Escuteiros: Igreja vista como “retrógrada” deve repensar que lugar tem na vida dos jovens

7Margens | 27 Jun 2022

A Igreja Católica deve repensar qual é o seu lugar na vida dos jovens, porque estes se afastaram da sua estrutura – por a considerarem de “mentalidade retrógrada”, desajustada dos tempos em que vivemos, que não integra homossexuais ou recasados, que não aceita a contraceção ou que não tem mulheres envolvidas nos lugares de destaque e decisão. É necessário, assim, que a Igreja saia do seu espaço físico ao encontro dos demais, considera o Corpo Nacional de Escutas na sua resposta à maior auscultação alguma vez feita à escala planetária, lançada pelo Papa Francisco, para preparar a assembleia do Sínodo dos Bispos de 2023. Esse coro imenso de vozes não pode ser silenciado, reduzido, esquecido, maltratado. O Espírito sopra onde quer e os contributos dos grupos que se formaram para ouvir o que o Espírito lhes quis dizer são o fruto maduro da sinodalidade.

A chama chega a Portugal pela mão de escuteiros do CNE. Foto © CNE

Ao iniciar as comemorações do seu centenário, o CNE [Corpo Nacional de Escutas] sentiu-se chamado a responder ao convite feito pelo Papa Francisco a toda a Igreja, de percorrer o caminho da sinodalidade, interrogando-se sobre “o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio”. Neste caminho sinodal, os escuteiros de todo o país caminharam lado a lado, juntos como irmãos, refletindo em conjunto sobre o caminho percorrido pela Igreja ao longo dos séculos, aprendendo o modo como melhor poderão “ajudar a viver a comunhão, a realizar a participação e abrir-se à missão”.
Nesta fase de consulta, foi promovida a participação das nossas crianças e jovens nos processos sinodais das suas paróquias e dioceses, dinamizada uma proposta de vivência do Sínodo nas diferentes secções e agrupamentos do Corpo Nacional de Escutas, bem como recolhidos e tratados todos os contributos das crianças, jovens e dirigentes com vista à redação da presente síntese a entregar à Conferência Episcopal Portuguesa. Como tal, partindo de um documento orientador estruturado por uma
equipa destinada para esse efeito e de dinâmicas de reflexão específicas para cada secção e para os dirigentes, procedeu-se à reflexão sinodal no seio dos diversos Agrupamentos do Corpo Nacional de Escutas. Desse modo, apresentam-se tratadas no presente documento as principais conclusões provenientes do caminho sinodal percorrido pelos escuteiros do CNE, num total de 341 escuteiros inquiridos (a saber, 188 lobitos, 60 exploradores, 53 pioneiros, 24 caminheiros e 16 dirigentes que implementaram as dinâmicas propostas e reportaram as suas conclusões à referida equipa), com vista a um contributo à Igreja que formamos e da qual fazemos parte, projetando o sonho e a esperança viva de podermos caminhar, cada vez mais, juntos como Igreja de Cristo.

1. A Igreja e a sociedade: o apelo a caminhar juntos

Interrogados pela questão fundamental e decisiva para a própria vida e missão da Igreja, proposta pelo Papa Francisco no início deste percurso sinodal, acerca do caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milénio, para as crianças, jovens e adultos, a “atualização” da Igreja constitui uma das necessidades mais urgentes. No caso dos jovens, estes referem que o principal motivo que os afasta da Igreja e os impede de caminhar juntos assenta na diferença existente entre o seu modo de pensar e a doutrina da Igreja Católica, referindo que a Igreja tem uma “mentalidade retrógrada” e desajustada dos tempos em que vivemos. Questões como a integração dos casais homossexuais e dos recasados no seio da Igreja, é apontada por muitos deles, referindo a necessidade de acolher essas mesmas pessoas na Igreja e, de forma particular, nas comunidades locais, de modo a garantir que todos os fiéis, independentemente da sua condição, possam encontrar na Igreja abrigo e refúgio e fazer a experiência do amor misericordioso de Deus por si. No seu entendimento, atualmente essas pessoas são deixadas à margem pois não têm as mesmas oportunidades que os demais fiéis no seio da Igreja. Desse modo, referem a necessidade de a Igreja debater estas questões – não apenas por parte dos clérigos ou pelos bispos reunidos em assembleia sinodal, mas sim por todos os fiéis nas demais estruturas locais, nomeadamente por eles mesmos – inaugurando um caminho de “modernização” no que diz respeito ao acolhimento destas pessoas, zelando sempre pela fidelidade a si mesma e à mensagem de Jesus Cristo.
Também a questão relativa à contraceção é apresentada como questão de contraste e oposição à “normalidade” oferecida pelo mundo, fruto da secularização, sendo considerada pelos jovens uma dimensão e um olhar desatualizado por parte da Igreja que não vai ao encontro daquilo que a sociedade vê como aceitável. Este ponto do diálogo e do caminho sinodal apresenta-se como nodal dado que se constitui como um dos principais pontos de discórdia entre os jovens do novo milénio e da Igreja que se mantém fiel ao Evangelho. Como tal, reclama-se uma “atualização” da Igreja no que diz respeito à abordagem dos principais temas, situações e dificuldades que marcam os tempos atuais, ao mesmo tempo que se espera dela a fidelidade ao Logos, Jesus Cristo, a Palavra Encarnada. Perante a escuridão e as sombras do mundo, a Igreja é chamada a ser farol seguro que ilumina os passos da humanidade sofredora, apontando o caminho da Salvação.

2. Ide e fazei discípulos (Mateus 28, 19)

Como tal, de forma a poder acompanhar e sustentar os passos da humanidade que sofre e anda errante, como ovelha sem pastor (Mt 9, 36), impõe-se à Igreja o desafio e
a necessidade de se re-transformar numa Igreja alegre e dinâmica que não se encerra em si mesma e não celebra para si, mas que sai ao encontro de todos a anunciar o Evangelho de Jesus Cristo, testemunhando a alegria da fé, adaptando a sua linguagem aos tempos atuais e acompanhando os sinais dos tempos. É necessário que a Igreja saia do seu espaço físico ao encontro dos demais, através da criação de atividades e momentos de oração e de evangelização dinâmicos, de forma que os crentes possam sentir-se estimulados a celebrar a sua fé e que os mais afastados possam sentir-se chamados a uma proximidade com Deus através da Igreja, pelo testemunho dos irmãos.
Como consequência do desvio do religioso e sua vivência da esfera pública e social para a esfera pessoal e solitária, evidenciou-se que o eixo axiológico pelo qual atualmente os fiéis regem as suas vidas é, em certa medida, coincidente com as verdades e a doutrina do cristianismo, ainda que não se apropriem dele em virtude de serem católicos ou como opção decorrente de ter a Igreja como instituição de referência nas suas vidas. O amor e o cuidado pelo próximo, o respeito pelo outro, a aceitação, a igualdade e a entreajuda, além de ensinamentos de Jesus aos seus discípulos e pilares base do cristianismo, são valores que se encontram enraizados nas sociedades atuais e, por isso mesmo, assumidos pela maioria dos cidadãos. Esta difusão da Igreja e, nomeadamente, do religioso nas sociedades deve constituir uma preocupação para todos os crentes e suscitar na própria Igreja uma ocasião de diálogo e de debate a este nível, de forma que a opção de viver segundo a proposta de Jesus possa continuar a ser uma opção radical considerada pelos fiéis, de forma livre e consciente, não permitindo que a sua fé se perca ou se desvaneça entre as seduções e os afazeres do mundo.

3. O lugar da Igreja na vida dos jovens
Capela do Acampamento Nacional dos Escuteiros, em Idanha-a-Nova: acampamentos mais sustentáveis, redução da pegada ecológica ou criação de “sementecas” são ideias propostas por várias instituições: Foto © Ricardo Perna/Flor de Lis

Sabendo que está no mundo, mas não pertence ao mundo (Cf. Jo 15, 19), a Igreja necessita dar uma resposta eficaz às dificuldades e anseios mais profundos da humanidade. Por encontrarem no mundo, através dos mais variados estímulos, inúmeras ofertas e oportunidades, os jovens – de forma particular – dispersam e a Igreja deixa de fazer parte das suas prioridades. Este fenómeno fruto da secularização, juntamente à falta de identidade para com a Igreja, dificulta os jovens na busca do sentido da vida e, em suma, da descoberta de Deus como o princípio e fundamento das suas vidas. Estes referem que, aos poucos, vão abandonando a prática eclesial e a relação pessoal com Deus, pelo que se torna necessário e urgente que a Igreja repense qual é, não o lugar dos jovens na Igreja, mas qual o seu lugar na vida dos jovens a fim de que estes possam encontrar, no seu seio, o seu lugar e a sua vocação. A este nível, é necessário também investir na formação dos catequistas, de modo que estes estejam preparados não só para catequizar as crianças e jovens, mas, sobretudo, para saberem lidar com os desafios atuais impostos pelo mundo. Por outro lado, perante tudo o que o mundo oferece aos jovens, é necessário que a Igreja lhes proporcione verdadeiras experiências de fé, ajudando-os a ter um olhar religioso sobre a vida.
Estes referem que sentem também como necessária uma maior proximidade e disponibilidade dos seus pastores referindo que, em vez de longas homilias, sentem mais benéficas as conversas espirituais que por vezes têm com um sacerdote que os ajuda a progredir na relação com Deus em ordem à santidade. Do mesmo modo, manifestam a vontade da partilha de momentos informais e de convívio com os sacerdotes das suas paróquias, de modo que seja possível estabelecer com eles uma relação mais próxima pois, mencionam, que isso os aproxima da Igreja e os leva a estar mais presentes e dedicados ao anúncio do Evangelho.

4. Vede como eles se amam: o apelo à unidade

Do desejo de uma Igreja que caminha em conjunto, depreendeu-se a necessidade de, por um lado, os grupos paroquiais e movimentos se inserirem de uma forma mais ativa na vida das paróquias e, por outro, que todos os fiéis estejam inseridos na vida e nos grupos das paróquias, de forma que todos tenham o seu lugar e se sintam parte integrante e onde possam colocar a render os dons por Deus oferecidos. Como expressão deste caminhar juntos, os jovens escuteiros referem também a necessidade de a Igreja se entender a si mesma como “família”, colocando verdadeiramente em prática o mandamento novo de Jesus: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei” (Jo 13,34). É referido que muitas vezes, até mesmo dentro dos grupos paroquiais e movimentos ou entre eles existem discórdias e divisões pelo que os seus membros têm dificuldades em olhar-se mutuamente como irmãos e, consequentemente, caminhar juntos. Este aspeto é considerado numa vertente pessoal e intrínseca à Igreja, isto é, para que possa ela mesma ser aquilo a que é chamada e, noutra vertente, para que, dando testemunho, aqueles que se encontram fora possam exclamar como os primeiros cristãos: Vede como eles se amam! Através da vivência da unidade e da fraternidade, a Igreja é chamada a ser sinal de esperança para o mundo, combatendo o fenómeno do individualismo cada vez mais presente nas sociedades contemporâneas. Para tal, e para que o caminhar juntos no seio das paróquias e no seio da Igreja universal aconteça e seja verdadeiramente possível, será necessário quebrar os preconceitos existentes, bem como amenizar o conservadorismo verificado em relação a determinados temas.

5. A celebração da fé: da incompreensão à alegria do dom recebido
Escuteiros do CNE em Fátima. Foto: Direitos reservados.

No respeitante à celebração da fé em comunidade, nota-se que atualmente as paróquias são maioritariamente frequentadas por fiéis com uma faixa etária mais elevada, notando-se uma considerável ausência dos jovens na Igreja. Apesar de estarem inseridos em grupos paroquiais ou movimentos, a sua presença na Igreja fica à margem do expectável uma vez que não têm como prática a participação na liturgia ou não possuem uma vida de oração e de relação com Deus, como anteriormente referido e abordado.
Do ponto de vista litúrgico, foi referida a necessidade de a Igreja se tornar verdadeiramente uma comunidade de crentes que celebra a fé, não se limitando simplesmente a cumprir o preceito dominical e a honrar os dias santos e de guarda. Por não ser compreendida, a liturgia apresenta-se como maçadora para os fiéis que referem participar na eucaristia de forma passiva, respondendo com as aclamações e orações já decoradas, mas sem entender o que é dito, o que respondem e o mistério que celebram. Por esse motivo, afirma-se que as celebrações litúrgicas não são dinâmicas e que, por isso, não são capazes de atrair os jovens. Porém, tendo em vista uma melhor vivência da liturgia, o canto foi considerado como uma forma particular do diálogo e da relação pessoal com Deus, pelo que deve ser assegurado nas celebrações litúrgicas. Por outro lado, também o momento da homilia foi considerado como uma oportunidade de evangelização e de catequização dos fiéis presentes na assembleia, através da explicação da Sagrada Escritura e iniciando os mesmos na prática da Lectio Divina, questionando-os e levando-os a questionar-se acerca do que, através daquela Palavra, Deus quer dizer nas suas vidas.
Também ao nível dos sacramentos, existe um acolhimento favorável do sacramento da reconciliação na medida em que é referido que o sacramento ajuda os fiéis a proceder a um exame de consciência, a olhar para a sua vida e para a sua história, reconhecendo as suas fraquezas e debilidades e, por outro lado, reconhecendo o imenso amor de Deus por cada um e a necessidade que têm de se saberem e sentirem por Ele amados. Movidos pelo desejo de uma vida plena e mais comprometida com Deus, os adultos no escutismo referem ainda a necessidade de um
maior acompanhamento por parte da Igreja nos diversos momentos da vida dos fiéis, bem como uma maior dedicação ao acompanhamento espiritual dos leigos.

6. Por uma Igreja sinodal

Também a imagem religiosa predominantemente masculina é referida pelo contraste com a pouca envolvência das mulheres em lugares de destaque e em tomadas de decisão no seio da Igreja. Por outro lado, refere-se que, ao nível da Igreja local, juntamente com o pároco, todos se deverão sentir corresponsáveis nas decisões e dinamização da vida da paróquia, suas orientações e atividades. A este nível reconhece-se e louva-se o bom caminho percorrido pela Igreja a este nível, através da criação de espaços de auscultação e partilha por parte do povo de Deus expressado nos vários membros e movimentos, nomeadamente no que diz respeito aos Conselhos Paroquiais, Vicariais e Diocesanos, bem como ao nível das assembleias sinodais. Por outro lado, e reconhecendo o trabalho realizado nas últimas décadas, considera-se a necessidade de a Igreja procurar estar sempre atenta às necessidades das situações e dos contextos locais, desempenhando a sua missão junto dos esquecidos, dos marginalizados e dos abandonados.
Com o objetivo de «fazer germinar sonhos, suscitar profecias e visões, fazer florescer a esperança, estimular confiança, faixar feridas, entrançar relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns dos outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, restitua força às mãos» [Papa Francisco, Discurso no início do Sínodo dedicado aos jovens, 3 de outubro de 2018], o Corpo Nacional de Escutas – Escutismo Católico Português apresenta as presentes conclusões à Santa Igreja, por meio da Conferência Episcopal Portuguesa, fruto do trabalho de oração, reflexão, escuta e discernimento desenvolvido durante este caminho sinodal, para benefício da Igreja universal e para maior glória de Deus.