos perder em casa como a moeda ou o filho mais velho.

É certo que muitas vezes nos revemos mais facilmente na ovelha perdida do que nos noventa e nove fariseus cumpridores de ordens que se julgam justos e piedosos ou gostamos muito mais de nos identificar com o filho que sai de casa com a herança de seu pai e a dissipa numa vida dissoluta que no filho que se recusa a entrar na festa preparada para celebrar o reencontro do seu irmão.

Contudo, somos filho mais novo e filho mais velho, somos pecadores humilhados e fragilizados pela fadiga dos nossos pecados, mas também muitas vezes pecadores cheios da presunção e do orgulho que nos impedem de reconhecer as nossas fragilidades. Porém, nenhum destes é um caminho sem saída e como Paulo podemos cantar o hino da gratidão, louvando o Pai que em Jesus Cristo nos faz dignos do Seu amor e da Sua bondade e nos convida a ser servidores da alegria da vida reencontrada, proclamando com a vida que o caminho da conversão inaugura um tempo novo e rasga caminhos de esperanças quando tudo parece perdido.

Perde-se uma ovelha, perde-se uma moeda, perde-se um filho. Mas Deus não perde a esperança, não esquece a Sua Aliança, não perde o amor que tem por nós e derrama sobre a nossa vida o Seu amor feito perdão, ternura, bondade e misericórdia. Por isso, queremos, em cada dia, rezar com as palavras do salmista: «criai em mim, ó Deus, um coração puro e fazei nascer dentro de mim um espírito firme». In Voz Portucalense

LEITURA I – Ex 32, 7-11.13-14
«Lembrai-Vos dos vossos servos Abraão, Isaac e Israel, a quem jurastes pelo vosso nome».

 Ambiente

O texto que nos é proposto está integrado na segunda parte do Livro do Êxodo; aí, apresentam-se as tradições que dizem respeito ao compromisso de amor e de comunhão que Israel aceitou estabelecer com Jahwéh. São as “tradições sobre a aliança” (cf. Ex 19-40).

O texto situa-nos em frente de um monte, no deserto do Sinai. Em si, o nome “Sinai” designa uma enorme península em forma triangular, com mais ou menos 420 Km de extensão norte/sul, estendendo-se entre o golfo do Suez, no Mediterrâneo e o golfo da Áqaba, no mar Vermelho. A península inteira é um deserto árido, com vegetação escassa (exceto em alguns raros oásis), semeada de montanhas que chegam a atingir os 2400 metros de altitude. As hipóteses de situar exatamente o “monte da aliança” são ténues; no entanto, uma tradição cristã do séc. IV d.C. identifica o “monte da aliança” com o “Gebel Musa” (“monte de Moisés”), uma montanha com 2244 metros de altitude, situada a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da aliança” com este lugar seja problemática, o “Gebel Musa” é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.
Seja qual for o lugar da aliança, o facto é que o texto nos situa em frente de um “monte” não identificado da península sinaítica, onde Israel celebrou uma aliança com o seu Deus. Depois de Moisés subir ao monte para receber de Deus as tábuas da Lei (cf. Ex 31,18), o Povo, reunido no sopé da montanha à espera de Moisés, construiu um bezerro de ouro e infringiu, dessa forma, os termos da aliança (cf. Ex 32,1-6). in Dehonianos

 Para a reflexão do texto, considerar os seguintes elementos:

Antes de mais, o texto sublinha a lealdade de Deus para com o seu Povo, a “justiça” que marca a relação de Jahwéh com Israel (entendida como fidelidade aos compromissos assumidos por Deus para com os homens). Fica, aqui, claro que a essência de Deus é esse amor gratuito que Ele derrama gratuitamente sobre os homens, qualquer que seja o seu pecado… Deus ama infinitamente, seja qual for a resposta do homem; e esse amor nunca será desmentido. É à luz desta perspetiva que devemos encarar Deus e a sua relação connosco.

O pecado dos israelitas (a construção de uma imagem deturpada de Deus) leva-nos a questionar as imagens que, às vezes, construímos e transmitimos de Deus… O Deus em Quem acreditamos e que testemunhamos, quem é? É o Deus que Se revelou como amor, bondade, misericórdia, ao longo da história da salvação, ou é um Deus vingativo e cruel, que não desculpa as faltas dos homens e que anda à cata de qualquer comportamento faltoso para deixar cair sobre eles a sua cólera e a sua crueldade? Não esqueçamos: testemunhar um Deus vingativo, impositivo, sem coração e sem misericórdia, é fabricar uma falsa imagem de Deus.

Atente-se na atitude de Moisés, face à indignação de Deus: intercede pelo Povo e não deixa que a ambição pessoal se sobreponha ao interesse de Israel (de acordo com o texto, Deus propôs-lhe: “deixa que a minha indignação se inflame contra eles e os destrua; de ti farei uma grande nação”; mas Moisés não aceitou a proposta). A atitude de Moisés é uma atitude “fácil”, à luz dos critérios dos homens? Quantas vezes os homens são capazes de “vender a alma ao diabo” para subir, para ter êxito, para chegar a presidir a qualquer coisa? Quantas vezes os homens são capazes de sacrificar os valores mais sagrados para serem conhecidos, famosos, invejados, ou para adquirir uma fatia mais de poder e de influência? in Dehonianos

 SALMO RESPONSORIAL Salmo 50 (51)
Refrão: «Vou partir e vou ter com meu pai».

 LEITURA II – 1 Tim 1, 12-17
«A graça de Nosso Senhor superabundou em mim, com a fé e a caridade que temos em Cristo Jesus».

 Ambiente

O Timóteo aqui referenciado era natural de Listra (Licaónia), filho de pai grego e de mãe judeo-cristã. Aparece no Livro dos Atos como companheiro inseparável de Paulo, a partir da segunda viagem missionária. Paulo teria confiado a Timóteo missões importantes entre os tessalonicenses (cf. 1 Tess 3,2.6) e entre os coríntios (cf. 1 Cor 4,1.17;16,10-11). Ainda muito jovem Timóteo recebeu de Paulo a responsabilidade pastoral das Igrejas da província da Ásia (cf. 1 Tim 4,12). A tradição considera-o como o primeiro bispo de Éfeso.

Esta carta apresenta-se como escrita por Paulo a Timóteo, quando este está encarregue da animação da Igreja de Éfeso. Contém uma série de instruções que versam, fundamentalmente, sobre três temas: a organização da comunidade, a forma de combater os hereges e a vida cristã dos fiéis. Convém, no entanto, acrescentar que a maior parte dos comentadores não considera esta carta de autoria paulina: a linguagem e a teologia não parecem ser paulinas; e, sobretudo, a carta supõe um modelo de organização eclesial que é dos finais do séc. I d.C. (Paulo teria morrido na perseguição de Nero, por volta de 66/67 d.C.).in Dehonianos

 Na reflexão e partilha, considerar as seguintes linhas:

Antes de mais, somos convidados a tomar consciência do amor que Deus oferece a todos os homens, sem excepção, sejam quais forem as suas faltas… Foi esse Deus que Paulo experimentou e que testemunhou; é esse, também, o Deus que experimentamos e testemunhamos?

Entre os cristãos existe, muitas vezes, a convicção de que a “justiça de Deus” é a aplicação rigorosa da lei; assim, Deus trataria bem os bons, enquanto castigaria, natural e objetivamente, os maus… A história de Paulo – e a história de tantos homens e mulheres, ao longo dos séculos – é um desmentido desta lógica: o amor de Deus derrama-se sobre todos os homens, mesmo sobre aqueles que têm vidas duvidosas e pecadoras. Bons e maus, a todos Deus ama, sem exceção. E nós? Somos filhos deste Deus e amamos os nossos irmãos, sem distinções? Às vezes ouvem-se – mesmo entre os cristãos – expressões de ódio e de desprezo em relação àqueles que cometem desacatos ou que têm comportamentos que reprovamos… Como conciliar essas atitudes com o exemplo de amor sem restrições que Deus nos oferece?

O nosso texto termina com um hino de louvor ao Deus que ama, sem exceções… Sentimo-nos agradecidos a Deus por esse amor nunca desmentido, que se derrama sobre nós, sejam quais forem as circunstâncias? in Dehonianos

 EVANGELHO – Lc 15,1-32

«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».
«Alegrai-vos comigo, porque encontrei a minha ovelha perdida».
«Comamos e festejemos, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado».

 Ambiente

No “caminho para Jerusalém” aparece, em dado momento, uma catequese sobre a misericórdia de Deus… Com efeito, todo o capítulo 15 de Lucas é preenchido com as chamadas “parábolas da misericórdia”.
Trata-se de um tema caro a Lucas. Para este evangelista, Jesus é o Deus que veio ao encontro dos homens para lhes oferecer, em gestos concretos, a salvação. As parábolas da misericórdia expressam, de forma privilegiada, o amor de Deus que se derrama sobre os pecadores.

A parábola da ovelha perdida – a primeira que o Evangelho de hoje nos propõe – é comum a Lucas e Mateus (cf. Mt 18,12-14), embora em Mateus apareça em contexto diverso: trata-se de material que provém, provavelmente, da “fonte Q” (coleção de “ditos” de Jesus, que Mateus e Lucas utilizaram na composição dos respetivos evangelhos). As parábolas da dracma perdida e do filho pródigo (as outras duas parábolas que completam este capítulo) são exclusivas de Lucas.

O discurso de Jesus apresentado em Lc 15 é enquadrado, pelo evangelista, numa situação concreta. Ao ver que alguns infratores notórios da moral pública (como os cobradores de impostos) se aproximavam de Jesus e eram acolhidos por Ele, os fariseus e os escribas (que não admitiam qualquer contacto com os pecadores e os desclassificados e até mudavam de passeio para não se cruzar com eles) expressaram a sua admiração por Jesus os acolher e por (atitude inaudita!) Se sentar à mesa com eles (o sentar-se à mesa expressava familiaridade, comunhão de vida e de destinos). É essa crítica que vai provocar o discurso de Jesus sobre a atitude misericordiosa de Deus.in Dehonianos

Considerar, na reflexão, os seguintes desenvolvimentos:

Essencialmente, as parábolas da misericórdia revelam-nos um Deus que ama todos os seus filhos, sem exceção, mas que tem um “fraco” pelos marginalizados, pelos excluídos, pelos pecadores… O seu amor não é condicional: Ele ama, apesar do pecado e do afastamento do filho. Esse amor manifesta-se em atitudes exageradas, desproporcionadas, de cuidado, de solicitude; revela-se também na “festa” que se sucede a cada reencontro… Não é que Deus pactue com o pecado; Deus abomina o pecado, mas não deixa de amar o pecador. É este Deus – “escandaloso” para os que se consideram justos, perfeitos, irrepreensíveis, mas fascinante e amoroso para todos aqueles que estão conscientes da sua fragilidade e do seu pecado – que somos convidados a descobrir.

Se essa é a lógica de Deus em relação aos pecadores, é essa mesma lógica que deve marcar a minha atitude face àqueles que me ofendem e, mesmo, face àqueles que têm vidas duvidosas ou moralmente reprováveis. Como é que eu acolho aqueles que me ofendem, ou que assumem comportamentos considerados reprováveis: com intolerância e fanatismo, ou com respeito pela sua dignidade de pessoas?

Face ao aumento da criminalidade e da violência cria-se, por vezes, um clima social de alguma histeria e radicalismo. Exigem-se castigos mais severos e os adeptos das soluções definitivas chegam a falar na pena de morte para certos crimes. Que sentido é que isto faz, à luz da lógica de Deus?

Ser testemunha da misericórdia e do amor de Deus no mundo não significa, no entanto, pactuar com o pecado… O pecado – tudo o que gera ódio, egoísmo, injustiça, opressão, mentira, sofrimento – é mau e deve ser combatido e vencido. Distingamos claramente as coisas: Deus convida-me a amar o pecador e a acolhê-lo sempre como um irmão; mas convida-me também a lutar objetivamente contra o mal – todo o mal – pois ele é uma negação desse amor de Deus que eu devo testemunhar. in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura apresenta o diálogo entre o Senhor e Moisés, entre a indignação de Deus e o pedido de clemência de Moisés. A proclamação desta leitura deve refletir a tensão presente neste diálogo, tendo em atenção as longas frases de discurso direto.

Na segunda leitura, S. Paulo escrevendo a Timóteo dá graças pela misericórdia infinita de Deus e apresenta assim uma oração de louvor pela condescendência de Deus que o escolheu e chamou. Esta leitura deve ser lida em modo orante, com os sentimentos de louvor e de júbilo, tendo em atenção a fórmula doxológica com que termina.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ESTA PARÁBOLA DA MISERICÓRDIA

Este Domingo XXIV do Tempo Comum oferece-nos a proclamação e audição integral, assim vivamente o espero, da grande parábola guardada em Lucas 15,1-32. A página lucana tem lugar garantido em qualquer antologia dos mais belos textos de todos os tempos.

É a história dos pecadores e dos publicanos, dos escribas e dos fariseus. De uns e de outros, todos temos um pouco. Todos se aproximam de Jesus: os primeiros para o escutar com alegria; os segundos para o recriminar com azedume pelo facto de ele receber os primeiros e comer com eles. Há, portanto, aqui um comportamento novo, misericordioso, inclusivo e acolhedor por parte de Jesus. Os pecadores compreendem que Jesus traz um Evangelho, uma Notícia Boa e Feliz. Os escribas e os fariseus, porém, não consideram a Notícia suficientemente Boa. Por isso, dele se aproximam os pecadores, até então marginalizados e hostilizados pela tradição religiosa vigente; por isso, o recriminam os fariseus e os escribas, os garantes da velha tradição religiosa, rigorista, classista e exclusivista.

A estes últimos conta Jesus uma parábola. Note-se bem: uma parábola, «esta parábola» (taútên parabolên) (v. 3), no singular, e não três parábolas, como é usual dizer-se. Note-se também que, para escutarmos corretamente «esta parábola» de Jesus, é do lado dos fariseus e dos escribas que nos devemos postar, dado que é para eles que Jesus conta a parábola. «Esta parábola» é, portanto, para eles e para o nosso lado orgulhoso, farisaico, classista e exclusivista, para o nosso como eles. É notório que, dado o desenrolar da história contada por Jesus, gostemos mais de nos rever na ovelha perdida e encontrada do que nos noventa e nove fariseus cumpridores de ordens e que, por isso, se julgam piedosos e justos com direitos e créditos sobre Deus, como também nos revemos habitualmente naquele filho que sai de casa e que acaba por voltar, sendo recebido por um Pai carinhoso que o espera de braços abertos. Mas, para que a história contada por Jesus nos caia em cima, como um relâmpago, é mesmo do outro lado de nós que nos devemos colocar.

A eles e a nós mostra Jesus a premura do pastor que corre, ainda que tenha de ser a vida inteira, à procura da sua ovelha perdida. E mostra depois a alegria incontida que sente quando a encontra, e em que quer fazer participar os seus amigos e vizinhos. A mesma premura e alegria toma conta da mulher que procura e encontra a moedinha que perdeu no chão de terra e basalto negro da sua humilde casa.

Mas já Jesus traz para a cena, sem deixar a audiência respirar, um Pai excecionalmente maravilhoso e bom, em quem pulsa um imenso coração e vibram entranhas de misericórdia. Tem dois filhos, que nos representam a todos: um claramente pecador, que opta por sair de casa, depois de ter pedido ao pai a sua parte da herança. Note-se que todo o pai dá três coisas aos seus filhos: o pão, todos os dias; roupas novas, nos tempos festivos; a herança, uma única vez na vida, pouco antes de morrer. O Livro de Ben-Sirá tira-nos todas as dúvidas, ao deixar escrito: «No último dia dos dias da tua vida, na hora da tua morte, distribui a tua herança» (33,24). O pedido deste filho de receber a herança assume, portanto, um imenso dramatismo. Fazendo o pedido que faz, este filho como que mata o pai, enquanto morre como filho! Não quer mesmo mais ser filho nem depender de nenhum pai.

Parte para longe, gasta tudo, torna-se um assalariado desamparado, guarda porcos, vive abaixo de porco (não lhe é sequer permitido comer com os porcos, como os porcos!). É o seu ponto mais baixo. Pensa então em voltar para casa, mas como assalariado, não como filho. Prestemos atenção ao discurso em três pontos que prepara: 1) «Pai, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou mais digno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados» (Lucas 15,18-19).

Ei-lo, portanto, que regressa. Mas já o Pai está à espera dele com um imenso abraço de alma a alma. Mas o filho tinha preparado o seu discurso em três pontos, e ei-lo que começa a debitá-lo: 1) «Pai, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou mais digno de ser chamado teu filho» (Lucas 15,21). Como se compreende, o terceiro ponto do discurso que tinha preparado era fatal, e o filho já não o diz. Não porque não quisesse, mas porque o Pai o interrompe, dizendo aos criados: «Depressa…» (Lucas 15,22).

É então que a surpresa enche outra vez a cena. Quando nós regressamos a casa, a Deus, nunca encontraremos um Pai distraído, ou que mudou de residência, ou que responde de forma brusca, distante e fria. Está lá sempre à nossa espera, na soleira da porta ou à janela, verdadeiramente comovido, a transbordar de misericórdia desde as entranhas (splagchnízomai) (Lucas 15,20), de braços abertos, precede-nos, recebe-nos, reabilita-nos como filhos fazendo-nos vestir «o primeiro vestido» (stolê tê prôtê) (Lucas 15,22), isto é, o que vestíamos antes e abandonámos, portanto, o de filhos, quando nós queremos é ser assalariados. Depois, faz uma festa, mata o vitelo gordo, prepara um banquete de arromba (euphraínô), vai mesmo até ao ponto de chamar uma orquestra (symphônía)! Alegria excessiva deste Pai pródigo de amor e misericórdia!

É aqui que surge em cena o outro filho, que estava no campo (Lucas 15,25). Esta nota do «campo» serve só para nos dizer que é um dia de semana, e que o Pai desta história faz festa sem esperar pelo fim-de-semana! Este filho mais velho é retratado como um bom cumpridor de ordens, um «justo» e zeloso fariseu, igualzinho aos fariseus «justos» e zelosos que tinham aparecido no início da história. Tal como estes, também este filho se acha com direitos e créditos sobre Deus. Em Deus não vê um Pai, mas um patrão que tem de lhe pagar, pois «nunca transgrediu uma ordem dele» (Lucas 15,29). Sempre igualzinho aos fariseus que no início da história recriminavam Jesus porque acolhia e comia com os pecadores, também este filho recrimina o seu pai por acolher e ter tudo preparado para comer com um pecador! O Pai implora-lhe que entre para o banquete da alegria. Mas a história termina sem nos dizer se este filho, que somos também nós, entra ou não entra na sala do banquete. Final estratégico. Afinal a história de Jesus foi contada para os fariseus, e nós devemos ter compreendido que devemos tomar lugar ao lado deles, pois também nós temos uma boa parte de fariseus, para sermos atingidos em cheio pela história contada por Jesus. A história termina sem nos dizer se aquele filho, fariseu, entrou ou não entrou na sala da alegria. História deixada propositadamente em aberto pelo narrador. Não nos esqueçamos que a história foi contada para nós. É então a nós que cabe tomar a decisão! Entramos ou não entramos na sala do banquete? Como vemos Deus? Como um Pai ou como um patrão? E os nossos irmãos são para nos alegrarmos com eles ou para os insultarmos e denegrirmos?

É também interessante notar que os dois filhos desta história falam ao Pai, ao seu Pai comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em nenhum momento da história se falam um ao outro. Se calhar, também como nós. Só sabemos falar por trás, entre raivas acumuladas, insultos e desprezo. Parece que também neste aspeto a história de Jesus põe a nossa vida a descoberto!

Por último, a história que ouvimos mostra-nos e adverte-nos que tanto nos podemos perder lá longe, no deserto, como a ovelha e o filho mais novo, como nos podemos perder em casa, como a moeda e o segundo filho. Atenção, portanto: podemos andar perdidos em casa, numa casa fria, sem Pai e sem irmãos, sem lareira, sem mesa e sem alegria! Só com patrão e assalariados! E, ainda por cima, podemos pensar que somos zelosos e até beatos (!), muito melhores do que os outros. Todos os cuidados, portanto!

Faz sintonia com o quadro impressionante do Evangelho de hoje a página igualmente fascinante do Livro do Êxodo 32,7-14. É sabido que o texto assinalado segue imediatamente o episódio do bezerro de ouro, que encontramos em Êxodo 32,1-6, e que constitui como que uma paródia, rutura e perversão do assentimento do povo em Êxodo 19,8 e 24,3.7, em que o povo afirmou: «Faremos todas as palavras que o Senhor falou». Êxodo 32,1-6 mostra que o povo faz, não a Palavra de Deus, mas um bezerro! A página de hoje recupera o episódio do bezerro, pondo o povo a adorá-lo, a oferecer-lhe sacrifícios, e a confessar diante dele: «Este é o teu deus, ó Israel, que te fez subir da terra do Egipto» (v. 8). Posto isto, o caudal do texto de hoje atinge-nos em duas vagas: a primeira, expressa nos vv. 7-10, mostra-nos Deus a falar com Moisés acerca de um Israel desviado de Deus e obstinado, e que Deus pretende destruir, para começar tudo de novo só com Moisés; a segunda, expressa nos vv. 11-13, mostra-nos Moisés no papel de intercessor, como que dizendo a Deus: «Não faças isso!», terminando, no v. 14, com Deus a atender a súplica de Moisés e a desistir do seu projeto de destruição do povo.

A primeira vaga abre com Deus a dizer para Moisés: «Vai, desce, que o teu povo, que tu fizeste subir da terra do Egito, corrompeu-se» (v. 7), e a repeti-lo em Êxodo 33,1. Convenhamos que um tal dizer de Deus é estranho e traduz bem a corrupção do povo e a consequente rutura da Aliança. Dizendo o que diz e como o diz, Deus como que está, de certa maneira, a fazer recair sobre Moisés a responsabilidade da condução e do comportamento do povo («o teu povo, que tu fizeste subir da terra do Egito»); por outro lado, ao dizer o que diz e como o diz, Deus está a abrir a Moisés a porta para repor a verdade dos factos e assumir o papel de mediador-intercessor, em ordem a poder transformar em perdão o seu projeto destruidor. Este convite à intercessão de Moisés parece mesmo impor-se a partir da afirmação do v. 10, em que Deus avança a disjunção entre Moisés e o povo, e se propõe destruir o povo e começar tudo de novo só com Moisés: «E agora deixa-me a sós comigo mesmo, e arderá a minha cólera contra eles e os devorará, e de ti farei um grande povo». Eis como a porta fica entreaberta: se Deus decidiu mesmo destruir Israel, por que razão diz que o vai fazer antes de o fazer?

Na verdade, dizendo o que diz, quando o diz, a quem o diz, como o diz, Deus como que força Moisés a «ficar de pé, sobre a fresta (baperets), diante d’Ele», extraordinária expressão do Salmo 106,23, posição incómoda e difícil de quem deve assumir a vigilância e intercessão, não sobre o povo, mas sobre Deus, «para fazer voltar atrás a sua cólera de destruição». Percebe-se aqui alguma coisa do mistério deste Deus que não se comporta em relação aos homens como um homem ou como um princípio abstrato. De facto, no v. 11, início da segunda vaga, o narrador põe logo Moisés no papel de mediador-intercessor, apelando a Deus, e repondo a verdade do credo: «Mas Moisés implorou face ao Senhor, seu Deus, e disse: “Porquê, Senhor, arderá a tua cólera contra o Teu povo, que Tu fizeste sair da terra do Egito?”». Como se vê, a pronominalidade (tuteu) muda de Deus para Moisés (v. 7), e de novo de Moisés para Deus (v. 11). É o povo pecador a passar de mão em mão, para ficar finalmente em boas mãos, nas mãos de Deus. Valeu a intercessão vigilante de Moisés, que «permaneceu de pé, sobre a fresta, diante dele, para fazer regredir a sua cólera de destruição».

Na lição da 1 Carta a Timóteo 1,12-17, hoje também lida, vemos São Paulo em ação de graças a Jesus Cristo, Senhor Nosso, porque sendo blasfemo, perseguidor e insolente, foi objeto da graça e da misericórdia superabundantes que há em Cristo Jesus. E afirma com fé esclarecida e verificada que Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, de que ele é o primeiro. Assim, pode Paulo apresentar-se como exemplo para aqueles que hão de acreditar. Fecha a perícope uma extraordinária doxologia: «Ao Rei dos séculos, ao Deus incorruptível, invisível e único, honra e glória, pelos séculos dos séculos. Ámen» (v. 17).

Cantamos hoje, em perfeita consonância com toda a liturgia deste Domingo, alguns acordes do Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear a música que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Enxerto aqui as palavras preciosas que constituem a introdução: «Faz-me graça (hannenî), ó Deus, segundo o Teu amor (hesed)! Segundo a multidão das Tuas misericórdias (rahamîm), apaga as minhas transgressões (peshaʽîm)! Lava-me e relava-me da minha iniquidade (ʽawah), e do meu pecado (hathaʼ) purifica-me!» (vv. 3-4). Quem é Deus? Graça, amor, misericórdias. Quem sou eu? Transgressões, iniquidade, pecado. Será Deus o vencedor ou serei eu? Claro que é Deus. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, de seu nome: «Um homem disse a Rabiʽa: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabiʽa: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar”» (I detti di Rabiʽa, XII, 2).

Ainda agora abri a página em branco do deve-e-haver
Deste tempo que me é dado viver.
Não sei ainda os registos que nela se farão,
Mas já sei que, ao terminar o dia,
A página agora aberta transbordará de perdão e de alegria.

É essa a lição que se recebe do grande Salmo deste dia:
«Faz-me graça, ó Deus, segundo o teu amor,
Segundo a multidão das tuas misericórdias!
Apaga as minhas transgressões,
Lava-me e relava-me da minha iniquidade,
E do meu pecado purifica-me!».

 Graça, amor, misericórdias:
É a tua bondade aqui três vezes dita.
Transgressõesiniquidadepecado:
É a minha maldade aqui também três vezes repetida.

Tu e eu sempre frente-a-frente,
Sempre lado-a-lado:
Teu é o amor, meu é o pecado.
Mas vê-se bem que esta luta tem um vencedor antecipado:
Sim, o teu amor acaba sempre por vencer o meu pecado!

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – XXIV Domingo Tempo Comum – Ano C – 11.09.2022 (Ex 32, 7-11.13-14)
    2. Leitura II – XXIV Domingo Tempo Comum – Ano C – 11.09.2022 (1Tim 1, 12-17)
    3. Domingo XXIV do Tempo Comum – Ano C – 11.09.2022 – Lecionário
    4. Domingo XXIV do Tempo Comum – Ano C – 11.09.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

 26«Se alguém vem ter comigo e não me tem mais amor que ao seu pai, à sua mãe, à sua esposa, aos seus filhos, aos seus irmãos, às suas irmãs e até à própria vida, não pode ser meu discípulo. 27Quem não tomar a sua cruz para me seguir não pode ser meu discípulo. Lc 14, 26-27

Viver a Palavra

A liturgia deste domingo convida-nos a tomar consciência de quanto é exigente o caminho do “Reino”. Optar pelo “Reino” não é escolher um caminho de facilidade, mas sim aceitar percorrer um caminho de renúncia e de dom da vida.

 

LEITURA I – Sab 9,13-19

 

Ambiente

O Livro da Sabedoria é um texto de carácter sapiencial (isto é, cujo objetivo é transmitir a “sabedoria”, identificada com a arte de bem viver, de ter êxito e de ser feliz). O autor apresenta-se como um “rei”, apaixonado pela “sabedoria” e que construiu um templo na “montanha santa” e um altar na “cidade da habitação de Deus” (Sab 9,6-8). Tudo indica, pois, que o autor quer apresentar-se como sendo o rei Salomão; mas trata-se de um livro escrito na primeira metade do séc. I a.C. (Salomão é da primeira metade do séc. X a.C.) por um judeu piedoso, provavelmente pertencente à comunidade judaica de Alexandria. O objetivo do autor é duplo: por um lado, dirige-se aos seus compatriotas, mergulhados no paganismo, na idolatria e na imoralidade, e mostra-lhes as vantagens de perseverar na fé e de viver na justiça; por outro lado, dirige-se aos pagãos e apresenta-lhes a superioridade da fé e dos valores israelitas. O autor exprime-se em termos e conceções do mundo helénico, esforçando-se por exprimir a sua fé e as suas convicções numa linguagem atualizada, erudita, bem ao gosto da cultura grega da época.

O texto que nos é apresentado é o final da segunda parte do livro (cf. Sab 6,1-9,18). Aí, o autor coloca na boca de um rei (Salomão, embora o nome nunca seja referido explicitamente) o elogio da “sabedoria”. In Dehonianos

 

A reflexão pode fazer-se a partir dos seguintes dados:

Face ao contínuo cruzamento de perspetivas, de desafios, de teorias, ficamos confusos e sem saber, tantas vezes, como escolher. Por outro lado, as nossas escolhas acabam, tantas vezes, por ser condicionadas pelos “media”, pelo politicamente correto, pela ideologia dominante, pela moda, pelos valores que as telenovelas impõem, pelas ideias das pessoas que nos rodeiam, pela filosofia da empresa que nos paga ao fim do mês… Será que esses caminhos que nos são mais ou menos impostos nos conduzem no sentido da vida plena, da realização total, da felicidade?

Para os crentes, o critério que serve para julgar a validade ou a não validade dessas propostas é o Evangelho – embora, muitas vezes, ele se apresente em absoluta contradição com os valores que a sociedade propõe e impõe. Como é que eu me situo face a isto? O que é que vale mais, quando tenho de decidir: os valores do Evangelho, ou as propostas dessa máquina trituradora, impositiva, limitadora das escolhas individuais que é a opinião pública? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 89 (90)

Refrão: Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações.

 

LEITURA II – Flm 9b-10.12-17

Ambiente

A Carta a Filémon é a mais breve e pessoal das cartas de Paulo. É endereçada a um tal Filémon, aparentemente um membro destacado da Igreja de Colossos.

A partir dos dados da carta, podemos reconstruir as circunstâncias em que o texto aparece. Onésimo, escravo de Filémon, fugiu de casa do seu senhor. Encontrou Paulo, ligou-se a ele e tornou-se cristão. Paulo, que nessa altura estava na prisão (em Éfeso? Em Roma?), fê-lo seu colaborador e manteve-o junto de si. No entanto, a situação podia tornar-se delicada se Filémon se ofendesse com Paulo; e, do ponto de vista legal, ao dar guarida a um escravo fugitivo, Paulo era cúmplice de uma grave infração ao direito privado. Enfim, Onésimo corria o risco de ser preso, devolvido ao seu senhor e severamente castigado.

É neste contexto que Paulo resolve enviar Onésimo a Filémon. Onésimo leva consigo uma carta, em que Paulo explica a Filémon a situação e intercede pelo escravo fugitivo. Com extrema delicadeza, Paulo insinua a Filémon que, sendo possível, lhe devolva Onésimo, já que este lhe vem sendo de grande utilidade; no entanto, Paulo pede, sugere, mas sem impor nada e deixando a decisão nas mãos de Filémon.

É um texto belíssimo, carregado de sentimentos, “verdadeira obra-prima de tato e de coração”. In Dehonianos

 

Para a reflexão, considerar as seguintes questões:

O amor – elemento que está no centro da experiência cristã – exige ao cristão o reconhecimento efetivo da igualdade de todos as pessoas, apesar das diferenças de cor da pele, de estatuto social, de sexo, de opções políticas. O meu comportamento para com aqueles que comigo se cruzam é sempre consequente com esta exigência? A cor da pele alguma vez me levou a discriminar alguém? O facto de uma pessoa ser pobre ou rica já alguma vez me levou a tratá-la com mais ou menos consideração? O facto de uma pessoa ser homem ou mulher já alguma vez me levou a dar-lhe mais ou menos importância ou dignidade?

O amor – elemento que está no centro da experiência cristã – exige que as nossas comunidades sejam espaços de comunhão, de fraternidade, de acolhimento, sejam quais forem os defeitos dos irmãos. As nossas comunidades têm facilidade em acolher? Como são tratados os “diferentes” ou, então, aqueles que se afastaram ou que cometeram alguma falta? Acolhemo-los com amor, ou marcamo-los toda a vida com o estigma da suspeita e da desconfiança? in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 14,25-33

Ambiente

Estamos, ainda, no “caminho para Jerusalém”. Desta vez, o ensinamento de Jesus dirige-se “às multidões”, quer dizer, a todos os discípulos presentes e futuros de Jesus.

A parábola anterior (cf. Lc 14,15-24) havia sugerido que o “banquete do Reino” estava aberto a todos os que aceitassem o convite de Jesus, inclusive aos pobres, estropiados, cegos e coxos… Agora, Lucas vai apresentar algumas exigências que devem cumprir todos aqueles que entram no “banquete do Reino”. A “instrução” reúne diversos ensinamentos de Jesus sobre a condição dos discípulos, predominando o tema da renúncia. in Dehonianos

Para refletir e partilhar, considerar as seguintes questões:

Jesus não é um demagogo que faz promessas fáceis e cuja preocupação é juntar adeptos ou atrair multidões a qualquer preço. Ele é o Deus que veio ao nosso encontro com uma proposta de salvação, de vida plena; no entanto, essa proposta implica uma adesão séria, exigente, radical, sem “paninhos quentes” ou “meias tintas”. O caminho que Jesus propõe não é um caminho de “massas”, mas um caminho de “discípulos”: implica uma adesão incondicional ao “Reino”, à sua dinâmica, à sua lógica; e isso não é para todos, mas apenas para os discípulos que fazem séria e conscientemente essa opção. Como é que eu me situo face a isto? O projeto de Jesus é, para mim, uma opção radical, que eu abracei com convicção e a tempo inteiro ou um projeto em que eu vou estando, sem grande esforço ou compromisso, por inércia, por comodismo, por tradição?

A forma exigente como Jesus põe a questão da adesão ao “Reino” e à sua dinâmica faz-nos pensar na nossa pastoral – vocacionada para ser uma pastoral de massas – e na tentação que sentem os agentes da pastoral no sentido de facilitar as coisas, de não serem exigentes… Às vezes, interessa mais que as estatísticas da paróquia apresentem um grande número de batizados, de casamentos, de crismas, de comunhões, do que propor, com exigência, a radicalidade do Evangelho e dos valores de Jesus… O caminho cristão é um caminho de facilidade, onde cabe tudo, ou é um caminho verdadeiramente exigente, onde só cabem aqueles que aceitam a radicalidade de Jesus? A nossa pastoral deve facilitar tudo, ou ir pelo caminho da exigência?

Às vezes, as pessoas procuram a comunidade cristã por tradição, por influências do meio social ou familiar, porque “a cerimónia religiosa fica bonita nas fotografias”… Sem recusarmos nada, devemos, contudo, fazê-las perceber que a opção pelo batismo ou pelo casamento religioso é uma opção séria e exigente, que só faz sentido no quadro de um compromisso com o “Reino” e com a proposta de Jesus.

Dentro do quadro de exigências que Jesus apresenta aos discípulos, sobressai a exigência de preferir Jesus à própria família. Isso não significa, evidentemente, que devamos rejeitar os laços que nos unem àqueles que amamos… No entanto, significa que os laços afetivos, por mais sagrados que sejam, não devem afastar-nos dos valores do “Reino”. As pessoas têm mais importância para mim do que o “Reino”? Já me aconteceu renunciar aos valores do “Reino” por causa de alguém?

Outra exigência que Jesus faz aos discípulos é a renúncia à própria vida e o tomar a cruz do amor, do serviço, do dom da vida. O que é mais importante para mim: os meus interesses, os meus valores egoístas, ou o serviço dos irmãos e o dom da vida?

Uma terceira exigência de Jesus pede aos candidatos a discípulos a renúncia aos bens. Os bens, a procura da riqueza são, para mim, uma prioridade fundamental? O que é mais importante: a partilha, a solidariedade, a fraternidade, o amor aos outros, ou o ter mais, o juntar mais? in Dehonianos

 

Para os leitores:

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

OPERAÇÃO DE CORAÇÃO ABERTO

Desde Lucas 9,51 que Jesus está decididamente A CAMINHO de Jerusalém. E assim continuará até Lucas 19,28. Com este belo recurso à tipologia do CAMINHO (hodós) e do verbo CAMINHAR (poreúomai), Lucas exemplifica e clarifica o modo cristão de viver. Porque todo o CAMINHO abre o mundo ao meio, enquanto vai desenhando e atualizando a nossa vida em duas partes: «para a frente» e «para trás». Note-se que Lucas é, de longe, o Autor do Novo Testamento que mais vezes usa estes vocábulos, sensivelmente 40 em 100 vezes «caminho» (hodós), e 88 em 150 vezes «caminhar» (poreúomai). Num mundo plano como o nosso, o Evangelho de Lucas rasga CAMINHOS e procede a verdadeiras operações de CORAÇÃO aberto. CAMINHO que abre CAMINHOS novos, novas maneiras de viver, com Jesus, que é o CAMINHO, sabe o CAMINHO, mostra o CAMINHO e faz o CAMINHO, a enxertar a plenitude nesta nossa imensa e chata planitude.

E aí está o Evangelho deste Domingo XXIII do Tempo Comum (Lucas 14,25-33) a abrir com a indicação de que «CAMINHAVAM com Ele multidões numerosas» (Lucas 14,25). E Jesus, sempre com tempo, a voltar-se para nos dizer palavras cortantes como bisturis: «Se alguém vem ter comigo e não odeia (miséô) o próprio pai e a mãe e a mulher e os filhos e os irmãos e as irmãs, e até a própria vida, não pode ser meu discípulo» (Lucas 14,26-27). O que se diz aqui da família mais direta e da própria vida, dir-se-á um pouco mais à frente dos «próprios bens» (Lucas 14,33).

Compreenda-se, antes de mais, o sentido daquele «odiar» (miséô). É óbvio que não se trata de ódio em sentido próprio. Colidiria, por exemplo, com Lucas 18,20, em que Jesus, citando os mandamentos ao homem rico, refere a «honra devida ao pai e à mãe». E contradiria o mandamento do amor ao próximo. O «odiar» acima referido é, na verdade, a tradução do modo de dizer aramaico, hebraico e semítico em geral, línguas que não têm outro verbo para dizer «preferir». Vê-se melhor com exemplos: em Génesis 29,31, lê-se literalmente: «O Senhor viu que Lia era odiada», e em Génesis 29,33, após ter concebido Simeão, lê-se literalmente: «O Senhor viu que eu era odiada». Em Deuteronómio 21,15-17, lê-se literalmente: «Se forem para um homem duas mulheres, e ele amar uma e odiar a outra, e gerarem para ele filhos, a que é amada e a que é odiada, e se for o filho primogénito da odiada…». Nos dois textos do Génesis, a locução era odiada aparece sempre traduzida por não era amada. No texto do Deuteronómio, que apresenta o contraponto entre a mulher amada e a mulher odiada, a mulher odiada é a não amada ou de que não gosta. Portanto, é facilmente compreensível que o sentido do texto acima não passa por «odiar» a família ou a própria vida, mas por alguém «preferir» ou «pôr antes», «à frente», do seguimento de Jesus a família, a própria vida ou os bens.

Posto isto, entenda-se bem que o CAMINHO de Jesus é um CAMINHO de decisões fortes. Sendo que «decisão» deriva de «decidere», cuja etimologia remete para «cortar». Aí estamos outra vez então no domínio do bisturi e da operação de CORAÇÃO aberto que tem de fazer todo o discípulo de Jesus. A ligação do discípulo a Jesus deve estar antes e ser a chave de leitura de todas as outras ligações: consigo próprio, com a família, com os amigos, com os bens. «Despedir-se» (apotássomai) de todos os seus bens não significa deitá-los fora, fugir deles. Significa, antes, dar-lhes o uso correto. Verificação: as mulheres que seguiam Jesus e os seus discípulos desde a Galileia, serviam-nos (diakonéô) com os seus bens (Lucas 8,3).

Sendo um CAMINHO de decisões fortes, de cortes, é também um CAMINHO de ponderação e deliberação atenta e serena. Por isso, por duas vezes, o dizer de Jesus convida a «sentar-se primeiro» (Lucas 14,28 e 31). Sim, seguir Jesus no seu CAMINHO implica ser fiel a Jesus da mesma maneira que Jesus é fiel ao Pai. Não se pode compor uma espécie de cristianismo à medida, selecionando de Jesus os aspetos que nos agradam, deixando outros de lado.

A Assembleia Dominical é um tempo extraordinariamente denso e intenso, em que os discípulos de Jesus e as multidões se sentam para ouvir a Palavra de Deus, e para tomar as decisões consentâneas com a força da Palavra que escutamos. Decisões são cortes. São incisões. Todos os discípulos de Jesus se devem sujeitar urgentemente a esta operação de CORAÇÃO aberto.

Sim, os nossos passos e pensamentos são falíveis, e andamos muitas vezes cansados com o peso das preocupações do dia a dia. Tudo, sobre a terra, requer trabalho e sacrifício. Até o pão que comemos requer trabalho duro. Mas Deus dá-o aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2). E dá também a Sabedoria, para nos guiar, e sem a qual nada vale. Peçamo-la ao Senhor, enquanto estamos sentados a ponderar e discernir. Sem ela, nada do céu conseguimos saber. E é urgente conhecer a vontade de Deus, para nos vincularmos a ela. A lição é do Livro da Sabedoria 9,13-18.

Não é necessário «odiar» ninguém. Mas é preciso, é decisivo e incisivo «amar mais», para sermos e termos «mais» irmãos. Ainda há muitos «Onésimos» à espera de um amor novo que os liberte, que nos liberte. Vai nesse sentido o bilhete postal que Paulo envia a Filémon 9-17, para que receba Onésimo como filho, e não como escravo. Esta pequena Carta, quase um bilhete postal (tem apenas 25 versículos), já foi definida como uma «pequena obra-prima de tato e de coração». Em dia de Domingo, é hoje a única oportunidade que a liturgia nos oferece para a conhecermos melhor por dentro e por fora. É sintomático que tenhamos encontrado um bilhete postal semelhante do escritor latino Plínio, o Moço, (61-112), quase contemporâneo de S. Paulo, endereçado a um certo Sabiniano em favor de um escravo fugido. E a única razão que Plínio invoca para mudar em suavidade a cólera do patrão é a da superioridade da mansidão sobre a ira e da generosidade sobre a violência. «Envio-to, ele que é as minhas entranhas (splágchna) (v. 12), isto é, a ternura que há em mim. «Recebe-o como se fosse a mim próprio» (v. 17), como «irmão amado» … «no Senhor» (v. 16). Deixamos aqui algumas palavras de uma pequena, mas bela homilia que fez Lutero num Domingo de setembro de 1522, exatamente sobre este pequeno escrito paulino que traduz «de modo magistral um delicioso exemplo de amor cristão». (…) «Cristo representa-nos a todos junto do Pai e ama-nos tanto. E nós somos todos seus Onésimos».

O Salmo 90 põe em cena a eternidade e a solidez de Deus em confronto com a fragilidade e o sabor efémero da vida humana, sempre vista no microscópio de Deus. Este confronto é cantado na elegia sapiencial dos vv. 1-10, sendo de súplica os vv. 11-17. O primeiro movimento pode resumir-se na afirmação do v. 4: «Mil anos aos teus olhos são o dia de ontem que passou, como uma vigília da noite». E o segundo movimento tem o seu ponto alto no v. 12: «Ensina-nos a bem contar os nossos anos, para chegarmos à sabedoria do coração». Estar de passagem e sermos tão frágeis como a flor da erva (vv. 5-6), não nos leva para o pessimismo, mas para viver intensamente a vida que Deus nos dá, Ele que é e permanece o nosso refúgio de geração em geração (v. 1). Um dos clássicos estudiosos dos Salmos, Artur Weiser (1893-1978), alemão, de tradição Evangélica, expressa bem esta realidade: «Na luz da graça de Deus, um reflexo de eternidade cai também sobre a vida e sobre a obra do homem. Da parte de Deus, a fragilidade recebe subsistência, a miséria torna-se glória, aquilo que parecia sem sentido, alcança significado… É como se a estrela de outro mundo viesse fazer luz sobre o fluir dos nossos dias».

 D. António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I – Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano C – 04.09.2022 (Sab 9, 13-19)
        2. Leitura II – Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano C – 04.09.2022 (Flm 9b-10.12-17)
        3. Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano C – 04.09.2022 – Lecionário
        4. Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano C – 04.09.2022 – Oração Universal
        5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XXII do Tempo Comum – Ano C – 28.08.2022

8«Quando fores convidado para um banquete, não ocupes o primeiro lugar; não suceda que tenha sido convidado alguém mais digno do que tu, 9venha o que vos convidou, a ti e ao outro, e te diga: ‘Cede o teu lugar a este.’ Ficarias envergonhado e passarias a ocupar o último lugar. 10Mas, quando fores convidado, senta-te no último lugar; e assim, quando vier o que te convidou, há-de dizer-te: ‘Amigo, vem mais para cima.’ Então, isto será uma honra para ti, aos olhos de todos os que estiverem contigo à mesa. 11Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e o que se humilha será exaltado.» Lc 14, 8-11

Viver a Palavra

A liturgia deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre alguns valores que acompanham o desafio do “Reino”: a humildade, a gratuidade, o amor desinteressado.

 

LEITURA I – Sir 3,19-21.30-31

 

Ambiente

Estamos no início do séc. II a.C., quando os selêucidas dominavam a Palestina. O helenismo tinha começado o seu trabalho pernicioso no sentido de minar a cultura e os valores tradicionais de Israel. Muitos judeus – incluindo membros de famílias de origem sacerdotal – deixavam-se seduzir pelo brilho da cultura helénica, começavam a abandonar os valores dos pais e a aderir aos valores da cultura invasora…

Jesus Ben Sira é, no entanto, um judeu tradicional, orgulhoso da sua fé e dos valores israelitas. Consciente de que o helenismo ameaçava as raízes do seu Povo, vai escrever para defender o património religioso e cultural do judaísmo. Procura convencer os seus compatriotas de que Israel possui, na sua “Torah” revelada por Deus, a verdadeira “sabedoria” – uma “sabedoria” muito superior à “sabedoria” grega. Aos israelitas seduzidos pela cultura grega, Jesus Ben Sira lembra a herança comum, procurando sublinhar a grandeza dos valores judaicos e demonstrando que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.

O texto que nos é proposto pertence à primeira parte do livro (cf. Ben Sira 1,1-23,38). Aí fala-se da “sabedoria”, criada por Deus e oferecida a todos os homens. Nesta parte, dominam os “ditos” e “provérbios” que ensinam a arte de bem viver e de ser feliz.in Dehonianos

Para a reflexão e partilha, considerar os seguintes dados:

Ser humilde significa assumir com simplicidade o nosso lugar, pôr a render os nossos talentos, mas sem nunca humilhar os outros ou esmagá-los com a nossa superioridade. Significa pôr os próprios dons ao serviço de todos, com simplicidade e com amor. Quando somos capazes de assumir, com simplicidade e desprendimento, o nosso papel, todos reconhecem o nosso contributo, aceitam-nos, talvez nos admirem e nos amem… É aí que está a “sabedoria”, quer dizer, o segredo do êxito e da felicidade.

Ser soberbo significa que “a árvore da maldade criou raízes” no homem. O homem que se deixa dominar pelo orgulho torna-se egoísta, injusto, autossuficiente e despreza os outros. Deixa de precisar de Deus e dos outros homens; olha todos com superioridade e pratica, com frequência, gestos de prepotência que o tornam temido, mas nunca admirado ou amado. Vive à parte, num egoísmo vazio e estéril. Embora seja conhecido e apareça nas colunas sociais, está condenado ao fracasso. É o “anti sábio”.

É preciso que os dons que possuímos não nos subam à cabeça, não nos levem a poses ridículas de orgulho, de superioridade, de desprezo pelos nossos irmãos. É preciso reconhecer, com simplicidade, que tudo o que somos e temos é um dom de Deus e que as nossas qualidades não dependem dos nossos méritos, mas do amor de Deus.in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 67 (68)

Refrão: Na vossa bondade, Senhor, preparastes uma casa para o pobre

 

LEITURA II – Heb 12,18-19.22-24ª

Ambiente

Estamos na quinta parte da Carta aos Hebreus (cf. 12,14-13,19). Depois de pedir a perseverança e a constância nas provas (cf. Heb 12,1-13), o autor vai pedir uma conduta consequente com a fé cristã: os crentes são exortados a manter e cultivar relações harmoniosas, adequadas, justas, para com os homens e para com Deus.

Neste texto, em concreto, o autor convida os destinatários da carta à fidelidade à vocação cristã. Para isso, estabelece um paralelo entre a antiga religião (que os destinatários da carta conheciam bem) e a nova proposta de salvação que Cristo veio apresentar. Os crentes são, assim, convidados a redescobrir a novidade do cristianismo – essa novidade que, um dia, os atraiu e motivou – e a aderir a ela com entusiasmo…. Recordemos – para que as coisas façam sentido – que o escrito se destina a uma comunidade instalada, preguiçosa, que precisa descobrir os fundamentos reais da sua fé e do seu compromisso, a fim de enfrentar – com coragem e com êxito – os tempos difíceis de perseguição e de martírio que se aproximam.in Dehonianos

 

A reflexão e a atualização podem fazer-se a partir das seguintes linhas:

A questão fundamental deste texto e do ambiente que o enquadra é propor-nos uma redescoberta da nossa fé e do sentido das nossas opções, a fim de superarmos a instalação, o comodismo e a preguiça que nos levam, tantas vezes, a uma caminhada cristã morna, sem exigências, sem compromissos, que facilmente cede e recua quando aparecem as dificuldades e os desafios…

Jesus intimou-nos a superar a perspetiva de um Deus terrível, opressor, vingativo, de Quem o homem se aproxima com medo; em seu lugar, Ele apresentou-nos a religião de um Deus que é Pai, que nos ama, que nos convoca para a comunhão com Ele e com os irmãos e que insiste em associar-nos como “filhos” à sua família. Tenho consciência de que este é o verdadeiro rosto de Deus e que o Deus terrível, de quem o homem não se pode aproximar, é uma invenção dos homens. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 14,1.7-14

 

Ambiente

Esta etapa do “caminho de Jerusalém” põe Jesus à mesa, em dia de sábado, na casa de um dos chefes dos fariseus. Deve tratar-se da refeição solene de sábado, que se tomava por volta do meio-dia, ao voltar da sinagoga. Para ela deviam convidar-se os hóspedes; durante a refeição, continuava-se a discussão sobre as leituras escutadas durante o ofício sinagogal.

Lucas é o único evangelista que mostra os fariseus tão próximos de Jesus que até o convidam para casa e se sentam à mesa com Ele (cf. Lc 7,36; 11,37). É provável que se trate de uma realidade histórica, embora Marcos e Mateus apresentem os fariseus como os adversários por excelência de Jesus (Mateus apresenta tal quadro influenciado, sem dúvida, pelas polémicas da Igreja primitiva com os fariseus).

Os fariseus formavam um dos principais grupos religioso-políticos da sociedade palestina desta época. Dominavam os ofícios sinagogais e estavam presentes em todos os passos religiosos dos israelitas. A sua preocupação fundamental era transmitir a todos o amor pela Torah, quer escrita, quer oral. Tratava-se de um grupo sério, verdadeiramente empenhado na santificação do Povo de Deus; mas, ao absolutizarem a Lei, esqueciam as pessoas e passavam por cima do amor e da misericórdia. Ao considerarem-se a si próprios como “puros” (porque viviam de acordo com a Lei), desprezavam o “am aretz” (o “povo do país”) que, por causa da ignorância e da vida dura que levava, não podia cumprir integralmente os preceitos da Lei. Conscientes das suas capacidades, da sua integridade, da sua superioridade, não eram propriamente modelos de humildade. Isso talvez explique o ambiente de luta pelos lugares de honra que o Evangelho refere.

Convém, também, ter em conta que estamos no contexto de um “banquete”. O “banquete” é, no mundo semita, o espaço do encontro fraterno, onde os convivas partilham do mesmo alimento e estabelecem laços de comunhão, de proximidade, de familiaridade, de irmandade. Jesus aparece, muitas vezes, envolvido em banquetes, não porque fosse “comilão e bêbedo” (cf. Mt 11,19), mas porque, ao ser sinal de comunhão, de encontro, de familiaridade, o banquete anuncia a realidade do “reino”. in Dehonianos

Para a reflexão, considerar as seguintes linhas:

Na nossa sociedade, agressiva e competitiva, o valor da pessoa mede-se pela sua capacidade de se impor, de ter êxito, de triunfar, de ser o melhor… Quem tem valor é quem consegue ser presidente do conselho de administração da empresa aos trinta e cinco anos, ou o empregado com mais índices de venda, ou o condutor que, na estrada, põe em risco a sua vida, mas chega uns segundos à frente dos outros… Todos os outros são vencidos, incapazes, fracos, olhados com comiseração. Vale a pena gastar a vida assim? Estes podem ser os objetivos supremos, que dão sentido verdadeiro à vida do homem?

A Igreja, fruto do “Reino”, deve ser essa comunidade onde se torna realidade a lógica do “Reino” e onde se cultivam a humildade, a simplicidade, o amor gratuito e desinteressado. É-o, de facto?

Assistimos, por vezes, a uma corrida desenfreada na comunidade cristã pelos primeiros lugares. É uma luta – para alguns de vida ou de morte – em que se recorre a todos os meios: a intriga, a exibição, a defesa feroz do lugar conquistado, a humilhação de quem faz sombra ou incomoda… Para Jesus, as coisas são bastante claras: esta lógica não tem nada a ver com a lógica do “Reino”; quem prefere esquemas de superioridade, de prepotência, de humilhação dos outros, de ambição, de orgulho, está a impedir a chegada do “Reino”. Atenção: isto talvez não se aplique só àquela pessoa da nossa comunidade que detestamos e cujo nome nos apetece dizer sempre que ouvimos falar em gente que só gosta de mandar e se considera superior aos outros; isto talvez se aplique também em maior ou menor grau, a mim próprio.

Também há, na comunidade cristã, pessoas cuja ambição se sobrepõe à vontade de servir… Aquilo que os motiva e estimula são os títulos honoríficos, as honras, as homenagens, os lugares privilegiados, as “púrpuras”, e não o serviço humilde e o amor desinteressado. Esta será uma atitude consentânea com a pertença ao “Reino”?

Fica claro, na catequese que Lucas hoje nos propõe, que o tipo de relações que unem os membros da comunidade de Jesus não se baseia em “critérios comerciais” (interesses, negociatas, intercâmbio de favores), mas sim no amor gratuito e desinteressado. Só dessa forma, todos – inclusive os pobres, os humildes, aqueles que não têm poder nem dinheiro para retribuir os favores – aí terão lugar, numa verdadeira comunidade de amor e de fraternidade.

Os cegos e coxos representam, no Evangelho que hoje nos é proposto, todos aqueles que a religião oficial excluía da comunidade da salvação; apesar disso, Jesus diz que esses devem ser os primeiros convidados do “banquete do Reino”. Como é que os pecadores notórios, os marginais, os divorciados, os homossexuais, as prostitutas são acolhidos na Igreja de Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

A MISERICÓRDIA DA VERDADE

Imaginemos o final de uma manhã de verão batida por um vento quente, e que se está a celebrar um casamento hebraico com um número elevado de convidados que se empurram uns aos outros à volta da tenda nupcial, sob a qual, na presença do rabino, o noivo introduz o anel no dedo da noiva, enquanto profere a fórmula do Talmude: «Com este anel, ficas-me consagrada segundo a Lei de Moisés e de Israel». Seguir-se-á a leitura e a assinatura da ketubah, o documento legal que garante os direitos e os deveres dos cônjuges.

Ali ao lado, as mesas aguardam os convidados para o almoço festivo. Alguns já, entretanto, começaram a ocupar os lugares mais propícios à fotografia de jet-set com lugar assegurado nas primeiras páginas dos jornais do dia seguinte, enquanto outros procuram aproximar-se o mais possível dos esposos para, depois da oração das sete bênçãos rituais a Deus por ter criado a maravilha do amor humano, poderem assistir ao gesto de quebrar um copo de vinho, que é um gesto muito popular e significativo, que pretende recordar aos jovens esposos que ninguém, nem sequer dois jovens enamorados e felizes, conhecerá sempre uma alegria plena que nunca seja visitada por laivos de tristeza e dor.

O cenário descrito pode servir para situar o Evangelho deste Domingo XXII do Tempo Comum (Lucas 14,1.7-14), com Jesus a esquadrinhar aquelas faces oxidadas pela mentira e toldadas por latas e latas de tinta e montes e montes de aparências. E a partir das hipocrisias que se cruzam diante dos seus olhos, Jesus adverte os convidados que se atropelam na tentativa de ocupar os primeiros lugares: «Procurai os últimos lugares!» (Lucas 14,10), muito na linha da multissecular sabedoria de Israel: «Não te vanglories diante do rei,/ nem ocupes o lugar dos grandes,/ pois é melhor para ti que te digam: “Sobe para aqui!”,/ do que seres humilhado diante de um nobre» (Provérbios 25,6-7). O que Jesus tem em vista é esta muito humana e instintiva vanglória de nos sentirmos superiores aos outros, de o podermos mostrar, e de sermos reconhecidos como tal. Esta busca de prestígio, estes desejos vão de ostentar superioridade, pode ver-se até, imagine-se, no próprio funeral e na pedra tumular!

E, voltando-se depois para o fariseu que o tinha convidado, Jesus desequilibra-lhe a maneira mundana de ver e de fazer, e põe-lhe diante dos olhos a assimetria do Reino de Deus: «Quando deres um banquete, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos» (Lucas 14,12). Por esta lógica simétrica [hoje convido-te eu a ti; amanhã convidas-me tu a mim], os pobres ficam sempre de fora! A assimetria do Reino de Deus vira tudo do avesso e ao contrário: «convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos, e serás feliz por eles não terem com que te retribuir» (Lucas 14,14). Como se vê, aos quatro grupos de pessoas que dão lustro ao nosso «ego», Jesus contrapõe outros quatro grupos de pessoas habitualmente excluídas, não só por não trazerem nenhum lustro ao nosso «ego», mas até por criarem algum embaraço. Mas é por esta brecha de GRAÇA aberta no nosso quotidiano, que entra Deus e o mundo novo de Deus, diz Jesus.

A literatura talmúdica põe-nos esta assimetria da bondade diante dos olhos do modo mais radical possível, quando fala da «misericórdia da verdade» a propósito do sepultamento de um cadáver de que nenhum familiar próximo do defunto pôde ou quis ocupar-se. Diz o Talmude: «Se o Sumo-sacerdote, quando se dirige para o Templo para celebrar o Yôm Kippûr, se vem a deparar com um cadáver, não deve hesitar em “tornar-se impuro” no contacto com o cadáver, porque a “misericórdia da verdade” prevalece sobre a liturgia do Yôm Kippûr». O que faz, neste caso, o Sumo-sacerdote é símbolo de uma misericórdia absolutamente gratuita, pois o morto nada pode retribuir-lhe. Este ato de misericórdia quebra todos os cadeados do círculo encantado do nosso «eu», e abre-nos para a verdadeira imitação de Deus.

Aí está outra vez a ecoar a velha e assimétrica sabedoria de Israel: «Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te,/ para achares graça diante do Senhor […]. A água apaga a chama, / a esmola apaga os pecados» (Ben-Sirá 3,20 e 30). É fazendo assim, diz bem a Carta aos Hebreus, que vos aproximais de Deus, de Jesus, dos santos e de milhões de anjos reunidos em festa» (Hebreus 12,22-24).

Não nos esqueçamos de que «dar esmola» (eleêmosýnê) é «fazer GRAÇA» (eleêô). É, portanto, imitar Deus, a quem rezamos ou cantamos: Kýrie eléêson [= «Senhor, faz-nos GRAÇA»], isto é, embala-nos nos teus braços maternais e olha para nós com um olhar maternal.

Em Jesus, a GRAÇA é acessível a todos, pois Ele olha com olhos de GRAÇA para todos: ricos e pobres, justos e pecadores, sãos e doentes. Também para os fariseus. Note-se que o Evangelho de Lucas, que é o Evangelho da GRAÇA de Deus aberto para todos, é o único a pôr Jesus por três vezes à mesa com fariseus (veja-se 7,36; 11,37; 14,1).

O Salmo 68 constitui um imenso catálogo das maravilhas de Deus, expostas numa linguagem vivíssima, saltitante, incontrolável, como convém a Deus. Os Cruzados fizeram dele o seu hino de batalha. A parte que será cantada neste Domingo exalta Deus como aquele que faz estremecer os justos de incontida alegria, que, na sua santidade, se apresenta como Pai dos órfãos e defensor das viúvas, que dá uma casa aos sem-abrigo, faz sair os prisioneiros ao som de música, e deixa os rebeldes no deserto, derrama a sua chuva sobre a sua herança, envolve o pobre no seu manto de bondade. Riqueza cénica, cromática, rítmica, encantatória. O Salmo é unanimemente considerado o mais difícil do Saltério. Mas é sobretudo uma impressionante obra de amor e de fé que canta a ação de Deus na história, à frente do seu povo, e no meio do seu povo, em favor do seu povo.

 D. António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – Domingo XXII do Tempo Comum – Ano C – 28.08.2022 (Sir 3, 19-21.30-31)
    2. Leitura II – Domingo XXII do Tempo Comum – Ano C – 28.08.2022 (Hebr 12, 18-19.22-24a)
    3. Domingo XXII do Tempo Comum – Ano C – 28.08.2022 – Lecionário
    4. Domingo XXII do Tempo Comum – Ano C – 28.08.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XXI do Tempo Comum – Ano C – 21.08.2022

24«Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir. 25Uma vez que o dono da casa se levante e feche a porta, ficareis fora e batereis, dizendo: ‘Abre-nos, Senhor!’ Mas ele há-de responder-vos: ‘Não sei de onde sois. Lc 13, 24-25

Viver a Palavra

A liturgia deste domingo propõe-nos o tema da “salvação”. Diz-nos que o acesso ao “Reino” – à vida plena, à felicidade total (“salvação”) – é um dom que Deus oferece a todos os homens e mulheres, sem exceção; mas, para lá chegar, é preciso renunciar a uma vida baseada nesses valores que nos tornam orgulhosos, egoístas, prepotentes, autossuficientes, e seguir Jesus no seu caminho de amor, de entrega, de dom da vida.

 

LEITURA I – Is 66,18-21

 

Ambiente

Os capítulos 56-66 do livro de Isaías (conhecidos genericamente como “Trito-Isaías”) são atribuídos pela maior parte dos estudiosos atuais a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deutero-Isaías. Sobre estes autores não sabemos rigorosamente nada, a não ser que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do séc. VI e princípios do séc. V a.C. (as temáticas abordadas situam-nos, claramente, num contexto pós-exílio).
Dentro das fronteiras do antigo reino de Judá temos, por esta época, uma comunidade heterodoxa, que agrupa judeus regressados do Exílio, judeus que ficaram no país após a catástrofe de 586 a.C., estrangeiros que se estabeleceram em Jerusalém durante o Exílio e outros que, após o regresso dos exilados, vieram oferecer a sua mão-de-obra. Em relação aos estrangeiros, o problema põe-se da seguinte forma: em que medida esses estrangeiros, cada vez mais numerosos, podem ser integrados no Povo de Deus? A questão não é fácil, pois a comunidade regressada do Exílio, ameaçada por inimigos internos (as gentes que ficaram no país e que não entendem o zelo religioso dos retornados) e por inimigos externos (sobretudo os samaritanos), tem tendência a fechar-se. Esdras e Neemias – os grandes líderes desta fase – favoreceram, aliás, uma política xenófoba, proibindo até os casamentos mistos (cf. Esd 9-10; Ne 13,23-27).

Os textos do Trito-Isaías abordam o problema dos estrangeiros e, como coletânea de textos de autores e pregadores diversos, manifestam, a este respeito, uma vasta gama de atitudes, que vão desde o apelo ao aniquilamento das nações que se obstinam no mal (cf. Is 63,3-6; 64,1; 66,15-16), até à admissão de estrangeiros no seio do Povo de Deus. No geral, domina a perspetiva universalista…. É, aliás, nessa perspetiva aberta e tolerante para com os outros povos que o nosso texto nos coloca.in Dehonianos

Considerar as seguintes linhas, para a reflexão:

Não é novidade nenhuma dizer que “ao novo Povo de Deus, todos os homens são chamados” (Concílio Vaticano II, Lumen Gentium 13). No Povo de Deus não é decisivo nem a raça, nem o sexo, nem a posição social, nem a preparação intelectual, mas sim a adesão a Jesus e o compromisso com o projeto de salvação que o Pai oferece, em Jesus. As nossas comunidades são, não só em teoria, mas também na prática, espaços de igualdade e de fraternidade? Há algum tipo de discriminação na minha comunidade cristã, nomeadamente em relação a pessoas que se entende levarem vidas desregradas e moralmente fracassadas? Se há, que sentido é que isso faz?

Que sentido é que fazem, neste contexto, certas afirmações e atitudes de cristãos empenhados que refletem, na prática, um entranhado racismo? A xenofobia é consentânea com a vida de um crente? Por exemplo, dizer que “Portugal é dos portugueses; os outros que voltem para a sua terra” é colaborar na construção dessa comunidade universal, que é o projeto de Deus? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 116 (117)

Refrão: Ide por todo o mundo, anunciai a boa nova

 

LEITURA II – Heb 12,5-7.11-13

 

Ambiente

Voltamos à Carta aos Hebreus. O texto que hoje nos é proposto é a continuação do que lemos no passado domingo. Estamos na segunda secção da quarta parte da carta (cf. Heb 12,1-13), onde o autor faz um veemente apelo à constância e a perseverar na fé. Recordemos que esta carta se destina a uma comunidade (ou grupo de comunidades) que já perdeu o entusiasmo inicial e que se arrasta numa fé instalada, cómoda e sem grandes exigências; recordemos também que esta comunidade começa a conhecer as tribulações e as perseguições e corre o risco da apostasia. É neste contexto que temos de situar o apelo que o texto nos apresenta.in Dehonianos

 

Para a reflexão, ter em conta os seguintes elementos:

Com frequência, encontramos pessoas que põem em causa Deus, a partir da questão do sofrimento e do seu sentido: se Deus existe, porque é que deixa que o sofrimento marque a vida do homem, inclusive a vida dos justos e inocentes? Porque é que Deus prova o justo? O Povo de Deus formulou de várias formas estas questões e não encontrou respostas plenamente satisfatórias; mas uma das respostas passa pela constatação de que “Deus escreve direito por linhas tortas” e que Se serve dos acontecimentos mais dramáticos para nos ajudar a redescobrir o sentido da vida e das nossas opções. O sofrimento não é bom em si; mas ajuda-nos a perceber o sem sentido de certos caminhos que seguimos e a corrigir o rumo da nossa vida.

No fundo, os sofrimentos e as provas que temos de enfrentar não põem em causa esta certeza fundamental: Deus ama-nos e quer salvar-nos; o sofrimento e as provas permitem-nos, muitas vezes, descobrir essa realidade.

Apesar das crises, o cristão nunca deve esquecer o amor de Deus e agradecer por isso. Diante dos sofrimentos, resta-nos agradecer a preocupação desse Deus que, servindo-se dos dramas da vida, nos manifesta o seu amor e nos salva.in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 13,22-30

 

Ambiente

O episódio que o Evangelho de hoje nos apresenta recorda-nos que continuamos, com Jesus e com os discípulos, a percorrer o “caminho de Jerusalém”. O interesse central desta “viagem” continua a ser descrever os traços do autêntico crente e apontar o caminho do “Reino” à comunidade cristã, herdeira do projeto de Jesus.
O texto de Lc 13,22-30 é constituído por materiais de distintas procedências, aqui agrupados por razões de interesse temático. Inicialmente, eram “ditos” de Jesus (pronunciados em contextos distintos) sobre a entrada no “Reino” (Mateus apresenta os mesmos “ditos” sob formas e em contextos diferentes – cf. Lc 13,23-24 e Mt 7,13-14; Lc 13,25 e Mt 25,10-12; Lc 13,26-27 e Mt 7,22-23; Lc 13,28-29 e Mt 8,12; Lc 13,30 e Mt 19,30). Lucas aproveita-os para mostrar as diferenças entre a teologia dos judeus e a de Jesus, a propósito da salvação. in Dehonianos

Para refletir e partilhar, considerar os seguintes dados:

Em primeiro lugar, é preciso ter a consciência de que o “Reino” não está condicionado a qualquer lógica de sangue, de etnia, de classe, de ideologia política, de estatuto económico: é uma realidade que Deus oferece gratuitamente a todos; basta que se acolha essa oferta de salvação, se adira a Jesus e se aceite entrar pela “porta estreita”. Tenho consciência de que a comunidade de Jesus é a comunidade onde todos cabem e onde ninguém é excluído e marginalizado?

“Entrar pela porta estreita” significa, na lógica de Jesus, fazer-se pequeno, simples, humilde, servidor, capaz de amar os outros até ao extremo e de fazer da vida um dom. Por outras palavras: significa seguir Jesus no seu exemplo de amor e de entrega. Quando Tiago e João pretenderam reivindicar lugares privilegiados no “Reino”, Jesus apressou-Se a dizer-lhes que era necessário primeiro partilhar o destino de Jesus e fazer da vida um dom (“beber o cálice”) e um serviço (“o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a vida”). Jesus é, portanto, o modelo de todos os que querem “entrar pela porta estreita”. É o seu exemplo que é proposto a todos os discípulos.

Já constatámos todos que esta “porta estreita” não é, hoje, muito popular. A este propósito, os homens de hoje têm perspetivas bem diferentes de Jesus… A felicidade, a vida plena encontra-se, para muitos dos nossos contemporâneos, no poder, no êxito, na exposição social, nos cinco minutos de fama que a televisão proporciona, no dinheiro (afinal, o novo deus que move o mundo, que manipula as consciências e que define quem tem ou não êxito, quem é ou não feliz). Como nos situamos face a isto? As nossas opções vão mais vezes na linha da “porta larga” do mundo, ou da “porta estreita” de Jesus?

É preciso ter consciência de que o acesso ao “Reino” não é, nunca, uma conquista definitiva, mas algo que Deus nos oferece cada dia e que, cada dia, nós aceitamos ou rejeitamos. Ninguém tem automaticamente garantido, por decreto, o acesso ao “Reino”, de forma que possa, a partir de uma certa altura, ter comportamentos pouco consentâneos com os valores do “Reino”. O acesso à salvação é algo a que se responde – positiva ou negativamente – todos os dias e que nunca é um dado totalmente seguro e adquirido.

Para nós, assumidamente cristãos, onde está a salvação? Jesus dizia que, no banquete do “Reino”, muitos apareceriam a dizer: “comemos e bebemos contigo e tu ensinaste nas nossas praças”; mas receberiam como resposta: “não sei de onde sois; afastai-vos de mim todos os que praticais a iniquidade”. Este aviso toca de forma especial aqueles que conheceram bem Jesus, que se sentaram com Ele à mesa (da Eucaristia), que escutaram as suas palavras, que fizeram parte do conselho pastoral da paróquia, que foram fiéis guardiães das chaves da igreja ou dos cheques da conta bancária paroquial, que até, se calhar, se sentaram em tronos episcopais ou papais… mas que nunca se preocuparam em entrar pela “porta estreita” do serviço, da simplicidade, do amor, do dom da vida. Esses – Jesus é perfeitamente claro e objetivo – não terão lugar no “Reino”.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

E NÓS, QUE PENSÁVAMOS QUE TÍNHAMOS LUGAR GARANTIDO…

A profecia de Isaías (66,18-21), hoje lida e escutada, rompe os nossos estreitos e falsos privilégios e alarga em muito a estrada da salvação, pondo todos os povos, como nossos irmãos, festivamente a caminho de Jerusalém, cidade da fraternidade e da paz! Enfim, aí está de novo a fechar o Livro de Isaías a ideia grande de missão: urge levar a glória de Deus às nações (verdadeira dimensão missionária do Povo de Deus), em vez de nos deixarmos seduzir pela glória das nações (Isaías 66,19)! E a ideia revolucionária de alargar o sacerdócio, para além das cerradíssimas fronteiras sadoquitas e levíticas, para todas as nações (Isaías 66,21), refina, de certo modo, a comunidade do culto já, entretanto aberta, para espanto nosso, a eunucos e estrangeiros (Isaías 56,3-7)! Sempre para espanto nosso, o grande Isaías tinha já posto Deus a pronunciar a seguinte bênção: «Bendito o meu povo, o Egipto, e a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança» (Isaías 19,25). E já antes, no cântico de Sião do Capítulo 2,2-3, Isaías põe todas as nações a caminho de Jerusalém, para aí experimentarem a alegria de saborear, como filhos e irmãos, o pão da Palavra de Deus. E o profeta aproveita esta imensa procissão de esperança para gritar aos ouvidos dos seus concidadãos: «Vem, Casa de Jacob, vem, caminhar na luz do Senhor!» (Isaías 2,5).

Também a palavra do Evangelho proclamado neste Domingo XXI (Lucas 13,22-30) se dirige fortemente a NÓS, os que nos consideramos de dentro, e continua a desconcertar a nossa miopia no que às coisas de Deus diz respeito. «Comemos e bebemos contigo», «ouvimos os teus ensinamentos» (Lucas 13,26)! É como quem diz: frequentámos a Igreja e os sacramentos, comungámos tantas vezes, ouvimos proclamar a tua Palavra, conhecemos-Te muito bem, somos praticantes de longa data e até talvez… beatos!

Ficaremos espantados quando percebermos bem que os títulos que orgulhosamente ostentamos são falsos, há muito caducados, e não garantem o acesso a lugar nenhum no banquete do Reino dos Céus, pois não basta dizer «Senhor, Senhor!». É preciso «fazer a vontade do meu Pai que está nos céus!», diz-nos Jesus (Mateus 7,21).

Salta à vista que o texto de Lucas 13,22-30 se divide claramente em duas partes; Lucas 13,22-24 e Lucas 13,25-30. A primeira parte abre com o aceno ao caminho crucial de Jesus, que, desde Lucas 19,51, como já vimos, se dirige sem hesitação para Jerusalém. Lucas 13,22 apresenta-nos a segunda menção deste caminho para Jerusalém. É neste contexto do caminho, que surge a nossa pergunta: «Senhor, é pequeno o número dos que se salvam?» (Lucas 13,23). Como é seu hábito, Jesus não responde diretamente «sim» ou «não». Em vez disso, deixa uma forte interpelação (Lucas 13,24) e conta uma parábola (Lucas 13,25-30).

Eis a interpelação: «Lutai com todas as forças (verbo agonízô) por entrar pela porta estreita» (Lucas 13,24). O verbo empregado (agonízô) implica luta e empenho extremo, não assim-assim. A parábola é ainda mais desconcertante para nós. É mesmo tão desconcertante, que corremos o risco de nem sequer levarmos a sério o que ouvimos. Da porta estreita, Jesus passa para a casa, e para o dono da casa que fecha a porta (Lucas 13,25). E, pelos vistos, nós não estamos dentro da casa, estamos fora, a bater à porta e a gritar: «Senhor, abre-nos!». E, de dentro, vem a resposta do dono da casa: «Não vos conheço!» (Lucas 13,25).

Ao contrário, e para novo e ainda maior espanto nosso, NÓS, de fora, veremos a casa cheia de gente que vem de longe, do norte, do sul, do nascente e do poente (Lucas 13,29). E perguntaremos atravessados por um último espanto: então, NÓS, que somos padres, sacristães, ministros da comunhão, catequistas, acólitos, leitores, membros do conselho económico, do conselho pastoral, do grupo coral e não sei de quantas irmandades, NÓS, que estávamos sempre do lado de dentro, como é que agora estamos do lado de fora?! Então, e estes desconhecidos, pagãos, não praticantes, que antes tinham de nos pedir licença para entrar, como é que agora estão lá dentro, e nós cá fora?!

A razão é clara: o dono da casa não nos conhece (Lucas 13,25). Reside, então, aqui o problema. Estamos tantas vezes dentro das igrejas, tagarelamos uns com os outros, ocupamos ciosamente os nossos lugares, mas será que prestamos alguma atenção ao dono da casa? Será que chegamos a dar pela Presença que habita aquela Casa e que dá sentido à nossa vida? Falamos com Ele? Fazemos com Ele aquele caminho crucial?

É neste caminho que acontecem coisas importantes, e não podemos andar nele distraídos, inativos, de braços caídos. A página de Mateus 25 explicita bem o tom do Evangelho de hoje: «Afastai-vos de MIM (…), pois tive fome e não ME destes de comer, tive sede e não ME destes de beber, era estrangeiro e não ME acolhestes, nu e não ME vestistes, estive doente e na prisão e não ME visitastes. (…) Em verdade vos digo: cada vez que não o fizestes a UM (hení) destes, os mais pequenos, também a MIM o não fizestes”» (Mateus 25,42-43.45).

  1. Salta à vista que é urgente começar AGORA a compreender que é preciso validar, com a vida, o bilhete que dá acesso à mesa do Reino dos Céus. A compreender e a fazer. É a inação que nos desclassifica. Jesus manda-nos lutar: «Lutai com todas as forças, até agonizar (verbo agonízô), por entrar pela porta estreita» (Lucas 13,24). Podemos ouvi-lo, de outra maneira, da boca de Pedro em Cesareia Marítima: «Na verdade, Deus não faz aceção de pessoas, mas em qualquer nação, quem o teme e pratica a justiça é bem aceite por Ele» (Atos dos Apóstolos 10,34-35).

Hoje, como sempre, é de santos e de justos que o nosso mundo precisa. Deles é o Reino dos Céus. E NÓS? Eles não perdem tempo em acudir às necessidades dos seus irmãos, sejam eles quem forem. E NÓS? Alguém dizia, não há muito tempo, que «os cristãos meramente praticantes estão em fim de linha. Hoje, precisamos de cristãos enamorados!». O cristão meramente praticante é aquele que está sempre a dizer: «Posso estar descansado: hoje cumpri todos os meus deveres». O cristão enamorado é aquele que não para de dizer: «Sim, fiz alguma coisa; mas ainda tenho tanta coisa para fazer!».

Lutai com todas as vossas forças em todos os momentos. A porta é estreita e está aberta pouco tempo. É o espaço e o tempo da nossa vida. Sede cristãos enamorados! E não vos esqueçais que o amor verdadeiro (agápê) é uma luta (agôn), sendo que agápê e agôn têm a mesma etimologia.

A lição de hoje do sermão da Carta aos Hebreus (12,5-7.11-13) é mesmo uma lição, uma instrução ao jeito do Livro dos Provérbios 3,11-12, que cita, para nos dizer e ensinar que Deus nos trata como filhos, e é por isso que nos ama e pedagogicamente nos corrige. É nesta ótica que devem ser lidas todas as situações da vida, sobretudo as mais difíceis.

O Salmo 117, o mais pequeno do Saltério, apenas 17 palavras hebraicas, é semelhante a um «ponto», sendo, por isso, chamado o punctum Psalterii. Por ser tão pequeno, já houve quem o quisesse juntar ao anterior (116) ou ao seguinte (118). Mas este é o caso em que o pequeno é belo e ao mesmo tempo imenso, porque reclama para o louvor de Deus todas as nações e todos os povos! E põe em realce dois dos mais belos atributos de Deus: o amor fiel (hesed) e a fidelidade (ʼemet). Soa, no Saltério, como o nosso «Glória ao Pai…». É citado na Carta aos Romanos 15,11, pelo seu elevado e concentrado teor universalista e missionário. É por isso também que a sua tonalidade se ajusta bem à liturgia ecuménica deste Domingo.

 

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – XXI Domingo Tempo Comum – Ano C – 21.08.2022 (Is 66, 18-21)
    2. Leitura II – XXI Domingo do Tempo Comum – Ano C – 21.08.2022 (Hebr 12, 5-7.11-13)
    3. Domingo XXI do Tempo Comum – Ano C – 21.08.2022 – Lecionário
    4. Domingo XXI do Tempo Comum – Ano C – 21.08.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XX do Tempo Comum – Ano C – 14.08.2022

“Abre assim a extraordinária lição do Evangelho deste Domingo XX do Tempo Comum (Lucas 12,49-57): «O fogo Eu vim trazer sobre a terra, e como Eu desejo que já tivesse sido aceso (anêphthê: aoristo passivo de anáptô)! Tenho um batismo para ser batizado, e como estou sob stress (synéchômai) até que ele seja consumado (telesthê: aoristo conjuntivo passivo de teléô [= levar à perfeição]»! (Lucas 12,49-50).  D. António Couto

Tema do Domingo

 

A Palavra de Deus que hoje nos é servida convida-nos a tomar consciência da radicalidade e da exigência da missão que Deus nos confia. Não há meios-termos: Deus convida-nos a um compromisso, corajoso e coerente, com a construção do “novo céu” e da “nova terra”. É essa a nossa missão profética.in Dehonianos.

 

LEITURA I – Jer 38,4-6.8-10

Ambiente

A época em que Jeremias exerce a sua missão profética (a partir de 627 e até bem depois da queda de Jerusalém, em 586 a.C.) é uma época muito complicada em termos históricos…. Após o reinado de Josias (morto em Meggido em combate contra os egípcios, em 609 a.C.), o reino de Judá, servido por reis medíocres, conheceu um período de grande instabilidade. A inconsciência dos líderes e seu aventureirismo político (que os leva a alianças efémeras e pouco consistentes com as potências da época) preparam a ruína da nação.

O texto que nos é proposto situa-nos em Jerusalém, durante o reinado de Sedecias, por volta de 586 a.C.. Algum tempo antes (588 a.C.), Sedecias, pressionado pelo partido egiptófilo de Jerusalém, negara o tributo aos babilónios. Na sequência, Nabucodonosor pôs cerco a Jerusalém. Um exército egípcio, vindo em socorro da cidade, provocou grande euforia; mas Jeremias apressou-se a avisar que essa euforia não tinha qualquer razão de ser, pois o cerco iria recomeçar, em condições ainda mais duras. De facto, o exército babilónio refez o assédio à cidade; e Jeremias, convencido de que tinha chegado o castigo para o pecado de Judá e de que Deus tinha entregado Jerusalém nas mãos dos babilónios, aconselhou a não resistência aos invasores e a rendição. in Dehonianos

A reflexão pode fazer-se a partir das seguintes linhas:

A história de Jeremias não é um caso isolado, mas é, um pouco, a história de todos aqueles a quem
Deus chama a testemunhar, com fidelidade, os seus projetos e os seus valores. Ser profeta não é um percurso fácil, nem uma carreira recheada de êxitos humanos, nem um caminho atapetado pelo entusiasmo e pelas palmas das multidões; mas é um caminho de cruz, de sofrimento, de incompreensão e, tantas, vezes, de morte. Implica o confronto com a injustiça, com a alienação, com a opressão, com o poder daqueles que pretendem construir o mundo sobre valores de egoísmo, de prepotência, de orgulho, de morte. O mundo de hoje – o mundo de sempre – continua a não saber lidar com a profecia… Basta pensar em D. Óscar Romero, em Gandhi, em Martin Luther King, ou em tantos profetas anónimos que, todos os dias, continuam a ser vilipendiados, insultados, perseguidos, marginalizados, por uma opinião pública que pretende salvaguardar a sua liberdade construindo o mundo à margem dos valores de Deus. No entanto, o profeta, convocado e enviado por Deus, pode renunciar à missão e deixar que o mundo continue a construir-se, alegremente, sobre valores efémeros que apenas geram sofrimento, escravidão e morte?

A história de Jeremias mostra claramente que, mesmo incompreendido, humilhado, esmagado, abandonado, o profeta não está só; Deus está sempre ao seu lado, como presença amiga e reconfortante, como garantia de que a missão profética não está condenada ao malogro e ao fracasso. A garantia de Deus (“estarei contigo para te libertar”) deve dar ao profeta a confiança e a coragem para levar até ao fim a missão que Deus lhe confiou, em benefício dos homens e do mundo.

Sinto-me profeta, investido por Deus da missão de construir um mundo de justiça e de paz? Sou coerente com a minha vocação profética e procuro, com fidelidade, ser testemunha de Deus e dos seus valores? Tenho consciência – sobretudo nos momentos mais dramáticos – de que não estou sozinho, e de que Deus luta ao meu lado?

Como são tratados e escutados aqueles que na minha comunidade se esforçam por tornar realidade os valores do Evangelho e que dão um testemunho coerente e sincero daquilo em que acreditam? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 39 (40)

Refrão: Senhor, socorrei-me sem demora.

 

LEITURA II – Heb 12,1-4

Ambiente

A Carta aos Hebreus dirige-se a cristãos (de origem judaica ou que, ao menos, estavam bastante marcados pelo influxo cultural dos judeo-cristãos) em situação difícil, que vivem mergulhados num ambiente hostil e que sofrem a forte oposição dos seus concidadãos. Por isso, são também cristãos expostos ao desalento e ao desânimo, na sua fé e na sua vida cristã… Alguns dados da carta sugerem também que se trata de cristãos cansados, sem o entusiasmo dos inícios e instalados no comodismo e na mediocridade. Há, ainda, referências à cedência a doutrinas estranhas, pouco consentâneas com a fé original, recebida dos apóstolos.

O texto que nos é proposto pertence à quarta parte da carta (cf. Heb 11,1-12,13). Aí, temos um apelo à fé e à constância ou perseverança – o que se entende perfeitamente, no contexto em que estes cristãos vivem.in Dehonianos

Considerar, na reflexão, as seguintes linhas:

O caminho do cristão não é um passeio fácil e descomprometido, mas um caminho duro e difícil, que não se compadece com “meias tintas” nem com compromissos mornos e a “meio gás”. Exige coragem para vencer os obstáculos, capacidade de luta para enfrentar a oposição, compromissos profundos e radicais. Muitas vezes, os obstáculos que é preciso vencer resultam de fatores internos: a nossa preguiça, o nosso egoísmo, o nosso comodismo desarmam a nossa vontade de vivermos, com coerência, a nossa fé e as exigências do Evangelho; outras vezes, os obstáculos que temos de enfrentar resultam de fatores externos: são os ataques injustificados e irracionais, os insultos, a incompreensão de um mundo que cultiva o comodismo e a facilidade e que,
tantas vezes, se sente incomodado com o testemunho dos profetas… Quais são os principais obstáculos que eu tenho de vencer para viver, com fidelidade e coerência, a minha fé? Como é que eu respondo a essas dificuldades: com coragem e decisão ou com cedências e facilidades?

O cristão é convidado a não perder de vista o exemplo de Cristo. Apesar da tentação, ele nunca cedeu ao mais fácil, ao mais cómodo, ao mais agradável… Para ele, o critério fundamental era o plano do Pai; e o caminho do Pai passava pelo amor radical, pelo dom da vida, pela cruz. No entanto, ele demonstrou que o caminho da entrega da vida não conduz ao fracasso, mas à vida plena…. É este o quadro que o cristão deve ter sempre diante dos olhos.in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 12,49-53

Ambiente

Os “ditos” que o Evangelho de hoje nos apresenta são dos textos mais obscuros e difíceis de interpretar de todo o Novo Testamento. Particular dificuldade oferece o vers. 49, formado com palavras estranhas ao vocabulário de Lucas. Poderia ser um “dito” independente, recolhido por Lucas… Desconhecendo-se o contexto primitivo deste “dito” e as circunstâncias em que Jesus o pronunciou, é impossível determinar o seu significado e saber qual o “fogo” de que Jesus falava.

De qualquer forma, Lucas apresenta este material no contexto do “caminho para Jerusalém” – esse caminho que conduz Jesus ao dom total da vida. No horizonte próximo está, cada vez mais, o confronto final com a instituição judaica e a morte na cruz. Na perspetiva de Lucas, estes “ditos” fazem parte da catequese que prepara os discípulos para entender a missão de Jesus, a radicalidade do “Reino” e as exigências que daí brotam para quem adere às propostas de Jesus.in Dehonianos

Refletir a partir das seguintes questões:

O Evangelho mostra que o objetivo de Jesus não passava por conservar intacto o que já existia, pactuando com essa paz podre que não questiona o mal, a injustiça, a escravidão; mas o objetivo de Jesus passava por “incendiar o mundo”, pondo em causa tudo aquilo que escraviza o homem e o priva de vida. Como é que eu me situo face a tudo aquilo que põe em causa o projeto de Deus para o mundo? Como é que eu me situo face a tudo aquilo que cria opressão, injustiça, medo e morte? Com o conformismo e a indiferença de quem, acima de tudo, não está para se chatear com coisas que não lhe dizem diretamente respeito, ou com a coragem e o empenho de quem se sente profeta e enviado de Deus a construir o novo céu e a nova terra?

O “fogo” que Jesus veio atear – fogo purificador e transformador – já atingiu o meu coração e já transformou a minha vida? Animado pelo Espírito de Jesus ressuscitado, eu já renunciei, de verdade, à vida de egoísmo, de fechamento em mim próprio, de comodismo, para fazer da minha vida um compromisso com o “Reino”, se necessário até ao dom da vida?

A proposta de Jesus não passa pela manutenção de uma paz podre, que não questiona nem incomoda ninguém, mas por opções radicais, que interpelam e que obrigam a decisões arriscadas. No entanto, a Igreja de Jesus aceita muitas vezes abençoar as ideologias que escravizam e oprimem, para manter uma certa paz social (a paz dos cemitérios?), para “defender a civilização cristã” (como se pudessem ser cristãos aqueles que constroem máquinas de injustiça e de morte) ou para manter determinados privilégios. Quando isto acontece (e terá acontecido demasiadas vezes, ao longo da história), a Igreja estará a ser fiel a esse Jesus, que veio lançar o fogo à terra e que não veio trazer a paz, mas a divisão? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UM FOGO NOVO

Abre assim a extraordinária lição do Evangelho deste Domingo XX do Tempo Comum (Lucas 12,49-57): «O fogo Eu vim trazer sobre a terra, e como Eu desejo que já tivesse sido aceso (anêphthê: aoristo passivo de anáptô)! Tenho um batismo para ser batizado, e como estou sob stress (synéchômai) até que ele seja consumado (telesthê: aoristo conjuntivo passivo de teléô [= levar à perfeição]»! (Lucas 12,49-50). Um claro paralelismo sinonímico, assente em dois passivos divinos ou teológicos. Fogo ainda por acender, batismo ainda por receber. Não é, portanto, o batismo do Jordão. Esse ficou já para trás. Trata-se, isso sim, de levar à perfeição a missão filial batismal recebida no batismo do Jordão, que será cumprida no batismo da Cruz Gloriosa com a Dádiva do fogo do Espírito Santo a todos nós! Digamo-lo uma vez mais: no decurso da sua vida terrena, embora possuísse o Espírito Santo em plenitude, Jesus ainda não o podia dar a nós, pois ainda não tinha sido glorificado (João 7,39).

Não é, pois, de um vulgar incêndio que se trata. Este fogo é novo! Não é nosso. É de Deus. Vem de Deus. Mas arde e queima e opera dentro de nós, como um bisturi de dois gumes, até dividir alma e espírito, junturas e medulas, e julga mesmo as considerações e intenções do coração (Hebreus 4,12). É a própria Palavra de Deus que é como um fogo devorador (Jeremias 23,29). Veja-se o coração a arder dos dois discípulos de Emaús (Lucas 24,32). Veja-se a sarça que ardia e não se consumia, mas chamava por Moisés (Êxodo 3,2-4). Veja-se o fogo que arde no coração e nos ossos de Jeremias, e que ele não consegue dominar (Jeremias 20,9).

O batismo é um lume que alumia e queima e prepara para a luta do amor (agôn tês ágapês). Agôn [= luta] e agápê [= amor] têm a mesma etimologia. Vê-se, portanto, até etimologicamente, que o amor é uma luta que implica decisões todos os dias e a todas as horas. Sim, biblicamente, o amor não é um estado mais ou menos romântico ou idílico que se sofre, mas uma catadupa de decisões que temos de tomar. É preciso mesmo decidir amar os inimigos. Entenda-se bem: «amar», não «matar». Por isso, Jesus não veio trazer a paz angélica, mas a divisão evangélica (Lucas 12,51) ou a espada, como refere bem o paralelo de Mateus 10,34. Sim, para quem ama verdadeiramente, nada pode ser indiferente ou equivalente. Cada momento tem de deixar marcas, pois implica decisões e incisões até ao sangue (Hebreus 12,4). Não amaciemos e anestesiemos nós o Evangelho, não lhe retiremos o vigor, a alma, o lume e o gume, até o pormos a concordar com tudo e com todos, até o tornarmos inútil! As pessoas não precisam de entretenimentos, mas de Jesus Cristo!

E o batismo de Jesus (e o nosso) coloca-nos também no caminho duro da decisão que é sempre incisão, do sangue e do combate. O batismo é, na verdade, uma imersão na morte de Cristo (Romanos 6,3), e não nas «claras, frescas, doces águas» idílicas, como acontecia nos rituais batismais greco-romanos de fecundidade do deus Pã, ou nas múltiplas imersões de purificação que ao tempo de Jesus se cumpriam na comunidade de Qumran. Corramos, pois, com paciência (hypomonê) para o combate (agôn) (Hebreus 12,1), pois ainda não resistimos até ao sangue no combate (agôn) contra o pecado (Hebreus 12,4), assim nos será dado ouvir no sermão da Carta aos Hebreus que hoje nos atinge (Hebreus 12,1-4).

É de uma luta de todos os dias que se fala. E de um amor que impõe decisões, incisões e lutas todos os dias. Torna-se então necessário aprender e cultivar a paciência, cujo vocábulo grego, hypomonê, significa etimologicamente «estar debaixo de», carregando e suportando o peso que transportamos. Portanto, a paciência remete para sofrimento, mas não se trata de um sofrimento masoquista e inútil, que abate quem o sofre, mas que faz de quem o sofre a base para a vitória, no caso militar ou desportivo ou de quem queira triunfar em qualquer atividade. Vendo mais longe e mais fundo, como requer sempre o Evangelho, a paciência é o suporte ou fundamento que segura e mantém de pé o inteiro edifício do universo. E os Santos são os verdadeiros «carregadores» do mundo.

Um episódio da vida do poeta russo Serghei Esenin (1895-1925) ajuda a ilustrar melhor o carácter combativo do nosso batismo e do caminho crucial da vida cristã. À beira do suicídio, o poeta refugia-se num quarto de um albergue desconhecido. Mas adveio-lhe, nesse instante, do fundo da alma, a vontade irresistível de escrever uma última poesia. Porém, no albergue não havia tinta. Foi assim que Esenin foi levado a fazer uma incisão, um corte, no braço, e a escrever com o próprio sangue o seu último poema. Serve o episódio mencionado apenas para percebermos que só com o próprio sangue, isto é, com a nossa vida, podemos escrever a nossa adesão ao Reino de Deus. E o nosso batismo não pode ficar apenas registado com tinta em algum poeirento arquivo paroquial. Temos de o escrever com o nosso próprio sangue, no dia-a-dia.

Sim, o tom combativo que enche a página do Evangelho de Lucas não se refere aos últimos tempos. Não está para vir. É no nosso dia-a-dia que se trava este combate. São coisas «deste tempo» (kairós) (Lucas 12,56), em que vivemos, e que devemos saber ler. Sintomaticamente, sabemos ler os sinais atmosféricos e meteorológicos do tempo segmentado (chrónos) que vivemos. Mas temos dificuldade em ler o kairós, que é o nosso tempo segmentado (chrónos) inundado pela enchente da Palavra de Deus, pela graça da Presença do próprio Deus, a que temos de responder agora, e não podemos não responder ou adiar a resposta.

Jeremias, de cuja profecia ouvimos hoje um extrato (38,4-10), é bem o ícone incandescente das lutas sem fim em defesa da verdade da Palavra de Deus. Quer quando tem pela frente o tirano Joaquim (609-598), colocado no trono pelo egípcio Nekao II, o troca-tintas Sedecias (597-587), colocado no trono pelo babilónio Nabucodonosor, os militares, a aristocracia, a sua própria família, ou o povo em geral. Claramente, e sem equívocos de nenhuma espécie, Jeremias anuncia a morte a quem quiser permanecer na defesa da cidade de Jerusalém, e apregoa a rendição aos babilónios como única esperança de sobrevivência. Por causa desta alta traição à pátria, assim julgam os ministros e os chefes militares, Jeremias será lançado numa cisterna e atolar-se-á no lodo (v. 6). Daí será retirado por um estrangeiro compadecido (vv. 7-10), e será depois, no fatídico ano de 587, em que Jerusalém será arrasada, protegido pelos babilónios. Mas o rei Sedecias e o seu exército não terão igual sorte. Fugirão da cidade, mas serão perseguidos e alcançados. Sedecias verá os seus filhos serem degolados. Depois, ser-lhe-ão vazados os olhos, e será levado com cadeias para a Babilónia.

O Salmo 40 apresenta um primeiro andamento de ação de graças (vv. 1-10), seguido logo por um movimento de súplica e lamentação (vv. 11-18). Parece, pois, haver no corpo do Salmo uma estranha divisão. Quem é o «eu» que constata e agradece os benefícios de Deus no v. 1, e quem é o «eu» que, no v. 14, implora ainda com veemência o auxílio de Deus? Este insistente pedido de ajuda ouve-se novamente no v. 18, que hoje serve de refrão ao Salmo. Esta notória divisão no corpo do Salmo não é ilógica, como muitas vezes tem sido vista. É humana, dado ser também a nossa vida tecida por momentos de sonho e de outros tempos desgraçados. Em sintonia com o Evangelho de hoje, e também com a lição de Jeremias e do Sermão da Carta aos Hebreus. Há, porém, um dado novo, um canto novo: seja qual for a nossa situação, está sempre lá o bom Deus, a quem nos podemos dirigir com confiança

 

D. António Couto

Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria – Ano C – 15.08.2022

Tema da Solenidade da Assunção da Virgem Santa Maria

Bendita és tu, Maria! Hoje, Jesus ressuscitado acolhe a sua mãe na glória do céu… Hoje, Jesus vivo, glorificado à direita do Pai, põe sobre a cabeça da sua mãe a coroa de doze estrelas…in Dehonianos.

 

 

LEITURA I – Ap 11,19a;12,1-6a.10ab

Breve comentário

As visões do Apocalipse exprimem-se numa linguagem codificada. Elas revelam que Deus arranca os seus fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, a visão o sinal grandioso pode ser aplicado a Maria.
O livro do Apocalipse foi composto no ambiente das perseguições que se abatiam sobre a jovem Igreja, ainda tão frágil. O profeta cristão evoca estes acontecimentos numa linguagem codificada, em que os animais terrificantes designam os perseguidores. A Mulher pode representar a Igreja, novo Israel, o que sugere o número doze (as estrelas). O seu nascimento é o do batismo que deve dar à terra uma nova humanidade. O Dragão é o perseguidor, que põe tudo em ação para destruir este recém-nascido. Mas o destruidor não terá a última palavra, pois o poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho.

Proclamando esta mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa de Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 44 (45)

Refrão: À vossa direita, Senhor, a Rainha do Céu, ornada do ouro mais fino

 

LEITURA II – 1 Cor 15,20-27

Breve comentário:

A Assunção é uma forma privilegiada de Ressurreição. Tem a sua origem na Páscoa de Jesus e manifesta a emergência de uma nova humanidade, em que Cristo é a cabeça, como novo Adão.

Todo o capítulo 15 desta epístola é uma longa demonstração da ressurreição. Na passagem escolhida para a festa da Assunção, o apóstolo apresenta uma espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação neste grande mistério. O primeiro é Jesus, que é o princípio de uma nova humanidade. Eis porque o apóstolo o designa como um novo Adão, mas que se distingue absolutamente do primeiro Adão; este tinha levado a humanidade à morte, ao passo que o novo Adão conduz aqueles que o seguem para a vida.

O apóstolo não evoca Maria, mas se proclamamos esta leitura na Assunção, é porque reconhecemos o lugar eminente da Mãe de Deus no grande movimento da ressurreição. in Dehonianos

 

EVANGELHO – Lc 1,39-56

Ambiente

O cântico de Maria descreve o programa que Deus tinha começado a realizar desde o começo, que ele prosseguiu em Maria e que cumpre agora na Igreja, para todos os tempos.

Pela Visitação que teve lugar na Judeia, Maria levava Jesus pelos caminhos da terra. Pela Dormição e pela Assunção, é Jesus que leva a sua mãe pelos caminhos celestes, para o templo eterno, para uma Visitação definitiva. Nesta festa, com Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a se juntar a ele pelo caminho da ressurreição.

Em Maria, Ele já realizou a sua obra na totalidade; com ela, nós proclamamos: “dispersou os soberbos, exaltou os humildes”. Os humildes são aqueles que creem no cumprimento das palavras de Deus e se põem a caminho, aqueles que acolhem até ao mais íntimo do seu ser a Vida nova, Cristo, para o levar ao nosso mundo. Deus debruça-se sobre eles e cumpre neles maravilhas.

Rezar por Maria.

Frequentemente, ouvimos a expressão: “rezar à Virgem Maria”… Esta maneira de falar não é absolutamente exata, porque a oração cristã dirige-se a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito: só Deus atende a oração. Os nossos irmãos protestantes que, contrariamente ao que se pretende, por vezes têm a mesma fé que os católicos e os ortodoxos na Virgem Maria Mãe de Deus, recordam-nos que Maria é e se diz ela própria a Serva do Senhor.
Rezar por Maria é pedir que ela reze por nós: “Rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte!” A sua intervenção maternal em Caná resume bem a sua intercessão em nosso favor. Ela é nossa “advogada” e diz-nos: “Fazei tudo o que Ele vos disser!”

Rezar com Maria.

Ela está ao nosso lado para nos levar na oração, como uma mãe sustenta a palavra balbuciante do seu filho. Na glória de Deus, na qual nós a honramos hoje, ela prossegue a missão que Jesus lhe confiou sobre a Cruz: “Eis o teu Filho!” Rezar com Maria, mais que nos ajoelharmos diante dela, é ajoelhar-se ao seu lado para nos juntarmos à sua oração. Ela acompanha-nos e guia-nos na nossa caminhada junto de Deus.

Rezar como Maria.

Aprendemos junto de Maria os caminhos da oração. Na escola daquela que “guardava e meditava no seu coração” os acontecimentos do nascimento e da infância de Jesus, nós meditamos o Evangelho e, à luz do Espírito Santo, avançamos nos caminhos da verdade. A nossa oração torna-se ação de graças no eco ao Magnificat. Pomos os nossos passos nos passos de Maria para dizer com ela na confiança: “que tudo seja feito segundo a tua Palavra, Senhor!” in Dehonianos

Para os leitores:

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

MARIA LEVANTOU-SE E PARTIU APRESSADAMENTE

Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

Maria levantou-se e partiu apressadamente (Lucas 1,39a): aí está o lema para a JMJ de 2022. Maria correndo sobre os montes (Lucas 1,39b): feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávidas de um Filho que nasceu, «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).

O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai. «Cristo foi ressuscitado (egêgertai: perf. pass. de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram» (1 Coríntios 15,20). Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro e primícias, então representa-nos a todos e constitui promessa e certeza para todos. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.

O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.

Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

Nossa Senhora da Assunção,
Santa Maria do verão,
Ao céu elevada,
À minha beira sentada,
Com tua roca de linho
E um novelo inteiro de carinho.

Olha por mim,
Fica sempre assim,
No campo e na eira,
À minha cabeceira.
É bom ter uma mãe
Como companheira.

Senhora da Assunção
Ou da Dormição,
Envolve-me no teu manto,
Adormece-me com o teu canto,
A tua lalação,
Pertinho do coração.
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Vão os teus filhos
Em procissão de amor,
Atrás do teu andor,
Na mão uma flor.
Recebe-a, mãe,
E acolhe-nos sob a tua proteção,
Hoje e em cada dia,
Ave-Maria.

D. António Couto 

ANEXOS:

    1. Leitura I – XX Domingo Tempo Comum – Ano C – 14.08.2022 (Jer 38, 4-6.8-10)
    2. Leitura II – XX Domingo Tempo Comum – Ano C – 14.08.2022 (Heb 12, 1-4)
    3. Domingo XX do Tempo Comum – Ano C – 14.08.2022 – Lecionário
    4. Domingo XX do Tempo Comum – Ano C – 14.08.2022 – Oração Universal
    5. Leitura I – Assunção de Nª Senhora – Ano C – 15.08.2022 (Ap 11, 19a;12,1-6a.10ab)
    6. Leitura II – Assunção Nª Senhora – Ano C – 15.08.2022 (Cor 15, 20-27)
    7. Assunção Virgem Stª Maria – 15.08.2022 – Ano C – Lecionário
    8. Assunção Virgem Stª Maria – 15.08.2022 – Ano C – Oração Universal
    9. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XIX do Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022

37Felizes aqueles servos a quem o senhor, quando vier, encontrar vigilantes! Lc 12, 37

Viver a Palavra

Jesus tomou a firma decisão de subir para Jerusalém (Lc 9,51) e prossegue o seu caminho, apontando as coordenadas fundamentais da nossa existência cristã. Ao contrário dos mestres de Israel que ensinam sentados e acomodados, Jesus é o Mestre que ensina no caminho. Peregrino pelos trilhos da vida e da história, Jesus continua a cruzar a Sua vida com a nossa vida e a fazer dos nossos caminhos lugares de encontro com Deus e com os irmãos. O caminho é a metáfora por excelência da vida cristã. Somos homens e mulheres a caminho com os olhos fixos na meta: a Jerusalém celeste, a comunhão plena e perfeita com o Pai. Se para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho serve, para nós, que sabemos a meta para a qual o Pai nos chama, não podemos abraçar qualquer caminho ou atalho. Não podemos viver de improviso, nem ao sabor de qualquer vento ou maré. Queremos estar vigilantes e despertos, «porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará o vosso coração».

Na verdade, esta é a primeira pergunta que cada um de nós deve fazer a si próprio: onde está o meu coração? O que é que ocupa o centro da minha vida e se constitui como o tesouro mais precioso onde invisto as minhas forças e capacidades?

Diante do ritmo quotidiano, no frenesim dos nossos dias, é fácil dispersar e apontar em tantas direções. São tantas as fadigas e receios que invadem o nosso coração e que distraem a nossa vida do verdadeiramente essencial que unifica a vida e lhe oferece um horizonte de realização e felicidade que está para lá da fruição imediatista. Por isso, queremos acolher o tesouro inesgotável que nos oferece a felicidade que se inscreve nesse horizonte de realização e felicidade que só Jesus e o Seu amor nos podem oferecer e garantir.

«Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino». Não tememos as dificuldades e desafios porque caminhamos como filhos muito amados de Deus a quem é oferecido o Reino. Não somos os mais fortes, mas somos filhos do Deus da força e esta consciência faz-nos percorrer a nossa vida com uma renovada esperança e uma revigorada confiança. A fé que dissipa os nossos medos e nos permite avançar, mesmo no meio de inseguranças e fragilidades, é, efetivamente, «garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se veem». Acreditar nas realidades que se veem é render-se à evidência dos dias, mas esperar e confiar como Abraão é depositar toda a esperança, não no caminho a percorrer ou no lugar geográfico para onde se caminha, mas na mão que sustenta a nossa caminhada e aponta o nosso peregrinar.

A fé rasga novos horizontes e permite-nos vislumbrar no aqui e agora do tempo e da história a realização das promessas que Deus fez a nossos pais. Pela fé, os impossíveis da nossa vida tornam-se possíveis, porque é Deus quem conduz a história. Cabe-nos estar despertos e vigilantes para que possamos viver de olhos e coração abertos sobre a humanidade.

É esta a verdadeira sabedoria: acolher a vontade de Deus e encontrar no querer do Pai o nosso querer, para que a nossa vida encontre o caminho da verdadeira felicidade. Em Jesus Cristo, Deus revela-se como o Senhor que se faz servo e que encontrando espaço na nossa vida desperta e vigilante, senta-nos à mesa, passa diante de nós e ensina-nos a arte de nos tornarmos grandes fazendo-nos servos de todos. A alegria do serviço por amor rasga caminhos novos de felicidade e faz da Igreja sinal profético da bondade, da ternura e da misericórdia. O muito depositado em nossas mãos reclama uma vida consentânea com a fé, para que se torne um lugar de fecundidade que difunde ao longe e ao largo a suave fragrância do Evangelho. in Voz Portucalense

LEITURA I – Sab 18, 6-9

«Os justos seriam solidários nos bens e nos perigos; e começaram a cantar os hinos de seus antepassa- dos».

 

Ambiente

O “Livro da Sabedoria” é uma obra de um autor anónimo, redigida na primeira metade do séc. I a.C., provavelmente em Alexandria – um dos centros culturais mais importantes da Diáspora judaica. Dirigindo-se aos judeus (que vivem mergulhados num ambiente de idolatria e de imoralidade), o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, a fim de animar os israelitas fiéis e fazer voltar ao bom caminho os que tinham abandonado os valores da fé judaica; dirigindo-se aos pagãos, o autor (que se exprime em termos e conceções do mundo helénico, para que a sua mensagem chegue a todos) apresenta-lhes a superioridade da cultura e da religião israelitas, ridicularizando os ídolos e convidando, implicitamente, à adesão a essa fé mais pura que é a fé judaica.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do livro (Sab 10,1-19,22). Aí, recorrendo a factos concretos e a exemplos de figuras tiradas da história, o autor exalta as maravilhas operadas pela “sabedoria” na história do Povo de Deus. Nos últimos capítulos desta terceira parte (Sab 16-19), passando do geral ao particular, o autor mostra como a própria natureza divinizada pelos ímpios se volta contra eles, enquanto essa mesma natureza se torna salvação para o Povo de Deus… O cenário desta reflexão é a comparação entre o que um dia (na altura do Êxodo) aconteceu aos egípcios e o que, em contrapartida, aconteceu ao Povo de Deus: as pragas de animais castigaram os egípcios, mas as codornizes foram alimento para os israelitas (cf. Sab 16,1-4); as moscas e gafanhotos atormentaram os egípcios, mas a serpente de bronze erguida por Moisés no deserto salvou o Povo de perecer (cf. Sab 16,5-15); as chuvas e a saraiva destruíram as culturas egípcias, mas o maná alimentou o Povo de Deus (cf. Sab 16,15-29); as trevas cegaram os egípcios que perseguiam os israelitas, mas a coluna de fogo iluminou a caminhada do Povo de Deus para a liberdade (cf. Sab 17,1-18,4); os primogénitos dos egípcios foram mortos, mas Deus salvou a vida do seu Povo (cf. Sab 18,5-25)… in Dehonianos

Considerar os seguintes desenvolvimentos:

A leitura chama a atenção para a diferença que há entre o viver de acordo com os valores da fé e o viver de acordo com propostas quiméricas de felicidade e de bem-estar… O “sábio” que nos fala na primeira leitura assegura que só a fidelidade aos caminhos de Deus gera vida e libertação; e que a cedência aos deuses do egoísmo e da injustiça gera sofrimento e morte. Hoje, como ontem, nem sempre parece fazer sentido trilhar o caminho do bem, da verdade, do amor, do dom da vida… Na realidade, onde é que está o caminho da verdadeira felicidade? Na cedência ao mais fácil, à moda, ao “politicamente correto”, ou na fidelidade aos valores duradouros, aos valores do Evangelho, ao projeto de Jesus? Como é que eu me situo face às pressões que, todos os dias, a opinião pública ou a moda me impõem?

O tema da liturgia deste domingo gira à volta da “vigilância”. Não se trata de estar sempre com “a alminha em paz”, “na graça de Deus” para que a morte não me surpreenda e eu não seja atirado, sem querer, para o inferno; trata-se de eu saber o que quero, de ter ideias claras quanto ao sentido da minha vida e de, em cada instante, atuar em conformidade. É esta “vigilância” serena, de quem sabe o que quer e está atento ao caminho que percorre, que me é pedida. É esse o caminho que eu tenho vindo a percorrer? A minha vida tem sido uma busca atenta do que Deus quer de mim?

O autor do “Livro da Sabedoria” descreve a resposta do Povo à ação libertadora de Deus como celebração, solidariedade, louvor e ação de graças. Diante do Deus libertador, que todos os dias intervém na minha vida e que me aponta caminhos de vida plena e de felicidade, sinto também a vontade de celebrar, de amar, de comungar, de louvar, como resposta ao amor de Deus? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 32 (33)

Refrão: «Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança».

 

LEITURA II Hebr 11, 1-2.8-19

«A fé é a garantia dos bens que se esperam e a certeza das realidades que não se veem».

 

Ambiente

A Carta aos Hebreus é um texto anónimo, escrito nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs (de origem judaica?) em que a generosidade dos inícios dera lugar ao cansaço, ao tédio, ao desinteresse e que, por causa das perseguições e da hostilidade dos não crentes, estavam expostas ao desalento e ao retrocesso na sua caminhada cristã. Neste contexto, o autor pretende apresentar aos crentes um estímulo, no sentido de aprofundar a vocação cristã, até à identificação total com Cristo.

A carta apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

O texto que nos é proposto está incluído na quarta parte da epístola (cf. Heb 11,1-12,13). Nessa parte, o autor insiste em dois aspetos básicos da vida cristã: a fé e a constância ou perseverança. No que diz respeito à fé, o autor convida a percorrer o caminho dos “antigos” (cf. Heb 11,1-40); no que diz respeito à constância, exorta a aceitar com paciência os sofrimentos que a vida do cristão comporta, pois esses sofrimentos fazem parte das provas pedagógicas através das quais Deus nos faz chegar à perfeição (cf. Heb 12,1-13). in Dehonianos

 

Para a reflexão, considerar os seguintes desenvolvimentos:

O autor deste texto convida o crente a confiar firmemente na possessão dos bens futuros, anunciados por Deus, mas invisíveis para já. A nossa caminhada nesta terra está marcada pela finitude, pelas nossas limitações, pelo nosso pecado; mas isso não pode fazer-nos desanimar e desistir: viver na fé é, apesar disso, apontar à vida plena que Deus nos prometeu e caminhar ao seu encontro. É esta esperança que nos anima e que marca a nossa caminhada, sobretudo nos momentos mais difíceis, em que tudo parece desmoronar-se e as coisas deixam de fazer sentido?

A nossa tendência vai, tantas vezes, do “oito ao oitenta”, da euforia ao desânimo total. Num dia, tudo faz sentido; no outro, a tristeza e a dúvida afogam-nos e deixam-nos mergulhados no mais negro pessimismo… No entanto, o cristão deve ser o homem da serenidade e da paz; ele sabe que a sua existência não se conduz ao sabor das marés, mas que o sentido da vida está para além dos êxitos ou dos fracassos que o dia a dia traz. Guiado pela fé, ele tem sempre diante dos olhos essas realidades últimas, que dão sentido pleno àquilo que aqui acontece.in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 12,32-48

«Não temas, pequenino rebanho, porque aprouve ao vosso Pai dar-vos o reino».

«Tende os rins cingidos e as lâmpadas acesas».

«A quem muito foi dado, muito será exigido; a quem muito foi confiado, mais se lhe pedirá».

 

Ambiente

Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém”. Desta vez, Jesus dirige-Se explicitamente ao grupo dos discípulos (designado como “pequeno rebanho” – cf. Lc 12,32). Nas catequeses anteriores, Jesus falou sobre o desprendimento face aos bens da terra (cf. Lc 12,13-21) e sobre o abandono nas mãos de Deus (cf. Lc 12,22-34); agora, Jesus vai mostrar o que é necessário fazer para que o “Reino” seja sempre uma realidade presente na vida dos discípulos e para que os “tesouros” deste mundo não sejam a prioridade: trata-se de estar sempre vigilante, à espera da vinda do Senhor. Na realidade, Lucas junta aqui parábolas que devem ter aparecido em contextos diversos; mas todas estão ligadas pelo tema da vigilância.in Dehonianos

Para a reflexão e a partilha da Palavra, considerar os seguintes dados:

A vida dos discípulos de Jesus tem de ser uma espera vigilante e atenta, pois o Senhor está permanentemente a vir ao nosso encontro e a desafiar-nos para nos despirmos das cadeias que nos escravizam e para percorrermos, com Ele, o caminho da libertação. O que é que nos distrai, que nos prende, que nos aliena e que nos impede de acolher esse dom contínuo de vida?

Ser cristão não é um trabalho “das nove às cinco”, ou um “hobby” de fim-de-semana; mas é um compromisso a tempo inteiro, que deve marcar cada pensamento, cada atitude, cada opção, vinte e quatro horas por dia… Estou consciente dessa exigência e suficientemente atento para marcar, com o selo do meu compromisso cristão, todas as minhas ações e palavras?

Estou suficientemente atento e disponível para acolher e responder aos apelos que Deus me faz e aos desafios que Ele me apresenta através das necessidades dos irmãos? Estou suficientemente atento e disponível para escutar os sinais, através dos quais Deus me apresenta as suas propostas?

Por vezes, os discípulos de Jesus manifestam a convicção de que tudo vai de mal a pior, que esta “geração rasca” está perdida e que não é possível fazer mais nada para tornar o mundo mais humano e mais feliz… Isso não será, apenas, uma forma de mascararmos o nosso egoísmo e comodismo e de recusarmos ser protagonistas empenhados na construção desse “Reino” que é o tesouro mais valioso?

A Palavra de Deus que hoje nos é proposta contém uma interpelação especial a todos aqueles que desempenham funções de responsabilidade, quer na Igreja, quer no governo, quer nas autarquias, quer nas empresas, quer nas repartições… Convida cada um a assumir as suas responsabilidades e a desempenhar, com atenção e empenho as funções que lhe foram confiadas. A todos aqueles a quem foi confiado o serviço da autoridade, a Palavra de Deus pergunta sobre o modo como nos comportamos: como servos que, com humildade e simplicidade cumprem as tarefas que lhes foram confiadas, ou como ditadores que manipulam os outros a seu bel-prazer? Estamos atentos às necessidades – sobretudo dos pobres, dos pequenos e dos débeis – ou instalamo-nos no egoísmo e no comodismo e deixamos que as coisas se arrastem, sem entusiasmo, sem vida, sem desafios, sem esperança? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A brevidade da primeira leitura não pode permitir que se descure a sua preparação e reclama um especial cuidado nas frases longas e com diversas orações para uma articulada e assertiva proclamação do texto.

A segunda leitura possui um tom narrativo que oferece ritmo à leitura e que deve ser aproveitado para uma proclamação mais eficaz e frutuosa. A expressão «pela fé», repetidas várias vezes ao longo do texto, deve ser proclamada de tal modo que se sinta a força do testemunho de quantos se deixam guiar e conduzir pela fé.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

NÃO TENHAS MEDO, PEQUENO REBANHO!

«Não tenhas medo, pequeno Rebanho, porque aprouve (eudokéô) ao VOSSO PAI dar-vos o Reino» (Lucas 12,32). Assim começa o Evangelho deste Domingo XIX do Tempo Comum, retirado de Lucas 12,32-48. Imensa porta aberta pelo amor do VOSSO PAI. O VOSSO PAI ocupa o centro da frase, o lugar estratégico. E é um PAI que dá a todos e que tem prazer (eudokía) em dar. Aprouve é o verbo aprazer. Mas este PAI que dá e tem prazer em, que está no centro, articula-se com Rebanho e Reino. Diríamos que, com Rebanho, ficaria melhor o Pastor, e, com Reino, ficaria melhor o Rei. Mas é um PAI com prazer e dom que hifeniza Rebanho e Reino. Entenda-se: o PAI reclama o FILHO, a quem dá tudo o que tem e é (Mateus 11,27; João 3,35; 13,3; 17,7), e em quem põe o seu prazer, a sua eudokía (Lucas 3,22); do mesmo modo, o VOSSO PAI reclama os seus filhos, e, portanto, irmãos. Aí está a melhor tradução da Igreja e da vida cristã.

O Reino dado pelo Pai com prazer. Ao longo dos Evangelhos, com palavras e factos, Jesus anuncia e manifesta que o Reino de Deus não é um território com fronteiras, bandeira, hino nacional e constituição fundamental. Jesus anuncia e manifesta que o Reino de Deus é Ele mesmo, Jesus, com o Espírito Santo. Di-lo explícita, mas simbolicamente, em Lucas 11,20: «Se Eu expulso os demónios pelo Dedo de Deus (dáktylos Theoû), então o Reino de Deus chegou até vós». O «dedo de Deus» remete, por um lado, para o Livro do Êxodo 8,15, em que os magos do Egito reconhecem o «dedo de Deus» nos prodígios operados por Moisés; por outro lado, tenha-se presente o paralelo de Mateus 12,28, onde se lê: «Se Eu expulso os demónios pelo Espírito de Deus (pneûma Theoû), então o Reino de Deus chegou até vós». A teologia simbólica explica bem que «Dedo» está por «Mão» poderosa de Deus, ou seja, a sua Presença pessoal e operativa. Os Padres da Igreja antiga conheciam bem esta realidade: que o Pai tem «Duas Mãos», o Filho e o Espírito, ambos enviados, com os quais o Pai leva a efeito a sua Economia salvífica (Santo Ireneu); e que rezar «Venha o Teu Reino» é uma epiclese para a Vinda de Cristo com o Espírito, «o Reino que está aqui no meio de nós» (S. Gregório o Teólogo, S. Gregório de Niza, S. Máximo Confessor). É este o sentido teológico concreto do Reino, que depois se foi perdendo pelo abstrato.

Cultura nova, sem peias nem prisões. O «pequeno Rebanho» lembra o «pequeno Resto» da literatura profética, que não confia no ódio e na violência, no poder, na mentira e na corrupção, mas põe toda a sua confiança em Deus, no respeito de cada ser humano, na liberdade, na responsabilidade e no amor. Com este PAI NOSSO, que em nós põe o seu prazer e de nós cuida com paternal dedicação dando-nos tudo, fica mal agarrarmo-nos ciosamente às coisas; fica bem dar de graça, dado que de graça recebemos (Mateus 10,8). Amor novo, coração novo, tesouro novo. A traça corrói, a graça constrói! «Vendei tudo e dai em esmola» (Lucas 12,33) são, talvez, os imperativos menos respeitados na prática cristã ao longo dos séculos, até hoje.

Preparados, vigilantes, prontos, de rins cingidos e de lâmpadas acesas (Lucas 12,35). De acordo com os costumes então vigor, quem desaperta a cintura e solta as vestes, suspende o trabalho e prepara-se para o repouso. Ao contrário, quem cinge as vestes, prepara-se para o trabalho ou para partir de viagem. Manter a lâmpada acesa significa estar preparado, até durante a noite, para qualquer atividade imprevista.

Além das frases fortes introdutórias (Lucas 12,32-34), a página do Evangelho de hoje oferece três pequenas parábolas seguidas: a primeira tem a ver com o senhor que regressa a casa com a noite adiantada e encontra os servos vigilantes (Lucas 12,35-38); a segunda, que é a mais breve, chama a atenção para o ladrão que, de forma sempre inesperada, assalta a casa, e deixa entrever Jesus que entra no nosso mundo de forma igualmente surpreendente, de forma a pôr em causa os nossos hábitos e distrações (Lucas 12,39-40); a terceira, que é a mais desenvolvida e articulada, contempla o administrador fiel e prudente que está sempre pronto a prestar ao seu senhor contas da sua administração (Lucas 12,41-48).

O leitor inteligente também se apercebe facilmente que o elemento comum a estas três parábolas é a ausência do senhor (ho kýrios), do dono da casa (ho oikodespótês), e que esse escondimento ou ausência aparente constitui uma prova para os seus servos ou criados (hoi doúloi), para os crentes, para nós. Sim, porque mesmo durante esta ausência aparente do dono da casa, estes servos continuam a ser os seus servos. É, por isso, também fácil de compreender que estes servos não podem viver à toa, nem por conta própria, de forma autorreferencial, mas sim continuamente à espera de receber (prosdechoménois: part. de prosdéchomai) o seu senhor (Lucas 12,36). O verbo grego prosdéchomai traduz bem a condição ou atitude física e psicológica de quem está à espera e vive nessa espera e dessa espera, assumindo, portanto, uma existência reflexa, que não pode passar sem o seu senhor. Daí, a tensão permanente, a prontidão e a vigilância. Não inúteis, mas já com o sabor da felicidade que atravessa o inteiro relato (Lucas 12,37.38.43).

Fazei caminho, cantai hinos, servi, servi, servi, sem pausa nem descanso nem sono. Aí está a descoberta da lei divina impressa desde sempre nos nossos corações, e que os caminhantes do Êxodo recitam, segundo a bela lição do Livro da Sabedoria que hoje temos a graça de saborear (Sabedoria 18,6-9). Sim, saborear: os santos partilham tudo, bens e perigos, e cantam os hinos dos seus pais (Sabedoria 18,9). Partilhar tudo, pôr tudo em comum, aponta já para a beleza da comunidade primitiva de Jerusalém (Atos 2,44), e os hinos dos nossos pais são os Salmos, sobretudo o Hallel da Páscoa (Salmos 113-118 e 136). Mas reclama também a música divina que a embalação dos nossos pais nos transmitiu, e que nos mantém livres pelo tempo fora. Veja-se o belo poema do poeta siciliano Ignazio Buttita: «Um povo/ metei-o na cadeia/ despojai-o/ tapai-lhe a boca:/ é ainda livre. // Tirai-lhe o trabalho/ o passaporte/ a mesa onde come/ a cama onde dorme:/ é ainda rico.// Um povo torna-se pobre/ quando lhe roubam/ as canções/ que aprendeu dos pais.// Então fica perdido para sempre».

Sim, leves e iluminados, rasgai a noite como relâmpagos! Estai sempre no umbral do Êxodo e do nascimento novo. Saí para a liberdade! Sair (yatsa’) é o verbo do Êxodo e do nascimento: vida nova, liberdade nova, leve, tenra e terna, sem retorno, rumo à Cidade verdadeira, à Casa grande, aberta e feliz, Casa de Deus, Casa do PAI NOSSO.

A grande homilia que compõe a Carta aos Hebreus, de que hoje nos é dado escutar um extrato (Hebreus 11,1-2.8-19), põe diante de nós a figura exemplar de Abraão, que não se agarrou a nada deste chão, mas seguiu sempre os rumos novos e leves de peregrino e hóspede assente na fé e na oração. «Para onde vais, Abraão?». «Não sei, mas vou pela mão de Deus». E partiu na certeza de encontrar novo país e novo pão. Não, não estava a pensar em regressar ao país de onde saíra. Se fosse o caso, tinha sempre tempo e jeito de voltar para lá (Hebreus 11,15), como Ulisses, que sai de Ítaca e regressa a Ítaca. A mão que guia Abraão leva-o sempre em frente, para uma pátria nova.

O Peregrino russo, longo e belo relato escrito na segunda metade do século XIX, que nos revela a bela mística oriental, e que ultimamente também tem sido muito lido no Ocidente, caminhava e rezava, sempre com o nome JESUS no coração e nos lábios. Queria saber o sabor da palavra de Paulo: «Rezai sem cessar» (1 Tessalonicenses 5,17). Aos ombros uma mochila com um pedaço de pão duro, no bolso do casaco uma Bíblia. E ainda partilhava com os pássaros pão e oração. De resto, todas as fontes eram dele, e para elas caminhava devagarinho, devagarinho, como sugere o Principezinho, quando o comerciante lhe quer vender uma pastilha que lhe mata a sede durante uma semana, e o pode levar a poupar 53 minutos!

Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (v. 2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós. Comenta Santo Agostinho: «Já sabes o que é o canto novo: um homem novo, um canto novo».

  António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – XIX Domingo Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022 (Sab 18, 6-9)
  2. Leitura II – XIX Domingo Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022 (Hebr 11, 1-2.8-19)
  3. Leitura II (resto) – XIX Domingo Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022 (Hebr 11, 1-2.8-19)
  4. XIX Domingo Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022 – Lecionário
  5. XIX Domingo Tempo Comum – Ano C – 07.08.2022 – Oração Universal
  6. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XVIII do Tempo Comum – Ano C – 31.07.2022

Viver a Palavra

 

Somos homens e mulheres chamados a percorrer com alegria e generosidade os trilhos da história mas convidados a viver de olhos postos no Céu, na medida alta da santidade: «se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus».

A pátria celeste é a meta do nosso caminho e este horizonte configura os nossos passos. Popularmente é habitual escutarmos que para quem não sabe para onde vai, qualquer caminho lhe serve. Contudo, nós sabemos para onde vamos e qual a meta do nosso caminho e, por isso, somos convidados a contruir a nossa existência a partir desse horizonte de santidade para o qual somos chamados.

Como Coelet, sabemos que é fácil que aquilo que fazemos não passe de «vaidade», de um sopro, de uma fumaça encantadora, mas oca e vazia. Temos consciência que, viver radicalmente a proposta de santidade que o Senhor nos propõe, implica depositar a nossa esperança naquilo que realmente pode oferecer garantias de realização e felicidade e uma felicidade que tenha sabor de eternidade e nos projete para a eternidade.

Jesus confrontado com a questão tão dramática das partilhas familiares adverte: «vede bem, guardai-vos de toda a avareza: a vida de uma pessoa não depende da abundância dos seus bens». Jesus não condena os bens materiais nem rejeita a clara necessidade deles para a nossa subsistência e existência. Jesus alerta-nos para o perigo de fazer deles a garantia da nossa vida.

Aquele que foi enviado pelo Pai para anunciar um Reino de justiça e de paz não é juiz de partilhas familiares. É verdade que escutar Jesus, o modo como fala do amor e da justiça, levaria a pensar que Ele seria a pessoa mais indicada para arbitrar aquele conflito familiar. Contudo, Jesus é claro: Ele não é juiz nem árbitro de partilhas que geram divisão e conflito. O Mestre da comunhão e da unidade convida-nos a gastar as nossas forças na construção de um mundo mais justo e fraterno, depositando a nossa confiança nos bens que oferecem verdadeiras garantias de felicidade.

Caminhar, aspirando às coisas do alto, implica estabelecer uma relação nova com os bens materiais. Implica passar da lógica da posse à nova lógica do dom, onde possuir não significa conjugar de modo egoísta o verbo ter, mas viver agradecido com aquilo que nos é confiado. Foi essa a “insensatez” do homem rico da parábola narrada por Jesus. Ele não é «insensato» por ter muitos bens ou uma colheita abundante, mas pelo modo como se relaciona com tantos bens.

Curiosamente, não há ninguém em torno deste homem. Ele não tem nenhum interlocutor. Não tem ninguém em casa. Não há ninguém com quem dialogar sobre estas abundantes riquezas. Nenhum coração, nenhum rosto, nenhum amigo. Este homem aparece a falar consigo mesmo e voltado para si mesmo: «que hei-de fazer, pois não tenho onde guardar a minha colheita? Vou fazer assim: Deitarei abaixo os meus celeiros para construir outros maiores, onde guardarei todo o meu trigo e os meus bens. Então poderei dizer a mim mesmo: Minha alma, tens muitos bens em depósito para longos anos».

Os bens que acumulou não lhe permitem olhar o outro, mas encerram-no em si mesmo. Mesmo quando enuncia o seu programa de vida, pensa em si isoladamente: descansa, come, bebe, regala-te. Este homem investiu no produto errado, pois investiu no dinheiro, ao invés de investir no amor, nas relações e na capacidade de sair de si mesmo para descobrir o precioso tesouro que é o outro, alcançando o totalmente Outro que dá sentido à nossa existência.

Escutemos como S. Basílio responde a este homem: «e depois quando encheres esses celeiros que farás? Demolirás ainda e de novo reconstruirás? Com preocupação construir, com preocupação demolir: que há de mais estúpido, de mais inútil? Se quiseres, há celeiros, estão nas casas dos pobres».in Voz Portucalense

LEITURA I – Co (Ecle) 1, 2; 2, 21-23

«Que aproveita ao homem todo o seu trabalho e a ânsia com que se afadigou debaixo do sol?».

 

 

Ambiente

O Livro de Qohélet é um livro de carácter sapiencial, escrito pelos finais do séc. III a.C. Não sabemos quem é o autor… Em 1,1, apresenta-se o livro como “palavras de qohélet”; mas “qohélet” é uma forma participial do verbo “qhl” (“reunir em assembleia”): significa, pois, “aquele que participa na assembleia” ou, numa perspetiva mais ativa, “aquele que fala na assembleia”. O nome “Eclesiastes” (com que também é designado) é a forma latinizada do grego “ekklesiastes” (nome do livro na tradução grega do Antigo Testamento): significa o mesmo que “qohélet” – “aquele que se senta ou que fala na assembleia” (“ekklesia”).

Este “caderno de anotações” de um “sábio” é um escrito estranho e enigmático, sarcástico, inconformista, polémico, que põe em causa os dogmas mais tradicionais de Israel. A sua preocupação fundamental, mais do que apontar caminhos, parece ser a de destruir certezas e seguranças. Levanta questões e não se preocupa, minimamente, em encontrar respostas para essas questões.

O tom geral do livro é de um impressionante pessimismo. O autor parece negar qualquer possibilidade de encontrar um sentido para a vida… Defende que o homem é incapaz de ter acesso à “sabedoria”, que não há qualquer novidade e que estamos fatalmente condenados a repetir os mesmos desafios, que o esforço humano é vão e inútil, que é impossível conhecer Deus e que, aconteça o que acontecer, nada vale a pena porque a morte está sempre no horizonte e iguala-nos com os ignorantes e os animais… Não é um livro onde se vão procurar respostas; é um livro onde se denuncia o fracasso da sabedoria tradicional e onde ecoa o grito de angústia de uma humanidade ferida e perdida, que não compreende a razão de viver.in Dehonianos

 

Considerar, na reflexão e atualização, as seguintes linhas:

Quase poderíamos dizer que o “qohélet” é o precursor desses filósofos existencialistas modernos que refletem sobre o sentido da vida e constatam a futilidade da existência, a náusea que acompanha a vida do homem, a inutilidade da busca da felicidade, o fracasso que é a vida condenada à morte (Jean Paul Sartre, Albert Camus, André Malraux…). As conclusões, quer do “qohélet”, quer das filosofias existencialistas agnósticas, seriam desesperantes se não existisse a fé. Para nós, os crentes, a vida não é absurda porque ela não termina nem se encerra neste mundo… A nossa caminhada nesta terra está, na verdade, cheia de limitações, de desilusões, de imperfeições; mas nós sabemos que esta vida caminha para a sua realização plena, para a vida eterna: só aí encontraremos o sentido pleno do nosso ser e da nossa existência.

A reflexão do “qohélet” convida-nos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança em coisas falíveis e passageiras. Quem vive, apenas, para trabalhar e para acumular, pode encontrar aí aquilo que dá pleno significado à vida? Quem vive obcecado com a conta bancária, com o carro novo, ou com a casa com piscina num empreendimento de luxo, encontrará aí aquilo que o realiza plenamente? Para mim, o que é que dá sentido pleno à vida? Para que é que eu vivo? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 89 (90)

Refrão: «Senhor, tendes sido o nosso refúgio através das gerações».

 

LEITURA II Col 3, 1-5.9-11

«Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde Cristo está sentado à direita de Deus».

Ambiente

A segunda leitura deste domingo é, mais uma vez, um trecho dessa Carta aos Colossenses, em que Paulo polemiza contra os “doutores” para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o conhecimento dos anjos e com certas práticas legalistas e ascéticas. Paulo procura demonstrar que a fé em Cristo (entendida como adesão a Cristo e identificação com Ele) basta para chegar à salvação.

Este texto integra a parte moral da carta (cf. Col 3,1-4,1): aí Paulo tira conclusões práticas daquilo que afirmou na primeira parte (que Cristo basta para a salvação) e convoca os Colossenses a viverem, no dia a dia, de acordo com essa vida nova que os identificou com Cristo.in Dehonianos

 

A reflexão e atualização podem partir das seguintes questões:

Ser batizado é, na perspetiva de Paulo, identificar-se com Cristo e, portanto, renunciar aos mecanismos que geram egoísmo, ambição, injustiça, orgulho, morte – os mesmos que Jesus rejeitou como diabólicos; e é, em contrapartida, escolher uma vida de doação, de entrega, de serviço, de amor – os mecanismos que levaram Jesus à cruz, mas que também o levaram à ressurreição. Eu estou a ser coerente com as exigências do meu Batismo? Na minha vida há uma opção clara pelas “coisas do alto”, ou essas “coisas da terra” (brilhantes, sugestivas, mas efémeras) têm prioridade e condicionam a minha ação?

O objetivo da nossa vida (esse objetivo que deve estar sempre presente diante dos nossos olhos e que deve constituir a meta para a qual caminhamos) é, de acordo com Paulo, a renovação contínua da nossa vida, a fim de que nos tornemos “imagem de Deus”. Aqueles que me rodeiam conseguem detetar em mim algo de Deus? Que “imagem de Deus” é que eu transmito a quem, diariamente, contacta comigo?

A comunidade cristã é essa família de irmãos onde as diferenças (de raça, de cultura, de posição social, de perspetiva política, etc.) são ilusórias, porque o fundamental é que todos caminham para ser “imagem de Deus”. Isto é realidade? Nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas), todos os membros são tratados com igual dignidade, como “imagem de Deus”?

Convém não esquecer que a construção do “Homem Novo” é uma tarefa que exige uma renovação constante, uma atenção constante, um compromisso constante. Enquanto estamos neste mundo, nunca podemos cruzar os braços e dar a nossa caminhada para a perfeição por terminada: cada instante apresenta-nos novos desafios, que podem ser vencidos ou que podem vencer-nos.in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 12, 13-21

«Mestre, diz a meu irmão que reparta a herança comigo».

«Vede bem, guardai-vos de toda a avareza».

«O que preparaste, para quem será?».

Ambiente

Continuamos a percorrer o “caminho de Jerusalém” e a escutar as lições que preparam os discípulos para serem as testemunhas do Reino. A catequese, que Jesus hoje apresenta, é sobre a atitude face aos bens.
A reflexão é despoletada por uma questão relacionada com partilhas… Um homem queixa-se a Jesus porque o irmão não quer repartir com ele a herança. Segundo as tradições judaicas, o filho primogénito de uma família de dois irmãos recebia dois terços das possessões paternas (cf. Dt 21,17. É possível que só fossem repartidos os bens móveis e que, para guardar intacto o património da família, a casa e as terras fossem atribuídas ao primogénito). O homem que interpela Jesus é, provavelmente, o irmão mais novo, que ainda não tinha recebido nada. Era frequente, no tempo de Jesus, que os “doutores da lei” assumissem o papel de juízes em casos similares… Como é que Jesus Se vai situar face a esta questão? in Dehonianos

Para a reflexão, ter em conta os seguintes elementos:

A Palavra de Deus que aqui nos é servida questiona fortemente alguns dos fundamentos sobre os quais a nossa sociedade se constrói. O capitalismo selvagem que, por amor do lucro, escraviza e obriga a trabalhar até à exaustão (e por salários miseráveis) homens, mulheres e crianças, continua vivo em tantos cantos do nosso planeta…. Podemos, tranquilamente, comprar e consumir produtos que são fruto da escravidão de tantos irmãos nossos? Devemos consentir, com a nossa indiferença e passividade, em aumentar os lucros imoderados desses empresários/sanguessugas que vivem do sangue dos outros?

Entre nós, o capitalismo assume um “rosto” mais humano nas teses do liberalismo económico; mas continua a impor a filosofia do lucro, a escravatura do trabalhador, a prioridade dos critérios de planificação, de eficiência, de produção em relação às pessoas. Podemos consentir que o mundo se construa desta forma? Podemos consentir que as leis laborais favoreçam a escravidão do trabalhador? Que podemos fazer? Nós cristãos – nós Igreja – não temos uma palavra a dizer e uma posição a tomar face a isto?

Qualquer trabalhador – muitos de nós, provavelmente – passa a vida numa escravatura do trabalho e dos bens, que não deixa tempo nem disponibilidade para as coisas importantes – Deus, a família, os irmãos que nos rodeiam. Muitas vezes, o mercado de trabalho não nos dá outra hipótese (se não produzimos de acordo com a planificação da empresa, outro ocupará, rapidamente, o nosso lugar); outras vezes, essa escravatura do trabalho resulta de uma opção consciente… Quantas pessoas escolhem prescindir dos filhos, para poder dedicar-se
a uma carreira de êxito profissional que as torne milionárias antes dos quarenta anos… Quantas pessoas esquecem as suas responsabilidades familiares, porque é mais importante assegurar o dinheiro suficiente para as férias na Tailândia ou na República Dominicana… Quantas pessoas renunciam à sua dignidade e aos seus direitos, para aumentar a conta bancária… Tornamo-nos, assim, mais felizes e mais humanos? É aí que está o verdadeiro sentido da vida?

O que Jesus denuncia aqui não é a riqueza, mas a deificação da riqueza. Até alguém que fez “voto de pobreza” pode deixar-se tentar pelo apelo dos bens e colocar neles o seu interesse fundamental… A todos Jesus recomenda: “cuidado com os falsos deuses; não deixem que o acessório vos distraia do fundamental”. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

Na primeira leitura, um primeiro cuidado a ter em conta é a repetição da palavra «vaidade». Além disso, é necessário ter uma especial atenção à pergunta retórica que está presente no texto.

A segunda leitura, tal como nos habituamos nos textos de S. Paulo, possui frases longas com diversas orações que pede uma especial atenção às respirações e às pausas para uma correta proclamação do texto.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

A GANÂNCIA ASFIXIA E MATA

Diz o Tratado Pirqê ’Abôt 2,9, da Mishna judaica, que «o caminho mau de que o homem se deve afastar é pedir emprestado e não restituir», acrescentando logo que «é a mesma coisa receber emprestado de um homem ou de Deus». Comentando este dito da sabedoria judaica, afirma, de forma contundente, o grande filósofo hebreu Abraham Joshua Heschel: «Talvez esteja aqui o núcleo da miséria humana: quando nos esquecemos de que a vida é um dom e também um empréstimo».

Servem estes ditos rabínicos para nos conduzir ao extraordinário DIZER e MOSTRAR de Jesus no Evangelho deste XVIII Domingo do Tempo Comum (Lucas 12,13-21): «Vede bem e guardai-vos de toda a GANÂNCIA (pleonexía)» (Lucas 12,15). É fácil de entender o termo grego usado pelo narrador: pleonexía, que aqui traduzimos por ganância, deriva de pléon [= mais] + échô [= ter], e passa, portanto, a ideia clara de desejarmos TER MAIS poder, posse, dinheiro, sucesso, etc… Esta raiz daninha pode tomar de tal modo conta de nós que acaba por minar e envenenar todos os nossos comportamentos. São Paulo chama, com toda a razão, a este vício da «ganância» ou «avareza», «idolatria» (Colossenses 3,5). É o feitiço ou o fetiche do poder, da posse, da riqueza, do dinheiro, do sucesso, diante dos quais nos prostramos, seguranças enganadoras, falsos sucedâneos de Deus, a que o Evangelho chama MAMONA (mamônã) (Lucas 16,13; cf. Mateus 6,24). De notar que o termo grego mamônãs [= dinheiro, riqueza] deriva, através do aramaico mamôn, da raiz hebraica ’mn, que serve também para dizer a fé (ʽemunah) e a confiança em Deus. É como quem diz que nos podemos equivocar radicalmente, deixando de pôr a nossa fé e confiança no Deus vivo, para nos agarrarmos aos ídolos mortos e vazios, uma espécie de «espantalhos num campo de pepinos!» (Jeremias 10,5).

E, para que tudo fique mais claro, aí vem mais uma história arrasadora de Jesus. «A terra de um HOMEM RICO produziu muito» (Lucas 12,16). E eis o HOMEM RICO, sintomaticamente apresentado em cena SEMPRE SÓ, voltado unicamente para si mesmo, entretido com a sua autorreferencialidade, a cogitar CONSIGO MESMO, e a falar apenas CONSIGO MESMO (Lucas 12,17-19).

Diz ele: deitarei abaixo os meus celeiros pequenos, construirei novas infraestruturas, grandes celeiros, e recolherei lá todo o meu trigo e os meus bens. Depois, direi para MIM MESMO: tens muitos bens acumulados para muitos anos; descansa, come, bebe, regala-te! (Lucas 12,18-19). Assim falou o HOMEM RICO a sós CONSIGO MESMO. Mas agora é a vez de Deus, que lhe diz: «Mentecapto (áphrôn), precisamente esta noite morrerás, e as coisas que acumulaste para quem serão?» (Lucas 12,20). E o narrador conclui: «Assim acontece àquele que acumula PARA SI MESMO e não PARA DEUS» (Lucas 12,21). Note-se o vivo contraste entre aquele para muitos anos, projetado pelo homem rico, e a lâmina impiedosa daquele precisamente esta noite, pronunciado por Deus e que deita a perder a rima de projetos que elaborámos! Note-se também o vivo contraste das duas formas de viver que o texto assinala: para si mesmo e para Deus. Viver para si mesmo é a autorreferencialidade que estiola a vida, de que não se cansa de falar o Papa Francisco. Para Deus impõe uma direção da nossa vida para fora de nós, para Deus, bem assinalado no texto grego com a expressão eis Theón (Lucas 12,21), que implica movimento para Deus. Na lição do Evangelho do próximo Domingo (XIX), Jesus ensinar-nos-á que este para Deus se verifica no para os outros: «Vendei os vossos bens, e dai em esmola» (Lucas 12,33).

Não é suficiente traduzir o termo grego áphrôn por «insensato» ou «estúpido». Áphrôn resulta de phrên [= mente] a que se antepõe o a- (alfa) privativo, pelo que áphrôn indica a falta total de inteligência, um mentecapto, desmiolado, sem-mente.

Olhando atentamente à nossa volta, neste mundo em crise acentuada e à deriva, veremos depressa (e não é só no futebol) tantos «ricos mentecaptos», que passeiam e planeiam, falam e gastam sozinhos. Onde estão na nossa não-mente os irmãos a quem devemos fazer participar com alegria da nossa riqueza? E, em última análise, a orientação da nossa vida é PARA NÓS MESMOS ou PARA DEUS? Recebemos a vida, os outros, a riqueza como um DOM e um EMPRÉSTIMO, de que devemos responder a cada momento, ou pensamos que somos DONOS de todos e de tudo, registando logo todos e tudo em nosso nome, nossa propriedade para nosso uso, consumo e satisfação exclusivos? A parábola do rico mentecapto, que acabámos de seguir em Lucas, e que constitui um importante ensinamento de Jesus no caminho, pode muito bem ser vista como o desenvolvimento do gérmen sapiencial já registado no Livro de Ben-Sirá 11,18-19: «Há quem enriqueça por GANÂNCIA, e será esta a sua recompensa: quando ele disser: “agora encontrei descanso, agora comerei dos meus bens”, ele não sabe quando virá o dia em que deixará tudo a outros e morrerá».

Temos hoje a ácida e lúcida companhia de Qohelet (1,2; 2,21-23), esse intrigante pregador que nos segue por toda a parte e não cessa de nos ir lembrando que tudo o que fazemos pode afinal não passar de um sopro, fumaça, um vento que passa, um ócio oco e vão, uma soneira. E logo com tanto irmão à nossa beira!~

São Paulo regressa ao essencial nesta bela página da Carta aos Colossenses (3,1-5.9-11), pondo em destaque a nossa condição cristã assente no batismo, isto é, na enxertia da nossa vida em Cristo. «Se, portanto, ressuscitastes com Cristo, com ressuscitastes (synêgérthête: aor. pass. de synegeírô), procurai as coisas do alto» (v. 1). A Igreja antiga retirou daqui o tà ánô zêteíte, sucessivamente traduzido com sursum cordacorações ao alto, que se usa no diálogo inicial da Prece Eucarística em todas as liturgias. A vida nova, batismal, em Cristo, requer de nós vestidos novos (v. 10), com o consequente abandono dos velhos vícios que nos prendem à terra. Não se trata, obviamente, de um convite ao desprezo das coisas terrenas, dando corpo, por assim dizer, a uma religião de evasão e alienação. Trata-se, antes, de não nos encerrarmos nas coisas deste mundo, à maneira do rico da parábola de hoje, a quem encaixa bem a lista de vícios do v. 5, em que sobressai «a ganância insaciável (pleonexía), que é idolatria». Nós, batizados em Cristo, procuramos aquele tesouro escondido no campo, pelo qual vale a pena vender tudo (Mateus 13,44).

O Salmo 90 põe em cena a eternidade e a solidez de Deus em confronto com a fragilidade e o sabor efémero da vida humana, sempre vista no microscópio de Deus. Este confronto é cantado na elegia sapiencial dos vv. 1-10, sendo de súplica os vv. 11-17. O primeiro movimento pode resumir-se na afirmação do v. 4: «Mil anos aos teus olhos são o dia de ontem que passou, como uma vigília da noite». E o segundo movimento tem o seu ponto alto no v. 12: «Ensina-nos a bem contar os nossos anos, para chegarmos à sabedoria do coração». Estar de passagem e sermos tão frágeis como a flor da erva (vv. 5-6), não nos leva para o pessimismo, mas para viver intensamente a vida que Deus nos dá, Ele que é e permanece o nosso refúgio de geração em geração (v. 1). O grande estudioso dos Salmos, Artur Weiser (1893-1978), alemão, de tradição Evangélica, expressa bem esta realidade: «Na luz da graça de Deus, um reflexo de eternidade cai também sobre a vida e sobre a obra do homem. Da parte de Deus, a fragilidade recebe subsistência, a miséria torna-se glória, aquilo que parecia sem sentido, alcança significado… É como se a estrela de outro mundo viesse fazer luz sobre o fluir dos nossos dias».

 

António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – XVIII DTC – Ano C – 31.07.2022 (Co (Ecle) 1, 2;2,21-23)
  2. Leitura II – XVIII DTC – Ano C – 31.07.2022 (Col 3, 1-5.9-11)
  3. XVIII Domingo Tempo Comum – Ano C – 31.07.2022 – Lecionário
  4. XVIII Domingo Tempo Comum – Ano C – 31.07.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XVII do Tempo Comum – Ano C – 24.07.2022

2Disse-lhes Ele: «Quando orardes, dizei:
Pai,
santificado seja o teu nome;
venha o teu Reino;
3dá-nos o nosso pão de cada dia;
4perdoa os nossos pecados,
pois também nós perdoamos
a todo aquele que nos ofende;
e não nos deixes cair na tentação.»
Lc 11, 2-4

 

Viver a Palavra

«Senhor, ensina-nos a orar».

Que bela oração! Um pedido que é já atitude orante: colocar-se diante de Deus como aprendiz na escola da arte de amar, criando relação e intimidade para que a nossa vida se torne verdadeiro lugar de encontro com Deus e com os outros.

Este belíssimo quadro que abre o texto evangélico deste Domingo é uma oportuna resposta aos educadores da fé, aos pais e catequistas que tantas vezes perguntam: como ensinar os nossos mais novos a rezar? Como educar para a vida de oração?

Mais do que longos discursos e formas criativas de educar para a oração é necessário que a nossa vida orante seja de tal modo decisiva na nossa vida que desperte no coração dos outros este desejo de entrar em diálogo com Deus e experimentar a beleza da oração.

A oração tem a capacidade de moldar o crente, tornando-o num pobre que encontra em Deus a sua grande riqueza. Assumir a nossa fragilidade e pobreza diante de Deus, em nada nos enfraquece ou inferioriza, pelo contrário, permite enriquecer a nossa humana condição da grandeza de um Deus que faz possíveis os impossíveis da nossa vida e nos permite olhar os nossos limites como oportunidade de crescimento e amadurecimento.

Pedir, procurar e bater são os gestos próprios do mendigo que com humildade se coloca diante de alguém que pode socorrer as suas necessidades. É próprio do pobre a atitude de confiança naquele que o pode ajudar. Deste modo, a oração sintoniza o nosso coração com o coração de Deus gerando esta relação de amizade e confiança que nos permite caminhar com um renovado alento os trilhos da história. Mesmo diante das dificuldades e exigências do nosso caminho, sabemo-nos amados por um Deus que não é indiferente às nossas dores, angústias e sofrimentos.

Jesus ensina-nos que a verdadeira oração é aquela que começa por invocar a Deus como «Pai». Na vida cristã é decisiva esta relação filial que nos faz sentir filhos muito amados de Deus e nos responsabiliza como irmãos uns dos outros.

A oração do Pai-nosso, ensinada por Jesus a pedido dos Seus discípulos, como afirma Tertuliano, é norma da oração cristã e síntese do Evangelho (lex orationis et breviarium totius evangelii). Além disso, nesta oração encontramos resposta para as questões acerca do sentido da nossa existência: quem sou eu? De onde venho? Para onde vou?

Eu sou um filho muito amado de Deus, que entrando em relação de intimidade com o Pai, descubro uma multidão de irmãos com quem sou chamado a partilhar o pão quotidiano, para que diante das fragilidades uns dos outros, saibamos perdoar como o Pai nos perdoa a cada um de nós e assim, haveremos de santificar o nome de Deus, fazendo presente no aqui e agora do tempo e da história o Reino que será um dia em plenitude no Céu.

Figura orante é também Abraão que negoceia com Deus a salvação de Sodoma. Abraão deixou a sua terra para acolher a promessa de Deus de uma descendência numerosa como as areias da terra e como as estrelas do Céu. Mesmo sendo de idade avançada, confia na promessa de Deus e verá nascer um filho onde parecia humanamente impossível. O Deus da promessa, o Deus que faz gerar vida onde ela parece já não poder ser gerada, quer destruir a cidade. Abraão coloca-se humildemente diante de Deus e faz seis tentativas de negociação, baixando o número de justos necessários para que a cidade não seja destruída. Porém, a cidade foi destruída, pois não foi encontrado nenhum justo. Foi necessário esperar pelo verdadeiro Justo, Jesus Cristo, para que por meio Dele a humanidade inteira fosse salva e redimida. O Seu amor feito entrega na Cruz venceu a morte e o pecado e reconciliou-nos de modo novo com o Pai: «Quando estáveis mortos nos vossos pecados e na incircuncisão da vossa carne, Deus fez que voltásseis à vida com Cristo e perdoou-nos todas as nossas faltas».in Voz Portucalense

LEITURA I – Gen 18, 20-32

«Atrevo-me a falar ao meu Senhor, eu que não passo de pó e cinza».

 

Ambiente

Este texto do Livro do Génesis vem na sequência da primeira leitura do passado domingo. Depois de terem deixado a tenda de Abraão, os três personagens dirigiram-se para a cidade de Sodoma, a fim de constatar “in loco” o pecado dos habitantes da cidade. Abraão acompanhou os seus visitantes divinos durante algum tempo.

O autor jahwista situa num lugar alto, a Este de Hebron – de onde se avista Sodoma (cf. Gn 19,27) – esse diálogo entre Abraão e Deus que o texto nos apresenta.

Sodoma era uma cidade antiga, que se supõe ter existido nas margens do Mar Morto, ao sul da península de El-Lisan. De acordo com as lendas, foi uma das cidades destruídas (as outras teriam sido Gomorra, Adama, Seboim e Segor) por um cataclismo que ficou na memória do povo bíblico. Alguns estudiosos modernos têm procurado uma explicação para a lenda na geologia da área: a região fica situada na falha do vale do Jordão, numa zona sujeita a terramotos e a atividades vulcânicas. Depósitos de betume e de petróleo têm sido descobertos nesta região; e alguns escritores antigos atestam a presença de gases que, uma vez inflamados, poderiam causar uma terrível destruição, do tipo relatado em Gn 19. Terá sido isso que aconteceu nessa zona?

É, provavelmente, essa recordação de um antigo cataclismo que, em tempos imemoriais, destruiu a área, que originou a reflexão que esta leitura nos apresenta. Poder-se-ia pensar que um acontecimento pré-histórico muito remoto, cujos traços enigmáticos eram ainda visíveis no tempo de Abraão (como o são ainda hoje), tenha excitado a fantasia religiosa, no sentido de procurar as causas de uma tão terrível catástrofe.

O diálogo que a primeira leitura de hoje nos propõe é um texto de transição que serve para ligar a lenda de Mambré com as lendas que relatam a destruição de Sodoma e das cidades vizinhas. Os autores jahwistas aproveitaram o ensejo para propor uma catequese sobre o peso que o justo e o pecador têm diante de Deus. in Dehonianos

 

Considerar, para a reflexão, os seguintes dados:

O diálogo entre Abraão e Deus a propósito de Sodoma confirma esse Deus da comunhão, que vem ao encontro do homem, que entra na sua casa, que Se senta à mesa com ele, que escuta os seus anseios e que lhes dá resposta; e mostra, além disso, um Deus cheio de bondade e de misericórdia, cuja vontade de salvar é infinitamente maior do que a vontade de condenar. É esse Deus “próximo”, cheio de amor, que quer vir ao nosso encontro e partilhar a nossa vida que temos de encontrar: só será possível rezar, se antes tivermos descoberto este “rosto” de Deus.

A “oração” de Abraão é paradigmática da “oração” do crente: é um diálogo com Deus – um diálogo humilde, reverente, respeitoso, mas também cheio de confiança, de ousadia e de esperança. Não é uma repetição de palavras ocas, gravadas e repetidas por um gravador ou um papagaio, mas um diálogo espontâneo e sincero, no qual o crente se expõe e coloca diante de Deus tudo aquilo que lhe enche o coração. A minha oração é este diálogo espontâneo, vivo, confiante com Deus, ou é uma repetição fastidiosa de fórmulas feitas, mastigadas à pressa e sem significado? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 137 (138)

Refrão: «Quando Vos invoco, sempre me atendeis, Senhor».

 

LEITURA II Col 2, 12-14

«Deus fez que voltásseis à vida com Cristo e perdoou-nos todas as nossas faltas.».

Ambiente

Pela terceira semana consecutiva, temos como segunda leitura um trecho dessa Carta aos Colossenses em que Paulo defende a absoluta suficiência de Cristo para a salvação do homem.

O texto que hoje nos é proposto integra uma perícope em que Paulo polemiza contra os “falsos doutores” que confundiam os cristãos de Colossos com exigências acerca de anjos, de ritos e de práticas ascéticas (cf. Col 2,4-3,4). Depois de exortar os Colossenses à firmeza na fé frente aos erros dos “falsos doutores” (cf. Col 2,4-8), Paulo afirma que Cristo basta, pois é n’Ele que reside a plenitude da divindade; Ele é a cabeça de todo o principado e potestade e foi Ele que nos redimiu com a sua morte (cf. Col 2,9-15).in Dehonianos

 

Para a reflexão e atualização da Palavra, considerar os seguintes elementos:

Mais uma vez, a Palavra de Deus afirma a absoluta centralidade de Cristo na nossa experiência cristã. É por Ele – e apenas por Ele – que o nosso pecado e o nosso egoísmo são saneados e que temos acesso à salvação – quer dizer, à vida nova do Homem Novo. É nisto que reside o fundamental da nossa fé e é à volta de Cristo (da sua vida feita doação, entrega, amor até à morte) que se deve centralizar a nossa existência de cristãos. Ao denunciar a atitude dos Colossenses (mais preocupados com os poderes dos anjos e com certas práticas e ritos do que com Cristo), Paulo adverte-nos para não nos deixarmos afastar do essencial por aspetos secundários. O critério fundamental, no que diz respeito à vivência da nossa fé, deve ser este: tudo o que contribui para nos levar até Cristo é bom; tudo o que nos distrai de Cristo é dispensável.

É necessário ter consciência de que o Batismo, identificando-nos com Jesus, constitui um ponto de partida para uma vida vivida ao jeito de Jesus, na doação, no serviço, na entrega da vida por amor. É este “caminho” que temos vindo a percorrer? A minha vida caminha, decisivamente, em direção ao Homem Novo, ou mantém-me fossilizado no homem velho do egoísmo, do orgulho e do pecado? in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 11, 1-13

«Senhor, ensina-nos a orar, como João Baptista ensinou também os seus discípulos».

«Quando orardes, dizei: ‘Pai…».

«Pedi e dar-se-vos-á; procurai e encontrareis; batei à porta e abrir-se-vos-á».

 

Ambiente

Continuamos, ainda, nesse “caminho de Jerusalém” – quer dizer, a percorrer esse caminho espiritual que prepara os discípulos para se assumirem, plenamente, como testemunhas do Reino. A catequese que, neste contexto, Jesus apresenta aos discípulos é, hoje, sobre a forma de dialogar com Deus.

Lucas é o evangelista da oração de Jesus. Ele refere a oração de Jesus no Batismo (cf. Lc 3,21), antes da eleição dos Doze (cf. Lc 6,12), antes do primeiro anúncio da paixão (cf. Lc 9,18), no contexto da transfiguração (cf. Lc 9,28-29), após o regresso dos discípulos da missão (cf. Lc 10,21), na última ceia (cf. Lc 22,32), no Getsémani (cf. Lc 22,40-46), na cruz (cf. Lc 23,34.46). Em geral, a oração é o espaço de encontro de Jesus com o Pai, o momento do discernimento do projeto do Pai.

O texto que hoje nos é proposto apresenta-nos Jesus a orar ao Pai e a ensinar aos discípulos como orar ao Pai. Não se trata tanto de ensinar uma fórmula fixa, que os discípulos devem repetir de memória, mas mais de propor um “modelo”. De resto, o “Pai nosso” conservado por Lucas é um tanto diferente do “Pai nosso” conservado por Mateus (cf. Mt 6,9-13) – o que pode explicar-se por tradições litúrgicas distintas. A versão de Mateus condiz com um meio judeo-cristão, enquanto a de Lucas – mais breve e com menos embelezamentos litúrgicos – está mais próxima (provavelmente) da oração original. Nenhuma destas versões pretende, na realidade, reproduzir literalmente as palavras de Jesus, mas mostrar às comunidades cristãs qual a atitude que se deve assumir no diálogo com Deus.in Dehonianos

Considerar, na reflexão, os seguintes desenvolvimentos:

O Evangelho de Lucas sublinha o espaço significativo que Jesus dava, na sua vida, ao diálogo com o Pai – nomeadamente, antes de certos momentos determinantes, nos quais se tornava particularmente importante o cumprimento do projeto do Pai. Na minha vida, encontro espaço para esse diálogo com o Pai? Na oração, procuro “sentir o pulso” de Deus a propósito dos acontecimentos com que me deparo, de forma a conhecer o seu projeto para mim, para a Igreja e para o mundo?

A forma como Jesus Se dirige a Deus mostra a existência de uma relação de intimidade, de amor, de confiança, de comunhão entre Ele e o Pai (de tal forma que Jesus chama a Deus “papá”); e Ele convida os seus discípulos a assumirem uma atitude semelhante quando se dirigem a Deus… É essa a atitude que eu assumo na minha relação com Deus? Ele é o “papá” a quem amo, a quem confio, a quem recorro, com quem partilho a vida, ou é o Deus distante, inacessível, indiferente?

A minha oração é uma oração egoísta, de “pedinchice” ou é, antes de mais, um encontro, um diálogo, no qual me esforço para escutar Deus, por estar em comunhão com Ele, por perceber os seus projetos e acolhê-los?

A minha oração é uma “negociata” entre dois parceiros comerciais (“dou-te isto, se me deres aquilo”) ou é um encontro com um amigo de quem preciso, a quem amo e com quem partilho as preocupações, os sonhos e as esperanças? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

Na primeira leitura, encontramos um longo diálogo entre Deus e Abraão. A proclamação desta leitura deve ser bem preparada tendo em conta a articulação entre as intervenções de Deus que manifesta autoridade, mas simultaneamente condescendência e misericórdia e as intervenções de Abraão que humildemente toma a ousadia de invocar a benevolência de Deus.

A segunda leitura apesar de ser breve não é de fácil proclamação e exige uma boa preparação para que os ouvintes possam compreender bem o texto. Uma leitura pausada, com atenção às paragens e respirações, articulando as diversas frases, ajudará a uma leitura mais eficaz.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

O TRÍPTICO DA ORAÇÃO

Depois do tríptico sobre o discípulo de Jesus, que contemplámos nos últimos três Domingos (XIV, XV e XVI), em que foi proclamado, em três andamentos, o saboroso texto de Lucas 10 (o envio dos 72 discípulos; o bom samaritano; Maria que escolheu estar sentada a escutar a Palavra de Jesus), eis-nos já perante um novo belo tríptico, agora sobre a oração cristã, que não se distribui por vários Domingos, mas que entra todo por este Domingo XVII adentro, e que Lucas nos oferece em 11,1-13.

O primeiro quadro deste tríptico sobre a oração pode intitular-se INTIMIDADE, e tem a sua explicitação altíssima na oração do PAI NOSSO, ensinada por Jesus aos seus discípulos (Lucas 11,1-4). Jesus é o modelo de oração oferecido aos discípulos. Por isso, aparece ao fundo da cena a rezar sozinho ao Pai (Lucas 11,1), totalmente voltado para o seio do Pai (João 1,18), completamente ocupado nas Realidades do Pai (Lucas 2,49), repousando toda a sua existência no Pai. Os discípulos veem Jesus a rezar, mas não ousam interromper tão intensa corrente de confiança e de amor. Veem apenas. O deslumbramento tolhe-lhes os movimentos e as palavras. Mas eis que Jesus termina a sua oração ao Pai. Então, ainda extasiado, um dos discípulos, em nome de todos, também em nosso nome, atreveu-se a formular este pedido: «Senhor, ensina-nos a rezar como João Batista ensinou a rezar os seus discípulos!» (Lucas 11,1).

E foi então que Jesus ensinou a eles e a nós, a todos, o segredo mais profundo da sua vida e da nossa vida, a orientação da sua vida e da nossa vida: para onde, melhor, para quem, devem estar sempre voltados o nosso coração, os nossos olhos, as nossas mãos, os nossos pés, a nossa vida toda.
E disse: «Quando rezardes, dizei:

“Pai (páter),
1. Santifica o teu Nome,
2. Venha o teu Reino,
3. Dá-nos o pão nosso (árton hêmôn) de cada dia,
4. Perdoa os nossos pecados,
5. Não nos deixes cair na tentação”» (Lucas 11,2-4).

Como bem se vê, não se trata de uma lição teórica, mas da comunicação de uma experiência, de um segredo, de um tesouro, de uma intimidade. Rezar é orientar a nossa vida toda para Deus, a quem tratamos carinhosamente por ’Abba’, nome de radical ternura, simplicidade, verdade, confidência e dependência, posto na boca de Jesus em Marcos 14,36, e na nossa em Romanos 8,15 e Gálatas 4,6. Sim, aqui não está em jogo a instituição paterna, o pai, ʼAb, que impõe respeito, autoridade e distância. Trata-se, antes, de ’Abba’’Ab-ba’ soletrado, que implica a duplicação das sílabas, que é uma característica da linguagem infantil, uma Lallwort de intolerável confiança! São as criancinhas que usam este tipo de linguagem. A tanto carinho e simplicidade nós somos chamados! A oração é composta no texto de Lucas por cinco pedidos (Mateus apresenta sete: Mateus 6,9-13), sendo o do meio o do «pão nosso», dado por Deus. A pergunta infantil, ou científica, ou de mera curiosidade, é sempre a mesma: «O que é isto?». A nossa resposta habitual é também sempre a mesma: «é pão». Impõe-se que nós, modernos, aprendamos e ensinemos novas notas, novas pautas, novos acordes. A resposta correta, aprendida na Escritura Santa, soa assim: «É o pão que Deus nos dá» (Êxodo 16,15).

De acordo com a retórica bíblica, o pedido do meio é o mais importante, pois é o que estrutura a inteira oração, constituindo por assim dizer a clave musical de toda a oração e relação com Deus-Pai. Não esqueçamos que o pedido do meio (o n.º 3) consiste em pedir o «Pão nosso». E aqui é preciso descer abaixo das escadarias da importância e do orgulho e das estratégias que diariamente usamos, pois é imperioso assumir a atitude evangélica das crianças, dado que só elas sabem pedir pão com verdade e simplicidade, sem maquilhagens, truques ou reboco de qualquer espécie! De resto, a nós, crescidos e importantes, basta sairmos à rua e tentarmos fazer o exercício de pedir pão, para vermos a triste figura que fazemos e percebermos logo que não temos mesmo jeito nenhum para isso. Sim, teremos então, evangelicamente, de aprender com as crianças!

Notemos ainda que este pedido n.º 3 não consiste apenas em pedir pão. Trata-se, na verdade, de pedir o «pão nosso». E aí está outra bomba a rebentar no nosso coração e na nossa mesa. É que o «pão nosso» não é o «pão meu». E isto quer dizer que o pão que está sobre a minha mesa, dado por Deus, não é «meu». É «nosso». Não é mais possível comer descansado, saciar-me, quando sei que há irmãos meus que passam fome. Aí está a dimensão social, horizontal, da oração, que é então um espantoso exercício de fraternidade.

O quarto pedido desta oração por Jesus rezada e vivida e a nós por Ele ensinada é sobre o perdão. Pedimos a Deus o perdão dos nossos «pecados» (hamartía) (Lucas 11,4a), para que, segundo o modelo de Deus, nós perdoemos as «dívidas» (opheílô) dos nossos irmãos (Lucas 11,4b). Na verdade, os gregos não conhecem a metáfora da «dívida» para indicar «pecado». São os hebreus que usam essa metáfora (veja-se Mateus 6,12, que usa sempre «dívidas»). Note-se, porém, a agudeza do pedido formulado por Lucas. Pedimos a Deus que nos perdoe os nossos pecados. Mas este modelo serve para nós aprendermos a perdoar ao nosso próximo também as suas dívidas concretas, não apenas as ofensas morais!

O segundo quadro deste tríptico sobre a oração trata o tema da CONSTÂNCIA da oração, retratada imediatamente a seguir (Lucas 11,5-8), na atitude do amigo que de noite bate à porta do seu amigo, e não desiste até ser atendido. Este quadro mostra que a oração cristã não é apenas emoção passageira, mas a respiração permanente da alma, que não se extingue perante as adversidades, nem sequer durante a noite!

O terceiro quadro deste tríptico trata o tema da EFICÁCIA da oração (Lucas 11,9-13): «Pedi e ser-vos-á dado, procurai e encontrareis, batei e abrir-se-vos-á». Entenda-se, todavia, que se trata de uma eficácia que não tem de responder diretamente aos cânones do que esperamos obter, aos desejos que formulamos, mas sim aos planos de Deus, que devemos saber acolher com humildade e prontidão. Como refere o poeta libanês Khalil Gibran (1883-1931), «Deus não escuta as nossas palavras, se não é Ele próprio a pronunciá-las com os nossos lábios».

Essencial é saber que dirigimos sempre a nossa oração ao Pai, que dá sempre o melhor aos seus filhos. E é grandemente significativo que o verbo REZAR, que aparece no tríptico três vezes (Lucas 11,1[2 x] e 2), apareça praticamente traduzido por PEDIR, que contamos no texto cinco vezes (Lucas 11,9.10.11.12.13), e cujo corolário é DAR, com nove menções no texto (Lucas 11,3.7.8[2 x].9.11.12.13[2 x].

Feita esta explicitação vocabular, salta à vista a importância dada à oração de súplica. Todos sabemos que a oração de súplica é muitas vezes vista como uma forma secundária de oração, quase como um subproduto, quando comparada com a oração de louvor ou de ação de graças. Ora, este tríptico diz-nos que, de acordo com Jesus, REZAR é PEDIR, é mesmo só PEDIR. Aprofundando um pouco, compreendemos então que PEDIR é próprio do filho. E é como Filho que Jesus REZA, e é, portanto, no lugar de filhos, e, por consequência, de irmãos, que Jesus nos quer colocar. Por isso também nos ensina a REZAR, dizendo: «Pai…». E também já sabemos que o Filho é aquele que recebe tudo do Pai, sendo o Pai aquele que dá tudo ao Filho.

Coloquemo-nos então no nosso lugar correto: o de filhos, que tudo recebem do Pai, e tudo partilham como irmãos. E compreendamos bem que, para recebermos tudo, não podemos possuir nada! Se possuirmos alguma coisa, já não podemos receber tudo! Impõe-se que temos de ser radicalmente pobres, filhos e irmãos! Só assim podemos começar a REZAR.

O contraponto musical de hoje vem do Livro do Génesis 18,20-32. Abraão é visto no papel do orante que negoceia com Deus a salvação de Sodoma. A sequência da intercessão de Abraão lembra o procedimento habitual nos mercados do Médio Oriente, em que o cliente faz sucessivas tentativas para baixar o preço do produto que pretende adquirir. Abraão faz seis tentativas: começa por propor 50 justos pela salvação de toda a cidade; passa depois para 45, depois para 40, depois para 30, depois para 20, finalmente 10. Vê-se que não havia nenhum, e a cidade, com todos os seus habitantes, é destruída (Génesis 19,24-25). Mas ficam desde aqui já em aberto duas coisas: a primeira é que, como referem os doutores do Talmude, não se pode deixar Deus sozinho, como fez Abraão, que se foi embora (Génesis 18,33); a segunda é que, para poder atender a oração de Abraão e a nossa, terá Deus de enviar ao nosso mundo um justo verdadeiro, «Jesus Cristo Justo» (1 João 2,1). É Ele, na verdade, o nosso Redentor e Salvador.

A cidade inteira
Cheira a enxofre e feno
E a todo o momento uma fogueira
Pode transformar esta lixeira
Num inferno.

Vem Abraão contando pelos dedos
Percorre a escala toda de cinquenta a dez,
Passando por quarenta e cinco,
Quarenta, trinta e vinte.
Ele quer salvar Sodoma a todo o custo
Mas não encontra nem sequer um justo
Para oferecer em troca dos seus medos.

Ao todo, seis lances,
Seis ofertas atiradas para o chão.
Fica, pois, com a sétima, a última, na mão
Sob registo.
E no dia em que for aberta
Ver-se-á que é divina a letra
E que o nome é Cristo.

A página de São Paulo aos Colossenses (2,12-14), hoje lida e escutada, é outra vez sublime e espantosa, e, talvez, original, pois este agrafo do nosso batismo com o mistério da morte e da ressurreição de Cristo pode constituir uma originalidade paulina (ver também Romanos 6,3-5). Fomos sepultados com Ele, com-sepultados (syntaphéntes: part. aor. pass. de syntháptô), no batismo, e com Ele ressuscitados, com-ressuscitados (synêgérthête: aor. pass. de synegeírô), e com Ele vivificados, com-vivificados (synezôopoíêsen: aor. de synzôopoiéô), linguagem fortíssima que enxerta a nossa vida na vida de Cristo. O título da dívida (cheirógraphon), o contrato escrito e assinado pelo credor e pelo devedor, nós não o podíamos cumprir; foi suprimido pelo credor, que o cravou na Cruz. Mais uma vez é verificável, e Paulo mostra-o até à exaustão, que a Cruz de Cristo constitui o chão e o critério da identidade cristã e apostólica.

O Salmo 138, que hoje cantamos, é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

Bendito o dia em que outra vez rezamos,
E outra vez sempre de novo.
Rezar é voltar sempre ao princípio,
E recitar com mais amor cada uma das tuas maravilhas.

Assim,
Talvez a oração não tenha fim,
Porque é uma viagem dentro de mim,
Fora de mim,
Enunciando nomes, dores, alegrias, guerras, fomes,
Calcorreando montanhas, vales, avenidas,
Colhendo frutos no coração das árvores,
Partilhá-los com os passarinhos
Na toalha multicolor que estendeste sobre este chão dourado.

Rezar é saber bem
Que as coisas belas que vemos neste mundo são todas tuas,
E a mais ninguém pertencem.
E quem agora as tem na mão deve acariciá-las,
Partilhá-las,
Porque as tem apenas emprestadas.

Obrigado, Senhor,
Pelo céu e pelo chão,
Pelo vinho e pelo pão,
E por cada irmão que me deste.

 

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – XVII DTC – Ano C – 24.07.2022 (Gen 18, 20-323)
  2. Resto da Leitura I – XVII DTC – Ano C – 24.07.2022 (Gen 18, 20-323)
  3. Leitura II -XVII DTC – Ano C – 24.07.2022 (Col 2, 12-14)
  4. XVII Domingo do Tempo Comum – Ano C – 24.07.2022 – Lecionário
  5. XVII Domingo do Tempo Comum – Ano C – 24.07.2022 – Oração Universal
  6. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XVI do Tempo Comum – Ano C – 17.07.2022

 

Viver a Palavra

«Não tenho tempo para nada!».

«O dia devia ter mais horas!».

«Passei o dia a correr e não fiz nada do que queria!».

Estas e muitas outras frases saem da nossa boca, no nosso quotidiano, e não nos permitem olhar para este Evangelho sem que nos identifiquemos com Marta, a mulher atarefada e preocupada que procura acolher e servir o Senhor e todos aqueles que o acompanham. Também nós, tantas vezes, transcorremos os nossos dias, dispersos e numa constante azáfama, cheios de múltiplos afazeres que nos ocupam e sobretudo preocupam. E quando reivindicamos do Senhor auxílio e ajuda, Ele dirige-se a nós, como outrora a Marta: «Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada».

Contudo, importa não fazer leituras apressadas deste belíssimo texto que neste Domingo nos é oferecido e não ver nestas palavras de Jesus uma repreensão ou condenação pelo trabalho e dedicação.

«Maria escolheu a melhor parte!». Escolheu essa «uma só coisa necessária» que não é, de modo nenhum, apenas sentar-se diante do Mestre, numa simples escuta, evitando o trabalho. Maria escolheu aquilo que é fundamental e urgente: distinguir o necessário do supérfluo, o ilusório do permanente, o efémero do eterno.

Comos seria diferente a nossa vida e o modo como enfrentamos as ocupações e os desafios quotidianos, se aprendêssemos esta arte de distinguir o necessário do supérfluo e aprendêssemos a viver ocupados e não preocupados, numa vida que se unifica pela intimidade com Jesus e pela escuta da Sua Palavra.

A nossa vida de oração e de intimidade com Deus não é apenas mais uma coisa a fazer entre os múltiplos afazeres quotidianos, mas o lugar fundamental onde podemos unificar a nossa vida, encontrar a estabilidade e a força necessárias para que tudo aquilo que temos de fazer se realize de acordo com o projeto de Deus e com a serenidade e tranquilidade necessárias.

Por isso, não podemos permitir nenhuma dicotomia entre Marta e Maria e estabelecer uma contraposição entre contemplação e ação. Ambas as atitudes constituem duas faces de um único amor e são essenciais para a configuração de uma hospitalidade autêntica que nos permite viver com verdade a nossa vocação cristã de amar a Deus e o próximo.

Para Marta, como para nós hoje, há sempre a possibilidade de um serviço que se torna totalizante, que distrai do essencial, que fecha a porta à escuta da Palavra e nos desvia dela. O primeiro serviço a prestar a Deus e aos outros é a escuta: uma escuta autêntica, sem preconceitos, que acolhe o outro como ele se coloca diante de nós. Uma escuta e acolhimento do outro que nos permitem acolher o totalmente Outro que dá sentido à nossa vida e que passa à nossa porta como passou à porta de Abraão e de Marta.

A atitude de Maria recorda-nos que não basta servir, mas que é preciso ser servo. Maria, ficando aos pés de Jesus, deixa-se plasmar pela Sua palavra, fazendo-se serva como outrora Maria, Mãe de Jesus, que visitada pelo Anjo declarou: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a Sua Palavra».

Cultivando esta atitude de docilidade e escuta, deixamos que seja Jesus o Senhor das nossas vidas e que seja Ele a conduzir a nossa história, evitando o ativismo frenético que faz de nós protagonistas e donos da nossa vida. Colocando a nossa vida com todos os seus afazeres e preocupações nas mãos de Deus, haveremos de percorrer a estrada da vida com mais confiança, renovando em cada dia a certeza de que é Deus o Senhor e condutor da nossa existência.in Voz Portucalense

LEITURA I – Gen 18, 1-10a

«Passarei novamente pela tua casa daqui a um ano, e então Sara, tua esposa, terá um filho».

 

Ambiente

Os capítulos 12-36 do Livro do Génesis são um conjunto de textos sem grande unidade e sem carácter de documento histórico ou de reportagem jornalística de acontecimentos. Fundamentalmente, estamos diante de uma mistura de “mitos de origem” (que narravam a chegada de um “fundador” a um determinado local e a tomada de posse daquela terra), de “lendas cultuais” (que relatavam como um deus qualquer apareceu em determinado local a um desses “fundadores” e como esse lugar se tornou um local de culto) e de relatos onde se expressa a realidade da vida nómada durante o segundo milénio antes de Cristo.

Na origem do texto que hoje nos é proposto como primeira leitura está, provavelmente, uma antiga “lenda cultual” que narrava como três figuras divinas tinham aparecido a um cananeu anónimo junto do carvalho sagrado de Mambré (perto de Hebron), como esse cananeu os tinha acolhido na sua tenda e como tinha sido recompensado com um filho pelos deuses (Mambré é um famoso santuário cananeu, já no terceiro milénio a.C., muito antes de Abraão aí ter chegado). Mais tarde, quando Abraão se estabeleceu nesse lugar, a antiga lenda cananeia foi-lhe aplicada e ele passou a ser o herói desse encontro com as figuras divinas. No séc. X a.C. (reinado de Salomão), os autores jahwistas recuperaram essa velha lenda para apresentar a sua catequese. in Dehonianos

 

Na reflexão, ter em conta os seguintes elementos:

Cada vez mais, o sagrado sacramento da hospitalidade está em crise, pelo menos na nossa civilização ocidental. O egoísmo, o fechamento, o “salve-se quem puder”, o “cada um que se meta na sua vida”… parecem marcar cada vez mais a nossa realidade. No entanto, são cada vez mais as pessoas perdidas, não acolhidas, que têm por tecto os buracos das nossas cidades… De África, do Leste da Europa, da Ásia, da América Latina, chegam todos os dias à fronteira da “fortaleza Europa” bandos de deserdados, que procuram conquistar, com sangue, suor e lágrimas, o direito a uma vida minimamente humana. Que fazer por eles? Como os acolhemos: com indiferença e agressividade, ou com a atitude humana e misericordiosa de Abraão? Temos consciência de que, em cada irmão deserdado, é Deus que vem ao nosso encontro?

É com atenção, com bondade, com respeito, que as pessoas são acolhidas na nossa família, na nossa comunidade cristã, nas nossas repartições públicas, nas urgências dos nossos hospitais, nas receções das nossas igrejas, nas portarias das nossas comunidades religiosas?

A atitude de Abraão face a Deus é, também, questionante, numa época em que muita gente vê em Deus um concorrente ou um rival do homem… Abraão é o crente que acolhe Deus na sua vida, que aceita viver em comunhão com Ele, que aceita pôr tudo o que tem nas mãos de Deus e que se coloca diante de Deus numa atitude de respeito, de submissão, de total confiança. Qual é a atitude que marca, dia a dia, a nossa relação com Deus? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)

Refrão: «Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?».

 

LEITURA II Col 1, 24-28

«O mistério que ficou oculto ao longo dos séculos e que foi agora manifestado aos seus santos».

 

Ambiente

Continuamos com a leitura dessa Carta aos Colossenses que já vimos no passado domingo. Recordemos que é uma carta escrita por Paulo da prisão (em Roma), convidando os habitantes da cidade de Colossos (Ásia Menor) a não darem ouvidos a esses doutores para quem a fé em Cristo devia ser complementada com o culto dos anjos, com rituais legalistas, com práticas ascéticas rigoristas e com a observância de certas festas… Para Paulo, o único necessário é Cristo: a sua vida, o seu testemunho, a sua cruz (o dom da vida por amor) e a sua ressurreição. Estamos por volta dos anos 61/63.

O texto que nos é proposto inicia a parte polémica da carta. Nele, Paulo apresenta o seu próprio exemplo, para que ele sirva de estímulo aos Colossenses.in Dehonianos

  A reflexão deste texto pode abordar as seguintes questões:

Paulo é, para os crentes, uma das figuras mais questionantes da história do cristianismo. É o cristão de “vistas largas”, que não se deixa amarrar pelas coisas secundárias, mas sabe discernir o essencial e lutar por aquilo que é importante… Mas, sobretudo, é o exemplo do apóstolo por excelência, do apóstolo para quem Cristo é tudo e que põe cada batida do seu coração ao serviço do Evangelho e da libertação dos homens. É com o mesmo empenho de Paulo que eu “agarro” a missão que Cristo me confiou? Como é que a nossa comunidade trata e considera esses irmãos que, tantas vezes escondidos atrás da sua simplicidade e humildade, dão a vida à causa do Evangelho e da libertação dos outros?

A centralidade que Cristo assume na experiência religiosa de Paulo leva-o à conclusão de que Cristo basta e que tudo o resto assume um valor relativo (quando não serve, até, para “desviar” os crentes do essencial). Que valor ocupa Cristo na minha experiência de fé? Ele é a prioridade fundamental, ou há outras imagens ou ritos que chegam a ocupar o lugar central que só pode pertencer a Cristo?in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 10, 38-42

«Jesus entrou em certa povoação e uma mulher chamada Marta recebeu-O em sua casa».

«Marta, Marta, andas inquieta e preocupada com muitas coisas, quando uma só é necessária».

«Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada».

 

Ambiente

Este episódio situa-nos numa aldeia não identificada, em casa de duas irmãs (Marta e Maria). Estas duas irmãs são, provavelmente, as mesmas Marta e Maria, irmãs de Lázaro, referidas em Jo 11,1-40 e Jo 12,1-3. Se assim for, a ação passa-se em Betânia, uma pequena aldeia situada na encosta oriental do Monte das Oliveiras, a cerca de 3 quilómetros de Jerusalém. Continuamos, de qualquer forma, a percorrer esse “caminho de Jerusalém”, durante o qual Jesus vai revelando aos seus discípulos os projetos do Pai e os vai preparando para o testemunho do Reino.in Dehonianos

Na reflexão e atualização, ter em conta as seguintes linhas:

O nosso tempo vive-se a uma velocidade estonteante… Para ganhar uns minutos, arriscamos a vida porque “tempo é dinheiro” e perder um segundo é ficar para trás ou deixar acumular trabalho que depois não conseguimos “digerir”. Mudamos de fila no trânsito da manhã vezes incontáveis para ganhar uns metros, passamos semáforos vermelhos, comemos de pé ao lado de pessoas para quem nem olhamos, chegamos a casa derreados, enervados, vencidos pelo cansaço e pelo stress, sem tempo e sem vontade de brincar com os filhos ou de lhes ler uma história e dormimos algumas horas com a consciência de que amanhã tudo vai ser igual… Claro que estas são as exigências da vida moderna; mas, como é possível, neste ritmo, guardar tempo para as coisas essenciais? Como é possível encontrar espaço para nos sentarmos aos pés de Jesus e escutarmos o que Ele tem para nos propor?

Nas nossas comunidades cristãs e religiosas, encontramos pessoas que fazem muitas coisas, que se dão completamente à missão e ao serviço dos irmãos, que não param um instante… É ótimo que exista esta capacidade de doação, de entrega, de serviço; mas não nos podemos esquecer que o ativismo desenfreado nos aliena, nos massacra e asfixia. É preciso encontrar tempo para escutar Jesus, para acolher e “ruminar” a Palavra, para nos encontrarmos com Deus e connosco próprios, para perceber os desafios que Deus nos lança. Sem isso, facilmente perdemos o sentido das coisas e o sentido da missão que nos é proposta; sem isso, facilmente passamos a agir por nossa conta, passando ao lado do que Deus quer de nós.

Esta época do ano – tempo de férias, de evasão, de descanso – é um tempo privilegiado para invertermos a marcha alienante que nos massacra. Que este tempo não seja mais uma corrida desenfreada para lugar nenhum, mas um tempo de reencontro connosco, com a nossa família, com os nossos amigos, com Deus e com as nossas prioridades. A oração e a escuta da Palavra podem ajudar-nos a recentrar a nossa vida e a redescobrir o sentido da nossa existência.

Qual é a nossa perspetiva da hospitalidade e do acolhimento? Esta leitura sugere que o verdadeiro acolhimento não se limita a abrir a porta, a sentar a pessoa no sofá, a ligar a televisão para que ela se entretenha sozinha, e a correr para a cozinha para lhe preparar um banquete opíparo; mas o verdadeiro acolhimento passa por dar atenção àquele que veio ao nosso encontro, escutá-lo, partilhar com ele, a fazê-lo sentir o quanto nos preocupamos com aquilo que ele sente…

A atitude de Jesus – que, contra os costumes da época, aceita Maria como discípula – faz-nos, mais uma vez, pensar nas discriminações que, na Igreja e fora dela, existem, nomeadamente em relação às mulheres. Fará algum sentido qualquer tipo de discriminação, à luz das atitudes que Jesus sempre tomou? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A Liturgia da Palavra deste Domingo não apresenta nenhuma dificuldade aparente. Contudo, ambas as leituras requerem uma aturada preparação devido às frases longas com diversas orações. Deve preparar-se bem as pausas e as respirações para uma mais eficaz proclamação da leitura.

Na primeira leitura, deve ainda haver um especial cuidado nas diversas frases em discurso direto, articulando bem o diálogo entre os diversos intervenientes

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

A SENHORA DONA MARTA E A DISCÍPULA MARIA

Imediatamente a seguir ao belo trabalho de amor do Bom Samaritano (Lucas 10,25-37), apresentado como figura do discípulo de Jesus, eis-nos a braços com outra cena de exceção do Evangelho de Lucas: Jesus, Marta e Maria (Lucas 10,38-42), que continua a expor diante de nós, neste Domingo XVI do Tempo Comum, traços salientes para continuarmos a compor a figura do discípulo de Jesus.

A primeira anotação do narrador é para nos comunicar que, estando Jesus em viagem, uma mulher, de nome Marta, o recebeu em sua casa (Lucas 10,38). Acrescenta logo que Marta tinha uma irmã, chamada Maria (Lucas 10,39), e começa de imediato a desenhar o retrato das duas irmãs.

De Maria, diz-nos que se SENTOU aos pés de Jesus e que ESCUTAVA a sua Palavra (Lucas 10,39). O leitor apercebe-se de imediato que Maria assume a figura de discípula atenta, dedicada e deliciada: SENTADA perto do Mestre, ESCUTAVA… O narrador usa outras tintas para pintar o retrato de Marta. Começa por nos dizer que andava DISTRAÍDA (verbo grego perispáô) com muito trabalho (Lucas 10,40a). Aproximando-se, porém, disse a Jesus com um certo ar de reprovação: «Senhor, a ti não te importa que a minha irmã me deixe sozinha a trabalhar?» (Lucas 10,40b). E sem esperar pela resposta, como quem está cheia de razão, acrescenta logo, como quem tem autoridade para dar ordens até a Jesus: «Diz-lhe, pois, que me venha ajudar!» (Lucas 10,40c). É aqui que intervém Jesus, com a sua Palavra serena e soberana, para lhe dizer: «Marta, Marta, andas PREOCUPADA (verbo grego merimnáô) e ÀS VOLTAS (verbo grego thorybázô) com MUITAS COISAS (pollá), quando UMA SÓ (henós) é necessária» (Lucas 10,41-42). E conclui, para total espanto nosso e de Marta: «Maria ESCOLHEU (eklégomai) a parte BOA (e bela), que não lhe será tirada» (Lucas 10,42).

Importa ver já, com clareza, que Maria não diz uma palavra em todo o episódio. Não se ouve a sua voz. Ela está tranquilamente SENTADA e totalmente concentrada na ESCUTA de outra VOZ, que não a sua. Maria é a mulher de UMA COISA e de UMA PESSOA. Por isso, na base da sua vida, tem de haver uma ESCOLHA. Nas páginas da Escritura Santa, é normalmente Deus o sujeito do verbo ESCOLHER. Quando também nós ousamos ESCOLHER, então já se percebe que deixamos muitos mundos para trás e que nasce em nós um mundo novo, por acostagem ao mundo de Deus.

Marta começa por receber Jesus na casa dela. É a senhora dona Marta. Olha de soslaio para a sua irmã Maria que acusa de não fazer nada, e repreende Jesus por não se importar com isso, e acaba mesmo dando ordens a Jesus, para que, por sua vez, dê ordens a Maria para a ir ajudar. É a senhora dona Marta. Manda, ou pensa que manda, em casa, na sua irmã e em Jesus!

A sua vida é uma azáfama, anda às voltas, ocupada por preocupações e preconceitos, descentrada e desconcentrada. O seu fazer é tradicional e convencional. Nunca ESCOLHEU. Apenas CONTINUOU a fazer o habitual. O narrador diz-nos que anda DISTRAÍDA, e Jesus diz-lhe que anda PREOCUPADA (merimnáô) e ÀS VOLTAS (thorybázô)… Vocabulário importante. Um pouco adiante, Jesus adverte os seus discípulos para não se PREOCUPAREM (merimnáô) com a vida, quanto ao que hão de comer, nem com o corpo, quanto ao que hão de vestir (Lucas 12,22), e acrescenta logo que isso – afadigar-se com o que comer, beber e andar freneticamente, de lado para lado, como meteoritos (meteôrízô) – são coisas dos pagãos! (Lucas 12,30). E põe-nos diante dos olhos este tesouro evangélico e poético: «Considerai os lírios do campo, que não fiam nem tecem!…» (Lucas 12,27).

Ressalta deste finíssimo quadro que também o agitar-se por Deus ou pelo próximo pode ser coisa pagã. Não necessariamente por ser pagão o objeto da busca, mas por ser pagão o modo de procurar: com afã, inquietação, agitação! Na verdade, as «muitas coisas» podem viciar, não apenas a escuta, mas também o verdadeiro serviço. Fazer muito pode ser sinal de amor, mas pode também fazer morrer o amor! Ao hóspede é necessário oferecer companhia, não apenas coisas!

Ao contrário da senhora dona Marta, que nunca abriu mão da sua condição de dona, Maria percebeu bem que não é dona, mas simplesmente hóspede. Não da sua irmã Marta, mas de Jesus. Maria está, na verdade, hospedada em casa de Jesus. Por isso, está assim serena e tranquila. Entregou-lhe tudo: o coração, as mãos, os olhos, o cofre, a chave do cofre, a chave de casa. Marta não é apresentada como sendo má pessoa, mas não compreendeu que, quando Jesus entra em nossa casa, é dele a casa, e nós simplesmente seus hóspedes, tranquilamente sentados junto dele! Ai esta nossa entranhada tentação patronal!

Dizia um velho rabino acerca de um seu colega: «anda de tal modo ocupado com as COISAS de Deus, que até se esquece de que ELE existe!». Convenhamos que se trata de um esquecimento desastroso…

Veja-se bem a simplicidade, a prontidão e a candura desarmantes da lição do velho Abraão do Antigo Testamento de hoje (Génesis 18,1-10). Parece mesmo que Abraão já estava ali, à porta da tenda, à espera de alguém ou de Alguém! Depois de entrever Alguém ao longe, percorre aquela avenida num instante, e, como bom beduíno oriental, quase implora que não passem adiante sem descansar e retemperar as forças na sua tenda. Os viandantes aceitam. Abraão corre, apressa-se, e, no mesmo movimento de alegria, entram Sara, sua esposa, e o seu servo, escrupulosamente seguindo as diretrizes de Abraão. Mesmo quando os seus hóspedes estão recostados à mesa, isto é, à volta de uma pele de vaca sobre o chão à entrada da tenda, debaixo da árvore, estendida, Abraão permanece de pé, em atitude de disponibilidade e serviço. Abraão apresenta-se loquaz e atarefado, enquanto os seus hóspedes estão tranquilos e pronunciam frases curtas, antes da grande palavra de esperança, completamente inesperada, que abre novos horizontes para toda a humanidade! Note-se ainda que as três medidas de farinha (Génesis 18,6), mais coisa menos coisa como 60 quilos de farinha, que Abraão manda Sara amassar e meter ao forno apontam já para a parábola do Evangelho (Mateus 13,33; Lucas 13,21), e, para além disso, dada a quantidade, para o banquete do Reino de Deus! Mas também aquele filho prometido (Génesis 18,10) aponta para o Filho que encherá as páginas do Novo Testamento e da nossa vida!

Na lição de hoje da Carta aos Colossenses 1,24-28, Paulo apresenta-se como «servidor» (diákonos) do Evangelho a toda a criatura (v. 23) e como «servidor» (diákonos) do corpo de Cristo, que é a Igreja (ekklêsía) (v. 24). Tudo isto, não por vontade do Apóstolo, mas segundo a «economia» (oikonomía) de Deus, dada a ele por Deus para proveito nosso para levar a cumprimento a Palavra de Deus (v. 25). A Deus aprouve dar-nos a conhecer (gnôrízô) o seu mistério (mystêrion). Portanto, o mistério bíblico não é o que não se sabe nem se pode saber; é, antes, aquilo ou Aquele que Deus nos dá a conhecer (vv. 26-28). Mistério, portanto, prometido, anunciado, ensinado e conhecido! Para glória de Deus e nossa! Mas Paulo, o Apóstolo, ainda quer deixar diante de nós uma leitura nova do sofrimento, de que tanto fugimos e que a tanto custo suportamos. Diz o Apóstolo: «Alegro-me (chaírô) nos sofrimentos em vosso favor e completo o que falta nas tribulações de Cristo na minha carne em favor do seu corpo, que é a Igreja» (v. 24). Só o amor dá sentido à dor.

O Salmo 15 é uma «Liturgia de ingresso» no santuário, ou uma «Liturgia das portas». Constituía, na prática, uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo, para se aquilatar se a pessoa reúne condições para poder entrar no Templo. Quer isto dizer que, para alguém poder transpor o limiar do Templo, para poder ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual, que nem sequer é falada no Salmo. Nas fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia estavam inscritas as condições requeridas para se aceder ao culto. Tratava-se, em quase todos os casos, de preceitos de natureza ritual ou exterior. Também o Talmude lembrava que «o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó; não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas, e muito menos cuspir neles». Como se vê, o nosso Salmo não se entretém com ritualismos exteriores, mas requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais, que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia e o insulto e a usura. Tenha-se presente que, no mundo oriental, o empréstimo interesseiro atingia, por vezes, níveis altíssimos. Por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de empréstimo chegaram a variar entre 17 e 50%. O nosso Salmo apela à verdade e à generosidade.

 

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I do XVI DTC – Ano C – 17.07.2022 (Gen 18, 1-10a)
  2. Resto Leitura I e Leitura II -XVI DTC – 17.07.2022 (Col 1, 24-28)
  3. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano C – 17.07.2022 – Lecionário
  4. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano C – 17.07.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XV do Tempo Comum – Ano C – 10.07.2022

 

Viver a Palavra

No mais profundo do coração de cada homem e de cada mulher reside um desejo de vida em plenitude, um horizonte de realização e felicidade que tenha sabor de eternidade e nos ofereça a alegria nova que se constrói a partir do amor oferecido e recebido de modo pleno, total e disponível. Por isso, colocamo-nos a caminho com Jesus e queremos descobrir os traços do discípulo que nos farão entrar na nova lógica do Reino.

Jesus, caminhando decididamente para Jerusalém, ensina-nos o modo novo de ser discípulo pela prática concreta da caridade, num amor absolutamente centrado em Deus e universalmente alargado aos irmãos. É urgente aprender a arte de se fazer próximo, promovendo uma verdadeira cultura do encontro.

Estamos no centro do Evangelho de Lucas e contemplamos uma parábola absolutamente decisiva para compreender o nosso ser cristão. No centro da parábola está um homem e um apelo absolutamente decisivo: «amarás». Amarás a Deus e ao próximo, amarás a Deus no próximo e farás a experiência do Deus próximo que em Jesus Cristo se faz Bom Samaritano para curar a humanidade ferida.

Jesus narra esta parábola interpelado por um doutor da lei que se aproxima dele para O experimentar. Porém, para Jesus é indiferente a motivação pela qual este doutor da lei o interroga. Para Ele, o mais importante é não deixar escapar esta oportunidade de acolhimento e encontro.

Como seria bem diferente a nossa ação pastoral, sobretudo diante daqueles que se aproximam de nós procurando qualquer serviço ou favor eclesial, se ao invés de perdermos tempo a pensar sobre a sua intenção, fizéssemos dessa aproximação uma decisiva oportunidade de acolhimento e encontro. Jesus não julga a pergunta daquele homem, mas desafia-o a colocar-se a caminho e a colocar-se em questão. Jesus começa por se fazer próximo daquele doutor da lei, compadece-se dele, liga-lhe as feridas da sua presunção e verte-lhe o vinho de uma nova interpretação do amor e da vida.

É muito curioso o modo como este doutor da lei formula a sua pergunta: «Mestre, que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?». Ele não pergunta o que devo saber, mas o que devo fazer e situa a pergunta precisamente na nova lógica do amor que se deve traduzir numa ação concreta: «faz isso e viverás». Além disso, ele pergunta o que deve fazer para «receber» como herança a vida eterna. Na verdade, a vida eterna, a felicidade que tem sabor de eternidade, não se conquista pelos nossos méritos, mas acolhe-se como dom.

Deste modo, ser discípulo é sentir-se amado de modo único e irrepetível e não permanecer indiferente a esse amor que transforma a nossa vida. É deixar-se fascinar por este modo ternurento de Deus se relacionar connosco e colocar-se a caminho para que ninguém fique esquecido na beira do caminho. O amor a Deus e ao próximo que somos chamados a viver inaugura um novo decálogo. Nos dez verbos encontrados nesta parábola encontramos o caminho a seguir: viu-o, compadeceu-se, aproximou-se, ligou-lhe as feridas, deitou, colou-o na montada, levou-o, cuidou, pagou e por fim afirmou: no regresso pagarei.

Este é o caminho novo da felicidade que nos permite inaugurar no tempo e na história uma nova fraternidade, onde as dores e sofrimentos do outro não me são alheios, mas reclamam de mim, atenção, compaixão, presença e cuidado. Importa nunca esquecer que na estrada que percorremos de Jerusalém para Jericó, posso ser o sacerdote, o levita, o desvalido do caminho, o samaritano ou até mesmo um dos salteadores. Quem quero ser neste caminho? in Voz Portucalense

Indicações litúrgico-pastorais

Na nossa diocese, o segundo Domingo de Julho é dia de ordenações e, por isso, dia de celebrar a graça do ministério ordenado que o Senhor oferece à Sua Igreja como lugar de serviço aos irmãos. Deste modo, o Domingo XIV do Tempo Comum, que antecedeu este Domingo das ordenações, constitui-se como uma oportunidade para rezar por aqueles que serão ordenados no dia 10 de julho de 2022 e desafiar os fiéis a ter esta intenção na sua oração ao longo desta semana. Acolhendo o pedido de Jesus no Evangelho do Domingo XIV do Tempo Comum – 03.10.2022 – «pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara» – cada comunidade paroquial poderá organizar ao longo desta semana um momento comunitário de oração pelas vocações e de modo particular por aqueles que serão ordenados para o serviço da nossa diocese.

 

LEITURA I – Deut 30, 10-14

«Esta palavra está perto de ti, está na tua boca e no teu coração, para que a possas pôr em prática».

 

Ambiente

O Livro do Deuteronómio é fruto da reflexão e da catequese dos teólogos do Reino do Norte (Israel), preocupados em lembrar ao Povo os compromissos assumidos no âmbito da “aliança”; mas apresenta-se, literariamente, como um conjunto de discursos de Moisés, uma espécie de testamento espiritual que Moisés teria pronunciado antes da sua morte, na planície de Moab, na altura em que os hebreus se preparavam para renovar a “aliança”, antes de entrar na “Terra Prometida”.

O texto que hoje nos é proposto é a parte final do terceiro discurso de Moisés (cf. Dt 29-30). Na realidade, trata-se de uma homilia dos teólogos deuteronomistas, redigida na fase final do exílio da Babilónia, alertando a comunidade do Povo de Deus para as consequências da fidelidade ou da infidelidade face aos compromissos assumidos para com Jahwéh.in Dehonianos

 

Para a reflexão e a partilha, considerar as seguintes indicações:

O convite a aderir com todo o coração e com todo o ser às propostas de Deus leva-nos a questionar a qualidade da nossa adesão. Não pode ser uma adesão a meio-gás ou a tempo parcial – de acordo com os nossos interesses; mas tem de ser uma adesão total, completa, plenamente empenhada, a “fundo perdido”. É desta forma radical e total que aderimos aos projetos de Deus, ou a nossa adesão é “morna”, incompleta, limitada, reticente?

Encontramos espaço e disponibilidade para interrogar o nosso coração e para escutar o Deus que fala, que Se revela, que nos desafia e questiona?

Pode acontecer que os nossos interesses egoístas, as nossas ambições, as nossas paixões, os nossos esquemas e projetos pessoais abafem a voz de Deus e nos impeçam de escutar as suas propostas. Quais são, para mim, essas outras “vozes” que calam a voz de Deus? Que lugar ocupam elas na minha vida? Em que medida elas contribuem para definir o sentido essencial da minha existência? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 18 B, 8-11

Refrão: «Os preceitos do Senhor alegram o coração».

 

LEITURA II Col 1, 15-20

«Cristo Jesus é a imagem de Deus invisível, o Primogénito de toda a criatura».

 

Ambiente

Colossos era uma cidade da Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de 200 quilómetros a Este de Éfeso. A comunidade cristã dessa cidade não foi fundada por Paulo, mas por Epafras, discípulo de Paulo e Colossenses de origem (cf. Col 4,12).

Paulo escreveu aos Colossenses da prisão (provavelmente, de Roma). Estaríamos entre os anos 61 e 63. Epafras visitou Paulo e levou ao apóstolo notícias alarmantes… Alguns “doutores” locais (talvez membros de um movimento de índole sincretista, que misturava cristianismo com cultos mistéricos em voga no mundo helenista e com elementos religiosos de várias origens) ensinavam aos Colossenses que a fé em Cristo devia ser completada por rígidas práticas ascéticas, por ritos legalistas judaicos, por prescrições sobre os alimentos (cf. Col 2,16.21), pela observância de determinadas festas (cf. Col 2,16) e por especulações acerca dos anjos (cf. Col 2,18). Na opinião desses “doutores”, tudo isto devia comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e uma maior perfeição.

Paulo desmonta toda esta confusão doutrinal e afirma que nenhum destes elementos tem qualquer importância para a salvação: Cristo basta.

O texto que hoje nos é proposto é um hino de duas estrofes, que provavelmente Paulo tomou da liturgia cristã primitiva, mas que está perfeitamente integrado no conteúdo geral da carta. Este hino cristão de inspiração sapiencial celebra a supremacia absoluta de Cristo na criação e na redenção.in Dehonianos

 

Na reflexão, ter em conta os seguintes elementos:

Um dado fundamental da vida cristã é a consciência desta centralidade de Cristo na nossa experiência e na nossa existência. No entanto, a religião de tantos dos nossos cristãos centraliza-se, tantas vezes, em coisas secundárias… Cristo é, efetivamente, a referência fundamental à volta da qual a nossa vida se articula e se constrói? Ele tem a primazia na nossa vida? É Ele que está no centro dos interesses e da vida das nossas comunidades cristãs ou religiosas? Há outros deuses, ou poderes, ou “santos” em quem centramos os nossos interesses e que nos desviam de Cristo?

Para muitos dos nossos contemporâneos, Jesus não é uma referência fundamental. Quando muito, foi um homem bom, que deu a vida por um sonho, um visionário, um idealista, que a história se encarregou de digerir e que hoje é, apenas, uma peça de museu; por isso, não tem qualquer espaço nas suas vidas. Como podemos testemunhar a nossa convicção de que Ele é o centro da história e de que Ele está no princípio e no fim da história da salvação? in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 10, 25-37

«Mestre, que hei-de fazer para receber como herança a vida eterna?».

«Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração e com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu entendimento; e ao próximo como a ti mesmo».

«Disse-lhe Jesus: Então vai e faz o mesmo».

 

Ambiente

Continuamos “a caminho de Jerusalém” – quer dizer, continuamos a percorrer esse percurso espiritual, durante o qual Jesus prepara os discípulos para serem as testemunhas do Reino, após a sua partida deste mundo. É neste contexto “pedagógico” que vai aparecer a “parábola do bom samaritano”.
Para percebermos cabalmente o que está aqui em jogo, convém também ter presente o quadro da relação entre judeus e samaritanos. Trata-se de dois grupos que as vicissitudes históricas tinham separado e cujas relações eram, no tempo de Jesus, bastante conflituosas.

Historicamente, a divisão começou quando, em 721 a.C., a Samaria foi tomada pelos assírios e foi deportada cerca de 4% da sua população; na Samaria instalaram-se colonos assírios que se misturaram com a população local; para os judeus, os habitantes da Samaria começaram, então, a paganizar-se (cf. 2 Re 17,29). A relação entre as duas comunidades deteriorou-se ainda mais quando, após o regresso do exílio, os judeus recusaram a ajuda dos samaritanos (cf. Esd 4,1-5) para a reconstrução do templo de Jerusalém (ano 437) e denunciaram os casamentos mistos; tiveram, então, que enfrentar a oposição dos samaritanos na reconstrução da cidade (cf. Ne 3,33-4,17). No ano de 333 a.C., novo elemento de separação: os samaritanos construíram um templo no monte Garizim; no entanto, esse templo foi destruído em 128 a.C. por João Hircano. Mais tarde, as picardias continuaram: a mais famosa aconteceu já na época de Cristo (alguns anos depois do nascimento de Cristo), quando os samaritanos profanaram com ossos o templo de Jerusalém.

Os judeus desprezavam os samaritanos, por serem uma mistura de sangue israelita com estrangeiros e consideravam-nos hereges em relação à pureza da fé jahwista; e os samaritanos pagavam aos judeus com um desprezo semelhante.in Dehonianos

 

Para a reflexão e atualização da Palavra, considerar o seguinte:

A pergunta do mestre da Lei não é uma pergunta académica; é a pergunta que os homens do nosso tempo fazem todos os dias: “o que fazer para chegar à vida plena, à felicidade? Como dar, verdadeiramente, sentido à vida?” A resposta eterna é: “faz de Deus o centro da tua vida, ama-O e ama também os outros irmãos”. Trata-se, portanto, de fazer com que o amor percorra as duas coordenadas fundamentais da nossa existência – a vertical (relação com Deus) e a horizontal (relação com os outros homens). É por aqui que passa a nossa realização plena.

O que é isso do amor ao próximo? Até onde se deve ir? É preciso exagerar? Não se trata de exagerar. Trata-se de ver em cada pessoa – sem exceção – um irmão e de lhe dar a mão sempre que ele necessitar. Qualquer pessoa ferida com quem nos cruzamos nos caminhos da vida tem direito ao nosso amor, à nossa misericórdia, ao nosso cuidado – seja ela branca ou negra, portuguesa ou ucraniana, cristã ou muçulmana, portista, sportinguista ou benfiquista, fascista ou comunista, pobre ou rica… A verdadeira religião que conduz à salvação passa por este amor sem limites.

Pode acontecer que o lidar todos os dias com o divino tenha endurecido o nosso coração em relação às realidades do mundo…. Pode acontecer que uma vida instalada nos torne insensíveis aos gritos de sofrimento dos pobres… Pode acontecer que o nosso egoísmo fale mais alto e que evitemos meter-nos em complicações por causa das injustiças que os nossos irmãos sofrem… Mas, nesse caso, convém perguntar: deixando que a minha vida se guie por critérios de egoísmo e de comodismo, estou a caminhar em direção à minha realização plena, à vida eterna?

As nossas comunidades são clubes fechados, “reservados a sócios”, onde é “proibida a entrada aos estranhos”, ou comunidades onde são amados e têm lugar todos aqueles que a vida atira para a berma da estrada? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura é constituída pelo discurso de Moisés ao povo, exortando-os a escutar a voz de Deus e a colocar em prática os seus desafios. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ter presente este tom exortativo e exige uma particular atenção às duas interrogações que são introduzidas pela expressão: «para que precises de dizer».

A segunda leitura é um hino cristológico, provavelmente tomado por Paulo da liturgia das primeiras comunidades cristãs. Este texto não apresenta nenhuma dificuldade aparente, mas é necessária uma cuidada preparação das pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas que possuem diversas orações.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

AMARÁS!

Prosseguimos neste Domingo XV do Tempo Comum a leitura ou a pintura de Lucas 10, que tenta mostrar, cada vez com maior nitidez, os traços mais salientes da figura do discípulo de Jesus. É assim que Lucas coloca diante de nós a figura do «Bom Samaritano» (Lucas 10,25-37).

«Sou a personagem mais popular do Evangelho. Vós falais muitas vezes de mim: há vinte séculos que oiço o vosso aplauso por ter puxado o freio com que parei o cavalo naquela estrada que seguia de Jerusalém para Jericó. Ofereci imagens consoladoras à vossa emotividade e ao vosso gosto inato de histórias com um final feliz: a minha figura debruçada a colocar faixas, as gotas de óleo e vinho derramadas sobre as feridas do viandante maltratado pelos ladrões e traído por aqueles dois que pouco antes me precederam naquela estrada e lhe tinham negado a sua piedade, o facto de eu ter colocado o ferido sobre a minha montada, a pousada com o hospedeiro a quem entrego dois denários para ele continuar a assistência. E vós, para me honrar, ornamentastes com estas cenas as entradas dos albergues e lugares piedosos». É assim que o escritor italiano Luigi Santucci (1918-1999) abre o seu Samaritano apócrifo, deixando transparecer alguma ironia.

É grandemente sintomático que Jesus, com o recurso à parábola, tenha sabido e querido deslocar para a estrada, para o caminho, para a praça pública, as questões que eram habitualmente discutidas nas escolas ou na sinagoga entre especialistas. E assim, desde o princípio, tudo, no texto, se joga sobre o fazer, e não sobre o saber, como seria de esperar na mente do doutor. O próprio doutor da lei, que abre o diálogo com Jesus (Lucas 10,25), foi pedagogicamente conduzido por Jesus a saber talvez mais do que queria fazer, e talvez menos do que queria saber.

Note-se ainda, para além da estranheza da pergunta do doutor pelo fazer, e não pelo saber, que o objetivo é herdar (klêronoméô) a vida eterna, isto é, chegar a ser filho de Deus, filiação divina (hyiothesía) por graça recebida (Romanos 8,15-16; Gálatas 4,5). Fica-se a saber no final que é fazendo MISERICÓRDIA (spaggchnízomai) (Lucas 10,33) ou GRAÇA (éleos) (Lucas 10,37), como o SAMARITANO, que se herda a vida eterna.

Concentrando agora a nossa atenção sobre a parábola do Evangelho de Lucas (10,25-37), é impressionante notar que o narrador tenha necessitado de pouco mais de cem palavras, exatamente 106 no texto grego, incluindo artigos e partículas gramaticais (cf. Lucas 10,30b-35), para criar um quadro inesquecível!

  1. Um HOMEM, anónimo e solitário, percorre os 27 km da estrada romana que, serpenteando através do Wadi el-Kelt, ligava a Cidade Santa (Jerusalém) ao belíssimo oásis de Jericó, tradicional morada de sacerdotes, superando um desnivelamento de cerca de 1100 metros. De improviso, na paisagem inóspita e desértica daquela estrada, o cenário habitual: BANDIDOS que saltam da emboscada, roubo, violência, fuga. Fica na berma da estrada um corpo ensanguentado, com a guarda de honra das rochas vermelhas dos montes circundantes, ditos em hebraico Adummîm, tradução literal: «do sangue». Tudo envolto num gritante silêncio.

Mas eis, ao longe, um SACERDOTE…. Súbita desilusão. O narrador refere que o SACERDOTE bem viu o nosso homem, mas «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen). Evitou demoras, chatices, incómodos, impureza ritual. Eis, todavia, no horizonte, outra possibilidade: um LEVITA… A mesma desilusão. Também ele «passou pelo lado contrário» (antiparêlthen).

A narrativa atinge o seu auge. Eis que vem agora um SAMARITANO, lídimo representante daquele «estúpido povo que habita em Siquém» (Ben-Sirá 50,26), mas vai fazer tudo ao contrário dos dois anteriores representantes da religiosidade fria e formal de Jerusalém. Veja-se com quanto pormenor o narrador descreve todos os seus gestos: vem até junto dele (1), viu-o (2), FOI TOMADO DE MISERICÓRDIA (3), aproximou-se (4), enfaixou-lhe as feridas (5), derramou óleo e vinho (6), colocou-o na sua montada (7), levou-o para uma pousada (8), tomou-o ao seu cuidado (9), deu dois denários ao hospedeiro (10), e disse-lhe: «Toma tu cuidado dele» (11).

Aí está a religiosidade fria e calculista e insensível, debruçada sobre si mesma, que passa ao lado da vida por e para estar atenta apenas às rubricas, por parte dos agentes do culto oficial de Jerusalém, em claro contraponto com o amor pessoal, eivado de afeto e de gestos de carinho ativo e criativo deste SAMARITANO, totalmente debruçado sobre os outros e para os outros, interessando-se até sobre o seu futuro, e provocando outros a entrar nesta dinâmica nova cheia de amor novo. Notável aquele: «Cuida tu dele!», do Samaritano, implicando o hospedeiro neste trabalho do amor! E de Jesus implicando o doutor: «Vai e faz tu!».

Fica claro que todo o fazer do samaritano tem o sabor do excesso e da maravilha. A sua história termina assim: «Quando eu voltar, pagar-te-ei». Mas esta é, como sabemos, a assinatura de Deus, como se pode ver nas parábolas do Reino (cf. Mateus 24,15 e 19). E o tempo e os irmãos que nos deixa nas mãos são a graça da missão que nos confia.

É por tudo isto que, sobre uma pedra da pretensa pousada do Bom Samaritano, na verdade um edifício do tempo dos Cruzados, mas que os peregrinos identificam com a pousada da parábola, um peregrino medieval gravou em latim estas palavras: «Ainda que sacerdotes e levitas passem ao lado da tua angústia, fica a saber que Cristo é o Bom Samaritano, que terá MISERICÓRDIA de ti, e, na hora da tua morte, te conduzirá à pousada eterna».

«Amarás!», é quanto responde o doutor, lendo a Lei de Deus (Lucas 10,27), que não está longe de ti: está na tua boca e no teu coração, como diz a lição do Livro do Deuteronómio 30,10-14, hoje escutada, e em que, no último dia da sua vida, Moisés insiste em repetir a Israel que, para viver feliz na Terra Prometida em que vai entrar, deve escutar e pôr em prática a Palavra de Deus, verdadeira chave da vida de Israel e da nossa.

Hoje temos a graça de escutar um antigo hino sobre o primado de Jesus, provavelmente de língua aramaica, que Paulo incrustou na sua Carta aos Colossenses (1,15-20). O hino é belo, teológico, denso, produzido com rima e metro, como é normal nos hinos antigos. «Filho do amor do Pai» (v. 13) é Jesus Cristo, «Imagem (eikôn) do Deus invisível», «Primogénito (prôtótokos) de toda a criatura» (v. 15) e também «Primogénito dos mortos» e «Cabeça do corpo que é a Igreja» (v. 18), «n’Ele» (en autô) (v. 16), «através d’Ele» (di’ autoû) e «para Ele» (eis autón) (v. 16) tudo foi criado. Ele, o Senhor Jesus, é absolutamente o centro de tudo e o primeiro em tudo, desde a criação, à propiciação pelo sangue da sua Cruz (v. 20), à vida da Igreja, à Ressurreição. É sempre n’Ele e através d’Ele e para Ele, que tudo quanto existe encontra o seu caminho, sentido, enlevo (eudokía) e plenitude (plêrôma).

O Salmo 69 é uma súplica intensa e imensa de um pobre sofredor cansado e a perder o pé, tal é a fundura do poço em que se vê atolado, a lama inconsistente e escorregadia que pisa, a força da torrente que o arrasta. Da funda crise em que se encontra, todos os seus gritos se dirigem para Deus, e são insistentes. Veja-se um pouco da sua distribuição pelo mapa do Salmo: «Salva-me» (v. 1 e 15), «responde-me» (vv. 14 e 17), «responde-me depressa» (v. 18), «aproxima-te» (v. 19), «redime-me» (v. 19), «liberta-me» (v. 19), «levanta-me» (v. 30). Catadupa de imagens. Palavras angustiadas ditas a Deus, para que Deus intervenha na vida deste pobre. Não se trata, note-se bem, de angústia à solta, incontrolada, mas modulada, dita a Deus, traduzida em palavras sinceras e sentidas, rezadas, tocadas, cantadas. Todavia, os vv. 22-28, em que perpassa a vingança e a imprecação, foram julgados inapropriados pela tradição cristã, que os cortou da Liturgia das Horas. Esta imensa súplica, selada no final por uma ação de graças (vv. 31-37), foi sempre muito apreciada pela tradição cristã, pelas citações que dela faz o Novo Testamento. Assim, entre outras, João 15,25 cita o v. 5: «Odiaram-me sem motivo»; João 2,17 cita o v. 10a: «O zelo da tua casa me devora»; Romanos 15,3 cita o v. 10b: «Os insultos dos que te insultam recaem sobre mim»; Mateus 27,34 e Marcos 15,23 aludem ao v. 22, acerca do vinagre; Atos 1,20 cita o v. 26: «Que a sua tenda fique deserta». Assumindo e resumindo tudo, Santo Hilário de Poitiers (séc. IV) via neste Salmo, em filigrana, a inteira trama da paixão de Jesus.

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – XV Domingo Tempo Comum – Ano C (Deut 30, 10-14)
  2. Leitura II – XV Domingo Tempop Comum – Ano C (Col 1, 215-20)
  3. XV Domingo Tempo Comum – Ano C – 10.07.2022 – Lecionário
  4. XV Domingo Tempo Comum – Ano C – 10.07.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XIV do Tempo Comum – Ano C – 03.07.2022

 

1Depois disto, o Senhor designou outros setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois, à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir. 2Disse-lhes: «A messe é grande, mas os trabalhadores são poucos. Rogai, portanto, ao dono da messe que mande trabalhadores para a sua messe. 3Ide! Envio-vos como cordeiros para o meio de lobos. 4Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias; e não vos detenhais a saudar ninguém pelo caminho. 5*Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: ‘A paz esteja nesta casa!’ Lc 10, 1-5

Viver a Palavra

 

O Povo que regressa do exílio da Babilónia recebe, pela boca do profeta, a anúncio da paz, da salvação e da justiça que se manifestará numa Sião apresentada como mãe, pois Jerusalém se tornará um lugar de consolação e júbilo. Contudo, este feliz anúncio confiado ao Povo de Israel deve ecoar em todos os lugares e deve chegar a todos os corações, por isso, na plenitude dos tempos, na revelação operada por Jesus Cristo, Ele envia setenta e dois discípulos como mensageiros da paz e da alegria.

O envio dos setenta e dois discípulos é um exclusivo do Evangelho de S. Lucas e sublinha a qualidade missionária deste Evangelho, que faz missionários não apenas os Doze mas todos os discípulos de Jesus. O número setenta e dois representa a totalidade das nações da terra, pois na tradição hebraica era este o número das nações que ocupavam a superfície da Terra. Deste modo, a missão confiada por Jesus, que deve chegar a todos os povos e nações, envolve todos os homens e mulheres e constitui cada batizado como um discípulo missionário.

Além disso, a imensa seara que somos chamados a evangelizar será sempre maior do que os trabalhadores disponíveis para a missão, contudo, esta consciência não pode ser lugar de desânimo, mas a certeza de que a nossa fragilidade e debilidade quando colocadas ao serviço do Evangelho realizarão muito mais do que aquilo que as nossas forças humanas, por si próprias, seriam capazes de realizar.

Os discípulos não partem sozinhos, mas são enviados dois a dois porque a sua comunhão e fraternidade são já anúncio do Reino. Juntos testemunham que a alegria da comunhão e a riqueza da fraternidade são a marca distintiva do Evangelho que os seus lábios anunciam.

Jesus envia-os «como cordeiros para o meio de lobos». O cordeiro é um animal dócil e pacífico e é precisamente nesta atitude que Jesus os envia, para que a mansidão e a ternura sejam o mais belo sinal da novidade do Evangelho que eles vão anunciar. Além disso, na riqueza semântica do aramaico talya’ significa cordeiro, mas também servo, pão e filho. Nestas quatro palavras encontramos um belíssimo programa de vida para a nossa missão ao serviço da Igreja e do Mundo. Ser cordeiro manso e dócil que coloca o Seu olhar em Jesus, o Bom Pastor, reconhecendo-O como único Senhor da sua vida. Ser servo, reconhecendo que a nossa missão se constitui como serviço humilde para que no mundo possa despontar a alegria do Evangelho. Ser pão, ao jeito de Jesus que se fez pão partido e repartido para a salvação de todos. Ser filho, testemunhando a alegria de invocar a Deus como nosso Pai, inaugurando no tempo e na história uma nova fraternidade.

Deste modo, mais do que uma doutrina ou um discurso a proclamar, Jesus confia aos Seus discípulos um novo estilo de vida que será anunciador da novidade do Reino. Jesus não envia missionários a levar alimentos, roupa e dinheiro aos necessitados, mas envia homens sem dinheiro, sem provisão de alimentos e despojados. A única coisa que devem levar é o anúncio da proximidade do Reino e a urgência da conversão.

«Ide: Eu vos envio». Hoje, estas palavras são dirigidas a cada um de nós. Batizados em Cristo, ungidos pela força do Espírito Santo e alimentados pelo Pão da Eucaristia somos enviados como discípulos missionários para comunicar a alegria do encontro com Jesus Cristo: «aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros» (EG 121).in Voz Portucalense

Indicações litúrgico-pastorais

Na nossa diocese, o segundo Domingo de Julho – o próximo – é dia de ordenações e, por isso, dia de celebrar a graça do ministério ordenado que o Senhor oferece à Sua Igreja como lugar de serviço aos irmãos. Deste modo, o Domingo XIV do Tempo Comum, que antecede o Domingo das ordenações, constitui-se como uma oportunidade para rezar por aqueles que serão ordenados no dia 10 de julho de 2022 e desafiar os fiéis a ter esta intenção na sua oração ao longo desta semana. Acolhendo o pedido de Jesus no Evangelho deste Domingo – «pedi ao dono da seara que mande trabalhadores para a sua seara» – cada comunidade paroquial poderá organizar ao longo desta semana um momento comunitário de oração pelas vocações e de modo particular por aqueles que serão ordenados para o serviço da nossa diocese.

 

LEITURA I – Is 66, 10-14c

«Farei correr para Jerusalém a paz como um rio e a riqueza das nações como torrente transbordante»

 

Ambiente

Os capítulos 56-66 do Livro de Isaías (designados genericamente como “Trito-Isaías”) são atribuídos pela maior parte dos estudiosos a diversos autores, vinculados espiritualmente ao Deutero-Isaías (o autor dos capítulos 40-55 do Livro de Isaías). Sobre esses autores não sabemos rigorosamente nada, a não ser que apresentaram a sua mensagem nos últimos anos do séc. VI e primeiros anos do séc. V a.C.

Estamos em Jerusalém, vários anos após o regresso do Exílio da Babilónia. A reconstrução faz-se muito lentamente e em condições penosas; a maioria da população de Jerusalém está mergulhada na miséria; os inimigos atacam continuamente e põem em causa o esforço da reconstrução; a esperança está em crise… O Povo pergunta: “quando é que Deus vai realizar as promessas que fez, ainda na Babilónia, através do Deutero-Isaías?”

Os profetas da época procuram, então, apresentar uma mensagem de salvação e alimentar a esperança, a fim de que o Povo recobre forças e confie em Deus. É nesse contexto que podemos situar este hino que a primeira leitura de hoje nos propõe: o profeta apresenta um quadro de restauração da cidade (cf. Is 66,7-14) e convoca os seus habitantes para a alegria. in Dehonianos

 

Considerar as seguintes questões, para a reflexão:

Esta proposta de “consolação” vem de Deus e atinge o coração do Povo através da ação e do testemunho profético. É através do profeta que Deus atua no mundo, que consola os corações feridos, que revitaliza a esperança, que salva da morte, que liberta do medo… Todos os crentes são profetas e todos comungam desta missão. Eu assumo e procuro concretizar, dia a dia, esta proposta profética e procuro testemunhar a esperança?

Deus é o pai que dá vida em abundância e a mãe que acaricia e consola. É esta a perspetiva que temos d’Ele? Sabemos “ler” a nossa vida à luz da bondade de Deus, ver nos acontecimentos sinais do seu amor? Sabemos manifestar-Lhe a nossa gratidão? É este Deus de amor que procuramos testemunhar, com palavras e com gestos?

O insistente convite à alegria feito pelo profeta atinge-nos também a nós… O medo e a angústia não podem ser os nossos companheiros de viagem, pois acreditamos no amor e na bondade desse Deus que nos acompanha, que nos acaricia, que nos consola e que faz nascer para nós, dia a dia, esse mundo novo de vida plena e abundante.

Aqueles que a vida feriu e que perderam a esperança encontram nas nossas comunidades (cristãs ou religiosas) um testemunho que os consola e que os anima? Que temos para transmitir aos doentes incuráveis, aos que perderam a família e as referências e vivem na rua, aos imigrantes explorados, aos marginalizados, aos fracassados?in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 15 (16)

Refrão: «A terra inteira aclame o Senhor».

 

LEITURA II Gal 6, 14-18

«Longe de mim gloriar-me, a não ser na cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo».

 

Ambiente

Terminamos hoje a leitura da Carta aos Gálatas. Nos domingos anteriores, já dissemos qual é a questão fundamental abordada nesta carta: face às exigências dos “judaízantes” (segundo os quais os cristãos, além de acreditar em Cristo, devem cumprir escrupulosamente a Lei de Moisés e, de forma especial, aderir à circuncisão), Paulo considera que só Cristo interessa e que tudo o resto são leis e ritos desnecessários ou, ainda pior, geradores de escravidão.

Este texto pertence à conclusão da carta (cf. Gal 6,11-18). É uma espécie de remate, no qual Paulo resume toda a sua argumentação anterior a propósito de Cristo, da Lei e da salvação. in Dehonianos

Para a reflexão, considerar as seguintes questões:

Como Paulo, cada crente é um enviado a testemunhar o Cristo da cruz – quer dizer, a anunciar a todos os homens que só no amor radical, no amor até às últimas consequências se gera vida e nasce o Homem Novo. Este caminho é, no entanto, um caminho de exigência, pois conduz ao confronto com o pecado, com o egoísmo, com a injustiça, com a opressão. Eu estou, como Paulo, disposto a percorrer este caminho, com coragem profética?

Existe, por vezes, alguma perplexidade acerca da identidade fundamental do cristão. Qual é, verdadeiramente, a essência da nossa experiência cristã? O discípulo de Cristo é alguém que se distingue pelo uniforme que veste, pela cruz que traz ao pescoço, pelo papel que alguém assinou por ele no dia do batismo, pelos ritos que cumpre, pela observância de certas leis, ou é alguém que se distingue pela sua identificação com Cristo – com o Cristo do amor, da entrega, do dom da vida?

Quais são, verdadeiramente os nossos títulos de glória: a conta bancária, os diplomas universitários, o estatuto social, o êxito profissional, a visibilidade nas festas do “jet-set”, os “fans” incondicionais que circulam à nossa volta? Ou são os gestos de amor, de partilha, de doação, de entrega e as feridas recebidas a lutar pela justiça, pela verdade e pela paz? in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 10, 1-12.17-20

«Designou o Senhor setenta e dois discípulos e enviou-os dois a dois à sua frente, a todas as cidades e lugares aonde Ele havia de ir».

«Quando entrardes nalguma casa, dizei primeiro: Paz a esta casa».

«Não vos alegreis porque os espíritos vos obedecem; alegrai-vos antes porque os vossos nomes estão escritos nos Céus».

 

Ambiente

O Evangelho situa-nos, outra vez, no contexto da caminhada de Jesus para Jerusalém. Apresenta-nos mais uma etapa desse “caminho espiritual”, durante o qual Jesus vai oferecendo aos discípulos a plenitude da revelação do Pai e preparando-os para continuar, após a sua partida, a missão de levar o Evangelho a todos os homens.

A história do envio dos 72 discípulos é uma tradição exclusiva de Lucas. Seria uma história estranha e inesperada, se a víssemos como um relato fotográfico de acontecimentos concretos: de onde vêm estes 72, que não são nomeados nem por Mateus nem por Marcos e que aqui aparecem surgidos do nada? Trata-se, fundamentalmente, de uma catequese através da qual Lucas propõe, aos discípulos de todas as épocas, uma reflexão sobre a missão da Igreja, em caminhada pelo mundo. in Dehonianos

 

Para a reflexão, considerar as seguintes questões:

O Evangelho que hoje nos é proposto sugere, essencialmente, que os discípulos – a totalidade dos discípulos – são responsáveis pela continuação no mundo do projeto libertador de Jesus, do projeto do Reino. Estamos verdadeiramente conscientes disto? Como é que, na prática, anunciamos Jesus? Jesus já chegou, efetivamente, ao nosso local de trabalho, à nossa escola, à nossa paróquia, à nossa comunidade religiosa? De quem é a responsabilidade, se Jesus ainda parece estar ausente de tantos sectores da vida de hoje? Conseguimos dormir tranquilos quando o egoísmo, a injustiça, as escravidões assentam arraiais à nossa volta e impedem o Reino de acontecer?

O ser “cordeiro no meio de lobos” e o não levar “nem bolsa, nem alforge, nem sandálias” sugere que o anúncio do Reino não depende do poder dos instrumentos utilizados. Procurar conquistar poder económico ou político para depois impor o Evangelho, controlar os mass-media ou utilizar sofisticadas técnicas de marketing para “vender” a proposta do Reino é negar a essência do Evangelho – que é amor, partilha, serviço, vividos na simplicidade, na humildade, no despojamento…

O “não andeis de casa em casa” sugere que o missionário deve contentar-se com aquilo que põem à sua disposição e viver com simplicidade e sem exigências. O seu objetivo não é enriquecer ou viver de acordo com o último grito do conforto ou da moda; a sua prioridade é o anúncio do Reino: tudo o mais é secundário.

O anúncio do “Reino” não se esgota em palavras, mas deve ser acompanhado de gestos concretos… O missionário tem de mostrar nos seus gestos o amor, o serviço, o perdão, a doação que ele anuncia em palavras (se isso não acontecer, o seu testemunho é oco, hipócrita, incoerente e não convencerá ninguém).in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura é um convite à alegria e ao júbilo, por isso, a proclamação deste texto deve ser marcada pelo tom alegre e gaudioso de que o Senhor salvará o Seu povo e manifestará as Suas maravilhas.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação, mas requer uma acurada preparação para que toda a expressividade do texto esteja presente na sua leitura.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

MISSÃO OU DEMISSÃO

Vamos ter o privilégio de poder conviver nos próximos três Domingos (XIV, XV e XVI) com o texto sublime de Lucas 10, todo ele dedicado a afinar os traços do retrato do discípulo de Jesus, o que Lucas faz em três quadros que formam um tríptico. Assim, vemos hoje (Domingo XIV do Tempo Comum) o primeiro quadro, o ENVIO dos 72 discípulos de Jesus para um trabalho de ALEGRIA (Lucas 10,1-20). Veremos no próximo Domingo (XV do Tempo Comum) o segundo quadro, que expõe uma figura belíssima que assume alguns traços fundamentais do discípulo de Jesus: o Bom Samaritano (Lucas 10,25-37). E, no Domingo XVI, a fechar Lucas 10, veremos o terceiro quadro, que mostra as figuras de Marta e de Maria (Lucas 10,38-42), em que Maria, sentada como discípula atenta aos pés do Mestre, deixa ver mais alguns traços determinantes do discípulo de Jesus.

Mas hoje, Domingo XIV, aí estão os 72 discípulos ENVIADOS por Jesus, portanto vinculados a Jesus. O número 72 traduz a universalidade: somos todos enviados por Jesus! Na mentalidade hebraica, eram 72 as nações que povoavam a terra. E as 70 nações que, na tábua dos povos, encontramos em Génesis 10, sobem significativamente para 72 na conhecida versão grega dos LXX! Assim, ao escolher um discípulo por nação, Jesus possibilita que todas as nações possam escutar o Evangelho! Digamos, pois, que podemos ver aqui o início daquele caudal maravilhoso que um dia, na manhã de Pentecostes, atingirá a sua foz, quando todas as nações que há debaixo do céu (Atos 2,5) ouvirem falar (laléô), verbo característico da revelação, nas suas línguas maternas as maravilhas de Deus (Atos 2,11).

Note-se que, já antes, em Lucas 9,1-6, Jesus enviou os Doze (Apóstolos). O ENVIO dos 72 discípulos que hoje se apresenta diante de nós, em Lucas 10,1-20, é um exclusivo do Evangelho de Lucas e vinca bem a qualidade missionária deste Evangelho, que faz missionários, não apenas os Doze, mas todos os discípulos de Jesus! Sem equívocos: ser cristão ou discípulo de Jesus é ser missionário. Ser missionário não é uma segunda vocação, facultativa, uma espécie de adorno ou adereço que pode advir apenas a alguns cristãos (Francisco, Evangelii gaudium, n.º 273). Sempre sem equívocos: SER CRISTÃO É SER MISSIONÁRIO! É viver intensamente de Jesus e com Jesus, e partir, sair de si, para levar Jesus ao coração dos nossos irmãos. A grande Apóstola das ruas de Ivry, Madeleine Delbrêl (1904-1964), dizia as coisas assim, de maneira contundente, como evangélicas facas de dois gumes: «A missão não é facultativa. Os meios ateus [e indiferentes] em que vivemos impõem-nos uma escolha: MISSÃO OU DEMISSÃO CRISTû (mas ver também, no mesmo sentido, a Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, n.º 5, de 1975, de Paulo VI, a Mensagem para o Dia Missionário Mundial, de 2012, de Bento XVI, e a Carta Pastoral Misión Continental, n.º 4, de 2009, da Conferência Episcopal da Argentina).

O trabalho da Evangelização a que somos CHAMADOS e ENVIADOS por Jesus é um trabalho de ALEGRIA. Não de sementeira, mas de CEIFA (thêrismós). De acordo com o Salmo 126, a sementeira é um tempo de lágrimas, mas a CEIFA é um tempo de ALEGRIA e MÚSICA: «Vão andando e chorando, levando as sementes; ao voltar, vêm cantando, trazendo braçados de espigas» (Salmo 126,6).

O ENVIADO de Jesus deve partir belo, leve e livre, com causas, e sem coisas: «Ide! (…) Não leveis bolsa, nem alforge, nem sandálias» (Lucas 10,4), mas com mansidão, alegria e paz, como cordeiros (Lucas 10,3). O cordeiro é um animal pacífico: não mata, mas é morto! Como Jesus, o cordeiro de Deus! Veja-se, de resto, a riqueza semântica do aramaico talyaʼ, que significa «cordeiro, servo, pão e filho», perfeita tradução da identidade de Jesus. E com carácter de urgência: «Não vos demoreis pelo caminho» (Lucas 10,4). O objetivo é chegar quanto antes ao coração das pessoas, a quem se deve entregar a PAZ, entenda-se, a FELICIDADE, que é o significado pleno do termo hebraico SHALÔM.

Note-se sempre bem que os discípulos de Jesus são ENVIADOS ao encontro das pessoas. Portanto, não são as pessoas que são chamadas a vir ao encontro dos discípulos de Jesus. Sim, o discípulo de Jesus não pode limitar-se a falar do Reino de Deus àqueles que veem ter com ele e o interrogam. Ao discípulo de Jesus é requerido que tome a iniciativa e fale em primeiro lugar. Deve assumir uma postura pró-ativa, não se contentando simplesmente em esperar e responder.

Somos informados, no final deste imenso texto, que os 72 voltaram cheios de ALEGRIA!

O contraponto belíssimo vem hoje do último Capítulo de Isaías, que vale a pena transcrever, tal é a sua beleza e exaltação: «Alegrai-vos com Jerusalém,/ rejubilai com ela todos vós que a amais;/ regozijai-vos com ela, sim, regozijai-vos,/ todos vós que fizestes luto sobre ela,/ pois mamareis e saciar-vos-eis do peito da sua consolação,/ pois sugareis e vos deleitareis da sua mama gloriosa./ pois assim diz o Senhor:/ “Eis-me a estender para ela a paz como um rio,/ e como uma torrente a transbordar a glória das nações./ Sereis amamentados,/ levados sobre os flancos,/ e sobre os joelhos acariciados./ Como um filho (’îsh) que a sua mãe consola,/ assim Eu vos consolarei;/ sim, em Jerusalém sereis consolados”» (Isaías 66,10-13).

É fácil verificar que Jerusalém é apresentada como uma mãe que amamenta e acalenta os seus filhos. Mas tereis reparado ainda que também Deus aparece dito com traços paternais e maternais, mais maternais que paternais, pois assume sobre si o papel de uma Mãe, daquela Mãe, que consola o seu filho, os seus filhos. E o belíssimo texto diz ainda que este filho, ou estes filhos que Deus, como uma Mãe, consola, já não são propriamente bebés, mas gente crescida (’îsh, e não yôneq). Sim, salta à vista que Deus cuida de nós à maneira maternal.

Total dedicação e transparência, assemelhação com Jesus, de quem carrega os estigmas (stígmata) e entrega casa a casa, porta a porta, mão na mão, coração a coração, a graça do Senhor Nosso, Jesus Cristo. Eis o retrato do Apóstolo no final da Carta aos Gálatas (6,14-18), que hoje tivemos também a graça de ouvir.

Verificação: como este mundo anda triste e distraído, anestesiado e dormente! E como nós, discípulos de Jesus, ENVIADOS a este mundo por Jesus, temos de sentir a urgência de levar este rio de ALEGRIA aos nossos irmãos. A não esquecer: ser cristão é ser missionário! Olhando com amor para este mundo, impõe-se-nos uma escolha: MISSÃO ou DEMISSÃO Cristã!

Missão nossa será sempre cantar a glória de Deus e convocar a terra inteira para verificar as maravilhas operadas por Deus. Todos e cada um. A comunidade e eu de mãos dadas e levantadas para Deus, como acontece muitas vezes nos Salmos. Temos muito a relatar e a agradecer, repassando diante de nós, não apenas a paisagem bíblica, mas também a nossa paisagem humana. Também o Salmo de hoje começa em tom comunitário (Salmo 66,1-12) para nos mostrar depois também o papel do solista (vv. 13-20).

 

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – XIV Domimgo Tempo Comum – Ano C – 03.07.2022
  2. Leitura II – XIV Domingo Tempo Comum – Ano C – 03.07.2022
  3. XIV Domingo Tempo Comum – Ano C – 03.07.2022 – Lecionário
  4. XIV Domingo Tempo Comum – Ano C – 03.07.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XIII do Tempo Comum – Ano C – 26.06.2022

 

62Jesus respondeu-lhe: «Quem olha para trás, depois de deitar a mão ao arado, não é apto para o Reino de Deus.» Lc 9, 62

Viver a Palavra

Na nossa vida, todos os dias, temos de fazer escolhas, tomar decisões e definir prioridades. Temos consciência que este é um exercício exigente e temos necessidade de uma opção fundamental a partir da qual moldar a nossa existência e traçar um rumo a seguir. Precisamente por isso, reconhecemos que a ausência de uma meta ou um objetivo a partir do qual configuramos a nossa vida nos faz caminhar ao sabor da corrente, sem rumo, e levado pelos apetites ou tendências de cada momento.

No Evangelho de hoje contemplamos Jesus que assume uma decisão firme: caminhar até Jerusalém. No contexto do Evangelho de Lucas, esta anotação não é apenas a apresentação da viragem geográfica de Jesus da Galileia para a Judeia e para Jerusalém, mas a decisão firme de ser fiel à vontade do Pai e levar até ao fim a missão que o Pai Lhe confiou. Como cristãos, homens e mulheres batizados em Cristo e ungidos pela força do Espírito, somos chamados a tomar decisões firmes, com determinação e ousadia.

Esta coragem de assumir a vontade do Pai e configurar a vida com o Seu desígnio de amor ajudará a fazer de cada adversidade e obstáculo uma oportunidade para renovar o desejo de O seguir. Temos bem presentes as palavras do Papa Bento XVI, quando na Encíclica Deus é amor, afirma «no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo».

Deste modo, o «rumo decisivo» que a nossa vida cristã é chamada a assumir nasce do encontro único, íntimo e pessoal com Jesus Cristo, o rosto da misericórdia do Pai, que nos ama e, por isso, nos chama a caminhar com Ele até Jerusalém, isto é, até ao lugar decisivo onde o sofrimento, a paixão e a morte se abrem à alegria nova da Páscoa.

Caminhar com Jesus é configurar a nossa vida com um novo modo de ser e de estar que se traduz num modo novo de servir e amar.

Esta é uma tarefa necessária e permanente: contemplar Jesus, acolher a Sua Palavra e assumir com determinação o mandamento novo do amor. Na verdade, o Evangelho de hoje revela-nos, que mesmo seguindo Jesus e caminhando com Ele, é fácil, diante das dificuldades e exigências do caminho, desviar a rota, desejar derramar fogo do céu e encontrar argumentos e boas razões para adiar a decisão. Somos humanos, somos homens e mulheres com muitas qualidades e virtudes, mas também com defeitos e limites, todavia, a nossa humanidade não é um impedimento para acolher a vontade de Deus e assumir decisão firme de O seguir, mas precisamente o lugar onde a vontade de Deus se deve manifestar. Não basta ir com Jesus, não basta um conjunto de ritos e práticas cristãs! É necessário, dia após dia, converter a vida, afinar o nosso coração com o coração de Jesus.

Deus sonhou-nos para a verdadeira liberdade, como nos recorda S. Paulo, e sabemos que a verdadeira liberdade se traduz na prática libertadora do mandamento novo do amor, pois diante do caminho do bem e do mal, apenas a opção pelo bem nos fará verdadeiramente livres.

É certo que «as raposas têm as suas tocas, e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça». Efetivamente, a sua cabeça há-de reclinar-se no madeiro da Cruz, testemunhando na Sua entrega total e definitiva o imenso amor com que cumula cada homem e cada mulher.

Contudo, nós temos onde reclinar a cabeça! Basta pensar no discípulo amado, que sou eu e que és tu, e que na Última Ceia reclinou a sua cabeça no peito de Jesus. Acolher o convite radical – «segue-me» – é acolher o convite a reclinar a nossa cabeça sobre o Seu peito, a fazer do Seu amor a grande prioridade da nossa vida e o único lugar seguro onde podemos depositar a nossa confiança e tomar a decisão firme de seguir com Ele até Jerusalém. in Voz Portucalense

LEITURA I – 1 Reis 19, 16b.19-21

«Depois Eliseu levantou-se e seguiu Elias, ficando ao seu serviço».

 

Ambiente

Esta passagem do Primeiro Livro dos Reis leva-nos até ao séc. IX a.C. Estamos na época dos dois reinos divididos.

Os profetas Elias e Eliseu, aqui referenciados, exerceram o seu ministério profético no reino do Norte (Israel), no tempo dos reis Acab e Ocozias (Elias), Jorão e Jehú (Eliseu). É uma época de grande desnorte, em termos religiosos: a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros assumem na cultura religiosa de Israel.

Uma grande parte do ministério de Elias desenrola-se durante o reinado de Acab (874-853 a.C.). O rei – influenciado por Jezabel, a sua esposa fenícia – erige altares a Baal e Astarte e prostra-se diante das estátuas desses deuses. Estamos diante de uma tentativa de abrir Israel ao intercâmbio com outras culturas; mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. Nessa época, Elias torna-se o grande campeão da fé jahwista (cf. 1 Re 18 – o episódio do “duelo” religioso entre Elias e os profetas de Baal, no monte Carmelo), defendendo a Lei em todas as suas vertentes (inclusive na vertente social – cf. 1 Re 21 – o célebre episódio da vinha de Nabot), contra uma classe dirigente que subvertia a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.

A luta de Elias no sentido de preservar os valores fundamentais da fé jahwista será continuada nos reinados seguintes por um dos seus discípulos – Eliseu. A leitura que nos é proposta apresenta-nos, precisamente, o chamamento de Eliseu. in Dehonianos

 

 

Ter em conta, para a reflexão, os seguintes dados:

A história da salvação não é a história de um Deus que intervém no mundo e na vida dos homens de forma espalhafatosa, prepotente, dominadora; mas é uma história de um Deus que, discretamente, sem se impor nem dar espetáculo, age no mundo e concretiza os seus planos de salvação através dos homens que Ele chama. É como se Ele nos dissesse como fazer as coisas, mas respeitasse o nosso caminho e Se escondesse por detrás de nós. É necessário ter em conta que somos os instrumentos de Deus para construir a história, até que o nosso mundo chegue a ser esse “mundo bom” que Deus sonhou. Aceitamos este desafio?

O relato da “vocação” de Eliseu não é o relato de uma situação excecional, que só acontece a alguns privilegiados, eleitos entre todos por Deus para uma missão no mundo; mas é a história de cada um de nós e dos apelos que Deus nos faz, no sentido de nos disponibilizarmos para a missão que Ele nos quer confiar, quer no mundo, quer na nossa comunidade cristã. Estou atento aos apelos de Deus? Tenho disponibilidade, generosidade e entusiasmo para me empenhar nas tarefas a que Ele me chama?

O chamamento de Deus chega a Eliseu através da ação de Elias… É preciso ter em conta que, muitas vezes, o desafio de Deus nos chega através da palavra ou da interpelação de um irmão; e que, muitas vezes, é preciso contar com o apoio de alguém para discernir o caminho e ser capaz de enfrentar os desafios da vocação.

Finalmente, somos chamados a contemplar a disponibilidade de Eliseu e a forma radical como ele acolheu o desafio de Deus. A referência à morte dos bois, ao desmantelamento do arado (cuja madeira serviu para assar a carne dos animais) e ao banquete de despedida oferecido à família significa que o profeta resolveu “cortar todas as amarras”, pois queria dar-se, radicalmente, ao projeto de Deus. É esse corte radical com o passado e essa entrega definitiva à missão que nos questiona e interpela. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 15 (16)

Refrão: «O Senhor é a minha herança».

 

LEITURA II Gal 5, 1.13-18

«Deixai-vos conduzir pelo Espírito e não satisfareis os desejos da carne».

 

Ambiente

Continuamos a ler a Carta aos Gálatas. Já sabemos qual é o problema fundamental aí abordado: os Gálatas estão a ser perturbados por esses “judaizantes” para quem os rituais da Lei de Moisés também são necessários para chegar à vida em plenitude (“salvação”); e Paulo – para quem “Cristo basta” e para quem as obras da Lei já não dizem nada – procura fazer com que os Gálatas não se sujeitem mais à escravidão, nomeadamente à escravidão dos ritos e das leis.

O texto que nos é proposto aparece na parte final da Carta. É o início de uma reflexão sobre a verdadeira liberdade, que é fruto do Espírito (cf. Gal 5,1-6,10). in Dehonianos

Considerar, na reflexão, os seguintes elementos:

Os homens do nosso tempo têm em grande apreço esse valor chamado “liberdade”; no entanto têm, frequentemente, uma perspetiva demasiado egoísta deste valor fundamental. Quando a “liberdade” se define a partir do “eu”, identifica-se com “libertinagem”: é a capacidade de “eu” fazer o que quero; é a capacidade de “eu” poder escolher; é a capacidade de “eu” poder tomar as minhas decisões sem que ninguém me impeça… Esta liberdade não gera, tantas vezes, egoísmo, isolamento, orgulho, autossuficiência e, portanto, escravidão?

Para Paulo, só se é verdadeiramente livre quando se ama. Aí, eu não me agarro a nada do que é meu, deixo de viver obcecado comigo e com os meus interesses e estou sempre disponível – totalmente disponível – para me partilhar com os meus irmãos. É esta experiência de liberdade que fazem hoje tantas pessoas que não guardam a própria vida para si próprias, mas fazem dela uma oferta de amor aos irmãos mais necessitados. Como dar este testemunho e passar esta mensagem aos homens do nosso tempo, sempre obcecados com a verdadeira liberdade? Como explicar que só o amor nos faz totalmente livres?

Falar de uma comunidade (cristã ou religiosa) formada por pessoas livres em Cristo implica falar de uma comunidade voltada para o amor, para a partilha, para as necessidades e carências dos irmãos que estão à sua volta. É isso que realmente acontece com as nossas comunidades? Damos este testemunho de liberdade no dom da vida aos irmãos que nos rodeiam? As nossas comunidades são comunidades de pessoas livres que vivem no amor e na doação, ou comunidades de escravos, presos aos seus interesses pessoais e egoístas, que se magoam e ofendem por coisas sem importância, dominados por interesses mesquinhos e capazes de gestos sem sentido de orgulho e prepotência? in Dehonianos

 

EVANGELHO Lc 9, 51-62

«Aproximando-se os dias de Jesus ser levado deste mundo, Ele tomou a decisão de Se dirigir a Jerusalém e mandou mensageiros à sua frente».

«As raposas têm as suas tocas, e as aves do céu os seus ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça».

«Quem tiver lançado as mãos ao arado e olhar para trás não serve para o reino de Deus».

 

Ambiente

Aqui começa, precisamente, a segunda parte do Evangelho segundo Lucas. Até agora, Lucas situou Jesus na Galileia (1ª parte); mas, a partir de 9,51, Lucas põe Jesus a caminhar decididamente para Jerusalém. A “caminhada” que Jesus aqui inicia com os discípulos é mais teológica do que geográfica: não se trata tanto de fazer um diário da viagem ou de fazer a lista dos lugares por onde Jesus vai passar até chegar a Jerusalém; trata-se, sobretudo, de apresentar um itinerário espiritual, ao longo do qual Jesus vai mostrando aos discípulos os valores do “Reino” e os vai presenteando com a plenitude da revelação de Deus. Todo este percurso que aqui se inicia converge para a cruz: ela vai trazer a revelação suprema que Jesus quer apresentar aos discípulos e nela vai irromper a salvação definitiva. Os discípulos são exortados a seguir este “caminho”, para se identificarem plenamente com Jesus… Lucas propõe aqui à sua comunidade o itinerário que os autênticos crentes devem percorrer. in Dehonianos

 

Na reflexão, considerar os seguintes elementos:

A nós, discípulos de Jesus, é proposto que O sigamos no “caminho” de Jerusalém, nesse “caminho” que conduz à salvação e à vida plena. Trata-se de um “caminho” que implica a renúncia a nós mesmos, aos nossos interesses, ao nosso orgulho, e um compromisso com a cruz, com a entrega da vida, com o dom de nós próprios, com o amor até às últimas consequências. Aceitamos ser discípulos, isto é, embarcar com Jesus no “caminho de Jerusalém”?

Jesus recusa, liminarmente, responder à oposição e à hostilidade do mundo com qualquer atitude de violência, de agressividade, de vingança. No entanto, a Igreja de Jesus, na sua caminhada histórica, tem trilhado caminhos de violência, de fanatismo, de intolerância (as cruzadas, as conversões à força, os julgamentos da “santa” Inquisição, as exigências que criam em tantas consciências escravidão e sofrimento…). Diante disto, resta-nos reconhecer que, infelizmente, nem sempre vivemos na fidelidade aos caminhos de Jesus e pedir desculpa aos nossos irmãos pela nossa falta de amor. É preciso, também, continuar a anunciar o Evangelho com fidelidade, com firmeza e com coragem, mas no respeito absoluto por aqueles que querem seguir outros caminhos e fazer outras opções.

O “caminho do discípulo” é um caminho exigente, que implica um dom total ao “Reino”. Quem quiser seguir Jesus, não pode deter-se a pensar nas vantagens ou desvantagens materiais que isso lhe traz, nem nos interesses que deixou para trás, nem nas pessoas a quem tem de dizer adeus… O que é que, na nossa vida quotidiana, ainda nos impede de concretizar um compromisso total com o “Reino” e com esse caminho do dom da vida e do amor total? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

Na primeira leitura aparecem algumas palavras de difícil pronunciação como «Safat» ou «Abel-Meola» para as quais se pede uma especial atenção. Especial cuidado deve haver ainda nas várias intervenções em discurso direto que devem ser articuladas com a narrativa.

A segunda leitura é marcada por um tom exortativo e parenético e, deste modo, na proclamação deste texto devem ser valorizadas as expressões que sublinham este tom: o vocativo («Vós, irmãos») e as formas verbais no imperativo tais como «permanecei firmes», «tende cuidado» ou «deixai-vos conduzir».

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

CAMINHO CRUCIAL

Neste Domingo XIII do Tempo Comum temos a graça de ouvir o Evangelho de Lucas 9,51-62, que é uma página sublime e sobrecarregada de cenários de seguimento, sucessivos e desconcertantes, que interpelam todos aqueles, de ontem e de hoje, que são chamados a seguir o caminho de Jesus.

O primeiro cenário é a anotação radical de que Jesus «tornou o seu rosto duro como pedra na direção de Jerusalém» (Lucas 9,51). A expressão «tornar o rosto duro como pedra» provém do terceiro canto do Servo de YHWH, de Isaías 50,7, e serve para assinalar uma atitude firme e decidida da qual não se pode voltar atrás. Ainda que, no contexto do Evangelho de Lucas, esta anotação marque a viragem geográfica de Jesus da Galileia para a Judeia e para Jerusalém, a anotação é sobretudo de ordem teológica, salientando a total confiança de Jesus no Pai e a total orientação da sua vida para o Pai, tal como o Servo confia plenamente no seu Senhor e para Ele orienta toda a sua vida. Mas o facto de Jesus «tornar o seu rosto duro como pedra na direção de Jerusalém» deve ensinar-nos a ver que Jesus caminha sem hesitação para a Cruz, o que faz do seu caminho e do nosso caminho um caminho Crucial.

O segundo cenário é o envio (apostéllô) por parte de Jesus de mensageiros (ángelloi) à sua frente com a missão de preparar (etoimázô) a vinda do próprio Jesus (Lucas 9,52). Extraordinária e preciosa indicação. A missão excede o mensageiro, que é sempre e só um preparador de caminhos para a vinda daquele que há de vir, Jesus Cristo, que é assim o único imprescindível! Fica claro desde cedo, desde já, que a nossa missão tem a dimensão do precursor humilde, pobre e manso, que apenas abre portas e corações (Malaquias 3,24), e põe a mesa, para que possa entrar o Rei da Glória (Salmo 24,7 e 9). Portanto, a postura do mensageiro ou missionário é a de um pedinte que vai à frente e bate à porta, às portas (também Lucas 10,1). Sim, é um pedinte, «sem bolsa, nem alforge, nem sandálias» (Lucas 10,4), que «come e bebe do que lhe servirem» (Lucas 10,7). Tem de aprender a pedir e a receber; não a insultar, a suspeitar, a ameaçar e a possuir.

Aí está, portanto, pedagogicamente em contraponto, o terceiro cenário. Trata-se da ilusão de poder de Tiago e João, os filhos de Zebedeu, que propõem a Jesus dizimar uma povoação samaritana só porque esta recusa acolher Jesus. Vê-se que ainda não aprenderam a pedir e a receber, mas sabem tudo sobre a suspeita, a ameaça e o poder. Os dois irmãos discípulos, que não entenderam ainda o caminho manso e humilde de Jesus, que tem os mesmos tons do Servo de YHWH, são duramente repreendidos (Lucas 9,55) com o mesmo verbo (epitimáô) com que Jesus estigmatiza os espíritos impuros (cf. Lucas 4,35).

Mas um quarto cenário salta à vista de quem segue atentamente a página evangélica. O início desta viagem de Jesus para a Judeia e Jerusalém fica marcado pelo seu não acolhimento e rejeição numa aldeia da Samaria (Lucas 9,52). Mas a mesma rejeição tinha acontecido no início da sua missão em Nazaré (Lucas 4,29), e aponta já para a sua rejeição em Jerusalém e para a futura rejeição dos anunciadores do Evangelho. Portanto, e sem medos e sem equívocos, a rejeição acompanha o Evangelho em pessoa, que é Jesus Cristo. Os seus discípulos de ontem e de hoje devem saber estas coisas, para não procurarem facilidades no seguimento fiel do caminho de Jesus. Aí está sempre a balizar o caminho a palavra de Jesus: «Se me perseguiram a mim, perseguir-vos-ão também a vós» (João 15,20).

O quinto cenário fixa a nossa atenção em alguém que se propõe seguir Jesus, com estas palavras: «Seguir-Te-ei para onde quer que vás!» (Lucas 9,57), logo seguidas da declaração de Jesus: «As raposas têm as suas tocas e as aves do céu os seus ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça!» (Lucas 9,58). Note-se bem que o texto diz o essencial e omite o circunstancial, deixando-nos sem saber quem era o homem, de onde veio, o que é que o levou a propor-se seguir Jesus, e como terá reagido à declaração de Jesus acerca da sua pobreza radical, que deveria adotar também quem o quisesse seguir. Tê-lo-á seguido no caminho? Foi-se outra vez embora? Com este procedimento escorreito, a intenção do narrador é certamente apresentar a força do seguimento de Jesus enquanto tal, não o fazendo depender desta ou daquela circunstância, e fazendo dele um seguimento incondicional. Seguir Jesus é um absoluto, sem condições, atitude posta em destaque pelo facto de Jesus não ter eira nem beira, «não tem onde reclinar a cabeça», o que torna incontornável a transparência da sua confiança no Pai. Sua e daqueles que o queiram seguir no caminho.

Permiti que abra aqui um sexto cenário, retomando o dito de Jesus: as raposas têm as suas tocas, as aves do céu os seus ninhos; em contraponto, Jesus, o Filho do Homem, não tem onde reclinar a cabeça (Lucas 9,58). Aqui está a especificidade do homem em relação ao animal. A liberdade do animal é uma liberdade sem responsabilidade, uma liberdade solitária. Não é assim com o homem: «Não é bom que o homem esteja só», é uma das primeiras lições do Livro do Génesis (Génesis 2,18). A liberdade do homem é uma responsabilidade que se assume face à Criação, constrói-se sempre com alguém, sempre diante de alguém. Ao homem compete assumir atitudes responsáveis, o que o impede de encontrar tão cedo um lugar onde reclinar a cabeça. Fixemos outra vez e sempre os nossos olhos em Jesus, e compreendamos que apenas a morte interrompe este caminho de crucial responsabilidade. Atente-se que é apenas sobre a Cruz que Jesus reclinará a cabeça (João 19,30).

O sétimo cenário é o apelo limpo, igualmente despido de acessórios, que Jesus faz a alguém: «Segue-me!», a que o visado responde imediatamente: «Permite-me ir primeiro sepultar o meu pai!» (Lucas 9,59). E a resposta, quase escandalosa de Jesus: «Deixa que os mortos sepultem os seus mortos. Tu, vai anunciar o Reino de Deus!» (Lucas 9,60). Estas imensas palavras de Jesus ganham ainda maior acutilância se soubermos que a mentalidade e a sabedoria judaicas davam enorme importância ao dar sepultura a um familiar. Era uma ação de tal monta e de tal conta que dispensava da oração do Shema‛, da oração das dezoito bênçãos e de todos os preceitos da Lei (Mishnah Berakhot 3,1a). Mas o caminho novo de Jesus inverte o normal caminhar da experiência humana da vida para a morte. O caminho de Jesus, e segundo Jesus, é da morte para a vida: «nós sabemos que passamos da morte para a vida porque amamos os irmãos; quem não ama, permanece na morte» (1 João 3,14). Quem quiser seguir Jesus tem, portanto, de apostar tudo no novo sentido que Jesus imprime à existência: partir da morte para a vida, com a única chave possível que abre este caminho Crucial: o amor, o amor, o amor! Mais amor, mais amor, mais amor!

O oitavo e último cenário é igualmente forte, igualmente desconcertante. Põe diante de nós alguém, também sem qualquer registo de circunstâncias, que está disposto a seguir Jesus, desde que Jesus lhe faça uma pequena concessão: permitir que se despeça dos seus familiares. Digamos que pede apenas para dar um pequeno passo atrás, e logo dará dois em frente. Já sabemos que Elias fez esta concessão a Eliseu (1 Reis 19,20), como nos é dado ler na lição do Antigo Testamento de hoje. Mas Jesus é mais do que Elias, e não faz qualquer concessão: «Aquele que deita as mãos ao arado, e olha para trás, não serve para o Reino de Deus!» (Lucas 9,62). O poeta inglês Thomas S. Eliot (1888-1965), fala, neste contexto, de «uma insuportável camisa de fogo que Deus teceu com as suas próprias mãos», para depois nos envolver nela, como se fosse o manto de Elias. «As forças humanas, continua o poeta, não a podem levar; cedo nos apercebemos que apenas podemos viver e respirar se nos deixarmos queimar, queimar de amor». Ainda e sempre e só o amor!

Já se vê que é a cena de Elias e de Eliseu, narrada em 1 Reis 19,19-21, que faz de fundo ao Evangelho de hoje. Simbolicamente, Elias atira o seu manto sobre Eliseu, fazendo-o assim seu seguidor. Eliseu andava a lavrar um grande campo, agarrado ao arado, puxado por doze juntas de bois. Sentindo o chamamento de Elias, Eliseu apenas pede o tempo necessário para ir abraçar o seu pai e a sua mãe. Elias concede. Eliseu despede-se de forma radical, sagrada e festiva. Matou uma junta de bois, e assou a sua carne sobre a madeira do arado. Queimando o arado, é todo um mundo que deixa para trás, sem retorno. Enceta depois um caminho novo atrás de Elias.

Na lição de hoje da Carta aos Gálatas (5,1.13-18), São Paulo lembra aos Gálatas e a nós que a nossa liberdade (eleuthería) não foi nem é obra nossa. Devemo-la a Cristo (v. 1). E o Apóstolo adverte-nos ainda de que esta liberdade dada e recebida não pode ser agora pretexto para voltar à escravidão. Bem ao contrário, deve ser pretexto para a caridade e o serviço humilde aos outros (v. 13). Vale a pena dizer aqui, a propósito, que este é um dos dois lugares em que Paulo cita o segundo mandamento, o do amor ao próximo como a nós mesmos (v. 14; o outro é Romanos 13,9), e que Paulo nunca cita o primeiro mandamento, o do amor a Deus «com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças» (Deuteronómio 6,4-5). Tal maneira de proceder não é para estranhar. Na verdade, quer a Bíblia Hebraica quer o coração dos Evangelhos falam menos do nosso amor para com Deus (ou Cristo), e mais, muito mais, do nosso amor para com o próximo e para com o estrangeiro e o inimigo! E não se trata de um amor que satisfaz o nosso desejo, mas da imitação do amor de Deus (amar como Ele ama) e de obedecer a um mandamento (amar como Ele manda amar). Então, a nossa resposta ao amor de Deus (ou de Cristo) não consiste na redamatio ou retribuição a Deus (ou a Cristo) do amor com que Ele nos ama, mas volta-se para a frente e traduz-se no amor ao outro, próximo, estrangeiro ou inimigo! Quer na Revelação patente no AT quer em Jesus, o amor ao próximo aparece como o lugar, o único lugar, da epifania do nosso amor a Deus (ou a Cristo). Então, amar a Deus e ao próximo como manda Jesus, é amar como Deus ama, como Deus nos ama.

As pedras e as coisas, as casas e as terras, nunca devem ocupar, muito menos encher, o nosso coração. Os sacerdotes, descendentes de Aarão não tinham terra distribuída em Israel. A sua herança era o Senhor (cf. Números 18,20). Cantamos no refrão do Salmo de hoje, o Salmo 16, «Senhor, Tu és a minha herança» (v. 5). No seu Sermão 344, Santo Agostinho comenta assim: «O salmista não diz: “Ó Deus, dá-me uma herança”. Diz antes: “Tudo o que me podes dar fora de Ti, é vil. Sê Tu a minha herança. É a Ti que eu amo… Esperar Deus de Deus, estar cheio de Deus. Basta-te Ele; fora dele, nada te pode bastar». Esta melodia deve encher o nosso coração e este Dia de Domingo, Dia do Senhor, de doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distrações, sem nostalgias, sem saídas de emergência ou de segurança!

 

António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – XIII Domingo Tempo Comum – Ano C (1 Re 19,16b.19-21)
  2. Leitura II-XIII Domingo Tempo Comum – Ano C (Gal 5,1.13-18)
  3. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano C – 26.06.2022 – Lecionário
  4. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano C – 26.06.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo XII do Tempo Comum – Ano C – 19.06.2022

Da Santíssima Trindade ao Cristo-Rei – a 2ª Parte do Tempo Comum

A parte final do calendário litúrgico 2021/2022

Viver a Palavra

 

«Um dia, Jesus orava sozinho, estando com Ele apenas os discípulos».

O Evangelho de S. Lucas coloca muitas vezes Jesus em oração, de tal modo que alguns autores o intitulam de «Evangelho da oração». A comunhão de amor que Ele vive com o Pai manifesta-se de tal modo na sua oração, que os discípulos hão-de pedir a Jesus que lhes ensine a rezar. Deveria ser fascinante ver Jesus a rezar. Contemplar aquele diálogo de amor que na força do Espírito Santo, Amor que envolve o Pai e o Filho, se tornava como que epifania da Trindade.

Esta comunhão de amor torna-se assim o ambiente onde a nossa oração pessoal e comunitário se deve desenvolver. A verdadeira oração cristã é aquela que se dirige ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo. Deste modo, rezar é frequentar a escola do amor e ler a vida, o tempo e a história com o olhar misericordioso de Deus que se revela de modo pleno na entrega do Filho e se perpetua pela força do Espírito.

Repetidas vezes escutamos que Jesus aparece em oração nos momentos mais decisivos da Sua vida, contudo, como afirma Luciano Manicardi, «a oração de Jesus torna decisivos os momentos do seu viver». Assim há-de suceder connosco: deixaremos de olhar para a oração como um rito mágico onde apresentamos a Deus os motivos do nosso orar e haveremos de converter a nossa vida cristã numa vida orante, que torna decisivos os diversos momentos do nosso viver, na totalidade da nossa vida, tal qual ela se apresenta. A verdadeira oração cristã não é aquela que se realiza até que Deus nos ouça, mas aquela que se desenvolve para que em nós ressoe a voz de Deus e possamos escutar o silencioso sussurrar do Seu amor.

Depois deste momento de oração e intimidade, Jesus dirige-se aos Seus discípulos e interpela-os sobre a Sua identidade. Inicialmente parece uma sondagem da opinião pública: «Quem dizem as multidões que Eu sou?». Porém, as interpelações de Jesus são muito mais profundas e na revelação da Sua identidade como Aquele que deve sofrer e dar a vida, Jesus revela também aquela que há-de ser a missão e a identidade daqueles que O querem seguir: «Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me. Pois quem quiser salvar a sua vida, há-de perdê-la; mas quem perder a sua vida por minha causa, salvá-la-á».

Como publicitário estava reprovado, pois ao invés de anunciar um conjunto de soluções imediatas e sucessos aparentes, Jesus, com os pés bem assentes na realidade e consciente da fragilidade e contingência da nossa humanidade, convida-nos a abraçar os desafios e obstáculos da vida a partir desta nova lógica do Evangelho de que a vida é tanto mais nossa quanto mais for dos outros, de que a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Jesus não é um masoquista que nos convida a abraçar o sofrimento pelo sofrimento, mas convida-nos a abraçar o amor que o fez ir até à Cruz! Jesus não abraça a cruz porque quer sofrer muito, mas porque nos ama muito.

Nesta passagem de Lucas, diversamente das outras passagens paralelas deste texto, Jesus junta ao desafio de tomar a cruz a expressão «todos os dias», para fazer ecoar no nosso coração a certeza de que o amor de que a cruz é sinal deve plasmar todos os nossos dias e configurar toda a nossa existência. Deste modo, como Paulo já não nos saberemos dizer sem dizer Jesus Cristo e sem recordar que a Sua vida ressuscitada é a chave de leitura de toda a nossa vida: «todos vós sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos vós, que fostes batizados em Cristo, fostes revestidos de Cristo». in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Zac 12, 10-11; 13, 1

«Jorrará uma nascente para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, a fim de lavar o pecado e a impureza».

 

Ambiente

Como o livro de Isaías, o livro de Zacarias não pode ser atribuído a um só e mesmo profeta. Só os capítulos 1-8 podem ser atribuídos a esse Zacarias, filho de Baraquias (cfr. Zac 1,1.7), que atuou em Jerusalém no pós-exílio e teve um papel preponderante na reconstrução do Templo (estamos à volta de 520 a.C.).
Os capítulos 9-14 parecem ser uma outra coleção de textos, que provêm de um, ou mais provavelmente de vários autores tardios; costuma falar-se deste conjunto de textos usando a designação “Deutero-Zacarias”.

A época em que os textos do Deutero-Zacarias apareceram também é muito discutida (a partir das referências históricas do livro, é possível deduzir todas as épocas, desde o séc. VIII até ao séc. II a.C.). No entanto, a opinião mais difundida atualmente é a que situa a redação destes capítulos em finais do séc. IV e durante o séc. III a.C. (o ambiente parece revelar a época posterior às vitórias de Alexandre da Macedónia).
O texto que nos é proposto integra uma coleção que vai de 12,1 a 14,21. Essa coleção apresenta-nos um mosaico de temas diversos, embora unidos por uma certa expectativa messiânica. Depois do anúncio da intervenção definitiva de Deus na pessoa de um rei/messias que, na humildade, procurará instaurar o reino ideal (cf. Zac 9,9-10) e da referência a um “pastor” enigmático que virá apascentar o rebanho de Deus (cf. Zac 11,4-17), os textos apresentam-nos um conjunto de oráculos que se referem à salvação e glória de Jerusalém. É nesse enquadramento que podemos situar o nosso texto.in Dehonianos

 

Considerar, na reflexão, os seguintes dados:

Esta figura do “trespassado” faz-nos pensar em todos os “profetas” que lutam pela justiça e pela verdade e que são torturados, vilipendiados, massacrados por causa do seu testemunho incómodo. A identificação do “trespassado” com o próprio Deus diz-nos que o profeta nunca está só e perdido face ao ódio do mundo, mas que Deus está sempre do seu lado; diz-nos, também, que é de Deus que brota a missão profética, mesmo quando ela incomoda e questiona os homens.

Fomos constituídos profetas no momento da nossa opção por Cristo (Batismo). Como se tem “cumprido” a nossa missão profética? Na fidelidade e no empenho, ou na preguiça e no comodismo? No medo que paralisa, ou na inquebrantável confiança no Deus que está ao nosso lado?

Como acolhemos a interpelação e o questionamento dos outros profetas que Deus envia ao nosso encontro? Com desprezo e arrogância, com frieza e indiferença? Ou com a convicção de que é o próprio Deus que, através deles, nos interpela?

Este texto garante-nos que o sofrimento por causa do testemunho profético não é em vão. Do testemunho profético – mesmo quando “cumprido” na dor, na dificuldade, no fracasso aos olhos do mundo – resultará sempre a transformação dos corações, a conversão e, portanto, o nascimento de um mundo novo.

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 62 (63)

Refrão: «A minha alma tem sede de Vós, meu Deus».

 

LEITURA II Gal 3, 26-29

«Todos vós sois filhos de Deus pela fé em Jesus Cristo, porque todos vós, que fostes batizados em Cristo, fostes revestidos de Cristo».

 

Ambiente

Continuamos a ler essa carta enviada aos habitantes da região central da Ásia Menor (Galácia), onde se discute se Cristo basta para chegar à salvação ou são precisas também as obras da Lei. Já sabemos que, para Paulo, só Cristo salva; por isso, os gálatas são convidados a fazer “ouvidos de mercador” às exigências dos “judaizantes” e a não se preocuparem com a circuncisão, nem com outras exigências da Lei de Moisés.
Este texto, em concreto, aparece na segunda parte da Carta aos Gálatas (cf. Gal 3,1-6,18), em que Paulo apresenta uma reflexão sobre o cristão e a liberdade. Nos versículos anteriores, Paulo comparara a Lei a um “carcereiro” (cf. Gal 3,23) e a um “pedagogo” greco-romano (cf. Gal 3,24). Estas duas imagens são bem elucidativas: o carcereiro da época era, com muita frequência, exemplo de crueldade; e o pedagogo (geralmente um escravo pouco instruído que acompanhava a criança à escola e a mantinha disciplinada) também não era muito apreciado e evocava a imagem de reprimendas e castigos. É verdade, considera Paulo (cf. Gal 3,25), que é melhor ser conduzido pela mão do que perder-se no caminho; mas seria uma estupidez aspirar a viver sempre no cárcere ou considerar como um ideal ser sempre conduzido pela mão, sem experimentar a liberdade. in Dehonianos

 

Considerar, para a reflexão, as seguintes linhas:

O cristão é, fundamentalmente, aquele que se “revestiu de Cristo”. Que significa isto, em concreto? Que assinamos um documento no qual nos comprometemos a viver como batizados? Que respeitamos apenas as leis e orientações da hierarquia? Que nos comprometemos somente a ir à missa ao domingo, a ir a Fátima uma vez por ano e a rezar o terço de vez em quando? Ou significa que assumimos o compromisso de viver como Cristo, de assumir os seus valores, de fazer da nossa vida um dom de amor, de nos entregarmos até à morte para construir um mundo de justiça e de paz para todos?

Para os judeus, contemporâneos de Jesus e de Paulo de Tarso, os pagãos e as mulheres eram gente discriminada. “Dou-te graças, Deus altíssimo – diz uma célebre oração rabínica – porque não me fizeste pagão, escravo ou mulher”. Paulo proclama, neste texto, que, a partir da nossa identificação com Cristo, toda a discriminação entre os homens e, sobretudo entre os cristãos, carece de sentido. A Igreja soube tirar as consequências deste facto? Como acolhemos os estrangeiros, os discriminados, os divorciados, os homossexuais, os drogados, as mulheres? Como filhos iguais do mesmo Deus, ou como irmãos “coitados”, que é preciso tolerar e tratar com caridade, mas que não são iguais nem têm a mesma dignidade dos outros? in Dehonianos.

 

EVANGELHO Lc 9, 18-24

«Um dia, Jesus orava sozinho, estando com Ele apenas os discípulos».

«O Filho do homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos príncipes dos sacerdotes e pelos escribas; tem de ser morto e ressuscitar ao terceiro dia».

«Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias e siga-Me».

 

Ambiente

Estamos na fase final da etapa da Galileia. Jesus passou algum tempo a apresentar o seu programa e a levar a Boa Nova aos pobres, aos marginalizados, aos oprimidos (cf. Lc 4,16-21). À volta d’Ele, foi-se formando um grupo de “testemunhas”, que apreciaram a sua atuação e que se juntaram a esse sonho de criar um mundo novo, de justiça, de liberdade e de paz para todos. Agora, antes de começar a etapa decisiva da sua caminhada nesta terra (o “caminho” para Jerusalém, onde Jesus vai concretizar a sua entrega de amor), os discípulos são convidados a tirar as suas conclusões acerca do que viram, ouviram e testemunharam. Quem é este Jesus, que se prepara para cumprir a etapa final de uma vida de entrega, de dom, de amor partilhado? E os discípulos estarão dispostos a seguir esse mesmo caminho de doação e de entrega da vida ao “Reino”? in Dehonianos

 

Para a reflexão, considerar os seguintes elementos:

O Evangelho de hoje define a existência cristã como um “tomar a cruz” do amor, da doação, da entrega aos irmãos. Supõe uma existência vivida na simplicidade, no serviço humilde, na generosidade, no esquecimento de si para se fazer dom aos outros. É esse o “caminho” que eu procuro percorrer?

Na sociedade em geral e na Igreja em particular, encontramos muitos cristãos para quem o prestígio, as honras, os postos elevados, os tronos, os títulos são uma espécie de droga de que não prescindem e a que não podem fugir. Frequentemente, servem-se dos carismas e usam as tarefas que lhe são confiadas para se autopromover, gerando conflitos, rivalidades, ciúmes e mal-estar. À luz do “tomar a cruz e seguir Jesus”, que sentido é que isto fará? Como podemos, pessoal e comunitariamente, lidar com estas situações? Podemos tolerá-las – em nós ou nos outros? Como é possível usar bem os talentos que nos são confiados, sem nos deixarmos tentar pelo prestígio, pelo poder, pelas honras? Tem alguma importância, à luz do que Jesus aqui ensina, que a Igreja apareça em lugar proeminente nos acontecimentos sociais e mundanos e que exija tratamentos de privilégio?

Quem é Jesus, para nós? É alguém que conhecemos das fórmulas do catecismo ou dos livros de teologia, sobre quem sabemos dizer coisas que aprendemos nos livros? Ou é alguém que está no centro da nossa existência, cujo “caminho” tem um real impacto no nosso dia a dia, cuja vida circula em nós e nos transforma, com quem dialogamos, com quem nos identificamos e a quem amamos?

É na oração que eu procuro perceber a vontade de Deus e encontrar o caminho do amor e do dom da vida? Nos momentos das decisões importantes da minha vida, sinto a necessidade de dialogar com Deus e de escutar o que Ele tem para me dizer? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A brevidade das leituras deste Domingo não deve permitir que se descuide a sua preparação, mas, pelo contrário, exigem um aturado cuidado para uma adequada proclamação.

Na primeira leitura, o Senhor dirige-se ao Seu Povo por meio do profeta. É o anúncio de que o dia de pranto e lamento será também o dia em que Deus irá lavar o pecado do Seu Povo. Por isso, a proclamação deste texto deve ser marcada pelo tom profético de anúncio deste dia tremendo e glorioso.

A segunda leitura exige uma leitura pausada e uma especial atenção às pausas e respirações. Além disso, neste curto texto, a palavra Cristo aparece por cinco vezes. Na proclamação de um texto, as repetições devem ser valorizadas pois é intencional a sua colocação.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

O NOSSO «LUGAR FELIZ» É CRISTO

Este Domingo XII do Tempo Comum oferece-nos a imensa utopia messiânica que atravessa a profecia de Zacarias 9-14, um povo pobre, explorado, combatido e assassinado, mas que é a «pupila dos olhos do Senhor» (Zacarias 2,12), que tem nele colocados os seus olhos (Zacarias 9,1 e 8). Este povo pobre e mártir tem direito à sua esperança e ao seu rei diferente, que se apresenta pobre e pacífico, montado num jumento, animal de paz e não de guerra, e que porá fim aos instrumentos de guerra (Zacarias 9,9-10). Mundo novo. O texto deste Domingo (Zacarias 12,10-11; 13,1) faz-nos chorar este povo pobre e mártir personificado num filho único, num filho primogénito, martirizado, mas faz-nos ver também, e fixa o nosso olhar nesta figura desfigurada e transpassada, mas transfigurada, pois se tornará numa fonte de água pura, salvadora e salutar (Zacarias 13,1; 14,8). É, neste sentido, que «hão de olhar para aquele que transpassaram» (Zacarias 12,10). Cruzamento de olhares: olha Deus para ele, por ele; olhamos agora também nós para ele, por ele! É sabido que João, vendo Jesus e relendo este texto de Zacarias, fixa o nosso olhar em Jesus crucificado, transpassado, desfigurado, transfigurado (João 19,37). Então o crucificado ressuscitado, que preside à nossa assembleia dominical e à nossa vida, deixa de ser uma utopia [= «sem lugar»], para se transformar numa eu-topia [= «lugar feliz»]. Olhar fixo n’Ele! Mãos abertas em concha para Ele, para as encher nessa fonte de graça e de saúde! Sim, somos chamados a transformar o «deslugar» deste mundo em «lugar feliz»! Mãos à obra! Ou, melhor ainda, corações à obra!

Faz equilíbrio com este grande texto de Zacarias o Evangelho de Lucas 9,18-24. Começa por nos apresentar Jesus a rezar sozinho, o que acontece imensas vezes no Evangelho de Lucas, que é, por isso, também chamado «Evangelho da oração». E «orar» é, em sentido genuíno, etimológico, beijar, como lembrou o Papa Bento XVI aos jovens reunidos na XX Jornada Mundial da Juventude, realizada em Colónia, em 2005, referindo que a palavra latina para oração é oratio e a locução latina para adoração é ad oratio, contacto boca a boca, beijo, abraço, e portanto, no fundo, amor, ou seja, orientar a nossa vida toda para Deus, entregar a Deus a nossa vida toda, para que seja Ele a olhar para nós, por nós! É importante sabermos, informa-nos o narrador, que os seus discípulos estavam com Ele. Estar com Ele é o «lugar feliz» do discípulo de todos os tempos. Estar sem Ele é sempre um «deslugar». Se for este o caso, temos rapidamente de mudar de lugar!

Também ficamos a saber, pela informação dos discípulos de então, que as multidões dizem Jesus com o passado, alinhando-o com as figuras do passado (João Batista, Elias, um antigo profeta redivivo) (Lucas 9,19), não contendo, portanto, nada de substancialmente novo. Em contraponto com as multidões, Pedro avança um dizer novo, diz que Jesus é o Cristo de Deus, sem, todavia, com este dizer, renovar a sua vida, sem fixar n’Ele os olhos e o coração, e sem encher as mãos em concha com a água-viva que d’Ele vem.

É Jesus, e só podia ser Jesus, que se autoapresenta aos seus discípulos de ontem e de hoje, como tendo de sofrer, ser morto, e ressuscitar ao terceiro dia (Lucas 9,22). Aí está o transpassado, desfigurado, transfigurado, fonte única de água-viva para nós, fonte da nossa vida. Dizemos, na verdade, muitas coisas. Mas é necessário ouvir Jesus dizer. Porque só Ele se diz e nos diz. Para o discípulo, escutar é deixar-se dizer! Para o discípulo, dizer é redizer o dito de Jesus. Eis o Mestre. Eis o discípulo.

Ainda duas coisas únicas deste Evangelho, duas pérolas, portanto: «Dizia Ele a todos: “Se alguém quer vir atrás de mim, diga não a si mesmo, e tome a sua cruz todos os dias, e siga-me”» (Lucas 9,23). A primeira pérola está em que Jesus diz para todos. O dizer de Jesus, o seu ensinamento novo, não é para elites, para alguns iluminados. É para todos. Entenda-se que a escola de Jesus está aberta a todos, ricos e pobres, maus e bons, especialistas e ignorantes. Já se sabe que o ignorante é aquele que não sabe; de resto, também o dito especialista não sabe, mas não sabe, para usar o aforismo cortante do escritor italiano Leo Longanesi (1905-1957), com grande competência e autoridade! Ainda bem, portanto, que Jesus diz para todos, e todos devemos estar sentados e atentos na sua escola. A segunda pérola é que a vida cristã, que consiste em seguir Jesus, é coisa quotidiana, de todos os dias. Lucas é mesmo o único Evangelista que regista a necessidade de tomar a cruz todos os dias. Não é só para alguns dias de festa. Não pode ter pausas.

Dizer não a si mesmo é pensar ao contrário do que estamos habituados a fazer. Pensamos sempre primeiro em nós, em salvar-nos a nós mesmos. E para nos salvarmos a nós mesmos, pensamos nós, temos de nos antecipar aos outros, ser mais espertos do que os outros, passar à frente dos outros. Exatamente o contrário de Jesus, que não quis salvar-se a si mesmo. Quis salvar-nos a nós, pôr-se ao nosso serviço, fazer-se fonte de água-viva para nós. «Salva-te a ti mesmo, e desce da Cruz!» (Lucas 23,35-39), eis a tentação que cai sobre Jesus em três vagas sucessivas. Todavia, se se tivesse salvo a si mesmo, não nos salvava a nós! Estamos, portanto, perante a lógica nova do «quem perde, ganha», que é o jogo novo do cristianismo.

Não se pode ser cristão, discípulo de Jesus, seguir Jesus, dizer Jesus, sem dar a vida. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, tem de pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre.

É esta novidade que São Paulo afirma outra vez na Carta aos Gálatas 3,26-29. Sim, Paulo já não se sabe dizer sem dizer Jesus Cristo. Por Ele foi alcançado, n’Ele foi batizado, está revestido d’Ele. Se vive, é porque está enxertado em Cristo, o «lugar feliz» da sua vida.

O Salmo 63 é conhecido como «o cântico do amor místico», atravessado por uma apaixonada intensidade, bem expressa na primeira afirmação ou declaração de amor à boca do Salmo, mas que enche, de resto, o Salmo inteiro: «O meu Deus és Tu» (ʼelî ʼattah), a que responde e corresponde Deus em Isaías 43,1, declarando: «Para mim tu és» (lî ʼattah). Tudo o resto no Salmo 63 assenta sobre esta certeza. A minha vida recebida (naphshî), por quatro vezes referida (vv. 2.5.9.10) agarra-se amorosamente (dabaq) a Ti (v. 9), canta o teu amor, vive de Ti. A beleza, intensidade e espiritualidade que atravessam este Salmo ganham visibilidade na liturgia bizantina das manhãs de Domingo, e os vv. 3-6 entram no cânone eucarístico armeno.

  António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Corpo de Deus – Ano C – 16.06.2022 (Gen 14, 18-20)
  2. Leitura II – Corpo de Deus – Ano C – 16.06.2022 (1 Cor 11,23-26)
  3. Solenidade do Corpo de Deus – Ano C – 16.06.2022 – Lecionário
  4. Solenidade do Corpo de Deus – Ano C – 16.06.2022 – Oração Universal
  5. Leitura I – Domingo XII TC – Ano C – 19.06.2022 (Zac 12, 10-11_13,1)
  6. Leitura II – Domingo XII – Ano C – 19.06.2022 (Gal 3, 26-29)
  7. XII Domingo TC – Ano C – 19.06.2022 – Lecionário
  8. XII Domingo TC – Ano C – 19.06.2022 – Oração Universal
  9. ANO C – Ano de Lucas

Domingo da Santíssima Trindade – Ano C – 12.06.2022

«Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que Ele receberá do que é meu e vo-lo anunciará». Jo, 16, 15

Viver a Palavra

 

DEUS!

Com toda a certeza, esta é a palavra sobre a qual mais se escreveu ao longo da história. Grandes tratados demonstrando a sua existência. Inúmeros escritos que negam quer a necessidade do divino, quer a necessidade de relação com ele. Mas como é Deus em si mesmo? Como é que Deus se relaciona connosco?

É inegável que no mais íntimo do coração humano reside um desejo de plenitude e de transcendência. Na verdade, como nos recorda S. Agostinho, o coração humano é um coração inquieto que não se satisfaz com nada menos do que Deus e é, precisamente assim, que se torna um coração que ama. O nosso coração vive inquieto por Deus e não pode ser doutro modo, ainda que hoje o ser humano procure de tantos modos libertar o homem desta inquietação. Contudo, como afirmou o Papa Bento XVI na homilia da Solenidade da Epifania, a 6 de janeiro de 2012: «não somos só nós, seres humanos, que vivemos inquietos relativamente a Deus. Também o coração de Deus vive inquieto relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também Ele não descansa enquanto não nos tiver encontrado. O coração de Deus vive inquieto, e foi por isso que se pôs a caminho até junto de nós – até Belém, até ao Calvário, de Jerusalém até à Galileia e aos confins do mundo. Deus vive inquieto connosco!».

Este Deus inquieto, que nos ama com amor infinito, que nos criou por amor e por amor nos acompanha nos caminhos da história, revela-se em Jesus Cristo e na força do Espírito Santo dá-nos a conhecer o Seu rosto terno e misericordioso. Deste modo, a Solenidade da Santíssima Trindade é a oportunidade de olharmos o coração de Deus, de entrarmos no Seu mistério de amor e comunhão para nos deixarmos envolver por esta corrente de graça que transforma a vida e o coração humano. A missão dos Apóstolos foi precisamente esta: acolher a inquietação de Deus por cada homem e mulher e levar o próprio Deus ao coração dos homens. Como discípulos missionários, também nós hoje somos chamados a deixar-nos tocar por esta inquietação de Deus, a fim de que o anseio de Deus pelo homem possa ser satisfeito.

Nesta solenidade contemplamos o mistério de Deus como mistério de amor e comunhão: «tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que Ele [o Espírito Santo] receberá do que é meu e vo-lo anunciará». Para compreender os versículos de S. João proclamados no Evangelho desta solenidade, é necessário lê-los no contexto de todo o Evangelho de S. João. Desde os primeiros versículos, no Prólogo, revela-se o desejo de Deus de se comunicar aos homens, revelando-se em Jesus Cristo, a Palavra feita carne pelo poder do Espírito Santo, o Sopro Divino.

Esta comunhão de amor torna-se para nós uma escola na arte de construir e promover a comunhão e a fraternidade. Contemplando o Mistério Trinitário, somos convidados a viver como artífices da unidade e da comunhão, na diversidade e pluralidade própria da nossa condição humana. As nossas famílias, a Igreja, o Mundo têm muito a aprender e crescer na arte de viver em comunhão e estabelecer relações harmoniosas e fraternas. Bem sabemos como a solidão nos pesa e atemoriza! Ao invés, quando estamos com quem nos quer bem, quando acolhemos e somos acolhidos, sentimo-nos bem e felizes, realizando a nossa vocação de comunhão e fraternidade.

Esta esperança de um mundo novo, transformado pela «mística de viver juntos» (EG 87), não é uma esperança inconsistente ou vazia, mas a certeza de que o Espírito Santo promove a comunhão e unidade e nos desafia a ser, no mundo e para o mundo, testemunhas da comunhão: «a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado».in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Prov 8, 22-31

«Eis o que diz a Sabedoria de Deus: O Senhor me criou como primícias da sua actividade, antes das suas obras mais antigas».

 

Ambiente

O Livro dos Provérbios apresenta uma coleção de “ditos”, de “sentenças”, de “máximas”, de “provérbios” (“mashal”), onde se cristaliza o resultado da reflexão e da experiência (“sabedoria”) dos “sábios” antigos (israelitas e alguns não israelitas), empenhados em definir as regras para viver bem, para ter êxito, para ser feliz. Alguns dos materiais aí apresentados podem ser do séc. X a. C.; outros, no entanto, são bem mais recentes.
O texto que nos é hoje proposto faz parte de um bloco de “instruções” e “advertências” que vai de 1,8 a 9,6. Trata-se da parte mais recente do “Livro dos Provérbios” (segundo os especialistas, não pode ser anterior ao séc. IV ou III a. C.).

O capítulo 8 do “Livro dos Provérbios” (do qual é retirado o texto que hoje nos é proposto) apresenta-nos um discurso posto na boca da própria “sabedoria”, como se ela fosse uma pessoa: trata-se de um artifício literário, através do qual o autor pretende dar força e intensidade dramática ao convite que ele lança no sentido de acolher e amar a “sabedoria”. Na primeira parte desse discurso (vers. 1-11), o autor apresenta o “púlpito” de onde a “sabedoria” vai discursar (o cume das montanhas, a encruzilhada dos caminhos, as entradas das cidades, os umbrais das casas), os destinatários da mensagem (todos os homens) e apela à escuta das palavras que ela vai pronunciar; na segunda parte (vers. 12-21), o autor apresenta as “credenciais” da “sabedoria” (ela possui a ciência, a reflexão, o conselho, a equidade, a força) e o prémio reservado àqueles que a acolhem; na terceira parte (vers. 8,22-31) – que é a que nos interessa diretamente – o autor reflete sobre a origem da sabedoria e a sua função no plano de Deus.in Dehonianos

Ter em conta, na reflexão, os seguintes desenvolvimentos:

  • A referência ao Deus que tudo criou para nós com sabedoria faz-nos pensar num Pai providente e cuidadoso, que tem um projeto bem definido para os homens e para o mundo. Contemplar a criação é descobrir, na beleza e na harmonia das obras criadas, esse Pai cheio de bondade e de amor. Somos capazes de nos sentirmos “provocados” pela criação de forma que, através dela, descubramos o amor e a bondade de Deus?
  • Olhando para a obra de Deus, aprendemos que o homem não é um concorrente de Deus, nem Deus um adversário do homem. Ao homem compete reconhecer o poder e a grandeza de Deus e entregar-se, confiante, nas mãos desse Pai que tudo criou com cuidado e que tudo nos entrega com amor. Entregamo-nos nas mãos d’Ele, não como adversários, mas como crianças que confiam incondicionalmente no seu pai?
  • O desenvolvimento desordenado e a exploração descontrolada dos recursos da natureza põem em causa a harmonia desse “mundo bom” que Deus criou e que nos confiou. Temos o direito de pôr em causa, por egoísmo, a obra de Deus?
  • A contemplação da obra criada leva ao espanto e ao louvor. Somos capazes de nos extasiarmos diante das coisas que Deus nos oferece e de deixarmos que a nossa admiração se derrame em louvor e agradecimento?

in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 8, 4-9

Refrão: Como sois grande em toda a terra, Senhor, nosso Deus!

 

LEITURA II Rom 5, 1-5

«Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado»

 

Ambiente

Quando Paulo escreve aos romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rom 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente. Sobretudo, Paulo aproveita a carta para contactar a comunidade de Roma e apresentar aos romanos e a todos os crentes os principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade – um problema bem presente na comunidade de Roma, afetada por alguma dificuldade de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.

Paulo aproveita, então, para sublinhar que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Depois de notar que todos os homens vivem mergulhados no pecado (cf. Rom 1,18-3,20), Paulo acentua que é a “justiça de Deus” que dá vida a todos sem distinção (cf. Rom 3,1-5,11). Neste texto, que a segunda leitura de hoje nos propõe, Paulo refere-se à ação de Deus, por Cristo e pelo Espírito, no sentido de “justificar” todo o homem.in Dehonianos

 

Para a reflexão da Palavra, considerar as seguintes coordenadas:

  • Na Solenidade da Santíssima Trindade, somos convidados a contemplar o amor de um Deus que nunca desistiu dos homens e que sempre soube encontrar formas de vir ao nosso encontro, de fazer caminho connosco. Apesar de os homens insistirem, tantas vezes, no egoísmo, no orgulho, na autossuficiência, no pecado, Deus continua a amar e a fazer-nos propostas de vida. Trata-se de um amor gratuito e incondicional, que se traduz em dons não merecidos, mas que, uma vez acolhidos, nos conduzem à felicidade plena.
  • A vinda de Jesus Cristo ao encontro dos homens é a expressão plena do amor de Deus e o sinal de que Deus não nos abandonou nem esqueceu, mas quis até partilhar connosco a precariedade e a fragilidade da nossa existência para nos mostrar como nos tornarmos “filhos de Deus” e herdeiros da vida em plenitude.
  • A presença do Espírito acentua no nosso tempo – o tempo da Igreja – essa realidade de um Deus que continua presente e atuante, derramando o seu amor ao longo do caminho que dia a dia vamos percorrendo e impelindo-nos à renovação, à transformação, até chegarmos à vida plena do Homem Novo.
  • Está em moda uma certa atitude de indiferença face a Deus, ao seu amor e às suas propostas. Em geral, os homens de hoje preocupam-se mais com os resultados da última jornada do campeonato de futebol, ou com as últimas peripécias da “telenovela das nove” do que com Deus ou com o seu amor. Não será tempo de redescobrirmos o Deus que nos ama, de reconhecermos o seu empenho em conduzir-nos rumo à felicidade plena e de aceitarmos essa proposta de caminho que Ele nos faz? in Dehonianos.

 

 

EVANGELHO Jo 16, 12-15

«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não as podeis compreender agora».

«Quando vier o Espírito da verdade, Ele vos guiará para a verdade plena».

«Tudo o que o Pai tem é meu. Por isso vos disse que Ele receberá do que é meu e vo-lo anunciará».

 

Ambiente

Estamos no contexto da última ceia e do discurso de despedida que antecede a “hora” de Jesus.
Depois de constituir a comunidade do amor e do serviço (cf. Jo 13,1-17) e de apresentar o mandamento fundamental que deve dar corpo à vida dessa comunidade (cf. Jo 15,9-17), Jesus vai definir a missão da comunidade no mundo: testemunhar acerca de Jesus, com a ajuda do Espírito (cf. Jo 15,26-27).

Jesus avisa, no entanto, que o caminho do testemunho deparará com a oposição decidida da religião estabelecida e dos poderes de morte que dominam o mundo (cf. Jo 16,1-4a); mas os discípulos contarão com o Espírito: Ele ajudá-los-á e dar-lhes-á segurança no meio da perseguição (cf. Jo 16,8-11). De resto, a comunidade em marcha pela história encontrar-se-á muitas vezes diante de circunstâncias históricas novas, diante das quais terá de tomar decisões práticas: também aí se verá a presença do Espírito, que ajudará a responder aos novos desafios e a interpretar as circunstâncias à luz da mensagem de Jesus (cf. Jo 16,12-15). in Dehonianos

 

Para a nossa reflexão considerar os seguintes desenvolvimentos:

  • O Espírito aparece, aqui, como presença divina na caminhada da comunidade cristã, como essa realidade que potencia a fidelidade dinâmica dos crentes às propostas que o Pai, através de Jesus, fez aos homens. A Igreja de que fazemos parte tem sabido estar atenta, na sua caminhada histórica, às interpelações do Espírito? Ela tem procurado, com a ajuda do Espírito, captar a Palavra eterna de Jesus e deixar-se guiar por ela? Tem sabido, com a ajuda do Espírito, continuar em comunhão com Jesus? Tem-se esforçado, com a ajuda do Espírito, por responder às interpelações da história e por atualizar, face aos novos desafios que o mundo lhe coloca, a proposta de Jesus?
  • Sobretudo, somos convidados a contemplar o mistério de um Deus que é amor e que, através do plano de salvação/libertação do Pai, tornado realidade viva e humana em Jesus, e continuado pelo Espírito presente na caminhada dos crentes, nos conduz para a vida plena do amor e da felicidade total – a vida do Homem Novo, a vida da comunhão e do amor em plenitude.
  • A celebração da Solenidade da Trindade não pode ser a tentativa de compreender e decifrar essa estranha charada de “um em três”. Mas deve ser, sobretudo, a contemplação de um Deus que é amor e que é, portanto, comunidade. Dizer que há três pessoas em Deus, como há três pessoas numa família – pai, mãe e filho – é afirmar três deuses e é negar a fé; inversamente, dizer que o Pai, o Filho e o Espírito são três formas de apresentar o mesmo Deus, como três fotografias do mesmo rosto, é negar a distinção das três pessoas e é, também, negar a fé. A natureza divina de um Deus amor, de um Deus família, de um Deus comunidade, expressa-se na nossa linguagem imperfeita das três pessoas. O Deus família torna-se trindade de pessoas distintas, porém unidas. Chegados aqui, temos de parar, porque a nossa linguagem finita e humana não consegue “dizer” o mistério de Deus.
  • As nossas comunidades cristãs são, realmente, a expressão desse Deus que é amor e que é comunidade – onde a unidade significa amor verdadeiro, que respeita a identidade e a especificidade do outro, numa experiência verdadeira de amor, de partilha, de família, de comunidade? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura é marcada por um tom poético, carregado de imagens e simbolismo, que exige uma acurada preparação para uma melhor compreensão do texto.

Quer a primeira, quer a segunda leitura, são constituídas por frases longas com diversas orações que exigem atenção às pausas e à respiração, para uma melhor articulação do texto e uma mais eficaz proclamação.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

EM NOME DO PAI E DO FILHO E DO ESPÍRITO SANTO

«Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo, ao Deus que é e que era e que vem». Assim se cantará Hoje nas nossas Igrejas na aclamação ao Evangelho, fazendo ecoar e ressoar a doxologia trinitária mais conhecida e diariamente várias vezes repetida, porque amada, Hoje completada com as palavras do Apocalipse 1,8. Nos textos que Hoje a liturgia da Palavra nos oferece como alimento escolhido e abundante, Deus deixa-se entrever, desde diversos ângulos, de modo subtil, como que em contraluz ou filigrana, no seu mistério trinitário. Atravessa-os, pois, como que um fio de ouro trinitário, que nos deve atravessar e entrelaçar, por pura graça, a nós também.

O Evangelho do Dia, sempre proclamado e não apenas lido, constitui sempre o centro à volta do qual se organizam e ganham luz as demais páginas oferecidas da Escritura Santa. Mas constitui também para nós o principal fio de luz que deve alumiar a nossa vida. Comecemos então por ver o Evangelho de Hoje retirado de João 16,12-15. Vale a pena transcrever o texto, dada a finura das palavras de Jesus aos seus discípulos nesta última tarde da sua vida terrena:

«Tenho ainda muitas coisas para vos dizer, mas não podeis por agora carregar o seu peso. Mas quando vier (érchomai) Ele (ekeînos), o Espírito da Verdade (tò pneûma tês alêtheías), guiar-vos-á (hodêgêsei hymãs) na Verdade toda (alêtheia pâsa); com efeito, não falará (laléô) de si mesmo (aph’ heautoû), mas falará (laléô) tudo quanto tiver escutado, e anunciar-vos-á as realidades que hão de vir. Ele (ekeînos) glorificar-me-á, porque receberá (lambánô) do que é meu, e vo-lo anunciará. Tudo o que o Pai tem é meu; por isso eu disse que recebe do que é meu, e vo-lo anunciará» (João 16,12-15).

Trata-se da quinta vez, no Evangelho de João, que Jesus fala da Vinda do Espírito Santo. As outras quatro são 14,16; 14,26; 15,26 e 16,7. Note-se, desde já que, nestes cinco referidos dizeres de Jesus, a Vinda do Espírito Santo aparece sempre dita no futuro. Note-se também que o verbo «vir» (érchomai) é, na Bíblia, um dos verbos próprios de Deus. No Antigo Testamento, bastas vezes se refere que o Deus Vivo «vem» ao encontro do seu povo. No Novo Testamento, um dos nomes que caracteriza Jesus é «Aquele-que-Vem» (ho erchómenos). O nosso texto e os demais falam do Espírito que «virá», com liberdade soberana, divina, pessoal, Deus de Deus. Note-se ainda que Jesus fala do Espírito, tò pneûma, neutro em grego, com o pronome masculino, ekeînos, para indicar que se trata de uma Pessoa, não de uma coisa ou de uma força, que requeriria o pronome no neutro.

É dito «Espírito da Verdade», entenda-se da «Verdade» de Deus aos homens dada, e que é também o Caminho e a Vida (cf. João 14,6). É, portanto, o próprio Jesus Cristo, com toda a sua vinda e vida, e com a sua palavra que o comunica. O Espírito está, portanto, particularmente vinculado a Jesus, Pessoa divina a Pessoa divina. E a sua ação consiste em «guiar» (hodegéô), isto é, conduzir, ao longo do íngreme Caminho (hodós), até à meta, que é a «Verdade toda». Portanto, conduzir a Cristo, na sua totalidade. A relação dos discípulos com Jesus, e a adesão a Jesus, é ainda parcial.

Releve-se ainda que o Espírito «vem» de maneira autónoma, soberana, divina, mas não fala (laléô), verbo de revelação, a partir de si mesmo. É autónomo em operar divinamente, mas não é autónomo quanto aos conteúdos da sua operação. Tal como Jesus, Deus, também o Espírito, Deus, é obediente em vista da «Verdade toda», que é uma Pessoa «falada», por assim dizer, pelo Pai, que é o Verbo, que o Espírito Santo «escuta» do Pai, divino, indizível, eterno Diálogo tripolar interpessoal, inter-recíproco, interinfinito. E assim o Espírito fala apenas «quanto escuta». Em suma, Aquele que escuta fala a nós Jesus Cristo, o Verbo de Deus, «a Verdade». Por isso, «receberá (lambánô) do que é meu, e vo-lo anunciará». Mas o que é do Filho é também do Pai. Então, o Espírito receberá o que é do Filho, e, portanto, também do Pai, e é isso, e só isso, que anunciará. Entre o Pai e o Filho tudo é comum: a Vida, a Divindade, a Glória. Três termos precisos e preciosos para indicar exatamente o Espírito Santo, que é a Vida, a Divindade, a Glória que une consubstancialmente o Pai e o Filho, sendo o Espírito Santo a divina Comunhão entre os Três, o Único Deus.

Há mais. «Anunciará as realidades que hão de vir». Ora, quem determina e anuncia o futuro é só Deus. Não há ídolo que saiba anunciar o futuro. Só Deus anuncia antes de acontecer, e explica-o depois de acontecido. Veja-se esta polémica sobretudo no chamado «Segundo Isaías (Is 40-55), em concreto Is 41,21-23; 44,7; 45,21; 46,10. Espírito Santo, Deus, que anuncia e explica. A partir de agora, os discípulos não esperam novidades. Os histerismos de revelações, aparições e visões que agitam hoje tantos pobres iludidos, privados de verdadeiros conteúdos cristãos e bíblicos e da Tradição, são uma verdadeira «blasfémia contra o Espírito Santo». Por isso, o Papa Bento XVI, na Exortação Apostólica Verbum Domini [2010], n.º 14, lembrou-nos as palavras de S. João da Cruz, que escreveu, na sua Subida ao Monte Carmelo, II, 22, que «Ao dar-nos, como nos deu, o seu Filho, que é a sua Palavra, e não tem outra, Deus disse-nos tudo ao mesmo tempo e de uma só vez nesta Palavra única, e já nada mais tem para dizer […]. Porque o que antes disse parcialmente pelos profetas, revelou-o totalmente, dando-nos o Todo que é o seu Filho. E, por isso, quem agora quisesse consultar a Deus ou pedir-lhe alguma visão ou revelação, não só cometeria um disparate, mas faria agravo a Deus, por não pôr os olhos totalmente em Cristo e buscar fora d’Ele outra realidade ou novidade». E advertiu-nos bem o Papa que é preciso «distinguir a Palavra de Deus das revelações privadas cujo papel não é completar a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a vivê-la mais plenamente, numa determinada época histórica».

O Espírito recebe (lambánô) do que é de Jesus (João 16,14 e 15), do mesmo modo que Jesus recebeu do Pai (Mateus 11,27; João 10,18; Apocalipse 2,28), que lhe deu tudo o que tem e é. Do mesmo modo, o ensinamento (didachê) do Espírito é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência da fé, avivando as brasas do desejo da Palavra primeira e criadora no coração de cada homem, debaixo de qualquer céu. Este ensinamento interior do Espírito é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos conheceis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). Cumpre-se assim a profecia de Jeremias 31,31-34 (38,31-34 LXX) que refere que «todos me conhecerão (eidêsousin)» com uma ciência que não resulta da instrução, mas que é incutida por Deus no coração. Assim escreve Paulo aos Romanos 5,1-5, na lição também Hoje a nós oferecida, que «o amor de Deus foi derramado nos nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado» (v. 5).

Para chegar a estes espantosos dizeres de Jesus sobre o Espírito Santo, foi necessário que aquele fio de ouro trinitário fosse atravessando a Escritura. É assim que também nos é dado escutar hoje aquele hino, de extraordinária solenidade e beleza, que a própria Sabedoria entoa no Livro dos Provérbios 8,22-31. Nesse maravilhoso hino, Deus e a Sabedoria entretecem um diálogo do qual brotam todas as maravilhas da criação, em cujo cume estão «os filhos do homem». É com eles que a Sabedoria encontra as suas delícias, entenda-se, a sua felicidade. E foi precisamente a partir deste encontro feliz entre a divindade e a humanidade que a tradição cristã identificou na Sabedoria divina aqui celebrada o retrato do próprio Cristo. Por isso, lemos no prólogo do Evangelho de S. João que «o Verbo estava no princípio junto de Deus, tudo foi feito por meio d’Ele, e sem Ele nada foi feito de tudo quanto existe. N’Ele estava a vida, e a vida era a luz dos homens» (João 1,2-4). E, no hino que abre a Carta aos Colossenses, lê-se: «Ele é a imagem do Deus invisível, gerado antes de todas as criaturas; pois foi por meio d’Ele que foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, visíveis e invisíveis (…). Todas as coisas foram criadas por meio d’Ele e para Ele. Ele é antes de tudo, e tudo n’Ele subsiste» (Colossenses 1,15-17). A obra da criação é, como se vê, reconduzida a Cristo, Sabedoria de Deus.

A leitura cristã do hino de Provérbios 8, isto é, o fio de ouro ou de sentido que dele se desprende foi, porém, levado mais longe, associando-lhe a melodia do Salmo 104,30, em que se canta: «Envia o teu Espírito, e eles são criados, e renovas a face da terra». Com esta aportação, no rosto da Sabedoria pode ver-se também o Espírito Santo em ação na criação. E aí está a Trindade no alvor da criação. A Sabedoria é Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Mas o Filho, o Verbo é revelado como a Sabedoria incarnada.

«Ó abismo de riqueza e sabedoria e conhecimento de Deus! Como são insondáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos! (…) Porque d’Ele, por Ele e para Ele são todas as coisas. A Ele a glória pelos séculos, ámen!» (Romanos 11,33 e 36).

 

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Santíssima Trindade – Leitura I 12.06.2022 (Prov 8, 22-31)
  2. Santissima Trindade – Leitura II – 12.06.2022 (Rom 5, 21-5)
  3. Domingo da Santíssima Trindade – Ano C – 12.06.2022 -Lecionário
  4. Santissima Trindade – 12.06.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo de Pentecostes – Ano C – 05.06.2022

Viver a Palavra

A Liturgia da Palavra deste Domingo situa temporalmente a descida do Espírito Santo em dois momentos diferentes: a primeira leitura, do Livro dos Atos dos Apóstolos, indica que tudo aconteceu no dia de Pentecostes, isto é, cinquenta dias depois da Páscoa e o texto do Evangelho afirma que os discípulos se encontravam fechados com medo dos judeus «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Sabemos que os textos bíblicos não são relatos jornalísticos preocupados em situar exatamente cada acontecimento no tempo e no espaço, mas escritos para comunicar o acontecimento de Cristo e, assim, cada tempo e cada lugar traduzem a experiência do encontro com Jesus e possuem uma intenção teológica. Contudo, evitando qualquer tentativa forçada de harmonização para superar esta aparente contradição, estas indicações temporais manifestam a estreita ligação entre a Páscoa e o Pentecostes, entre a Ressurreição e o dom do Espírito.

O Espírito Santo é dom do Senhor Jesus Ressuscitado. Antes de partir, Jesus garante que não nos deixará sozinhos (cf. Mt 28,20) e, tendo subido ao Céu, cumprindo a Sua promessa, acompanha a vida e a missão dos Seus discípulos pela força do Espírito Santo. O Livro dos Atos dos Apóstolos, descrevendo a vida da Igreja Nascente, apresenta de modo muito claro como o Espírito precede, acompanha e confirma a missão da comunidade primitiva. O Espírito Santo é força vital da Igreja que assegura a continuidade da obra redentora de Cristo e atua na história como protagonista da missão que a comunidade cristã é chamada a realizar.

Jesus, mostrando as mãos e o lado, sinais que identificam Ressuscitado com o Crucificado, vincula à Sua vida a missão dos discípulos: «assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». A vida cristã é dom acolhido livremente e a nossa missão está indelevelmente unida à missão de Jesus e não faz sentido sem Ele. Por isso, a nossa missão desenvolve-se de olhos postos em Jesus, escutando a Sua palavra, contemplando os Seus gestos e saboreando a Sua ternura e o Seu amor.

A garantia da continuidade entre a missão de Jesus e a nossa missão, entre a obra redentora de Cristo e a ação da Igreja é oferecido pelo dom do Espírito Santo: «há diversidade de dons espirituais, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de ministérios, mas o Senhor é o mesmo. Há diversas operações, mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos».

Contudo, o Espírito é dom – «recebei o Espírito Santo» – e exige de nós a docilidade de coração para que nos deixemos guiar e conduzir. Ele não se impõe, mas propõe caminhos de vida nova, exigindo a coragem e a humildade de deixar os nossos esquemas e comodismos para nos abrirmos à permanente novidade que é dom do Seu amor.

O Espírito Santo, como artífice da comunhão, promovendo a unidade na diversidade, é o grande protagonista da ação da Igreja. Como afirmou o Patriarca Ignace Hazim, Inácio IV de Antioquia: «Sem o Espírito Santo, Deus está longe; Cristo permanece no passado; o Evangelho é letra morta; a Igreja, uma simples organização; a autoridade, despotismo; a missão, propaganda; o culto uma evocação; e a vida cristã, uma moral de escravos. Mas no Espírito Santo o cosmos fica elevado e geme na gestação do Reino; o homem luta contra a carne; Cristo ressuscitado está presente, o Evangelho é poder de vida, a Igreja é ícone da comunhão trinitária; a autoridade, um serviço libertador; a missão, um novo Pentecostes; a liturgia é memorial e antecipação; e toda a vida cristã fica deificada». in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Atos 2, 1-11

«Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem».

Ambiente

Já vimos, no comentário aos textos dos domingos anteriores, que o livro dos “Atos” não pretende ser uma reportagem jornalística de acontecimentos históricos, mas sim ajudar os cristãos – desiludidos porque o “Reino” não chega – a redescobrir o seu papel e a tomar consciência do compromisso que assumiram, no dia do seu batismo.

No que diz respeito ao texto que nos é proposto e que descreve os acontecimentos do dia do Pentecostes, não existem dúvidas de que é uma construção artificial, criada por Lucas com uma clara intenção teológica. Para apresentar a sua catequese, Lucas recorre às imagens, aos símbolos, à linguagem poética das metáforas. Resta-nos descodificar os símbolos para chegarmos à interpelação essencial que a catequese primitiva, pela palavra de Lucas, nos deixa. Uma interpretação literal deste relato seria, portanto, uma boa forma de passarmos ao lado do essencial da mensagem; far-nos-ia reparar na roupagem exterior, no folclore, e ignorar o fundamental. Ora, o interesse fundamental do autor é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, que é assistida pelo Espírito e que é chamada a testemunhar aos homens o projeto libertador do Pai. in Dehonianos

Para a reflexão, considerar as seguintes indicações:

  • Temos, neste texto, os elementos essenciais que definem a Igreja: uma comunidade de irmãos reunidos por causa de Jesus, animada pelo Espírito do Senhor ressuscitado e que testemunha na história o projeto libertador de Jesus. Desse testemunho resulta a comunidade universal da salvação, que vive no amor e na partilha, apesar das diferenças culturais e étnicas. A Igreja de que fazemos parte é uma comunidade de irmãos que se amam, apesar das diferenças? Está reunida por causa de Jesus e à volta de Jesus? Tem consciência de que o Espírito está presente e que a anima? Testemunha, de forma efetiva e coerente, a proposta libertadora que Jesus deixou?
  • Nunca será demais realçar o papel do Espírito na tomada de consciência da identidade e da missão da Igreja… Antes do Pentecostes, tínhamos apenas um grupo fechado dentro de quatro paredes, incapaz de superar o medo e de arriscar, sem a iniciativa nem a coragem do testemunho; depois do Pentecostes, temos uma comunidade unida, que ultrapassa as suas limitações humanas e se assume como comunidade de amor e de liberdade. Temos consciência de que é o Espírito que nos renova, que nos orienta e que nos anima? Damos suficiente espaço à ação do Espírito, em nós e nas nossas comunidades?
  • Para se tornar cristão, ninguém deve ser espoliado da própria cultura: nem os africanos, nem os europeus, nem os sul-americanos, nem os negros, nem os brancos; mas todos são convidados, com as suas diferenças, a acolher esse projeto libertador de Deus, que faz os homens deixarem de viver de costas voltadas, para viverem no amor. A Igreja de que fazemos parte é esse espaço de liberdade e de fraternidade? Nela todos encontram lugar e são acolhidos com amor e com respeito – mesmo os de outras raças, mesmo aqueles de quem não gostamos, mesmo aqueles que não fazem parte do nosso círculo, mesmo aqueles que a sociedade marginaliza e afasta? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 46 (47)

Refrão: Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra.

 

LEITURA II 1 Cor 12, 3b-7.12-13

«Todos nós fomos batizados num só Espírito, para formarmos um só Corpo».

 

Ambiente

A comunidade cristã de Corinto era viva e fervorosa, mas não era uma comunidade exemplar no que diz respeito à vivência do amor e da fraternidade: os partidos, as divisões, as contendas e rivalidades perturbavam a comunhão e constituíam um contratestemunho. As questões à volta dos “carismas” (dons especiais concedidos pelo Espírito a determinadas pessoas ou grupos para proveito de todos) faziam-se sentir com especial acuidade: os detentores desses dons carismáticos consideravam-se os “escolhidos” de Deus, apresentavam-se como “iluminados” e assumiam com frequência atitudes de autoritarismo e de prepotência que não favorecia a fraternidade e a liberdade; por outro lado, os que não tinham sido dotados destes dons eram desprezados e desclassificados, considerados quase como “cristãos de segunda”, sem vez nem voz na comunidade.
Paulo não pode ignorar esta situação. Na Primeira Carta aos Coríntios, ele corrige, admoesta, dá conselhos, mostra a incoerência destes comportamentos, incompatíveis com o Evangelho. No texto que nos é proposto, Paulo aborda a questão dos “carismas”. in Dehonianos

 

 

Para refletir e atualizar a Palavra, considerar os seguintes elementos:

  • Temos todos consciência de que somos membros de um único “corpo” – o corpo de Cristo – e é o mesmo Espírito que nos alimenta, embora desempenhemos funções diversas (não mais dignas ou mais importantes, mas diversas). No entanto, encontramos, com alguma frequência, cristãos com uma consciência viva da sua superioridade e da sua situação “à parte” na comunidade (seja em razão da função que desempenham, seja em razão das suas “qualidades” humanas), que gostam de mandar e de fazer-se notar. Às vezes, vêem-se atitudes de prepotência e de autoritarismo por parte daqueles que se consideram depositários de dons especiais; às vezes, a Igreja continua a dar a impressão – mesmo após o Vaticano II – de ser uma pirâmide no topo da qual há uma elite que preside e toma as decisões e em cuja base está o rebanho silencioso, cuja função é obedecer. Isto faz algum sentido, à luz da doutrina que Paulo expõe?
  • Os “dons” que recebemos não podem gerar conflitos e divisões, mas devem servir para o bem comum e para reforçar a vivência comunitária. As nossas comunidades são espaços de partilha fraterna, ou são campos de batalha onde se digladiam interesses próprios, atitudes egoístas, tentativas de afirmação pessoal?
  • É preciso ter consciência da presença do Espírito: é Ele que alimenta, que dá vida, que anima, que distribui os dons conforme as necessidades; é Ele que conduz as comunidades na sua marcha pela história. Ele foi distribuído a todos os crentes e reside na totalidade da comunidade. Temos consciência da presença do Espírito e procuramos ouvir a sua voz e perceber as suas indicações? Temos consciência de que, pelo facto de desempenharmos esta ou aquela função, não somos as únicas vozes autorizadas a falar em nome do Espírito? in Dehonianos.

 

 

SEQUÊNCIA DO PENTECOSTES

Vinde, ó santo Espírito,
vinde, Amor ardente,
acendei na terra
vossa luz fulgente.

Vinde, Pai dos pobres:
na dor e aflições,
vinde encher de gozo
nossos corações.

Benfeitor supremo
em todo o momento,
habitando em nós
sois o nosso alento.

Descanso na luta
e na paz encanto,
no calor sois brisa,
conforto no pranto.

Luz de santidade,
que no Céu ardeis,
abrasai as almas
dos vossos fiéis.

Sem a vossa força
e favor clemente,
nada há no homem
que seja inocente.

Lavai nossas manchas,
a aridez regai,
sarai os enfermos
e a todos salvai.

Abrandai durezas
para os caminhantes,
animai os tristes,
guiai os errantes.

Vossos sete dons
concedei à alma
do que em Vós confia:

Virtude na vida,
amparo na morte,
no Céu alegria.

 

EVANGELHO Jo 20, 19-23

«Veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes: «A paz esteja convosco».

«Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor».

«Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

 

Ambiente

Este texto (lido já no segundo domingo da Páscoa) situa-nos no cenáculo, no próprio dia da ressurreição. Apresenta-nos a comunidade da nova aliança, nascida da ação criadora e vivificadora do Messias. No entanto, esta comunidade ainda não se encontrou com Cristo ressuscitado e ainda não tomou consciência das implicações da ressurreição. É uma comunidade fechada, insegura, com medo… Necessita de fazer a experiência do Espírito; só depois, estará preparada para assumir a sua missão no mundo e dar testemunho do projeto libertador de Jesus.

Nos “Atos”, Lucas narra a descida do Espírito sobre os discípulos no dia do Pentecostes, cinquenta dias após a Páscoa (sem dúvida por razões teológicas e para fazer coincidir a descida do Espírito com a festa judaica do Pentecostes, a festa do dom da Lei e da constituição do Povo de Deus); mas João situa no anoitecer do dia de Páscoa a receção do Espírito pelos discípulos. in Dehonianos

 

Para a reflexão, considerar as seguintes coordenadas:

  • A comunidade cristã só existe de forma consistente, se está centrada em Jesus. Jesus é a sua identidade e a sua razão de ser. É n’Ele que superamos os nossos medos, as nossas incertezas, as nossas limitações, para partirmos à aventura de testemunhar a vida nova do Homem Novo. As nossas comunidades são, antes de mais, comunidades que se organizam e estruturam à volta de Jesus? Jesus é o nosso modelo de referência? É com Ele que nos identificamos, ou é num qualquer ídolo de pés de barro que procuramos a nossa identidade? Se Ele é o centro, a referência fundamental, têm algum sentido as discussões acerca de coisas não essenciais, que às vezes dividem os crentes?
  • Identificar-se como cristão significa dar testemunho diante do mundo dos “sinais” que definem Jesus: a vida dada, o amor partilhado. É esse o testemunho que damos? Os homens do nosso tempo, olhando para cada cristão ou para cada comunidade cristã, podem dizer que encontram e reconhecem os “sinais” do amor de Jesus?
  • As comunidades construídas à volta de Jesus são animadas pelo Espírito. O Espírito é esse sopro de vida que transforma o barro inerte numa imagem de Deus, que transforma o egoísmo em amor partilhado, que transforma o orgulho em serviço simples e humilde… É Ele que nos faz vencer os medos, superar as cobardias e fracassos, derrotar o ceticismo e a desilusão, reencontrar a orientação, readquirir a audácia profética, testemunhar o amor, sonhar com um mundo novo. É preciso ter consciência da presença contínua do Espírito em nós e nas nossas comunidades e estar atentos aos seus apelos, às suas indicações, aos seus questionamentos.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A descida do Espírito Santo narrada pela primeira leitura é marcada por um conjunto de sinais que devem ser sublinhados ao longo da leitura. Os advérbios como «subitamente» ou indicações como «um rumor semelhante a forte rajada de vento» ou «Atónitos e maravilhados» devem ser lidas de modo que a expressividade que o texto apresenta esteja presente na proclamação. Uma atenção especial deve estar presente na enumeração das diversas proveniências daqueles que se encontravam em Jerusalém. Além da dificuldade de algumas das palavras, trata-se de uma longa enumeração.

Na segunda leitura, um primeiro aspeto a ter em conta é a construção do texto, onde a dicotomia entre a diversidade e a unidade deve ser bem proclamada porque é central para compreender a leitura: «há diversidade… mas…». A secção final introduzida pela conjunção «na verdade» deve ser proclamada com uma especial atenção pois apresenta a conclusão e síntese de todo o texto.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

O Espírito Santo e nós

O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e vincula os seus discípulos à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aorde horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos todos reunidos no Cenáculo e varridos ou recriados pelo vento impetuoso do Espírito, que varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós, novo Mestre que orienta e guia a nossa vida. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna. Entenda-se aqui por «língua materna», não a língua do país em que nascemos, português no nosso caso, mas aquela linguagem que existe entre a mãe e o seu bebé, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –, do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

A tradição situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas. É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, um local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos conheceis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão.

Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas que atinge diretamente as pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (v. 31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (v. 34). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

Nós somos do tempo da missão do Espírito. Note-se a fortíssima vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28).

Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

O medo não habita a nossa casa

O medo transforma a nossa casa em fortaleza

Tranca portas e janelas

Esconde-se debaixo da mesa.

Mas vem Jesus e senta-nos à mesa

Começa a contar histórias e estrelas

Leva-nos até ao colo de Abraão, até à Criação,

Sopra sobre nós um vento novo,

Rasga uma estrada direitinha ao coração:

Chama-se Perdão, Espírito, Amor, Nova Criação.

Varrido para o canto da casa pelo vento,

Rapidamente todo o medo arde.

Ardem também bolsas, portas e paredes,

E surge um lume novo a arder dentro de nós

Mas esse não nos queima nem o podemos apagar.

Estamos lá tantos à roda desse vento, desse fogo,

Com esse vento, com esse fogo dentro,

Portugueses, russos, gregos e chineses,

Começamos a falar e tão bem nos entendemos,

Que custa a crer que tenhamos passaportes diferentes.

E afinal não temos.

Vendo melhor, maternais mãos invisíveis nos embalam,

Nos sustentam.

Sentimos que estamos a nascer de novo,

Percebemos que somos irmãos,

Filhos renascidos deste vento, deste lume.

E não é verdade que falamos,

Mas que alguém dentro de nós fala por nós,

Chama por Deus,

Como um menino pelo Pai.

 

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Domingo Pentecostes – Leitura I – 05.06.2022 (Act 2,1-11)
  2. Domingo Pentecostes – Leitura II – 05.06.2022 (1 Cor 12,3b7-7.12-13)
  3. Domingo de Pentecostes – Ano C – 05.06.2022 – Lecionário
  4. Domingo de Pentecostes – Ano C – 05.06.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo da Ascensão – Ano C – 29.05.2022

Viver a Palavra

Depois de ter ressuscitado e se ter manifestado aos Seus discípulos, Jesus «levou os discípulos até junto de Betânia». Este local será sempre lugar de acolhimento, amizade e intimidade. Lugar para servir o Mestre com a dedicação activa de Marta e com a escuta contemplativa de Maria. E é, precisamente neste lugar, que Jesus renova no coração dos discípulos o amor e a intimidade e «erguendo as mãos, abençoou-os» e «enquanto os abençoava, afastou-Se deles e foi elevado ao Céu».

Segundo o livro dos Actos dos Apóstolos esta bênção é acompanhada por uma promessa: «esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu». E esta promessa possui como garantia o dom do Espírito que os constitui testemunhas: «recebereis a força do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra».

A Ascensão de Jesus coloca-nos de olhar fito no Céu contemplando o dom da Sua bênção. Na Sagrada Escritura, a bênção é sempre lugar de acção de graças, de fecundidade e de vida. Ao partir para ficar connosco de um modo novo, Jesus não deixa um juízo ou um lamento, mas uma palavra bela sobre nós e sobre o mundo, uma palavra de enorme desafio e confiança sobre a nossa história. E não tenho dúvidas que a terá proferido com um sorriso.

Como os discípulos, olhando o Céu, recordamos a meta da nossa caminhada. Somos peregrinos a caminho do Céu, chamados à santidade tal como nos recorda a oração colecta da missa: «a ascensão de Cristo, vosso Filho, é a nossa esperança: tendo-nos precedido na glória como nossa Cabeça, para aí nos chama como membros do seu Corpo». Porém, curiosamente a narrativa da Ascensão no Livro dos Actos dos Apóstolos estabelece uma continuidade entre a vinda gloriosa do Senhor e o seu caminhar histórico, pois o verbo grego usado para designar a partida de Jesus para o Céu é o mesmo que indica o caminho que Ele realiza pelas estradas da Judeia e da Galileia. Deste modo, a vinda escatológica de Jesus está em estreita ligação com o Seu caminho quotidiano. O Jesus, que sobe ao Céu e que virá um dia na glória, é Aquele que percorreu os caminhos da Palestina, anunciando uma mensagem de Paz e Perdão, estabelecendo gestos de proximidade, bondade e misericórdia. Por isso, para conhecer Jesus, confessá-lo e testemunhá-lo com a vida não é necessário olhar o Céu mas recordar os Seus passos, contemplar os Seus gestos e deixar-se apaixonar pelo amor depositado na Sua entrega. Testemunhar é dar rosto Àquele que não está visível, mas que se faz tangível nos gestos concretos de amor e misericórdia que os Seus discípulos são chamados a realizar.

A Ascensão de Jesus inaugura o tempo da Igreja e estabelece os discípulos como continuadores da obra redentora de Cristo, para que o anúncio do arrependimento e do perdão possa chegar a todos os lugares, a todas as pessoas e todas as situações. O arrependimento e a conversão não são um imperativo mas uma oferta, não são um dever mas uma oportunidade para que a nossa vida possa ser um lugar de beleza e o mundo um lugar mais feliz. O perdão não é um apagar ingénuo do passado, mas sinal e prova do amor criador que renova todas as coisas, cura as feridas e inaugura um tempo novo. Deste modo, como anunciadores da conversão e do perdão, os discípulos de Jesus tornam-se testemunhas do amor misericordioso do Pai e na força do Espírito fazem ecoar no mundo a certeza de que Jesus está vivo e acompanha a Sua Igreja na missão evangelizadora. in Voz Portucalense

No Domingo, 29.05.2022, Solenidade da Ascensão do Senhor, assinala-se o 56.º Dia Mundial das Comunicações Sociais. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem intitulada: «Escutar com o ouvido do coração». Para que este dia não seja assinalado apenas com o ofertório para os Meios de Comunicação Social, pastoralmente será muito útil um encontro de reflexão e aprofundamento desta mensagem do Papa Francisco que apresenta um conjunto de desafios e interpelações.

LEITURA I – Actos 1, 1-11

«Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu? Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu».

Ambiente

O livro dos “Actos dos Apóstolos” dirige-se a comunidades que vivem num certo contexto de crise. Estamos na década de 80, cerca de cinquenta anos após a morte de Jesus. Passou já a fase da expectativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o “Reino” e há uma certa desilusão. As questões doutrinais trazem alguma confusão; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida e as comunidades instalam-se na mediocridade; falta o entusiasmo e o empenho… O quadro geral é o de um certo sentimento de frustração, porque o mundo continua igual e a esperada intervenção vitoriosa de Deus continua adiada. Quando vai concretizar- se, de forma plena e inequívoca, o projecto salvador de Deus?

É neste ambiente que podemos inserir o texto que hoje nos é proposto como primeira leitura. Nele, o catequista Lucas avisa que o projecto de salvação e libertação que Jesus veio apresentar passou (após a ida de Jesus para junto do Pai) para as mãos da Igreja, animada pelo Espírito. A construção do “Reino” é uma tarefa que não está terminada, mas que é preciso concretizar na história e exige o empenho contínuo de todos os crentes. Os cristãos são convidados a redescobrir o seu papel, no sentido de testemunhar o projecto de Deus, na fidelidade ao “caminho” que Jesus percorreu.in Dehonianos

 

Para reflexão

Ter em conta, para a reflexão e actualização, os seguintes elementos:

♦ A ressurreição/ascensão de Jesus garante-nos que uma vida vivida na fidelidade aos projectos do Pai é uma vida destinada à glorificação, à comunhão definitiva com Deus. Quem percorre o mesmo caminho de Jesus subirá, como Ele, à vida plena.

♦ A ascensão de Jesus recorda-nos, sobretudo, que Ele foi elevado para junto do Pai e nos encarregou de continuar a tornar realidade o seu projecto libertador no meio dos homens nossos irmãos. É essa a atitude que tem marcado a caminhada histórica da Igreja? Ela tem sido fiel à missão que Jesus, ao deixar este mundo, lhe confiou?

♦ O nosso testemunho tem transformado e libertado a realidade que nos rodeia?

Qual o real impacto desse testemunho na nossa família, no local onde desenvolvemos a nossa actividade profissional, na nossa comunidade cristã ou religiosa?

♦ Não é invulgar ouvirmos dizer que os seguidores de Jesus vivem a olhar para o céu e ignoram os dramas da terra. Estamos, efectivamente, atentos aos problemas e às angústias dos homens, ou vivemos de olhos postos no céu, num espiritualismo alienado? Sentimo-nos questionados pelas inquietações, pelas misérias, pelos sofrimentos, pelos sonhos, pelas esperanças que enchem o coração dos que nos rodeiam? Sentimo-nos solidários com todos os homens? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 46 (47)

Refrão: Ergue-Se Deus, o Senhor, em júbilo e ao som da trombeta.

 

LEITURA II Ef 1, 17-23

«Tudo submeteu aos seus pés e pô-l’O acima de todas as coisas como Cabeça de toda a Igreja, que é o seu Corpo».

 

Ambiente

A Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia, numa altura em que Paulo está na prisão (em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60. Alguns vêem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que a missão do apóstolo está praticamente terminada na Ásia.

Em concreto, o texto que nos é proposto aparece na primeira parte da carta e faz parte de uma acção de graças, na qual Paulo agradece a Deus pela fé dos Efésios e pela caridade que eles manifestam com todos os irmãos na fé.in Dehonianos

 

Para reflexão

Ter em conta, na reflexão, as seguintes linhas:

♦ Na nossa peregrinação pelo mundo, convém termos sempre presente “a esperança a que fomos chamados”. A ressurreição de Cristo é a garantia da nossa própria ressurreição. Formamos com Ele um “corpo”, destinados à vida plena. Esta perspectiva tem de dar-nos a força de enfrentar a história e de avançar – apesar das dificuldades – nesse caminho do amor e da entrega total que Cristo percorreu.

♦ Dizer que fazemos parte do “corpo de Cristo” significa que devemos viver numa comunhão total com Ele e que nessa comunhão recebemos, a cada instante, a vida que nos alimenta. Significa, também, viver em comunhão, em solidariedade total com todos os nossos irmãos, membros do mesmo corpo, alimentados pela mesma vida.

♦ Dizer que a Igreja é o “pleroma” de Cristo significa que temos a obrigação de testemunhar Cristo, de torná-l’O presente no mundo, de levar à plenitude o projecto de libertação que Ele começou em favor dos homens. Essa tarefa só estará acabada quando, pelo testemunho e pela acção dos crentes, Cristo for “um em todos”. in Dehonianos.

 

EVANGELHO Lc 24, 46-53

«Vós sois testemunhas disso. Eu vos enviarei Aquele que foi prometido por meu Pai».

«Permanecei na cidade, até que sejais revestidos com a força do alto».

«Eles prostraram-se diante de Jesus, e depois voltaram para Jerusalém com grande alegria».

Ambiente

O Evangelho de hoje situa-nos no dia de Páscoa. Cristo já se manifestou aos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) e aos onze, reunidos no cenáculo (cf. Lc 24,36-43). No texto que nos é proposto, apresentam-se as últimas instruções de Jesus (cf. Lc 24,44-49) e a ascensão (cf. Lc 24,50-53).

Ao contrário dos “Actos”, ressurreição, aparições de Jesus ressuscitado aos discípulos e ascensão são colocados – aqui – no mesmo dia, o que parece mais correcto do ponto de vista teológico: ressurreição e ascensão não se podem diferenciar; são apenas formas humanas de falar da passagem da morte à vida definitiva junto de Deus. in Dehonianos

 

Para reflexão

Para a reflexão, considerar as seguintes indicações:

♦ A ressurreição/ascensão de Jesus convida-nos a ver a vida com outros olhos – os olhos da esperança. Diz-nos que o sofrimento, a perseguição, o ódio, a morte, não são a última palavra para definir o quadro do nosso caminho; diz-nos que no final de um caminho percorrido na doação, na entrega, no amor vivido até às últimas consequências, está a vida definitiva, a vida de comunhão com Deus. Esta esperança permite-nos enfrentar o medo, os nossos limites humanos, o fanatismo, o egoísmo dos fazedores de pecado e permite-nos olhar com serenidade para esse qualquer coisa de novo que nos espera, para esse futuro de vida plena que é o nosso destino final.

♦ A ascensão de Jesus e, sobretudo, as palavras finais de Jesus, que convocam os discípulos para a missão, sugerem a nossa responsabilidade na construção desse mundo novo onde habita a justiça e a paz; sugerem que a proposta libertadora que Jesus fez a todos os homens está agora nas nossas mãos e que é nossa responsabilidade torná-la realidade; sugerem que nós, os seguidores de Jesus, temos de construir, com o esforço de todos os dias, o novo céu e a nova terra. Sentimos, de facto, esta responsabilidade? Preocupamo-nos em tornar realidade no mundo os gestos libertadores de Cristo? Procuramos construir, no dia a dia, esse mundo novo de justiça, de fraternidade, de liberdade e de paz?

♦ A alegria que brilha nos olhos e nos corações desses discípulos que testemunham a entrada definitiva de Jesus na vida de Deus tem de ser uma realidade que transparece na nossa vida. Os seguidores de Jesus, iluminados pela fé, têm de testemunhar, com a sua alegria, a certeza de que os espera, no final do caminho, a vida em plenitude; e têm de testemunhar, com a sua alegria, a certeza de que o projecto salvador e libertador de Deus está a actuar no mundo, está a transformar os corações e as mentes, está a fazer nascer, dia a dia, o Homem Novo. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura é marcada pelo tom narrativo da Ascensão de Jesus ao Céu diante dos Seus discípulos. Além do tom narrativo que deve marcar a proclamação da leitura, é necessário uma atenção especial às diversas intervenções de discurso directo, de modo particular à primeira – «da qual – disse Ele – Me ouvistes falar (…)» – pois logo após iniciar o discurso directo se indica o autor daquela intervenção.

Na segunda leitura, além das frases longas com diversas orações que são habituais na literatura paulina e que exigem um especial cuidado nas pausas e na respiração, é necessário ter em atenção as duas enumerações presentes no texto.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

O MILAGRE DE UM OLHAR CHEIO DE JESUS

 Lucas 24,46-53: estupendo texto que encerra o Evangelho de Lucas e que hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, é solenemente proclamado para nós.

É a terceira vez que, neste Capítulo 24 do Evangelho de Lucas, o Evangelista volta à temática da necessidade do sofrimento de Jesus em ordem à Sua Ressurreição dos mortos (Lucas 24,7.26.46-47). Todavia, nesta terceira vez (Lucas 24,46-47), é acrescentado um dado novo de extrema importância, sendo que os acontecimentos incluídos na necessidade divina são agora três, e não dois: a Paixão (1), a Ressurreição (2) e a Pregação (kêrygma) a todas as nações (3). Portanto, também a MISSÃO surge incluída na necessidade divina. Não está à margem dos acontecimentos de Jesus, nem constitui em relação a eles um acrescento, mas está completamente vinculada a eles e a Ele. É, por isso, «no Seu Nome» (Lucas 24,47), isto é, assente na Sua autoridade, e não em qualquer outra, que esta Pregação deve ser feita, e o seu conteúdo é a Conversão e o Perdão. Conversão teológica, isto é, mentalidade nova por graça recebida e assente no facto de que o Crucificado é Revelação gloriosa de Deus, e não ignomínia e derrota! Perdão: significa que o Amor de Deus é maior que o nosso pecado! Este Anúncio é para ser feito a «todas as nações», a todos os corações: âmbito mais amplo e intenso possível!

Mas esta MISSÃO é para levar por diante com a humildade e persistência do testemunho quotidiano e com a roupa nova (endýô) e a dinâmica nova (dýnamis) do Espírito (Lucas 24,49), belíssima e fortíssima expressão que o Evangelho de hoje transporta até nós. Nas novas coordenadas do Espírito, os Acontecimentos de Jesus, de per si circunscritos no espaço e no tempo, alargam-se a todos os tempos e lugares, e insinuam-se no subtilíssimo segredo de cada coração humano.

Imensa fraternidade em ascendente movimento filial, como uma seara nova e verdejante a ondular ao vento suavíssimo do Espírito, elevando-se da nossa terra do Alto visitada e semeada, ternamente por Deus olhada, agraciada, abençoada. Bênção desde o início do Evangelho de Lucas até agora diferida, porque a mudez do sacerdote Zacarias não lha permitiu então pronunciar (Lucas 1,22). Jesus, novo, terno e eterno sacerdote, elevando-se para o céu, mas ficando mais presente do que nunca em cada coração, abençoa agora os seus discípulos (Lucas 24,50-51), isto é, une-se a eles e a nós e une-nos a Ele, união forte e inseparável, tal é o significado da bênção bíblica. Nova e mais intensa forma de presença. Não é um passo atrás, mas em frente. Por isso, uma nova e «grande Alegria» (só aqui e em Lucas 2,10), inclusão literária, nos impele, deixando-nos no tempo novo e jovem da MISSÃO!

O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma hoje esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê: aor. pass. de epaírô), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).

Tanto VER. Da panóplia de verbos registrados (blépôatenízôhoráôemblépôtheáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que «o que» se vê, estes verbos acentuam «o modo como» se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Como bem se pode verificar, ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. Importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

Guardemos este Olhar e prossigamos. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha”. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

Outro impressionante condensado de olhares marca este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáôatenízôblépôepéchôAtenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de Maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [«sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [«lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [«no Olival»] – que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster – e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que é de 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (vv. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (vv. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (vv. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (vv. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão de Cristo, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

Quando a Palavra de Deus,

Como uma enchente,

Encheu o tempo,

Dando ao homem a necessária oportunidade de ter de responder

E de não poder não responder,

O Filho de Deus,

Sem deixar de ser Deus,

Fez-se também filho de Maria,

Jesus,

Assumindo assim também a nossa frágil natureza humana.

Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,

É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,

Jesus,

E é desta humanidade glorificada,

À direita de Deus sentada,

Que vem o Espírito Santo para nós.

É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,

Pois se Eu não for,

O Espírito Santo não virá para vós.

Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,

Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,

Da qual,

Por contágio sacramental,

Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.

Senhor Jesus,

Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,

E derrama no nosso humano coração

O Espírito da consolação,

Da paz e da alegria.

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Domingo da Ascensão do Senhor – 29.05.2022 – Leitura I (Atos 1, 1-11)
  2. Domingo da Ascensão do Senhor – 29.05.2022 – Resto Leitura I (Atos 1, 1-11)
  3. Domingo da Ascensão do Senhor – 29.05.2022 – Leitura II (Ef 1, 17-23)
  4. Domingo da Ascensão – Ano C – 29.05.2022 – Lecionário
  5. Domingo da Ascensão – Ano C – 29.05.2022 – Oração Universal
  6. ANO C – Ano de Lucas

Domingo VI da Páscoa – Ano C – 22.05.2022

Viver a Palavra

A vida cristã é revestida da grande certeza de que Jesus está vivo e de que a Sua vida ressuscitada anima a vida dos crentes na força do Espírito Santo. Como nos recorda o livro do Apocalipse, os novos céus e a nova terra, a cidade santa de Jerusalém, não precisa mais de um templo construído à maneira dos homens, porque o verdadeiro Templo é «o Senhor Deus omnipotente e o Cordeiro».

Jesus Cristo, que por nós morreu e ressuscitou, é o caminho que nos conduz ao Pai, o único Mediador entre Deus e os homens, porquele é a lâmpada que ilumina os trilhos que somos chamados a percorrer. Deste modo, como discípulos missionários, batizados em Cristo e guiados pelo Espírito Santo, somos chamados a ler as dificuldades e sofrimentos à luz do Senhor ressuscitado para que vida de cada homem e de cada mulher se transfigure pela luz nova que brota da Páscoa de Jesus Cristo.

No Evangelho deste Domingo, escutamos parte do discurso de despedida de Jesus e nele apresentam-se as coordenadas que definem a vida cristã: o amor, a escuta da Palavra e uma vida animada pelo Espírito Santo que se torna lugar de Paz.

«Quem Me ama guardará a minha palavra, e meu Pai o amará; Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada». Deus é amor e só poderemos entrar em relação com Ele numa dinâmica de enamoramento que transforma a nossa vida numa resposta amorosa Àquele que nos amou primeiro. Contudo, o amor a Deus que se concretiza no amor aos irmãos, não é uma mera afeição, mas um lugar de diálogo que pressupõe em primeiro lugar uma verdadeira atitude de escuta da Palavra que transforma a nossa vida num lugar que Deus habita. Deus quer habitar a nossa frágil humanidade e preenchê-la com o Seu amor, para que o nosso querer e agir se moldem pela força evangelizadora da Sua bondade e ternura.

Deste modo, fazer da nossa vida um lugar que Deus habita é uma tarefa permanente da nossa vida cristã e realiza-se pela força do Paráclito que o Pai envia para que no nosso coração se reavivem em cada dia as palavras de amor que Jesus nos dirige.

Animados pelo Espírito Santo, reconhecemos que não caminhamos sozinhos e recordamos o compromisso de abraçar juntos a construção do Reino de Deus. Somos Igreja a caminho e diante das dificuldades, desafios, dúvidas e incertezas do tempo e da história, devemos juntos discernir a vontade de Deus.

Assim contemplamos a comunidade primitiva, que levando a cabo a missão evangelizadora, encontra novos desafios que precisam de novas respostas. As primeiras comunidades cristãs fazem a experiência daquilo que hoje chamamos sinodalidade, palavra que traduz a necessidade de caminhar juntos, de operar juntos, de tomar juntos as decisões. Aqueles que fazem parte da comunidade reúnem-se com os Apóstolos sob o olhar de Cristo, iluminados pela Escritura e solicitam a ajuda do Espírito Santo. Em conjunto discutem os problemas colocados à Igreja, em conjunto decidem e em conjunto alegram-se pelo progresso do Evangelho.

Este é o caminho que devemos trilhar diante das dificuldades que surgem na vida das nossas comunidades: caminhar juntos, valorizando a diversidade de dons, carismas, ministérios e serviços. Guiados pelo Espírito Santo, a diversidade sublinha e fortalece a comunhão e unidade, e torna-se lugar da Paz nova que o Ressuscitado oferece.in Voz Portucalense

                                                                        *********

No próximo Domingo, 29.05.2022, Solenidade da Ascensão do Senhor, assinala-se o 56.º Dia Mundial das Comunicações Sociais. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem intitulada: «Escutar com o ouvido do coração». Para que este dia não seja assinalado apenas com o ofertório para os Meios de Comunicação Social, pastoralmente será muito útil um encontro de reflexão e aprofundamento desta mensagem do Papa Francisco que apresenta um conjunto de desafios e interpelações.

 

LEITURA I –. Actos 15, 1-2.22-29

«O Espírito Santo e nós decidimos não vos impor mais nenhuma obrigação, além destas que são necessárias».

Ambiente

A entrada maciça de crentes gentios na comunidade cristã (sobretudo após a primeira viagem missionária de Paulo e Barnabé) vai trazer a lume uma questão essencial: deve impor-se aos crentes de origem pagã a prática da Lei de Moisés? Não se trata, aqui, de um problema acidental ou secundário, de uma medida disciplinar ou de puros costumes, mas de algo tão fundamental como saber se a salvação vem através da circuncisão e da observância da “Torah” judaica, ou única e exclusivamente por Cristo. Dito de outra forma: Jesus Cristo é o único Senhor e salvador, ou são precisas outras coisas além d’Ele para chegar a Deus e para receber d’Ele a graça da salvação?

A comunidade cristã de Antioquia (onde o problema se põe com especial acuidade) não tem a certeza sobre o caminho a seguir. Paulo e Barnabé acham que Cristo basta; mas os “judaizantes” – cristãos de origem judaica, que conservam as práticas tradicionais do judaísmo – defendem que os ritos prescritos pela “Torah” também são necessários para a salvação. Decide-se, então, enviar uma delegação a Jerusalém, a fim de consultar os Apóstolos e os anciãos acerca da questão. Estamos por volta do ano 49. in Dehonianos

 

Para reflexão

Considerar, para a reflexão, as seguintes linhas:

♦ A questão de cumprir ou não os ritos da Lei de Moisés é uma questão ultrapassada, que hoje não preocupa nenhum cristão; mas este episódio vale, sobretudo, pelo seu valor exemplar. Faz-nos pensar, por exemplo, em rituais ultrapassados, em práticas de piedade vazias e estéreis, em fórmulas obsoletas, que exprimiram num certo contexto, mas já não exprimem o essencial da proposta cristã. Faz-nos pensar na imposição de esquemas culturais – ocidentais, por exemplo – que muitas vezes não têm nada a ver com a forma de expressão de certas culturas… O essencial do cristianismo não pode ser vivido sem o concretizar em formas determinadas, humanas e, por isso, condicionadas e finitas. Mas é necessário distinguir o essencial do acessório; o essencial deve ser preservado e o acessório deve ser constantemente atualizado. Quais são os ritos e as práticas decididamente obsoletos, que impedem o homem de hoje de redescobrir o núcleo central da mensagem cristã? Será que hoje não estamos a impedir, como outrora, o nascimento de Cristo para o mundo, mantendo-nos presos a esquemas e modos de pensar e de viver que têm pouco a ver com a realidade do mundo que nos rodeia?

♦ É necessário ter presente que o essencial é Cristo e a sua proposta de salvação.
Essa é que é a proposta revolucionária que temos para apresentar ao mundo. O resto são questões cuja importância não nos deve distrair do essencial.

♦ Devemos também ter consciência da presença do Espírito na caminhada da Igreja de Jesus. No entanto, é preciso escutá-l’O, estar atento às interpelações que Ele lança, saber ler as suas indicações nos sinais dos tempos e nas questões que o mundo nos apresenta… Estamos verdadeiramente atentos aos apelos do Espírito?

♦ É preciso aprender com a forma como os Apóstolos responderam aos desafios dos tempos: com audácia, com imaginação, com liberdade, com desprendimento e, acima de tudo, com a escuta do Espírito. É assim que a Igreja de Jesus deve enfrentar hoje os desafios do mundo.in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 66 (67)

Refrão: Louvado sejais, Senhor, pelos povos de toda a terra.

 

LEITURA II Ap 21, 10-14.22-23

«A cidade não precisa da luz do sol nem da lua, porque a glória de Deus a ilumina, e a sua lâmpada é o Cordeiro».

 

 

Ambiente

Continuamos a ler a parte final do livro do “Apocalipse”. Nela, João apresenta-nos o resultado da intervenção definitiva de Deus no mundo: depois da vitória de Deus sobre as forças que oprimem o homem e o privam da vida plena, nascerá a comunidade nova e santa, a criação definitiva de Deus, o novo céu e a nova terra.

A liturgia do passado domingo apresentou-nos um primeiro quadro dessa nova realidade; hoje, a mesma realidade é descrita através de um segundo quadro – o da “Jerusalém messiânica”.in Dehonianos

 

Para reflexão

Ter em conta as seguintes indicações para reflexão:

♦ Já o dissemos a propósito da segunda leitura do passado domingo: o profeta João garante-nos que as limitações impostas pela nossa finitude, as perseguições que temos de enfrentar por causa da verdade e da justiça, os sofrimentos que resultam dos nossos limites, não são a última palavra; espera-nos, para além desta terra, a vida plena, face a face com Deus. Esta certeza tem de dar um sentido novo à nossa caminhada e alimentar a nossa esperança.

♦ A Igreja em marcha pela história não é, ainda, essa comunidade messiânica da vida plena de que fala esta leitura; mas tem de apontar nesse sentido e procurar ser, apesar do pecado e das limitações dos homens, um anúncio e uma prefiguração dessa comunidade escatológica da salvação, que dá testemunho da utopia e que acende no mundo a luz de Deus. A humanidade necessita desse testemunho.

♦ Ainda que esta realidade de vida plena, de felicidade total, só aconteça na “nova Jerusalém”, ela tem de começar a ser construída desde já nesta terra. Deve ser essa a tarefa que nos motiva, que nos empenha e que nos compromete: a construção de um mundo de justiça, de amor e de paz, que seja cada vez mais um reflexo do mundo futuro que nos espera.in Dehonianos.

 

EVANGELHO Jo 14, 23-29

«Quem Me ama guardará a minha palavra, e meu Pai o amará; Nós viremos a ele e faremos nele a nossa morada.».

«Se Me amásseis, ficaríeis contentes por Eu ir para o Pai, porque o Pai é maior do que Eu».

 

Ambiente

Continuamos no contexto da “ceia de despedida”. Jesus, que acaba de fundar a sua comunidade, dando-lhe por estatuto o mandamento do amor (cf. Jo 13,1-17;13,33-35), vai agora explicar como é que essa comunidade manterá, após a sua partida, a relação com Ele e com o Pai.

Nos versículos anteriores ao texto que nos é proposto, Jesus apresentou-Se como “o caminho” (cf. Jo 14,6) e convidou os discípulos a percorrer esse mesmo “caminho” (cf. Jo 14,4-5). O que é que isso significa? Jesus, enquanto esteve no mundo, percorreu um “caminho” – o da entrega ao homem, o do serviço, o do amor total; é nesse “caminho que o homem” – o Homem Novo que Jesus veio criar – se realiza. A comunidade de Jesus tem, portanto, que percorrer esse “caminho”. A metáfora do “caminho” expressa o dinamismo da vida que é progressão; percorrê-lo, é alcançar a plena maturidade do Homem Novo, do homem que desenvolveu todas as suas potencialidades, do homem recriado para a vida definitiva. O final desse “caminho” é o amor radical, a solidariedade total com o homem. Nesse “caminho”, encontra-se o Pai. Os discípulos, no entanto, estão inquietos e desconcertados. Será possível percorrer esse “caminho” se Jesus não caminhar ao lado deles? Como é que eles manterão a comunhão com Jesus e como receberão dele a força para doar, dia a dia, a própria vida? in Dehonianos

 

Para reflexão

A reflexão deste texto pode contemplar as seguintes linhas:

♦ Falar do “caminho” de Jesus é falar de uma vida gasta em favor dos irmãos, numa doação total e radical, até à morte. Os discípulos são convidados a percorrer, com Jesus, esse mesmo “caminho”. Paradoxalmente, dessa entrega (dessa morte para si mesmo) nasce o Homem Novo, o homem na plenitude das suas possibilidades, o homem que desenvolveu até ao extremo todas as suas potencialidades. É esse “caminho” que eu tenho vindo a percorrer? A minha vida tem sido doação, entrega, dom, amor até ao extremo? Tenho procurado despir-me do egoísmo e do orgulho que impedem o Homem Novo de aparecer?

♦ A comunhão do crente com o Pai e com Jesus não resulta de momentos mágicos nos quais, através da recitação de certas fórmulas, a vida de Deus bombardeia e inunda incondicionalmente o crente; mas a intimidade e a comunhão com Jesus e com o Pai estabelece-se percorrendo o caminho do amor e da entrega, numa doação total aos irmãos. Quem quiser encontrar-se com Jesus e com o Pai, tem de sair do egoísmo e aprender a fazer da sua vida um dom aos homens.

♦ É impressionante essa pedagogia de um Deus – o nosso Deus – que nos deixa ser os construtores da nossa própria história, mas não nos abandona. De forma discreta, respeitando a nossa liberdade, Ele encontrou formas de continuar connosco, de nos animar, de nos ajudar a responder aos desafios, de nos recordar que só nos realizaremos plenamente na fidelidade ao “caminho” de Jesus.

♦ O cristão tem de estar, no entanto, atento à voz do Espírito, sensível aos apelos do Espírito; tem de procurar detetar os novos caminhos que o Espírito propõe; tem de estar na disposição de se deixar questionar e de refazer a sua vida, sempre que o Espírito lhe dá a entender que ela está a afastar-se do “caminho” de Jesus. Estamos sempre atentos aos sinais do Espírito e disponíveis para enfrentar os seus desafios? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura apresenta um tom fortemente narrativo, tendo uma frase em discurso direto e uma carta enviada aos «irmãos de origem pagã residentes em Antioquia, na Síria e na Cilícia». A proclamação desta leitura, além do cuidado com as frases longas e com diversas orações, deve ter presente a articulação entre os diversos elementos que compõe o texto.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, contudo, isto não deve descurar uma acurada preparação tendo em atenção as pausas e as respirações sobretudo nas frases mais longas.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

A PAZ QUE SÓ DEUS DÁ

 

O texto que o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 14,23-29) nos oferece enquadra-se naquele monumental Testamento que, no IV Evangelho, Jesus pronuncia, em ondas sucessivas, após a Ceia com os seus Discípulos (João 13,12-17,26). Neste imenso arco textual, cujas linhas temáticas ou de construção vêm e refluem e voltam a vir, à maneira das ondas do mar que vêm sobre a praia, refluem e voltam, assistimos hoje ao segundo dos cinco dizeres de Jesus relativos à Vinda do Espírito Santo, Paráclito (paráklêtos), isto é, Defensor [Advogado de defesa], Consolador e Intérprete. Este último significado deriva do aramaico paráklita, dos rabinos, que não tem o significado usual do grego (Defensor e Consolador), mas Intérprete, aquele que traduz Deus para nós e nós para Deus, fonte e ponte permanente de comunicação, compreensão e comunhão. O Espírito Paráclito é assim o grande construtor de pontes entre nós uns com os outros e com Deus. É, por isso, que Ele é o Amor, que destrói todos os muros, preconceitos, ódios, divisões, incompreensões. Eis os cinco mencionados dizeres de Jesus sobre a Vinda do Espírito Santo, sempre dita no futuro: João 14,16; 14,26; 15,26; 16,7; 16,13-15.

O primeiro enviado do Pai é o Filho Jesus, que cumpre e revela o conteúdo da própria missão. O segundo enviado é o Paráclito. O Pai é, em relação aos dois, o enviante; o Filho e o Espírito são, em relação ao Pai, ambos enviados, «as duas mãos do Pai», no belo dizer de Ireneu de Lião. Confrontando os textos, vemos que há semelhança da relação entre o Pai e o Paráclito com a relação entre o Pai e o Filho: ambas são expressas pelo mesmo verbo «enviar» (pémpô). Mas, juntamente com a semelhança, deparamos também com diferenças. A primeira diferença está no facto de que, em relação ao Filho, o verbo enviar está no passado, encontrando-se no futuro em relação ao Paráclito. O envio de Jesus pelo Pai já se realizou [«o Pai que me enviou»: João 5,23.37; 6,44; 8,16.18; 12,49; 14,24; «Aquele que me enviou»: João 4,34; 5,24.30; 6,38.39.40; 7,16.28.33; 8,26.29; 9,4; 12,44-45; 13,20; 15,21; 16,5], enquanto que o envio do Paráclito é anunciado, mas deve ainda realizar-se [«o Pai enviá-lo-á no meu nome»: João 14,26], do mesmo modo que a sua tarefa de ensinar e de recordar aparece igualmente enunciada no futuro. A segunda diferença reside no facto de o envio de Jesus ser feito diretamente pelo Pai, sem intermediários, enquanto que o envio do Paráclito é feito pelo Pai mediante a intervenção de Jesus, traduzida pela expressão «no meu nome». O que se passa com o verbo «enviar» em termos de semelhança e diferenças, passa-se também com o verbo «dar» (dídômi): «Deus (…) deu o seu Filho unigénito» (João 3,16), e «dará a vós outro Paráclito» a pedido de Jesus (João 14,16). Mas em relação ao Paráclito, o próprio Jesus é por duas vezes sujeito do verbo «enviar»: «Eu enviá-lo-ei de junto do Pai» (João 15,26); «Quando eu for, enviá-lo-ei para junto de vós» (João 16,7).

Mas o texto de hoje põe Jesus a dizer que o Pai enviará o Paráclito, o Espírito Santo, em seu nome (João 14,26), isto é, mediante a sua intervenção. Jesus afirma também que não diz senão a Palavra do Pai (João 14,24), e que o Espírito Santo também não falará de si mesmo, mas apenas o que tiver ouvido (João 16,13). Assim, o Espírito Santo, que será enviado, ensinará todas as coisas e recordará tudo o que disse Jesus (João 14,26). Por outras palavras: receberá do que é meu e vos anunciará (João 16,14).

No Evangelho de hoje, Jesus fala ainda do amor, da escuta qualificada da sua Palavra, da habitação de Deus em nós, no meio de nós, da paz por Ele dada, que é diferente da paz que o mundo dá e como o mundo a dá.

A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (15,1-2.22-29) leva-nos ao Concílio de Jerusalém, em que os Apóstolos Pedro e Paulo e Tiago se deram as mãos, em sinal de comunhão, para que o Evangelho fosse levado a todos os corações. O que importa é o Evangelho, e não as nossas maneiras diferentes de pensar.

  1. O Apocalipse (21,10-14.22-23) traz-nos outra vez a Igreja bela, vestida por Deus, alumiada por Deus, tu a tu com Deus, sem a mediação de um templo material.

O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

Diz, de forma absolutamente maravilhosa, o velho comentário rabínico aos Salmos, dito Midrash Tehillîm, que, quando Israel estava no Sinai para fazer aliança com Deus, «o ventre das mulheres grávidas se tornou transparente como vidro, para que os embriões pudessem ver Deus e conversar com Ele». Oh admirável mundo novo!

O Espírito Santo faz nascer em nós esta transparência luminosa e maravilhosa. Luz que alumia, e não engana, Amor, só Amor, nada mais que Amor. Vem, Espírito de Luz, construtor e Senhor das mais belas transparências e vivências. Precisamos tanto de Ti nesta calçada enlameada e escura e escorregadia em que andamos.

Levanto os meus olhos para os montes:

De onde virá o meu auxílio?

O meu auxílio vem do Senhor,

Que fez o céu e a terra.

Tudo fala de Ti, Senhor!

Tudo tem as marcas das tuas mãos carinhosas.

O dia ao dia entrega o Teu amor.

A noite à noite entrega a tua luz.

E até a minha vida, Senhor, fala de Ti.

Sim, foste Tu que formaste as entranhas do meu corpo,

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E me criaste no seio da minha mãe.

Eu Te dou graças, Senhor,

Por me teres feito tão maravilhosamente:

Admiráveis são as Tuas obras!

Quando contemplo os céus,

Obra das tuas mãos,

A lua e as estrelas que lá colocaste,

Quando ponho as mãos em concha,

Para colher a água pura das nascentes,

Quando sigo com os olhos o voo dos pássaros

E o veio das águas de rios e torrentes,

Eu Te louvo, Senhor,

Por tanto amor derramado

Em nós e ao nosso lado,

E antes de nós também,

Quando nos deitaste no ventre de uma mãe.

É assim que aprendo a viver de mãos erguidas,

E de coração levantado e extasiado,

Maravilhado.

Obrigado, Senhor, pelas mães que nos deste,

E que fazem a nossa terra mais celeste!

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo VI da Páscoa – Ano C – 22.05.2022 (Act 15, 1-2.22-29)
  2. Leitura II – Domingo VI da Páscoa – Ano C – 22.05.2022 (Ap 21, 10-14.22-23)
  3. Domingo VI da Páscoa – Ano C – 22.05.2022 – Lecionário
  4. Domingo VI da Páscoa – Ano C – 22.05.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo V da Páscoa Ano C – 15.05.2022

Viver a Palavra

Jesus Cristo, o Ressuscitado, irrompe no tempo e na história como absoluta e eterna novidade, fazendo novas todas as coisas: «eu, João, vi um novo céu e uma nova terra, porque o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido, e o mar já não existia».

Aquele que vive e que nos faz viver de um modo novo oferece-nos a certeza de que a Sua presença no meio de nós transforma toda a nossa existência, enxugando as lágrimas dos nossos olhos e convertendo o nosso luto e dor em alegria e esperança. Ele garante-nos: «vou renovar todas as coisas».

Renovados e transfigurados pela Sua graça, reconhecemos que o nosso desejo de vida em plenitude só encontra realização na alegria do Ressuscitado. Como Paulo e Barnabé, reconhecemos que a ressurreição de Jesus e a certeza do Seu infinito amor nos impelem a sair de nós próprios e comunicar a todos a certeza da vida nova que Dele recebemos. Deste modo, como eles, haveremos de contemplar de modo novo as maravilhas de Deus e caminharemos com renovada esperança, mesmo entre as desgraças e misérias do nosso tempo: «se Ele vive, isso é uma garantia de que o bem pode triunfar na nossa vida e de que as nossas fadigas servirão para qualquer coisa. Então podemos deixar de nos lamentar e podemos olhar em frente, porque com Ele é possível sempre olhar em frente. Esta é a certeza que temos: Jesus é o vivente eterno; agarrados a Ele, viveremos e atravessaremos, ilesos, todas as formas de morte e violência que se escondem no caminho» (Christus Vivit, 127).

Mas este Reino, que será em plenitude apenas no Céu, deve começar a ser construído no aqui e agora do tempo e da história. Deus conta connosco para a construção de um mundo novo e envia-nos como testemunhas do Seu amor.

O Evangelho deste Domingo oferece-nos as coordenadas fundamentais para a construção dos novos céus e da nova terra, desse mundo novo, que Deus quer instaurar em nós e, através de nós, no mundo. Sentado à mesa com os Seus discípulos, no Seu discurso de despedida, Jesus confia-lhes o mandamento novo do amor, assegurando que esse será o Seu ADN cristão: «nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros».

O amor é a imagem de marca de Deus e será a marca dos gestos e acções daqueles que desejam ser Seus discípulos! Se queremos reconhecer se uma obra tem a marca de Deus, ela tem de ter a marca do amor, pois esse é todo o Seu ser e agir. Deste modo, assim há-de ser com todos aqueles são baptizados em Cristo. Configurados com a vida nova do Ressuscitado, hão-de configurar toda a sua vida a partir do amor, acolhendo o mandamento novo como norma de todo o seu agir.

A novidade deste mandamento consiste precisamente no «como»: «como Eu vos amei, amai-vos também uns aos outros». Jesus não foi um teórico do amor, apresentando belos discursos sobre o modo de amar. Jesus afirmou «quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo» (Mt 20,26) e na Última Ceia assumindo a condição de servo lavou os pés aos Seus discípulos. Declarando «ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos» (Jo 13,15), entregou-se até ao fim, dando a vida por nós na Cruz. Jesus acompanha as suas palavras com gestos concretos de amor e misericórdia, mansidão e humildade e por isso, nos exorta a amar os irmãos como Ele próprio nos amou. Ensina-nos que na lógica da vida cristã o verbo amar se conjuga sempre com o verbo «dar» e «dar-se».

Deste modo, na vida cristã, amar não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas. Contudo, a radicalidade deste convite não nos deve desanimar. Olhando as nossas fragilidades, reconhecemos que amar ao jeito de Jesus nos coloca sempre a caminho, numa tarefa inacabada e, por isso, em estado permanente de missão. in Voz Portucalense

LEITURA I –. Actos 14, 21b-27

«Convocaram a Igreja, contaram tudo o que Deus fizera com eles e como abrira aos gentios a porta da fé».

 

Ambiente

Vimos, no passado domingo, como o entusiasmo missionário da comunidade cristã de Antioquia da Síria lançou Paulo e Barnabé para a missão e como a Boa Nova de Jesus alcançou, assim, a ilha de Chipre e as costas da Ásia Menor…

A leitura de hoje apresenta-nos a conclusão dessa primeira viagem missionária de Paulo e de Barnabé: depois de chegarem a Derbe, voltaram para trás, visitaram as comunidades entretanto fundadas (Listra, Icónio, Antioquia da Pisídia e Perge) e embarcaram de regresso à cidade de onde tinham partido para a missão. Estes sucessos desenrolam-se entre os anos 46 e 49.in Dehonianos

 

Para reflexão

Para refletir, partilhar e atualizar este texto, considerar as seguintes linhas:

♦ Como é que vivem as nossas comunidades cristãs? Notamos nelas o mesmo empenho missionário dos inícios? Há partilha fraterna e preocupação em ir ao encontro dos mais débeis, em apoiá-los e ajudá-los a superar as crises e as angústias? São comunidades que se fortalecem com uma vida de oração e de diálogo com Deus

♦ Temos consciência de que por detrás do nosso trabalho e do nosso testemunho está Deus? Temos consciência de que o anúncio do Evangelho não é uma obra nossa, na qual expomos as nossas ideias e a nossa ideologia, mas é obra de Deus? Temos consciência de que não nos pregamos a nós próprios, mas a Cristo libertador?

♦ Para aqueles que têm responsabilidades de direcção ou de animação das comunidades: a missão que lhes foi confiada não é um privilégio, mas um serviço que está subordinado à construção da própria comunidade. A comunidade não existe para servir quem preside; quem preside é que existe em função da comunidade e do serviço comunitário. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 144 (145)

Refrão: Louvarei para sempre o vosso nome, Senhor, meu Deus e meu Rei.

 

LEITURA II – Ap 21, 1-5a

«Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do Céu, da presença de Deus, bela como noiva adornada para o seu esposo».

 

Ambiente

Depois de descrever o confronto entre Deus e as forças do mal e a vitória final de Deus, o autor do “Apocalipse” apresenta o ponto de chegada da história humana: a “nova terra e o novo céu”; aí, os que se mantiveram fiéis ao “cordeiro” (Jesus) encontrarão a vida em plenitude. É o culminar da caminhada da humanidade, a meta última da nossa história.

Esse mundo novo é, simbolicamente, apresentado em dois quadros (cf. Ap 21,1-8 e 21,9-22,5).A leitura que hoje nos é proposta apresenta-nos o primeiro desses quadros (o outro ficará para o próximo domingo). É o quadro do novo céu e da nova terra – um quadro que apresenta a última fase da obra regeneradora de Deus e que aparece já em Is 65,17 e em 66,22. Também se encontra esta imagem abundantemente representada na literatura apocalíptica (cf. Henoch, 45,4-5; 91,16; 4 Esd 7,75), bem como em certos textos do Novo Testamento (cf. Mt 19,28; 2 Pe 3,13).in Dehonianos

 

Para reflexão

Para a reflexão desta Palavra, considerar os seguintes dados:

♦ O testemunho profético de João garante-nos que não estamos destinados ao fracasso, mas sim à vida plena, ao encontro com Deus, à felicidade sem fim. Esta esperança tem de iluminar a nossa caminhada e dar-nos a coragem de enfrentar os dramas e as crises que dia a dia se nos apresentam.

♦ A Igreja de que fazemos parte tem de procurar ser um anúncio dessa comunidade escatológica, uma “noiva” bela e que caminha com amor ao encontro de Deus, o amado. Isto significa que o egoísmo, as divisões, os conflitos, as lutas pelo poder, têm de ser banidos da nossa experiência eclesial: eles são chagas que desfeiam o rosto da Igreja e a impedem de dar testemunho do mundo novo que nos espera.

♦ É verdade que a instauração plena do “novo céu e da nova terra” só acontecerá quando o mal for vencido em definitivo; mas essa nova realidade pode e deve começar desde já: a ressurreição de Cristo convoca-nos para a renovação das nossas vidas, da nossa comunidade cristã ou religiosa, da sociedade e das suas estruturas, do mundo em que vivemos (e que geme num violento esforço de libertação).in Dehonianos.

 

EVANGELHO Jo 13, 31-33a.34-35

«Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos outros».

«Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros».

 

Ambiente

Estamos na fase final da caminhada histórica do “Messias”. Aproxima-se a “Hora”, o momento em que vai nascer – a partir do testemunho do amor total cumprido na cruz – o Homem Novo e a nova comunidade.
O contexto em que este trecho nos coloca é o de uma ceia, na qual Jesus Se despede dos discípulos e lhes deixa as últimas recomendações. Jesus acabou de lavar os pés aos discípulos (cf. Jo 13,1-20) e de anunciar à comunidade desconcertada a traição de um do grupo (cf. Jo 13,21-30); nesses quadros, está presente o seu amor (que se faz serviço simples e humilde no episódio da lavagem dos pés e que se faz amor que não julga, que não condena, que não limita a liberdade e que se dirige até ao inimigo mortal, na referência a Judas, o traidor). Em seguida, Jesus vai dirigir aos discípulos palavras de despedida; essas suas palavras – resumo coerente de uma vida feita de amor e partilha – soam a testamento final. Trata-se de um momento muito solene; é a altura em que não há tempo nem disposição para “conversa fiada”: aproxima-se o fim e é preciso recordar aos discípulos aquilo que é mesmo fundamental na proposta cristã.in Dehonianos

Para reflexão

Considerar, na reflexão da Palavra, as seguintes linhas:

♦ A proposta cristã resume-se no amor. É o amor que nos distingue, que nos identifica; quem não aceita o amor, não pode ter qualquer pretensão de integrar a comunidade de Jesus. O que é que está no centro da nossa experiência cristã? A nossa religião é a religião do amor, ou é a religião das leis, das exigências, dos ritos externos? Com que força nos impomos no mundo – a força do amor, ou a força da autoridade prepotente e dos privilégios?

♦ Falar de amor hoje pode ser equívoco… A palavra “amor” é, tantas vezes, usada para definir comportamentos egoístas, interesseiros, que usam o outro, que fazem mal, que limitam horizontes, que roubam a liberdade… Mas o amor de que Jesus fala é o amor que acolhe, que se faz serviço, que respeita a dignidade e a liberdade do outro, que não discrimina nem marginaliza, que se faz dom total (até à morte) para que o outro tenha mais vida. É este o amor que vivemos e que partilhamos?

♦ Por um lado, a comunidade de Jesus tem de testemunhar, com gestos concretos, o amor de Deus; por outro, ela tem de demonstrar que a utopia é possível e que os homens podem ser irmãos. É esse o nosso testemunho de comunidade cristã ou religiosa? Nos nossos comportamentos e atitudes uns para com os outros, os homens descobrem a presença do amor de Deus no mundo? Amamos mais do que os outros e interessamo-nos mais do que eles pelos pobres e pelos que sofrem? in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura apresenta um conjunto de nomes de cidades que exigem uma boa preparação para uma correta pronunciação. Além disso, o tom descritivo da leitura exige uma leitura pausada e articulada. Deve cuidar-se a entoação da frase final, pois indica a conclusão de todo o texto.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, pelo que uma leitura pausada, com atenção às diferentes frases em discurso direto ajudarão a uma adequada proclamação do texto.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

COMO EU VOS AMEI

No tempo de Jesus, o panorama do judaísmo palestinense era dominado por duas escolas: a escola conservadora e rigorista de Shammai e a escola liberal de Hillel.

Conta-se que, um dia, um homem se terá apresentado na escola de Shammai, e fez ao mestre um estranho pedido: «quero que, enquanto eu me mantiver apenas com um pé no chão, tu me expliques toda a Lei». Diz-se que Shammai se limitou a pegar na sua vara de mestre e a correr o homem pela porta fora, pois era óbvio que o homem fazia um pedido impossível de cumprir, tal era a vastidão da Lei. Mas o homem não desanimou e dirigiu-se à escola de Hillel, a quem formulou o mesmo pedido. E Hillel terá respondido de pronto: «Nada mais fácil: “Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti!”».

A esta sentença de Hillel, na sua formulação negativa, deu-se o nome de «regra de ouro». Em boa verdade, ela já aparece no Livro de Tobias 4,15. É, todavia, fácil de verificar, que esta sentença é de fácil cumprimento. Dado que o seu teor é negativo, para a cumprir, basta a alguém cruzar os braços e nada fazer. Procedendo assim, nada fará de inconveniente a ninguém, cumprindo assim escrupulosamente a sentença.

Tentando talvez evitar a inação acoitada na formulação negativa anterior, os Evangelhos apresentam desta máxima uma formulação positiva: «Faz aos outros o que queres que te façam ti!» (Mateus 7,12; Lucas 6,31). Levando a sério esta formulação, já não é suficiente jogar à defesa e nada fazer, mas é requerido o fazer. Seja como for, as duas formulações apresentadas, quer a negativa quer a positiva, padecem do mesmo vício: sou eu o centro, é à minha volta que tudo roda, e o que eu faço ou deixo de fazer é com o objetivo claro de que me seja retribuído outro tanto!

O tom positivo da referida «regra de ouro» recebe ainda outra bem conhecida formulação: «Ama o teu próximo como a ti mesmo!», que atravessa de lés-a-lés a inteira Escritura: Levítico 19,18; Mateus 22,39; Romanos 13,9; Gálatas 5,14; Tiago 2,8. Mas também esta formulação é perigosa: primeiro, porque eu continuo o ser o centro, a medida do amor aos outros; segundo, porque, se alguém não se ama a si mesmo (e são, infelizmente, cada vez mais os casos!), como poderá cumprir devidamente esta máxima?

É aqui que cai, como uma lâmina, a força do Evangelho de Jesus, proclamado, por graça, neste Domingo V da Páscoa (João 13,31-34): «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei!» (João 13,34), precedido por aquele precioso e carinhoso diminutivo «filhinhos» (teknía) (João 13,33), só aqui, esta única vez, colocado nos lábios de Jesus. Aqui, a medida não sou eu. Aqui, a medida é Jesus. Aqui, a medida é sem medida! Aqui, o amor não é interesseiro. Aqui, o amor é puro, radical, incondicional, assimétrico, sem retorno. Aqui, o amor é até ao fim, e obriga-nos a ter sempre como referência o Senhor Jesus e o seu modo de viver, dando a vida por amor, para sempre e para todos!

Este mandamento recebido (João 10,18) e dado (João 13,34; 15,12) impõe aos discípulos de Jesus de todos os tempos um estilo novo, uma nova maneira de viver e de fazer: «Como Eu vos fiz, fazei vós também» (João 13,15). Nesta formulação, o que é mais importante não é o que fazer, mas o como fazer. Neste sentido, alerta bem a Conferência Episcopal Argentina na sua Carta Pastoral Misión Continental (2009), n.º 17: «Importa considerar em primeiro lugar o que é preliminar a qualquer programa de ação. Antes da organização de tarefas, importa considerar como as vou executar, o modo, a atitude, o estilo. Desta maneira, as tarefas serão ferramentas de um estilo de comunhão, cordial, discipular, que transmite o fundamental: a bondade de Deus».

A lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos (14,21-27) põe outra vez diante de nós a viagem transitiva e intransitiva que a graça de Deus nos faz fazer (Atos 14,26), e de que resulta a narrativa de tudo o que Deus fez connosco (Atos 14,27) e com os pagãos, abrindo-lhes a porta da fé (Atos 14,27). É esta expressão que dá o título à Carta Apostólica Porta Fidei [«A Porta da Fé»] com que Bento XVI quis marcar o Ano da Fé, aberto em 11 de outubro de 2012, comemoração da data de abertura do Concílio II do Vaticano (11 de outubro de 1962), e encerrado (o Ano da Fé) em 24 de novembro de 2013, Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo.

Notável a lição do Livro do Apocalipse (21,1-5). Mundo novo, com Deus, Ele mesmo, a habitar no meio de nós, verdadeiro Emanuel, que acariciará o nosso rosto e enxugará as nossas lágrimas. Com o Emanuel a habitar connosco, desaparecerão a morte, o luto, a lamentação, a dor, e também o mar que, no mundo bíblico, aparece como símbolo do caos e do mal.

Fica bem hoje cantar com alegria renovada o grande hino alfabético que é o Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração. Orígenes classificava este Salmo como «o supremo cântico de ação de graças», e Agostinho viu-o como «a oração perfeita de Cristo, uma oração para todas as circunstâncias e acontecimentos da vida». E enquanto saboreamos as imensas riquezas que nos vêm de Deus: a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9), usando, para o efeito, toda a gama de sabores e todas as letras do alfabeto, continuemos a cantar: «Abris, Senhor, a vossa mão, e saciais a nossa fome!» (Salmo 145,16).

A grande questão que se levanta do chão

E do “eu”

Não é de ordem gnoseológica e científica,

Acerca do que se pode conhecer

E da constituição de qualquer ser.

A grande questão que se levanta do chão

É da ordem do amor,

Acerca do que é o amor,

Se eu amo

E se sou amado.

Se colocares no Google a pergunta: “o que é o amor?”,

Obténs para cima de trezentos milhões de respostas.

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REPORT THIS ADPRIVACIDADE

Mas, na Bíblia, as respostas reduzem-se a uma só: dar a vida.

Por isso, na Bíblia, amar é amar o estrangeiro,

Que é o outro diferente de mim,

E amar o inimigo,

Que é o outro contra mim.

Em suma, amar é amar o próximo,

Que é aquele que está agora a passar por mim,

Aquele que agora está mais perto de mim,

Que é o significado do superlativo latino proximus.

Salta à vista que este amor não brota de nós,

Não está em nós a fonte deste amor.

A fonte e o modelo de um amor assim é Deus,

É Jesus que se debruça sobre o estrangeiro e o inimigo que eu sou.

Senhor Jesus, ensina-nos a amar sem medida, como Tu.

 

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo V da Páscoa – Ano C – 15.05.2022 (Act 14, 21b-27)
  2. Leitura II – Domingo V da Páscoa – Ano C – 15.05.2022 (Ap 21, 1-5a)
  3. Domingo V da Páscoa – Ano C – 15.05.2022 – Lecionário
  4. Domingo V da Páscoa – Ano C – 15.05.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo IV da Páscoa – Domingo do Bom Pastor – Ano C – 08.05.2022

27As minhas ovelhas escutam a minha voz: Eu conheço-as e elas seguem-me. Jo 10, 27

Viver a Palavra

O IV Domingo do Tempo Pascal coloca no nosso horizonte a imagem bucólica do pastor: Jesus o Bom, Belo e Verdadeiro Pastor. Jesus é Aquele que cuida de nós com o desvelo e o cuidado de quem ama, alimenta e protege. Em terras montanhosas, onde as ovelhas e os pastores são abundantes, Jesus utiliza esta imagem para ajudar os seus ouvintes a compreender o modo como Deus se relaciona connosco, mas também para nos desafiar a viver de um modo novo as relações entre nós.

O Evangelho deste Domingo possui tanto de profundo e sublime, quanto de curto e incisivo. A meditação deste texto exige que nos detenhamos nos verbos presentes nesta passagem evangélica para descobrir quais as atitudes de Cristo que fazem Dele o Verdadeiro e Belo Pastor e quais as atitudes que caracterizam aqueles e aquelas que guiados por Ele são pertença deste rebanho que Ele quer conduzir ao coração de Deus.

«Eu conheço as minhas ovelhas!». Jesus conhece cada um de nós pelo nome. Jesus conhece cada um de nós e ama-nos com um amor eterno. Por isso, Ele não cessa de velar por nós e, por isso, nos protege: «Ninguém as arrebatará da minha mão!». Jesus não se limita a dar-nos qualquer coisa, nem tampouco aquilo que não lhe faz falta, Ele oferece-nos uma vida cheia de sentido e que nos projeta para a eternidade: «Eu dou-lhes a vida eterna!». Jesus quer oferecer uma vida plena e que tem sabor de eternidade e, para isso, oferece-se a si mesmo, ensinando-nos a arte de amar até à entrega de nós mesmos.

Estes traços de Jesus, Bom e Belo Pastor, que ama, protege, conhece e oferece uma vida nova caracterizam todo o Seu ser e agir e permitem-nos conhecer o rosto misericordioso do Pai, que Ele veio revelar. Somos amados por Deus, protegidos e amparados pelo Seu amor, salvos e redimidos pela Sua entrega e, por isso, somos convidados a configurar a nossa vida pela contemplação deste amor.

Jesus afirma: «as minhas ovelhas escutam a minha voz. Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me». Escuta e seguimento são duas atitudes fundamentais que devem caracterizar a vida de todos os batizados. Configurados com Cristo pelo Batismo, reconhecendo Nele o Bom, Belo e Verdadeiro Pastor, queremos ser verdadeiros discípulos missionários acolhendo a Sua voz de amor e seguindo o caminho que Ele nos aponta.

Também a nós hoje, o Senhor nos diz como disse a Paulo e Barnabé: «Fiz de ti a luz das nações, para levares a salvação até aos confins da terra!». Mas quais são os confins da terra onde somos desafiados a levar a Boa Nova da salvação? Na geografia de Paulo e Barnabé eram Roma, a Península Hispânica! Hoje os confins da terra são muitas vezes o nosso lugar de trabalho, a nossa casa, os nossos vizinhos: são os lugares que precisam de nós e de uma presença nova e transfiguradora. Estes confins da terra são as periferias existenciais que nos refere tantas vezes o Papa Francisco.

Sair de nós próprios e do nosso comodismo para ir ao encontro do outro, é assumir a coragem acolher os sonhos de Deus e ser testemunhas de um Deus que não cessa de chamar cada homem e cada mulher para o seguir. Celebramos neste Domingo o 59.º Dia Mundial de Oração pelas Vocações, por isso, de olhos fixos em Jesus, o Bom Pastor, somos chamados a colocar em Jesus as nossas vidas e a comunicar a todos e, de modo especial, aos mais jovens, a alegria de seguir Jesus, descobrindo o projeto de amor e felicidade que Ele tem para cada um de nós.in Voz Portucalense

 

LEITURA I –. Actos 13, 14.43-52

«Todos os que estavam destinados à vida eterna abraçaram a fé, e a palavra do Senhor divulgava-se por toda a região».

Ambiente

A partir do capítulo 13, os “Atos dos Apóstolos” apresentam o “caminho” da Igreja no mundo greco-romano. O protagonista humano desta nova etapa será Paulo (embora sempre animado e conduzido pelo Espírito do Senhor ressuscitado).

Tudo começa quando a comunidade cristã de Antioquia da Síria, ansiosa por fazer a Boa Nova de Jesus chegar a todos os povos, envia Barnabé e Paulo a evangelizar. Entre 13,1 e 15,35, o autor dos “Atos” descreve o “envio” dos missionários, a viagem, a evangelização de Chipre e da Ásia Menor (Perga, Antioquia da Pisídia, Icónio, Listra, Derbe) e os problemas colocados à jovem Igreja pela entrada maciça de gentios.
Este texto, em concreto, situa-nos na cidade de Antioquia da Pisídia, no interior da Ásia Menor. Nos versículos anteriores, o autor dos “Atos” pôs na boca de Paulo um longo discurso, que resume a catequese primitiva sobre Jesus e que enquadra no plano de Deus a proposta de salvação que Jesus veio trazer (cf. Act 13,16-41). Qual será a resposta ao anúncio, quer por parte dos judeus, quer por parte dos pagãos que escutaram a mensagem? in Dehonianos

 

Para reflexão

 Os judeus de que se fala nesta leitura representam aqueles que se acomodaram a uma religião “morninha”, segura, feita de hábitos, de leis, de devoções, de ritos externos, de fórmulas fixas, mas que não põe verdadeiramente em causa o coração e a consciência, nem tem um impacto real na vida de todos os dias. É a religião dos “certinhos” e acomodados, dos que têm medo da novidade de Deus (que mexe com os esquemas feitos e, constantemente, põe tudo em causa, obriga a arriscar e a converter-se).

Os pagãos de que se fala nesta leitura representam aqueles que, tendo tantas vezes uma história pessoal complicada e uma caminhada de fé nem sempre exemplar, estão abertos à novidade de Deus e se deixam questionar por Ele. Eles não têm medo de se desinstalar, de arriscar partir para uma vida nova e mais exigente, de procurar novos caminhos, de seguir Jesus no seu percurso de amor e de entrega – ainda que seja um caminho de cruz e de perseguição.

Onde é que eu me situo? Na atitude de quem nasceu cristão sem ter feito muito para isso e que vive a sua religião sem riscos, sem exigências de radicalidade e de autenticidade, ou na atitude de quem se deixa continuamente desafiar, se deixa questionar por Deus, aceita viver numa dinâmica contínua de conversão e sente que a sua caminhada em direção à vida nova nunca está acabada? in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 99 (100)

Refrão: Nós somos o povo de Deus, somos as ovelhas do seu rebanho

 

LEITURA II – Ap 7, 9.14b-17

«O Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os conduzirá às fontes da água-viva».

 

Ambiente

A liturgia do passado domingo apresentava-nos “o cordeiro” (Jesus), o Senhor da história, que Se preparava para abrir e ler o livro dos sete selos – o livro onde, simbolicamente, estava escrita a história humana.
De acordo com o autor do “Apocalipse”, a abertura dos selos desse livro vai expor a realidade do mundo: na caminhada histórica dos homens, está presente Cristo vitorioso continuamente em combate contra tudo o que escraviza e destrói o homem (1º selo – o cavaleiro branco); mas está também presente a guerra e o sangue (2º selo – o cavaleiro vermelho), a fome e a miséria (3º selo – o cavaleiro negro), a morte, a doença, a decomposição (4º selo – o cavaleiro esverdeado). No fundo deste quadro, jazem os mártires que sofrem perseguições por causa da sua fé e que, dia a dia, clamam a Deus por justiça (5º selo); por isso, prepara-se o “grande dia da ira”, que anuncia a intervenção de Deus na história para destruir o mal (6º selo). A revelação final apresenta o combate definitivo, em que as forças de Deus derrotarão as forças do mal (7º selo).

O texto de hoje situa-nos no contexto do 6º selo (o anúncio do “dia do Senhor”). Aos mártires que clamam por justiça, o autor do “Apocalipse” descreve o que vai resultar da intervenção de Deus: a libertação definitiva, a vida em plenitude.in Dehonianos

 

Para reflexão

Em cada dia que passamos neste mundo, fazemos a experiência da alegria e da esperança, mas também da dor, da incompreensão, do medo, do sofrimento, do desespero… Com frequência, é o pessimismo que nos agarra, que nos limita, que nos escraviza e que nos impede de saborear o dom da vida. O autor do “Apocalipse” deixa-nos uma mensagem de esperança e diz-nos que não estamos condenados ao fracasso, mas sim à vida plena, à libertação definitiva, à felicidade total.

O que é preciso para aí chegar? Apenas acolher o dom da salvação que nos é feito pelo nosso Deus. Se aceitarmos a proposta de Jesus e seguirmos atrás d’Ele no caminho do amor, da entrega, do dom da vida, se virmos n’Ele o pastor que nos conduz às fontes de água-viva, chegaremos indubitavelmente à vida definitiva, à comunhão com Deus, à felicidade plena.

A resposta positiva à oferta de salvação que Deus nos faz introduz em nós um novo dinamismo; esse dinamismo fortalece a nossa coragem e permite-nos continuar a lutar, desde já, pela concretização do novo céu e da nova terra. in Dehonianos.

 

EVANGELHO Jo 10, 27-30  

«As minhas ovelhas escutam a minha voz. Eu conheço as minhas ovelhas e elas seguem-Me».

«Eu e o Pai somos um só».

 

Ambiente

O capítulo 10 do 4º Evangelho é dedicado à catequese do Bom Pastor. O autor utiliza esta imagem para apresentar uma catequese sobre a missão de Jesus: a obra do “Messias” consiste em conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de onde brota a vida em plenitude.

A imagem do Bom Pastor não foi inventada pelo autor do 4º Evangelho. Literariamente falando, este discurso simbólico está construído com materiais provenientes do Antigo Testamento. Em especial, este discurso tem presente Ez 34 onde se encontra a chave para compreender a metáfora do pastor e do rebanho. Falando aos exilados na Babilónia, Ezequiel constata que os líderes de Israel foram, ao longo da história, falsos pastores que conduziram o Povo por caminhos de morte e de desgraça; mas – diz Ezequiel – o próprio Deus vai, agora, assumir a condução do seu Povo; Ele porá à frente do seu Povo um Bom Pastor (Messias), que o livrará da escravidão e o conduzirá à vida.

A catequese que o 4º Evangelho nos oferece do Bom Pastor sugere que a promessa de Deus afirmada por Ezequiel se cumpre em Jesus. in Dehonianos

 

Para reflexão

Na nossa cultura urbana, a imagem do pastor é uma parábola de outras eras, que pouco diz à nossa sensibilidade; em contrapartida, conhecemos bem a figura do líder, do presidente, do chefe: não raras vezes, é alguém que se impõe, que manipula, que arrasta, que exige… Mas o Evangelho que hoje nos é proposto convida-nos a descobrir a figura bíblica do Pastor: uma figura que evoca doação, simplicidade, serviço, dedicação total, amor gratuito. É alguém que é capaz de dar a própria vida para defender das garras das feras as ovelhas que lhe foram confiadas.

Para os cristãos, o Pastor é Cristo: só Ele nos conduz para as “pastagens verdadeiras”, onde encontramos vida em plenitude. Nas nossas comunidades cristãs, temos pessoas que presidem e que animam. Podemos aceitar, sem problemas, que eles receberam essa missão de Cristo e da Igreja, apesar dos seus limites e imperfeições; mas convém igualmente ter presente que o nosso único Pastor, aquele que somos convidados a escutar e a seguir sem condições, é Cristo.

As “ovelhas” do rebanho de Jesus têm de “escutar a voz” do Pastor e segui-l’O… Isso significa, concretamente, percorrer o mesmo caminho de Jesus, numa entrega total aos projetos de Deus e numa doação total, de amor e de serviço aos irmãos.

Como distinguimos a “voz” de Jesus, o nosso Pastor, de outros apelos, de propostas enganadoras, de “cantos de sereia” que não conduzem à vida plena? Através de um confronto permanente com a sua Palavra, através da participação nos sacramentos onde se nos comunica a vida que o Pastor nos oferece e num permanente diálogo íntimo com Ele.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura possui algumas palavras mais difíceis e que exigem atenção para uma boa pronunciação: «Perga»; «Antioquia da Pisídia» e «prosélitos». Na proclamação desta leitura, é necessário estar atento ao tom narrativo que ela possui e ao discurso direto que nela está presente e que é constituído pelo discurso de Paulo e Barnabé.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, mas exige atenção na descrição que constitui a primeira parte do texto e na longa intervenção de «um dos Anciãos» e que constitui a segunda parte do texto.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

 

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

INUNDAÇÃO DE LUZ

 

O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, em 164 a.C., Judas Macabeu procede à purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. Este acontecimento deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir de 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2019, corresponde ao nosso dia 23 de dezembro, nas proximidades da nossa festa de Natal.

É no ambiente desta Festa anual da Dedicação do Templo, em pleno inverno, que se situa a perícope do Evangelho de João 10,27-30 (veja-se 10,22), proclamada neste Domingo IV da Páscoa, também Domingo do Bom Pastor e Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Este Dia de Oração remonta à radiomensagem de Paulo VI, de 11 de abril de 1964, que deu início a este Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são um indicador seguro da vitalidade da fé e do amor de cada comunidade paroquial e diocesana, bem como o testemunho da saúde moral e espiritual das famílias cristãs, num mundo carente de mãos e corações sacerdotais.

A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder permanentemente diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista e escuro), não basta acender uma luz e mantê-la; é preciso aumentar constantemente a luz… Mais luz! Mais luz! Mais luz!

Como este simbolismo é importante para os dias de hoje! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com o Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que salienta sempre a importância da fé e da esperança.

O resto é a força e a beleza da imagem do Bom e Belo Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem (João 10,27-29). Maravilhosa Comunhão.

Maravilhosa Comunhão também entre este Bom e Belo Pastor, que é o Filho, e o Pai. Texto imenso e intenso, de grande alcance trinitário: «Eu e o Pai uma Realidade somos» (João 10,30). Deixem-me pôr aqui o texto grego: egò kaì ho patêr hén esmen. O verbo está no plural: somos. Junta «Eu» e «o Pai», duas Pessoas. O predicativo, porém, não está na forma masculina, mas na forma neutra: uma Realidade (hén). Donde: o Filho e o Pai não são uma só Pessoa (da ordem da hypóstasis), mas são uma única Realidade (não coisa! como se vê em algumas pobres traduções), uma única Substância (da ordem da ousía), como diziam bem os Padres gregos. Ó música insondável do Amor de Deus, ó admirável comunhão de três Pessoas iguais, mas distintas, ó Vida Plena e Verdadeira a nós acessível por graça! Basta, para tanto, conhecer, escutar e seguir o Bom e Belo Pastor.

A lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos (13,14.43-52) mostra-nos Paulo e Barnabé em Antioquia da Pisídia, antiga cidade situada no coração da Ásia Menor, atual Turquia, hoje reduzida a algumas ruínas junto da aldeia de Jalvaz. Entrando na sinagoga em dia de sábado, Paulo e Barnabé anunciaram aí, na longa perícope hoje não lida (vv. 16-41), o kêrigma tripartido da fé: a Promessa feita aos Pais, Cristo Ressuscitado, o Dom do Espírito Santo. O anúncio suscitou a fé em numerosos hebreus que, no final, se unem aos dois apóstolos (vv. 42-43). O círculo de ouvintes e crentes aumentou no sábado seguinte (v. 44), o que provocou a inveja dos judeus fiéis à sinagoga (v. 45). Vendo então que a Palavra de Deus era rejeitada pelos judeus da sinagoga, Paulo e Barnabé voltaram-se para os pagãos, que muito se alegravam e glorificavam a Deus, e abraçaram a fé (v. 48). Os dois apóstolos leem esta recusa dos judeus e a consequente oferta da salvação aos pagãos como fazendo parte do Desígnio divino, e citam a propósito Isaías 49,6: «Eu te estabeleci como luz das nações pagãs, para que leves a salvação até aos confins da terra» (v. 47). E Isaías outra vez a confirmar esta oferta da salvação a todos os povos, pondo-os todos sob a Bênção de Deus: «Bendito o Egito, meu povo, a Assíria, obra das minhas mãos, e Israel, minha herança» (Isaías 19,25). É o Evangelho sem peias nem fronteiras. Paulo e Barnabé acabaram naturalmente expulsos da cidade devido às perseguições dos judeus (v. 50). Mas o Espírito Santo ia enchendo de alegria os novos discípulos (v. 52).

A mesma realidade pode ver-se na lição de hoje do Livro do Apocalipse 7,9.14-17, onde a Jerusalém celeste congrega «uma multidão imensa de todas as nações, raças, povos e línguas» (v. 9). A lição é clara: os eleitos de Deus não pertencem a uma só raça ou cultura ou língua ou nacionalidade. Mas, neste povo «pentecostal», podemos logo identificar outra característica, uma espécie de verso e reverso, viver em dois teclados, dois cenários sobrepostos: os fiéis experimentam a aflição, mas vivem na alegria, a perseguição, mas vivem na glória, são atormentados, mas vivem na serenidade. Outra vez o episódio de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos como paradigma: em Antioquia da Pisídia levantou-se uma perseguição contra Paulo Barnabé e os primeiros crentes, e, não obstante, «os discípulos estavam cheios de alegria» (Atos 13,52) e «os pagãos alegravam-se e glorificavam a Deus» (Atos 13,48). Os eleitos do Apocalipse imitaram Cristo também no martírio, «lavando as suas vestes no sangue do Cordeiro» (Apocalipse 7,14). Experimentaram a fome e a sede, o sol e o calor ardente. Agora, porém, seguindo o ritual da Festa das Tendas (cf. Levítico 23,40), levam palmas (phoínix) na mão (Apocalipse 7,9), símbolo de vitória e de festa e de vida nova e eterna (phoínix tem o duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade), e serão apascentados e conduzidos pelo Cordeiro às fontes de água-viva (Apocalipse 7,16), e o próprio Deus enxugará com carinho as lágrimas dos seus olhos (Apocalipse 7,17; cf. Isaías 25,8).

Na tradição judaica, o Salmo 100 constitui uma velha, pequena oração que ressoa no nosso coração como louvor ao Deus bom, cujo amor é eterno. Intitula-se «Um cântico para a tôdah» (mizmôr letôdah), isto é, para a ação de graças ao Senhor. Este pequeno hino articula gritos de alegria, louvor, conhecimento, súplica, bênção. Agostinho comenta assim: «Deixa que a oração se transforme no teu alimento. Rezando, adquires novas energias, e Aquele a quem rezas torna-se mais doce para contigo». No centro do pequeno hino está uma profissão de fé no Senhor: o Senhor é Deus, nosso criador, que estabeleceu a aliança com Israel («nós somos o seu povo»), o amor do Senhor é para sempre, a sua fidelidade para todas as gerações (vv. 3 e 5).

Senhor Jesus Cristo,

Único Senhor da minha vida,

Bom Pastor dos meus passos inseguros

E do silêncio inquieto do meu coração,

Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações.

Senhor Jesus,

Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura.

Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura,

E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura.

Fico contigo sentado junto ao poço.

Alumia o meu pobre coração.

Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão.

Dispõe de mim, Senhor,

Nesta hora de Nova Evangelização.

Que eu saiba, Senhor,

Interpretar bem a tua melodia.

Que eu saiba, Senhor,

Dizer sempre SIM como Maria.

 

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – IV Domingo da Páscoa – 08.05.2022 (Act 13,14.43-52)
  2. Leitura I – IV Domingo da Páscoa – 08.05.2022 (resto)
  3. Leitura II – IV Domingo da Páscoa – 08.05.2022 (Ap 7, 9.14b-17)
  4. Domingo IV da Páscoa – 08.05.2022 – Lecionário
  5. Domingo IV da Páscoa – 08.05.2022 – Oração Universal
  6. ANO C – Ano de Lucas

Domingo III da Páscoa  – Ano C – 01.05.2022

 15Depois de terem comido, Jesus perguntou a Simão Pedro: «Simão, filho de João, tu amas-me mais do que estes?» Pedro respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta os meus cordeiros.» 16Voltou a perguntar-lhe uma segunda vez: «Simão, filho de João, tu amas-me?» Ele respondeu: «Sim, Senhor, Tu sabes que eu sou deveras teu amigo.» Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas.» 17E perguntou-lhe, pela terceira vez: «Simão, filho de João, tu és deveras meu amigo?» Pedro ficou triste por Jesus lhe ter perguntado, à terceira vez: ‘Tu és deveras meu amigo?’ Mas respondeu-lhe: «Senhor, Tu sabes tudo; Tu bem sabes que eu sou deveras teu amigo!» E Jesus disse-lhe: «Apascenta as minhas ovelhas. – Jo 21, 15-17

Viver a Palavra

 

A liturgia deste 3º Domingo do Tempo Pascal recorda-nos que a comunidade cristã tem por missão testemunhar e concretizar o projecto libertador que Jesus iniciou; e que Jesus, vivo e ressuscitado, acompanhará sempre a sua Igreja em missão, vivificando-a com a sua presença e orientando-a com a sua Palavra

LEITURA I –. Actos 5,27b-32.40b-41

 

Ambiente

Entre 2,1 e 8,3, o Livro dos Actos apresenta o testemunho da Igreja de Jerusalém acerca de Jesus. Os comentadores costumam chamar aos capítulos 3-5 a “secção do nome”, pois eles incidem no anúncio do “nome” de Jesus (cf. Act 3,6.16;4,7.10.12.30;5,28.41), isto é, do próprio Jesus (o “nome” era uma apelação com que os judeus designavam o próprio Deus; designar Jesus dessa forma equivalia a dizer que Ele era “o Senhor”). Esse anúncio, feito em condições de extrema dificuldade (por causa da oposição dos líderes judeus), é, sobretudo, obra dos apóstolos.

No texto que nos é proposto, apresenta-se o testemunho de Pedro e dos outros apóstolos acerca de Jesus. Presos e miraculosamente libertados (cf. Act 5,17-19), os apóstolos voltaram ao Templo para dar testemunho de Cristo ressuscitado (cf. Act 5,20-25). De novo presos, conduzidos à presença da suprema autoridade religiosa da nação (o Sinédrio) e formalmente proibidos de dar testemunho de Jesus, os apóstolos responderam apresentando um resumo do kerigma primitivo.in Dehonianos

 

Para reflexão

A questão principal gira à volta do confronto entre o cristianismo nascente e as autoridades judaicas. A frase de Pedro “deve obedecer-se antes a Deus do que aos homens” (vers. 29) deve ser vista como o tema central; define a atitude que os cristãos são convidados a assumir diante da oposição do mundo.

Quanto ao resumo doutrinal dos vers. 30-32, ele não apresenta grandes novidades doutrinais em relação a outras formulações do kerigma primitivo acerca de Jesus (apresentado de forma mais desenvolvida em Act 2,17-36, 3,13-26 e 10,36-43): morte na cruz, ressurreição, exaltação à direita de Deus, a sua apresentação como salvador e o testemunho dos apóstolos por acção do Espírito. Neste contexto, apenas se acentua – mais do que noutras formulações – a responsabilidade do Sinédrio no escândalo da cruz e a contraposição entre a acção de Deus e a acção das autoridades judaicas em relação a Jesus.

De resto, a oposição humana põe em relevo a realidade sobre-humana da mensagem, a sua força que não pode ser detida e o dinamismo dessa comunidade animada pelo Espírito. Se Jesus encontrou oponentes e morreu na cruz, é natural que os apóstolos, fiéis a Jesus e ao seu projecto, se defrontem com a oposição desses mesmos que mataram Jesus. No entanto, os verdadeiros seguidores do projecto de Jesus – animados pelo Espírito – estão mais preocupados com a fidelidade ao “caminho” de Jesus do que às ordens ou interesses dos homens – mesmo que sejam os que mandam no mundo.in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 29 (30)

Refrão: Eu vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.

LEITURA II – Ap 5,11-14

Ambiente

A segunda parte do Livro do Apocalipse (cap. 4-22) apresenta-nos aquilo que poderíamos chamar “uma leitura profética da história”: o autor vai apresentar a história humana numa perspectiva de esperança, demonstrando aos cristãos perseguidos pelo império que não há nada a temer pois a vitória final será de Deus e dos que se mantiverem fiéis aos projectos de Deus.

O texto que nos é proposto faz parte da visão inicial, onde o “profeta” João nos apresenta as personagens centrais que vão intervir na história humana: Deus, transcendente e omnipotente, sentado no seu trono, rodeado pelo Povo de Deus e por toda a criação (cf. Ap 4,1-11); depois, o “livro” onde, simbolicamente, está o desígnio de Deus acerca da humanidade (cf. Ap 5,1-4); finalmente, é-nos apresentado “o cordeiro” (Jesus), aquele que detém a totalidade do poder (“sete cornos”) e do conhecimento (“sete olhos”); só ele é digno de ler o livro (ou seja, de revelar, de proclamar, de concretizar para os homens o projecto divino de salvação).in Dehonianos

 

Para reflexão

A personagem fundamental deste pequeno extracto que nos é proposto como segunda leitura é “o cordeiro”. É um símbolo usado pelo autor do Livro do Apocalipse para falar de Jesus.

O símbolo do “cordeiro” é um símbolo com uma grande densidade teológica, que concentra e evoca três figuras: a do “servo de Jahwéh” – figura de imolação – que, qual manso cordeiro é levado ao matadouro (Is 53,6-7; cf. Jr 11,19; Act 8,26-38); a do “cordeiro pascal” – figura de libertação – cujo sangue foi sinal eficaz de vitória sobre a escravidão (Ex 12,12-13.27;24,8; cf. Jo 1,29; 1 Cor 5,7; 1 Pe 1,18-19); e a do “cordeiro apocalíptico” – figura de poder real – vencedor da morte (esta imagem é característica da literatura apocalíptica, onde aparece um cordeiro vencedor, guia do rebanho, dotado de poder e de autoridade real – cf. 1º livro de Henoc, 89,41-46; 90,6-10.37; Testamento de José, 19,8; Testamento de Benjamim, 3,8; Targum de Jerusalém sobre Ex 1,5). O autor do Apocalipse apresenta, portanto, de uma maneira original e sintética, a plenitude do mistério de imolação, de libertação e de vitória régia, que corresponde a Cristo morto, ressuscitado e glorificado.

O “cordeiro” (Cristo) é entronizado: ele assumiu a realeza e sentou-se no próprio trono de Deus. Aí, recebe todo o poder e glória divina. A entronização régia de Cristo, ponto culminante da aventura divino-humana de Jesus, desencadeia uma verdadeira torrente de louvores: dos viventes, dos anciãos (vers. 5-8) e dos anjos (vers. 11-12). E todas as criaturas (vers. 13), a partir dos lugares mais esconsos da terra, juntam a sua voz ao louvor. O Templo onde ressoam estas incessantes aclamações alargou as suas fronteiras e tem, agora, as dimensões do mundo. É uma liturgia cósmica, na qual a criação inteira celebra o Cristo imolado, ressuscitado, vencedor e faz dele o centro do “cosmos”.in Dehonianos.

EVANGELHO Jo 21,1-19

Ambiente

O último capítulo do Evangelho segundo João não faz parte da obra original (a obra original terminava com a conclusão de 20,30-31); é um texto acrescentado posteriormente, que apresenta diferenças de linguagem, de estilo e mesmo de teologia, em relação aos outros vinte capítulos. A sua origem não é clara; no entanto, a existência de alguns traços literários tipicamente joânicos poderia fazer-nos pensar num complemento redigido pelos discípulos do evangelista.

Neste capítulo, já não se referem notícias sobre a vida, a morte ou a ressurreição de Jesus. Os protagonistas são, agora, um grupo de discípulos, dedicados à actividade missionária. O autor descreve a relação que esta “comunidade em missão” tem com Jesus, reflecte sobre o lugar de Jesus na actividade missionária da Igreja e assinala quais as condições para que a missão dê frutos.in Dehonianos

 

Para reflexão

O texto está claramente dividido em duas partes.

A primeira parte (vers. 1-14) é uma parábola sobre a missão da comunidade. Utiliza a linguagem simbólica e tem carácter de “signo”.

Começa por apresentar os discípulos: são sete. Representam a totalidade (“sete”) da Igreja, empenhada na missão e aberta a todas as nações e a todos os povos.

Esta comunidade é apresentada a pescar: sob a imagem da pesca, os evangelhos sinópticos representam a missão que Jesus confia aos discípulos (cf. Mc 1,17; Mt 4,19; Lc 5,10): libertar todos os homens que vivem mergulhados no mar do sofrimento e da escravidão. Pedro preside à missão: é ele que toma a iniciativa; os outros seguem-no incondicionalmente. Aqui faz-se referência ao lugar proeminente que Pedro ocupava na animação da Igreja primitiva.

A pesca é feita durante a noite. A noite é o tempo das trevas, da escuridão: significa a ausência de Jesus (“enquanto é de dia, temos de trabalhar, realizando as obras daquele que Me enviou: aproxima-se a noite, quando ninguém pode trabalhar; enquanto Eu estou no mundo, sou a luz do mundo” – Jo 9,4-5). O resultado da acção dos discípulos (de noite, sem Jesus) é um fracasso rotundo (“sem Mim, nada podeis fazer” – Jo 15,5).

A chegada da manhã (da luz) coincide com a presença de Jesus (Ele é a luz do mundo). Jesus não está com eles no barco, mas sim em terra: Ele não acompanha os discípulos na pesca; a sua acção no mundo exerce-se por meio dos discípulos.

Concentrados no seu esforço inútil, os discípulos nem reconhecem Jesus quando Ele Se apresenta. O grupo está desorientado e decepcionado pelo fracasso, posto em evidência pela pergunta de Jesus (“tendes alguma coisa de comer?”). Mas Jesus dá-lhes indicações e as redes enchem-se de peixes: o fruto deve-se à docilidade com que os discípulos seguem as indicações de Jesus. Acentua-se que o êxito da missão não se deve ao esforço humano, mas sim à presença viva e à Palavra do Senhor ressuscitado.

O surpreendente resultado da pesca faz com que um discípulo o reconheça. Este discípulo – o discípulo amado – é aquele que está sempre próximo de Jesus, em sintonia com Jesus e que faz, de forma intensa, a experiência do amor de Jesus: só quem faz essa experiência é capaz de ler os sinais que identificam Jesus e perceber a sua presença por detrás da vida que brota da acção da comunidade em missão.

Os pães com que Jesus acolhe os discípulos em terra são um sinal do amor, do serviço, da solicitude de Jesus pela sua comunidade em missão no mundo: deve haver aqui uma alusão à Eucaristia, ao pão que Jesus oferece, à vida com que Ele continua a alimentar a comunidade em missão.

O número dos peixes apanhados na rede (153) é de difícil explicação. É um número triangular, que resulta da soma dos números um a dezassete. O número dezassete não é um número bíblico… Mas o dez e o sete são: ambos simbolizam a plenitude e a universalidade. Outra explicação é dada por S. Jerónimo… Segundo ele, os naturalistas antigos distinguiam 153 espécies de peixes: assim, o número faria alusão à totalidade da humanidade, reunida na mesma Igreja. Em qualquer caso, significa totalidade e universalidade.

Na segunda parte do texto (vers. 15-19), Pedro confessa por três vezes o seu amor a Jesus (durante a paixão, o mesmo discípulo negou Jesus por três vezes, recusando dessa forma “embarcar” com o “mestre” na aventura do amor que se faz dom). Pedro – recordemo-lo – foi o discípulo que, na última ceia, recusou que Jesus lhe lavasse os pés porque, para ele, o Messias devia ser um rei poderoso, dominador, e não um rei de serviço e de dom da vida. Nessa altura, ao raciocinar em termos de superioridade e de autoridade, Pedro mostrou que ainda não percebera que a lei suprema da comunidade de Jesus é o amor total, o amor que se faz serviço e que vai até à entrega da vida. Jesus disse claramente a Pedro que quem tem uma mentalidade de domínio e de autoridade não tem lugar na comunidade cristã (cf. Jo 13,6-9).

A tríplice confissão de amor pedida a Pedro por Jesus corresponde, portanto, a um convite a que ele mude definitivamente a mentalidade. Pedro é convidado a perceber que, na comunidade de Jesus, o valor fundamental é o amor; não existe verdadeira adesão a Jesus, se não se estiver disposto a seguir esse caminho de amor e de entrega da vida que Jesus percorreu. Só assim Pedro poderá “seguir” Jesus (cf. Jo 21,19).

Ao mesmo tempo, Jesus confia a Pedro a missão de presidir à comunidade e de a animar; mas convida-o também a perceber onde é que reside, na comunidade cristã, a verdadeira fonte da autoridade: só quem ama muito e aceita a lógica do serviço e da doação da vida poderá presidir à comunidade de Jesus.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

PEDRO, O LUME NOVO, A REFEIÇÃO NOVA, O AMOR MAIOR

 

É-nos dada hoje a graça de ouvir a riquíssima página do Evangelho de João 21,1-19. A oposição luz – trevas atravessa de lés a lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, com Nicodemos, que anda de noite (João 3,2), com Judas, o homem da noite que tudo faz anoitecer à sua volta (João 13,30; 18,3), com os sete discípulos da cena de hoje que trabalharam toda a noite, sem sucesso (João 21,3).

Aí está, então, o Evangelho de hoje a acontecer. Jesus aparece de madrugada na praia, no limiar do dia e da alegria, aqui perto, a cem metros de nós. Com os olhos embotados pela doença do escuro – há tanto tempo temos as portas fechadas –, não O reconhecemos à primeira. Mas ouvimos a Sua voz carregada de amor e de verdade, que nos desvenda («Filhinhos [paidía], não tendes nada para comer, pois não?») (João 21,5) e nos aponta rumos verdadeiros: «Lançai a rede para a direita da barca, e encontrareis» (João 21,6). Extraordinária esta locução: «Filhinhos!». Tinha-os tratado assim na hora da separação (João 13,33), em que encontramos a mesma locução de afeto e carinhosa dependência «Filhinhos», expressa com teknía. Sim, afeto e carinhosa dependência. A experiência vai fazendo ver aos Discípulos que devem o seu sucesso, não ao seu próprio esforço, mas à Palavra de Jesus. Tantas vezes partiram para a pesca, e nada apanharam. Mas à Palavra de Jesus, eis que as redes se enchem. Ei-lo agora sobre a praia. Bem o vemos, mas não o reconhecemos à primeira. É preciso ver e ler os Sinais. «É o Senhor», diz para Pedro o discípulo, aquele que Jesus amava (João 21,7). E Pedro correu na direção de Jesus. Os outros seis vieram depois também, arrastando a barca carregada de peixes.

E sobre a praia já se encontra aceso o lume novo e a refeição nova, cuidadosamente preparada por Jesus (João 21,9). Agora Pedro está no lugar certo, com Jesus, e aquece-se no lume vivo, que é Jesus. Belo e exemplar contraponto: pouco antes, narrativamente falando, Pedro estava com os guardas, que andavam na noite, e aquecia-se a outro lume, aceso na noite, pelos guardas (João 18,18). Tinha rompido a sua intimidade com Jesus. Mas agora arrasta a rede cheia com 153 grandes peixes. E o narrador refere, chamando a nossa atenção, que, embora fossem muitos, a rede não se rompeu (João 21,11). «Romper» traduz o verbo grego schízô, donde vem etimologicamente «cisma», divisão. É, portanto, de comunhão e de unidade que se trata, e não de «cismas», dissensões, divisões. O número 153 ajuda a ler esta «comunhão», se quisermos ver nesse número a gematria, ou tradução em números, da locução hebraica qahal ha’ahabah [= «comunidade do amor»], excelente maneira de dizer a realidade nova e bela da Igreja.

E é sobre o amor o diálogo que se segue entre Jesus e Pedro: «Pedro, amas-me (verbo agapáô) mais…?», pergunta Jesus por três vezes. E por três vezes Pedro responde que sim, que é seu amigo (verbo philéô) ouvindo de Jesus, também por três vezes a nova missão de «Pastor» que lhe é confiada: «Apascenta as minhas ovelhas» (João 21,15-17). O verbo com que Jesus interroga Pedro acerca do amor é, nas duas primeiras vezes, agapáô, amor puro e gratuito, sem fronteiras, que não cabe em nenhum grupo de amigos. Mas o verbo com que Pedro responde a Jesus é philéô, que qualifica a amizade que é apanágio de um grupo de amigos. Na sua admirável condescendência, quando pergunta pela terceira vez, Jesus desce ao nível de Pedro, usando o verbo philéô, para que Pedro acerte com a resposta. Sim, Jesus desce ao nível de Pedro, não para ficar aí, no patamar de Pedro, mas para elevar Pedro a um novo patamar de amor. Entenda-se bem que as ovelhas nunca deixam de ser pertença de Jesus Ressuscitado. E a afirmação por três vezes do amor de Pedro a Jesus recompõe a intimidade rompida por Pedro com aquelas três negações um pouco antes narradas (João 18,17-27). Note-se ainda que o último colóquio havido entre Pedro e Jesus tinha tido lugar, significativamente, na hora da separação (João 13,36-38), em que Pedro jura dar a vida por Jesus, se necessário for, e Jesus responde a Pedro que sim, que o há de seguir mais tarde, mas que, entretanto, ainda o irá negar por três vezes. Na verdade, o dizer de Jesus para Pedro : «Seguir-me-ás mais tarde» (João 13,36) cumpre-se agora em João 21,18, quando Jesus se refere à juventude de Pedro, em que ele andava por onde queria, contrapondo-a à sua velhice, em que outro o conduzirá para onde ele não quer. O narrador informa o leitor de que Jesus disse o que disse para indicar com que espécie de morte Pedro daria glória a Deus. E Jesus acrescentou logo: «Segue-me!», deixando Pedro no seu próprio caminho, que conduz à Cruz (João 21,19 e 22).

Senhor, ensina a tua Igreja de hoje outra vez a ver e a ler os Sinais da Tua presença na madrugada e na praia, novo limiar de luz e de esperança que orienta a nossa vida toda para Ti, referência fundamental do amor e da comunhão que deve unir como uma rede a Tua Igreja. Precede-nos e preside-nos sempre. Não nos deixes perdidos no nevoeiro e na confusão, na noite e no frio, a orientar-nos por outro farol, a aquecer-nos a outro lume. Faz que reconheçamos sempre a Tua voz de Único Verdadeiro Pastor, e ampara os pastores que incumbiste de apascentar as tuas ovelhas.

A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (5,27-32.40-41) mostra-nos os Apóstolos como testemunhas do Ressuscitado. Cheios do Espírito Santo, intrépidos, sem medo, e com alegria grande, enchem Jerusalém com o nome de Jesus. Extraordinária provocação para nós, que temos tanta cidade e tantos corações à nossa espera.

Jesus é a testemunha fiel (Apocalipse 1,5), porque diz o que ouviu dizer ao Pai (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e faz o que viu fazer ao Pai (João 5,19; 17,4). Por isso, todas as criaturas o aclamam, como refere a lição de hoje do Livro do Apocalipse (5,11-14).

O Salmo 30 é uma bela e sentida Ação de Graças a um Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de alegria, saúde, vida, dança e música de festa. O Deus aqui louvado é um Deus que muda as nossas situações difíceis e, por vezes, aparentemente sem saída, em amplas avenidas floridas. É por isso que, como diz o próprio título «Cântico para a Dedicação do Templo», este Salmo anda ligado à Festa da Hanûkkah ou da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 164 a.C. e o fez purificar depois de um período de ocupação pelos selêucidas.

Passa também neste Domingo III da Páscoa o Dia da Mãe. Sobre esta terra dorida, anestesiada e indiferente, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo deste amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso. É de Deus. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição da Leitura do Livro do Apocalipse 21,4.

É claro que Pedro era amigo de Jesus,

E sabia bem que também Jesus era amigo dele.

Por isso, vincando a sua amizade por Jesus,

No coração daquela Ceia cheia de intimidade e de traição,

Pedro declara que a sua amizade por Jesus é sem engano,

De tal modo que afirma estar disposto a dar a sua vida por Jesus.

E, para mostrar que é assim,

Ei-lo logo a seguir a puxar da espada no jardim.

Mas, pouco depois, naquele átrio alumiado pela lua-cheia,

E aquecido pelo lume dos guardas,

Pedro nega ter andado com Jesus,

Nega ter alguma coisa a ver com Jesus,

Nega mesmo conhecer Jesus.

E, de facto, bem vistas as coisas, parece que Pedro não conhecia bem Jesus.

Pedro estava disposto a dar a vida por Jesus, pois era seu amigo,

E pensava que também Jesus podia dar a sua vida por ele, pois era seu amigo.

Mas Pedro entrou em crise quando começou a perceber

Que, afinal, habitava Jesus um amor novo, sem medida e sem fronteiras,

Que o levava a querer dar a sua vida por todos,

Inclusive pelos inimigos,

Por aqueles que o iam matar,

E o mataram.

Mas há ainda, sobre aquela praia do mar da Galileia,

Um último confronto entre Jesus e Pedro,

Entre o amor novo de Jesus que abraça a todos,

E a amizade de Pedro circunscrita ao seu grupo de amigos.

Aí, Jesus interrogará Pedro sobre o amor novo,

E Pedro responderá que sim,

Que é amigo de Jesus.

Na verdade, Pedro continua a ler a sua vida e o seu relacionamento com Jesus,

Dentro das fronteiras da amizade que une um grupo de amigos.

Falta ainda a Pedro entender a lição do amor novo de Jesus,

Que ama a todos,

Que é para todos,

E rebenta assim as fronteiras fechadas de qualquer grupo de amigos.

Quando o entender,

Também Pedro saltará as fronteiras da amizade confinada a um grupo de amigos,

E saberá amar também os inimigos,

Aqueles que o querem matar,

E o mataram.

Sim, Jesus é aquele que dá a sua vida por amor, para sempre e para todos,

E é o único Mestre que ensina a viver desta maneira.

Ensina-nos, Senhor,

A amar como Tu,

A viver como Tu,

A dar a vida como Tu.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo III da Páscoa – 01.05.2022 (Act 5, 27b-32.40b-41)
  2. Leitura II – Domingo III da Páscoa – 01.05.2022 (Ap 5, 11-14)
  3. Domingo III da Páscoa – Ano C – 01.05.2022 – Lecionário
  4. Domingo III da Páscoa – Ano C – 01.05.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

II Domingo da Páscoa ou da Divina Misericórdia – Ano C – 24.04.2022

 
«A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
«Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa e Tomé com eles».
«Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto»
 

 

Viver a Palavra

 O Evangelho deste Domingo situa-se: «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Os discípulos estavam reunidos com medo dos judeus, mas Jesus coloca-se no meio deles e saúda-os com a Sua Paz, mostra-lhes as marcas da Paixão e concede-lhes o dom do Espírito Santo para que eles sejam sinal de reconciliação e de paz junto daqueles a quem são enviados.

Mas Tomé, aquele a quem chamavam Dídimo, não estava com o grupo neste momento e, tendo regressado, afirma que só acreditará se vir com os seus próprios olhos e tocar com as suas mãos. Por isso, Jesus volta a aparecer aos Seus discípulos e o Evangelho indica que tudo isto aconteceu «oito dias depois».

As indicações temporais que o Evangelho nos apresenta não são apenas as anotações jornalísticas para situar a ação descrita. Nestas indicações temporais encontramos o ritmo da vida da Igreja: «o primeiro da semana» e «oito dias depois». Este é o ritmo da assembleia cristã que hebdomadariamente, isto é, semanalmente, se reúne. Domingo após Domingo, congrega-se para celebrar a sua fé e proclamar a certeza de que o Ressuscitado acompanha a Sua Igreja, oferecendo-lhe a Sua Paz e concedendo-lhe o dom do Espírito.

Por isso, cada Domingo é o Dia do Senhor, dia de festa e de alegria, onde a comunidade cristã reunida à volta da mesa do altar, escutando a Palavra do Senhor e partilhando o Seu pão, renova a certeza desse amor maior que se faz entrega total e plena na Cruz. Ninguém está dispensado desta reunião festiva dos filhos de Deus. A aventura da fé não é uma aventura isolada à qual nos propomos sozinhos. Como Tomé, quando nos afastamos da comunidade, o desafio de acreditar torna-se mais difícil e exigente. Aquele que se afasta da comunidade afasta-se da experiência comunitária de Jesus, do lugar privilegiado onde Deus se revela e manifesta como Rosto da misericórdia do Pai.

O Evangelho apresenta Tomé como Dídimo, isto é, gémeo. Na verdade, Tomé não está sozinho. Também nós duvidamos, vacilamos e titubeamos, sobretudo quando nos propomos a caminhar sozinhos, quando nos afastamos da comunidade ou quando ferimos a comunhão e unidade pelas divisões e discórdias que nos afastam dos outros e que afastam os outros. O melhor testemunho que a Igreja pode oferecer ao mundo é a sua comunhão e unidade, com comunidades acolhedoras, geradoras de relações fraternas, para que guiadas e iluminadas pelo Espírito Santo se tornem lugares da Paz que só o Ressuscitado e o Seu infinito amor podem oferecer e garantir.

«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». O Ressuscitado identifica-se diante dos discípulos mostrando-lhes «as mãos e o lado». As marcas da paixão identificam Jesus e revelam que o Ressuscitado é Aquele que oferece a Sua vida por nós. Mas também hoje, Jesus continua a revelar as marcas da Sua paixão e do Seu sofrimento nas chagas dolorosas dos que se cruzam connosco. Confessar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado é viver atento ao sofrimento dos irmãos e procurar responder com gestos concretos de proximidade e misericórdia.

Somos discípulos missionários. Somos enviados ao jeito de Jesus, para que as nossas vidas se tornem feliz anúncio da misericórdia de Deus. Não basta sermos crentes, precisamos ser credíveis, proclamando com a vida aquilo que os nossos lábios professam.in Voz Portucalense

LEITURA I –. Actos 5, 12-16

«Uma multidão cada vez maior de homens e mulheres aderia ao Senhor pela fé».

Ambiente

O livro dos Atos dos Apóstolos apresenta o “caminho” que a Igreja de Jesus percorreu, desde Jerusalém até Roma, o coração do império. No entanto, foi de Jerusalém, o lugar onde irrompeu a salvação – isto é, onde Jesus sofreu, morreu, ressuscitou e subiu ao céu –, que tudo partiu. Foi aí que nasceu a primeira comunidade cristã e que essa comunidade, pela primeira vez, se assumiu como testemunha de Jesus diante do mundo.
O texto que nos é proposto é um dos três sumários que aparecem na primeira parte dos “Atos”; esses sumários apresentam temas comuns e afinidades de estrutura que convidam a considerá-los conjuntamente. No conjunto, esses sumários pretendem apresentar as várias facetas do testemunho dado pela Igreja de Jerusalém. O primeiro aparece em 2,42-47 e é dedicado ao tema da unidade e ao impacto que o estilo cristão de vida provocou no povo da cidade; o segundo aparece em 4,32-37 e é dedicado ao tema da partilha dos bens; o terceiro (a primeira leitura de hoje) apresenta o testemunho da Igreja através da atividade miraculosa dos apóstolos. in Dehonianos

 

Para reflexão

A primeira frase desta leitura apresenta o tema: “pelas mãos dos apóstolos realizavam-se muitos milagres e prodígios entre o povo”.

A descrição da ação dos apóstolos e da reação do povo é, neste contexto, muito parecida com certos relatos de curas e certos resumos da atividade taumatúrgica de Jesus que encontramos nos evangelhos sinópticos. Isso diz-nos, desde logo, duas coisas: que não se trata de uma reportagem fotográfica de acontecimentos, mas de um resumo teológico; e que Lucas vê uma continuidade entre a missão de Jesus e a missão da comunidade cristã (a mesma atividade salvadora e libertadora de Jesus em favor dos pobres e dos oprimidos é continuada agora no mundo pela sua Igreja).

Um desenvolvimento especialmente interessante é a atribuição à “sombra” de Pedro de virtudes curativas (cf. Act 5,15b). Isso nunca foi dito acerca de Cristo… Significa que Pedro tinha mais poder do que Cristo? Não. Significa, provavelmente, que nada é impossível àquele que se coloca na órbita de Cristo e recebe d’Ele a força para testemunhar.

Devemos ter presente, para entender a mensagem, o cenário de fundo deste texto: os apóstolos são as testemunhas de Jesus ressuscitado e do seu projeto libertador para o mundo; os gestos realizados servem para dar testemunho da ressurreição, isto é, dessa vida nova que em Cristo começou e que, através dos seguidores de Cristo ressuscitado, deve chegar a todos os homens

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 117 (118)

Refrão: Aclamai o Senhor, porque Ele é bom: o seu amor é para sempre.

LEITURA II – Ap 1, 9-11a.12-13.17-19

«Eu sou o Primeiro e o Último, o que vive. Estive morto, mas eis-Me vivo pelos séculos dos séculos».

Ambiente

Estamos nos finais do reinado de Domiciano (à volta do ano 95); os cristãos eram perseguidos de forma violenta e organizada e parecia que todos os poderes do mundo se voltavam contra os seguidores de Cristo. Muitos cristãos, cheios de medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava mesmo como senhor todo-poderoso era o Imperador de Roma.

É neste contexto de perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o Apocalipse. O objetivo do autor é apresentar aos crentes um convite à conversão (primeira parte – Ap 1-3) e uma leitura profética da história que os ajude a enfrentar a tempestade com esperança e a acreditar na vitória final de Deus e dos crentes (segunda parte – Ap 4-22).

O texto da primeira leitura de hoje pertence à primeira parte do livro. Nele, apresenta-se – recorrendo à linguagem simbólica, pois é através dos símbolos que melhor se expressa a realidade do mistério – o “Filho do Homem”: é Ele o Senhor da história e Aquele através de quem Deus revela aos homens o seu projeto.

 

 Para reflexão

Esse “Filho do Homem” é Cristo ressuscitado. Para o descrever em pormenor, o autor (um tal João, exilado na ilha de Patmos por causa do Evangelho) vai recorrer a símbolos herdados do mundo vétero-testamentário que sublinham, antes de mais, a divindade de Jesus.

O texto que hoje a liturgia nos propõe não apresenta a descrição original completa (faltam os versículos 14-16). Nos versículos que nos são propostos, este “Filho do Homem” é apresentado como o Senhor que preside à sua Igreja (no vers. 12, os sete candelabros representam a totalidade da Igreja de Jesus; recordar que o sete é o número que indica plenitude, totalidade) e que caminha no meio dela e com ela (vers. 13a); Ele está revestido de dignidade sacerdotal (a longa túnica, distintivo da dignidade sacerdotal revela que Ele é, agora, o verdadeiro intermediário entre Deus e os homens – vers. 13b) e possui dignidade real (o cinto de ouro, porque n’Ele reside a realeza e a autoridade sobre a história, o mundo e a Igreja – vers. 13c). Sobretudo, Ele é o Cristo do mistério pascal: esteve morto, voltou à vida e é agora o Senhor da vida que derrotou a morte (vers. 18). A história começa e acaba n’Ele (vers. 17b). Por isso, os cristãos nada terão a temer.

A João, Cristo ressuscitado confia a missão profética de testemunhar. O facto de João cair por terra como morto e o facto de o Senhor o reanimar com um gesto (vers. 17) fazem-nos pensar em vários relatos de vocação profética do Antigo Testamento. O “profeta” João é, pois, enviado às igrejas; a sua missão é anunciar uma mensagem de esperança que permita enfrentar o medo e a perseguição. Sobretudo, é chamado a anunciar a todos os cristãos que Jesus ressuscitado está vivo, que caminha no meio da sua Igreja e que, com Ele, nenhum mal nos acontecerá pois é Ele que preside à história.in Dehonianos.

EVANGELHO Jo 20, 19-31

«A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».

«Oito dias depois, estavam os discípulos outra vez em casa e Tomé com eles».

«Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto»

 

Ambiente

Continuamos na segunda parte do Quarto Evangelho, onde nos é apresentada a comunidade da Nova Aliança. A indicação de que estamos no “primeiro dia da semana” faz, outra vez, referência ao tempo novo, a esse tempo que se segue à morte/ressurreição de Jesus, ao tempo da nova criação.

A comunidade criada a partir da ação de Jesus está reunida no cenáculo, em Jerusalém. Está desamparada e insegura, cercada por um ambiente hostil. O medo vem do facto de não terem, ainda, feito a experiência de Cristo ressuscitado.

 

Para reflexão

O texto que nos é proposto divide-se em duas partes bem distintas.

Na primeira parte (cf. Jo 20,19-23), descreve-se uma “aparição” de Jesus aos discípulos. Depois de sugerir a situação de insegurança e fragilidade que dominava a comunidade (o “anoitecer”, “as portas fechadas”, o “medo”), o autor deste texto apresenta Jesus “no centro” da comunidade (vers. 19b). Ao aparecer “no meio deles”, Jesus assume-Se como ponto de referência, fator de unidade, a videira à volta da qual se enxertam os ramos. A comunidade está reunida à volta d’Ele, pois Ele é o centro onde todos vão beber a vida.

A esta comunidade fechada, com medo, mergulhada nas trevas de um mundo hostil, Jesus transmite duplamente a paz (vers. 19 e 21: é o “shalom” hebraico, no sentido de harmonia, serenidade, tranquilidade, confiança). Assegura-se, assim, aos discípulos que Jesus venceu aquilo que os assustava: a morte, a opressão, a hostilidade do “mundo”.

Depois (vers. 20a), Jesus revela a sua “identidade”: nas mãos e no lado trespassado, estão os sinais do seu amor e da sua entrega. É nesses sinais de amor e doação que a comunidade reconhece Jesus vivo e presente no seu meio. A permanência desses “sinais” indica a permanência do amor de Jesus: Ele será sempre o Messias que ama, e do qual brotarão a água e o sangue que constituem e alimentam a comunidade.

Em seguida (vers. 22), Jesus “soprou sobre eles”. O verbo aqui utilizado é o mesmo do texto grego de Gn 2,7 (quando se diz que Deus soprou sobre o homem de argila, infundindo-lhe a vida de Deus). Com o “sopro” de Gn 2,7, o homem tornou-se um ser vivente; com este “sopro”, Jesus transmite aos discípulos a vida nova que fará deles homens novos. Agora, os discípulos possuem o Espírito, a vida de Deus, para poderem – como Jesus – dar-se generosamente aos outros. É este Espírito que constitui e anima a comunidade.

As palavras de Jesus à comunidade contêm ainda uma referência à missão (vers. 23). Os discípulos são enviados a prolongar o oferecimento de vida que o Pai apresenta à humanidade em Jesus. Quem aceitar essa proposta de vida, será integrado na comunidade; quem a rejeitar, ficará à margem da comunidade de Jesus.
Na segunda parte (cf. Jo 20,24-29), apresenta-se uma catequese sobre a fé. Como é que se chega à fé em Cristo ressuscitado? João responde: podemos fazer a experiência da fé em Jesus vivo e ressuscitado na comunidade dos crentes, que é o lugar natural onde se manifesta e irradia o amor de Jesus. Tomé representa aqueles que vivem fechados em si próprios (está fora) e que não faz caso do testemunho da comunidade nem percebe os sinais de vida nova que nela se manifestam. Em lugar de se integrar e participar da mesma experiência, pretende obter uma demonstração particular de Deus.

Tomé acaba, no entanto, por fazer a experiência de Cristo vivo no interior da comunidade. Porquê? Porque, no “dia do Senhor”, volta a estar com a sua comunidade. É uma alusão clara ao domingo, ao dia em que a comunidade é convocada para celebrar a Eucaristia: é no encontro com o amor fraterno, com o perdão dos irmãos, com a Palavra proclamada, com o pão de Jesus partilhado, que se descobre Jesus ressuscitado.
A experiência de Tomé não é exclusiva das primeiras testemunhas; mas todos os cristãos de todos os tempos podem fazer esta mesma experiência.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura do livro dos Atos dos Apóstolos descreve o modo como crescia e se desenvolvia a Igreja Primitiva. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ser marcada por um tom narrativo e descritivo.

A segunda leitura possui frases longas com diversas orações que requerem uma boa preparação nas pausas e respirações. Deve haver uma especial atenção ao discurso direto, sobretudo a parte final do texto onde essa figura «semelhante a um filho do homem» se apresenta como «Primeiro e o Último, o que vive».

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A IDENTIDADE DO RESSUSCITADO NÃO PASSA PELO ROSTO, MAS PELAS MÃOS E CORAÇÃO ABERTOS: VIDA DADA POR AMOR, PARA SEMPRE, PARA TODOS!

Em 30 de abril do ano 2000, o Papa São João Paulo II consagrou o Domingo II da Páscoa como «Domingo da Divina Misericórdia». Compreende-se que, nesse mesmo dia, tenha canonizado a religiosa e mística polaca Santa Faustina Kowalska (1905-1938), primeira canonização do novo milénio, que, no seu Diário, registava o pedido que lhe fazia Jesus de a Igreja vir a instituir solenemente o primeiro Domingo depois da Páscoa (como então se dizia) como Festa da Divina Misericórdia.

Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (napah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado aberto, mãos dadas e coração aberto, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.

 Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

E o Autor do Livro do Apocalipse desenha também diante de nós, na lição de hoje (Apocalipse 1,9-19), a figura sublime do Filho do Homem, O que Vive (ho zôn) (Apocalipse 1,18), porque venceu a morte para sempre, e nos protege sempre, pondo sobre nós a sua mão direita (Apocalipse 1,17). Excelente visualização da Divina Misericórdia, milagre aos nossos olhos, amor e bondade sem medida com que o bom Deus enche os nossos dias, as nossas mãos, o nosso coração, as nossas entranhas, os nossos passos. É assim que, como refere São Máximo Confessor (580-662), «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». E A misericórdia é a chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.

Cantemos, por isso, o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel Pascal» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24), e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom,/ porque para sempre é o seu amor!» (vv. 1 e 29).

Senhor Jesus,

Há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver.

Mas quando dizem que Te querem ver,

Não é para Te conhecer.

É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,

A tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia.

Querem ver-te como se fosse numa fotografia.

Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,

Quando Te dás a conhecer a nós,

Não mostras o rosto,

Uma fotografia,

O cartão de cidadão.

Se fosse assim,

Mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.

E o facto é que,

Quando surges no meio deles,

Não Te reconhecem.

E em vez do rosto,

São, afinal, as mãos e o lado que apresentas.

Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver.

Na verdade, a tua identidade é dar a vida,

É dar a mão e o coração.

É essa a tua lição, a tua paixão, a tua ressurreição.

Senhor, dá-nos sempre desse pão!

 António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – Ano C – 24.047.2022 (Act 5, 12-16)
  2. Leitura II – Ano C – 24.04.2022 (Ap 1, 9-11a.12-13.17-19)
  3. II Domingo da Páscoa – Ano C – 24.04.2022 – Lecionário
  4. II Domingo da Páscoa – Ano C – 24.04.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

SOLENIDADE DA PÁSCOA DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR – Ano C – 17.04.2022

Viver a Palavra

 Como testemunha S. Pedro, Jesus que durante a vida passou fazendo bem, curando aqueles que Dele se aproximavam, anunciando a Boa Nova da Paz e do Perdão e foi condenado à morte injustamente. Ele que procurou levantar os caídos, Ele que procurou libertar os que estavam prisioneiros, foi crucificado, preso a um madeiro como um condenado. Descido da cruz, foi depositado num sepulcro novo cavado na rocha e aos olhos do mundo tinha acabado ali a sua história. Estava calado o Profeta da Galileia! Tinha dito coisas bonitas, mas tinha morrido; tinha curado muitas pessoas, mas deixou-se morrer!

            Porém, a manhã de Páscoa irrompeu na história como tempo novo que abre as portas da eternidade. As mulheres acorrem ao sepulcro e veem removida a pedra. Pedro e João, alvoraçados pelas palavras daquelas que se fizeram as primeiras anunciadoras da ressurreição, contemplam um sepulcro vazio, contendo apenas os panos que envolveram o Seu corpo.

Mas, na verdade, o sepulcro não está vazio, está cheio de sinais da vida ressuscitada Daquele que é a verdadeira vida e o doador de sentido para a humanidade. A pedra removida, os panos, os Anjos, a Boa notícia da Ressurreição fazem ecoar no tempo e na história a certeza de que a morte não consegue calar a Voz que anuncia o amor, pois como afirma o livro do Cântico dos Cânticos: «o amor é mais forte do que a morte» (Ct 8,6).

«Cristo Ressuscitou! Aleluia! Aleluia». Estas palavras cheias de alegria e de esperança são repetidas mundo fora por milhões de homens e mulheres, trazendo a certeza de que nem a morte, nem a pedra do sepulcro, por mais pesada que seja, conseguiu conter o grito do amor que brotou do coração de Deus e que em Jesus Cristo quer abraçar o coração da humanidade.

Dois mil anos depois, Deus continua a manifestar os seus sinais e prodígios, continua vivo e atuante na história, irrompendo como luz que desfaz as nossas trevas, como amor que destrói o ódio, como paz que dissipa a guerra, como esperança que nos aponta o caminho da eternidade.

Mas afinal, que tem a Ressurreição de Jesus a ver com a nossa vida? Jesus Ressuscitou, mas que implicação tem essa notícia no nosso quotidiano?

Na verdade, a Ressurreição de Jesus tem tudo que ver com a nossa vida. O mistério pascal transfigura a nossa existência e convida-nos a viver o nosso quotidiano a partir deste horizonte de esperança que brota da ressurreição. S. Paulo recorda-nos: «se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus. Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra».

A meta que Jesus nos aponta configura os nossos passos. Chamados à santidade, somos chamados a viver no aqui e agora do tempo e da história, a alegria que um dia será plena e definitiva no Céu. De olhos postos na meta da nossa existência e de pés bem assentes na terra, somos desafiados a ser testemunhas da ressurreição, através de gestos concretos de proximidade e encontro, que geram vida nova e oferecem uma esperança renovada. A luz que brota da Páscoa de Jesus tem de chegar a todos os lugares, sobretudo às periferias existenciais ainda marcadas pela marginalização e pela indiferença, pela dor e pelo sofrimento, pela humilhação e o desprezo. Por isso, façamos das nossas vidas lugares de anúncio da vida nova que brota da Páscoa, pois como escreveu o Papa Francisco na sua mais recente exortação aos jovens: «Cristo vive: é Ele a nossa esperança e a mais bela juventude deste mundo! Tudo o que toca torna-se jovem, fica novo, enche-se de vida» (CV 1). in Voz Portucalense

LEITURA I – Atos 10, 34a.37-43

«Deus ressuscitou-O ao terceiro dia e permitiu-Lhe manifestar-Se a nós que comemos e bebemos com Ele, depois de ter ressuscitado dos mortos».

 

A obra de Lucas (Evangelho e Atos dos Apóstolos) aparece entre os anos 80 e 90, numa fase em que a Igreja já se encontra organizada e estruturada, mas em que começam a surgir “mestres” pouco ortodoxos, com propostas doutrinais estranhas e, às vezes, pouco cristãs. Neste ambiente, as comunidades cristãs começam a necessitar de critérios claros que lhes permitam discernir a verdadeira doutrina de Jesus da falsa doutrina dos falsos mestres.

Lucas apresenta, então, a Palavra de Jesus, transmitida pelos apóstolos sob o impulso do Espírito Santo: é essa Palavra que contém a proposta libertadora de Deus para os homens. Nos Atos, em especial, Lucas mostra como a Igreja nasce da Palavra de Jesus, fielmente anunciada pelos apóstolos; será esta Igreja, animada pelo Espírito, fiel à doutrina transmitida pelos apóstolos, que tornará presente o plano salvador do Pai e o fará chegar a todos os homens.

Neste texto em concreto, Lucas propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. Act 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. Act 10,23b-48). O episódio é importante, porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze (o etíope de que se fala em Act 8,26-40 já era “prosélito”, isto é, simpatizante do judaísmo). Significa que a vida nova que nasce de Jesus é para todos os homens. in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 117 (118)

Refrão: Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria.

 

LEITURA II – Col 3, 1-4

«Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus».

 

Quando escreveu aos Colossenses, Paulo estava na prisão (em Roma?). Epafras, seu amigo, visitou-o e falou-lhe da “crise” por que estava a passar a igreja de Colossos. Alguns doutores locais ensinavam doutrinas estranhas, que misturavam especulações acerca dos anjos (cf. Col 2,18), práticas ascéticas, práticas legalistas, prescrições sobre os alimentos e observância de determinadas festas (cf. Col 2,16.21): tudo isso deveria (na opinião desses “mestres”) completar a fé em Cristo, comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios e possibilitar uma vida religiosa mais autêntica. Contra este sincretismo religioso, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo.

O texto que nos é proposto como segunda leitura é a introdução à reflexão moral da carta (cf. Col 3,1-4,1-6). Depois de apresentar a centralidade de Cristo no projeto salvador de Deus para os homens (cf. Col 1,13-2,23), Paulo assinala como fundamento da vida cristã a ressurreição e a consequente união com Cristo.in Dehonianos.

EVANGELHO Jo 20, 1-9

«Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro».

«Levaram o Senhor do sepulcro, e não sabemos onde O puseram».

«Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos».

  Na primeira parte do Quarto Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42), João descreve a atividade criadora e vivificadora do Messias (o último passo dessa atividade destinada a fazer surgir o homem novo é, precisamente, a morte na cruz: aí, Jesus apresenta a última e definitiva lição – a lição do amor total, que não guarda nada para Si, mas faz da sua vida um dom radical); na segunda parte (cf. Jo 20,1-31), João apresenta o resultado da ação de Jesus: a comunidade de Homens Novos, recriados e vivificados por Jesus, que com Ele aprenderam a amar com radicalidade. Trata-se dessa comunidade de homens e mulheres que se converteram e aderiram a Jesus e que, em cada dia – mesmo diante do sepulcro vazio – são convidados a manifestar a sua fé n’Ele. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura é marcada por um longo discurso de Pedro anunciando a ressurreição de Jesus. A proclamação desta leitura deve ter em atenção as longas frases com diversas orações que exigem um especial cuidado na respiração e nas pausas.

A brevidade da segunda leitura, tirada da Carta aos Colossenses, não deve diminuir o cuidado na sua preparação. A ressurreição de Cristo é fonte de transformação da vida dos fiéis. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom exortativo, valorizando as formas verbais no imperativo: «aspirai» e «afeiçoai-vos».

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

TÚMULO ABERTO, MAS NÃO VAZIO, CHEIO DE SINAIS

«Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, deci­frando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a meto­nímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início). Par­ticularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a «caminhada» quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Efésios 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos (com a Chará, a alegria grande da Páscoa), pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Atos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Atos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico todo, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redi­mida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do al­tar, do ambão, do batistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, donde emerge continuamente a mensagem da Ressurreição. Aleluia!

O Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-10, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentava-se sobre ela (Mateus 28,2), impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4), dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4), as faixas de linho no chão e o sudário enrolado noutro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram uma presença nova que somos convidados a descobrir.

O texto imenso de João 20,1-10 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não:

A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) que até causa aflição a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece contraponto com a pedra por algum tempo retirada (aoristo de aírô) pelos homens do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41). Cega pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende ou dá bom resultado. A oposição luz – trevas atravessa de lés-a-lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos, que nada pescam de noite (João 21,3) e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido na noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).

A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e o «discípulo amado». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madale­na vai ao túmulo, e vê (blépô) a pedra (da morte) retirada. 2) O outro discípulo, «o discípulo amado», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e vê (blépô) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o discípulo amado», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo-Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim! Deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, o «discípulo amado» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR o «discípulo amado», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!

Pedro, que corria juntamente com o «discípulo amado», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que o «discípulo amado» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e vê (theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada tão em ordem! Por isso, Pedro vê com o olhar de quem fica a pensar no que se terá passado… Talvez seja coisa de Deus… Com a indica­ção preciosa de que o véu foi cuidadosamente retirado do seu Rosto, a Revelação convida agora a contemplar o Rosto divino no Rosto humano do Ressuscitado: vendo‑o a Ele, vê‑se o Pai (cf. João 14,9).

«O discípulo amado» entrou, viu com um olhar histórico (tempo aoristo) de quem vê por dentro a identidade (verbo grego ideîn), e acreditou (v. 8). É o olhar de quem vê o inefável, verdadeiro clímax do relato: anote‑se a passagem do verbo ver do presente para o aoristo, e de fora para dentro: «o discípulo amado» viu na história a identidade dos «sinais»: toda a Economia divina realizada! O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde.

Resumindo: a narrativa de João 20 abre com a Madalena, que vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. Conforme a grandiosa narrativa, a Madalena tem diante dos olhos o inefável. Mas cega como está pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Não é de admirar, dado que a Madalena anda pelo escuro, e, no IV Evangelho, quem anda no escuro ou na noite, não vê a Luz.

  1. Ainda que não faça parte do Evangelho deste Dia Grande, vale a pena, para que não fique perdido, acostar aqui o percurso que a Madalena continua a fazer em João 20,11-18. Mudou de olhar. Aparece agora junto do túmulo a chorar, inclina-se e vê, agora também (como Pedro) com um ver que dá que pensar (verbo grego theôréô), dois anjos vestidos de branco (cor divina), estrategicamente colocados no túmulo, como sinais. Perguntam à Madalena: «Mulher, por que choras?». Na verdade, ela ainda está do lado da morte, do escuro, da dor, da tristeza. A paisagem em que se move ou a página que a move ainda é o Capítulo 19 de João, daquele Jesus morto por mãos humanas retirado (João 19,38), daquele Rei por mãos humanas retirado (João 19,15[2x]), ou até daquela pedra por mãos humanas retirada do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41) – em todos os casos o verbo aírôno aoristo –, não sabendo ainda ler a pedra para sempre retirada por Deus, de João 20,1. É ainda à procura de um corpo morto que ela anda. De um corpo morto a que ela se acha com direito de posse. Talvez seja este o preconceito que lhe tolhe o olhar e a impede de ver o inefável. Na verdade, responde assim à pergunta feita pelos dois anjos: «Retiraram o meu Senhor, e não sei onde o puseram» (João 20,13). Note-se outra vez o aoristo do verbo aírô, e note-se agora também o possessivo «meu» afeto a Senhor.

Voltando-se para o jardim, vê, outra vez com um ver que dá que pensar (theôréô), um homem de pé, que ela pensa ser o jardineiro, mas que, na verdade, é Jesus, que a deixa espantada com a segunda pergunta que lhe faz: «Mulher, por que choras? (normal, pois ela continuava a chorar); a quem procuras?». Esta segunda pergunta desvenda a Madalena, retirando-a dos preconceitos que a cegam. Precedendo-a, antecipando-se a ela, adivinhando-a com aquela pergunta direita ao coração, Jesus dá-se a conhecer à Madalena, deixando-a a pensar mais ou menos assim: «E como é que este desconhecido sabe que eu ando à procura de alguém neste jardim?». Compreendendo-se compreendida, a Madalena começa a sair aqui da sua cegueira, mas ainda precisa de algum tempo para mudar de paisagem, de margem, de página, do Capítulo 19 para o Capítulo 20. A resposta que dá é elucidativa: «Se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste, e eu o retirarei» (João 20,15).

Ao responder com um pronome três vezes repetido, que esconde o nome, vê-se bem que a Madalena sabe que aquele desconhecido bem sabe quem ela procura. E confessa aqui o intento que desde aquela madrugada, ainda escuro, a movia: retirar para si aquele corpo morto! Manifesta que anda ainda perdida no Capítulo 19, quando responde «em hebraico» (hebraïstí) a Jesus que acabava de pronunciar o nome dela: «Maria!» (João 20,16). A locução adverbial «em hebraico» (hebraïstí) é uma ponte para João 19,13 e 17. Equivocada como anda, ainda quer reter o Ressuscitado, mas não pode: aprende ainda que nada nem ninguém pode reter o Ressuscitado, aquela vida nova, aquele modo novo de estar presente! Leva tempo até passar da margem da morte para a margem da vida verdadeira! E finalmente vai anunciar aos discípulos, que Jesus significativamente chama «meus irmãos» (João 20,17), enviada pelo Ressuscitado: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18). Nova mudança de olhar. O que ela diz agora é: Vi e continuo a ver o Senhor! É o que significa o verbo grego horáô, no tempo perfeito. É o olhar da testemunha que vê o inefável! Aqui termina a Madalena o seu longo e belo percurso, e sai de cena.

É o amor, ainda que imperfeito,

É o amor, ainda que com defeito,

É o amor que faz correr a Madalena.

É o amor, ainda que imperfeito,

É o amor, ainda que com defeito,

É o amor que faz chorar a Madalena.

Mas tu sabes, meu irmão da páscoa plena,

Tu sabes que há outro amor em cena,

E é esse amor que faz amar a Madalena.

Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-138) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A atual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasis e Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.

Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Atos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exatamente para dar teste­munho. Viram e testemunham o Batismo de Jesus, a execução da sua missão filial batismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurrei­ção Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.

 O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida batismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coi­sas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exorta­ção que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».

Em alternativa a Colossenses 3,1-4, pode ler-se e escutar-se 1 Coríntios 5,6-8. A sua linguagem é da cor da Páscoa (grego páscha, hebraico pesah). O Novo Testamento usa o termo grego páscha [= Páscoa] por 28 vezes, assim distribuídas: 24 vezes nos Evangelhos + Atos 12,4 e Hebreus 11,28, todas em referência exclusiva à Páscoa hebraica do Antigo Testamento; as duas menções que faltam são precisamente 1 Coríntios 5,7 e Lucas 22,15, esta com o precioso lógion de Jesus: «Desejei ardentemente esta Páscoa (toûto tò páscha) comer convosco». Em 1 Coríntios 5,7, lemos a expressão tò páscha hêmôn etýthê Christós, cuja tradução não pode ser «Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado», como se vê habitualmente, mas «durante a nossa Páscoa (hebraica), foi imolado Cristo». Os motivos são gramaticais (tò páscha hêmôn é um acusativo adverbial) e teológicos: o cordeiro da Páscoa não é um sacrifício imolado; não é queimado sobre o altar; não é oferecido ao Senhor (só o que é oferecido ao Senhor é sacrifício); é convivialmente comido em família. Sacrifício da Páscoa era a ʽôlat-tamid, o holocausto perpétuo, diário, o sacrifício de dois cordeiros, filhos de um ano, um de manhã e outro de tarde, conforme Êxodo 29,38-42 e Números 28,3-8, e que, sendo diário, precedia qualquer celebração festiva. Só depois deste sacrifício quotidiano, se procedia, em dias de festa, como é a Páscoa, ao sacrifício da festa propriamente dito, sacrifício suplementar, e que, na Páscoa, consistia num «sacrifício de ovelhas e bois», este sim, «Páscoa imolada para o Senhor» (Deuteronómio 16,2). De notar também que o Novo Testamento desconhece em absoluto o adjetivo «pascal», de que nós fazemos uso indiscriminado, e não pensado. A restante linguagem da cor da Páscoa que 1 Coríntios 5,6-8 mostra é o fermento (hamets) e os pães ázimos (matstsôt). Servem os termos para Paulo reclamar dos cristãos vida nova (pães ázimos), sem malícia (fermento velho).

Atravessamos ainda o país da Páscoa,

Os pátios dos sacerdotes e de Pilatos

Ficaram para trás,

Para trás ficou também o canto do galo,

Os gritos dos guardas e das multidões,

A febre das traições.

O que se ouve agora é o anúncio do Anjo,

A alegria das mulheres,

A Plenitude da Vida a transbordar

Das páginas da Escritura Santa e da Cruz de Jesus,

O rumor do Amor,

De um Amor novo e subversivo,

Que vence óbitos e ódios,

Raivas e violências,

A raiz de um mundo novo a germinar

Daquela noite de Luz

E a entregar Jesus

A quem o queira receber.

Veem-se mulheres e homens a correr,

Belos e leves,

Sobre os montes,

Sem qualquer bagagem a estorvar,

Sem nada a entorpecer,

Como quem acaba agora de nascer.

Move-os apenas a Notícia do Ressuscitado,

A Carícia que acaba de chegar,

E que é preciso levar

À pressa a todo o lado.

Vem, Senhor Jesus Ressuscitado,

Fica Connosco,

Vai connosco,

Que precisamos de ter o coração habitado

E incendiado.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I Ano C – 17.04.2022 (Atos10, 34.37-43)
  2. Leitura II Ano C – 17.04.2022 (Col 3,3, 1-4)
  3. Triduo Pascal – Ano C – Lecionário
  4. Triduo Pascal – Ano C – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano C – 10.04.2022

Viver a Palavra

 

Domingo de Ramos na Paixão do Senhor: assim se designa este Domingo que abre a Semana Santa, Semana Maior, pois nela somos convidados a contemplar a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus, centro da nossa vida cristã. Celebramos o Domingo de Ramos, recordando a entrada triunfal de Jesus na cidade santa de Jerusalém. É entre os louvores da multidão em festa que Jesus entra na cidade: «estando já próximo da descida do monte das Oliveiras, toda a multidão dos discípulos começou a louvar alegremente a Deus em alta voz por todos os milagres que tinham visto, dizendo: “Bendito o Rei que vem em nome do Senhor. Paz no Céu e glória nas alturas!”».

Dois mil anos depois, de ramos de oliveira na mão, aclamando Jesus, o nosso Salvador e Redentor, não podemos ficar apenas na contemplação da entrada gloriosa de Jesus, mas tomar renovada consciência que o Domingo de Ramos se faz na Paixão do Senhor, isto é, que em Jesus Cristo a glória não está desligada da Cruz, que o caminho que conduz à eternidade está marcado pela vulnerabilidade e fragilidade da nossa contingente existência.

As diversas leituras que escutamos neste Domingo sublinham bem este dinamismo, desde a proclamação do Evangelho na bênção dos Ramos, que narra a entrada de Jesus em Jerusalém, até à Liturgia da Palavra em que escutamos a narração da Paixão do Senhor. Uma multidão que aclama Jesus jubilosamente na sua entrada em Jerusalém e uma multidão que diante de Pilatos grita «Crucifica-O! Crucifica-O!». Porventura a bipolaridade destas aclamações sejam o paradigma da nossa vida, tantas vezes convicta e disposta a testemunhar com alegria a nossa fé em Jesus Cristo, mas, também, tantas vezes titubeante e silenciosa, condenando e desviando-se do caminho certo. Como Pedro, temos no coração a ousadia e a coragem – «Senhor, eu estou pronto a ir contigo, até para a prisão e para a morte» – mas no momento decisivo respondemos: «não O conheço». Somos frágeis e pecadores, mas também amados e redimidos pelo Seu amor e pela Sua entrega generosa e, por isso, como Pedro tenhamos a coragem de chorar as nossas culpas e pecados e haveremos de encontrar nas nossas lágrimas de arrependimento sincero, um novo batismo que regera, cura e nos permite avançar para recomeçar com renovada esperança: «o Senhor Deus veio em meu auxílio, e por isso não fiquei envergonhado; tornei o meu rosto duro como pedra, e sei que não ficarei desiludido».

Jesus Cristo assume a nossa humanidade na sua integralidade e totalidade. De braços abertos na Cruz abraça cada homem e cada mulher para nos ensinar que a dor e o sofrimento não têm a última palavra. Em Jesus Cristo não há glória sem Cruz e os sofrimentos e as dores unem-se na Sua entrega generosa à vida nova que Ele nos oferece.

Por isso, neste Domingo somos convidados a acompanhar Jesus, a percorrer com Ele o caminho que nos conduz da alegria da entrada messiânica, à Ceia que celebra com os discípulos, do Seu julgamento e condenação até à Sua paixão, morte e sepultura. A cruz não se compreende, contempla-se e é na contemplação da entrega de Jesus que entramos na nova lógica do Reino em que a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos outros, que a vida é verdadeiramente vida, quando entregue sem medida. in Voz Portucalense

LEITURA I – Is 50, 4-7

«Apresentei as costas àqueles que me batiam e a face aos que me arrancavam a barba; não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.»

No livro do Deutero-Isaías (Is 40-55), encontramos quatro poemas que se destacam do resto do texto (cf. Is 42,1-9;49,1-13;50,4-11;52,13-53,12). Apresentam-nos uma figura enigmática de um “servo de Jahwéh”, que recebeu de Deus uma missão. Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem carácter universal; concretiza-se no sofrimento, na dor e no abandono incondicional à Palavra e aos projetos de Deus. Apesar de a missão terminar num aparente insucesso, a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento resulta o perdão para o pecado do povo. Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários.

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a ser um testemunho de Deus no meio do sofrimento em que vive? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 21 (22)

Refrão: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

 

LEITURA II – Filip 2, 6-11

«Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio».

A cidade de Filipos era uma cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador; gozava, por isso, dos mesmos privilégios das cidades de Itália. A comunidade cristã, fundada por Paulo, era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2 Cor 8,1-5), por quem Paulo nutria um afeto especial. Apesar destes sinais positivos, não era, no entanto, uma comunidade perfeita… O desprendimento, a humildade e a simplicidade não eram valores demasiado apreciados entre os altivos patrícios que compunham a comunidade.

É neste enquadramento que podemos situar o texto que esta leitura nos apresenta. Paulo convida os Filipenses a encarnar os valores que marcaram a trajetória existencial de Cristo; para isso, utiliza um hino pré-paulino, recitado nas celebrações litúrgicas cristãs: nesse hino, ele expõe aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo.in Dehonianos.

EVANGELHO Lc 22, 14-23, 56

«Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de padecer».

«O maior entre vós seja como o menor, e aquele que manda seja como quem serve».

«Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito».

 

Com a chegada de Jesus a Jerusalém e os acontecimentos da Semana Santa, chegamos ao fim do “caminho” começado na Galileia. Tudo converge, no Evangelho de Lucas, para aqui, para Jerusalém: é aí que deve irromper a salvação de Deus. Em Jerusalém, Jesus vai realizar o último ato do programa enunciado em Nazaré: da sua entrega, do seu amor afirmado até à morte, vai nascer esse Reino de homens novos, livres, onde todos serão irmãos no amor; e, de Jerusalém, partirão as testemunhas de Jesus, a fim de que esse Reino se espalhe por toda a terra e seja acolhido no coração de todos os homens. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação. Requer uma leitura pausada e atenta que exprima toda a densidade e intensidade dramática do texto. A última frase exige uma especial atenção para que se possa transmitir a confiança e esperança que o auxílio de Deus oferece.

A segunda leitura é um hino litúrgico e poético e apresenta duas partes distintas: uma primeira mais dramática e uma segunda mais jubilosa e marcada pela exaltação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ter presente todos estes elementos.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

INTIMIDADE E TRAIÇÃO

Batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, na Judeia, em Jerusalém, onde o seu Batismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lucas 12,49-50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). A missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, batizados na sua Morte (Romanos 6,3-4), e, com Ele, fomos  «com- sepultados», «com-ressuscitados», «com-vivificados» e «com-sentados» na Glória! (Efésios 2,5-6; Colossenses 2,12-13: tudo verbos cunhados por Paulo e postos em aoristo [passado] histórico!). Formamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Efésios 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Efésios 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portanto, a Esposa bela, a nova Jerusalém (Apocalipse 19,7-9; 21,2 e 9-10) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Apocalipse 22,17).

O tom deste Domingo de Ramos é dado pela bela página de Lucas 19,28-40, que nos mostra o Rei messiânico a tomar posse da sua Cidade, a «Cidade do Grande Rei» (Salmo 45,5; 47,2-3; Tobias 13,11; Mateus 5,35), a Esposa bela que nascerá do seu Sangue: Esposa cúmplice da Morte do Esposo, e beneficiária da Morte do Esposo! Esposa, portanto, e no entanto! Que ao encontro do Esposo desce em vestido de noiva, não de viúva! (Apocalipse 21,2). O Rei messiânico toma posse da sua Cidade, a Filha de Sião, a Esposa; vem montado sobre o jumento da paz, e não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9. De notar que Zacarias escreveu esta página deslumbrante de um Rei diferente, pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente espetáculo do grande Alexandre Magno, quando este, em finais do século IV a.C., descia a costa palestinense a caminho do Egito, com todo o seu arsenal de riqueza e de prepotência militar! Estendem-se as capas no caminho: assim procederam os companheiros de Jeú quando souberam da sua unção pelo profeta Eliseu e foi reconhecido como rei (2 Reis 9,13). A multidão dizia: «Bendito O que Vem em nome do Senhor. Ele é o Rei! Paz no céu e glória nas alturas!, saudando o Rei-que-Vem, «Aquele-que-Vem» (título divino) (Salmo 118,26), com o Reino de David, o novo David, e fazendo ponte ainda para o coro angélico de Lucas 2,14.

Ainda hoje, no domingo de Ramos, não obstante o ambiente abertamente hostil aos cristãos que se respira, se faz, desde Betfagé [= «Casa dos figos»], uma pequena aldeia hoje totalmente muçulmana com um pequeno santuário à guarda dos Franciscanos, uma impressionante procissão e manifestação de fé que, descendo o Monte das Oliveiras, termina na Igreja de Santa Ana, junto da porta de Santo Estêvão (ou dos Leões).

É esta Igreja bela, porque incondicionalmente amada, que acolhe hoje, Domingo de Ramos na Paixão do Senhor, com o coração em festa, o seu Senhor (Lucas 19,28-40), gritando jubilosamente: «Bendito o que vem em nome do senhor!».

Acolhe-o jubilosamente, para depois discipularmente o seguir nos seus passos decisivos, que nos é dado rever no imenso Evangelho da Paixão de Jesus, na versão apurada de Lucas 22,14-23,56, de que aqui salientamos apenas alguns momentos mais expressivos. A partir do cenário apresentado no ponto 7, todos os dados são exclusivos de Lucas.

O cenário da Ceia Primeira (não última!) mostra, caso único, Jesus na intimidade da mesa com os seus discípulos (Lucas 22,14-38). E é neste cenário de intimidade que o texto nos faz ver melhor as nossas traições: o anúncio da traição de Judas (Lucas 22,21-23, da tripla negação de Pedro (Lucas 22,31-34), a discussão sobre qual de nós é o maior (Lucas 22,24-27).

O cenário do Monte das Oliveiras (Lucas 22,39-46) abre e fecha com o importante dizer de Jesus que devemos conservar no coração: «ORAI para que não entreis na tentação» (Lucas 22,39 e 46). No meio do cenário, entre estas duas importantes advertências de Jesus, o texto diz que Jesus ORAVA de joelhos (Lucas 22,41) e que depois ORAVA com mais insistência ainda (Lucas 22,44). Em contraponto, os discípulos dormiam! (Lucas 22,45).

O cenário seguinte mostra-nos a Prisão e o Processo de Jesus (Lucas 22,47-23,25), em que apenas salientamos dois momentos: Judas, que entrega Jesus com um beijo (Lucas 22,47), ouvindo de Jesus estas palavras que ainda hoje ecoam nos nossos ouvidos: «Judas, com um beijo entregas o Filho do Homem?» (Lucas 22,48). É outra vez a traição na intimidade! O segundo momento é aquele olhar fixo (emblépô) de Jesus em Pedro, que o faz sair dali para chorar amargamente (Lucas 22,60-62).

O caminho do Calvário é o cenário que aparece de seguida (Lucas 23,26-32). Vale a pena destacar dois momentos: o primeiro é para Simão de Cirene, que carrega a cruz «atrás de» Jesus (Lucas 23,26): com a sua cruz, «atrás de» Jesus, é a atitude do discípulo! (ver Lucas 9,23). O segundo é para as mulheres que choram. Merecem que Jesus olhe para elas e fale para elas: «Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai por vós e pelos vossos filhos!» (Lucas 23,27-28).

Segue-se o cenário da Cruz (Lucas 23,33-49). Quatro notas: primeira: Lucas coloca ao lado de Jesus dois malfeitores. Mas um deles (o chamado «bom ladrão»: só em Lucas!) reconhece o seu erro, e olha para Jesus implorando graça: «Jesus, lembra-te de mim quando entrares no teu REINO» (Lucas 23,42). Jesus responde assim: «Hoje estarás COMIGO no Paraíso» (Lucas 23,43). Evoca, em contraluz, o COMIGO de Jesus com os seus discípulos, e o REINO para eles preparado! (Lucas 22,28-29). Segunda: a oração do Salmo 31,6, posta na boca de Jesus como sua última palavra, oração exclusiva deste Evangelho: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» (Lucas 23,46). Confiança radical sempre. Terceira: a importante anotação de que os seus amigos e as mulheres que o SEGUIAM desde a Galileia o acompanhavam à distância, VENDO BEM todas estas coisas (Lucas 23,49). Atitude discipular. Como Maria, que conservava e compunha todos aqueles factos no seu coração (Lucas 2,19 e 51). Quarta: também o povo (laós) estava lá vendo (theôrôn) (Lucas 23,35), e mesmo, refere o narrador, «todas as multidões que tinham acorrido a este espetáculo (theôría), repassando (theôrêsantes) as coisas acontecidas, regressavam batendo no peito» (Lucas 23,48), o que quer dizer que a Cruz é um espetáculo que a todos converte.

O cenário do sepultamento de Jesus (Lucas 23,50-56). Salta à vista que Jesus é depositado num sepulcro novo, onde ainda ninguém tinha sido sepultado (Lucas 23,53). Mostra-se assim que Jesus é o Rei Messiânico esperado: o Rei é o primeiro em tudo. E continua na primeira linha o OLHAR ATENTO das mulheres (Lucas 23,55) e os perfumes que preparam (Lucas 23,56) e que abrem já para a página nova da Ressurreição. Primeiro em tudo! Primogénito de muitos irmãos! (Romanos 8,29).

Vendo bem, somos todos levados a percorrer e a reviver as últimas decisivas vinte e quatro horas de Jesus, desde as 15h00 de Quinta-Feira Santa até perto das 18h00 de Sexta-Feira Santa, seguindo este ritmo:

15h00 = Preparação da Ceia

18h00 = Ceia Primeira!

21h00 = Getsémani

24h00 = Prisão de Jesus

03h00 = Pedro nega e o galo canta

06h00 = Jesus diante de Pilatos

09h00 = Crucifixão de Jesus

12h00 = as trevas em vez da Luz!

15h00 = Morte de Jesus

18h00 = Sepultamento de Jesus

Note-se que, na cronologia dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), esta Quinta-Feira é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal logo após o pôr-do-sol (no calendário religioso hebraico já é Sexta-Feira, dado que o dia começa com o pôr-do-sol). Como se vê, esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os seus Discípulos uma Ceia Pascal. Também de acordo com esta cronologia, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em Sexta-Feira, Dia da Páscoa dos judeus, o que seria muito estranho! O Evangelho de S. João apresenta outra cronologia, hoje defendida pela maioria dos estudiosos, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em Quinta-Feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em Sexta-Feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus (João 18,28), que João coloca no Sábado, e não na Sexta-Feira. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende também esta cronologia joanina. De resto, as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinópticos: por isso, a nossa Eucaristia é com pão Ázimo, derivado do ritual da Ceia da Páscoa dos judeus. Por seu lado, as Igrejas do Oriente seguem a cronologia joanina, sendo a sua Eucaristia com pão comum, dado não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

O Antigo Testamento serve-nos hoje o chamado «terceiro canto do Servo» (Isaías 50,4-7). Gerado na dor de Israel como verdadeiro filho do milagre (Isaías 49,21), ergue-se esta singular figura de «Servo» (‘ebed), totalmente nas mãos de Deus, desde a sua predestinação desde o seio materno (Isaías 49,1 e 5), passando pela sua entrega à morte (Isaías 53,12), até à sua exaltação e glorificação (Isaías 52,13), de tal modo que Deus o pode chamar «meu Servo» (‘abdî). Na lição de hoje, o «Servo» é um Discípulo a quem Deus abre os ouvidos até ao coração, para ouvir bem a música de Deus, e poder levar uma palavra de consolo aos dela necessitados. «Tornando o seu rosto duro como uma pedra» (Isaías 50,7), apresenta-se como um Servo, não insensível e indiferente, mas decidido a levar até ao fim a missão que lhe é confiada. A mesma expressão será dita acerca de Jesus em Lucas 9,51. O Novo Testamento passa por aqui!

Em claro paralelismo com o «Servo», cantado por Isaías, aí está Jesus apresentado por Paulo aos Filipenses (2,6-11). Mas aqui, o «Servo» tem um Rosto e um Nome: Jesus recebeu, na sua Humanidade, o Nome divino (ver também Hebreus 1,1-4), Nome incomparável (Filipenses 2,9). Por isso, agora, todos os seres criados adoram o Nome-Jesus (Filipenses 2,10), e «toda a língua», isto é, todo o ser humano racional, professa: «Senhor é Jesus Cristo!» (Kýrios Iêsoûs Christós). Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O sujeito é o que não se conhece; o predicado é o que se conhece. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Filipenses 2,11). É quanto Deus operou na Cruz e semeou no nosso coração.

Voltamos à música do Salmo 22, uma oração que nasce na Paixão e termina na Páscoa! É belo tomarmos consciência de que Jesus nos pediu estas palavras emprestadas, para no-las devolver a transbordar de sentido. Já se sabe que aquele «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», que Jesus reza na Cruz, e que são as primeiras palavras do Salmo, implica, segundo a praxe judaica, a recitação do Salmo inteiro, que tem uma primeira parte de fortíssima lamentação (vv. 2-22), passando logo para uma segunda parte que expressa consolação por ver Deus ao nosso lado, tão próximo de nós (vv. 23-27), e terminando em verdadeira exultação (vv. 28-32). O grande pregador francês Jacques Bossuet (1627-1704) declarava bem-aventurados aqueles que, recitando este Salmo, se encontram com Jesus, tão santamente tristes e tão divinamente felizes!

Senhor Jesus,

Senhor dos Passos

Serenos e seguros no caminho da vida e da Paixão,

Da ressurreição.

Senhor Jesus,

Senhor dos Passos

Sossegados e firmes,

Resolutos,

Até à porta do meu coração.

Senhor Jesus,

Senhor dos Passos,

Dos meus e dos teus,

Finalmente harmonizados,

Finalmente lado a lado:

Os meus, imprecisos, indecisos,

Atravessados pelo teu Perdão;

Os teus, sossegados e firmes,

Sincronizados pelo pulsar do meu coração.

Sim,

Eu sei que foi por mim que desceste a este chão

Pesado, íngreme, irregular,

De longilíneas lajes em que é fácil escorregar.

Mas os teus braços sempre abertos ajudam-me a levantar.

Senhor Jesus,

Deixa-me chegar um pouco mais junto de ti,

Chega-te tu também mais junto de mim.

Segura-me.

Dá-me a tua mão firme, nodosa e corajosa.

Agarro-me.

Sinto sulcos gravados nessa mão.

Sigo-os com o dedo devagar.

Percebo que são as letras do meu nome.

Foi então por mim que desceste a este chão.

O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.

Senhora das Dores, Maria, minha Mãe,

Que seguiste até ao fim os passos do teu Filho,

Acompanha e protege os meus passos também.

Obrigado, Senhor Jesus,

Meu Senhor, meu Irmão e companheiro.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – Domingo de Ramos – Ano C (Is 50, 4-7)
  2. Leitura II – Domingo de Ramos – Ano C(Filip 2, 6-11)
  3. Domingo de Ramos – Ano C – 10.04.2022 – Lecionário
  4. Domingo de Ramos – Ano C – 10.04.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

V Domingo da Quaresma – Ano C – 03.04.2022

7Como insistissem em interrogá-lo, ergueu-se e disse-lhes: «Quem de vós estiver sem pecado atire-lhe a primeira pedra!» 8E, inclinando-se novamente para o chão, continuou a escrever na terra. Jo 8, 7-8

Viver a Palavra

A porta do Coração Misericordioso de Deus continua aberta e escancarada para nós. Deus não tem medo de mostrar como é grande a Sua misericórdia e o Seu amor, por isso, podemos cantar e aclamar com as palavras do Salmo: «Grandes Maravilhas fez por nós o Senhor». Este Deus surpreendente e misericordioso manifesta as maravilhas do Seu poder, pelo amor desmedido e pelo acolhimento generoso. No centro da mensagem de Jesus não está o nosso pecado e a nossa miséria, mas a infinita bondade e ternura de Deus que convertem a nossa miséria e pecado em possibilidade de vida nova. Por isso, o Evangelho de hoje é uma verdadeira escola da arte de amar e perdoar, de acolher e gerar vida.

«Jesus sentou-Se e começou a ensinar!». Assim aparece Jesus no Evangelho deste Domingo: rodeado pela multidão que acorre ao Templo e sentado para ensinar, não apenas com as palavras cheias de sabedoria e autoridade que saiam da Sua boca, mas com a força do perdão e da misericórdia que levanta os que estão caídos e que faz cair das nossas mãos as pedras do julgamento apressado que ignora a própria fragilidade.

No centro da Liturgia da Palavra deste Domingo está a misericórdia e o perdão que abrem a porta da esperança quando tudo parece perdido. «Olhai: vou realizar uma coisa nova, que já começa a aparecer; não a vedes?». Na verdade, muitas vezes o nosso coração parece estar longe desta oferta de vida nova que brota da mensagem evangélica. Como os escribas e fariseus, que trazem uma mulher surpreendida em adultério e arrastada como um objeto que servirá para colocar à prova Jesus, também nós, tantas vezes, vivemos de dedo em riste, prontos a apontar os erros alheios, mas cheios de boas razões quando cometemos os mesmos erros. Por isso, precisamos de nos deixar moldar pela ternura e pela bondade dos gestos e palavras de Jesus para que saibamos encontrar na nossa fragilidade um convite à conversão, fazendo das pedras do nosso caminho, não um obstáculo onde tropeçamos e caímos, mas uma oportunidade de crescimento.

O enigmático gesto de Jesus, que por duas vezes se inclina, escreve com o dedo no chão, se endireita e fala, evoca a dupla descida e subida de Moisés no Monte Sinai para receber as tábuas da Lei «escritas pelo dedo de Deus» (Ex 31,18). A Lei é sinal da misericórdia de Deus e da Sua graça. De modo particular, este gesto simbólico de se inclinar e de se erguer de Jesus, representa o baixar e o elevar de Cristo sobre a Cruz, verdadeira síntese de toda a história da salvação e hermenêutica qualificada do querer de Deus misericordioso e compassivo. O Mestre inclina-se para partilhar a nossa miséria, para imprimir na terra o sinal da sua presença salvadora, para inscrever um futuro no coração da mulher e lhe abrir a porta da esperança.

Como recordou o Papa Francisco nas suas catequeses sobre a misericórdia: «não há santo sem passado, nem pecador sem futuro». Não há caminhos sem saída para quem se sabe amado por Deus, pois «o Senhor abriu outrora caminhos através do mar, veredas por entre as torrentes das águas». Em Jesus Cristo, Deus realiza em plenitude esta oferta de vida nova e faz-nos passar pelas águas do batismo, torrente de graça, para que possamos percorrer com entusiasmo a estrada da santidade.

Batizados em Cristo, perdoados pelo Seu amor e sustentados pela sua misericórdia, somos chamados a caminhar de olhos fixos na meta que Jesus Cristo nos aponta: «esquecendo o que fica para trás, lançar-me para a frente, continuar a correr para a meta, em vista do prémio a que Deus, lá do alto, me chama em Cristo Jesus».in Voz Portucalense

LEITURA I – Is 43, 16-21

«Olhai: vou realizar uma coisa nova, que já começa a aparecer; não a vedes?»

 

O Deutero-Isaías (autor deste texto) é um profeta anónimo, da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética entre os exilados. Estamos no séc. VI a.C., na Babilónia. Os judeus exilados estão frustrados e desorientados, pois a libertação tarda e Deus parece ter-Se esquecido do seu Povo. Sonham com um novo êxodo, no qual Jahwéh Se manifeste, outra vez, como o Deus libertador.

Na primeira parte do “livro da consolação” (Is 40-48), o profeta anuncia a iminência da libertação e compara a saída da Babilónia e a volta à Terra Prometida com o êxodo do Egipto. É neste contexto que deve ser enquadrada a primeira leitura de hoje.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 125 (126)

Refrão: Grandes maravilhas fez por nós o Senhor.

 

LEITURA II – Filip 3, 8-14

«Considero todas as coisas como prejuízo, comparando-as com o bem supremo, que é conhecer Jesus Cristo, meu Senhor».

 

A Carta aos Filipenses é uma carta “afetuosa e terna” que Paulo escreve da prisão aos seus amigos de Filipos. Os cristãos desta cidade, preocupados com a situação de Paulo, enviaram-lhe dinheiro e um membro da comunidade (Epafrodito), que cuidou de Paulo e o acompanhou na solidão do cárcere. Com o coração cheio de afeto, Paulo agradece aos seus queridos filhos de Filipos; e, por outro lado, avisa-os para que não se deixem levar pelos “cães”, pelos “maus obreiros” (Flp 3,2) que, em Filipos como em todo o lado, semeiam a dúvida e a confusão. Quem são estes? São ainda esses “judaizantes”, “os da mutilação” (Flp 3,2), que proclamavam a obrigatoriedade da circuncisão e da obediência à Lei de Moisés.

O texto que nos é proposto insere-se nesse discurso de polémica contra os adversários “judaizantes” (cf. Flp 3). Paulo pede aos Filipenses que não se deixem enganar por esses falsos pregadores, super-entusiastas, que se apresentam com títulos de glória e que parecem esquecer que só Cristo é importante.in Dehonianos.

EVANGELHO Jo 8,1-11

«Os escribas e os fariseus apresentaram a Jesus uma mulher surpreendida em adultério».

«Quem de entre vós estiver sem pecado atire a primeira pedra».

«Vai e não tornes a pecar».

 

Esta pequena unidade literária não pertencia, inicialmente, ao Evangelho de João: ela rompe o contexto de Jo 7-8, não possui as características do estilo joanico e o seu conteúdo não se encaixa neste Evangelho (que não se interessa por problemas deste género). Além disso, é omitida pela maior parte dos manuscritos antigos; e as referências dos Padres da Igreja a este episódio são muito escassas. Outros manuscritos colocam-no dentro do Evangelho, mas em sítios diversos, por exemplo, no final do mesmo – como fazem algumas versões modernas da Bíblia. Numa série de manuscritos, encontrámo-la no Evangelho de Lucas (após Lc 21,38), que seria um dos lugares mais adequados, dado o interesse de Lucas em destacar a misericórdia de Jesus. Trata-se de uma tradição independente que, no entanto, foi considerada pela Igreja como inspirada por Deus: não há dúvida que deve ser vista como “Palavra de Deus”.

Seja como for, o cenário de fundo coloca-nos frente a uma mulher apanhada a cometer adultério. De acordo com Lv 20,10 e Dt 22,22-24, a mulher devia ser morta. A Lei deve ser aplicada? É este problema que é apresentado a Jesus.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura, depois de uma introdução acerca da ação libertadora de Deus, apresenta a palavra de Deus dirigida ao povo. A proclamação desta leitura deve ter em atenção esta estrutura, cuidando da introdução ao discurso direto – «Eis o que diz o Senhor». Nas palavras dirigidas por Deus deve haver um especial cuidado com algumas pequenas expressões que ajudarão a sublinhar a força deste texto: a forma imperativa – «Olhai» – e a frase interrogativa – «não a vedes?».

A segunda leitura, como é habitual nos textos de S. Paulo, apresenta frases longas com diversas orações, pelo que se deve cuidar as pausas e respirações para que não se perca o sentido do texto.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

DEUS NÃO TEM PLANOS, TEM SURPRESAS!

A «caminhada» quaresmal aproxima-se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível, surpreendente amor de Deus. Nesta altura do percurso (supõe-se que encetámos uma subida espiritual: entenda-se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da Luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,37-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Batismal.

Deus não tem planos, tem surpresas. É, portanto, sempre desmedido e surpreendente quanto vem de Deus. Brota do excesso de Deus, que supera em muito as nossas necessidades e capacidades. Aí está, neste Domingo V da Quaresma, a imensa lição do Evangelho de João 8,1-11. Esta passagem parece uma incrustação no IV Evangelho, pois interrompe o discurso de Jesus durante a Festa das Tendas (7,1-8,59), não aparece nos manuscritos mais antigos e nos códices antigos mais importantes dos Evangelhos, nem nos Padres gregos. Omitem-na nos seus comentários Orígenes, João Crisóstomo, Teodoro de Mopsuéstia, Cirilo de Alexandria, Teófilo, Tertuliano, Cipriano, Hilário e Taciano. Os Padres latinos Ambrósio, Agostinho e Jerónimo conhecem-na noutro lugar. Alguns manuscritos situam esta perícope no Evangelho de João depois de 7,36, outros depois de 7,44, outros depois de 7,52, ou mesmo no final, depois de 21,25. Outros ainda introduzem-na no Evangelho de Lucas (depois de 21,38). Por outro lado, a perícope não tem o estilo joanino. Está, de facto, mais perto do estilo lucano.

Fixemos a nossa atenção no movimento do texto. Jesus SENTA-SE como MESTRE, para ensinar, e SENTADO como MESTRE permanece na cena até ao fim. Apenas se inclina para o chão, e de novo se endireita, soerguendo-se, nunca deixando, porém, a posição de SENTADO. Portanto, permanecendo SENTADO, está sempre na cátedra a ensinar. Nele tudo é lição. São lição os seus gestos; são lição as suas palavras.

Entram na cena os «impecáveis» do costume: os escribas e os fariseus. Também como de costume, tratam Jesus por MESTRE (didáskalos) (v. 4). Desta vez não vêm sós. Trazem uma mulher apanhada em flagrante adultério. Eles conhecem a Lei de Moisés, que citam a propósito, para dizer que tais mulheres devem ser apedrejadas. Mas, roídos de malícia e com retorcidas intenções, querem saber o que, sobre este assunto preciso, tem a dizer o MESTRE Jesus, não porque estivessem interessados em ouvir a palavra reta de Jesus, mas porque pretendiam armar-lhe uma cilada (peirázô) (v. 6). Na verdade, se Jesus se pronunciasse sobre o assunto, quer dissesse «sim», quer dissesse «não», caía sempre na emboscada. Se dissesse «sim», violaria o direito romano, pois só a administração romana da Palestina podia condenar à morte; se dissesse «não», perdoando a mulher, violava o direito hebraico, expresso na Lei de Moisés. Jesus responde só isto: permanecendo SENTADO como MESTRE, inclinou-se, e, COM O DEDO, escrevia no chão.

Os escribas e fariseus tinham compreendido mal a Lei, citando só metade, pois a Lei diz que, em caso de adultério, morrerão os dois: o homem e a mulher (Levítico 20,10; Deuteronómio 22,22). Tão-pouco estavam a compreender a resposta do MESTRE Jesus ao parecer jurídico que lhe tinham pedido. E era clara a lição: na verdade, há apenas outra circunstância na Escritura Santa em que alguém escreve COM O DEDO: as tábuas de pedra escritas pelo DEDO DE DEUS no Sinai (Êxodo 31,18; cf. Deuteronómio 9,10). Claramente: o MESTRE que escrevia COM O DEDO era Deus! Conhecia a Lei, mas conhecia também os Profetas, pois ao ESCREVER NO CHÃO, está a ler Jeremias que diz que «os que se afastam de YHWH serão escritos no chão» (17,13). Jesus conhecia a Lei e os Profetas, isto é, a inteira Escritura Santa, e conhecia também os homens por dentro (João 2,24-25). Permanecendo SENTADO, endireitou-se e disse-lhes: «Aquele que estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar-lhe uma pedra!» (8,7). Inclinou-se novamente e continuava a escrever no chão. Saíram todos, a começar pelos mais velhos, diz-nos o narrador, recorrendo com certeza outra vez a Jeremias 17,13, que diz ainda que «os que abandonam YHWH serão cobertos de vergonha». É esta vergonha que faz com que todos se vão embora, um após outro, a começar pelos mais velhos, os primeiros a sentir o peso da vergonha. Ontem como hoje: os mais novos chegam lá sempre depois.

Ao comentar este episódio, Santo Agostinho diz luminosamente que só «ficaram dois em cena: a miserável e a misericórdia» (relicti sunt duo: misera et misericordia). Os escribas e fariseus prenderam e acusaram a mulher, mas foram eles que se sentiram acusados, desvendados, lidos, descobertos no esconderijo do seu próprio pecado! Nem sequer viram a mulher como uma pessoa: nunca falam com ela ou para ela; falam simplesmente dela, como se de um objeto se tratasse. É o MESTRE Jesus o primeiro na cena que fala para a mulher, e não a prende, mas liberta-a, colocando-a no caminho novo da liberdade: «Vai e não tornes a pecar» (v. 8), diz-lhe Jesus.

Aproximou-se um homem habituado

ao uso inveterado do silêncio

o seu olhar varrendo toda a fraude

das palavras

Aproximou-se firme e impoluto

Esquadrinhou as faces oxidadas

da mentira

Olhou depois o chão como quem abre

um sepulcro

e lentamente desenhou

o puro rosto da verdade

sobre a areia

O anónimo profeta do exílio, o chamado «Segundo Isaías» (Isaías 40-55), na lição hoje servida (Isaías 43,16-21), põe Deus a interpelar-nos diretamente, como Jesus no Evangelho: «Eis que vou fazer uma coisa nova! Ela já desponta: não a compreendeis?» (Isaías 43,19). A nós compete entender a obra sempre nova e surpreendente de Deus, que ultrapassa sempre a medida do nosso coração e da nossa capacidade de compreensão! As maravilhas do passado, a travessia do mar dos Juncos, não esgotam a grandeza de Deus, que aparece sempre à nossa frente a abrir caminhos novos em cada encruzilhada da história. Pode o deserto florir, encher-se de água, e pode o mar encher-se de caminhos. Pode sempre a semente germinar antes do tempo, e a espiga amadurar antes do campo!

Paulo pode bem ser hoje o modelo a seguir (Filipenses 3,8-14): esquecendo o que fica para trás, atira-se todo para a frente, para Cristo, os olhos antes das mãos, as mãos antes dos pés, como um atleta. Para trás fica o tesouro do judaísmo a que estava tão agarrado, e que agora não passa de esterco ou excremento (skýbala) (Filipenses 3,8). Tudo se passa agora à sua frente: é aí que está o tesouro novo, que é Cristo, para o qual verdadeiramente se atira, sem volta atrás (Filipenses 3,13).

Quando Jesus irrompe na vida de alguém,

interrompe a normalidade de um percurso,

e rompe essa vida em duas partes desiguais:

uma que fica para trás,

outra que se abre agora à nossa frente,

reta como uma seta direta a uma meta,

a um alvo, um objetivo intenso e claro,

tão intenso e claro que na vida de cada um

só pode haver um!

O Canto ritmado do Salmo 126 serve para nos abrir bem os olhos do coração para vermos bem as inumeráveis maravilhas com que Deus enche os nossos caminhos todos os dias. Entre a sementeira e a ceifa, entre a dor e a alegria, o inverno e a primavera, a semente não erra e não mente. Segue o seu curso natural. Suavemente. Aí está, portanto, outra vez a jubilosa procissão dos exilados! E nós, extasiados, como quem sonha, a boca cheia de riso e os lábios de canções.

Vai adiantado o tempo da Quaresma,

E eu continuo ainda aqui parado

Nesta página em branco da calçada.

Sei bem que foste tu que me puseste em movimento,

Que teceste o meu ser,

Que me deste a vida e de comer,

Que me acolheste e me acolhes sempre em tua casa.

Como é que estou então aqui parado na berma desta estrada,

Pensando que fui eu que me pus no ser,

Que sou dono de mim,

Que esta vida é minha,

Minha é esta casa, este pedaço de chão,

Este naco de pão

E até este coração?

Não fiques aí parado, meu irmão.

Ergue-te e vai pelos nós do vento,

Chegarás por certo à pátria do Espírito,

Submisso ao sopro obsessivo do silêncio.

Olha com mais atenção

O chão que sonhas,

O céu que lavras.

Recomeça!

Conquista o espaço

Onde a palavra cresça

Longe do ruído das palavras!

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – V Domingo Quaresma – Ano C (Is 43, 16-21)
  2. Leitura II – V Domingo Quaresma – Ano C (Filip 3, 8-14)
  3. V Domingo Quaresma – Ano C – 03.04.2022 – Lecionário
  4. V Domingo Quaresma – Ano C – 03.04.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

IV Domingo da Quaresma – Ano C – 27.03.2022

«………32Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado.’» Lc 15, 32

Viver a Palavra

 

No IV Domingo deste itinerário quaresmal somos convidados a saborear e a contemplar a bondade e a ternura de Deus que preenche as nossas vidas com uma alegria inaudita que nos impele a ser testemunhas do Evangelho do amor e da misericórdia como recorda o Papa Francisco: «a Alegria do Evangelho enche o coração e a vida inteira daqueles que se encontram com Jesus. Quantos se deixam salvar por Ele são libertados do pecado, da tristeza, do vazio interior, do isolamento. Com Jesus Cristo, renasce sem cessar a alegria» (EG 1).

A liturgia da Palavra deste Domingo, também designado Domino Laetare, está marcada por esta alegria que não é mero sentimento de contentamento, mas a certeza da presença terna e misericordiosa de Deus: a alegria do Povo de Israel que celebra pela primeira vez a Páscoa na terra de Canaã, fazendo memória festiva da certeza de um Deus que salva, conduz e liberta o Seu Povo para o conduzir à terra da promessa; a alegria que se converte em louvor e reconhecimento e faz cantar com as palavras do salmista “saboreai e vede como o Senhor é bom”; a alegria de um Deus que faz novas todas as coisas e, por isso, faz de cada homem e de cada mulher uma nova criatura, reconciliada com o Pai em Cristo Jesus; a alegria inaudita de um pai que não conhece caminhos sem saída e que vive na soleira da porta esperando o filho que partiu para longe, para que no abraço do perdão se faça a festa da alegria reencontrada.

A contemplação do rosto belo, misericordioso e compassivo do Pai que é apresentado por Jesus ensina-nos que no centro da nossa vida não pode estar o pecado, a culpa ou a pesada consciência do mal que cometemos, mas a infinita misericórdia de Deus.

Todos se aproximam de Jesus: publicanos, pecadores, escribas e fariseus. Os publicanos e pecadores encontram em Jesus um rosto de esperança e uma palavra de alento que pode oferecer um novo sentido às suas vidas. Os escribas e fariseus murmuram entre si, pois a atitude de Jesus desconcerta os que vivem numa posição de superioridade moral e religiosa: «Este homem acolhe os pecadores e come com eles».

Diante destes ouvintes, Jesus conta a parábola do Pai Pródigo, pois ao contrário do que tantas vezes dizemos, o único pródigo desta parábola é o pai que distribui com abundância o amor, a misericórdia, o perdão e o acolhimento. Por isso, o grande protagonista desta parábola é o Pai que acolhe o filho que livremente abandonou a casa paterna, mas que regressa ao único lugar onde pode ser verdadeiramente livre.

Na verdade, é este abraço que o faz percorrer a estrada da conversão e da vida nova. Ele regressa para casa, não porque na verdade tenha já percorrido um caminho de conversão e arrependimento. Não se trata de um arrebate de consciência, mas de um arrebate de estômago: «quantos trabalhadores de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome». Ensaia um discurso e decide voltar a casa como um criado, mas o pai surpreende-o. Ainda vem longe, quando o pai corre ao seu encontro de braços abertos e sem lhe permite terminar o discurso, pede uma túnica, o anel e as sandálias, restituindo-lhe a dignidade de filho.

É verdade que nos revemos facilmente neste filho que abandona a casa paterna. Contudo, a parábola não termina sem referir a dificuldade do filho mais velho em fazer festa pelo regresso do irmão e, por isso, tantas vezes nos podemos também identificar com esta atitude. Porém, como filhos amados e reconciliados pelo amor do Pai, somos chamados a transformar o nosso coração para que se torne um lugar de misericórdia e compaixão, acolhimento e perdão para que nas nossas vidas resplandeça a certeza proclamada por S. Paulo: «se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram; tudo foi renovado».in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Jos 5, 9a.10-12

«Os filhos de Israel não voltaram a ter o maná, mas, naquele ano, já se alimentaram dos frutos da terra de Canaã».

 

O livro de Josué narra a entrada e a instalação do Povo de Deus na Terra Prometida. Recorrendo ao género épico (relatos enfáticos, exagerados, maravilhosos) e apresentando idealmente a tomada de posse da Terra como um passeio triunfal do Povo com Deus à frente, os autores deuteronomistas vão sublinhar a ação maravilhosa de Jahwéh que, através do seu poder, cumpre as promessas feitas aos antepassados e entrega a Terra Prometida ao seu Povo. Não é um livro muito preciso do ponto de vista histórico; mas é uma extraordinária catequese sobre o amor de Deus ao seu Povo.

No texto que a liturgia de hoje nos propõe, os israelitas, vindos do deserto, acabaram de atravessar o rio Jordão. Estão em Guilgal, um lugar que não foi ainda localizado, mas que devia situar-se não longe do Jordão, a nordeste de Jericó.

Aproxima-se a celebração da primeira Páscoa na Terra Prometida e só os circuncidados podem celebrar a Páscoa (cf. Ex 12,44.48); por isso, Josué faz o Povo passar pelo rito da circuncisão, sinal da aliança de Deus com Abraão e, portanto, sinal de pertença ao Povo eleito de Jahwéh (cf. Gn 17,10-11). É neste contexto que aparecem as palavras de Deus a Josué referidas na primeira leitura in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

LEITURA II – 2 Cor 5, 17-21

«Tudo isto vem de Deus, que por Cristo nos reconciliou consigo e nos confiou o ministério da reconciliação».

 

Por volta de 56/57, chegam a Corinto missionários itinerantes que se apresentam como apóstolos e criticam Paulo, lançando a confusão. Provavelmente, trata-se ainda desses “judaizantes” que queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei de Moisés (embora também possam ser cristãos que condenam a severidade de Paulo e que apoiam o laxismo da vidados coríntios). De qualquer forma, Paulo é informado de que a validade do seu ministério está a ser desafiada e dirige-se a toda a pressa para Corinto, disposto a enfrentar o problema. O confronto é violento e Paulo é gravemente injuriado por um membro da comunidade (cf. 2 Cor 2,5-11;7,11). Na sequência, Paulo abandona Corinto e parte para Éfeso. Passado algum tempo, Paulo envia Tito a Corinto, a fim de tentar a reconciliação. Quando Tito regressa, traz notícias animadoras: o diferendo foi ultrapassado e os coríntios estão, outra vez, em comunhão com Paulo. É nessa altura que Paulo, aliviado e com o coração em paz, escreve esta Carta aos Coríntios, fazendo uma tranquila apologia do seu apostolado.

O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da carta (2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo analisa as suas relações com os cristãos de Corinto. Neste texto em concreto, transparece essa necessidade premente de reconciliação que vai no coração de Paulo. in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 15, 1-3.11-32

«Este homem acolhe os pecadores e come com eles».

«Pai, pequei contra o Céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho».

«Comamos e festejemos, porque este meu filho estava morto e voltou à vida, estava perdido e foi reencontrado».

 

Continuamos no “caminho de Jerusalém”, esse caminho espiritual que Jesus percorre com os discípulos, preparando-os para serem as testemunhas do Reino diante de todos os homens.

Todo o capítulo 15 é dedicado ao ensinamento sobre a misericórdia: em três parábolas, Lucas apresenta uma catequese sobre a bondade e o amor de um Deus que quer estender a mão a todos os que a teologia oficial excluía e marginalizava. O ponto de partida é a murmuração dos fariseus e dos escribas que, diante da avalanche de publicanos e pecadores que escutam Jesus, comentam: “este homem acolhe os pecadores e come com eles”. Acolher os publicanos e pecadores é algo de escandaloso, na perspetiva dos fariseus; no entanto, comer com eles, estabelecer laços de familiaridade e de irmandade com eles à volta da mesa, é algo de inaudito… A conclusão dos fariseus é óbvia: Jesus não pode vir de Deus pois, na perspetiva da doutrina tradicional, os pecadores não podem aproximar-se de Deus.

É neste contexto que Jesus apresenta a “parábola do filho pródigo”, uma parábola que é exclusiva de Lucas (nem Marcos, nem Mateus, nem João a referem).in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura do Livro de Josué narra a primeira Páscoa do Povo de Israel celebrada na terra de Canaã. Por isso, a proclamação desta leitura deve ter presente o tom narrativo que marca todo este texto. Deve haver um especial cuidado na pronunciação das palavras mais difíceis: «opróbrio», «Gálgala» e «ázimos».

A segunda leitura abre com uma afirmação central: «Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura». Esta frase deve ser lida com especial entoação pois marca a mensagem principal de todo o texto. O verbo reconciliar é repetido cinco vezes, em diferentes tempos e modos. O cuidado na leitura das diferentes formas verbais contribuirá para uma melhor compreensão da mensagem e uma mais eficaz proclamação do texto.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

QUANDO DEUS SAI AO NOSSO ENCONTRO

Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, batizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: MEMÓRIA do batismo [= execução do programa filial batismal] para os batizados, PREPARAÇÃO para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, 109), que têm neste Domingo IV da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.

O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (Lucas 15,1-32) é uma janela sublime e sempre aberta com vista direta para o coração de Deus, exposto, narrado, contado por Jesus. Mas antes de Jesus começar a contar Deus, o narrador prepara cuidadosamente o cenário, dizendo-nos que os PUBLICANOS e PECADORES se aproximavam de Jesus para o escutar, em claro contraponto com os ESCRIBAS e FARISEUS que estavam lá, não para o escutar, mas para criticar o facto de Jesus acolher os pecadores e comer com eles. Eles achavam que os pecadores eram merecedores de castigo severo e não de misericórdia, pois eram amplamente devedores a Deus, e não credores como os fariseus pensavam que eram. São visíveis, portanto, dois modos de ver, dois critérios: 1) o comportamento novo, misericordioso, inclusivo, por parte de Jesus, que acolhe e abraça os pecadores, até então marginalizados, hostilizados, descartados, excomungados; 2) o comportamento impiedoso, rigorista e exclusivista para com os pecadores por parte da velha tradição religiosa dos escribas e fariseus.

A estes últimos conta Jesus uma parábola, «ESTA PARÁBOLA» (taúten parabolên) (15,3), no singular. Sim, o texto diz expressamente «ESTA PARÁBOLA», o que quer dizer que tudo o que Jesus vai contar até ao final do Capítulo é uma só parábola, e não três, como vulgarmente se pensa, titula e diz. Sendo a parábola contada para os ESCRIBAS e FARISEUS, então é desse lado do auditório que nós, leitores ou ouvintes, nos devemos colocar. Se nos colocarmos, como é usual e a nossa simpatia reclama, do lado dos PECADORES, da OVELHA perdida e encontrada, da DRACMA perdida e encontrada, do FILHO perdido e encontrado, a parábola passa-nos ao lado.

O primeiro quadro mostra-nos a OVELHA PERDIDA lá longe e por amor PROCURADA e ENCONTRADA, e que dá azo à ALEGRIA condividida com os amigos e vizinhos. E Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Ao fundo da cena estão noventa e nove JUSTOS que não precisam de conversão. Era o que pensavam os escribas e fariseus, e nós tantas vezes também!

O segundo quadro mostra-nos a DRACMA PERDIDA em casa, num chão de terra e de basalto negro, e cuidadosamente PROCURADA e ENCONTRADA, com a luz para iluminar o escuro e a vassoura para fazer tilintar a moeda no chão de basalto, e que também dá azo à ALEGRIA condividida com as amigas e vizinhas. E também aqui Jesus conclui que é assim no céu sempre que um PECADOR se converte. Neste segundo quadro não se faz menção dos noventa e nove JUSTOS ao fundo da cena, que não precisam de conversão. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem iguais, a chave de compreensão está naquilo que neles é diferente. São, portanto, os noventa e nove JUSTOS, que os escribas e fariseus pensam que são, e nós também, somos nós que estamos em causa!

O terceiro quadro, que é o que vai ser exposto neste Domingo, mostra-nos um PAI maravilhoso com dois filhos que parecem diferentes. Ora bem, quando na Bíblia dois retratos parecem diferentes, a chave de compreensão reside naquilo em que são iguais.

Vejamos então: o filho mais novo faz ao seu PAI um estranho pedido: pede a parte da herança que lhe toca. Note-se bem que se trata de um pedido fatal. O PAI dá três coisas aos seus filhos: o pão todos os dias, uma roupa nova pelas festas, mas há uma coisa que só dá uma vez na vida, e em circunstâncias fatais, de morte próxima: a herança! Diz a propósito o Livro de Ben-Sirá 33,24: «No último dia dos dias da tua vida, na hora da tua morte, distribui a tua herança». Então, ao pedir a herança, este filho como que mata o PAI e morre como filho! Em boa verdade, ele não quer mais ter PAI e não quer mais ser filho. Por isso, junta tudo, parte para longe e gasta tudo. Desce abaixo de porco, pois nem o que os porcos comem lhe é permitido comer. Decide então voltar para casa, e prepara um discurso com três pontos: 1) PAI, pequei contra o céu e contra ti; 2) não sou digno de ser chamado teu filho; 3) trata-me como um dos teus assalariados. Vê-se bem que não quer voltar mais a ser filho. Também não quer mais ter PAI. Quer ser um simples assalariado. Quer ter um patrão. Quer receber o ordenado que lhe passa a ser devido. Não quer receber de graça o amor do seu Pai.

Voltou. O PAI viu-o ao longe, as suas entranhas moveram-se de compaixão, correu ao encontro do filho, abraçou-o e beijou-o. É outra vez a surpresa a encher a cena! Quando nós regressamos a casa, entenda-se, a Deus, nunca encontramos um PAI distraído ou ausente, que mudou de residência, ou que responde de forma brusca e fria. Note-se bem que a iniciativa surpreendente é do PAI. O filho começa a debitar o discurso preparado em três pontos. Diz o primeiro. Diz o segundo. Não diz o terceiro, que era outra vez fatal, não porque o não quisesse dizer, mas porque o PAI o interrompe (belo que no n.º 17 da Bula Misericordiae vultus, que proclama o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, que estamos sempre a viver, o Papa Francisco refira este Pai que interrompe o discurso preparado pelo filho), dizendo para os criados: Depressa! Trazei o «primeiro vestido» e vesti-lho! Entenda-se que o «primeiro vestido» é o vestido de antes, isto é, o de filho! Sim, é este PAI surpreendente que transforma em filho este candidato a assalariado! Manda matar o vitelo gordo e prepara-se para fazer em casa uma FESTA de arromba, com direito a banquete e orquestra! Note-se que, tal como Jesus, este PAI, que é Deus, acaba de acolher e abraçar um PECADOR e prepara-se para COMER com ele. Há ALEGRIA no céu.

O filho mais velho estava no campo. Era, portanto, um dia de semana, de trabalho. Este PAI não escolhe fins-de-semana para fazer FESTA! E FESTA excessiva. Mandou matar o vitelo gordo! Trouxe uma orquestra musical para animar a FESTA! O filho mais velho, ao aproximar-se de casa, ouviu música e danças. Esta «música» diz-se em grego symphônía. Ora, symphônía é uma orquestra!

Como tinha saído ao encontro do filho mais novo, o PAI sai agora também ao encontro do filho mais velho, para o instar a entrar para a FESTA, tal como o pastor que encontra a ovelha perdida e a mulher que encontra a dracma perdida convidaram os amigos e os vizinhos para a ALEGRIA. Mas este filho mais velho acusa o PAI de acolher um pecador e de se preparar para comer com ele. Exatamente o que faziam os ESCRIBAS e FARISEUS, que criticavam Jesus por acolher os pecadores e comer com eles. Este filho mostra-se, portanto, um puro FARISEU, que sempre cumpriu as ordens do PAI (patrão), achando-se credor e não devedor face ao seu PAI, face a Deus!

Quando duas figuras parecem diferentes, é naquilo em que se assemelham que reside a chave de compreensão. O que assemelha estes dois filhos, que parecem diferentes, é que ambos se sentem assalariados (e não filhos) e ambos olham para o PAI como para um patrão. É também interessante notar que os dois filhos deste quadro falam ao PAI, ao seu PAI comum, como fazem os cristãos. Como fazemos nós. Mas em nenhum momento da história se falam um ao outro. Será que também neste ponto se parecem connosco? Sim, às vezes, nós também só sabemos falar por trás, entre raivas acumuladas e insultos! Mas entramos sem problemas de consciência na Igreja, e dizemos que rezamos!

Todavia, o filho mais novo deixou-se mover pela compaixão do PAI. Estava MORTO como filho e VOLTOU a VIVER, estava PERDIDO lá longe e FOI ENCONTRADO! Tal como a ovelha PERDIDA e ENCONTRADA lá longe! Mas atenção que a dracma estava PERDIDA em casa! Sim, tanto nos podemos perder lá longe, no deserto, como nos podemos perder em casa! Podemos, na verdade, andar perdidos em casa, numa casa fria, sem Pai e sem irmãos, sem mesa, sem lareira, sem alegria, como o filho mais velho da parábola!

Afinal «ESTA PARÁBOLA» em três quadros foi contada por Jesus aos ESCRIBAS e FARISEUS, ao FILHO MAIS VELHO, a NÓS. Mas ficamos sem saber, no final, se o FILHO MAIS VELHO entrou ou não entrou em casa, na alegria, para a FESTA. O narrador não o diz, porque essa decisão de entrar ou não, somos NÓS que a temos de tomar. Afinal foi para NÓS, TU e EU, colocados, na estratégia narrativa, do lado dos ESCRIBAS e FARISEUS e do FILHO MAIS VELHO (única posição correta para sermos interpelados pela parábola), que Jesus contou a parábola. Então, a decisão é nossa, é minha e é tua: entramos ou recusamos entrar na CASA do PAI, na misericórdia, na festa, na dança e na alegria?

À entrada da Terra Prometida, em Guilgal, nas planícies de Jericó, vê-se na lição do Livro de Josué 5,9-12, que hoje temos também a graça de ouvir, o Povo de Deus, saído do Egito e depois de atravessar o deserto, sempre conduzido pela mão de Deus, celebra a Páscoa (Josué 5,10), a Festa da liberdade, e experimenta o sabor dos frutos da Terra. Esta é a terceira Páscoa celebrada pelo Povo de Israel, assinalando sempre um novo início. A primeira foi no Egito, antes do Povo sair para o deserto (Êxodo 12,1-28). A segunda acontece no Sinai, antes do Povo levantar o acampamento para partir em direção à Terra Prometida (Números 9,5).

São Paulo escreve aos Coríntios sobre a centralidade e novidade da nossa vida em Cristo (2 Coríntios 5,17-21). Em Cristo somos nova criatura, pois Cristo assumiu e absolveu o nosso pecado, reconciliando-nos com Deus. Esta obra grande da Reconciliação, Paulo experimentou-a bem, e vive-a, e assumiu também o ministério da Reconciliação. Milagre ainda hoje exposto diante de nós.

O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Ou talvez mais do que isso. Na versão grega deste v. 9, muito utilizado no momento da comunhão, também nas liturgias de rito bizantino, lê-se: «geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios» («Saboreai e vede que Bom é o Senhor»), em que o adjetivo chrêstós, «bom», é lido na pronúncia viva: christós, o que vem a resultar, na atualização cristã: «Saboreai e vede que Cristo é o Senhor». Belo e saboroso, sem dúvida. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

O caminho da Quaresma leva-nos à cripta,

Ao miolo,

Àquele lugar íntimo e íntegro, inteiro,

Onde eu sou verdadeiro,

Sem dolo

Nem tijolo

Nem roupeiro.

Chegar lá implica desfazer-se do barulho

E do entulho,

Arredar a caliça e o reboco,

Aprender com os pássaros do céu,

Com os lírios do campo,

Ir até ao fundo,

Até ao toco,

E deixar Deus a trabalhar no fundo desse poço,

Onde só Ele sabe semear semente santa,

Que depois há de florir e dar fruto

A seu tempo e a seu campo.

Que rebento pode brotar de um toco seco?

Que sucesso pode ter uma semente

Na aridez do deserto semeada?

É mesmo só com Deus essa empreitada.

E Jesus explica bem,

No meio do sermão da montanha,

Que são também assim a esmola,

A oração e o jejum,

Frutos que só Deus pode fazer brotar em mim.

A Quaresma é tempo de deixar de fazer tantas coisas

Por mim e ao meu jeito,

E para mim e em meu proveito,

Nas ruas,

Nas praças,

Nas igrejas,

Só para que as pessoas vejam e aplaudam.

A Quaresma é tempo de deixar Deus

Fazer nascer

Dentro de mim

Um jardim,

Uma maneira nova de viver.

 António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – IV D Quaresma – Ano C – 27.03.2022 (Jos 5, 9a.10-12)
  2. Leitura II – IV D Quaresma – Ano C – 27.03.2022 (2Cor 5, 17-21)
  3. IV Domingo Quaresma – Ano C -27.03.2022 – Lecionário
  4. IV Domingo Quaresma – Ano C -27.03.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

III Domingo da Quaresma – Ano C – 20.03.2022

Viver a Palavra

 No quotidiano da nossa vida, entre os múltiplos afazeres do dia-a-dia que tantas vezes nos distraem e fazem dispersar, Deus faz-se presente, irrompendo na nossa história com a paciente e desconcertante misericórdia que transforma os nossos corações em lugares de conversão permanente.

Assim aconteceu com Moisés, que pastoreando o rebanho de Jetro, seu sogro, foi visitado por Deus naquela sarça que ardia sem se consumir. Naquela teofania, Deus revela-se para que Moisés fosse portador da vontade libertadora de Deus, que compadecido pela situação do Seu Povo no Egipto, o quer libertar da escravidão e constituí-lo como Povo eleito.

Deste modo, a história de amor e de salvação que Deus estabelece com Israel, torna-se lugar de manifestação das maravilhas de Deus e S. Paulo recorda à comunidade de Corinto que a nossa história, à semelhança da história de Israel é chamada a ser história de amor e lugar concreto de manifestação da condescendência de Deus. Neste mesmo sentido, no Evangelho, Jesus ensina-nos a ler os acontecimentos da história como lugares interpeladores da efemeridade da nossa vida, evitando qualquer leitura catastrófica e punitiva, mas reconhecendo que o nosso quotidiano, na diversidade do seu devir é um constante apelo à conversão e à transformação do coração.

Deste modo, o grande desafio da vida cristã não é procurar sinais extraordinários e espetaculares da manifestação de Deus, mas precisamente no ordinário da vida, na normalidade da nossa existência, descobrir a beleza da ação silenciosa e misericordiosa de Deus. É a permanente lógica do mistério da Incarnação que nos recorda o modo que Deus escolhe para se relacionar connosco: assume a nossa natureza humana, faz-se presente na nossa história e revela-nos a grandeza do Seu amor, revelando-se por meio de «palavras e gestos intimamente ligados entre si» (DV 2). Torna-se ainda mais bela a ação de Deus quando se realiza deste modo, pois ao invés de um Deus que opera ações pontuais e extraordinárias na história, tomamos consciência que somos filhos amados de um Deus que se faz presente na sucessão dos nossos dias e que caminha ao nosso lado oferecendo sentido à nossa existência.

Assim, pode dizer-se que a Liturgia da Palavra de hoje se apresenta como uma janela com vista direta para o coração de Deus e permite-nos vislumbrar o modo como Deus se relaciona connosco. O diálogo que Deus estabelece com Moisés na sarça ardente revela-nos o desvelo e o cuidado que Deus nutre pelo homem e pela mulher, obra das Suas mãos: «Eu vi a situação miserável do meu povo no Egipto; escutei o seu clamor provocado pelos opressores. Conheço, pois, as suas angústias. Desci para o libertar das mãos dos egípcios e o levar deste país para uma terra boa e espaçosa, onde corre leite e mel».

Estas quatro formas verbais – «vi», «escutei», «conheço» e «desci» – manifestam a absoluta condescendência de Deus e a dinâmica da Sua relação connosco. O Deus do amor e da misericórdia não é indiferente às nossas dores e angústias e escuta os gritos da nossa limitada condição humana. Ele conhece a nossa frágil humanidade com os seus clamores e desilusões e, por isso, vem ao nosso encontro e faz-se presente na nossa vida. Esta dinâmica de salvação assume carácter pleno, total e definitivo na incarnação de Jesus Cristo, que vem ao nosso encontro como rosto da misericórdia do Pai, não para condenar, mas para anunciar a paciente misericórdia de Deus, que como o vinhateiro acredita que com paciência, perseverança e cuidado aquela figueira pode gerar frutos.in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Ex 3, 1-8a.13-15

«Assim falarás aos filhos de Israel: O que Se chama ‘Eu sou’ enviou-me a vós».

 

A primeira parte do livro do Êxodo (Ex 1-18) apresenta-nos um conjunto de “tradições” sobre a libertação do Egipto: narra-se a iniciativa de Jahwéh, que escutou os gemidos dos escravos hebreus e teve compaixão deles (cf. Ex 2,23-24).
O texto que nos é proposto como primeira leitura apresenta-nos o chamamento de Moisés, convidado a ser o rosto visível da libertação que Jahwéh vai levar a cabo. Algum tempo antes, Moisés deixara o Egipto e encontrara abrigo no deserto do Sinai, depois de ter morto um egípcio que maltratava um hebreu (o caminho do deserto era o caminho normal dos opositores à política do faraó, como o demonstram outras histórias da época que chegaram até nós); acolhido por uma tribo de beduínos, Moisés casou e refez a sua vida, numa experiência de calma e de tranquilidade bem merecidas, após o incidente que lhe arruinara os sonhos de uma carreira no aparelho administrativo egípcio (cf. Ex 2,11-22). Ora, é precisamente nesse oásis de paz que Jahwéh Se revela, desinquieta Moisés e envia-o em missão ao Egipto.in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL Salmo 102 (103)

Refrão:O Senhor é clemente e cheio de compaixão.

 

LEITURA II – 1 Cor 10, 1-6.10-12

«Bebiam de um rochedo espiritual que os acompanhava: esse rochedo era Cristo».

 

No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. No entanto, havia sempre sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – era, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos. Isso era lícito? É essa questão que inquieta os cristãos de Corinto.

A esta questão, Paulo responde em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente. Contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis: se houver esse perigo, evite-se comer dessa carne.

Paulo aproveita este ponto de partida para um desenvolvimento que vai muito além da questão inicial: comer ou não comer carne imolada aos ídolos não é importante; o importante é não voltar a cair na idolatria e nos vícios anteriores; o importante é esforçar-se seriamente por viver em comunhão com Deus.in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 13, 1-9

«Julgais que, por terem sofrido tal castigo, esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus?»

«E se não vos arrependerdes, morrereis todos do mesmo modo».

«Senhor, deixa-a ficar ainda este ano, que eu, entretanto, vou cavar-lhe em volta e deitar-lhe adubo».

 

O Evangelho de hoje situa-nos, já, no contexto da “viagem” de Jesus para Jerusalém (cf. Lc 9,51-19,28). Mais do que um caminho geográfico, é um caminho espiritual, que Jesus percorre rodeado pelos discípulos. Durante esse percurso, Jesus prepara-os para que entendam e assumam os valores do Reino (mesmo quando as palavras de Jesus se dirigem às multidões, como é o caso do episódio de hoje, são os discípulos que rodeiam Jesus os primeiros destinatários da mensagem). Pretende-se que, terminada esta caminhada, os discípulos estejam preparados para continuar a obra de Jesus e para levar a sua proposta libertadora a toda a terra.

O texto que hoje nos é proposto apresenta um convite veemente à conversão ao Reino. Destina-se à multidão, em geral, e aos discípulos que rodeiam Jesus, em particular.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

Na primeira leitura, a proclamação deve ter em conta o diálogo estabelecido entre Moisés e o Senhor Deus. Deve haver uma especial atenção para com as perguntas presentes no texto, bem para as diferentes frases no discurso direto como o chamamento: «Moisés, Moisés!» e a sua resposta: «Aqui estou!». A entoação da leitura deve ser cuidada para que não haja uma excessiva dramatização do texto nem uma leitura apática das diferentes intervenções.

A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, pelo que uma boa preparação, tendo em conta as pausas e as respirações nas frases mais longas, ajudará a uma proclamação mais eficaz do texto

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 CHAMA QUE CHAMA E AMA

No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúmenos: primeira «chamada» para a Liberdade.

No Evangelho deste Domingo III da Quaresma (Lucas 13,1-9), Jesus atira tudo contra o nosso coração dormente e empedernido: atira a crónica e a parábola. Tudo serve para gravar em nós a conversão. A crónica refere a brutalidade de Pilatos que massacrou um grupo de Galileus, e a queda da torre de Siloé que matou 18 pessoas. Pois bem, Jesus não se insurge contra o poder romano nem invoca o fatalismo, mas também não desperta sentimentalismos fáceis e de ocasião, nem tão-pouco se refugia em esquemas feitos: eram pecadores e por isso foram castigados por Deus. O que equivale a dizer também: não é o nosso caso, isto não tem nada a ver connosco, Deus está do nosso lado, podemos continuar a viver tranquilos. Jesus ouve e passa diante dos olhos a crónica. Mas não fica a olhar para trás, a lamentar-se ou a levantar falsas culpabilizações. Jesus não é reativo, mas proativo. Vira a inteira crónica para nós e diz que, face à precariedade da vida, só nos resta converter-nos! Lição oportuna para nós, que perdemos ainda muito tempo a comentar as notícias, sempre trágicas, dos jornais. De forma diferente, da crónica, Jesus retira sabiamente, não o pecado dos outros, mas a conversão para nós, grande tema quaresmal, que nos acompanha desde Quarta-Feira de Cinzas.

Depois pega na parábola da figueira, talvez com muitas folhas, mas sem figos. E põe em cena aquele belo acerto de contas entre o dono do pomar (o Pai) e o cultivador (Jesus, o Filho). Os «três anos» apontam para o ministério de Jesus. Aqueles «três anos» de cuidados parece que não foram suficientes para levar aquela figueira, que somos nós, a dar frutos. É-nos dado «ainda mais um ano» de graça para frutificar. Não, não é a paciência de Deus que a parábola acentua, mas a urgência da nossa conversão. A parábola constitui, portanto, um fortíssimo apelo à conversão. Mas devemos ainda fixar o coração nesta impressionante maravilha que é sermos comparados por Jesus a uma árvore boa plantada por Deus no mundo, neste mundo, para dar bom fruto!

Extraordinária a história de Moisés (Êxodo 3,1-8 e 13-15). Segundo Êxodo 7,6 e Atos 7,30, o episódio que hoje temos a graça de ouvir situa-se aos 80 anos da vida de Moisés. Foi então que Moisés foi encontrado por Deus no deserto e foi incumbido de libertar os seus irmãos oprimidos ou escravizados ou instalados, ou oprimidos ou escravizados, porque instalados, no Egito, e de os conduzir, através do deserto, até à entrada da Terra Prometida. No referido episódio, Moisés é pastor e tem um caminho a seguir: o caminho das suas ovelhas. Mas vê uma Visão grande e nova: uma sarça que arde, mas não se consome. E diz o texto, na sua versão original, que Moisés se «desviou do caminho» para ver melhor aquela visão grande. O caminho de Moisés era o caminho das ovelhas que pastoreava. Ao desviar-se do caminho, Moisés age como uma criança curiosa e deslumbrada! Mas as crianças são louvadas no Evangelho, e todos somos advertidos de que, se não nos tornarmos como as crianças, não entraremos no Reino de Deus (Marcos 10,14-15). E Deus, que habitava naquela «chama que chama», contou-se a Moisés: 1) Eu BEM VI o sofrimento do meu povo; 2) e OUVI os seus clamores; 3) CONHEÇO a situação; 4) DESCI a fim de o libertar e conduzir para a terra da liberdade. Está aqui, nestes quatro VERBOS, a história de Deus, a santidade de Deus, que SAI DE SI para vir ao nosso encontro. Note-se bem que contando-se nestes verbos, Deus se afasta dos ídolos, que a Escritura Santa diz que não veem, nem ouvem… E um pouco depois, ao dizer o seu NOME, Deus diz-se outra vez, não com um nome estático, mas com um verbo na forma ativa: «Eu Sou». Outra vez diferente dos ídolos inúteis, vazios e inativos.

É importante não deixarmos para trás, no esquecimento, um versículo que a lição de hoje de Êxodo 3 omitiu: o versículo 10. Aí, Deus diz a Moisés: «E agora VAI; Eu te envio ao Faraó, e FAZ SAIR do Egito o meu povo, os filhos de Israel». Ficamos então a saber que Deus, que está bem atento a todos as situações difíceis dos seus filhos, nunca responde alguma coisa… Deus nunca responde alguma coisa. Deus responde sempre ALGUÉM! Aqui, nesta situação de opressão do seu povo no Egito, a resposta de Deus é Moisés. E hoje, quem é hoje a resposta de Deus para as situações difíceis do mundo hoje? Sem equívocos: a resposta de Deus hoje somos nós!

A reflexão que Paulo nos oferece neste Domingo III da Quaresma (1 Coríntios 10,1-6.10-12) é exemplar e encaixa perfeitamente com o Evangelho. No deserto, o Povo conduzido por Deus e por Moisés foi rodeado de tantas provas de carinho e da presença amorosa de Deus. Todavia, pecaram, entorpeceram os corações, puseram em causa a presença de Deus… Conclusão: caíram mortos no deserto! E Paulo escreve, por duas vezes neste texto, para nossa advertência: «Estas coisas aconteceram para nos servir de exemplo» (1 Coríntios 10,6 e 11), acrescentando logo: «E foram escritas para nossa instrução» (1 Coríntios 10,11).

O Salmo 103 é um grande canto ao amor de Deus, que dia-a-dia nos perdoa, nos cura, cuida de nós com carinho e misericórdia maternais. Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas do Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento.

Temos meia Quaresma já andada.

E enquanto,

No caminho ou no campo,

Nos alegramos por ver a tua messe amadurar,

Também olhamos e vemos,

Cada vez com mais encanto,

Aquela árvore seca

A olhar para nós e a sangrar.

Árvore seca e comovida,

Toco seco a rebentar em flor,

É a tua Cruz, Senhor,

A irrigar de amor a nossa vida.

Ela lá está,

Sempre à nossa frente,

Plantada no chão árido e seco.

Mas, para nosso maior espanto e admiração,

Eis que a tua Cruz, Senhor, se levanta do chão,

E se planta no nosso coração.

Por tanto amor, Senhor,

Recebe a nossa gratidão,

Enche os nossos pés de prontidão,

As nossas mãos de paz,

Os nossos lábios de oração,

Os nossos gestos de perdão.

E caminha connosco

No que falta cumprir desta peregrinação.

 D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – III D Quaresma – Ano C – 20.03.2022 (Ex3, 1-8a. 13-15)
  2. Leitura I -resto – III D Quaresma-Ano C – 20.03.2020 (Ex 3,1-8a. 13-15)
  3. Leitura II – III D Quaresma – Ano C – 20.03.2022 (1Cor 10, 1-6.10-12)
  4. III Domingo Quaresma – Ano C – 20.03.2022 – Lecionário
  5. III Domingo Quaresma – Ano C – 20.03.2022 – Oração Universal
  6. ANO C – Ano de Lucas

II Domingo da Quaresma – Ano C – 13.03.2022

Viver a Palavra

 

A Liturgia da Palavra deste Domingo coloca-nos de olhos fixos em Jesus de Nazaré, o Filho Amado, o Eleito, que na intimidade da oração entra em comunhão com o Pai e nos revela o mistério de luz que irrompe na nossa vida quando nos abrimos ao diálogo de «amizade, estando muitas vezes e a sós com Quem sabemos que nos ama» (S. Teresa de Ávila,  Livro da Vida 8,5).

A Transfiguração de Jesus faz ecoar no coração dos discípulos escolhidos para subir ao monte as palavras que cantávamos no Salmo Responsorial: «O Senhor é a minha luz e a minha salvação». A vida de Jesus com os Seus gestos, as Suas Palavras, os Seus milagres e prodígios são o anúncio e realização do projecto salvífico do Pai que nas palavras dos Profetas e na Lei confiada ao Povo de Israel, prefigurava Aquele que em plenitude nos haveria de revelar a Lei nova do amor e realizar a profecia do Reino Novo que somos chamados a construir no aqui e agora do tempo e da história.

Jesus, que se faz presente nos desertos da nossa vida, conduz-nos com Ele ao monte, para passarmos da aridez do deserto à luz transfiguradora e transformadora do Seu amor: «Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago e subiu ao monte, para orar». O cimo do monte é o lugar onde o dia amanhece mais cedo e onde se pousa o último raio de Sol. O cimo do monte é sempre um lugar privilegiado de encontro com Deus: até geograficamente estamos mais perto do céu, esse lugar onde brilham as estrelas da promessa que Deus manifestou a Abraão e o fazem caminhar até à terra onde Deus o espera e onde Abraão é alcançado pelo amor e pela condescendência de Deus.

Por isso, precisamente aí, Jesus faz resplandecer a existência, reacende a esperança e faz luzir o amor. Com Pedro, João e Tiago, também nós somos convidados a subir ao monte. Baptizados em Cristo e ungidos pela força do Espírito Santo somos discípulos missionários, escolhidos pelo Pai, para saborear a beleza da intimidade com Ele e experimentar o estupor que inundou o coração destes três discípulos e que fez Pedro exclamar: «Mestre, como é bom estarmos aqui!».

Como deveria ser belo ver Jesus rezar, ver Jesus entrar em diálogo íntimo de amor com o Pai. Por isso, não nos espanta que numa outra ocasião, estando Jesus em oração, os discípulos lhe tenham pedido: «Senhor, ensina-nos a orar» (Lc 11,1).

Caminhar com Jesus, preparando a Sua Páscoa, é tomar consciência da urgente necessidade de uma vida orante que se faz escuta da Palavra do Pai. A verdadeira oração não é aquela que se faz até que Deus nos ouça, mas aquela que se realiza incessantemente até que possamos escutar a voz de Deus: «Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O». A voz, que emana da nuvem e que nos recorda a necessidade de viver de olhos fixos em Jesus e de coração aberto e disponível para a Sua palavra, apresenta Jesus como o Filho Amado, o Eleito do Pai que nos revela que a paixão, o sofrimento e a morte não têm a última palavra e, por isso, a «morte de Jesus, que ia consumar-se em Jerusalém» de que falavam Moisés e Elias é caminho para a glória plena, total e definitiva da qual a Transfiguração é sinal e antecipação.

Deste modo, S. Paulo recorda-nos que «a nossa pátria está nos Céus, donde esperamos, como Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o nosso corpo miserável, para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso», para nos ensinar a arte de ler os sofrimentos do tempo presente como lugares de passagem para a alegria plena e definitiva que só Jesus e o Seu amor nos podem oferecer.

A Quaresma é o tempo privilegiado e escolhido por Deus para contar as estrelas do Céu apontadas a Abraão, para renovar no coração a aliança de amor que Deus realiza, já não nos animais oferecidos em sacrifício, mas no Cordeiro imolado por nosso amor.in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Gen 15, 5-12.17-18

«Olha para o céu e conta as estrelas, se as puderes contar».

 

 

A primeira leitura de hoje faz parte das chamadas “tradições patriarcais” (Gn 12-36). São “tradições” que misturam “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.

Os clãs referenciados nas “tradições patriarcais” – nomeadamente os de Abraão, Isaac e Jacob – tinham os seus sonhos e esperanças. O denominador comum desses sonhos era a esperança de encontrar uma terra fértil e bem irrigada, bem como possuir uma família forte e numerosa que perpetuasse a “memória” da tribo e se impusesse aos inimigos. O deus aceite pelo grupo era o potencial concretizador desse ideal.
É neste “ambiente” que este texto nos coloca. Diante de Deus, Abraão lamenta-se (cf. Gn 15,2-3) porque a sua vida está a chegar ao fim e o seu herdeiro será um servo – Eliezer (conhecemos contratos do séc. XV a. C. onde se estipula, em caso de falta de filhos, a adopção de escravos que, por sua vez, se comprometiam a dar ao seu senhor uma sepultura conveniente. Parece ser a esse costume que o texto alude). Qual será a resposta de Deus ao lamento de Abraão? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 26 (27)

Refrão:O Senhor é a minha luz e a minha salvação.

 

LEITURA II – Filip 3, 17 – 4,1

«O Senhor Jesus Cristo transformará o nosso corpo miserável para o tornar semelhante ao seu corpo glorioso».

 

Na prisão (em Éfeso?), Paulo agradece aos Filipenses a preocupação manifestada (eles até enviaram dinheiro e um membro da comunidade para ajudar Paulo no cativeiro), dá notícias, exorta-os à fidelidade e põe-nos de sobreaviso em relação aos falsos pregadores do Evangelho de Jesus. Estamos no ano 56/57, provavelmente.

O texto que nos é proposto como segunda leitura faz parte de um longo desenvolvimento (cf. Flp 3,1-4,1), no qual Paulo avisa os Filipenses para que tenham cuidado com “os cães”, os “maus obreiros”, os “falsos circuncidados” (cf. Flp 3,2). Quem são estes, a quem Paulo se refere de uma forma tão pouco delicada? Muito provavelmente, são esses cristãos de origem judaica (“judaizantes”) que se consideravam os únicos perfeitos e detentores da verdade, que exigiam aos cristãos o cumprimento da Lei de Moisés e que, dessa forma, lançavam a confusão nas comunidades cristãs do mundo helénico. As duras palavras de Paulo resultam da sua revolta diante daqueles que, com a sua intolerância, com o seu orgulho e auto-suficiência, confundiam os cristãos e punham em causa o essencial da fé (o Evangelho não é o cumprimento de ritos externos, mas a adesão à proposta gratuita de salvação que Deus nos faz em Jesus).in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 9, 28b-36

«Jesus tomou consigo Pedro, João e Tiago e subiu ao monte, para orar».

«Este é o meu Filho, o meu Eleito: escutai-O».

«Os discípulos guardaram silêncio e, naqueles dias, a ninguém contaram nada do que tinham visto».

 

Estamos no final da “etapa da Galileia”; durante essa etapa, Jesus anunciou a salvação aos pobres, proclamou a libertação aos cativos, fez os cegos recobrar a vista, mandou em liberdade os oprimidos, proclamou o tempo da graça do Senhor (cf. Lc 4,16-30). À volta de Jesus já se formou esse grupo dos que acolheram a oferta da salvação (os discípulos). Testemunhas das palavras e dos gestos libertadores de Jesus, eles já descobriram que Jesus é o Messias de Deus (cf. Lc 9,18-20). Também já ouviram dizer que o messianismo de Jesus passa pela cruz (cf. Lc 9,21-22) e que os discípulos de Jesus devem seguir o mesmo caminho de amor e de entrega da vida (cf. Lc 9,23-26); mas, antes de subirem a Jerusalém para testemunhar a erupção total da salvação, recebem a revelação do Pai que, no alto de um monte, atesta que Jesus é o Filho bem amado. Os acontecimentos que se aproximam ganham, assim, novo sentido.

Para o homem bíblico, o “monte” era o lugar sagrado por excelência: a meio caminho entre a terra e o céu, era o lugar ideal para o encontro do homem com o mundo divino. É, portanto, no monte que Deus Se revela ao homem e lhe apresenta os seus projectos. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

A primeira leitura narra a aliança que Deus estabelece com Abrão e deve ler-se Abrão e não Abraão. Além disso, a proclamação deste texto deve ter em atenção o diálogo estabelecido entre Deus e Abrão que é fundamental para uma correcta leitura.

A segunda leitura, a Epístola de S. Paulo aos Filipenses, está dividida em duas partes separadas pela conjunção adversativa “Mas”. Por isso, a proclamação desta leitura deve ter presente esta estrutura e deve ter uma especial atenção às frases longas com várias orações. A conclusão do texto – «Portanto, meus amados e queridos irmãos, minha alegria e minha coroa, permanecei firmes no Senhor» – deve ser enfatizada pois apresenta a exortação final de Paulo aos filipenses

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

CAMINHO DE LUZ E DE JESUS

Batizado no Jordão enquanto estava em oração (nota típica de Lucas), tentado, mas Vitorioso, Jesus começou a executar o seu programa filial batismal que tem por meta a Cruz Gloriosa (Batismo consumado!) em que nós somos por Ele batizados com o fogo e com o Espírito Santo (ainda o luminoso texto de Lucas 12,49-50). Entre o Jordão e a Cruz Gloriosa aí está, no Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Lucas 9,28-36), a Transfiguração, Luz incriada e inacessível (Lucas 9,29; cf. Salmo 104,2; 1 Timóteo 6,16) que investe a Humanidade de Jesus, experiência momentânea da Ressurreição, mediante a qual o Pai confirma o Filho na sua missão filial batismal, já iniciada, mas ainda não consumada. Também aqui temos a nota típica de Lucas de que Jesus subiu ao monte para orar, acontecendo a Transfiguração do Rosto e das vestes enquanto orava (9,28).

Batizado para a Cruz Gloriosa, Confirmado para a Cruz Gloriosa. As mesmas palavras do Pai no Batismo e na Transfiguração / Confirmação: «o Filho Meu», «o Amado» – «o Eleito» (Lucas 3,22; 9,35), agora seguidas pelo imperativo «Escutai-o!», dirigido a todos os discípulos: Jesus é também o «Profeta novo», como Moisés, prometido em Deuteronómio 18,15-18. Como dispunha a Lei antiga, que requeria duas ou três testemunhas (Deuteronómio 17,6), testemunham a cena grandiosa da Transfiguração / Confirmação três discípulos, os quais são igualmente transfigurados / confirmados, não no Rosto e nas vestes, mas no coração, para a sua missão futura (após a Ressurreição com a dádiva do Espírito) de dar testemunho d’Ele.

Aparecem Moisés e Elias que falam com Jesus Transfigurado / Ressuscitado. É para Ele que aponta todo o Antigo Testamento! As «Escrituras», Moisés, todos os profetas e os Salmos falam acerca d’Ele! (Lucas 24,27 e 44; João 5,39 e 46; Atos 10,43). É o «segundo as Escrituras» que os discípulos também devem testemunhar. Só em Lucas temos o assunto falado: «falavam do Êxodo d’Ele que se consumaria em Jerusalém!» (9,31). Passagem deste mundo para o Pai, Liberdade definitiva, cumprimento do Êxodo antigo!

Pedro, sempre ele, em nome dos discípulos de então e de sempre, tenta impedir Jesus de prosseguir a sua missão filial batismal até à Cruz: «Mestre, belo é estarmos aqui e fazermos aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias» (Lucas 9,33). Aqui significa deter-se no penúltimo e provisório e recusar caminhar para o último e definitivo! Lucas 9,33 (e Marcos 9,6) anotam corretamente que «não sabia o que dizia». Não sabia, porque ainda não tinha sido batizado com o Espírito Santo e com o fogo; quando o for, saberá também ele, discípulo fiel, batizado / confirmado, levar por diante a missão filial batismal em que foi investido, e dará testemunho até ao sangue.

A Ressurreição é a Transfiguração tornada permanente, eterna. Todos os batizados / confirmados estão destinados à mesma Ressurreição / Transfiguração da Humanidade do Senhor, a divinização por graça.

Em consonância com a manifestação de Luz do Evangelho da Transfiguração (Lucas 9,28-36), aí está o Lume Aceso, que é Deus, a passar pelo nosso mundo (Génesis 15,5-12 e 17-18). Abraão representa-nos. Tem dúvidas. Deus dissipa-lhas, comprometendo-se com ele e connosco. O ritual que sela este compromisso é antigo, mas ainda hoje se pratica entre os beduínos. Cortam-se ao meio animais puros, e põe-se uma metade diante da outra. A seguir os contraentes passam entre as carnes divididas dos animais, proferindo uma auto maldição, do género: «Suceda-me o que sucedeu a estes animais, se eu não for fiel à palavra dada!». Note-se que, no texto de hoje, caiu sobre Abraão (e nós com ele) um sono profundo, dom de Deus. Sim, Deus também dá sono e faz sonhar! Há, nas páginas da Escritura Santa, um sono dado por Deus ao homem, um sono que não dormimos porque temos sono, mas um sono milagroso, que só Deus pode e sabe fazer dormir ao homem. A Escritura Santa chama a este sono, na língua hebraica, tardemah. É o sono/sonho de Deus. É o sono que, por amor, Deus deu a Abraão (Génesis 15,12) e a Pedro, Tiago e João (Lucas 9,32), para só citar dois grandes textos Hoje lidos. Deus dá um sono e um sonho. Transfiguração. Transfigura a nossa desfiguração, e, por amor, a si nos configura. Configuração. Toda a figura está aberta à sua realização. Mas a realização não sucede à figura: enche-a! Jesus Cristo não aparece depois do Antigo Testamento: está no meio dele: enche-o! Transborda dele!

Este sono/sonho a nós dado e dado a Abraão é importante. Enquanto isso, é só Deus que passa, no fogo, por entre as carnes divididas dos animais. Só Ele, portanto, se compromete. Nós, ensonados e ensonhados, somos apenas beneficiários deste compromisso de Deus de levar a nossa história em direção a Cristo, que é a verdadeira descendência de Abraão (Gálatas 3,16), que Abraão vê e saúda de longe (Hebreus 11,13), cheio de alegria (João 8,56). A meta de Abraão torna-se clara e define e alumia a estrada que segue. Por isso, Abraão não se despede do passado, e faz ao futuro um aceno de esperança e de alegria. É tão simples, tão novo e tão decidido este sono/sonho dado a Abraão, a Pedro, João e Tiago! Talvez devamos mesmo seguir o conselho de Isaías, o profeta: «Olhai para Abraão, vosso Pai» (Isaías 51,2). E partir com ele daqui, do penúltimo e provisório, ao encontro de Cristo Transfigurado / Ressuscitado.

A Carta de S. Paulo aos Filipenses (3,17-4,1) põe outra vez tudo às claras: ou agarrados aqui ao penúltimo e provisório, ou a caminho do último, da cidade dada por Deus aos seus filhos e filhas, vida nova e transfigurada e conformada à Humanidade glorificada de Jesus.

O Salmo 27 é belo e expressivo. Pode deixar-nos nos braços de Deus, cantando e decantando a luz e a confiança que d’Ele recebemos. Mas também a suavidade, a bondade e a beleza nos encantam. Corolário normal, ainda que sempre de excecional elevação, para este dia e para esta liturgia, que nos deixa sempre tranquilos a brincar à porta da Casa de Deus.

A Quaresma é esta estrada de Luz e de Jesus.

A quaresma é uma estrada

Entrecortada

Por estações de serviço de paz e de perdão,

Uma avenida

Florida

De oração,

Uma praça

De graça

E contemplação.

A quaresma é uma escada,

Que do céu desce,

Trazendo até nós a mão de Deus,

E ao céu se eleva,

Levando até Deus a nossa prece.

A quaresma é um caminho

Direitinho

Ao coração.

É preciso limpá-lo

De todo o lixo ali acumulado.

É preciso entregá-lo a Deus,

Limpo e cultivado.

Senhor desta estrada deserta,

Que vai de Jerusalém a Gaza,

Conduz os meus passos

Até ao limiar da tua casa.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – II Domingo Quaresma – Ano C – 13.03.2022 (Gen 15, 5-12.17-18)
  2. Leitura II – II Domingo Quaresma – Ano C – 13.03.2022 (Filip 3,17.4-1)
  3. II Domingo da Quaresma – Ano C – 13.03.2022 – Lecionário
  4. II Domingo da Quaresma – Ano C – 13.03.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

I Domingo da Quaresma – Ano C – 06.03.2022

Viver a Palavra

Com a celebração da Quarta-feira de Cinzas damos início ao itinerário quaresmal que nos conduzirá à celebração da Páscoa do Senhor. Deste modo, cada Domingo deste «tempo favorável» (2 Cor 6,2) constitui uma etapa de aprofundamento e reflexão de um percurso penitencial que neste ano tem a marca da sinodalidade, sublinhando que os laços fraternos e de comunhão são fundamentais para a construção de um caminho de conversão pessoal e pastoral. A Quaresma, enquanto tempo penitencial e oportunidade de conversão, não é um tempo triste e pesado, mas tempo de «cantar a alegria do perdão» (Irmão Roger Schütz)

A Quaresma é um tempo novo, pois nova e inaudita é sempre a oferta de amor que Deus nos faz em cada momento da nossa vida. É tempo de esperança e de conversão, um tempo da alegre transformação do coração que nos conduzirá à Páscoa da Ressurreição: fonte da nossa esperança e alegria, oferta de amor do Pai, que em Cristo faz de nós Filhos amados e ressuscitados, isto é, homens e mulheres herdeiros da vida nova.

Neste primeiro Domingo da Quaresma, o Evangelho convida-nos a ir ao deserto: «Jesus, cheio do Espírito Santo, retirou-Se das margens do Jordão. Durante quarenta dias, esteve no deserto, conduzido pelo Espírito, e foi tentado pelo Diabo». Após o Baptismo, Jesus aparece como Homem Novo na Plenitude do Espírito, revestido e conduzido pelo Espírito Santo percorre o caminho que o Pai tem para Ele. É conduzido ao deserto, a esse lugar privilegiado do encontro com Deus, mas simultaneamente lugar de privação e provação, onde apenas podemos levar o essencial. Como afirma Saint-Exupéry, «em cada deserto há um poço», isto é, em cada angústia existe um rebento de ressurreição.

Conduzido pelo Espírito Santo ao deserto, Jesus é tentado e posto à prova pelo diabo. Como sabemos, a palavra diabo na sua etimologia significa aquele que divide. Na verdade, o diabo, o mal e o pecado é aquilo que nos afasta de Deus e dos irmãos, que nos divide e rompe com a comunhão e unidade que conduzem à realização e felicidade.

Seguindo Jesus, como cristãos batizados somos convidados a acolher os desafios e impulsos do Espírito Santo e reconhecemos que a nossa vida cristã conhece lugares de deserto, de tentação e provação. Contudo, temos consciência que as tentações em si mesmas não são boas nem más. Diria que as tentações são situações que irrompem no quotidiano da nossa vida e se constituem como uma oportunidade: a oportunidade de voltar a escolher Deus e optar pelo Seu amor. Cada momento de tentação e provação reclamam da nossa vida uma adesão radical ao bem que liberta e salva e uma decidida rejeição do mal que nos escraviza.

Nas três tentações de Jesus, estão presentes as tentações do ter, do poder e do êxito fácil e a cada uma destas tentações Jesus responde com a Palavra da Escritura, recordando-nos que a Palavra de Deus é a melhor resposta diante das dificuldades e provações.

O nosso maior engano consiste em acreditar que o tesouro da nossa vida está num pedaço de pão, na sede de poder ou no êxito fácil. Por outro lado, a nossa maior virtude estará na capacidade de nos confiarmos como crianças nas mãos do Pai, recordando a certeza que alimentava a esperança do Povo de Israel: «então invocámos o Senhor, Deus dos nossos pais, e o Senhor ouviu a nossa voz, viu a nossa miséria, o nosso sofrimento e a opressão que nos dominava». Por isso, diante das provações e dificuldades da vida, invoquemos a misericórdia de Deus com as palavras do salmo – «estai comigo, Senhor, no meio da adversidade» – e experimentaremos a força poderosa da Palavra de Deus que faz florir os desertos da nossa vida. in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Deut 26, 4-10

«O Senhor fez-nos sair do Egipto com mão poderosa e braço estendido, espalhando um grande terror e realizando sinais e prodígios».

 

 

O livro do Deuteronómio – do qual é retirada a primeira leitura de hoje – é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a. C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro os teólogos deuteronomistas – originários do norte mas, entretanto, refugiados no sul, em Jerusalém, após as derrotas dos reis do norte (Israel) frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um povo único, unido, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as divisões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).

O livro apresenta-se, literariamente, como um conjunto de discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab: antes de entrar na Terra Prometida, Moisés lembra ao Povo os seus compromissos para com Deus e convida os israelitas a renovar a sua aliança com Jahwéh.

Em concreto, o texto que hoje nos é apresentado faz parte de um bloco (cf. Dt 12-26) que apresenta “as leis e os costumes” que o Povo da aliança devia pôr em prática nessa terra da qual iria, em breve, tomar posse. Uma dessas leis pedia que fossem oferecidos ao Senhor os primeiros frutos da terra e que o israelita fiel proclamasse, nesse contexto, a sua “confissão de fé”. Provavelmente, o costume é de inspiração cananeia: cada ano, por ocasião da recolha dos produtos da terra, o cananeu celebrava uma festa em honra de Baal, divindade da fecundidade e da vegetação, agradecendo-lhe os dons da terra. Israel, no entanto, sabia que não era a Baal mas a Jahwéh que devia agradecer tudo; a sua confissão de fé centrava-se, então, na ação de Deus em favor do seu Povo, sublinhando sobretudo a libertação do Egipto, os acontecimentos da marcha pelo deserto, a eleição e o dom da Terra.in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 90 (91)

Refrão: Estai comigo, Senhor, no meio da adversidade.

 

LEITURA II – Rom 10, 8-13

«Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo».

A Carta aos Romanos é considerada, por alguns exegetas, a “carta da reconciliação”. Estamos nos anos 57/58; a convivência entre judeo-cristãos e pagano-cristãos apresenta algumas dificuldades, dadas as diferenças sociais, culturais e religiosas subjacentes aos dois grupos. A comunidade cristã corre o risco de radicalizar as incompatibilidades e de se dividir… Nesta situação, Paulo escreve para sublinhar aquilo que a todos une. O centro da carta seria, de acordo com esta perspetiva, 15,7: “Acolhei-vos, pois, uns aos outros, como Cristo vos acolheu, para glória de Deus”.

O texto da segunda leitura pertence à primeira parte da carta (Rom 1-11); o título desta parte pode ser: o Evangelho de Jesus é a força que congrega e que salva todo o crente (judeus e pagãos). Depois de demonstrar que todos os homens vivem mergulhados num ambiente de pecado (Rom 1,18-3,20), mas que a “justiça de Deus” dá a vida a todos sem distinção (Rom 3,21-5,11) e que é em Jesus que essa vida se comunica (Rom 5,12-8,39), Paulo reflete sobre o desígnio de Deus a respeito de Israel (Rom 9,1-11,36).

Neste texto, em concreto, Paulo põe em relevo aquilo que une judeus e gregos: a mesma fé em Jesus Cristo e na proposta de salvação que Ele traz.in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 4, 1-13

«Durante quarenta dias, esteve no deserto, conduzido pelo Espírito, e foi tentado pelo Diabo».

«Então o Diabo, tendo terminado toda a espécie de tentação, retirou-se da presença de Jesus, até certo tempo».

 

Estamos no começo da atividade pública de Jesus. Ele acabou de ser batizado por João Baptista e recebeu o Espírito para a missão (cf. Lc 3,21-22). Agora, confronta-Se com uma proposta de atuação messiânica que pretende subverter a proposta do Pai.

Também aqui não estamos diante de uma reportagem histórica, feita por um jornalista que presenciou o desafio entre Jesus e o diabo, algures no deserto… Estamos, sim, diante de uma página de catequese, cujo objetivo é ensinar-nos que Jesus, como nós, sentiu a mordedura das tentações. Ele também sentiu a tentação de prescindir de Deus e de seguir um caminho humano de êxitos, de aplausos, de poder e de riqueza; no entanto, Ele soube dizer não a todas essas propostas que O afastavam do plano do Pai.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura é um longo discurso de Moisés ao Povo. Deste modo, a proclamação deste texto deve ter em atenção o tom narrativo que compõe todo o texto. Além disso, dentro deste grande discurso está a confissão de fé que cada hebreu deve proferir diante do Senhor na apresentação das primícias, pelo que a correta e clara leitura deste texto deve ter em conta esta situação.

A segunda leitura exige um especial cuidado com as pausas e a pontuação. A leitura abre com uma frase interrogativa à qual se segue a resposta. A articulação das diferentes orações requer uma adequada entoação. Além disso, chama-se a atenção para a afirmação central do texto: «Se confessares com a tua boca que Jesus é o Senhor e se acreditares no teu coração que Deus O ressuscitou dos mortos, serás salvo». Esta afirmação está em ligação com a frase conclusiva do texto: «Portanto, todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo». A proclamação do texto deve ter em conta a articulação das diferentes

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

PROFESSAR A FÉ

 

Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração/Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos 10,37-38: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.

Batizado com o Espírito Santo, e declarado por Deus «o Filho meu», «o Amado» (Lucas 3,21-22), Jesus é conduzido pelo Espírito Santo através do deserto (Lucas 4,1), lugar teológico e não meramente geográfico – com muita água (João 3,23) cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39) cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19 –, lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Lucas 3,2-6), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Sendo um lugar provisório, aponta para a Terra Prometida e definitiva do repouso. O deserto é lugar de passagem. Sem pontos de referência nem marcos de sinalização. Se o rumo não estiver bem definido, o viandante corre o risco de se perder no deserto da vida e de nunca chegar à Vida verdadeira.

A liturgia deste Domingo I da Quaresma, neste Ano C, oferece-nos três textos sublimes atravessados em filigrana pela profissão de fé. Comecemos pelo Evangelho com o texto majestoso das chamadas tentações de Jesus (Lucas 4,1-13). Durante quarenta dias (40 é o tempo de uma vida, a vida toda) Jesus jejuou (Lucas 4,2), isto é, perscrutou a «obra» nova de Deus na história do seu povo, que o mesmo é dizer, saboreou as Escrituras, o outro alimento (Deuteronómio 8,3; Mateus 4,4; cf. João 4,32 e 34-35: notável releitura em que aos olhos atónitos dos discípulos saltam as estações do ano!), e meditou, sempre a partir das Escrituras, na sua missão filial batismal. E é na sua condição de batizado, isto é, de Filho de Deus, que ele é tentado. De facto, toda a tentação – a de Cristo como a nossa – começa sempre da mesma maneira: «se és o Filho de Deus…». Atente-se em como se repete nos mesmos termos sob a Cruz (Lucas 23,35-39). Portanto, sempre. Do Batismo até à Morte, a tentação visa afastar-nos de Deus e da sua «obra», e pôr-nos ao serviço do «deus deste mundo» (2 Coríntios 4,4; cf. João 12,31).

Mas detenhamo-nos brevemente nas ofertas do tentador de hoje. Em primeiro lugar, fabricar o próprio pão, a que podemos chamar por isso, com verdade, o pão que o diabo amassou, em vez de receber o pão da Palavra dado por Deus (Deuteronómio 8,3) aos seus amigos até durante o sono (Salmo 127,2) (Lucas 4,3-4). Em segundo lugar, a oferta de todos os reinos deste mundo e da sua glória em troca do afastamento de Deus (Lucas 4,5-7). E a resposta decidida de Jesus, remetendo para a Escritura Santa e para Deus: «Está escrito: “Adorarás ao Senhor, teu Deus, e só a Ele prestarás culto”» (Lucas 4,8). Em terceiro lugar, a tentação do sucesso fácil em Jerusalém, taxativamente recusada por Jesus (Lucas 4,9-13). Para quem tem diante dos olhos o texto de Mateus 4,1-11, aperceber-se-á de imediato da troca de lugar da segunda e da terceira tentação. Fácil de compreender: em Lucas, Jerusalém é o centro do mundo, é lá que Jesus aparece logo aos 40 dias (Lucas 2,22), aos 12 anos (Lucas 2,41), é para lá que Jesus caminha na secção central deste Evangelho (Lucas 9,51-19,28), é lá que se sucedem os últimos episódios da sua vida, é lá que os discípulos são mandados esperar (Lucas 24,49-53), em vez de se dirigirem para a Galileia. Convém, portanto, que a terceira tentação decorra em Jerusalém. De resto, neste Evangelho, para realçar Jerusalém, quase todos os outros lugares são nivelados pelo dizer comum: «estando Ele em uma cidade…» (Lucas 5,12), «num certo lugar…» (Lucas 11,1; 17,12).

Batizado, tentado na sua condição de Batizado, e Vitorioso na tentação, Jesus passa de imediato à execução do seu programa filial batismal: anunciar o Evangelho de Deus e fazer a sua «obra» (Lucas 4,14s.). Como ele também nós.

Extraordinária a lição do Livro do Deuteronómio 26,4-10: aqui estou, meu Deus, orientando a minha vida toda para Ti, oferecendo-Te os primeiros frutos desta Terra boa e bela que nos destes, depois de nos teres chamado do meio da confusão e dado a liberdade! Eu canto para Ti, meu Deus, pois é a Ti que devo a minha liberdade e a bondade e beleza da minha vida! Este belo texto é uma miniatura, um colar (harizah) de pérolas do Teu amor por nós, que devemos levar sempre connosco, como se fosse uma fotografia Tua! O chamamento dos pais, a libertação do Egito, a dádiva da Terra Prometida.

E a lição da Carta aos Romanos 10,8-13: na minha vida toda, no meu coração e na minha boca – no coração a fé, na boca o testemunho – escorre o sabor da Tua Palavra, doce como o puro mel dos favos!

  1. O Salmo 91 é um poderoso grito de confiança em Deus, que vela por nós em todos os momentos da nossa vida, sobretudo nos mais difíceis. A piedade popular tem este Salmo em muito apreço. Basta ver, no Doutor Jivago, de Boris Pasternak, o soldado encontrado morto numa batalha, que levava ao pescoço, cozidos num velho pedaço de pano, alguns versículos deste Salmo. Os vv. 11-12: «Ele mandou aos seus anjos que te guardem em todos os teus caminhos;/ eles sustentar-te-ão em suas mãos para que os teus pés não tropecem em alguma pedra», são citados pelo diabo no Evangelho de hoje (Lucas 4,10-11), com colorido mágico. O Salmo e Jesus propõem, claro, uma atitude de confiança, não mágica, mas verdadeira, em Deus.

Ao entrarmos no tempo santo da Quaresma,

Devemos ter a coragem de atravessar a poeira dos caminhos

Intransitivos do nosso coração,

Isto é, de limpar as mentiras, ódios, raivas, violências, banalidades,

Que tantas vezes preenchem os nossos dias.

A Quaresma é tempo de nos expormos

Ao vendaval criador e purificador do Espírito,

Sem termos a pretensão de o querer transformar em ar condicionado.

Toma em tuas mãos, Senhor,

A nossa terra ardida.

Beija-a.

Sopra nela outra vez o teu alento,

A tua aragem,

E veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

Tu sabes bem, Senhor, que somos frágeis.

Mas contigo por perto,

Seremos fortes e ágeis,

Capazes de abrir estradas no deserto,

A céu aberto.

 

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – I Domingo da Quaresma – Ano C – 06.03.2022 (Deut 26, 4-10)
  2. Leitura II – I Domingo da Quaresma – Ano C – 06.03.2022 (Rom 10, 8-13)
  3. I Domingo Quaresma – Ano C – 06.03.2022 – Lecionário
  4. I Domingo Quaresma – Ano C – 06.03.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas
    1. VIII Domingo do Tempo Comum – Ano C – 27.02.2022

      Viver a Palavra

      Seguir Jesus é o caminho exigente que cada cristão é chamado a percorrer. Porém, caminhar de olhos fixos no Mestre implica conceber a nossa vocação batismal como uma tarefa sempre inacabada pois «todo o discípulo perfeito deverá ser como o seu mestre». Bem sabemos, que a perfeição à qual somos chamados como discípulos tem nome de santidade e, mais do que uma conquista pelos nossos esforços e méritos, é um dom da graça, fruto da gratuidade de Deus que nos faz merecedores, não obstante os nossos limites e fragilidades.

      A Liturgia da Palavra deste Domingo é o convite a olhar com realismo a nossa vida, eliminando a presunção que nos impede de ver os nossos defeitos e fraquezas, mas também o pessimismo que nos impede de ver o bem que as nossas vidas podem gerar. Portanto, é necessário treinar o olhar, isto é, aprender a ver a realidade com o olhar de Jesus, para que a nossa vida, iluminada por este olhar transformador se liberte dos argueiros e traves que nos impedem de caminhar com segurança.

      Na verdade, um cego não pode guiar outro cego, a não ser que seja capaz de eliminar da sua vida aquilo que o impede de ver com clareza o caminho. E uma das dificuldades denunciadas por Jesus no Evangelho de hoje é a incapacidade de reconhecer os nossos limites e fraquezas. Somos educados para o sucesso, para a valorização das nossas capacidades e habilidades… humanamente entendemos que o reconhecimento dos nossos limites nos diminui e enfraquece. Contudo, à luz da palavra do Mestre, tomamos consciência que acolher as nossas fragilidades nos ensinará a olhar de um modo novo para as fragilidades dos irmãos, conscientes que não são os nossos defeitos que nos definem, mas que eles são parte integrante do todo da nossa vida. Assim, integrar na totalidade da nossa vida os nossos limites, ensinar-nos-á a olhar para a nossa vida como um lugar de conversão e construção permanente, onde as dificuldades se transformam em oportunidades de crescimento, isto é, em pontos de esforço para que possamos ser mais e melhor em cada dia.

      Por isso, é urgente a transformação do coração, pois tal como afirma Jesus «o homem bom, do bom tesouro do seu coração tira o bem; e o homem mau, da sua maldade tira o mal; pois a boca fala do que transborda do coração».

      Na verdade, não existe nenhum homem totalmente bom, nem nenhum homem totalmente mau: a bondade e a maldade estão presentes na nossa vida e exigem de nós uma constante adesão ao bem que nos liberta e nos torna mais felizes e uma rejeição do mal que nos escraviza e entristece. Contudo, como recorda S. Paulo na Carta aos Romanos: «não é o bem que eu quero que faço, mas o mal que eu não quero, que pratico» (Rm 7,19). Paradoxalmente, esta consciência da nossa frágil condição deve ser um estímulo a permanecer «firmes e inabaláveis». A consciência alegre e feliz do bem que praticamos deve ser o estímulo a fazer o bem e a evitar o mal, a perfumar o mundo com o belo odor da bondade e da ternura, a iluminar o tempo e a história com um rasto de misericórdia que torna o mundo num lugar melhor e na vida de cada homem e de cada mulher numa vida mais feliz. Deste modo, poderemos cantar com a vida o que cantamos no salmo – «É bom louvar o Senhor» – conscientes que louvar o Senhor é deixar o Seu Espírito de amor transformar o nosso coração porque a nossa vida cristã mais do que fazer muitas coisas, deve traduzir-se em deixar Deus fazer a Sua obra de amor na nossa vida. Deste modo, a nossa vida será essa árvore boa que dá bons frutos, porque unida à verdadeira videira que é o próprio Jesus e assim unidos e nutridos pela seiva da sua graça poderemos brilhar «como estrelas no mundo, ostentando a palavra da vida». in Voz Portucalense

       

      LEITURA I – Sir 27, 5-8 (gr. 4-7)

      «O fruto da árvore manifesta a qualidade do campo: assim as palavras do homem revelam os seus sentimentos».

       

      O livro de Ben Sira (Eclesiástico) aparece no início do séc. II a.C., durante o domínio selêucida. É uma época em que o helenismo procura impor-se com alguma agressividade, pondo em causa a identidade do Povo de Deus. Jesus Ben Sira, o autor deste livro, estava preocupado com a degradação dos valores tradicionais do seu Povo; escreveu este compêndio de “sabedoria” para defender o património cultural e religioso de Israel e para demonstrar aos seus compatriotas que Israel possuía na “Torah”, revelada por Deus, a verdadeira “sabedoria” – uma “sabedoria” muito superior à “sabedoria” grega.

      O texto que a liturgia de hoje nos propõe é um exemplo clássico da reflexão sapiencial. Apresenta-nos uma máxima que, como todas as máximas da reflexão sapiencial, é deduzida da experiência prática e da própria reflexão (“não elogies ninguém antes de ele falar”); o fim desta máxima é orientar o comportamento do homem, preservando-o do insucesso, do fracasso, dos comportamentos e dos juízos errados. in Dehonianos.

      SALMO RESPONSORIAL – Salmo 91 (92)

      Refrão: É bom louvar-Vos o Senhor.

       

       

       

      LEITURA II – 1 Cor 15, 54-58

      «Mas dêmos graças a Deus, que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo»

       

      Este texto conclui a catequese que temos vindo a ver nos quatro últimos domingos sobre a ressurreição. Consultado pelos coríntios – preocupados com a aparente impossibilidade de o corpo, sensual e material, ter acesso à vida plena com Deus – acerca da ressurreição, Paulo desenvolve a sua catequese sobre essa questão polémica. Aqui, fica bem patente a dificuldade do cristianismo (de raiz judaica e formulado inicialmente de acordo com a linguagem e os valores judaicos) em adaptar-se a uma realidade diferente – a realidade da cultura e dos valores helénicos.in Dehonianos.

      EVANGELHO – Lc 6, 39-45

      «Poderá um cego guiar outro cego? Não cairão os dois nalguma cova?».

      «Porque vês o argueiro que o teu irmão tem na vista e não reparas na trave que está na tua?»

      «Não há árvore boa que dê mau fruto, nem árvore má que dê bom fruto».

       

      Continuamos ainda no ambiente do “discurso da planície”, onde Jesus apresenta os elementos fundamentais da existência cristã.

      Provavelmente, Lucas concentrou aqui um conjunto de frases ou de ditos de Jesus que, originalmente, tinham um contexto diverso e foram pronunciados em alturas diversas. A unidade temática do nosso texto ressente-se, pois, desse facto.

      Apesar disso, pode perceber-se que Lucas está preocupado com os “falsos mestres”. O texto de hoje começa com um provérbio (“poderá um cego guiar outro cego?” – vers. 39) que Mateus coloca num contexto completamente diferente do de Lucas: enquanto em Mateus (cf. Mt 15,14) ele aparece num contexto de crítica aos fariseus, aqui é uma advertência contra os falsos mestres na comunidade cristã. Provavelmente, Lucas quer pôr a comunidade de sobreaviso em relação a esses mestres pouco ortodoxos que, na década de 80, começam a aparecer nas comunidades e cujas doutrinas apresentam desvios sérios em relação ao essencial da mensagem de Jesus Cristo.in Dehonianos.

       

      Para os leitores:

       

      A primeira leitura é um trecho de um dos livros sapienciais e trata-se de um conjunto de ditos de sabedoria. A proclamação desta leitura deve ter em atenção este aspeto numa leitura pausada e calma, lendo cada frase como mensagem de sabedoria que deve ser acolhida e compreendida.

      A segunda leitura, tal como é habitual no epistolário Paulino, apresenta frases longas que requerem uma boa respiração e atenção nas pausas para uma correta leitura do texto. As duas perguntas presentes no texto são introduzidas por um vocativo – «Ó morte» – que requer uma entoação adequada. Na leitura das perguntas, deve sempre evitar-se dar-se a entoação interrogativa unicamente na palavra final e acentuar a proclamação da partícula interrogativa, neste caso a palavra «onde».

       

      I Leitura:

      (ver anexo)

      II Leitura:

      (ver anexo)

      Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

      A CENTRALIDADE DO CORAÇÃO

      Neste Domingo VIII do Tempo Comum continuamos a escutar e a digerir, no Evangelho, o «Discurso da planície», hoje na sua terceira e última parte (Lucas 6,39-45), toda dominada pelo amor e pela misericórdia. A arquitetura desta terceira parte do «Discurso da planície» assenta em três comparações, destinadas a afinar os critérios da nossa vida de discípulos de Jesus. A primeira comparação surge em Lucas 6,39-40, e põe em cena um cego a guiar outro cego. E a pergunta certeira de Jesus: «Não cairão os dois nalgum abismo? (Lucas 6,39). Mateus canalizou a comparação de Jesus para os fariseus: «Ai de vós, guias cegos…» (Mateus 23,16-17). Lucas usou-a, antes, para advertir diretamente os discípulos de Jesus de todos os tempos, fazendo ver que nenhum discípulo é mais do que o mestre, mas que todo o discípulo deve ser como o mestre (Lucas 6,40). Outra vez, de forma clara e sem equívocos: o discípulo não tem senão que repetir o que Jesus disse, sendo que a verdade da palavra do discípulo não está, portanto, na sua habilidade pessoal, mas na sua fidelidade ao Mestre.

      A segunda comparação põe em cena o argueiro e a trave (Lucas 6,41-42), e denuncia de imediato os nossos juízos quotidianos, levianos e rápidos acerca dos outros. Estamos sempre a ver o argueiro que está nos olhos do nosso irmão, e não vemos a trave que se atravessa nos nossos olhos e nos impede de ver bem seja o que for. O filósofo romano Séneca (4 a.C.-65 d.C.), contemporâneo de Jesus, já se exprimia assim: «Temos diante dos olhos os defeitos dos outros, enquanto os nossos ficam atrás». Estar sempre pronto a criticar os defeitos dos outros, sem sequer nos apercebermos dos nossos, porque já estamos habituados e acomodados, protegidos por uma crosta opaca, é um tipo de comportamento denunciado por Jesus como «hipocrisia» (v. 42). A «hipocrisia» é um termo de origem grega e designa aquele que, no teatro, representa um papel que não corresponde à sua vida. Por exemplo, veste-se de santo…, e é um delinquente! A lição de Jesus é pertinente: «Tira primeiro (prôton) a trave do teu olho, e depois verás bem…» (v. 42). Portanto, fica claro para todos nós o que há que fazer sempre em primeiro lugar: proceder à limpeza da nossa vida, adequando-a ao Evangelho. Ao comentar o Salmo 30, Santo Agostinho faz esta observação aguda e penetrante: «Não penses mal do teu irmão. Sê tu com humildade o que queres que ele seja, e não pensarás que ele é o que tu não és» (Enarrationes in psalmos, 30,2,7). E Lucas dirá mais à frente que «A lâmpada do corpo é o teu olho. Se o teu olho estiver são, todo o teu corpo ficará iluminado; mas se ele for mau, o teu corpo também ficará às escuras. Portanto, vê bem se a luz que há em ti não são trevas» (Lucas 11,34-35).

      A terceira comparação põe lado a lado a árvore boa e a árvore má (Lucas 6,43-45). À primeira vista, parece que Jesus coloca o acento nas obras, no que se faz, e não nas palavras, no que se diz. A pequena parábola aponta, porém, ainda outra direção: é de dentro, do interior, do coração, que provêm as obras, boas ou más. Pelo que o verdadeiro problema consiste em mudar o interior, o coração, a nascente. Na verdade, na cultura semítica e bíblica, o coração é comparado a um depósito, de onde se retiram os pensamentos, as palavras e as ações. Por isso, conclui Jesus no v. 45, o homem bom, do seu bom coração tira coisas boas; o mau, do seu mau coração tira coisas más; e a boca fala da abundância do coração. É, portanto, necessário manter o coração puro e limpo de mato e de silvas, para o encher de bondade, pois só um coração bom pode e sabe amar os inimigos, perdoar os irmãos, indicar aos errantes o caminho certo. O teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer (1906-1945), pastor luterano, morto nos campos de concentração nazis, escrevia na sua Ética que «a bondade não é uma qualidade da vida, mas a própria vida, e que ser bom significa viver». Não admira, pois, que Jesus tenha definido os hipócritas como «sepulcros caiados», cadáveres ambulantes, que se iludem pensando que estão vivos; na verdade, como têm o coração impuro, estão mortos e deambulam às escuras. As pessoas como as árvores: não se conhecem as pessoas pela sua folhagem, isto é, pelas aparências; conhecem-se, antes, pelos seus frutos, isto é, pela sua generosidade e pelo seu amor. E ainda: uma pessoa egoísta, egocêntrica, egolátrica e autorreferencial apega-se ao tesouro ilusório e falso do seu orgulho, e mal abre o tesouro do seu coração, vem logo fora a malvadez, os juízos cruéis, o ódio.

      A lição do Livro de Ben-Sirá 27,5-8 que hoje nos atinge é bela, pedagógica e incisiva, e procede por constatações paralelas. Assim, em cada versículo, o sábio coloca diante de nós um dado retirado da experiência quotidiana, assentando logo sobre ele uma luminosa aplicação ao homem. Aproximemos a objetiva: no v. 5, o dado da experiência quotidiana é a peneira, que retém o lixo, do mesmo modo que o homem, no ato de falar, expõe os seus defeitos; no v. 6, o dado da experiência é o forno, que põe à prova a qualidade das vasilhas de barro nele introduzidas, do mesmo modo que, no ato de falar, também é posta à prova a qualidade do homem; no v. 7, o dado da experiência é o fruto, que mostra a qualidade da árvore, do mesmo modo que as palavras proferidas pelo homem mostram o bom ou mau estado do seu coração. O fecho destes paralelismos surge no v. 8, em que somos advertidos a não julgar ninguém antes de ele falar. Convenhamos que se trata de uma instrução cheia de sabedoria, que ataca a permanente tentação que nos sobrevém de antecipar os juízos, que não passam, portanto, de pré-juízos, tantas vezes errados, e, por isso, danosos para nós e para os outros. Esta bela e incisiva instrução, direitinha ao coração, deixa-nos, em termos de conteúdo e de linguagem, longe da folhagem, na estrada do Evangelho de hoje.

      É-nos dada a graça de escutar hoje o final do Capítulo XV da Primeira Carta aos Coríntios (15,54-58), em que o Apóstolo fala aos fiéis de Corinto de então, mas também de todas as proveniências e tempos, do «mistério» da Ressurreição da carne, que Paulo anuncia «que é», mas não «como é» (v. 51), sendo sempre, porém, consequência direta, e a mais alta, da Ressurreição do Senhor. A descrição de Paulo faz o necessário contraponto com as infinitas fantasias e especulações que, acerca da ressurreição da carne, circulavam no ambiente de então. Basta dizer, na sua essência e sobriedade, que o nosso corpo será transformado, transfigurado (allagêsómetha), o que se deve, não à nossa capacidade, mas unicamente à ação do Espírito Santo (vv. 45 e 49), que vem para nós unicamente através da Humanidade Glorificada de Jesus (João 7,39; 19,34; Atos 2,33). Por isso, recomenda o Apóstolo: «Graças sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória por Nosso Senhor Jesus Cristo» (v. 57).

      O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o cântico do dia de sábado (Salmo 92), cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo!

      As coisas do mundo

      Não podem alimentar-te

      Nem encher de perfume a tua vida.

      A tua alegria não está entre as coisas passageiras.

      Relâmpagos, tempestades, terramotos,

      Sons e vozes da terra são estrangeiros para ti.

      Tu, meu irmão a tempo inteiro,

      Não deixes de sentir os pés no chão do terreiro,

      Mas mantém também a cabeça no céu,

      Ao léu,

      Para poderes ouvir sempre bem a voz de Deus,

      E ver bem, belo e bom,

      Para tirar o argueiro

      Da vista do teu irmão e companheiro.

      Que o ódio e a violência nunca tomem conta do teu coração.

      Que o teu coração seja habitação de paz.

      Que nunca te seduza o som das espingardas.

      Debulha o teu grão,

      Reparte o teu pão,

      Olha para Deus com gratidão.

      Tens um ano inteiro

      Para encher de amor o teu celeiro.

      Não tenhas medo do nevoeiro.

      Que todos os dias haja misericórdia

      No teu coração e nas tuas mãos.

      Que o Senhor seja sempre a tua Luz,

      Meu irmão e irmão de Jesus.

      D. António Couto

      ANEXOS:

      1. Leitura I – VIII DTC – 27.02.2022 (Sir 27, 4-7)
      2. Leitura II – VIII DTC – 27.02.2022 (1 Cor 15, 54-58)
      3. VIII DTC – Ano C – 27.02.2022 – Lecionário
      4. VIII DTC – Ano C – 27.02.2022 – Oração Universal
      5. ANO C – Ano de Lucas

VII Domingo do do Tempo Comum – Ano C – 20.02.2022

27«Digo-vos, porém, a vós que me escutais: Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, 28abençoai os que vos amaldiçoam, rezai pelos que vos caluniam. 29*A quem te bater numa das faces, oferece-lhe também a outra; e a quem te levar a capa, não impeças de levar também a túnica. 30Dá a todo aquele que te pede e, a quem se apoderar do que é teu, não lho reclames. 31O que quiserdes que os outros vos façam, fazei-lho vós também. Lc 6, 27-31
 

Viver a Palavra

 

No discurso da planície, Jesus continua a convidar os discípulos a olhar para o alto, apontando a medida alta da santidade. Depois de proclamar as Bem-aventuranças, Jesus continua a surpreender os seus ouvintes com a novidade das Suas palavras. É fácil imaginar o espanto dos ouvintes de Jesus, pois cada um de nós, que já conhecemos e escutámos estas palavras repetidas vezes, continuamos a sentir a radicalidade que elas comportam, pois, uma forma de agir como Jesus propõe rompe com os normais critérios de justiça onde aquele que ofende, agride ou insulta ao invés de ser admoestado e punido, parece encontrar espaço para prosseguir a sua obra.

Porém, Jesus desafia-nos a superar a lógica humana de vingança diante do mal que nos infligem. É verdade, que humanamente diante do mal e das ofensas que nos dirigem, somos tentados a reagir instintivamente, procurando infligir não um mal proporcional, mas tantas vezes um mal ainda maior para que o nosso desejo de justiça fique satisfeito. Deste modo, o Povo de Israel tinha estabelecido a Lei de Talião que pressupunha um critério de justiça humana que previa que ao mal causado a alguém se infligisse uma pena proporcional. Contudo, Jesus quer conduzir-nos ainda mais longe.

Jesus aponta-nos o caminho que devemos percorrer na relação com os outros e não apenas na relação com aqueles que nos são próximos e que nos provocam situações de bem-estar e contentamento. Jesus, conhecendo bem a nossa realidade humana, sabe que as relações muitas vezes se perturbam por tantas contrariedades e surgem os conflitos e as contendas. Sendo assim, como deve ser a nossa relação com quem nos faz mal, com quem nos ofende ou nos pede emprestado?

As palavras de Jesus não são de modo nenhum um atentado contra a justiça, mas o convite a viver as relações humanas numa nova lógica de perdão, misericórdia e compaixão. Na verdade, o Evangelho deste Domingo encontra-se ligado à primeira leitura do primeiro livro de Samuel na temática da relação com inimigo. David, perseguido por Saul, no deserto de Zif, tem a possibilidade de atentar contra a vida de Saul, mas poupa-o porque é o ungido do Senhor. Desafiado por Abisaí a cravar a lança em Saul, David recorda que o respeito pelo ungido do Senhor deve transcender a lógica da inimizade.

Jesus eleva este desafio de superar a inimizade pelo amor à plenitude e convida-nos a viver a misericórdia como lugar de transformação das relações: «sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso»Aprender a amar e a perdoar só é possível colocando o nosso olhar no Deus do amor e da misericórdia, afinando o nosso coração de olhos fixos no coração de Deus. Assim como vemos tantas vezes afinar uma guitarra ouvindo o som de uma outra afinada, também nós, somos convidados a afinar o nosso coração pela mais bela melodia que brota do coração de Deus.

Na verdade, amar o inimigo tem uma valência não tanto afetiva, mas efetiva e concreta. Trata-se precisamente de realizar gestos concretos e atos de amor que respondam de modo novo a gestos de ódio e difamação, rompendo com a espiral de mal e violência. Mas isto exige uma disciplina do coração e uma ascese da vontade. Por isso, é impossível amar os inimigos sem rezar por eles, pois na oração vejo o inimigo à luz do mistério de Deus, olho para ele e reconheço nele a imagem e semelhança de Deus. Já não olho para o outro como um inimigo ou adversário, mas como um irmão e, por isso, sou desafiado a percorrer o caminho que propõe S. Paulo: acolher na minha humanidade a imagem do homem celeste que Jesus imprime na nossa existência. Deste modo, poderemos proclamar com a nossa vida o que cantamos no salmo: «O Senhor é clemente e cheio de compaixão».in Voz Portucalense

 

LEITURA I – 1 Sam 26,2.7-9.12-13.22-23

«Ele entregou-te hoje nas minhas mãos, e eu não quis atentar contra o ungido do Senhor».

 

A primeira leitura, tirada do primeiro Livro de Samuel, faz parte de um conjunto de tradições que descrevem a história da ascensão de David ao trono (1 Sam 16 – 2 Sam 6). Neste texto, apresenta-se um episódio emblemático que precede a chegada de David ao poder. Escolhido por Deus, mas perseguido pelo ciumento rei Saul, David tem de fugir para salvar a sua vida, enquanto espera que se cumpram os desígnios de Deus. Um dia, David tem a possibilidade de matar Saul e acabar com a perseguição; mas recusa-se a erguer a mão contra “o ungido do Senhor”. Este quadro situa-nos por volta de 1015 a.C.

O livro de Samuel não é, primordialmente, um livro de história, mas um livro de teologia; assim, é impossível dizer o que é rigorosamente histórico neste conjunto de tradições e o que é catequese. Podemos dizer, a propósito do episódio que a liturgia de hoje nos propõe, que os autores deuteronomistas, responsáveis pela redação e edição da obra histórica que vai de Josué a 2 Reis, estão, sobretudo, preocupados com uma finalidade teológica: apresentar David como o rei ideal, corajoso, mas de coração magnânimo, o protótipo do homem que não se afasta dos caminhos de Deus, que pela sua bondade e misericórdia atrai para si e para o seu Povo as bênçãos de Jahwéh.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 102 (103)

Refrão: O Senhor é clemente e cheio de compaixão

 

LEITURA II – 1 Cor 15, 45-49

«Assim como trazemos em nós a imagem do homem terreno, procuremos também trazer em nós a imagem do homem celeste».

 

O texto que nos é proposto como segunda leitura integra uma passagem mais ampla (cf. 1 Cor 15, 35-53), onde Paulo reflete sobre o “modo” da ressurreição. Como ressuscitarão os mortos? As crenças judaicas do tempo concebiam o mundo dos ressuscitados como uma continuação do mundo presente; no momento da ressurreição, dizia a crença judaica, todos recuperarão o corpo que tinham neste mundo. Evidentemente, tais representações não podiam ser facilmente aceites pelos espiritualistas de Corinto (recordar que, para os gregos, o corpo era uma realidade material, sensual, carnal, que não podia ter acesso ao mundo ideal e espiritual).

Que pensa Paulo de tudo isto? Ainda que saiba estar a mover-se num terreno misterioso, Paulo não se esquiva à questão e apresenta uma série de reflexões que podem ser clarificadoras para os seus interlocutores coríntios.in Dehonianos.

 

EVANGELHO – Lc 6, 27-38

«Amai os vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, abençoai os que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos injuriam».

«Sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso».

«Dai e dar-se-vos-á: deitar-vos-ão no regaço uma boa medida, calcada, sacudida, a transbordar».

 

Continuamos no horizonte do “discurso da planície” que começámos a ler no passado domingo. As “bem-aventuranças” (cf. Lc 6, 20-26) propunham aos seguidores de Jesus uma dinâmica nova, diferente da dinâmica do mundo; na sequência, Jesus exige aos seus uma transformação dos próprios sentimentos e atitudes, de forma que o amor ocupe sempre o primeiro lugar.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

Na primeira leitura deve ter-se em atenção os nomes próprios que apresentam maior dificuldade na pronunciação: «Zif», «Abisaí» e «Abner». Para uma eficaz proclamação, deve ser tido em conta o tom narrativo da leitura e a respetiva articulação entre o discurso direto e o restante texto.

A mensagem da segunda leitura está construída pelo contraponto entre «O primeiro homem, Adão» e «o último Adão». A proclamação desta leitura deve ter em atenção esta construção literária e exige uma leitura cuidada para que este contraste nos conduza à conclusão da leitura que sintetiza a mensagem do texto: «e assim como trouxemos em nós a imagem do homem terreno, traremos também em nós a imagem do homem celeste».

 

I Leitura:

(ver anexo)

 

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

AMAI OS VOSSOS INIMIGOS

Continuamos, neste Domingo VII do Tempo Comum, a saborear o imenso Discurso da planície de Jesus (Lucas 6,27-38), em que o amor, a dádiva, a bondade, elevados até ao absurdo, constituem o fio condutor do inteiro Discurso, e também o verdadeiro cartão de identidade do discípulo de Jesus. Também aqui vale a pena atravessar o texto, deixando-nos, todavia, atravessar também pelo texto:

«A vós que estais a escutar, eu digo: “Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam, bendizei (eulogéô) os que vos amaldiçoam (kataráomai = katá + ará [= maldição]), rezai por aqueles que vos caluniam. Àquele que te bater numa face, oferece também a outra, e àquele que te tirar o manto, deixa-o levar também a túnica. A todo aquele que te pede, dá, e àquele que levar o que é teu, não lho reclames. Como quereis que vos façam as pessoas, fazei-lhes vós do mesmo modo.

E se amais os que vos amam, que graça (cháris) vos é devida? Na verdade, também os pecadores amam aqueles que os amam. E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que graça (cháris) vos é devida? Também os pecadores fazem o mesmo. E se emprestais àqueles de quem esperais receber, que graça (cháris) vos é devida? Também os pecadores emprestam aos pecadores para receberem outro tanto. Em vez disso, amai os vossos inimigos e fazei bem e emprestai sem esperar receber nada em troca, e será grande a vossa recompensa (misthós), e sereis filhos do Altíssimo, porque Ele é amável (chrêstós) para com os ingratos (acháristoi) e os maus (ponêroí).

Tornai-vos misericordiosos (oiktírmones) como também o vosso Pai é misericordioso (oiktírmôn). E não julgueis, e não sereis julgados; e não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados; dai, e ser-vos-á dado: uma medida boa, calcada, sacudida, a transbordar, será dada no vosso regaço; na verdade, com a medida com que medirdes, sereis medidos também”» (Lucas 6,27-38).

Convenhamos que se trata de um texto espantoso, Evangelho puro, sem glosas ou outras qualificações, que desvenda e desfaz a nossa velha lógica retributiva e respetivos comportamentos pautados pela paridade, reciprocidade e simetria, e desenha novos critérios assimétricos e gratuitos, desconcertantes para a nossa mentalidade assente nos nossos sacrossantos direitos. Se o Antigo Testamento insistia, por mais de trinta vezes, na necessidade de amar o estrangeiro, que é o outro diferente de mim, nesta página sublime do Evangelho, Jesus manda-nos amar o nosso inimigo (Lucas 6,27 e 35), que é o outro, não apenas o outro diferente de mim, mas o outro contra mim.

A avalanche da página evangélica cai sobre nós em três vagas sucessivas. A primeira levanta-se dos vv. 27-31.Depois do amor aos nossos inimigos (note-se bem o realismo aportado pelo adjetivo vossos, nossos, teusmeus, que não nos deixa no plano dos inimigos em geral ou virtual!), as coisas continuam, loucas e impensáveis, de acordo com a loucura de Deus (cf. 1 Coríntios 1,25), pelo caminho do paradoxo: fazei bem àqueles que vos odeiam; bendizei os que vos amaldiçoam; rezai por aqueles que vos caluniam; àquele que te tirar o manto, deixa-o levar também a túnica. Esta última maneira de fazer implica a redução à nudez, pois habitualmente, na Palestina, usavam-se apenas aquelas duas peças de roupa. Termina a primeira vaga da avalanche com a chamada «regra de ouro»: «Como quereis que vos façam as pessoas, fazei-lhes vós do mesmo modo» (v. 31). Para mais informação acerca da «regra de ouro», veja-se a análise ao Domingo V da Páscoa.

7Se não estamos ainda submersos por esta primeira, imensa vaga, exponhamo-nos à segunda, que se levanta dos vv. 32-35, e que arrasa as nossas pretensas boas doutrinas e hábitos assentes na reciprocidade e boas maneiras, e não na graça (vv. 32-34). São referidas três situações emblemáticas: amar aqueles que nos amam, fazer bem a quem nos faz bem, emprestar para receber outro tanto ou mais. Note-se que, por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de juro oscilavam entre os 17 e os 50%! Só teremos direito a recompensa, que é a graça, se a nossa maneira de fazer saltar fora desta engrenagem da reciprocidade, e nos tornarmos imitadores de Deus, que também distribui a sua graça aos ingratos e maus (v. 35). Aí fica então exposta e clara a nossa recompensa, que não será expressa em outro tanto dinheiro destinado a ser abandonado com a morte, tão-pouco será expressa no bem-estar prometido aos justos no Antigo Testamento, mas na extraordinária possibilidade de nos tornarmos filhos de Deus, membros da família deste Deus que ama, ama, ama (v. 35).

A terceira vaga levanta-se dos vv. 36-38, e traz para a cena outra vez a «imitação de Deus» logo naquele dito de abertura: «Tornai-vos misericordiosos como também o vosso Pai é misericordioso» (v. 36), logo traduzido em comportamentos e estilos de vida: não julgar, não condenar, perdoar, dar (vv. 37-38).

Os nossos bons (pensamos nós) hábitos, não nos deixam levar esta loucura a sério. Pensamos que estes ensinamentos de Jesus são utópicos e irrealizáveis, que não são para se fazer, e assim vamos tranquilizando a nossa consciência. Sim, estamos docemente habituados e suavemente embalados pelas nossas boas maneiras ao longo de tanto tempo adquiridas. Mas chegou o tempo de renovarmos o nosso coração e o respetivo cartão de identidade! O que consta nesta altíssima carta do Evangelho não é utópico, isto é, sem lugar. É, antes, eutópico, isto é, um lugar feliz, com outros mapas, outras estradas e outras tabuadas! É possível vencer o mal com o bem (Romanos 12,14-21). Vencer sem combater, claro. Como Jesus, que desce ao nosso mundo para abraçar, absorver e absolver as nossas raivas e os nossos ódios. Como o Deus da Sabedoria, que é «o que domina a força», no belo dizer do Livro da Sabedoria 12,18.

Para fazer luz e receber luz deste imenso texto do Evangelho, chega hoje também aos nossos ouvidos a figura magnânima de David que, no deserto de Zif, não usou a força contra Saul, mas lhe poupou a vida, como narra a bela história do Primeiro Livro de Samuel 26,2.7-9.12-13.22-23. De facto, Saul não era apenas, como diz a bela narrativa, o «ungido do Senhor» (vv. 9 e 23), mas também dormia um sono ritual (tardemah), enviado pelo Senhor (v. 12).

São Paulo faz, na Primeira Carta aos Coríntios 15,45-49, um extraordinário módulo narrativo, em que põe em cena, na mesma página, lado a lado, o primeiro Adam e o último Adam e ainda nós, que levamos as marcas do primeiro, mas também as do último. E é a imagem do último que prevalecerá em nós, por obra e graça de Deus.

O Salmo 103 é uma das joias do Antigo Testamento e constitui um grande canto ao amor de Deus, uma espécie de prelúdio ao «Deus é amor» (1 João 4,8). Desenrola-se em dois movimentos. O primeiro (vv. 1-9) trata o amor e o perdão de Deus com sucessivos particípios hínicos, que mostram um Deus que perdoa, cura, redime, coroa de amor e misericórdia, sacia de bem, e uma série de nomes (justiça, dá a conhecer, obras, misericordioso, gracioso). O segundo movimento (vv. 10-18) põe lado a lado o amor permanente de Deus e a nossa humana fraqueza. A linha vertical (céu-terra) serve para mostrar a imensidão do amor de Deus (v. 11), escrevendo-se na linha horizontal (oriente-ocidente) a grandeza sem medida do seu perdão (v. 12). O belíssimo v. 13 passa a imagem inultrapassável de Deus como um pai com ventre maternal (rehem). A fragilidade humana aparece traduzida nas imagens do pó (v. 14) e da erva (vv. 15-16), em contraponto com a estabilidade do amor de Deus (v. 17). Sem este amor, sem esta música, seríamos talvez levados melancolicamente a pensar que é o mesmo o destino das folhas outonais e dos homens! Deixemos ecoar em nós as belas notas deste grande Salmo 103, que alguns autores já chamaram o Te Deum do Antigo Testamento.

 

Ousar pôr o coração à escuta do Evangelho

É deixar-se atravessar por uma avalanche de graça

Que nos arrastará até ao coração de Deus,

E nos obrigará a mudar quase tudo

Na nossa vida e na nossa agenda,

Na nossa cómoda maneira

De nos sentarmos à lareira

Simplesmente a ver passar os dias

E a deitar contas à vida e à carteira.

 

Amar os inimigos

Não é coisa que eu pudesse sequer imaginar,

Quanto mais fazer ou praticar.

 

Oferecer a outra face a quem me bate,

Dar, dar tudo, dar o manto e a túnica,

Deixar-se roubar e não reclamar,

Amar os maus, os maldizentes, os delinquentes,

As repugnantes, os incompetentes,

Amar, enfim, até ao absurdo,

Eis o que Jesus me vem dizer que Deus faz,

Que Deus faz por mim,

E que é por isso que eu também devo fazer assim,

Deixando o Evangelho ganhar corpo em mim.

 

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – VII DTC – 20.02.2022 (1Sam 26,2.7-9.12-13.22-23)
    2. Resto Leitura I e Leitura II -VII DTC 20.02.2022 (1 Cor 15,45-49)
    3. VII DTC – Ano C – 20.02.2022 – Lecionário
    4. VII DTC – Ano C – 20.02.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

VI Domingo do Tempo Comum – Ano C – 13.02.2022

23Alegrai-vos e exultai nesse dia, pois a vossa recompensa será grande no Céu.” Lc 6, 23

Viver a Palavra

Como cristãos somos chamados a inscrever a nossa existência num horizonte de fé e de esperança que nos projeta para lá da autossuficiência do presente e nos faz entrar na lógica da confiança naquele que tudo sustenta e que transforma as nossas vidas em lugares fecundos, com raízes voltadas para a corrente e uma folhagem verde, onde se podem entrever saborosos e abundantes frutos.

O profeta Isaías confirma esta certeza, convidando-nos a abandonar a nossa lógica falível de confiança unicamente nas nossas forças para nos abandonarmos nas mãos Daquele que nunca nos abandona: «Maldito quem confia no homem. (…) Bendito quem confia no Senhor».

Somos herdeiros da vida nova que brota da Páscoa de Cristo e, interpelados por S. Paulo na sua primeira carta aos Coríntios, reconhecemos que não é vã a nossa fé, porque sabemos que a nossa esperança não se esgota no tempo presente. A nossa vida está inscrita nesse horizonte de vida e eternidade para onde a ressurreição de Cristo nos projeta.

Por isso, somos felizes! Somos bem-aventurados! Somos convocados para viver a lei nova do amor, já não inscrita em tábuas de pedra, mas gravada no coração renovado e transformado pela força vivificante da ressurreição de Cristo. Já não se trata de uma lei apofática, que nos recorda aquilo que não devemos fazer, mas uma lei nova que Jesus proclama na planície, uma lei de máximos, que nos faz olhar a medida alta da santidade, o caminho exigente de quem se disponibiliza para o acontecer de Deus.

No Evangelho de Lucas, Jesus proclama quatro bem-aventuranças: «bem-aventurados vós, os pobres», «bem-aventurados vós que agora tendes fome», «bem-aventurados vós que agora chorais», e «bem-aventurados sereis, quando os homens vos odiarem» e contrapões a estas bem-aventuranças quatro advertências: «ai de vós, os ricos», «ai de vós, que agora estais saciados», «ai de vós que rides agora» e «ai de vós quando todos os homens vos elogiarem».

Uma vez mais estamos diante desta passagem da nossa lógica humana de autossuficiência para a confiança no Deus que enriquece a nossa pobreza, sacia a nossa fome, enxuga as nossas lágrimas e derrama sobre nós o amor que vence o ódio e a violência.

As bem-aventuranças são o como afirma o Papa Francisco: «o bilhete de identidade do cristão» e, por isso, continua o Santo Padre: «se um de nós se questionar sobre “como fazer para chegar a ser um bom cristão?”, a resposta é simples: é necessário fazer – cada qual a seu modo – aquilo que Jesus disse no sermão das bem-aventuranças. Nelas está delineado o rosto do Mestre, que somos chamados a deixar transparecer no dia-a-dia da nossa vida. A palavra «feliz» ou «bem-aventurado» torna-se sinónimo de «santo», porque expressa que a pessoa fiel a Deus e que vive a sua Palavra alcança, na doação de si mesma, a verdadeira felicidade» (GE 63-64).

Na verdade, só Jesus é o Bem-aventurado por excelência. É Ele o pobre em Espírito que inaugura no tempo e na história o Reino de Deus. Ele que teve fome no deserto e sede no alto da Cruz, quer saciar a nossa fome e sede e oferece o Seu Corpo como alimento e o Seu Sangue como bebida verdadeira. É Ele que assume sobre si as nossas dores e, chorando connosco, enxuga as nossas lágrimas e anuncia o mistério da consolação.

Ele, que foi odiado, rejeitado e insultado por amor do Reino dos Céus, fortalece a nossa caminhada na exigente tarefa de ser testemunha do Seu amor.

Por isso, coloquemos o nosso olhar em Jesus de Nazaré, Aquele que nos convida depositar as nossas vidas nas Suas mãos, para que a nossa existência possa fazer ecoar no mundo a melodia que cantámos no Salmo deste Domingo: «Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor».in Voz Portucalense

 

LEITURA I – Jer 17, 5-8

«Bendito quem confia no Senhor e põe no Senhor a sua esperança».

 

Os versículos que formam esta leitura fazem parte de um bloco de frases de Jeremias (cf. Jer 17, 5-13), apresentadas ao estilo das máximas sapienciais. Aí o profeta, recorrendo a antíteses, vai desenvolvendo o tema da confiança/esperança.

Estas palavras de Jeremias não nos dão elementos suficientes para as situarmos, inequivocamente, num contexto histórico. No entanto, é possível que o profeta as tenha pronunciado no reinado de Joaquim (609-597 a.C.): é uma época em que o rei desenvolve uma política aventureirística de alianças com potências estrangeiras e confia a segurança da nação, não a Jahwéh, mas aos exércitos egípcios, aliados de Joaquim. O profeta ataca essa política, considerando-a um grave sintoma de infidelidade ao Deus da aliança: Judá já não coloca a sua confiança e esperança em Deus, mas sim nos homens.in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 1

Refrão: Feliz o homem que pôs a sua esperança no Senhor.

 

LEITURA II – 1 Cor 15, 12.16-20

«Se Cristo não ressuscitou, é vã a vossa fé. Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram».

 

Este texto é a continuação da catequese sobre a ressurreição que Paulo apresenta na Primeira Carta aos Coríntios e que já começámos a ler no passado domingo. Depois de ter afirmado a ressurreição de Cristo (cf. 1 Cor 15, 1-11), Paulo afirma a realidade da nossa própria ressurreição. É preciso recordar, neste contexto, aquilo que dissemos na passada semana: a ressurreição dos mortos, em geral, constituía um sério problema para a mentalidade grega, habituada a ver no corpo uma realidade negativa, que aprisionava a alma no mundo material; sendo assim, o corpo – realidade carnal, sensual – não podia seguir a alma nessa busca da vida plena, da vida divina. Havendo no homem uma realidade negativa, que não podia ascender à vida plena, como admitir a ressurreição do homem integral?

É a esta questão que Paulo vai continuar a responder na leitura que nos é proposta.in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 6, 17.20-26

«Jesus desceu do monte, na companhia dos Apóstolos, e deteve-Se num sítio plano, com numerosos discípulos e uma grande multidão».

«Erguendo então os olhos para os discípulos, disse: Bem-aventurados vós…».

«Alegrai-vos e exultai nesse dia, porque é grande no Céu a vossa recompensa».

 

Para entendermos todo o alcance e significado deste texto, devemos recordar que ele está situado na primeira parte do Evangelho de Lucas (“atividade de Jesus na Galileia”, Lc 4, 14 – 9, 50). Nesta primeira parte do Evangelho, Lucas procura apresentar um primeiro anúncio sobre Jesus (“kerigma”) e definir o programa libertador que o Messias vai cumprir em favor dos oprimidos. Aliás, toda a primeira parte do terceiro Evangelho é dominada pelo episódio da sinagoga de Nazaré, onde Jesus enuncia o seu programa: “o Espírito do Senhor está sobre Mim porque Me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres; enviou-Me a proclamar a libertação aos cativos…” (Lc 4, 18-19).

As bem-aventuranças de Lucas inserem-se em todo este ambiente: a libertação chegou com Jesus e dirige-se aos pobres e aos débeis. Numa planície (Mateus situa o discurso das bem-aventuranças numa montanha), rodeado dos discípulos e por uma multidão “que acorrera para O ouvir e ser curada dos seus males” (Lc 6, 18), Jesus pronuncia o discurso que o Evangelho de hoje nos propõe.in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, contudo, a proclamação deve ter em conta a construção do texto em duas partes distintas que caracterizam duas atitudes: «Maldito quem confia no homem» e «Bendito quem confia no Senhor».

Na segunda leitura deve haver uma especial atenção à longa frase interrogativa com que inicia a leitura. Deve evitar-se dar a entoação interrogativa apenas nas palavras finais da frase e acentuar a partícula interrogativa “porque” e o respetivo verbo “dizem”. O leitor deve estar atento às três frases condicionais e dar uma especial ênfase à conclusão – «Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» – que sintetiza a mensagem de toda a leitura

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

E JESUS DESCEU PARA O MEIO DE NÓS

 

Conta-nos São Lucas que Jesus saiu (exérchomai) para a MONTANHA para ORAR, e estava (ên: imperf. de eimí) a passar (dianyktereúôn: part. presente de dianyktereúô) a noite inteira em ORAÇÃO (Lucas 6,12). Note-se que Jesus se separa para rezar. E a expressão usada (imperfeito do verbo «ser» seguido de particípio presente) indica que Jesus rezou, sem parar, a noite inteira. O Evangelho de Lucas recorda-nos que Jesus reza sempre nos momentos importantes da sua missão. Quando amanheceu, continua São Lucas, Jesus chamou os discípulos e escolheu «Doze» a quem chamou Apóstolos, seguindo-se logo a lista dos seus nomes (Lucas 6,13-16). De notar que também Mateus 10,2 e Marcos 6,30 sabem que os Doze são Apóstolos, mas apenas Lucas refere que foi o próprio Jesus a dar-lhes este nome (Lucas 6,13). Notemos ainda que o Apóstolo é o enviado autorizado, que fala em nome de quem o envia. Não está autorizado a dizer palavras suas ou a expressar a sua opinião. Fica totalmente vinculado àquele que o envia. A primeira nota que o caracteriza é a fidelidade.

 Depois desta introdução, parece-me oportuno, pela sua importância, inserir o texto do Evangelho que hoje será proclamado (Lucas 6,17.20-26), sem o corte dos vv. 18-19: «Tendo descido com eles, ficou de pé num lugar plano, e um grupo numeroso dos seus discípulos e uma multidão numerosa do povo (laós) de toda a Judeia e de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sídon, que tinham vindo para o escutar e fazer-se curar das suas doenças. E aqueles que eram atormentados por espíritos impuros eram curados, e toda a multidão procurava tocá-lo, porque uma força saía dele e curava todos. E tendo levantado os seus olhos para os seus discípulos, dizia:

 

Felizes vós, os pobres,

porque vosso é o reino de Deus;

Felizes vós que tendes fome agora,

porque sereis saciados;

Felizes vós que chorais agora,

porque rireis;

Felizes sois vós, quando os homens vos odiarem, e quando vos expulsarem e insultarem e rejeitarem o vosso nome como mau por causa do Filho do Homem.

Mas ai de vós os ricos,

porque tendes a vossa consolação;

Ai de vós, que estais saciados agora,

porque tereis fome;

Ai de vós, que rides agora,

porque andareis aflitos e chorareis;

Ai de vós, quando todos os homens disserem bem de vós:

era assim que os seus pais tratavam os falsos profetas» (Lucas 6,17-26).

O Evangelho deste Domingo VI do Tempo Comum começa com esta descida para um lugar plano, que não tem de ser necessariamente a planície ao nível do mar da Galileia; pode muito bem tratar-se de um planalto acessível a uma grande multidão, doentes incluídos. Vê-se e compreende-se bem que o Discurso de Jesus é, em Lucas, mais breve e apresentado num cenário plano (Lucas 6,17-7,1), bem diferente do Sermão da Montanha de Mateus, mais longo e encenado nas alturas (Mateus 5,1-7,19). Se Lucas quer pôr Jesus em contacto com toda a gente, inclusive com os doentes, é fácil compreender que Jesus tem de descer ao nível deles, e não os pode obrigar a subir à Montanha.

É significativo que o evangelista descreva esta grande multidão como POVO (laós) oriundo de toda a Judeia, Jerusalém, Tiro e Sídon (Lucas 6,17), que veio para escutar Jesus e ser por Ele curado (Lucas 6,18). Ao contrário dos outros evangelistas que praticamente o ignoram, Lucas introduz este POVO (laós) profusamente no seu Evangelho. Este POVO (laós) tem conotação religiosa: é o Povo de Deus que o II Concílio do Vaticano consagrará. O que faz e define este POVO (laós) não é nenhum elemento étnico, nacionalista ou histórico, mas a eleição e a graça de Deus. Qualquer pessoa, de qualquer língua, nação, raça, cultura, que oiça a Palavra de Deus e lhe responda passa a fazer parte deste Povo. Neste sentido, esta multidão pode ter no seu seio elementos estrangeiros (Tiro e Sídon), mas não deixa, por isso, de ser um POVO (laós), o Povo de Deus. É igualmente significativo que todos tenham vindo ouvir Jesus! Aos olhos dos Apóstolos, que Jesus acabara de escolher, está ali indicado proleticamente o caminho da futura evangelização.

Então, Jesus, de pé, e «tendo levantado os olhos» como um profeta (em Mateus «sentou-se» como um mestre), declarou de forma direta e incisiva, em 2.ª pessoa, como fazem os profetas (Mateus usa a 3.ª pessoa, estilo sapiencial, sereno e pedagógico), bem-aventurados por Deus os POBRES, os FAMINTOS de agora, os que CHORAM agora, os REJEITADOS ou DESCARTADOS de agora. Lucas é mais radical e direto do que Mateus. Às quatro bem-aventuranças junta, em contraponto, quatro mal-aventuranças, declarando malditos por Deus os RICOS de agora, os FARTOS de agora, os que RIEM agora, os que RECEBEM APLAUSOS agora. As mal-aventuranças são introduzidas por um «Ai», fórmula técnica para introduzir anúncios de desgraça no discurso profético.

Lucas esclarecerá mais à frente, quando for contada a história do RICO FARTO e do POBRE LÁZARO (16,19-31), que os FARTOS não são demovidos pelos profetas nem tão-pouco por um morto que ressuscite! E esta parábola do homem Rico e do pobre Lázaro, que escutaremos no Domingo XXVI, é também o melhor comentário ao texto das bem-aventuranças e mal-aventuranças de hoje.

Jeremias 17,5-8 faz boa companhia ao Evangelho de hoje. O profeta expõe em discurso profético, abrindo com a clássica fórmula do mensageiro que soa: «Assim disse o Senhor», um refrão de tipo sapiencial que percorre toda a Escritura de lés a lés: «MALDITO o homem que confia no homem, afastando-se do Senhor;/ BENDITO o homem que confia no Senhor, pondo nele toda a sua confiança». O primeiro assemelha-se ao tamarisco do deserto, mirrado e amargo, que mora numa terra salitrada e estéril; o segundo é como uma árvore viçosa plantada junto da água boa.

A mesma temática e até as mesmas imagens vegetais enchem o Salmo Responsorial de hoje (Salmo 1): o homem que recita a instrução do Senhor dia e noite é como a ÁRVORE plantada e que dá fruto; o malvado é como a PALHA que o vento dispersa. A ÁRVORE plantada está de pé, respira o vento, como o homem, e dá fruto; a PALHA não respira o vento, mas é levada pelo vento; e não dá fruto, mas é a casca do fruto. É também fácil entender que é a mesma lição que encontramos na antítese das «bem-aventuranças / mal-aventuranças» do Evangelho de hoje.

A leitura semi-contínua do Apóstolo (1 Coríntios 15,12.16-20) prossegue hoje com a temática fundamental da ressurreição, tratada de forma notável em 1 Coríntios 15, cuja primeira parte foi lida no Domingo passado. Aí, Paulo expunha o acontecimento da Ressurreição de Jesus Cristo como centro da pregação apostólica e da fé das comunidades cristãs.

Hoje, Paulo começa por constatar que alguns membros da comunidade de Corinto não dão ouvidos aos conteúdos da pregação apostólica e negam simplesmente a ressurreição. E fazem-no em nome da mentalidade platónica, que considera a «carne» como elemento mau e desprezível, condenado à destruição, sendo a «alma» um elemento divino que, libertado da «carne», voltará a formar uma espécie de deus cósmico. Vê-se bem que segundo esta conceção errónea, a criação é má, ao contrário da declaração de Deus, que lhe apõe, por sete vezes, o carimbo de «boa» (Génesis 1). Paulo reage vigorosamente contra esta mentalidade instalada na comunidade, e prega aquilo que os Padres chamarão a «Economia da carne». «Cristo ressuscitou, primícias dos que adormeceram». Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro, então constitui certeza para os «outros» depois dele, que abre a série. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida dos homens.

É este acontecimento fundante que a Igreja Una e Santa, Esposa do Senhor, celebra jubilosamente Domingo após Domingo. Também hoje, portanto.

Há dois mil anos Jesus subiu ao monte,

E lá passou a noite em oração.

Quando se fez dia,

Escolheu os Doze,

E com eles desceu para o meio do povo,

Que de toda a parte tinha vindo

À procura da Palavra,

Que sabiam carregada de Luz e de Esperança.

Jesus desceu,

Ficou no meio deles,

Pertinho deles,

Ao alcance de muitas mãos que o tocavam.

Havia lá muitos doentes:

Claro que não podiam subir ao monte.

Desceu Jesus,

Como sempre desce Deus

Ao encontro dos seus filhos,

E declarou felizes

Os pobres,

Os famintos,

Os que tinham lágrimas nos olhos e na voz,

Os descartados.

Mas advertiu os ricos,

Os fartos,

Os que riam,

Os que iam de sucesso em sucesso,

Sem que os seus olhos vissem

E os seus ouvidos ouvissem

As lágrimas dos pobres e doridos.

Os Apóstolos estavam lá

E viram tudo

E ouviram tudo,

E nós também hoje com eles

E Jesus no nosso meio.

Ficamos todos a saber

Como fazer acontecer o Evangelho.

D. António Couto

ANEXOS:

    1. I Leitura – VI DTC – Ano C – 13.02.2022 – (Jer 17, 5-8)
    2. II Leitura – VI DTC – Ano C – 13.02.2022 (1 Cor 15, 12.16-20)
    3. VI DTC – Ano C – 13.02.2022 – Lecionário
    4. VI DTC – Ano C – 13.02.2022 – Oração Universal
    5. ANO C – Ano de Lucas

V Domingo do Tempo Comum – Ano C – 06.02.2022

«…Jesus disse a Simão: «Não tenhas receio; de futuro, serás pescador de homens.» Lc 5, 10

Viver a Palavra

 

São muitos os que acompanham Jesus e vêm ao Seu encontro e, com toda a certeza, levados pelas mais diversas motivações. A fama de Jesus facilmente se difundia mesmo na ausência das redes sociais e dos mais sofisticados meios de comunicação social. Ao longe e ao largo se iam difundindo os Seus milagres, as Suas palavras cheias de autoridade, o amor dito em gestos concretos que fazia de cada encontro um lugar transformador.

Muitos vão ao encontro de Jesus levados pela curiosidade, para ver, com os seus próprios olhos, os milagres e prodígios que realiza. Outros para escutar as palavras cheias de autoridade que saem dos Seus lábios. Muitos, com certeza, motivados pela esperança de serem curados das suas doenças e sofrimentos. Tantos outros, procurando um sentido para a Sua vida. São diferentes as motivações que fazem aquela multidão aglomerar-se em torno de Jesus. Contudo, hoje, somos nós, os que nos reunimos com Jesus. Dois mil anos depois, como as multidões de outrora, vamos ao Seu encontro. Mas, porque nos queremos encontrar com Jesus? Vamos ao Seu encontro levados pela curiosidade ou para acolher a Sua Palavra e nos deixarmos interpelar pelo Seu amor?

Aqueles que se encontram de verdade com Jesus e se deixam moldar pela Sua Palavra transformam de verdade as suas vidas: as noites mais sombrias e estéreis tornam-se manhãs luminosas e cheias da alegria abundante que nasce do encontro com Ele. Assim aconteceu com Pedro, que tendo andado na pesca toda à noite não tinha pescado nada. Porém, Jesus convida-o a lançar as redes: «Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca». Pedro, mesmo sabendo do insucesso daquela noite, ousa lançar as redes, acolhendo o desafio de Jesus e, assim, foi surpreendido pela abundância do peixe que parecia romper a rede. Na verdade, quando a nossa fragilidade e pequenez se abrem à misericórdia e à bondade de Deus, acolhendo os seus desafios, a nossa vida torna-se um lugar fecundo. O nosso pouco com Deus pode tornar-se muito, mas, ao invés, o nosso muito sem Deus serve para muito pouco. Por isso, Pedro, diante desta pesca abundante, sente-se indigno de estar na presença de Jesus: «Senhor, afasta-Te de mim, que sou um homem pecador». Este sentimento de fragilidade, pequenez e indignidade está já presente na primeira leitura, quando Isaías contemplando a glória de Deus afirma: «Ai de mim, que estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros, moro no meio de um povo de lábios impuros». Com Jesus, a nossa frágil humanidade não é um obstáculo à graça de Deus mas o lugar privilegiado onde ela atua para manifestar a obra divina. Por isso, também Paulo, o Apóstolo das Gentes, apesar de sentir como «abortivo» e o menor dos apóstolos, afirma desassombradamente: «Pela graça de Deus sou aquilo que sou, e a graça que Ele me deu não foi inútil».    

Com Jesus aprendemos que o medo deve dar lugar à confiança – «Não temas!» – pois o maior milagre não é a pesca abundante, mas Jesus que não se deixa intimidar pelas nossas desilusões, fragilidades ou pecados e nos confia uma missão: «daqui em diante serás pescador de homens». O olhar que Jesus nos dirige vê para lá das aparências e debilidades e abre-nos a porta da esperança, porque, na semente lançada no nosso coração, Jesus consegue ver a árvore que pode nascer e florir com a Sua graça. in Voz Portucalense

LEITURA I – Is 6, 1-2a.3-8

«Ai de mim, que estou perdido, porque sou um homem de lábios impuros».

 

Estamos em Jerusalém, por volta de 740/739 a.C. Isaías tem, então, à volta de vinte anos. Enquanto está no Templo em oração, descobre que Deus o chama a ser profeta. O texto de hoje relata-nos essa descoberta e a resposta de Isaías. No entanto, este relato não deve ser visto como uma reportagem jornalística de acontecimentos, mas sim como uma apresentação teológica de uma experiência interior de vocação.
Os pormenores folclóricos – o trono alto e sublime em que o Senhor Se senta, o seu manto que enche o Templo, os “serafins” com seis asas que voam sem cessar à volta e que cobrem a face e os pés, o oscilar das portas nos seus gonzos, o fumo – são elementos simbólicos com que o profeta desenha a grandeza, a omnipotência e a magnificência de Deus. É essa a perspectiva que o profeta tem do Deus que o chamou. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 137 (138)

Refrão: Na presença dos Anjos, eu Vos louvarei, Senhor.

 

LEITURA II – 1 Cor 15, 1-11

«Pela graça de Deus sou aquilo que sou, e a graça que Ele me deu não foi inútil».

 

A chegada do cristianismo ao mundo grego provocou um choque de mentalidades e de perspectivas culturais. Isso ficou bem evidente na dificuldade dos coríntios em aceitar a ressurreição dos mortos.
A ressurreição dos mortos era relativamente bem aceite no judaísmo, habituado a ver o homem na sua unidade; mas constituía um problema sério para a mentalidade grega. Porquê? Porque a cultura grega, fortemente influenciada por filosofias dualistas (como a filosofia de Platão, por esta altura na moda) que viam no corpo uma realidade negativa e na alma uma realidade ideal e nobre, recusava-se a aceitar a ressurreição do homem integral. Como poderia o corpo – essa realidade material, carnal, sensual, que aprisionava a alma e a impedia de subir ao mundo ideal, na opinião dos filósofos gregos – seguir a alma?

É a esta questão posta pelos Coríntios que Paulo vai responder neste texto.in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 5, 1-11

«Estava a multidão aglomerada em volta de Jesus, para ouvir a palavra de Deus»

«Faz-te ao largo e lançai as redes para a pesca».

«Não temas. Daqui em diante serás pescador de homens».

 

Estamos na Galileia, no início do ministério de Jesus. Há algum tempo, Ele apresentou o seu programa na sinagoga de Nazaré como anúncio da Boa Nova aos pobres e proposição da libertação para os prisioneiros… Agora, começam a notar-se os primeiros resultados da atividade de Jesus: à sua volta começa a formar-se o grupo dos que foram sensíveis a essa proposta de salvação e seguiram Jesus. in Dehonianos.

Para os leitores:

 

A primeira leitura apresenta uma alternância entre as descrições da visão de Isaías e o discurso direto presente no texto. Por isso, o leitor deve ter um especial cuidado quer no tom empregue durante as descrições, quer no discurso direto que apresenta inclusive as aclamações dos Serafins.

A segunda leitura, tal como nos acostumamos no epistolário Paulino, apresenta longas frases com diversas orações. Deste modo, a leitura requer uma boa preparação nas pausas a fazer, na articulação das diversas orações, para que a mensagem seja claramente compreendida.

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

NAQUELA MANHÃ DE HÁ DOIS MIL ANOS

Naquela manhã de há dois mil anos algo de extraordinário aconteceu para que alguns pescadores do lago da Galileia – o Evangelho de Lucas 5,1-11 destaca os nomes de Pedro, Tiago e João – tenham abandonado as barcas, as redes, os peixes acabados de pescar em grande quantidade, enfim, tudo, para seguirem mais de perto Jesus.

Pedro, sempre ele, diz-nos o porquê da revolução operada na sua vida: «Por causa da tua Palavra, Mestre, lançarei as redes» (Lucas 5,5). Por causa da tua Palavra. Naquela manhã, Jesus ensinava (edídasken) as multidões, sentado (kathísas) na barca de Pedro, que Jesus tinha pedido a Pedro para afastar um pouco da praia para a água. Bela forma encontrada por Jesus de obrigar Pedro a ter de escutar todo o seu ensinamento! E ensinava de forma continuada: assim o indica o imperfeito do verbo grego. Sentado: é a posição do Mestre que ensina na cátedra. É ainda sentado como Mestre na barca que Jesus ordena agora a Pedro: «Afasta (a barca) para o mar profundo, e lançai as vossas redes para a pesca!» (Lucas 5,4). Pedro mostrou a sua estupefação de pescador experimentado: tinham trabalhado toda a noite e nada tinham pescado! Quanto mais agora, de dia, seria inútil fazê-lo! Lançou, porém, as redes, e pouco depois caiu de joelhos aos pés de Jesus, sempre sentado como Mestre na barca, e avançou um pedido: «Distancia-te de mim, Senhor, porque sou um homem pecador» (Lucas 5,8). Mas Jesus diz para Pedro: «Não tenhas medo! Doravante serás pescador de homens» (Lucas 5,10). E o narrador anota a fechar o episódio que «Tendo conduzido as barcas para terra, tendo deixado tudoseguiram-no» (Lucas 5,11).

Entenda-se bem que Pedro lançou as redes para a pesca, não baseado nas suas capacidades de pescador experimentado, mas por causa da Palavra de Jesus ou sobre a Palavra de Jesus. Palavra aqui diz-se rhêma, que tem o significado fortíssimo de «Palavra que acontece» ou de «Acontecimento que fala». Entenda-se também então que a nova missão de pescador de homens que Jesus lhe confia terá de ser também somente assente nesta Palavra de Jesus. A missão de Pedro e a nossa!

Notem-se os sucessivos «afastamentos» que são, na verdade, «aproximações». Primeiro é Jesus que pede a Pedro que afaste (epanágô) a sua barca um pouco da terra (Lucas 5,3), para poder, dessa cátedra improvisada, ensinar melhor as multidões. Note-se, todavia, que, com este recurso, Jesus põe Pedro bem junto dele! Quando Jesus pronuncia, pela segunda vez, o verbo afastar, fá-lo em imperativo dirigido ainda a Pedro (Lucas 5,4), e é para aquela pesca milagrosa que aproximará ainda mais Pedro de Jesus! A terceira vez é a vez de Pedro. E é para fazer uma profissão de fé, reconhecendo em Jesus o Senhor, isto é, Deus. E decorre deste reconhecimento que Pedro se reconheça como pecador, que não pode estar na presença do Deus Santo. Daí, o grito: «Distancia-te (exérchomai) de mim, Senhor… (Lucas 5,8). A última palavra é, como tinha de ser, de Jesus, que dá uma nova identidade a Pedro: «pescador de homens» (Lucas 5,10). E o episódio termina com o narrador a vincular radicalmente Pedro e os companheiros a Jesus com aquele dizer: tendo deixado tudo, seguiram-no (akolouthéô) (Lucas 5,11)».

Entenda-se ainda bem que este seguimento de Jesus a que Pedro e nós somos convidados, não se destina a aprender uma doutrina ou uma ideia, mas a seguir de perto uma Pessoa, Jesus de Nazaré, e a sua maneira concreta de viver. É a adesão a uma Pessoa que está em causa para Pedro e para nós.

De Pedro e dos seus companheiros é dito que deixaram barcas, redes, peixes, tudo, para seguirem Jesus (Lucas 5,11), decisão radical que o Evangelho de Lucas continuará a salientar noutras passagens: «Se alguém quiser seguir-me, diga não a si mesmo, tome a sua cruz todos os dias, e siga-me» (Lucas 9,23); «Vendei tudo o que tendes e dai-o em esmola» (Lucas 12,33); «Aquele de vós que não renunciar a todos os seus bens não pode ser meu discípulo» (Lucas 14,33); «Vende tudo o que tens e distribui-o aos pobres» (Lucas 18,21).

É assim que Pedro se faz pescador de homens, lançando as redes da Palavra criadora de Deus até à sua morte, com o sangue, na cidade de Roma. Como memória eterna deste «pescador», ainda hoje, em todos os dias 28 de junho, véspera da Solenidade de São Pedro e São Paulo, se coloca simbolicamente sobre a porta da Basílica de São Pedro, em Roma, uma rede de ramos de buxo. Não uma coroa de louros, mas uma rede de louros!

Em perfeita consonância com a cena do Evangelho, relatando-nos o verdadeiro encontro de Pedro com o Deus Santo, o Antigo Testamento oferece-nos, neste Domingo V do Tempo Comum, o majestoso texto da vocação e missão de Isaías (6,1-8). No decurso de uma liturgia no Templo de Jerusalém, Isaías é investido como Profeta. Estamos por volta de 736 a.C., época provável da morte do rei Ozias, referida em Isaías 6,1. Perante a manifestação do Deus três vezes Santo, sentado no trono da graça que é o propiciatório da Arca da Aliança que ocupa o centro do Santo dos Santos do Templo, Isaías não tinha evasivas. Quando o Deus Santo se manifesta ao homem, provoca nele o mais intenso movimento de relação, movimento mortal, fulminante (Êxodo 33,20; Jeremias 30,21). Assim, Isaías, que tinha sido arrastado para um tão intenso movimento relacional, constata que devia estar morto, e, todavia, está vivo, bem vivo, vivificado! Milagre! E Isaías soube receber-se como dado, como filho da Palavra criadora de Deus e não já apenas dos seus pais ou da sua pátria, e doar-se, por sua vez, a Deus de acordo com a sua nova identidade, vocação e missão de Profeta. Como Pedro no Evangelho de hoje

A grande aclamação do «Santo, Santo, Santo» faz parte substancial e central da celebração de todas as Igrejas cristãs. Se virmos bem, também nós hoje e aqui estamos perante o «Santo, Santo, Santo». Exatamente no lugar de Isaías e de Pedro…

A leitura semi-contínua do Apóstolo Paulo prossegue hoje com um texto de fundamental importância (1 Coríntios 15,1-11), um «credo» cujo conteúdo é o Evangelho (euaggélion) fielmente evangelizado (euaggelízomai) pelo Apóstolo e fielmente recebido (paralambánô) e guardado (katéchô) pela comunidade cristã de Corinto. O Apóstolo enuncia os dois grandes elos da genuína cadeia da Tradição: «Transmiti-vos (paradídômi) o que eu recebi (paralambánô)». Transmitir e receber e de novo transmitir sem interrupção. Os conteúdos da Tradição (parádosis) do Evangelho são: a) Cristo morreu pelos nossos pecados «segundo as Escrituras»; b) foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia «segundo as Escrituras»; c) o Senhor Ressuscitado fez-se ver a Cefas e aos Doze, depois a mais de quinhentos irmãos (a maioria dos quais ainda estavam vivos quando Paulo escrevia, podendo, por isso, testemunhar), depois a Tiago, depois a todos os discípulos, e, por último, ao próprio Apóstolo Paulo que escreve e no qual opera a graça de Deus. Todos, o Apóstolo e os Apóstolos, anunciam (kêrýssô) este Evangelho, e todos, o Apóstolo, os Apóstolos e os fiéis, nós também, acreditámos (pisteúô) neste Evangelho e vivemos deste Evangelho, que é a nossa vida verdadeira (Gálatas 2,20; Filipenses 3,21).

  1. O Salmo 138, que hoje cantamos, é «o canto do chamamento universal», como o define S.to Atanásio (séc. IV). O orante, voltado para o Templo (v. 2), como era usual fazer-se no judaísmo tardio (o islamismo fá-lo-á mais tarde em relação a Meca), sente e sabe que a sua oração não esbarra contra um céu cerrado, surdo e mudo, mas é registada e repercute-se no coração de Deus, que em caso algum abandona a obra das suas mãos (v. 8). Grande Ação de Graças deste orante (v. 1) e dos reis de toda a terra (v. 4). Nossa também.

Naquela manhã de há dois mil anos,

Algo de extraordinário aconteceu,

Para que aqueles pescadores experimentados,

Que pela manhã regressavam da faina desanimados,

Sem nada terem pescado,

Agora que o sol já se levantava,

A uma palavra de Jesus a eles dirigida,

Tenham lançado outra vez as redes ao mar,

E tenham visto os peixes inundá-las.

Naquela manhã de há dois mil anos,

Algo de extraordinário aconteceu,

Tudo por causa de uma palavra de Jesus.

O que ali aconteceu foi tudo de tal monta,

Que Simão Pedro

E os outros que estavam com ele,

Se puseram a fazer contas à vida,

E decidiram deixar logo ali,

Abandonados junto à praia,

Os barcos, as redes e os muitos peixes.

Naquela manhã de há dois mil anos,

E sem poder sair do refluxo daquela palavra nova de Jesus,

Aqueles pescadores tiveram que decidir

Ficar com os barcos, as redes, os peixes e o mar,

Ou seguir no encalço de Jesus.

Claro que escolheram seguir Jesus:

Não se pode abandonar a nascente de tantas maravilhas!

Ensina-nos, Senhor,

Nesta manhã em que o sol nasce como há dois mil anos,

A saber ouvir e escolher a tua Palavra de amor,

E a deixar para trás tudo o que nos impedir

De ir contigo.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. I Leitura – V DTC – Ano C – 06.02.2022 (Is 6, 1-2a.3-8)
  2. II Leitura – V DTC – Ano C – 06.02.2022 (1 Cor 15, 1-11)
  3. V DTC -Ano C – 06.02.2022 – Lecionário
  4. V DTC – Ano C – 06.02.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

IV Domingo do Tempo Comum – Ano C – 30.01.2022

21Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Lc 4, 21 

Viver a Palavra

Somos discípulos missionários, chamados a construir o mundo novo, na certeza de que a caridade divina nos precede sempre e, mesmo antes do nosso nascimento, somos já um sonho do amor de Deus que tem para cada um de nós um projeto de realização e felicidade: «antes de te formar no ventre materno, Eu te escolhi; antes que saísses do seio de tua mãe, Eu te consagrei e te constituí profeta entre as nações».

Convocados por Deus, somos convidados a fazer-nos discípulos, isto é, aprendizes na escola da arte de amar, mas simultaneamente, somos desafiados a partir em missão e a conceber a vida como enviados do amor de Deus, conscientes de que a vida cristã se escreve no tempo e na história num único movimento evangelizador, mas numa dupla direção, ad intra e ad extra. Como o coração que realiza a sua tarefa num duplo movimento de contração e distensão, assim, a nossa vida cristã se desenvolve e frutifica num duplo movimento de edificação e missão, de construção da comunidade e saída ao encontro dos irmãos.

Por isso, ser cristão é acolher o desafio de fazer da nossa vida a mais bela obra-prima, tal como nos exortava o Papa Bento XVI, quando a 12 de maio de 2010 falava aos artistas no Centro Cultural de Belém e declarava: «fazei coisas belas, mas sobretudo tornai as vossas vidas lugares de beleza». Contudo, no nosso coração pode emergir a pergunta: como fazer das nossas vidas lugares de beleza, no tempo em que vivemos e no meio dos múltiplos afazeres quotidianos?

Na verdade, são muitos os caminhos que se colocam diante de nós, por isso, é necessário fazer escolhas firmes, tomar decisões consistentes e arriscar pelo caminho que nos pode oferecer a verdadeira felicidade que tem sabor de eternidade e torna a vida um lugar de beleza. S. Paulo aponta-nos o horizonte: «vou mostrar-vos um caminho de perfeição que ultrapassa tudo». Este caminho de amor total e pleno que Jesus nos oferece e que se traduz na caridade viva e operante, que molda a vida e transforma o coração. A caridade «paciente» e «benigna», que «tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta». A caridade que não é mais uma coisa a fazer, mas o modo de fazer todas as coisas. A caridade que nos impele a descobrir no quotidiano as maravilhas de Deus e nos ensina a ler os milagres de Deus nos trilhos da história e nas surpresas do nosso dia-a-dia.

Foi esta a grande dificuldade dos conterrâneos de Jesus: ver no jovem simples de Nazaré, no filho de José, o carpinteiro, Deus que revela as maravilhas do Seu amor. Do espanto pelas palavras cheias de força que saíam da boca de Jesus passam à incompreensão, pois não admitem que na simplicidade e fragilidade da nossa humanidade, pudesse estar a plenitude da revelação, o cumprimento das promessas que Deus outrora fizera a Israel.

Sabendo da facilidade com que também nós passamos do espanto à desconfiança e à agressividade, das certezas às incertezas e à incredulidade, aprendamos a arte de saborear as maravilhas de Deus que se revelam na banalidade da nossa vida.

Deus ama-nos, escolhe-nos desde o seio materno e tem para cada um de nós um projeto de amor e felicidade. Deus constrói com cada um de nós uma história de amor e propõe a caridade como pilar fundamental da construção da nossa existência. Ele próprio, em Jesus Cristo Seu Filho, precede-nos no caminho exigente de anunciar o Evangelho, na proclamação da certeza que o tempo que habitamos e a história que escrevemos com as nossas vidas, na simplicidade do nosso quotidiano, são o lugar privilegiado da manifestação das maravilhas de Deus, dos milagres que Ele opera em nós e através de nós no coração da humanidade. in Voz Portucalense

LEITURA I Jer 1,4-5.17-19

«Eles combaterão contra ti, mas não poderão vencer-te, porque Eu estou contigo para te salvar».

 

A atividade profética de Jeremias começa por volta de 627/626 a.C. (quando o profeta teria pouco mais de vinte anos) e prolonga-se até depois da queda de Jerusalém nas mãos dos Babilónios (586 a.C.). O cenário dessa atividade é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).

É uma época muito conturbada, quer a nível político, quer a nível religioso. Judá acabou de sair dos reinados de Manassés (698-643 a.C.) e de Amon (643-640 a.C.), reis ímpios que multiplicaram no país os altares aos deuses estrangeiros e levaram o Povo a afastar-se de Jahwéh. Na época em que Jeremias começa o seu ministério profético, o rei de Judá é Josias (640-609 a.C.): trata-se de um rei bom, que procura eliminar o culto aos deuses estrangeiros e concentrar a vida litúrgica de Judá num único lugar – o Templo de Jerusalém. No entanto, a reforma religiosa levada a cabo por Josias levanta algumas resistências; por outro lado, é uma reforma que é mais aparente do que real: não se pode, por decreto e de repente, corrigir o coração do Povo e eliminar hábitos religiosos cultivados ao longo de algumas dezenas de anos.

É neste ambiente que Jeremias é chamado por Deus e enviado em missão.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL  Salmo 70 (71)

Refrão: A minha boca proclamará a vossa salvação

 

LEITURA II – 1 Cor 12,31-13, 13

«Agora permanecem estas três coisas: a fé, a esperança e a caridade; mas a maior de todas é a caridade».

 

Há quem chame a este texto “o Cântico dos Cânticos da nova aliança”. Também se lhe chama, habitualmente, o “hino ao amor”.

À primeira vista, este “elogio do amor” poderia parecer uma página completamente desligada do contexto anterior (a discussão acerca dos carismas). Na realidade, este texto apresenta afinidades claras, tanto a nível literário como a nível temático, com os capítulos precedentes, bem como com os capítulos seguintes. Ainda que possamos retirar este hino do seu contexto, sem que ele perca o sentido, a verdade é que Paulo quer aqui dizer, sem meias palavras e de forma clara e contundente, que só há um carisma absoluto: o amor.in Dehonianos.

EVANGELHO Lc 4,21-30

«Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».

«Levantaram-se, expulsaram Jesus da cidade e levaram-n’O até ao cimo da colina sobre a qual a cidade estava edificada, a fim de O precipitarem dali abaixo».

«Jesus, passando pelo meio deles, seguiu o seu caminho»

 

Estamos na sequência do episódio que a liturgia de domingo passado nos apresentou. Jesus foi a Nazaré, entrou na sinagoga, foi convidado a ler um trecho dos Profetas e a fazer o respetivo comentário… Leu uma citação de Is 61,1-2 e “atualizou-o”, aplicando o que o profeta dizia, a Si próprio e à sua missão: “cumpriu-se hoje mesmo este trecho da Escritura que acabais de ouvir”.

O Evangelho de hoje apresenta a reação dos habitantes de Nazaré à ação e às palavras de Jesus in Dehonianos.

Para os leitores:

 

A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente, contudo, deve ter-se uma especial atenção na proclamação da frase final que representa não só a conclusão da leitura, mas um convite à confiança.

A segunda leitura, além da sua extensão, reclama um especial cuidado pelas longas frases com várias orações, as expressões repetidas que sublinham a mensagem que quer ser transmitida e as longas enumerações que traduzem a força do texto. Uma leitura pausada e consciente da mensagem que texto quer transmitir, ajudarão a uma proclamação eficaz da leitura.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

IMPOSSÍVEL TRAVAR O CAMINHO DO AMOR

 

O texto do Evangelho de Lucas proclamado e ouvido no Domingo IV do Tempo Comum (Lucas 4,21-30) retoma e continua o «discurso programático» de Jesus na Sinagoga de Nazaré, iniciado no Domingo III. Neste 1.º SÁBADO da sua vida pública, Jesus entrou na Sinagoga, LEVANTOU-SE para fazer a leitura litúrgica dos Profetas (Isaías) e SENTOU-SE para fazer a instrução com base na Lei (Deuteronómio): «HOJE foi cumprida (passivo divino!) esta Escritura nos vossos ouvidos».

O que Jesus faz é o procedimento tradicional do judeu piedoso em dia de SÁBADO, e as palavras que diz são também antigas. Dizendo as Palavras da Escritura e nada acrescentando de novo, Jesus assume-se como «FILHO DA ESCRITURA». As gentes de Nazaré olham, num primeiro momento, este Jesus com apreço e admiração, mas rapidamente passam a uma atitude hostil para com ele, apontando-lhe outra «paternidade»: «Não é este o “FILHO DE JOSÉ”?»; «o que ouvimos dizer que FIZESTE em Cafarnaum, FAZ também aqui na TUA PÁTRIA».

Mas, neste SÁBADO INICIAL, Jesus NÃO FAZ nada de semelhante àquilo que fará nos outros SÁBADOS. Este SÁBADO INICIAL reclama aquele SÁBADO FINAL em que Jesus também NADA FAZ: passá-lo-á inteiramente deitado no sepulcro! E a própria Paixão é exatamente o contrário de uma manifestação de poder: é antes passividade e impotência de Jesus! Ele, que tinha salvado outros, não se salvará a si mesmo! Mas neste SÁBADO INICIAL Jesus continua também a não dizer nada de novo. Cita dois provérbios: «Médico, cura-te a ti mesmo» e «nenhum profeta é bem aceite na sua pátria», sendo que os provérbios são património de todos e de ninguém. Reclama depois a obra de dois Profetas antigos, Elias e Eliseu, para mostrar que também eles NADA FIZERAM para as gentes da SUA PÁTRIA: Elias sai da sua pátria para socorrer uma viúva de Sídon, e Eliseu cura o sírio Naamã, um estrangeiro que o vem procurar na sua pátria. Também Jesus saltará fronteiras e atenderá estrangeiros. Bem ao contrário, Israel e as gentes de Nazaré: cegos, não acolheram a ESCRITURA de ontem como Palavra para eles «HOJE», do mesmo modo que no FILHO DE JOSÉ não souberam ver o Profeta, aquele que, como a Escritura, traz a Palavra. Quebram dessa maneira o laço de união entre o FILHO e a PÁTRIA, terra dos pais. E para vincar melhor a rejeição desta herança que é o seu FILHO, expulsam-no para fora da cidade. Pior ainda, tramam a sua morte: matando o FILHO, renegam a própria paternidade, perdendo assim a sua própria identidade. Perdendo-se, portanto. Da admiração inicial à rejeição final.

Não surpreende, portanto, que esta herança, rejeitada pela própria família, seja distribuída a outros, aos de fora. Este SÁBADO INICIAL contém em gérmen todos os elementos que o relato do Evangelho vai mostrar: desde logo o SÁBADO FINAL, mas também este FILHO DA ESCRITURA, que abre e lê abundantemente a Escritura aos nossos olhos para que ela se cumpra como Palavra nos nossos ouvidos, tornando-nos FILHOS DA PALAVRA. A oposição dos habitantes de Nazaré não foi suficiente para travar a história de Jesus, como também não o conseguiram fazer aqueles que o crucificaram e o continuam a crucificar ainda HOJE. Mas Ele continua HOJE a passar pelo meio de nós. Resta saber que atitude assumimos nós HOJE. Retê-lo não é possível. Só podemos segui-lo!

A citação dos provérbios não é inocente. Mostra Jesus como PROFETA. De facto, ao citar o provérbio «Médico, cura-te a ti mesmo», Jesus está a dizer o que ainda não foi dito, mas será dito no cenário da Paixão: «Salvou os outros, que se salve a si mesmo!» (Lucas 23,35), dirá o povo; «Salva-te a ti mesmo!» (Lucas 23,37), dizem os soldados. E ao dizer: «Nenhum Profeta é bem recebido na sua pátria», Jesus está a apresentar-se como Profeta verdadeiro. Na verdade, a perseguição começará logo ali e será uma constante ao longo do seu caminho. A Palavra profética faz o caminho, e não é o caminho que faz a Palavra! É esse caminho profético que Ele faz e segue, passando pelo meio deles. Esta Palavra que acontece, a d’Ele, a minha e a tua, faz a história e julga a história. Ao contrário do que facilmente dizemos, porque não pensamos, não é a história que nos julga. Somos nós que julgamos a história.

Somos HOJE também colocados perante o relato abreviado da vocação profética de Jeremias (1,4-5 e 17-19). O relato abre com a chamada «fórmula de acontecimento» [= «Veio sobre mim a Palavra do Senhor»], que marca um início novo na vida do Profeta, e fecha com a chamada «fórmula de conforto» ou de «assistência» [= «Eu estou contigo»], pela qual Deus garante ao seu Profeta apoio permanente. A missão de Jeremias destina-se às nações pagãs, mas também a Judá, seus reis, sacerdotes e todo o povo. A todos Jeremias, o profeta de Anatôt, uma aldeiazinha situada a uns seis quilómetros a nordeste de Jerusalém, deve falar a Palavra do Senhor. Os versículos cortados, por sinal os mais belos, definem a missão de Jeremias como uma missão difícil, marcada por quatro verbos negativos [= arrancar, destruir, exterminar, demolir], a que só depois se seguem dois positivos [= construir, plantar]. Nesta altura, com Jeremias consciente da difícil missão que lhe foi confiada, estabelece-se um dos mais belos e significativos diálogos de toda a Escritura. A Palavra do Senhor vem sobre Jeremias (nova «fórmula de acontecimento») para lhe perguntar: «O que vês, Jeremias?», a que o Profeta responde com a belíssima expressão: «Vejo um ramo de amendoeira!». «Viste bem, Jeremias», confirma o Senhor. A amendoeira é uma das poucas árvores que floresce em pleno inverno. Jeremias vê bem, de forma penetrante que, na invernia da sua difícil missão, nasce já a flor da esperança, que é sempre a última palavra de Deus. E é essa flor-palavra, palavra em flor, que o Profeta vê-ouve-diz sempre, mesmo no meio da tempestade! Extraordinário desafio para nós que estamos ainda com os olhos turvos pelas atrocidades, perseguições e acentuado desprezo pela vida humana que se vai vendo por este mundo fora.

Continuamos também, neste Domingo IV do Tempo Comum, com a Leitura semi-contínua do «Apóstolo». Ficamos assim perante o famoso «Hino à caridade» (1 Coríntios 12,31-13,13), uma das páginas mais extraordinárias do epistolário paulino. A uma comunidade em que os membros correm por conta própria, na vã tentativa de se posicionarem à frente uns dos outros, o Apóstolo Paulo aponta o AMOR (agápê) como caminho, testemunho e meta a atingir. É que mesmo que eu possua todos os bens e todos os dons, se não tiver o AMOR, que é o testemunho a transportar e a transmitir, posso estar a correr em vão ou ter já corrido em vão. É que o que é mesmo necessário viver é o AMOR.

Temos hoje a graça de poder saborear um bocadinho do Salmo 71, que é o único Salmo declaradamente posto na boca de um idoso. E aí, o velho orante não se lamenta nem tão-pouco faz apelo a qualquer sobrevivência depois da morte, mas implora simplesmente: «Não me rejeites no tempo da velhice, / não me abandones quando o meu vigor desvanece» (vv. 9 e 18). Amando apaixonadamente esta vida, e vivendo-a com o intenso gosto de viver que Deus lhe incutiu no coração, ao homem bíblico não lhe sobra tempo para sonhos fáceis de imortalidade – o desejo da imortalidade é completamente estranho à alma ou à substância da antropologia bíblica – ou lúgubres meditações sobre a morte. O Antigo Testamento sabe e sente que a vida humana tem medida. Não a medida da inveja, como se vê nos mitos assírio-babilónicos, mas a medida do amor. E isso basta. E isso nos basta.

Sabes, meu irmão, que em Anatôt,

Há uma amendoeira em flor carregada de esperança.

Sim, em Anatôt, de Anatôt, a amendoeira levanta-se

E planta-se no teu coração róseo-branco de criança.

Sim, em Anatôt, Foz Coa, Kilimanjaro, Lamego,

Aí mesmo no chão do teu coração,

Tanto faz, minha irmã, meu irmão.

Sai dessa reclusão

E vem expor-te

A este vendaval manso de graça e de perdão.

A amendoeira em flor é uma toalha branca estendida pelo chão.

Não pela minha mão,

Incapaz de tecer um tal manto de brancura,

Mas pela mão de Deus,

Que também faz brotar o vinho e o pão

E a ternura

No nosso coração.

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. I Leitura – IV DTC -Ano C – 30.01.2022 (Jer 1, 4-5.17-19)
  2. II Leitura – IV DTC – Ano C – 30.01.2022 (1 Cor 12, 31-13,13)
  3. IV DTC – Ano C – 30.01.2022 – Lecionário
  4. IV DTC – Ano C – 30.01.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

III Domingo do Tempo Comum
Domingo da Palavra de Deus – instituído pelo Papa Francisco – 30 setembro 2019
Ano C – 23.01.2022

21Começou, então, a dizer-lhes: «Cumpriu-se hoje esta passagem da Escritura, que acabais de ouvir.» Lc 4, 21

Viver a Palavra

 

«Em virtude desta revelação, Deus invisível, na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles, para os convidar e admitir à comunhão com Ele» (Dei Verbum, n. 2). Na verdade, sempre que lemos a Palavra de Deus, a escutamos em grupo ou em comunidade, é o próprio Deus que sendo eterno, omnipotente, omnisciente se aproxima de nós, acompanha-nos com a Sua solicitude paterna e nos fala como amigos. Como seria diferente a nossa vida cristã e a vida das nossas comunidades se tomássemos verdadeiramente consciência desta maravilha do amor de Deus, que tendo criado cada homem e cada mulher por amor, não abandona a obra das Suas mãos, mas a acompanha com a Sua palavra e com os Seus gestos, pois a revelação que Deus faz de si próprio se opera por meio de palavras e gestos intimamente ligados entre si.

            Por isso, cantámos no Salmo deste Domingo: «as vossas palavras, Senhor, são espírito e vida». Esta Palavra que escutámos é espírito e vida, pois é o anúncio da nossa salvação. Muito mais do que o modo como nós nos devemos comportar, a Palavra proclamada revela-nos o modo como Deus se relaciona connosco: Deus, todo-poderoso e eterno, envia ao mundo o Seu Filho Jesus, que na plenitude do Espírito Santo vem para «anunciar a boa nova aos pobres», «proclamar a redenção aos cativos e a vista aos cegos», «restituir a liberdade aos oprimidos», «proclamar o ano da graça do Senhor».

Ao escutar a Liturgia da Palavra deste Domingo, somos convidados a pensar que lugar tem a Palavra de Deus na nossa vida e quanto tempo da nossa oração quotidiana dedicamos à leitura e meditação da Palavra de Deus. Como lemos no Livro de Neemias, a proclamação solene do Livro da Lei era escutada com toda a atenção e o encontro com a Palavra dirigida por Deus ao Seu Povo era fonte de alegria e de festa: «Ide para vossas casas, comei uma boa refeição, tomai bebidas doces e reparti com aqueles que não têm nada preparado. Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor; portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza».

O encontro com Jesus, verdadeiramente presente na Palavra proclamada, gera em nós a alegria e transforma o nosso coração para fazer da nossa vida o verdadeiro lugar de festa. Apesar de diferentes nos dons que possuímos, nas qualidades que desenvolvemos, nos ministérios e serviços que nos estão confiados, animados pela força do Espírito Santo e convocados pela Palavra do Mestre, somos chamados a edificar o único Corpo de Cristo. Como discípulos missionários, unidos na única missão da Igreja experimentamos a beleza da unidade na diversidade que é obra do Espírito Santo que como afirma o Papa Francisco é «Aquele grande Artista, Aquele grande Mestre da unidade nas diferenças».

Contudo, a escuta da Palavra deve colocar-nos de olhos postos em Jesus de Nazaré, Aquele que naquele Sábado, como era Seu costume, entrou na Sinagoga e se levantou para fazer a leitura. Enrolado o livro, abre-se na vida de Jesus de Nazaré plena e definitivamente a revelação do Pai. Revestido da força do Espírito Santo, Jesus anuncia o Seu programa de vida: anunciar a boa nova, proclamar a redenção, restituir a liberdade e proclamar o ano da graça do Senhor. Jesus vem ao encontro da humanidade pobre, prisioneira, cega e oprimida e não fica indiferente às nossas dores. Também nós, que pelo Batismo e Confirmação fomos revestidos da força do Espírito Santo somos chamados a encontrar no programa de vida de Jesus as coordenadas do nosso agir, para que no hoje da nossa existência possa ecoar, através dos nossos gestos, a mais bela melodia do amor.in Voz Portucalense

LEITURA I Ne 8, 2-4a.5-6.8-10

«Hoje é um dia consagrado a nosso Senhor; portanto, não vos entristeçais, porque a alegria do Senhor é a vossa fortaleza».

 

O Livro de Neemias (com o de Esdras com o qual, inicialmente, formava uma unidade) pertence ao período que se segue ao regresso dos exilados judeus da Babilónia.

Estamos nos séculos V/IV a.C.; para os habitantes de Jerusalém, é ainda um tempo de miséria e desolação, com a cidade sem muralhas e sem portas, uma sombra negra da cidade bela que tinha sido. Neemias, um alto funcionário do rei Artaxerxes, entristecido pelas notícias recebidas de Jerusalém, obtém do rei autorização para se instalar na capital judia. Neemias vai começar a sua atividade com a reconstrução da muralha (cf. Ne 3-4) e com o combate às injustiças cometidas pelos ricos contra os pobres (cf. Ne 5). Depois, procura restaurar o culto (cf. Ne 8-9).

É neste contexto de preocupação com a restauração do culto que podemos situar o trecho que nos é proposto: Neemias reúne todo o Povo “na praça que fica diante da Porta das Águas”, a fim de escutar a leitura da Lei. Trata-se de recordar ao Povo o compromisso fundamental que Israel assumiu com o seu Deus: só assim será possível preparar esse futuro novo que Neemias sonha para Jerusalém e para o Povo de Deus.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 B (19)

Refrão: As vossas palavras, Senhor, são espírito e vida.

 

LEITURA II – 1 Cor 12, 12-30

«Vós sois corpo de Cristo e seus membros, cada um por sua parte».

 

A segunda leitura vem na sequência da que lemos no domingo passado. Paulo está preocupado porque, na Igreja de Corinto, os “carismas” (dons de Deus para benefício de toda a comunidade), utilizados em benefício próprio, geravam individualismo, divisão, luta pelo poder, desprezo pelos que aparentemente não possuíam dons especiais. É uma situação intolerável: aquilo que devia beneficiar todos é usurpado por alguns e está a pôr em causa a unidade e a comunhão desta Igreja. in Dehonianos.

EVANGELHO Lc 1,1-4; 4,14-21

«Jesus voltou da Galileia, com a força do Espírito, e a sua fama propagou-se por toda a região».

«Segundo o seu costume, entrou na sinagoga a um sábado e levantou-Se para fazer a leitura».

«Cumpriu-se hoje mesmo esta passagem da Escritura que acabais de ouvir».

 

O Evangelho de hoje é constituído por dois textos diferentes.

No primeiro (1,1-4), temos um prólogo literário onde Lucas, imitando o estilo dos escritores helénicos da altura, apresenta o seu trabalho: trata-se de uma investigação cuidada dos “factos que se realizaram entre nós”, a fim de que os crentes de língua grega (a quem o Evangelho de Lucas se dirige) verifiquem “a solidez da doutrina em que foram instruídos”. Estamos na década de 80 quando, desaparecidas já as “testemunhas oculares” de Cristo, o cristianismo começa a defrontar-se com uma série de heresias e de desvios doutrinais, que põem em causa a identidade cristã. Era, pois, necessário, recordar aos crentes as suas raízes e a solidez dessa doutrina recebida de Jesus, através do testemunho legítimo que é a tradição transmitida pelos apóstolos.

Na segunda parte (4,14-21), apresenta-se o início da pregação de Jesus, que Lucas coloca em Nazaré. O cenário de fundo é o do culto sinagogal, no sábado. O serviço litúrgico celebrado na sinagoga consistia em orações e leituras da Lei e dos Profetas, com o respetivo comentário. Os leitores eram membros instruídos da comunidade ou, como no caso de Jesus, visitantes conhecidos pelo seu saber na explicação da Palavra de Deus. O centro do relato está na proclamação de um texto do Trito-Isaías (cf. Is 61,1-2) que descreve como é que o Messias concretizará a sua missão.in Dehonianos.

Para os leitores:

A primeira leitura é marcada pela narrativa da proclamação do Livro da Lei pelo sacerdote Esdras. A proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom narrativo de quem conta este dia feliz do Povo de Israel. Devem ter uma atenção especial na leitura das aclamações do Povo, da exortação conjunta de Neemias, Esdras e os levitas e a exortação final de Neemias. Todas elas são marcadas pelo louvor e alegria da presença de Deus no meio do Seu Povo.

A segunda leitura tem como mensagem fundamental a unidade do Corpo de Cristo na variedade dos seus membros e na proclamação desta leitura a transmissão desta mensagem é fundamental. Para isso, pede-se um especial cuidado nas frases longas com diversas orações, de modo particular, nas frases interrogativas e nas hipotéticas intervenções de cada um dos membros.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ASSEMBLEIA DE ALEGRIA E DE ESPERANÇA

São Lucas é o Evangelista do corrente Ano Litúrgico. E embora já tenha sido proclamado e já tenhamos escutado diversos episódios do Evangelho de São Lucas nos quatro Domingos do Advento, Natal (1.ª e 2.ª missas), Festa da Sagrada Família, Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, e Festa do Batismo do Senhor, é só agora que vamos começar a proclamá-lo e a escutá-lo em leitura contínua. Importa, por isso, inserir neste momento um esquema deste Evangelho, para podermos compreender melhor o ritmo da sua leitura:

1,1-4 = Prólogo histórico (A)

1,5-2,52 = Evangelho da Infância (B)

3,1-9,50 = Ministério na Galileia (C)

9,51-19,27 = Partida/subida para Jerusalém (D)

19,28-21,36 = Ministério em Jerusalém (C’)

22,1-23,56 = Paixão – Morte – Sepultura (B’)

24,1-53 = Epílogo: Ressurreição – Aparições – Promessa do Espírito (A’)

 

O Evangelho deste Domingo III faz a acostagem do «prólogo» (1,1-4) ao «discurso programático» de Jesus na sinagoga de Nazaré (4,14-21), saltando a pregação e prisão de João Batista (3,1-20), o Batismo de Jesus e a genealogia (3,21-38), e a sua tentação no deserto, de que sai vitorioso (4,1-13).

O prólogo (Lucas 1,1-4) é importante para se compreender a solidez de todo o Evangelho. Lucas, da segunda geração cristã, não fez obra por conta própria. Faz questão de dizer que escreveu de forma ordenada e com acribia e controlando desde o começo os factos (prágmata) de Jesus, aqueles que foram cumpridos (passivo divino!) entre nós, e que já foram recebidos com carinho mão na mão (epicheiréô) e postos em narração (diêgêsis) por muitos, conforme nos foram transmitidos (paradídômi) por aqueles que foram testemunhas oculares (autóptai) desde o princípio (ap’ archês). Factos de Jesus, testemunhas oculares, transmissão-receção mão na mão, narração, controlo desde as fontes. Lucas escreve para que o seu Leitor tenha um conhecimento pofundo e pessoal (epiginôskô) dos factos de Jesus, sobre os quais se faz a instrução da catequese (katêchéô), que forma a nossa consciência cristã.

O episódio de Nazaré (4,14-21) é importante. Antes de mais é dito que Jesus procede na força (dýnamisdo Espírito, inciso próprio de Lucas, que salienta a plena identificação somática de Jesus com o Espírito. Já antes, desde o Batismo, Jesus é dito plêrês [= cheio] do Espírito (4,1), e plêrês indica, não a passividade de quem está cheio, mas a condição natural, ativa, de quem possui a plenitude do Espírito Santo. Sempre na força do Espírito, entrou em dia de sábado na sinagoga, e LEVANTOU-SE (anístêmi) para fazer a leitura litúrgica (anaginôskô) (Lucas 4,16).

Em João 7,15, ao verem Jesus a ensinar no Templo, os judeus ficam admirados e interrogam-se: «Como é que ele entende de letras sem ter estudado?». Lucas 4,16 informa-nos que sabia pelo menos ler! Jesus lê um texto composto de Isaías 61,1-3; 58,1-11; 35,1-3, mas Lucas compendia-o na citação de Is 61,1-2.

Os conteúdos são decisivos, e Jesus aplica-os soberanamente a si mesmo, com a consciência de ser o Realizador da Promessa antiga: o Espírito do Senhor sobre mim porque me ungiu para evangelizar os pobres, enviou-me e eis-me a anunciar (kêrýssô) aos prisioneiros a «remissão» (áphesis) [= amnistia], aos cegos o retorno da vista, a restituir aos oprimidos a liberdade, a anunciar (kêrýssô) o ano da graça [= jubileu] do Senhor (Lucas 4,18-19). Trata-se de funções reais, sacerdotais e proféticas. Atos 10,38 confirmará que Jesus, ungido com o Espírito, passou cumprindo todas estas funções.

Terminada a leitura, Jesus SENTOU-SE para ensinar, para fazer a tradicional homilia (Lucas 4,20a). E o narrador informa-nos, de maneira admirável, que «os olhos de todos estavam fixos nele!» (Lucas 4,20b), apontando já para o grande ensinamento da Cruz, quando Jesus diz: «Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim» (João 12,32), anotando depois o narrador: «Olharão para Aquele que transpassaram» (João 19,37). Em Nazaré, Jesus começou assim a sua homilia: «Hoje foi cumprida (passivo divino!) esta Escritura nos vossos ouvidos» (Lucas 4,21).

O texto, muito denso, bem diferente das débeis versões oficiais, salienta a força da Palavra de Deus quando é objeto de escuta qualificada. Este «Hoje» (sêmeron), que Lucas usa por oito vezes no seu Evangelho (2,11; 4,21; 5,26; 19,5; 19,9; 22,34; 22,61; 23,53), tornou-se clássico nas homilias dos Padres gregos. Neste seu primeiro ensinamento, Jesus como que não diz nada de novo! Na sua boca estão só palavras antigas! Excelente maneira de Jesus se apresentar como «Filho da Escritura», Leitor e conhecedor da Escritura: lê os Profetas (Isaías) e aponta para a Lei (Deuteronómio), o Livro do «Hoje» (70 vezes) e do «Escuta, Israel!».

Em perfeita consonância com o Evangelho (Assembleia reunida, Leitura da Palavra, olhos fixos), aí está o belo texto de Neemias 8,2-10. Grande texto do tardio pós-exílio que mostra a Assembleia, composta por homens, mulheres e crianças desde a idade da razão, reunida, de pé, no 1.º Dia do Ano (Dia de Ano Novo), para escutar com atenção e compreender até às lágrimas a Palavra do Senhor. Esdras, o sacerdote, está também de pé num estrado de madeira feito de propósito, e todos levantam os olhos para ele. A liturgia começa, como é usual, com a «bênção sacerdotal» (Números 6,23-26), a que o povo responde «Amen» com as mãos levantadas, gesto fundamental que indica plena compreensão e total adesão.

O Novo Testamento mostrará o novo Sacerdote, que é Cristo, no novo estrado de madeira, que é a Cruz, novo Livro da Escritura de Deus, onde São Paulo lê para nós: «Jesus Cristo exposto por escrito (proegráphê), crucificado (estaurôménos» (Gálatas 3,1), que atrai, como já atrás referimos, os olhos de todos (João 19,37).

Quase no final, mas ainda próximos do Oitavário de Oração pela Unidade dos Cristãos, são oportuníssimas as palavras que o Apóstolo Paulo, Apóstolo da Unidade, dirige aos cristãos de Corinto (1 Coríntios 12,12-30) e a nós também. Diz ele que as nossas diferenças não são uma praga ou uma chaga, mas uma graça para partilhar com alegria em vista da utilidade comum. Não nos podemos, portanto, habituar à separação! Temos de compreender o escândalo que constitui a separação (também das Igrejas Cristãs): qual de nós aceitaria de bom grado que o seu próprio corpo fosse mutilado ou amputado? Então como podemos aceitar que o seja o Corpo de Cristo?

Neste Domingo, é a Assembleia unida porque reunida pela Palavra, que está no centro das atenções: é a Assembleia de Nazaré, é a Assembleia que nos mostra o Livro de Neemias, é também a nossa Assembleia Dominical, que hoje se reúne à volta do Senhor Ressuscitado, nossa Alegria e nossa Esperança. «Não abandonemos, então, a nossa Assembleia, como alguns costumam fazer», oportuníssima exortação da Carta aos Hebreus (10,25).

Refere, a propósito, um antigo conto judaico: «Vira e revira a Palavra de Deus, porque nela está tudo. Contempla-a, envelhece e consome-te nela. Não te afastes dela, porque não há coisa melhor do que ela». E o Salmo 19, que hoje cantamos, ensina-nos que Deus ilumina o universo com o fulgor do sol, e ilumina o homem com o fulgor da sua Palavra revelada que a Escritura Santa carinhosamente guarda

 D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – III DTC – Ano C – 23.01.2022 (Ne 8,2-4a.5-6.8-10)
  2. Leitura II – III DTC – Ano C – 23.01.2022 ( 1 Cor 12, 12-30)
  3. III DTC – Ano C – Domingo da Palavra de Deus – 23.01.2022 – Lecionário
  4. III DTC – Ano C – Domingo da Palavra de Deus – 23.01.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

II Domingo do Tempo Comum – Ano C – 16.01.2022

1Ao terceiro dia, celebrava-se uma boda em Caná da Galileia e a mãe de Jesus estava lá.
Jo 2,1

Viver a Palavra

Depois da celebração festiva do Natal do Senhor e das festas nele celebradas, o calendário litúrgico propõe alguns Domingos do Tempo Comum até ao início do Tempo da Quaresma. No Tempo Comum, ao contrário dos outros tempos litúrgicos, não celebramos nenhum mistério em específico da vida do Senhor ou a sua respetiva preparação, mas a totalidade do mistério de Cristo na normalidade e no quotidiano da vida. É a celebração da presença sempre viva e atuante de Deus na história que, em cada tempo e em cada lugar, realiza a Sua obra de amor e escreve em nós e, a partir de nós, no mundo, a Sua história de salvação. Percorremos com Jesus os caminhos da missão e aprendemos no caminho, com Ele e como Ele, a obediência à vontade do Pai, a fidelidade ao Seu desígnio salvífico e a abertura ao horizonte da graça onde se inscrevem as nossas vidas.

Escutamos o capítulo segundo do Evangelho de S. João, acompanhando o início da atividade de Jesus. Depois do evangelista ter apresentado a Palavra que se faz carne, o Baptista que se faz Sua voz e os primeiros discípulos que acolhem o seu testemunho, descreve a aventura de Jesus com aqueles que o acompanham e se cruzam com Ele. O início da Sua missão contrasta com o que seria expectável na tradição religiosa vigente: oferece vinho para a embriaguez de umas núpcias e expulsa os vendedores do Templo, derrubando as mesas dos cambistas. Esta cena inicial, tal como o batismo nos sinópticos, leva-nos a compreender que Deus é escandalosamente diferente daquilo que são as nossas estruturas humanas e os nossos esquemas lógicos, puramente racionais, que Deus excede sempre.

O primeiro sinal de Jesus no Evangelho de S. João consiste em juntar mais de 600 litros de vinho a um banquete nupcial! O que teria a dizer sobre isto João Baptista, o asceta do deserto? Porventura, ainda hoje, não fosse Jesus o autor de tal ato, e estariam alguns a condenar o excesso de vinho e a falta de abstinência e disciplina.

Abundância e excessos caracterizam a ação de Deus revelada em Jesus Cristo: abundância de amor pelo excesso de misericórdia derramada e manifestada. Quando fazemos como os noivos de Caná da Galileia e convidamos Jesus, Sua Mãe, os discípulos para a nossa vida, entra na nossa história a abundância de amor e de graça que nos permite percorrer com maior entusiasmo e ousadia os trilhos da história. É verdade que a alegria do qual o vinho novo oferecido por Jesus é sinal só será plena e duradoura depois da glória definitiva e da hora derradeira para a qual esta passagem evangélica já aponta.

Jesus adverte Sua mãe – «ainda não chegou a minha hora» – e aponta para a hora derradeira e definitiva do capítulo 19, onde confia o discípulo amado a Sua Mãe e Sua Mãe ao discípulo amado: «e, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua» (Jo 19,27). As dores e sofrimentos do tempo presente, bem como as contingências e limites da nossa condição humana pecadora não são impedimento para que Deus realize a Sua obra de amor e para que no tempo e na história se façam presentes as maravilhas de Deus.

Contamos com a presença terna e materna de Maria, a quem pedimos que em cada dia continue a levar a Jesus tudo quanto precisamos e, concomitantemente, pedimos a disponibilidade de coração para ouvir com prontidão performativa: «fazei tudo o que Ele vos disser». in Voz Portucalense

LEITURA I Is 62, 1-5

«Os povos hão-de ver a tua justiça e todos os reis a tua glória».

 

Este texto pertence a esse bloco (cap. 56-66 do Livro de Isaías) que se convencionou chamar Trito-Isaías: uma colecção de textos anónimos, redigidos em Jerusalém ao longo dos séc. VI e V a.C. (embora alguns considerem que este texto pode ser do Deutero-Isaías, pelos pontos de contacto que o poema apresenta com os capítulos 49, 51, 52 e 54 do Livro de Isaías).

Estamos em Jerusalém, na época pós-exílica. Ainda se notam em todos os cantos da cidade as marcas da destruição. Os poucos habitantes da cidade vivem em condições de extrema pobreza; perseguidos pelo fantasma da humilhação passada, acossados pelos inimigos, esperam a restauração do Templo e sonham com uma Jerusalém nova, outra vez bela e cheia de “filhos”, que viva, finalmente, em paz.in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 95 (96)

Refrão: Anunciai em todos os povos as maravilhas do Senhor

 

LEITURA II – 1 Cor 12, 4-11

«É um só e o mesmo Espírito que faz tudo isto, distribuindo os dons a cada um conforme Lhe agrada».

 

Os capítulos 12-14 da primeira Carta de Paulo aos Coríntios constituem uma secção consagrada ao bom uso dos “carismas”. “Carisma” é uma palavra tipicamente paulina (aparece 14 vezes nas cartas de Paulo e só uma vez no resto do Novo Testamento) que, num sentido amplo, designa qualquer graça (“kharis”) ou dom concedido por Deus, independentemente do posto que a pessoa ocupa dentro da hierarquia eclesial. Num sentido mais restrito e mais técnico, passou a significar certos “dons especiais” concedidos pelo Espírito a determinadas pessoas ou grupos, em benefício da comunidade. O testemunho dos escritos neotestamentários é que as primeiras comunidades cristãs conheciam de forma especial estes dons do Espírito. Isso também acontecia, segundo parece, em Corinto.

Apesar de se destinarem ao bem da comunidade, os “carismas” podiam ser mal-usados. Por um lado, podiam conduzir a uma espécie de divinização do indivíduo que os possuía colocando-o, com frequência, em confronto com a comunidade; por outro lado, nem todos possuíam carismas extraordinários e era fácil, neste contexto, serem considerados “cristãos de segunda”. Depreende-se ainda deste texto que haveria alguma discussão acerca da importância de cada “carisma” e, portanto, da posição que cada um destes “carismáticos” devia ocupar na hierarquia comunitária.

Ora, a comunidade de Corinto estava preocupada com esta questão. Estamos diante de uma comunidade com graves problemas de conflitos e de desarmonias onde, facilmente, as experiências “carismáticas” eram sobrevalorizadas em benefício próprio. Criavam, pois, com frequência, individualismo e divisão no seio da comunidade.

É a este problema que Paulo procura responder.in Dehonianos.

EVANGELHO Jo 2, 1-11

«Realizou-se um casamento em Caná da Galileia e estava lá a Mãe de Jesus».

«Foi assim que, em Caná da Galileia, Jesus deu início aos seus milagres. Manifestou a sua glória e os

discípulos acreditaram n’Ele».

Este texto pertence à “secção introdutória” do Quarto Evangelho (que vai de 1,19 a 3,36). Nessa secção, o autor apresenta um conjunto de cenas (com contínuas entradas e saídas de personagens, como se estivéssemos no palco de um teatro), destinadas a apresentar Jesus e o seu programa.

O autor declara explicitamente (cf. Jo 2,11) que o episódio pertence à categoria dos “signos” (“semeiôn”): trata-se de acções simbólicas, de sinais indicadores, que nos convidam a procurar, para além do episódio concreto, uma realidade mais profunda para a qual aponta o facto narrado. O importante, aqui, não é que Jesus tenha transformado a água em vinho; mas é apresentar o programa de Jesus: trazer &a
grave; relação entre Deus e o homem o vinho da alegria, do amor e da festa.in Dehonianos.

Para os leitores:

A proclamação da primeira leitura deve ser marcada pelo tom alegre e cheio de esperança que atravessa toda a leitura. Deve ter-se especial atenção na proclamação das palavras: «Abandonada», «Deserta», «Predileta» e «Desposada».

A proclamação da segunda leitura pede um especial cuidado. No início pelas frequentes repetições que sublinham a mensagem da unidade na diversidade que S. Paulo quer transmitir aos Coríntios. Depois pela enumeração dos dons concedidos que deve ser bem articulada para uma correta leitura e uma boa compreensão da mensagem.

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

OS SEGREDOS DAS BODAS DE CANÁ

Neste Domingo II do Tempo Comum, temos a graça de ouvir e ver a grandiosa cena do Evangelho de João 2,1-12, vulgarmente conhecida como «bodas de Caná», em que Jesus transforma em vinho excelente cerca de 600 litros de água. Caná é uma aldeia situada a uns seis quilómetros a nordeste de Nazaré. A Igreja Una e Santa é hoje de novo convidada e, por isso, se reúne (é reunida) num banquete de espanto e de alegria, para saborear o Vinho Bom (kalós) e Último, cuidadosamente guardado até Agora (héôs árti), mas Agora oferecido pelo Esposo verdadeiro, que é Jesus (João 2,1-11). O segredo deste vinho Bom e Último é conhecido dos que servem (diákonoi) (João 2,9b), mas o chefe-de-mesa (architríklinos) «não sabia “DE ONDE” (póthen) era» (João 2,9a).

E, na verdade, aquele saber ou não “DE ONDE” (póthen) era aqui anotado pelo narrador, é a questão fundamental que atravessa o IV Evangelho, e aponta permanentemente para Deus. Provocação para uma sociedade indiferente, com saber, mas sem sabor, sem frio e sem calor, morna, à deriva, sem calafrios e sem Deus, que vive em plena orfandade. E, todavia, já Nietzsche o dizia: «Ao homem que te pede lume para acender o cigarro, / se o deixares falar,/ dez minutos depois pedir-te-á Deus». Entremos, pois, por esta autoestrada repleta de sinalizações para Deus, pois ela vem de Deus, e por ela vem Deus, por amor, ao encontro dos seus filhos.

Em João 1,48, é Natanael que, atónito, pergunta a Jesus «“DE ONDE” (póthen) me conheces?». Em João 2,9, o nosso texto de hoje, é o narrador que nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia “DE ONDE” (póthen) era» a água feita vinho. Em João 3,8, é Nicodemos que não sabe, acerca do Espírito, «“DE ONDE” (póthen) vem nem para onde vai». Em João 4,11, é a mulher da Samaria que não sabe “DE ONDE” (póthen) tira Jesus a água-viva. Em João 6,5-7, é Filipe que chumba no teste que lhe faz Jesus, ao confessor que não sabe “A ONDE” (póthen) ir comprar pão para dar de comer a umas trinta mil pessoas. Em João 7,27, as autoridades de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá “DE ONDE” (póthen) Ele é». Em João 8,14, Jesus afirma, em polémica com os fariseus: «Eu sei “DE ONDE” (póthen) venho; vós, porém, não sabeis “DE ONDE” (póthen) venho». Em João 9,29, na cena da cura do cego de nascença, os fariseus afirmam acerca de Jesus: «Esse não sabemos “DE ONDE” (póthen) é», ao que, no versículo seguinte (João 9,30), com viva ironia, o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis “DE ONDE” (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!». Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos a Jesus, em João 19,9: «“DE ONDE” (póthen) és Tu?».

Demoremo-nos, pois, um pouco com o chefe-de-mesa, uma vez que é a ele que Jesus manda os servos levar o vinho novo (João 2,8). O chefe-de-mesa prova o vinho novo, e confessa a sua ignorância acerca da sua origem: de facto, «não sabia “DE ONDE” era», diz-nos o narrador (João 2,9a). A sua pergunta é, portanto, esta: «“DE ONDE” é este vinho»? Estranho é que o seguimento do texto nos mostre que o chefe-de-mesa passe ao lado da sua própria pergunta. Ele, que não sabia, podia ter perguntado aos servos, que sabiam (João 2,9b), porque tinham recebido e executado as ordens de Jesus (João 2,7-8). Em vez de se dirigir a eles, o chefe-de-mesa opta, todavia, por se dirigir ao noivo. E em vez de formular a sua pergunta acerca da origem daquele vinho, acaba simplesmente por manifestar o seu espanto pelo estranho procedimento adotado, contrário a todos os usos e costumes vigentes, de servir primeiro o vinho reles, deixando para o fim o vinho bom! (João 2,10).

É fácil constatar que esta figura do chefe-de-mesa nos é apresentada no papel de pivot no que se refere ao andamento da festa; em relação ao vinho novo e bom que lhe é levado pelos servidores, manifesta desconhecer a sua proveniência; prova-o, como lhe competia, mas não esboça qualquer vontade de querer saber mais acerca dele; limita-se a manifestar a sua estranheza pelo facto de o ritual antigo ter sido alterado. O elenco destes traços figurais leva-nos a concluir que a figura do chefe-de-mesa representa bem as autoridades judaicas tradicionais, mas também todos os senhores do mundo, todos muito habituados, bons conhecedores das convenções, mas nada sensíveis à novidade que é visível em Jesus, nada sensíveis às pessoas e aos factos, que simplesmente lhes parecem saídos na roda do destino.

Os servos, que recebem e cumprem as ordens de Jesus, que dão o vinho novo e bom a provar aos judeus tradicionais e a toda a humanidade, são os discípulos de Jesus, que sabem a proveniência de Jesus, e sabem também discernir o «significado» deste primeiro «sinal» (sêmeíon) que Jesus fez» (João 2,11). O IV Evangelho apresenta, de resto, no seu corpo, sete sinais que requerem interpretação. Já vimos o primeiro. O segundo é a cura de uma criança gravemente doente, expressamente referido como segundo sinal (João 4,43-54). Vêm a seguir a cura de um paralítico (João 5,1-9), a multiplicação dos pães para cinco mil homens (João 6,1-15), Jesus a caminhar sobre as águas (João 6,16-21), a cura de um cego de nascença (João 9,1-12) e a ressurreição de Lázaro (João 11,1-44).

«A mãe de Jesus estava lá», diz-nos logo de entrada o narrador (João 2,1). Sintomático que, tendo ela sido apresentada como «mãe de Jesus» por duas vezes (João 2,1 e 3), pouco depois Jesus a trate por «mulher» (João 2,4), e não por «mãe». Este singular tratamento por «mulher» em vez de «mãe» tem sido muitas vezes visto como ríspido, distante e nada afetuoso da parte de Jesus. O mesmo tratamento por «mulher», e não por «mãe», aparece no Calvário também nos lábios de Jesus (João 19,26). Na verdade, esconde-se, neste tratamento por «mulher», um verdadeiro tesouro. A «mulher» é muitas vezes na Escritura o símbolo do Povo de Deus, e, mais concretamente de Sião-Jerusalém personificada como Esposa amada, Enlevo e Alegria de Deus, o Esposo (Isaías 54,5-7; 62,1-5), e como mãe embevecida dos filhos de Deus (Isaías 49,21; 60,1-4).

«Não têm vinho!», observa a mãe de Jesus, falando para Jesus (João 2,3). É uma observação de mãe atenta e de serva feliz, que está ali para amar e servir! A resposta de Jesus: «O que há entre mim e ti, mulher? Ainda não chegou a minha hora» (João 2,4), tem sido igualmente vista como uma resposta ríspida de Jesus à sua mãe. Na verdade, é uma daquelas frases que pode assumir duas valências opostas, conforme o tom de voz com que é dita. Tanto pode ser, de facto, uma resposta ríspida e de rutura, como pode ser, ao contrário, uma resposta de grande deferência e carinho. É óbvio que aqui é uma resposta de grande deferência e terno amor filial de Jesus. É como se Jesus dissesse: «Mulher, grande mulher, mulher messiânica, Aquela que atravessa em contraluz toda a Escritura Santa, que trouxeste até aqui nos teus braços a Esperança de um povo, porque precisas de mo pedir? Tu sabes bem que Eu o faço, e é já». E a mãe de Jesus, nunca chamada Maria no IV Evangelho, entendeu bem esta resposta (nós, pelos vistos, é que não). Sinal disso é que diz para os servos: «Fazei tudo o que Ele vos disser!».

Como Jesus dirá mais tarde – e diz hoje para nós – também no contexto de um banquete, a Eucaristia, em que somos nós os convidados: «Fazei isto em memória de Mim!».

«Estava lá a mãe de Jesus», como «estavam lá seis talhas», grandes e vazias (João 2,6). Mãe e Mulher da esperança, talhas vazias, mas que serão cheias de esperança até ao cimo. Delas jorrará o vinho novo e bom, até agora guardado para nós. Tempo novo e pleno do Amor de Deus. É Ele que servirá o banquete de carnes suculentas e vinhos deliciosos (Isaías 25,6).

O banquete Novo, Bom e Último do Reino de Deus, com o Vinho Bom e Último, até agora guardado na esperança, é agora cuidadosamente servido. É sabido que a tradição judaica descrevia com muito vinho o tempo da vinda do Messias, referindo que, nesse tempo, cada videira teria mil ramos, cada ramo mil cachos, cada cacho mil bagos, cada bago daria 460 litros de vinho! Que saber e sabor é o nosso? Sabemos e saboreamos a Alegria do Banquete nupcial? Servimos para servir este Amor, esta Alegria? Não esqueçamos que é este o «terceiro Dia!» (João 2,1), que agrafa esta Alegria à Alegria nova da Ressurreição ao «terceiro Dia», «sinal» para a Glória e para a Fé (João 2,11).

A página de hoje do Antigo Testamento é Isaías 62,1-5. Um simples relance de olhos por esta sublime paisagem textual de Isaías é suficiente para fazer ressaltar os acordes com o Evangelho de hoje. A cidade de Jerusalém (personificação de Israel), depois de experimentar o abandono e a desolação do Exílio, é agora olhada como uma noiva, desposada com Deus, seu Criador que, para o efeito, a recria, dando-lhe um nome novo, linguagem genesíaca (Génesis 1,1-4). E a alegria nupcial voltará a iluminar o rosto da cidade. É ainda dito, dentro do mesmo colorido, que a cidade-noiva será uma coroa (ʽatharah) nas mãos do Senhor, como o Livro dos Provérbios refere que «a esposa é a coroa (ʽatharah) do marido» (Provérbios 12,4). Belíssima linguagem nupcial, elevada dignidade para Jerusalém e para nós.

A comunidade cristã não pode ser vaidosa, autorreferencial, egoísta e individualista, como parecia ser Corinto, aos olhos de São Paulo (1 Coríntios 12,4-11). A comunidade bela e harmoniosa funciona como um corpo, é composta de irmãos, e todos têm em vista o bem comum. Os dons de cada um são para proveito de todos, e não para própria vanglória. Por isso, os dons são diferentes, é o Espírito que os distribui, e, postos em comum, servem para edificar a comunidade bela e harmoniosa. Como é hoje oportuno fazermos esta verificação nas nossas comunidades.

Comunidade bela e harmoniosa. Sujeito adequado e preparado pelo Espírito para cantar o «cântico novo» cujos tons nos dá hoje o Salmo 96, um Salmo que nos põe a cantar a Realeza de YHWH e as suas maravilhas. O melhor antídoto para o nosso culto tantas vezes apenas formal é uma fé coral que nos faz olhar, não tanto para o passado, mas para o futuro, para a notícia boa de um Deus que vem com um grande SIM para o nosso mundo. O «cântico novo» não nos põe a cantar hoje como ontem, mas hoje como amanhã.

D. António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I – II DTC – Ano C – 16.01.2022 (Is 62, 1-5)
  2. Leitura II – II DTC – Ano C – 16.01.2022 (1Cor 12, 4-11)
  3. II Domingo Tempo Comum – Ano C – 16.01.2022 – Lecionário
  4. II Domingo Tempo Comum – Ano C – 16.01.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Festa do Batismo do Senhor – Ano C – 09.01.2022

Viver a Palavra

A liturgia deste domingo tem como cenário de fundo o projeto salvador de Deus. No Batismo de Jesus nas margens do Jordão, revela-se o Filho amado de Deus, que veio ao mundo enviado pelo Pai, com a missão de salvar e libertar os homens. Cumprindo o projeto do Pai, Jesus fez-Se um de nós, partilhou a nossa fragilidade e humanidade, libertou-nos do egoísmo e do pecado, empenhou-Se em promover-nos para que pudéssemos chegar à vida plena. in Dehonianos

LEITURA I – Is 42, 1-4.6-7

O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C.; os judeus exilados estão frustrados e desorientados pois, apesar das promessas do profeta Ezequiel, a libertação tarda… Será que Deus se esqueceu do seu Povo? Será que as promessas proféticas eram apenas “conversa fiada”?

O Deutero-Isaías aparece, então, com uma mensagem destinada a consolar os exilados. Começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”: ele é um predileto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.

O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro cântico do “Servo” (cf. Is 42,1-9). É possível que a personagem a quem este primeiro cântico se refere seja Ciro, rei dos persas, o homem a quem Deus confiou a libertação do seu Povo. in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 28 (29)
Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.

 

LEITURA II – Atos 10, 34-38

Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram e continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste mundo – a todos os homens.

O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf. Act 1-12), a reflexão apresenta-nos a difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; a segunda (cf. Act 13-28) apresenta-nos a expansão do Evangelho fora da Palestina (até Roma), sobretudo por ação de Paulo.

O nosso texto de hoje está integrado na primeira parte dos “Atos”. Insere-se numa perícope que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cf. Act 9,32-11,18) – isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. Act 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. Act 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é o primeiro pagão a cem por cento a ser admitido ao cristianismo por um dos Doze: significa que a vida nova que nasce de Jesus se destina a todos os homens, sem exceção.in Dehonianos.

EVANGELHO Lc 3,15-16.21-22

O Evangelho deste domingo apresenta o encontro entre Jesus e João Baptista, nas margens do rio Jordão. Na circunstância, Jesus foi batizado por João.

João Baptista foi o guia carismático de um movimento de cariz popular, que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. A sua mensagem estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água.

O “batismo” proposto por João não era, na verdade, uma novidade insólita. O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água, sempre ligados a contextos de purificação ou de mudança de vida. O “mergulhar na água” era, inclusive, um rito usado na integração dos “prosélitos” (os pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus.

Na perspetiva de João, provavelmente, este “batismo” era um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este “batismo” renunciava ao pecado, convertia-se a uma vida nova e passava a integrar a comunidade do Messias.

O que é que Jesus tem a ver com isto? Que sentido faz Ele apresentar-se a João para receber este “batismo” de purificação, de arrependimento e de perdão dos pecados?

Para Lucas, João Baptista é a última testemunha de um tempo salvífico que está a chegar ao fim: o tempo da antiga Aliança (cf. Lc 16,16). O aparecimento em cena de Jesus significa o começo de um novo tempo, o tempo em que o próprio Deus vem ao mundo, feito pessoa humana, para oferecer à humanidade escravizada a vida e a salvação. No episódio do “batismo” revela-se, desde logo, a missão específica e a verdadeira identidade de Jesus.

Em toda a secção (cf. Lc 3,1-4,13), Lucas segue o texto de Marcos (cf. Mc 1,1-13), completado com algumas tradições provenientes de uma outra “fonte”, formada por “ditos” de Jesus. in Dehonianos.

 

Para os leitores:

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O CÉU ABERTO E DEUS AQUI TÃO PERTO

 

Passado o Advento e as Festas Natalícias, estamos agora no umbral do chamado «Tempo Comum» do Ano Litúrgico que, ao contrário do que se possa pensar, não é um «Tempo secundário», mas fundamental na vida celebrativa da Igreja Una e Santa. Na verdade, ao longo deste «Tempo Comum», Domingo após Domingo, a Igreja Una e Santa, Batizada e Confirmada, Esposa Amada de Cristo, é chamada a contemplar de perto, episódio após episódio, toda a vida histórica do seu Senhor, desde o Batismo no Jordão até à Cruz e à Glória da Ressurreição.

Esta apresentação só é possível porque, em cada um dos Anos Litúrgicos, é proclamado, Domingo após Domingo, praticamente em lição contínua, um Evangelho inteiro. Neste Ano C, é-nos dada a graça de ouvir o Evangelho de Lucas, que tem uma vincada identidade e personalidade Missionária, mas que é apresentado ainda como sendo o Evangelho do Espírito Santo, o Evangelho da Oração, o Evangelho da Graça (único dos Evangelhos Sinóticos a empregar este termo) e da Alegria, e o Evangelho onde Jesus «visita» e se encontra HOJE (8 vezes no Evangelho de Lucas) com o mais alargado leque de pessoas: pobres, ricos, pecadores, doentes, idosos, mulheres, viúvas, crianças…

O Primeiro Domingo do «Tempo Comum», porta de entrada no nosso tempo existencial e celebrativo, coincide sempre com a Festa do Batismo do Senhor Jesus no Jordão, este ano narrada em Lucas 3,15-22.

Aqui ficam algumas notas caraterísticas deste episódio de Lucas: A) Neste dealbar da vida pública de Jesus, é dito que todo o povo está em febril expetativa e se pergunta se João não será o Messias esperado. B) João responde claramente que não é o Messias, mas aquele que prepara a Vinda do Messias, reunindo o povo e voltando-o para o Senhor, cumprindo quanto disse o Anjo a Zacarias: «fará voltar o coração dos pais para os filhos e o coração dos filhos para os pais (…), para preparar para o Senhor um povo pronto a recebê-lo» (Lucas 1,17; cf. Malaquias 3,24 acerca de Elias). C) Cumprida esta sua missão, João sai de cena, pois é metido na prisão por Herodes Antipas (Lucas 3,19-20), não estando, portanto, presente na cena do Batismo de Jesus! D) Em Lucas, João não entra nas praias do Novo Testamento. Escreve: «A Lei e os Profetas até João; daí para a frente, é evangelizado o Reino de Deus» (Lucas 16,16). Por isso, e ao contrário do que sucede em Mateus e Marcos, que dão a notícia da prisão de João depois do Batismo de Jesus (Mateus 4,12; Marcos 1,14), Lucas fá-lo prender antes do Batismo de Jesus, com a intenção clara de que seja o Espírito Santo a batizar Jesus (veja-se a rutura entre Lucas 3,20 e 21). O Evangelho de Lucas é também chamado o Evangelho do Espírito Santo; daí, o protagonismo dado ao Espírito Santo. E) O narrador faz-nos ver outra vez o povo todo reunido e batizado, antes de nos pôr a todos a contemplar a primeira ação de Jesus batizado com o Espírito: Jesus em Oração, tema caro a Lucas (é também chamado o Evangelho da Oração), e, no contexto do Batismo, exclusivo de Lucas! F) O narrador desenha logo a seguir uma verdadeira coreografia celeste: o céu aberto, o Espírito Santo que desce como uma pomba (tempo novo: a pomba sai da Palestina em setembro/outubro e regressa com a Primavera), uma voz vinda do céu, isto é, de Deus, declarando, de acordo com o Salmo 2,7: «Tu és o meu Filho, o Amado, em Ti pus o meu enlevo» (Lucas 3,21-22).

A partir do Batismo de Jesus no Jordão, é missão da Igreja Una e Santa, toda Batizada e Confirmada, viver esta intimidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo, e seguir o seu Senhor, passo a passo, ao longo do inteiro Ano Litúrgico, para ver bem como faz Jesus, o Filho Amado, Batizado com o Espírito Santo. O que faz Jesus e como faz Jesus, é quanto devemos fazer nós também, dado que também nós fomos Batizados com o Espírito Santo e elevados à condição de filhos adotivos (Gálatas 4,4-7).

Pelos motivos expostos, o Jordão é o rio de Cristo e dos cristãos. E, por esta razão, muitas Igrejas Orientais chamam «Jordão» à água da fonte batismal, que todos os anos é benzida precisamente neste Dia da Festa do Batismo do Senhor.

Ilustra bem o episódio do Batismo de Jesus no Jordão o chamado «Primeiro Canto do Servo do Senhor» (Isaías 42,1-7), que hoje temos também a graça de ouvir, que põe em cena Deus e o seu Servo. Deus chama este Servo «meu Servo», diz que o segura e sustenta e que lhe dá o seu Espírito, e confia-lhe uma missão em ordem à verdade e à justiça, à mansidão e ao ensino, à libertação e à iluminação, entenda-se, à vida em plenitude, de todas as nações.

Verdadeiramente, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, leva pela mão e modela. Linguagem de criação, confidência e providência.

Há ainda a registar uma expressão forte para dizer a missão de mansidão confiada por Deus a este seu Servo: «Não fará ouvir desde fora a sua voz». Ora, se não faz ouvir a sua voz desde fora, só a pode fazer ouvir desde dentro. O grande pensador do século XX, de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas, este texto em sentido messiânico, escrevendo que «o Messias é o único Rei que não reina desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder, dinheiro, armas ou decretos. Se não reina desde fora, então só pode reinar desde dentro, aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as pessoas. Jesus vai assumir a identidade deste Servo e vai cumprir por inteiro a sua missão.

E não nos esqueçamos que a sua bela missão de Filho e de Servo terá de ser também a nossa bela missão de filhos e de servos.

O discurso de Pedro em Cesareia Marítima, em casa do centurião romano Cornélio, conforme a descrição do Livro dos Atos 10,34-38, dá testemunho da largueza da bondade de Deus, que faz chegar o seu amor de Pai a todas as pessoas de todas as nações, fazendo de nós um povo de filhos, irmãos e servos que seguem um único Senhor: Jesus Cristo. Seguindo este único Senhor, a mais nada e a mais ninguém reconhecemos como Senhor. Somos, portanto, chamados a ser livres e a testemunhar, empenhando toda a nossa vida, dia após dia, que, após o Batismo no Jordão, Jesus passou fazendo o bem e curando todas as pessoas necessitadas.

Para não esquecer: esta bela missão de Jesus, Batizado com o Espírito no Jordão e declarado o Filho Amado, deve ser a nossa bela missão de Batizados com o Espírito Santo e filhos amados de Deus. É ainda como filhos que devemos hoje entoar também as notas deste Gloria in excelsis Deo do Antigo Testamento, que é o belíssimo Salmo 29. A voz (qôl) que por sete vezes se ouve no Salmo bem pode ser a Voz do Pai que se dirige ao Filho no Batismo do Jordão e continua a ressoar na pregação Apostólica como se do setenário dos dons do Espírito Santo ou dos Sacramentos se tratasse. Escreveu São Gregório Magno: «A voz de Deus troa admiravelmente porque, como força escondida, penetra nos nossos corações».

  António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – Batismo do Senhor – Ano C – 09.01.2022 (Is 42, 1-4.6-8)
  2. Leitura II – Batismo do Senhor – Ano C – 09.01.2022 (Atos 10, 34-38)
  3. Batismo do Senhor – Ano C – 09.01.2022 – Lecionário
  4. Batismo do Senhor – Ano C – 09.01.2022 – Oração Universal
  5. ANO C – Ano de Lucas

Solenidade de Santa Maria – Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 – 55º Dia Mundial da Paz

e

Domingo da Epifania – Ano C – 02.01.2022

Viver a Palavra

Solenidade de Santa Maria – Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 – 55º Dia Mundial da Paz

Neste dia, a liturgia coloca-nos diante de evocações diversas, ainda que todas importantes. Celebra-se, em primeiro lugar, a Solenidade da Mãe de Deus: somos convidados a olhar a figura de Maria, aquela que, com o seu sim ao projeto de Deus, nos ofereceu a figura de Jesus, o nosso libertador. Celebra-se, em segundo lugar, o Dia Mundial da Paz: em 1968, o Papa Paulo VI quis que, neste dia, os cristãos rezassem pela paz. Celebra-se, finalmente, o primeiro dia do ano civil: é o início de uma caminhada percorrida de mãos dadas com esse Deus que nunca nos deixa, mas que em cada dia nos cumula da sua bênção e nos oferece a vida em plenitude. As leituras de hoje exploram, portanto, diversas coordenadas. Elas têm a ver com esta multiplicidade de evocações.in Dehonianos

LEITURA I – Num 6,22-27

O texto da leitura que nos é proposta é retirado da primeira parte do Livro dos Números. No contexto das últimas instruções de Jahwéh a Moisés antes de os filhos de Israel deixarem o Sinai, apresenta-se uma “bênção” que os “filhos de Aarão” (sacerdotes) deviam pronunciar sobre a comunidade do Povo de Deus. Provavelmente, trata-se de uma fórmula litúrgica utilizada no Templo de Jerusalém para abençoar a comunidade, no final das funções litúrgicas e que aqui é apresentada como um dom de Deus no Sinai.

A “bênção” (“beraka”) é concebida como uma comunicação de vida, real e eficaz, que atinge o “abençoado” e que lhe traz vigor, força, êxito, felicidade. É um dom que, uma vez pronunciado, não pode ser retirado nem anulado. Aqui, essa comunicação de vida, fruto da generosidade de Deus, derrama-se sobre os membros da comunidade por intermédio dos sacerdotes – no Antigo Testamento, os intermediários entre o mundo de Jahwéh e a comunidade israelita. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 66 (67)

Refrão: Deus Se compadeça de nós e nos dê a sua bênção.

 

LEITURA II – Gal 4,4-7

O contexto em que Paulo escreve a Carta aos Gálatas é o de uma profunda crise de identidade das Igrejas da Galácia. À região gálata (no centro da Ásia Menor) tinham chegado pregadores que acusavam Paulo de não pregar o verdadeiro Evangelho e que exigiam aos Gálatas a observância fiel da Lei de Moisés, nomeadamente o rito da circuncisão. Estes “pregadores”, oriundos das comunidades judeo-cristãs da Palestina, são conhecidos na história do cristianismo primitivo como “judaizantes”.

Paulo percebe o mal que estes “pregadores” estão a fazer. Eles pretendem transformar o cristianismo numa religião de ritos, num cumprimento de regras externas, numa escravatura a rituais que não tinham nada a ver com a proposta libertadora de Cristo. De forma dura, ele convida os Gálatas a fazer a sua escolha: ou pela escravidão da Lei, ou pela liberdade que Cristo veio trazer.

No texto que nos é proposto, Paulo recorda aos Gálatas a incarnação de Cristo e o objetivo da sua vinda ao mundo: fazer de nós “filhos de Deus” livres. in Dehonianos.

EVANGELHO Lc 2, 16-21

O texto do Evangelho de hoje é a continuação daquele que foi lido na noite de Natal: após o anúncio do “anjo do Senhor” (noite de Natal), os pastores dirigem-se a Belém e encontram o menino. Mais uma vez, Lucas não está interessado em fazer a reportagem do nascimento de Jesus e das “visitas” que, então, o menino de Belém recebeu, mas antes em apresentar Jesus como o libertador, que veio ao mundo com uma mensagem de salvação para todos os homens – e, especialmente, para os pobres e marginalizados, aqui representados pela classe dos pastores.in Dehonianos.

Para os leitores:

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

SANTA MARIA, MÃE DE DEUS, RAINHA DA PAZ

Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2022, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.

A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre (na riqueza espiritual que o termo contém), com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, ao mesmo tempo que se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada e bem-aventurança, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.

O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria guardava (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), compondo-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, guardava todas estas Palavras que aconteceram, compondo-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a guardar com ternura todas estas Palavras que acontecem, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo guardar implica atenção cheia de ternura, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este guardar atencioso e carinhoso não é um ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração.

O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a compor, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a organizar, para melhor entender. É como quem, com aquelas Palavras, compõe um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria. E é dito ainda, num pleonasmo único na Escritura Santa, que Maria «concebeu no ventre» (syllambánô en tê koilía) (Lucas 2,21). Redundância. Música divina. O ventre de Maria em consonância com o «ventre de misericórdia do nosso Deus» (Lucas 1,78), causa da Luz que nas alturas se levanta e visita toda a gente, causa do Rebento que na nossa terra germina, que a nossa terra aquece e alumia, Jesus, filho de Deus e de Maria, a quem neste oitavo Dia é posto o Nome.

Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Hoje é já o 55.º Dia Mundial da Paz que se celebra. A paz é uma refeição saborosa, servida por Deus aos seus filhos. Chega, portanto, a todos, pastores, fiéis leigos e a todos os homens de boa vontade, e a todos sacia e envia a desenhar um mundo novo e feliz para todos, hoje, amanhã e sempre. Esta paz saborosa atinge-nos em cheio, pois todos estamos imersos no lodaçal da indiferença, talvez a mais grave doença que afeta a humanidade deste tempo sem horizontes. Na verdade, nesta «noite do mundo» em que domina o princípio da necrofilia, a nefasta atração pela morte, tudo nos aparece sem rosto e sem rumo. É preciso, portanto, abrir os olhos, dar asas aos nossos sonhos belos, dar as mãos e ter a coragem de recomeçar. Que não nos fechemos no mundo egocêntrico, egolátrico e autorreferencial da hipertrofia do «eu» que pensa que se basta a si mesmo, e não precisa de nada nem de ninguém, conforme o paradigma de Laodiceia. Contra a sedução das ideologias, que não salvam ninguém, de reduzir o mundo e o homem a três dimensões – comprimento, largura e altura –, anulando o horizonte de Deus, compete-nos a todos dar um novo rosto à família, à escola, à política, aos media, e remarmos todos juntos para construir novas atitudes e novas relações estáveis e felizes, assentes na gratuidade, na fraternidade e no amor, novos cenários que proporcionem que chegue a todos os homens o mundo belo que Deus a todos reparte dia após dia. É preciso educar para a paz, isto é, educar para sabermos acolher o outro, diferente de nós, e olhar para ele com amor e sem preconceitos. Educar, na sua etimologia latina, de educere, significa, não levar para dentro de qualquer prisão do «eu» ou outra, mas conduzir para fora de si mesmo, ao encontro dos outros e da realidade. E é sempre bom lembrar que a justiça é o sabor que vem de Deus, e a paz não é a paz romana, assente no poder das armas, nem a paz do judaísmo palestinense, assente nos acordos entre as partes. A paz é um Dom de Deus! Portanto, mais do que conquistá-la, é preciso recebê-la e partilhá-la.

De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde./ O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável./ O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste bem que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Ámen

António Couto

 

Domingo da Epifania – Ano C – 02.01.2022

 

Viver a Palavra

A Liturgia da Festa da Epifania tem como tema a luz. Não há trevas no mundo que resista à luz de Cristo. Os Reis Magos procuram a verdade com o coração revestido de humildade e, iluminados pelo Cristo, mudam as suas atitudes, a direção de suas vidas. Nos presentes oferecidos ao Menino, está o reconhecimento de quem realmente Ele é, e a missão que veio realizar entre os homens: O ouro simboliza sua realeza; o incenso, sua divindade e a mirra, sua humanidade.

LEITURA I Is 60,1-6

A primeira leitura de hoje integra um bloco a que se convencionou chamar “TritoIsaías” (cap. 56-66 do Livro de Isaías). Para alguns, são textos de um profeta anónimo, pós-exílio, que exerceu o seu ministério em Jerusalém, entre os retornados da Babilónia, nos anos 537/520 a.C.; para a maioria, trata-se de textos que provêm de uma pluralidade de autores e que foram redigidos ao longo de um arco de tempo relativamente longo (provavelmente, entre os séc. VI e V a.C.). Seja como for, estamos na época a seguir ao regresso do exílio da Babilónia e numa Jerusalém ainda bem marcada pelo sofrimento passado e pela pobreza presente.

O texto que nos é proposto é uma glorificação de Jerusalém, a cidade da luz (pela sua situação geográfica, a cidade é iluminada desde o nascer do dia até ao pôr do sol). Ainda há pouco tempo a cidade estava vazia e em ruínas, num quadro de noite e escuridão; agora, já terminou a humilhação, mas a cidade espera ainda a restauração do Templo, uma população mais numerosa e uma tranquilidade maior. in Dehonianos

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 71 (72)

Refrão: Virão adorar-Vos, Senhor, todos os povos da terra.

LEITURA II – Ef 3,2-3a.5-6

Quando Paulo escreve a Carta aos Efésios, está preso – não sabemos se em Cesareia, em Roma, ou em qualquer outro lugar. É um Paulo de uma reflexão e uma catequese já bem amadurecidas que escreve este texto. A carta (talvez uma “carta circular”, enviada a várias comunidades cristãs da Ásia Menor) parece apresentar uma espécie de síntese do pensamento Paulino.

O tema central da Carta aos Efésios é aquilo a que Paulo chama “o mistério”: o desígnio (ou projeto) salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja. in Dehonianos.

EVANGELHO – Mt 2,1-12

Na Solenidade da Epifania do Senhor, a liturgia apresenta-nos a visita dos Magos ao menino de Belém. Trata-se de um episódio que, ao longo dos séculos, tem provocado um impacto considerável nos sonhos e nas fantasias dos cristãos … No entanto, não estamos diante de uma reportagem jornalística que faz a cobertura da visita oficial de três chefes de Estado a outro país; estamos diante de uma catequese sobre Jesus, destinada a apresentar Jesus como o salvador/libertador de todos os homens. in Dehonianos.

Para os leitores:

 

I Leitura:

(ver anexo)

II Leitura:

(ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

 

GUIADOS POR UMA ESTRELA

 

«Eu o vejo, mas não agora, eu o contemplo, mas não de perto: uma estrela desponta (anateleî) de Jacob, um cetro se levanta de Israel» (Números 24,17). Assim fala, com uns olhos muito claros postos no futuro, um profeta de nome Balaão, que o Livro dos Números diz ser oriundo das margens do rio Eufrates (Números 22,5), uma vasta região conhecida pelo nome de «montes do Oriente» (Números 23,7).

Do Oriente são também os Magos, que enchem o Evangelho deste Dia (Mateus 2,1-12), e que representam a humanidade de coração puro e de olhar puro que, agora e de perto, sabe ler os sinais de Deus, sejam eles a estrela que desponta (anateleî) (2,2 e 9) ou o sonho (2,12), uma e outro indicador de caminhos novos, insuspeitados. Surpresa das surpresas: até para casa precisamos de aprender o caminho, pois é, na verdade, um caminho novo! (2,12). Excelente, inteligente, o grande texto bíblico: Balaão vem do Oriente, e os Magos também. O texto grego diz bem, no plural, «dos Orientes» (ap’anatolôn). Só a estrela que desponta (anatolê / anatoleî), no singular, pode orientar a nossa humanidade perdida no meio da confusão do plural.

De resto, já sabemos que, na Escritura Santa, a Luz nova que no céu desponta (Lucas 1,78; 2,2 e 9; cf. Números 24,17; Isaías 60,1-2; Malaquias 3,20) e o Rebento tenro que entre nós germina (Jeremias 23,5; 33,15; Zacarias 3,8; 6,12) apontam e são figura do Messias e dizem-se com o mesmo nome grego anatolê (tsemah TM) ou forma verbal anatéllô. Esta estrela (anatolê) que arde nos olhos e no coração dos Magos está, portanto, longe de ser uma história infantil. Orienta os passos dos Magos e, neles, os de toda a humanidade para a verdadeira ESTRELA que desponta e para o REBENTO que germina, que é o MENINO. E os Magos e, com eles, a inteira humanidade orientam para aquele MENINO toda a sua vida, que é o que significa o verbo «ADORAR» (proskynéô). Esta «adoração» pessoal é o verdadeiro presente a oferecer ao MENINO.

Note-se a expressão recorrente «o Menino e sua Mãe» (Mateus 2,11.13.14.20.21) e o contraponto bem vincado com «o rei Herodes perturbado e toda a Jerusalém com ele» (Mateus 2,3), que abre já para a rejeição final de Jesus. Veja-se também a alegria que invade os magos à vista da sua estrela, ainda antes de verem o Menino (Mateus 2,10), que evoca já a alegria das mulheres, ainda antes de verem o Senhor Ressuscitado (Mateus 28,8). Veja-se ainda o inútil controlo das Escrituras por parte de «todos os sacerdotes e escribas do povo», que sabem a verdade acerca do Messias, mas não sabem reconhecer o Messias (Mateus 2,4-6).

Mas, para juntar aqui outra vez os fios de ouro da Escritura Santa, nomeadamente 1 Reis 10,1-10 (Rainha de Sabá), Isaías 60 e o Salmo 72, diz o belo texto de Mateus que os Magos ofereceram ao MENINO ouro, incenso e mirra. Já sabemos que, desde Ireneu de Lião (130-203), mas entenda-se bem que isto é secundário, o ouro simboliza a realeza, o incenso a divindade, e a mirra a morte e o sepultamento.

Pode acrescentar-se ainda, mas também isto é claramente secundário, que muitos astrónomos, historiadores e curiosos se têm esforçado por identificar aquela estrela que despontou e guiou os Magos, apresentando como hipóteses mais viáveis: a) o cometa Halley, que se fez ver em 12-11 a. C.; b) a tríplice conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes, ocorrida em 7 a. C.; c) uma nova ou supernova, visível em 5-4 a. C. Esta última está registada nos observatórios astronómicos chineses. A conjunção de Júpiter e Saturno na constelação de Peixes está registada nos observatórios da Babilónia e do Egito. Johannes Kepler (1571-1630), que estudou este assunto em pormenor, dedica particular atenção aos fenómenos registados em b) e c). Note-se, porém, que a estrela dos Magos é só vista por eles, estrangeiros como Balaão, que também vê de modo diferente dos outros. Rir-se-iam, certamente, se soubessem que nós indagamos os céus com instrumentos científicos à procura da estrela que alumiava o seu coração. É assim que «muitos virão do oriente e do ocidente, isto é, de fora, e sentar-se-ão à mesa no Reino dos Céus» (Mateus 8,11). E nós, que também indagamos as Escrituras sem lhes descobrirmos o verdadeiro fio de ouro (cf. Mateus 2,4-6), poderemos ficar tragicamente fora da porta e do sentido (Mateus 8,12). Que os de fora passem à frente dos de dentro é a surpresa de Deus, e, portanto, uma constante no Evangelho (Mateus 21,33-43; 22,1-13; Lucas 13,22-29).

Está também a transbordar de sentido aquela última anotação: «Por outra estrada regressaram à sua terra» (Mateus 2,12). Sim, quem viu o que os Magos viram, quem encontrou o que eles encontraram, quem experimentou o que eles experimentaram, não pode mais limitar-se a continuar seja o que for, a andar pelos mesmos caminhos. Tudo tem mesmo de ser novo. A estrada tem de ser outra. Outra forma de vida.

Ilustra bem o grandioso texto do Evangelho de Mateus o soberbo texto de Isaías 60,1-6, que canta Jerusalém personificada como mãe extremosa que vê chegar dos quatro pontos cardeais os seus filhos e filhas perdidos nos exílios de todos os tempos e lugares. Também não falta a luz que desponta (anateleî) (Isaías 60,1) e os muitos presentes, os tais fios que se vão juntar no Evangelho de hoje, de Mateus.

Também os versos sublimes do Salmo Real 72 cantam a mesma melodia de alegria que se insinua nas pregas do coração da inteira humanidade maravilhada com a presença de Rei tão carinhoso. Também aqui encontramos a hiperbólica «idade do ouro», o grão que cresce mesmo no cimo das colinas, e a felicidade dos pobres, que serão sempre os melhores «clientes» de Deus. Extraordinária condensação da esperança da nossa humanidade à deriva.

E o Apóstolo Paulo (Efésios 3,2-3 e 5-6) faz saber, para espanto, maravilha e alegria nossa, que os pagãos são co-herdeiros e comparticipantes da Promessa de Deus em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.

Sim. Falta dizer que, no meio de tanta Luz, Presentes e Alegria para todos, vindos da Epifania, que significa manifestação de Deus entre nós e para nós, não podemos hoje esquecer as crianças e a missão. Hoje celebra-se o dia da «Infância Missionária», que gosto de ver sempre envolta no belo lema: «O Evangelho viaja sem passaporte». Para significar que o Evangelho nos faz verdadeiramente filhos e irmãos. E entre filhos e irmãos não há fronteiras nem barreiras nem muros ou qualquer separação.

Sonho um mundo assim. E parece-me que só as crianças nos podem ensinar esta lição maravilhosa.

D. António Couto

 

ANEXOS:

  1. Leitura I – Solenidade da Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 (Num 6, 22-27)
  2. Leitura II – Solenidade da Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 (Gal 4,4-7)
  3. Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 – Lecionário
  4. Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus – Ano C – 01.01.2022 – Oração Universal
  5. Leitura I – Epifania do Senhor – Ano C – 02.01.2022 (Is 60, 1-6)
  6. Leitura II – Epifania do Senhor -Ano C – 02.01.2022 (Ef 3, 2-3a.5-6)
  7. Epifania do Senhor – 02.01.2022 – Ano C – Lecionário
  8. Epifania do Senhor – 02.01.2022 – Ano C – Oração Universal
  9. ANO C – Ano de Lucas

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