Sínodo 2021-2024

Liturgia da Palavra

Domingo XXVI do Tempo Comum – Ano B – 29.09.2024

Viver a Palavra

Acolhimento, testemunho coerente e conversão são os grandes desafios que emergem da Liturgia da Palavra deste XXVI Domingo do Tempo Comum.

Jesus continua a caminhar com os discípulos, conduzindo-os pela estrada nova do amor, fazendo-os experimentar a surpreendente lógica do Reino. Contudo, os discípulos sentem ainda a dificuldade de se deixar moldar pela Boa Nova que implica um acolhimento sem obstáculos nem barreiras, um testemunho coerente e credível que os introduz num caminho de conversão permanente.

«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco». Aquele homem expulsava demónios, restituía gente à vida e fazia-o em nome de Jesus, mas os discípulos impedem-no porque não pertencia ao grupo deles. Preocupa-os mais a defesa do grupo, que o bem que aquele homem fazia. E bem sabemos como é tão humana esta tentação, pois já na primeira leitura, Josué, vendo Eldad e Medad a profetizar, pede a Moisés que os proíba. Por isso, Jesus adverte aos discípulos: «não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Diante da tentação de proibir, afastar ou condenar, Jesus convida ao acolhimento que não desiste de ninguém, que é capaz de olhar para cada fenda aberta onde o amor pode ser semeado. Ficamos perplexos com este aparente frágil, fácil e ligeiro critério de ingresso no amor: «quem não é contra nós é por nós». Mas que libertador é o Mestre que tem sempre um caminho estendido para quem O procura! A proibição e o impedimento servem apenas para afastar e excluir. O acolhimento é único caminho que pode gerar vida, conversão e arrependimento.

Diante de um mundo a transformar pela força do amor, são precisos seguidores de Jesus, com testemunho coerente e credível, pois como preveniu Jesus: «se alguém escandalizar algum destes pequeninos que creem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar». Deste modo, porque somos frágeis e pecadores, a coerência será sempre um grande desafio que nos impele a abraçar a conversão como tarefa permanente da nossa vida cristã.

Apesar de exigente, a conversão e a renovação da vida, deve começar pelos pequenos gestos do quotidiano. Como é consolador ver como Jesus simplifica a vida: «quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa». Um copo de água, um sorriso, um abraço, uma visita a um doente, uma conversa com alguém que está sozinho: gestos pequenos e aparentemente banais, mas que semeiam no tempo e na história o amor e fazem despontar a esperança de um mundo mais fraterno e feliz.

Contudo, a mensagem final do Evangelho parece tão dura e exigente: se a tua mão, se o teu pé ou o teu olho são ocasião de escândalo corta-os. De facto, é necessária coragem para a renúncia daquilo que pode ser obstáculo à entrada do Reino, pois a entrada não acontece a partir daquilo que possuímos ou amealhamos, como nos recorda S. Tiago na segunda leitura, mas por aquilo que somos capazes de oferecer, deixar e renunciar. A solução não está numa mão cortada, mas numa mão convertida que oferece um copo de água.

Por isso, acolhimento, testemunho e conversão semeiam a esperança do mundo novo que Jesus veio anunciar e inauguram no aqui e agora do tempo, o Reino que há-de ser em plenitude no Céu. in Voz Portucalense.

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No dia 29 de setembro, assinala-se o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. O Papa Francisco escreveu uma mensagem para este dia intitulada: «Deus caminha com o seu povo». Nesta mensagem, (que fica em anexo) o Santo Padre, na senda do caminho sinodal que estamos a viver, afirma «é possível ver nos migrantes do nosso tempo, como aliás nos de todas as épocas, uma imagem viva do povo de Deus em caminho rumo à Pátria eterna» e desafia a sabermos ser Igreja a caminho no acolhimento e ajuda de tantos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. No final desta mensagem, é proposta uma oração que pode ser rezada por todos na celebração da Eucaristia.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Números 11,25-29

Leitura do Livro dos Números

Naqueles dias,
o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.
Tirou uma parte do Espírito que estava nele
e fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.
Logo que o Espírito poisou sobre eles,
começaram a profetizar;
mas não continuaram a fazê-lo.
Tinham ficado no acampamento dois homens:
um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.
O Espírito poisou também sobre eles,
pois contavam-se entre os inscritos,
embora não tivessem comparecido na tenda;
e começaram a profetizar no acampamento.
Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:
«Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».
Então Josué, filho de Nun,
que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,
tomou a palavra e disse:
«Moisés, meu senhor, proíbe-os».
Moisés, porém, respondeu-lhe:
«Estás com ciúmes por causa de mim?
Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta
e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»

CONTEXTO:

O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.

No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 11,1-36,13).

Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por acção de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.

O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O Espírito não é privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem presente em todos aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam comprometer-se com Jesus e com o seu projeto de vida. Mesmo o irmão mais humilde, mais pobre, menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de Deus.
  • O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e atua onde quer e como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por interesses pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos testemunhas da ação do Espírito no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa instituição religiosa… Não temos que sentir-nos melindrados ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos (mesmo naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
  • A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às perspetivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos apresenta.
  • Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo, ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos, a partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de fazer as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos qualquer ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque não estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projetos pessoais… Já pensámos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades, estamos a impedir os outros de crescer? Já pensámos que, quando somos nós a conduzir todo o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspetivas diferentes, podemos estar a calar os desafios do Espírito? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)

Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

 

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma.
As ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.

O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
Os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são rectos.

Embora o vosso servo se deixe guiar por eles
e os observe com cuidado,
quem pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
Purificai-me dos que me são ocultos.

Preservai também do orgulho o vosso servo,
para que não tenha poder algum sobre mim:
então serei irrepreensível
e imune de culpa grave.
LEITURA II – Tg 5,1-6

Leitura da Epístola de São Tiago

Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,
por causa das desgraças que vão cair sobre vós.
As vossas riquezas estão apodrecidas
e as vossas vestes estão comidas pela traça.
O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,
e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós
e devorar a vossa carne como fogo.
Acumulastes tesouros no fim dos tempos.
Privastes do salário os trabalhadores
que ceifaram as vossas terras.
O seu salário clama;
e os brados dos ceifeiros
chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.
Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
cevastes os vossos corações para o dia da matança.
Condenastes e matastes o justo
e ele não vos resiste.

CONTEXTO

A Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos seus interlocutores alguns dos aspetos que elencou anteriormente e que, na sua perspetiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra.

O primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no orgulho e na autossuficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O segundo bloco (cf. Tg 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12), oração (cf. Tg 5,1-18) e preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg 5,19-20).

O texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho eautossuficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar porque eles vivem apenas para acumular bens materiais, negligenciando os verdadeiros valores. Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a sua existência em valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão perceber que gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem conduz o homem à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático equívoco. O “aviso” do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa atualidade… A acumulação de bens materiais tornou-se, para tantos homens do nosso tempo, o único objetivo da vida e o critério único para definir uma vida de sucesso. Contudo, aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis facilmente constatam como essa opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade e de vida plena. O ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, dão-nos satisfações imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a testemunhar que a vida verdadeira brota dos valores eternos – esses valores que Deus nos propõe.
  • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspetiva do autor do nosso texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas chorudas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e pertença a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para não pagar impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é cristão quem se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios altamente rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas rapinas…
  • Uma coisa deve ficar clara: Deus não apoia nunca quem vive fechado em si próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para serem postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão com Deus. in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 9,38-43.45-47-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que creem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

CONTEXTO

Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados sonhos de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se inquietos e ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses, a sua autoridade, os seus “privilégios”.

Jesus vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
Marcos juntou aqui uma série de “ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si e pronunciados em contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo, exigências várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos de grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a radicalidade que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos apresentam no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também fazem parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos… Assim, a instrução que, neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas; pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a comunidade do Reino.
  • Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino não pode ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga a posse exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe qual o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo do bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de esperança de que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da ação de não crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes se Deus atua através de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade nem ter o exclusivo de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia, por testemunhar os valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de Deus em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir um mundo mais justo e mais fraterno.
  • Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a ação de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia “mover” os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio… Quando afastamos (com o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade, ou tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a proteger os interesses de Deus ou os nossos projetos, os nossos esquemas interesseiros, as nossas apostas pessoais?
  • No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas está sempre atento e vigilante, procurando detetar e eliminar da sua existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um processo difícil e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de vida nova. O que é que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha vida, para me identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para ser mais livre e mais feliz?
  • O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar” (afastar da comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita… Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo? Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou para se afastar de Cristo? in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura é um longo discurso dos ímpios que incita a armarem ciladas aos justos e condená-los à morte. A proclamação deste texto deve valorizar as formas verbais que marcam o ritmo e o tom da leitura.

Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado na proclamação da enumeração das características da sabedoria e nas frases interrogativas presentes no texto. Além disso, é necessário ter em consideração as afirmações finais que estabelecem uma dinâmica de causa/efeito que deve ser clara na proclamação da leitura.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

CADA COPO DE ÁGUA CONTA

A lição do Livro dos Números deste Domingo XXVI (Números 11,25-29) mostra-nos um Moisés, não dono de nada nem de ninguém, nada ciumento ou invejoso, mas livre, cheio de bem e de bondade, completamente a céu aberto, desejoso de ver, com olhos puros, o Espírito de Deus a operar maravilhas em todas as pessoas e através de todas as pessoas. Josué representa, neste texto, a figura sombria do ciumento.

O Evangelho deste mesmo Domingo XXVI (Marcos 9,38-48) segue o mesmo rumo, e mostra-nos um Jesus feliz por ver que o bem saltou as fronteiras do pequeno grupo que o seguia, sendo praticado também por pessoas de fora. João encarna aqui a figura do Josué do texto supracitado do Livro dos Números, e quer o bem todo para Jesus e o seu grupo, vendo com maus olhos que também outros o possam realizar, talvez sobretudo porque os próprios discípulos tinham pouco antes fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.

Nas palavras de João, o facto é o seguinte: os discípulos de Jesus viram alguém a expulsar demónios no nome de Jesus, e trataram logo de o impedir. A razão apresentada para fundamentar este impedimento, tem, porém, o seu quê de estranho e surpreendente. Na verdade, João refere, com todas as letras, que o grupo dos discípulos impediu o homem anónimo de continuar a sua atividade «em nome de Jesus», «porque não nos seguia» (ouk êkoloúthei hêmîn) (Marcos 9,38). O problema reside todo neste «porque não nos seguia». Trata-se, de facto, de uma fórmula estranha e surpreendente, porque, no Evangelho, fala-se sempre de «seguir Jesus», e não «a nós», inclusive no único paralelo desta passagem, apresentado em Lucas 9,49, em que se lê: «porque não segue connosco» (ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Vê-se bem que estes discípulos de Jesus ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço do Domingo passado, querendo eles próprios estar indevidamente «no meio», ocupando ou usurpando o primeiro lugar. Sempre este nosso doentio gosto de querermos estar sempre no centro das atenções! Salta à vista que este texto notável funciona como um espelho: mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos de Jesus, que se julgam donos exclusivos de algumas funções e defendem ciosamente esse status.

Vê-se, no fundo da tela, que não basta querer o bem. Querer o bem nem sempre é bom. Por paradoxal que pareça, querer o bem pode ser mau. É de facto mau, quando queremos o bem só para nós, ciumenta e invejosamente. Às vezes, os nossos maus olhos levam-nos a retirar o bem do alcance dos outros, e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros! Ora, o bem que divide e exclui nunca é bem. O bem mostra-se tal apenas quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos.

Um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade. Aí está outra soberana lição de Jesus. Toda a atenção, portanto, às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração. A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja. Estas últimas maneiras de ver levam-nos ao mal, e, portanto, ao sentimento venenoso de queremos o bem só para nós. Aí está como querer o bem nem sempre é bom; pode ser mau. E é melhor arrancar pela raiz este veneno mortal.

A lição de Tiago (5,1-6), que lemos e abandonamos este Domingo (no próximo Domingo começa a ler-se a Carta aos Hebreus) mostra bem, numa linguagem duríssima, que o rico é o que quer o bem só para si, retirando-o (roubando-o!) aos outros. Autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna. O resultado é a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão, recuperando assim, em termos proféticos e sapienciais, muitos motivos patentes no Antigo Testamento. O pequeno texto da Carta de Tiago usa 119 imperativos, dos quais se ouvem três no texto de hoje. Permanentes chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo, e a maioria não tem quase nada. O texto da Carta de Tiago é claramente tardio, de finais do século I ou princípios do século II, mas vale para todos os tempos.

Esta linguagem duríssima aproxima-se de quanto, no texto do Evangelho de hoje aparece retratado na «geena» (Marcos 9,43.45.47), do aramaico gêhinnam, hebraico gê-hinnom, que é o nome de um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os seus próprios filhos (2 Crónicas 28,3; 33,6). O piedoso rei Josias, no decurso da sua reforma religiosa, acabou com estes cultos pagãos, e destinou este lugar para queimar as entranhas dos animais. É daqui que vem o espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo, (Jeremias 7,31-34; 19,1-13; 32,35), «vermes que não morrem, fogo que não se apaga» (Marcos 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno. A chapa original encontra-se em Isaías 66,24, último versículo do profeta.

Aí está, no ponto e em contraponto, a lição soberana do Evangelho de Jesus: um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade.

O Salmo 19 é, no seu todo, uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Apresenta-se em dois quadros, que formam um belo díptico que canaliza o louvor do orante. O primeiro quadro, composto pelos v. 2-7, é um hino ao Deus Criador. O segundo, que reúne os v. 8-15, é um hino à Lei de Deus. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida na sua Lei revelada. Hoje contemplamos e cantamos o segundo quadro. Quem tem ouvidos, oiça então, e cante.

D. António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXV do Tempo Comum – Ano B – 22.09.2024

Viver a Palavra

Caminhamos com Jesus como aprendizes na escola da arte de amar e vemos o Mestre fazer-se presente e próximo das nossas dúvidas, anseios e desejos tantas vezes marcados pelos nossos esquemas calculistas e ambiciosos. Jesus é o pedagogo paciente que uma vez mais anuncia a vontade do Pai: «O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens, que vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará». Repete pela segunda vez e ainda há-de comunicá-lo no Evangelho de Marcos uma terceira vez. Jesus anuncia novamente o desígnio do Pai porque o que é importante deve ser repetido e nós como os discípulos precisamos de o ouvir de novo, porque temos dificuldade em acolhê-lo. A nível antropológico repete-se o que é essencial e vital e a nível teológico a repetição reformula o acontecimento fundamental da salvação.

Surpreende-me sempre este espanto e escândalo dos discípulos e ainda mais o medo de interrogar Jesus. Eles caminham com Jesus desde a Galileia, viram os seus milagres e prodígios: os cegos a ver, os coxos a andar, a filha de Jairo a ressuscitar, uma multidão saciada com cinco pães e dois peixes… Escutaram as Suas palavras cheias de amor e misericórdia e contemplaram o modo como Jesus acolhia aqueles que vinham ao Seu encontro. Contudo, homens como nós, os discípulos têm dificuldade em escutar até ao fim. Jesus não disse apenas que irá sofrer e morrer, anuncia também que, três dias depois de morto, ressuscitará. Contudo, estamos diante de uma linguagem nova que parece incompreensível para os nossos ouvidos e conceitos.

Jesus é o Servo fiel e obediente à voz do Pai a quem armam ciladas «porque incomoda» e a quem querem matar para verem «se as Suas palavras são verdadeiras». Jesus faz ecoar na Sua vida as palavras do salmista: «o Senhor sustenta a minha vida» e caminha confiante, fiel e obediente ao projeto do Pai.

A Sua vida entregue é o convite a superar os nossos desejos de grandeza, pois tantas vezes como os discípulos perdemo-nos e ocupamo-nos em discussões inúteis, tal como nos recordava o Papa Bento XVI: «nós, que somos pequeninos, aspiramos a parecer grandes, a ser os primeiros; enquanto Deus, que é realmente grande, não tem medo de se humilhar e de se fazer último». Por isso, Jesus não os repreende, mas como o pai de família senta-se com eles para lhes recordar a nova lógica do amor, da humildade e da bondade e não se limita a fazê-lo com palavras: «tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a». Jesus conhece no silêncio as preocupações dos discípulos e está atento aos seus anseios e sonhos. Jesus irrompe na nossa vida e convida-nos a perder para ganhar: cala os nossos jogos de interesses com a serenidade da humildade. Jesus, abraçando-nos como crianças, pois ainda temos tanto para aprender, ensina-nos que «na corrida do amor chega primeiro quem se esqueceu de si para que os outros também cheguem».

A nova lógica do amor impele-nos a sair de nós próprios para acolher o outro e inscreve a nossa vida na verdadeira sabedoria de que fala S. Tiago. Sabedoria que vem do alto e que não se compadece de invejas e ciúmes, rivalidades e competitividade, mas se vive pela generosidade, misericórdia, bondade e fraternidade. in Voz Portucalense.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sabedoria 2,12.17-20

Disseram os ímpios:
«Armemos ciladas ao justo,
porque nos incomoda e se opõe às nossas obras;
censura-nos as transgressões à lei
e repreende-nos as faltas de educação.
Vejamos se as suas palavras são verdadeiras,
observemos como é a sua morte.
Porque, se o justo é filho de Deus,
Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários.
Provemo-lo com ultrajes e torturas
para conhecermos a sua mansidão
e apreciarmos a sua paciência.
Condenemo-lo à morte infame,
porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo».

CONTEXTO

Os biblistas situam a redação do livro da Sabedoria por volta do ano 50 a.C., o que o torna o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito em grego por um judeu de língua grega, nascido e educado na Diáspora. Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve – com exemplos tirados da história do Êxodo – as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé).

O “berço” da reflexão proposta pelo autor é, provavelmente, a cidade de Alexandria. Por essa altura, a cultura helénica marca o ritmo da vida da cidade e dos seus habitantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente no Egito conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida. Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

É neste contexto que o sábio autor do Livro da Sabedoria se propõe fazer a defesa dos valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrir a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus. Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

O texto que a primeira leitura deste domingo nos propõe integra a primeira parte do livro da Sabedoria (cf. Sb 1-5), que apresenta uma reflexão sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”. O autor descreve a forma de pensar e de agir dos ímpios, analisa os seus raciocínios (cf. Sb 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb 2,10-20). Depois conclui: os ímpios, agindo assim, estão longe de Deus e do prémio que Ele reserva para aqueles que vivem nos seus caminhos (cf. Sb 2,21-24).

Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Deixemos de lado a classificação de “ímpios” e “justos”, utilizada pelo “sábio”, que é um tanto redutora e rotuladora… Fixemo-nos antes no confronto – bem claro no texto – entre os valores de Deus e os valores do mundo, entre a “sabedoria de Deus” e a “sabedoria do mundo”. Trata-se de um “frente-a-frente” que conhecemos bem e que atravessa cada momento do caminho histórico que a humanidade vai percorrendo… Há quem tente simplificar as coisas resumindo tudo isto à mera opção entre valores antiquados e valores atuais, valores passados de moda e valores condizentes com o quadro civilizacional do nosso tempo… Na realidade, não é assim tão simples. O confronto é entre valores eternos e valores passageiros, entre valores que asseguram Vida verdadeira e valores que apenas proporcionam flashes de felicidade efémera. Neste confronto, em que campo nos situamos?
  • O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem, fechado no seu orgulho, arrogância e autossuficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus valores; é a opção de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efémeros. Trata-se de uma “sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o deixa vazio, frustrado, deprimido, escravo. A “sabedoria do mundo” pode apresentar-se com as cores sedutoras da felicidade efémera, com o brilho da filosofia que está na moda, com a respeitabilidade das construções intelectuais mais sólidas, com o selo de garantia dos influencersde serviço; mas não assegurará ao homem uma felicidade duradoura. Que papel joga a “sabedoria do mundo” nas nossas vidas?
  • O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas. Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-l’O e seguir os seus caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no amor, na partilha, no serviço simples e humilde aos irmãos; estão sempre atentos a quem chora, a quem sofre, a quem necessita de amor e cuidado; comprometem-se com a construção de um mundo mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz; não se conformam com as injustiças e as violências que desfeiam o mundo, e esforçam-se por construir o Reino de Deus. Os que se deixam conduzir pela “sabedoria de Deus” nem sempre são compreendidos e aceites. Às vezes chamam-lhes “fracos”, “perdedores”, “incapazes”, “retrógrados”, e colocam-nos em guetos onde podem ser controlados. Mas eles, mesmo desautorizados e incompreendidos, procuram ser sal que dá sabor ao mundo e luz viva que ilumina os caminhos que a humanidade percorre. Que papel joga a “sabedoria de Deus” no nosso projeto de vida?
  • Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Com frequência será incompreendido, caluniado, escarnecido, desautorizado, perseguido, torturado – como aconteceu com Jesus. É claro que o sofrimento, a incompreensão, a perseguição, são assustadores; mas devem ser vistos como consequência natural da fidelidade a Deus e aos seus valores. Não devemos ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar preocupados quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a “sabedoria do mundo”. Alguma vez o medo de sermos incompreendidos e perseguidos nos impediu de sermos testemunhas coerentes da “sabedoria de Deus”? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)

Refrão: O Senhor sustenta a minha vida.

 

Senhor, salvai-me pelo vosso nome,
pelo vosso poder fazei-me justiça.
Senhor, ouvi a minha oração,
atendei às palavras da minha boca.

Levantaram-se contra mim os arrogantes
e os violentos atentaram contra a minha vida.
Não têm a Deus na sua presença.

Deus vem em meu auxílio,
o Senhor sustenta a minha vida.
De bom grado oferecerei sacrifícios,
cantarei a glória do vosso nome, Senhor.

LEITURA II – Tiago 3,16-4,3

Caríssimos:
Onde há inveja e rivalidade,
também há desordem e toda a espécie de más ações.
Mas a sabedoria que vem do alto
é pura, pacífica, compreensiva e generosa,
cheia de misericórdia e de boas obras,
imparcial e sem hipocrisia.
O fruto da justiça semeia-se na paz
para aqueles que praticam a paz.
De onde vêm as guerras?
De onde procedem os conflitos entre vós?
Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros?
Cobiçais e nada conseguis: então assassinais.
Sois invejosos e não podeis obter nada:
então entrais em conflitos e guerras.
Nada tendes, porque nada pedis.
Pedis e não recebeis, porque pedis mal,
pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.

CONTEXTO

A chamada “Carta de Tiago” é uma exortação de um mestre cristão do séc. I, que se apresenta como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Ainda não foi possível identificar concretamente este “Tiago”. Em qualquer caso parece ser um personagem de origem semita, que conhece bem as escrituras sagradas judaicas, mas que é capaz de se expressar muito bem em língua grega, recorrendo inclusive a recursos retóricos muito apreciados pelos literatos helénicos.

O escrito é endereçado às “doze tribos da Diáspora”. A expressão designa, provavelmente, as comunidades cristãs de origem judaica existentes fora da Palestina (Síria, Egito, Ásia Menor); mas também pode ser uma expressão metafórica utilizada para designar as comunidades cristãs em geral, dispersas pelo mundo greco-romano.

O objetivo do autor desta “carta encíclica” será ajudar os cristãos a viverem a sua fé com coerência e autenticidade, dentro de um estilo de vida que reflita os valores do Evangelho de Jesus. Os temas abordados na carta são diversos e vão-se sucedendo sem uma ordem ou plano doutrinal previamente definido. Avultam as indicações de caráter prático, às vezes num estilo que lembra a reflexão sapiencial: um “mestre” cristão deixa aos seus “discípulos” conselhos práticos sobre a arte de viver de acordo com o espírito cristão nas mais diversas circunstâncias.

Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de Tiago reflete, na terceira parte do seu escrito (cf. Tg 3,1-4,10), sobre alguns aspetos bem concretos onde deve transparecer a opção que os seguidores de Jesus fizeram. O primeiro aspeto particular a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo alude à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro aponta a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro dos referidos pontos. O objetivo é sempre exortar os crentes a pautarem as suas vidas pelos valores cristãos autênticos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O Batismo é, para todos os crentes, o momento em que se encontram com Jesus e optam por Ele (mesmo que esse momento tenha ocorrido numa idade em que não tinham plena consciência das implicações dessa opção, entretanto renovada posteriormente); é o momento em que os crentes escolhem a “sabedoria do alto” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de Deus. Ungidos no batismo com o óleo do crisma, os batizados são escolhidos para serem sinais de Deus e rostos vivos dessa Vida nova que Deus quer propor ao mundo e aos homens. Coerentes com a sua opção batismal, os crentes fazem a diferença e anunciam – com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida – um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais feliz para todos os filhos e filhas de Deus. Vivemos conscientes de que esta é a vocação a que são chamados todos os batizados? Procuramos viver de forma coerente com os compromissos que assumimos no dia do nosso Batismo? Os valores que conduzem a nossa vida e que testemunhamos são os valores que brotam da “sabedoria do alto”?
  • O autor da Carta de Tiago considera que muitos batizados, seduzidos pela “sabedoria do mundo”, instalam-se no egoísmo e na autossuficiência, vivem para o “ter”, deixam que a sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância, recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… Essa opção – diz ele – traz inevitáveis consequência negativas: não lhes assegura a sua plena realização, não enche de sentido as suas vidas; e destrói a vida das comunidades onde eles caminham, pois gera desordem, guerras, rivalidades, conflitos, divisões. A forma de se derrotar a “sabedoria do mundo” passa por nos mantermos em contínuo processo de conversão, sempre disponíveis para nos questionarmos sobre as nossas opções erradas e para voltarmos a escutar Deus e a sua “sabedoria”. É nesse sentido que caminhamos? Estamos acomodados à “sabedoria do mundo”, ou estamos continuamente dispostos a rever as nossas opções, a voltar para Deus e a viver de acordo com as propostas que Ele nos faz?
  • Finalmente, o autor da Carta de Tiago avisa que, quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa oração torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas que se destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições egoístas, os nossos interesses pessoais. Ora, Deus não está disponível para esse tipo de conversa. Deixa-nos a falar sozinhos. A nossa oração é, nesse caso, inconsequente. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso coração, de reequacionar os valores que priorizamos, de aprender a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus, de nos aproximar de Deus. Então, sim, a nossa oração será um verdadeiro diálogo com Deus… Através desse diálogo, tornamo-nos mais conscientes do que Deus quer, dos planos que Ele tem para nós e para o mundo; ao mesmo tempo, partilhamos com Deus as nossas dificuldades, as nossas esperanças, os nossos sonhos, e entregamos tudo nas mãos d’Ele. A nossa oração será, então, um diálogo de amor entre Pai e filho, que encherá de paz e de esperança o nosso coração. Como é o nosso diálogo com Deus? É um monólogo que serve para atirar a Deus as nossas reivindicações e pedidos, ou é um diálogo sereno e cheio de amor com o nosso Pai do céu? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 9,30-37

Naquele tempo,
Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
«O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
e eles vão matá-l’O;
mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
e tinham medo de O interrogar.
Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
Jesus perguntou-lhes:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados,
porque tinham discutido uns com os outros
sobre qual deles era o maior.
Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
«Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
e o servo de todos».
E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
abraçou-a e disse-lhes:
«Quem receber uma destas crianças em meu nome
é a Mim que recebe;
e quem Me receber
não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

CONTEXTO

Alguns dias antes, nos arredores de Cesareia de Filipe, Jesus já tinha avisado os discípulos de que devia, em breve, dirigir-se para Jerusalém; e que aí seria rejeitado pelas autoridades religiosas, preso, condenado à morte e crucificado (cf. Mc 8,31-32). Pedro tinha reagido mal às indicações de Jesus e tentara demover Jesus desses passos. Os outros discípulos, por sua vez, não tinham dado mostras de ter processado aquilo que Jesus tinha dito: estavam demasiado agarrados a sonhos antigos de grandeza, de poder e de prestígio para que as palavras de Jesus fizessem sentido. Aquela conversa parecia-lhes despropositada e incongruente; ainda acreditavam que Jesus, chegado a Jerusalém, iria entrar na cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio romano.

Entretanto, a viagem pela Galileia continuou. Jesus apercebeu-se, nos dias seguintes, que os discípulos não tinham levado a sério aquele primeiro anúncio sobre o destino de morte que o esperava em Jerusalém. Consciente de que era necessário deixar as coisas bem claras, aproveitou uma altura em que caminhava a sós com os discípulos e voltou a referir-se à sua morte próxima, às mãos das autoridades de Jerusalém. Ele não queria equívocos e não pretendia que os discípulos andassem atrás d’Ele pelas razões erradas. Este é o ponto de partida para o texto do Evangelho que a liturgia nos propõe neste vigésimo quinto domingo comum.

O evangelista Marcos, pela sua parte, está interessado em dizer aos seus leitores que Jesus é o Messias, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1); no entanto, nunca lhes oculta que esse Filho de Deus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ao apresentar, num breve espaço, os três anúncios da paixão de Jesus (cf. Mc 8,31-32; 9,30-31; 10,32-34), Marcos está a preparar-nos para o que vai contar na segunda parte do seu Evangelho; e para que também nós repitamos aquilo que disse o centurião romano destacado junto da cruz onde Jesus entregou a vida nas mãos do Pai: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O Evangelho deste vigésimo quinto domingo comum põe frente a frente dois sistemas de valores, duas formas radicalmente diferentes de encarar a existência. De um lado está Jesus e a sua forma de viver e de priorizar os valores que dão sentido à vida; do outro lado estão os discípulos, cujos interesses parecem ser opostos aos de Jesus. Jesus vive imbuído dos valores de Deus. Não está preocupado com o seu êxito pessoal; interessa-lhe apenas cumprir o projeto de Deus e mostrar aos homens como o caminho do amor e do serviço conduzem à Vida verdadeira, à felicidade sem fim. Para dizer isso aos homens, Jesus está mesmo disposto a dar a sua vida até ao extremo, até à última gota de sangue, na cruz. Mas os discípulos, escravos da “sabedoria do mundo”, acreditam piamente que a felicidade está nos bens materiais, no poder, nas honras, nos privilégios; e fazem “orelhas moucas” quando Jesus os convida a segui-l’O nesse caminho que Ele vai percorrer, o caminho da vida dada por amor. Neste confronto de caminhos opostos, onde nos situamos?
  • Passaram-se dois mil anos, desde que Jesus andou pelos caminhos da Galileia e da Judeia a apresentar a sua proposta e a convidar os homens a construir um mundo mais justo e mais fraterno; e, mesmo depois desse tempo todo, parece que ainda não nos convencemos de que Jesus tinha razão. A corrida às honras, a priorização dos bens materiais, a luta pelos postos de poder e de influência, a ambição desmedida, a apetência pelos títulos e honrarias, a sobreposição dos interesses pessoais ao bem comum, continuam a marcar o ritmo de vida de muitos homens e mulheres do séc. XXI… Mais: isto não acontece apenas em ambientes “civis”, afastados de Jesus e das suas propostas; mas também acontece em contextos marcadamente cristãos, na comunidade dos discípulos. Que sentido é que isto faz? Poderemos apresentar-nos como discípulos de Jesus se ignoramos o caminho que Ele nos aponta? Uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo poderá considerar-se a Igreja de Jesus?
  • De acordo com Jesus, a importância de uma pessoa não se mede pelo dinheiro que possui, nem pelo poder que conquistou, nem pela influência social que adquiriu, nem pelo sucesso profissional que obteve, nem pelo estilo com que se veste, nem pelos títulos civis ou canónicos que ostenta, nem pelo seu aspeto físico, mas sim pela forma como serve e como ama os seus irmãos, sobretudo os mais frágeis e desprezados. De acordo com Jesus, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. É isto que se passa nas nossas comunidades cristãs? Quem são, entre nós, os mais importantes, os que mais consideramos, reverenciamos e admiramos, aqueles a quem sentamos nos lugares mais distintos?
  • Jesus, para ilustrar a sua lição sobre o amor, tomou uma criança – símbolo de fragilidade, de pequenez, de pobreza, de simplicidade – colocou-a no meio dos discípulos e abraçou-a. Quis dizer, com esse gesto, que na sua comunidade são os mais pequenos, os mais pobres, os mais desprezados, os mais desconsiderados, os mais humildes que devem estar no centro; e que todos os outros membros da comunidade devem cuidar deles, abraçá-los, servi-los, ajudá-los, defendê-los. O frágil, o pequeno, o pobre é o próprio Jesus; e quem o acolhe, abraça o próprio Jesus… Como é que as nossas comunidades cristãs acolhem os pobres, os mais humildes, aqueles que o resto da sociedade rejeita e ignora, aqueles que ninguém quer e ninguém ama? Como é que são tratados nas nossas comunidades as pessoas vítimas de doenças incuráveis, os irmãos e irmãs que a moral condena, os refugiados, os sem abrigo, os que a vida feriu irremediavelmente? Há lugar para eles? São tratados com respeito e amor? São cuidados, abraçados e ajudados?
  • Marcos diz-nos que os discípulos “tinham medo de interrogar” Jesus. É verdade: por vezes sentimo-nos pouco cómodos com a frontalidade, a radicalidade, a exigência, a verdade de Jesus. Ele não se contenta com “meias tintas”, com verdades parciais, com escolhas que não são quente nem frio; Ele não se conforma com a nossa preguiça, a nossa acomodação, a nossa cobardia; Ele desafia-nos continuamente a um compromisso firme, à doação total da vida, ao amor até ao extremo, à conversão e à renovação. Seria mais fácil, para nós, refugiarmo-nos nas nossas orações decoradas, nas nossas devoções particulares, nos nossos solenes rituais litúrgicos, na nossa religião vivida como cumprimento de leis… Mas Jesus pede mais: pede que o sigamos no caminho de Jerusalém, no caminho do amor e do dom da vida… A exigência de Jesus deixa-nos pouco à vontade, ou é, para nós, uma decisão assumida e que procuramos viver com coerência e radicalidade? O seguimento de Jesus dá-nos medo, ou é um caminho libertador? in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura é um longo discurso dos ímpios que incita a armarem ciladas aos justos e condená-los à morte. A proclamação deste texto deve valorizar as formas verbais que marcam o ritmo e o tom da leitura.

Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado na proclamação da enumeração das características da sabedoria e nas frases interrogativas presente no texto. Além disso, é necessário ter em consideração as afirmações finais que estabelecem uma dinâmica de causa/efeito que deve ser clara na proclamação da leitura

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

DESCER DE NÓS ABAIXO

No Evangelho deste Domingo XXV do Tempo Comum, continuamos a ler a chamada «secção do caminho» do Evangelho de Marcos (Ver Domingo XXIV), hoje a passagem de Marcos 9,30-37. Este texto intenso e sublime cai sobre nós como uma faca de dois gumes e envolve-nos em duas vagas avassaladoras: Marcos 9,30-32 e 9,33-37.

A primeira acontece no caminho que desce de Cesareia de Filipe para Cafarnaum, um dia de caminho e de ensinamento de Jesus aos seus discípulos. Concentração máxima: Jesus a sós com os seus discípulos (ninguém de fora os acompanha) e um único dizer na sua boca de Mestre que repetidamente ensinava: «O Filho do Homem vai ser entregue (paradídotai: pass. teológico ou divino) por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas três dias depois de morto ressuscitará» (Marcos 9,31). Note-se, em todo o caso, que Jesus passará das nossas mãos violentas e assassinas, para as mãos paternais do Pai. Jesus ensina, portanto, a sua paixão, morte e ressurreição. Ficam aqui bem a descoberto as nossas mãos violentas e assassinas. Mas é estranho o comportamento dos discípulos de Jesus, que nos é dado a conhecer pelo narrador. Na verdade, aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não queriam compreender aquelas palavras e até tinham medo de as vir a compreender. É esta a mais correta tradução daquele verbo agnoéô, que não significa apenas «ignorar», «desconhecer», «não compreender», mas, mais do que isso, «não querer compreender». E era o medo de, porventura, virem a compreender que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (Marcos 9,32).

Leva tempo àqueles discípulos de Jesus, e a mim, e a nós, compreender que, se a maneira de ser de Deus é o amor, só o amor, então Ele tem de descer ao nosso nível, sujando-se na mentira do nosso coração e na violência das nossas mãos, não nos opondo qualquer resistência, que é o nosso modo habitual de fazer e que faz aumentar a violência, mas amando também a nossa violência até ao fim e ao fundo. Aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não querem nem sequer pensar nesta maneira de viver… e de morrer. Por isso, não querem compreender o verdadeiro caminho do amor que Jesus ensina, e, porque não querem correr quaisquer riscos, não ousam sequer fazer perguntas.

É aqui que somos atingidos em cheio pela segunda vaga do texto de hoje. Chegados a Cafarnaum, e tendo entrado na casa (seguramente a casa de Pedro), somos confrontados com uma pergunta certeira de Jesus acerca do assunto que vínhamos a debater (dialogízomai) no caminho (Marcos 9,33). Mas se já antes não arriscámos perguntar nada a Jesus, agora também não nos atrevemos a responder. O narrador passa-nos duas informações: que «eles (como nós) se calavam» (esiôpôn: imperf. de siôpáô), implicando este imperfeito um silêncio continuado (1), e que tinham disputado (dialégomai) no caminho uns com os outros sobre quem fosse o maior (2) (Marcos 9,34). Note-se que a pergunta de Jesus supõe um debate de ideias (verbo dialogízomai), mas a anotação do narrador deixa supor uma luta de interesses (verbo dialégomai). Note-se ainda o contraponto: enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até ao fim, os seus discípulos ocupam-se de grandezas.

Neste momento, Jesus senta-se (modo enfático) e chama para si (modo enfático) os Doze, e diz-lhes (légei: pres. do verbo légô), a eles e a nós, num presente que ainda hoje ecoa no meio de nós: «Se alguém quer ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos» (Marcos 9,35). Entenda-se bem aquele «de todos», duas vezes dito, para evitar equívocos. Anote-se também que, no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes (4,1; 9,35; 13,3).

E a ilustração do Mestre, que continua sentado a ensinar, agora com gestos e palavras: recebeu uma criança pequena (paidíon), colocou-a no meio deles e de nós, e disse: «Quem receber uma destas crianças pequeninas, no meu nome, recebe-me a Mim…» (Marcos 9,36-37). Note-se aquele: «No meio», que é o lugar mais importante. Note-se também o «No meu nome», que significa ao jeito de Jesus. Note-se ainda que Jesus não usa jogos de estatística. Fala de uma criança apenas. E também deixa claro que, para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos maternais, que acariciam e dão vida, ao contrário das mãos dos homens que agarram e matam, já atrás retratadas em Marcos 9,31. De resto, vê-se bem, em filigrana, que uma criança pequenina traduz todos os nossos irmãos dependentes, cuja vida depende de nós, não nos sendo permitido, portanto, abandoná-los e voltar-lhes as costas.

Tanto se pode aprender com Jesus «na casa» e «no caminho». Aprendemos a descer de nós abaixo, a abrir as nossas mãos fechadas e armadas, e a revestir-nos de gestos de amor novos, serviçais, maternais.

O justo Jesus caminha por entre o sofrimento, o desprezo e a zombaria. E assim também os seus discípulos. O fim, porém, é a glória da Ressurreição. Um breve extrato do Livro da Sabedoria (2,12.17-20) faz-nos ver os ímpios a conspirar de mil maneiras contra o justo, que os importuna com o seu comportamento, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. Não faltam os motivos de zombaria, afirmando que querem verificar se é verdade o que justo diz, pois afirma que é filho de Deus, e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios (Sabedoria 2,18). Tudo semelhante à ironia sarcástica dos zombadores que passam junto da Cruz do Senhor (Marcos 15,29-32). Mas também é oportuno ver Sabedoria 5,1-15, o quadro que forma um díptico com Sabedoria 2,1-20. Em 5,1-15, os ímpios provocadores e zombadores reencontram-se, no dia do julgamento, lado a lado com o justo que maltrataram. Ao ver o justo de pé, apavorados e atónitos, dirão entre soluços de angústia: «Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura, e o seu fim infame. Como é que agora é contado entre os filhos de Deus, e partilha a sorte dos santos?» (Sabedoria 5,4-5). E confessam: «Sim, extraviámo-nos do caminho da verdade, a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição…» (Sabedoria 5,6-7).

São Tiago 3,16-4,3 serve-nos também hoje um texto incisivo, que nos ajuda a ler o nosso mundo e o nosso coração. Inveja e discórdia produzem desordem e ações perversas (3,16). Ao contrário, a Sabedoria do alto (ánôthen) é pura (hágnê), pacífica, afável, conciliadora, misericordiosa, cheia de frutos bons, sem duplicidade nem hipocrisia (3,17). E depois, de forma penetrante e pedagógica, pergunta São Tiago: «De onde vêm as guerras e os conflitos entre vós? Não é das vossas paixões que lutam nos vossos membros? Cobiçais, e nada tendes; então, assassinais. Sois ciumentos, e nada conseguis; então, entrais em conflitos e guerras» (4,1-2a). E desvenda este não ter: «Não tendes, porque não pedis» (4,2b). E ainda: «Pedis, e não recebeis, porque pedis mal» (4,3). As lições são muitas e importantes, e têm de ser objeto de profunda reflexão.

O Salmo 54 representa a típica súplica bíblica, em que se contam três atores: o «eu» orante, «eles» (os inimigos), e Deus. Três são também os tempos em que se desenrola a oração: o passado feliz, o presente amargo, um futuro melhor, objeto de esperança. Entretanto, fica claro que Deus está sempre do lado do orante, e, por isso, o tempo está carregado de esperança. Os inimigos são descritos como estrangeiros, estranhos (zarîm). Entenda-se: gente fora da comunidade e longe de Deus, que não respeita Deus nem a maneira de viver dos justos. Também este Salmo ajuda a reler, por um lado, toda a agressividade e zombaria que atravessa os textos de hoje, que a figura do ímpio estulto incarna. Por outro lado, mostra também a segurança do justo.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXIV do Tempo Comum – Ano B – 15.09.2024

27 …. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?» ….. 
29«E vós, quem dizeis que Eu sou?» – perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.» Mc 8, 27, 29

Viver a Palavra

            A liturgia deste domingo desinstala-nos e coloca-nos a caminho. Recordando-nos a nossa condição de peregrinos, quer ajudar-nos a construir a nossa identidade de cristãos a partir da descoberta da verdadeira identidade de Jesus: quem é Jesus para mim? Quem sou eu a partir de Jesus?

Jesus caminha da Galileia a Jerusalém: do lugar do amor que se fez chamamento e seduziu o coração dos discípulos, convocando-os para a missão até à Cruz, ao lugar da paixão, lugar da entrega generosa até ao fim. Neste percurso da Galileia a Jerusalém, passam por Cesareia de Filipe, cidade junto a uma das nascentes do Rio Jordão, marcada pelo paganismo. Mas é precisamente aí, em terreno hostil e pagão, que Jesus pergunta acerca da Sua identidade, para que os discípulos compreendam que a Boa Nova que veio anunciar está revestida da nova lógica do amor e da entrega, bem diferente dos líderes e reis deste mundo.

«Quem dizem os homens que Eu sou?». Não é mera curiosidade de Jesus, nem tão pouco sondagem da opinião pública. Jesus interroga os Seus discípulos e fá-lo pedagogicamente, para introduzir a pergunta mais difícil: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Afinal, vós que andais comigo, que comigo partilhais a vida, que deixaste tudo para me seguir, quem sou eu para vós?

Hoje, podemos imaginar aquele olhar de Jesus fixo em nós e sentir ecoar no nosso coração esta pergunta difícil e exigente, à qual é tentador responder com uma frase feita ou alguma frase bonita, porventura aprendida à memória. Mas, hoje, queremos como Pedro responder com o coração e a vida, dizer a Jesus que Ele é Aquele que irrompe na nossa vida e oferece um sentido absolutamente novo que brota da experiência de encontro com Ele.

Reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, coloca-nos a caminho: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me». Na verdade, começamos a ser discípulos quando entramos nesta nova lógica de ser e de estar, neste novo modo de servir e amar. É a lógica daquele que sabe que a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos irmãos. Que a vida é tanto mais ganha, quanto mais for entregue. Que a vida é verdadeiramente vida, quando entregue sem medida. Esta é a estrada nova que Jesus abre e que nos convida a percorrer, não sem Ele, nem longe Dele, mas atrás Dele. Ele abrirá o caminho, Ele iluminará os nossos passos e será o garante de que estamos a percorrer o caminho certo.

Jesus recorda-nos que um Cristianismo sem Cruz é um Cristianismo sem Páscoa e sem Luz e que a Cruz não é mais o símbolo da morte e da condenação. Em Jesus, a Cruz é árvore da vida, porta aberta para a eternidade, pois sinal e expressão máxima do amor e da bondade de Deus que se dá sem medida e nos convoca para a Sua missão, para também nós sermos entrega total e disponível.

A descoberta da verdadeira identidade de Jesus conduz-nos à pergunta decisiva: «quem sou eu a partir de Jesus?» e desafia-nos como S. Tiago a anunciar ao mundo o rosto de Jesus pelas obras de amor e misericórdia que colocamos nos nossos gestos.in Dehonianos.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 50,5-9a

O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio
e por isso não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.
O meu advogado está perto de mim.
Pretende alguém instaurar-me um processo?
Compareçamos juntos.
Quem é o meu adversário?
Que se apresente!
O Senhor Deus vem em meu auxílio.
Quem ousará condenar-me?

CONTEXTO

A primeira leitura do vigésimo quarto domingo comum pertence ao “Livro da Consolação”, do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (talvez entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “Servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “Servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1-5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem caráter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; dela resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida e do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
  • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
  • Temos consciência que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
  • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (115)

Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

Refrão 3: Aleluia.

 

Amo o senhor,
porque ouviu a voz da minha súplica.
Ele me atendeu
no dia em que O invoquei.

Apertaram-me os laços da morte,
caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor.
Então invoquei o Senhor:
«Senhor, salvai a minha alma».

Justo e compassivo é o Senhor,
o nosso Deus é misericordioso.
O Senhor guarda os simples:
estava sem forças e o Senhor salvou-me.

Livrou da morte a minha alma,
das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
sobre a terra dos vivos.

LEITURA II – Tiago 2,14-18

Meus irmãos:
De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir
e lhes faltar o alimento de cada dia,
e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
Aquecei-vos bem e saciai-vos»,
sem lhes dar o necessário para o corpo,
de que lhes servem as vossas palavras?
Assim também a fé sem obras está completamente morta.
Mas dirá alguém:
«Tu tens a fé e eu tenho as obras».
Mostra-me a tua fé sem obras,
que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé
.

CONTEXTO

O autor da Carta de Tiago apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Mas, na verdade, não sabemos quem é este personagem. Não será, certamente, o Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19), nem sequer o “Tiago, filho de Alfeu” que também integrava a lista dos Doze apóstolos de Jesus (cf. Mc 3,18). Também é pouco provável que seja o “Tiago, irmão do Senhor” (Gl 1,19; cf. Mc 6,3; At 12,17), que presidiu à comunidade cristã de Jerusalém e que foi martirizado no ano 62. Mas parece ser um cristão de origem judaica, que fala muito bem a língua grega e que conhece bem o Antigo Testamento.

A carta é endereçada “às Doze tribos da Dispersão”, o que poderia supor que os seus destinatários seriam cristãos de origem judaica, a viver fora da Palestina. No entanto, a expressão pode também ser entendida em sentido metafórico e referir-se às comunidades cristãs (o novo “Povo de Deus”) que vivem espalhadas pelo mundo greco-romano.

O escrito tem um cunho marcadamente judaico. O seu pensamento está enraizado no Antigo Testamento. É daí que o autor – um mestre cristão – parte para refletir sobre a existência cristã e desafiar os seus irmãos a viverem a sua fé de forma autêntica, empenhada e coerente.

O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma assinatura feita no livro de registos de batismo da paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo, seguir Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo teórico e abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em gestos concretos em favor dos irmãos. A nossa fé em Jesus e na Vida que Ele nos propõe traduz-se em obras concretas em favor dos nossos irmãos, especialmente dos mais necessitados?
  • Os discípulos de Cristo são aqueles que vão atrás d’Ele e que aprendem com Ele como é que se vive, como é que se ama, como é que se constrói o Reino de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria vida para salvar os seus irmãos. Quem acredita em Cristo tem de viver assim: tem de lutar, objetivamente, contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência e do ódio e propor a tolerância e o amor. Que obras fazemos? As nossas obras são as mesmas que Cristo fez?
  • Por vezes, há uma profunda dicotomia entre a fé que afirmamos e a vida que levamos. O nosso compromisso cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta de chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com esquemas de corrupção, criticamos e rotulamos aqueles de quem não gostamos, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos, tratamos com sobranceria os mais humildes e fracos, dizemos palavras que ferem e que levantam muros de desentendimento, demitimo-nos das nossas responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 8,27-35

Naquele tempo,
Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesareia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta:
«Quem dizem os homens que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
Ordenou-lhes então severamente
que não falassem d’Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes
que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
de ser rejeitado pelos anciãos,
pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
porque não compreendes as coisas de Deus,
mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
«Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
salvá-la-á».

CONTEXTO

O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.

A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

Cesareia de Filipe – o cenário geográfico onde o Evangelho deste vigésimo quarto domingo comum nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Durante o período helenístico, a cidade tinha tomado o nome de Panion, em virtude de haver lá um santuário dedicado ao deus grego Pan; mas, no ano 2 ou 3 a.C., Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) reconstruiu-a e deu-lhe o nome de Cesareia, em honra de César Augusto, imperador de Roma. Era, portanto, uma cidade marcada pelo paganismo e pelo culto ao imperador. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Quem é Jesus? Como é que os homens do séc. XXI o veem? Muitos dos nossos contemporâneos – crentes, agnósticos ou mesmo ateus – veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Que achamos destas “visões” sobre Jesus? Consideramo-las redutoras, ou exatas? Jesus terá sido apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história humana, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
  • “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou Jesus diretamente aos seus discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe. É uma pergunta decisiva, que deve ecoar, de forma constante, nos ouvidos e no coração dos discípulos de Jesus de todas as épocas. A nossa resposta a esta questão não pode ficar-se pela repetição papagueada de velhas fórmulas que aprendemos na catequese, ou pela reprodução impessoal de uma definição tirada de um qualquer tratado de teologia. A questão vai dirigida ao âmago do nosso ser e exige uma tomada de posição pessoal, um pronunciamento sincero, sobre a forma como Jesus toca a nossa vida. A resposta a esta questão é o passo mais importante e decisivo na vida de cada crente. Quem é Jesus para nós? Que lugar ocupa Ele na nossa existência? Que valor damos às suas propostas? Que importância assumem os seus valores nas nossas opções de vida? Jesus é, para nós, a grande referência, o vetor à volta do qual o nosso mundo se constrói? Ele é para nós, de facto, “caminho, verdade e vida”?
  • Evangelho do vigésimo quarto domingo comum coloca frente a frente a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se pudermos cercar-nos de bem-estar e garantir que os nossos dias decorram tranquilos e confortáveis, se assegurarmos a nossa quota de poder e influência… A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade… Na nossa vida de cada dia estas duas perspetivas confrontam-se, a par e passo e exigem de nós um posicionamento claro. Qual é a nossa escolha? Na nossa perspetiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
  • Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação. Neste texto fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita terminantemente. Que significado e que lugar ocupam na nossa vida os projetos de Deus? Esforçamo-nos, como Jesus, por descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e a respeito do mundo? Mantemo-nos atentos, em cada passo do nosso caminho, a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus nos interpela? Somos capazes de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os nossos interesses e projetos pessoais?
  • O que é que faz de nós verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que nem sempre punha em relevo o essencial do cristianismo: o seguimento de Jesus. No entanto, a identidade cristã constrói-se à volta de Jesus, do seu Evangelho, da sua proposta de vida. Sentimo-nos verdadeiramente discípulos de Jesus? Estamos disponíveis, de alma e coração, para ir atrás d’Ele no caminho da doação da vida e do amor até às últimas consequências?
  • Jesus convida os seus discípulos a renunciarem a si mesmos… O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência, a ambição, a mentira, dominem a nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado na sua zona de segurança, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Até que ponto estamos disponíveis para renunciar a nós mesmos e para colocar a nossa vida ao serviço do projeto de Deus?
  • Jesus também convida os seus discípulos a tomarem a cruz… O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte, se for necessário; é gastar cada instante da vida a servir, a amar, a cuidar, a fazer o bem… O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos. Aceitamos tomar cada dia a nossa cruz e a viver para os outros, como Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

A proclamação das leituras deve ter em conta as diversas perguntas que surgem nos dois textos.

Na primeira leitura, inserida nos chamados “Cânticos do Servo de Javé”, é necessário ter em atenção as respostas que intercalam as perguntas, cuidando a articulação entre as frases interrogativas e declarativas, sublinhando a força das palavras finais que são como uma profissão de fé: «O Senhor Deus vem em meu auxílio. Quem ousará condenar-me?».

Na segunda leitura, entre as várias perguntas, ter uma especial atenção na frase interrogativa mais longa, que contém no seu interior texto em discurso direto. A proclamação desta leitura deve ainda considerar a última frase – «Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé» como conclusão de toda a leitura e como mensagem fundamental que S. Tiago quer transmitir.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O CAMINHO DE JESUS

Também hoje, dada a importância de que se reveste, optamos por visitar mais de perto o texto do Evangelho deste Domingo XXIV do Tempo Comum (Marcos 8,27-35), disponibilizando-o em tradução literal:

«E saiu JESUS e os DISCÍPULOS d’ELE (hoi mathêtaì autoû) para as povoações de Cesareia de Filipe. E, NO CAMINHO (en tê hodô), perguntou aos DISCÍPULOS d’ELE, dizendo-lhes: “Quem dizem as pessoas que EU SOU?”. Eles disseram-LHEdizendo: “João Baptista; outros, Elias, e outros ainda, um dos profetas”. E ELE perguntou-lhes: “E VÓS, quem dizeis que EU SOU?” Respondendo, Pedro diz-LHE: “TU és o CRISTO”. E censurou-os (epetímêsen) para não dizerem a ninguém acerca d’ELE.

E COMEÇOU A ENSINÁ-LOS (kaì êrxato didáskein autoús) que é preciso (deî) o FILHO DO HOMEM sofrer muitoser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. E abertamente (parrêsía) falava esta palavra. E tomando-O consigo (proslabómenos), Pedro começou a censurá-lo (epitimân) (cf. 9,31-32; 10,32-34). ELE, porém, voltando-se e vendo os DISCÍPULOS d’ELE, censurou (epetímêsen) Pedro e diz: “Vai para trás de MIM (hypáge opísô mou), satanás, pois não tens em consideração as coisas de Deus, mas as dos homens”.

E chamando para SI (proskalesámenos) a MULTIDÃO, juntamente com os DISCÍPULOS d’ELE, disse-lhes: “Se alguém quiser atrás de MIM SEGUIR (opísô mou akoloutheîn), RENEGUE (aparnêsásthô: imp. aor. de aparnéomai) a si mesmo (heautón), TOME A SUA CRUZ e SIGA-ME, pois aquele que quiser salvar a própria vida, vai perdê-la, mas o que perder a própria vida por causa de MIM e do Evangelho, vai salvá-la”» (Marcos 8,27-35).

O episódio «NO CAMINHO» de Cesareia de Filipe abre significativamente com o nome «JESUS», abandonado 89 versículos atrás, em Marcos 6,30! Forma clara e enfática de o narrador dizer ao leitor que estamos perante um episódio importante, justamente considerado o centro geométrico e teológico do Evangelho de Marcos. Ao apresentar JESUS e os seus discípulos NO CAMINHO, o narrador abre a secção central deste Evangelho (Marcos 8,27-10,52), normalmente intitulada: «O seguimento de Jesus NO CAMINHO», que é o CAMINHO que conduz da Galileia a Jerusalém, o CAMINHO da formação de Jesus aos seus discípulos. Vamos seguir a par e passo esta importante secção do Evangelho de Marcos durante sete Domingos, desde o Domingo XXIV até ao Domingo XXX.

Cesareia de Filipe, tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Aí construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto.

É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que JESUS põe a questão da sua identidade. Soberanamente JESUS pergunta: «Quem dizem as pessoas que eu sou?» (8,27), para acrescentar logo de seguida: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29). A pergunta é única em todo o arco da Escritura. Ninguém, antes ou depois de Jesus, em toda a Escritura, fez ou fará uma pergunta semelhante.

Para o povo, JESUS é um profeta. Um entre muitos. Mas para Pedro, Jesus não é apenas um entre muitos. Ele é Único e Último (cf. Marcos 12,1-12), o Rei definitivo, o Cristo, o Messias, que traz todo o bem para o seu povo («Fez tudo bem feito»: Marcos 7,37). E assim, à questão direta e enfática – «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29) – posta por JESUS aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Pedro responde: «Tu és o Cristo!». Note-se bem que JESUS não pergunta simplesmente: «Quem sou Eu?», mas: «Quem dizeis vós que Eu sou?». Dizer é mais do que um saber. Implica o compromisso, a vida, de quem diz.

À primeira vista, parece que Pedro respondeu acertadamente. Mas o contexto mostra que o discípulo não reunia competência sobre a matéria, não estava ainda em condições de fazer as operações mentais e afetivas necessárias para uma resposta correta que reunisse todos os elementos necessários de modo a implicar na resposta o respondedor. O dizer de Pedro ainda era um dizer antigo, tradicional e convencional, sem implicações pessoais. Pedro ainda não tinha nascido de novo e do alto e do Espírito. Como podia dizer JESUS? «Tu és o Cristo!», respondeu Pedro. Fosse qual fosse a ideia que Pedro tivesse de «Cristo», vê-se logo no seguimento do texto, que no «Cristo» de Pedro não entrava o sofrimento, a rejeição, a morte, a ressurreição (8,31-32). Muito menos a adesão pessoal de Pedro a este «Cristo». Na verdade, Pedro recrimina JESUS pelo CAMINHO de rejeição, sofrimento e morte que Ele acaba de mostrar como sendo o verdadeiro CAMINHO de «Cristo» segundo JESUS. O CAMINHO de «Cristo» segundo Pedro só inclui triunfo e sucesso.

Por isso, porque Pedro acertou com a resposta – na verdade, JESUS é o «Cristo» –, mas não é o «Cristo» como Pedro pensa que é, JESUS impõe soberanamente silêncio (8,30). O silêncio imposto por JESUS aos seus discípulos pode passar falsamente a ideia do chamado «segredo messiânico», segundo o qual JESUS não quereria que a sua identidade, uma vez descoberta, fosse divulgada. Trata-se, antes, de impedir que respostas, porventura certas nas palavras, mas erradas nos conteúdos, e elaboradas apenas com base em elementos convencionais e tradicionais (o «Cristo» do judaísmo), que não implicam um verdadeiro dizer pessoal, um novo nascimento do alto e do Espírito, sejam transmitidas boicotando assim o nascimento do conhecimento profundo e verdadeiro da novidade de JESUS e a implicação pessoal de quem diz JESUS e se diz face a JESUS. O verdadeiro sujeito deste dizer não o pode ser só por fazer parte de alguma instituição que confere credibilidade ao seu dizer já antes de começar a dizer, como, por exemplo, os escribas ou os próprios discípulos de JESUS.

Porque há muita coisa que os discípulos ainda têm de aprender, antes de saberem dizer JESUS, soberanamente JESUS começou a ensinar (8,31). É grandemente sintomático que o narrador empregue a mesma expressão («E começou a ensiná-los») quando JESUS ensina a semente (Marcos 4,1-2), quando ensina o pão (Marcos 6,34s.), e quando ensina a Paixão, Morte e Ressurreição (Marcos 8,31s.). Em boa verdade, JESUS é a semente e é também o pão, linguagem que ilumina e é iluminada pela Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Veja-se o dito condensado de João 12,24: «Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto».

Já sabemos que Pedro respondeu antes do tempo com um punhado de palavras convencionais, que vinham na corrente da tradição judaica. Ainda não tinha nascido do alto e do Espírito, como sujeito novo de ação [= dizer e fazer], face à novidade de JESUS. Falta-lhe fazer aquele «caminho» transitivo e intransitivo, longo, gradual e tortuoso, da Galileia até à Cruz, que JESUS aponta logo de seguida aos seus discípulos e ao leitor. Aí nascerá para a Glória a humanidade de JESUS, enquanto nascerá Pedro como sujeito apto para dizer JESUS e se dizer face a JESUS. Por agora, Pedro e os discípulos e a multidão e o leitor devem «dizer energicamente não» (aparnéomai) a si mesmos e ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS, para seguir o Mestre ao longo do CAMINHO. Este «dizer não» a si mesmo implica uma forte conotação de rejeição, que Isaías usa para a rejeição dos ídolos: «Naquele dia, Israel rejeitará (aparnéomai) os seus ídolos de prata e os seus ídolos de ouro, trabalho das vossas mãos pecadoras» (Isaías 31,7). Marcos só usa esta expressão aqui e no anúncio feito por Jesus da negação de Pedro (Marcos 14,30-31) e na recordação desse anúncio por parte de Pedro (Marcos 14,72). A lição é clara: ou «dizemos não» a nós mesmos ou acabaremos sempre por «dizer não» a JESUS.

Ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS. Note-se a tradução correta: «Vai para trás de MIM» (hypáge opísô mou) (8,33), e não: «Afasta-te de MIM», como se vê em muitas traduções. «Atrás de MIM» é o lugar do discípulo, que segue o Mestre passo a passo, que deve ter em consideração as coisas de Deus, e não as dos homens. É, de resto, a mesmíssima linguagem posta na boca de JESUS aquando do chamamento de Pedro e André: «Vinde atrás de Mim (deûte ôpísô mou)» (Marcos 1,17).

Seguindo atentamente «atrás de» Jesus neste caminho de formação que constitui a secção central de Marcos (8,27-10,52), estes sete Domingos fazem-nos viver, episódio após episódio, importantes situações pedagógicas.

O chamado «Terceiro Canto do Servo de YHWH» (Isaías 50,5-9) faz eco ao caminho do Filho do Homem e de todo aquele que o quiser seguir, aberto no Evangelho de hoje em duas vagas sucessivas (Marcos 8,31-33 e 8,34-35). Este itinerário de Jesus para a Cruz e a Ressurreição será ainda acentuado por mais duas vezes (Marcos 9,30-31 e 10,32-34), mas esta declaração será sempre acompanhada de uma declaração paralela sobre o seu discípulo (Marcos 9,35 e 10,43-45). O retrato do discípulo de Jesus deve decalcar os traços do retrato do Mestre. Tal como Jesus, também o seu discípulo tem de ser o homem da doação total, sem reservas. Assim é também o Servo de YHWH que caminha, sem recuos, enfrentando determinado o sofrimento, mas sempre assistido pelo seu Deus. Esta determinação aparece traduzida pela expressão: «Tornei o meu rosto duro como pedra» (Isaías 50,7), que é como quem diz que tomou uma decisão da qual não poderá voltar atrás. Lucas pediu emprestada a Isaías esta forma de dizer para vincar a determinação com que Jesus orienta o seu rosto na direção de Jerusalém (Lucas 9,51).

Outra vez a lição oportuna e contundente de S. Tiago (2,14-18), a lembrar-nos que a fé que professamos é um dom de Deus, e tem de ser professada, não apenas com os lábios, mas com gestos concretos de caridade. A fé com alegria recebida deve ser com alegria dita e com alegria feita em pequenos gestos de amor. Não. Não se trata da fé contra as obras, nem de Tiago contra Paulo. Veja-se o dizer de Paulo aos Gálatas: «Em Cristo Jesus nada conta… senão a fé que opera por meio da caridade» (Gálatas 5,6).

O Salmo 116 apresenta-se composto por dois painéis, que formam um díptico. O primeiro integra os v. 1-9, e abre com: «Eu amo». O segundo reúne os v. 10-19, e abre com: «Eu acreditei». O painel de hoje, o primeiro, abre, como vimos, com «Eu amo». O objeto deste amor do orante é Deus, o seu Deus, e são logo evocadas as razões pelas quais o orante ama o seu Deus. Porque ouviu a sua súplica, se debruçou sobre ele, salvou a sua vida, transformou as suas lágrimas em alegria, porque é bom, justo e compassivo. Sim, o nosso Deus é digno de confiança, está sempre atento à nossa vida, caminha connosco. É bom, belo e justo que nós caminhemos também com Ele.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano B – 08.09.2024

Viver a Palavra

            “Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto à parte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros!

            E eis que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros, tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus sobre os outros.

            A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João XXIII respondeu:” o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas.

            Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”. in Dehonianos.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 35,4-7a

Dizei aos corações perturbados:
«Tende coragem, não temais.
Aí está o vosso Deus;
vem para fazer justiça e dar a recompensa;
Ele próprio vem salvar-nos».
Então se abrirão os olhos dos cegos
e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
Então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria.
As águas brotarão no deserto
e as torrentes na aridez da planície;
a terra seca transformar-se-á em lago
e a terra árida em nascentes de água.

CONTEXTO

            Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo a que os biblistas chamam o “pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27). Descrevem o castigo definitivo das nações inimigas de Israel, particularmente de Edom, o povo nascido de Esaú, irmão de Jacob (capítulo 34), e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos (capítulo 35).

            Estes dois capítulos, pelos motivos e pela temática, parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é o profeta designado por Deutero-Isaías, que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Por que razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33 (especialmente pelo capítulo 33).

            O autor destes dois capítulos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (por volta do ano 550 a.C.). A sua intenção é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías).

            Depois de apresentar o julgamento de Deus sobre as nações (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque chegou a hora da libertação. A própria terra (o Líbano glorioso, o belo monte Carmelo e a policromada planície do Saron) alegrar-se-á, vestir-se-á das suas melhores cores, encher-se-á de flores para celebrar a iniciativa salvadora de Deus e para acolher os exilados que regressam triunfalmente (cf. 35,1-2).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Para uns, o nosso tempo é um tempo fascinante, cheio de realizações, de descobertas, de conquistas, que abrem aos seres humanos possibilidades infinitas. Para outros, no entanto, o nosso tempo é um tempo assustador, marcado pelo sobreaquecimento do planeta, pela subida do nível do mar, pela destruição da camada do ozono, pela eliminação das florestas, pela poluição dos rios e mares, pelo espectro da fome e da miséria de biliões de seres humanos, pelas guerras cada vez mais violentas e destruidoras, pelo risco de holocausto nuclear… Para todos, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos escuros do pessimismo?
  • Os crentes, seja qual for a avaliação que façam do mundo e das suas cores, não podem esquecer que “Deus está aí”: Ele preside à história humana, Ele conhece e acompanha a caminhada dos homens, Ele abraça a humanidade inteira com o seu carinho e a sua ternura de pai e de mãe. É Ele que faz com que o deserto se revista de vida nova e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança; é Ele que ilumina o caminho para que não andemos aos tropeções, na escuridão; é Ele que desperta os surdos do seu isolamento e da sua autossuficiência e os convida a escutar os gritos de sofrimento dos pobres; é Ele que devolve aos coxos, presos por cadeias de opressão, de injustiça e de pecado, a possibilidade de serem livres. É com a certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história. Confiamos em Deus, na sua providência, na sua solicitude, no seu amor?
  • O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. E nós, chamados a ser no mundo sinais vivos de Deus, somos profetas da desgraça, ou arautos e testemunhas da esperança? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 145 (146)

Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.

Refrão 2: Aleluia.

 

O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.

O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.

O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.

O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.

LEITURA II – Tiago 2,1-5

Meus irmãos:
A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
não deve admitir aceção de pessoas.
Pode acontecer que na vossa assembleia
entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
e entre também um pobre e mal vestido;
talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
«Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
Não estareis a estabelecer distinções entre vós
e a tornar-vos juízes com maus critérios?
Escutai, meus caríssimos irmãos:
Não escolheu Deus os pobres deste mundo
para serem ricos na fé
e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?

CONTEXTO

            O autor da “Carta de Tiago” apresenta-se a si próprio como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). A tradição identifica-o com o Tiago “irmão do Senhor”, figura de referência na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-25), que foi martirizado no ano 62. No entanto, é pouco provável que esse Tiago tenha sido o autor deste escrito. Também não parece provável que a carta tenha sido escrita por Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19; 3,17), ou pelo outro Tiago, o “filho de Alfeu” (cf. Mc 3,18), que fazia parte do grupo dos Doze apóstolos.

            A carta é endereçada “às doze tribos da Dispersão” (Tg 1,1). Isso pode querer dizer que o documento se destinava a cristãos de origem judaica que viviam fora da Palestina; no entanto, as “doze tribos da Dispersão” também podem, em sentido figurado, ser as comunidades cristãs dispersas pelo mundo greco-romano.

            Seja como for, o autor desta carta é um escritor exímio, que se exprime muito bem na língua grega, apesar de usar diversos semitismos. Tem um vocabulário rico e utiliza recursos estilísticos de belo efeito.

            A Carta de Tiago não é um tratado de teologia. É, digamos assim, um conjunto de reflexões de um mestre cristão empenhado em propor, a partir da mensagem de Jesus, um caminho de vida cristã autêntica. Os discípulos de Jesus, destinatários da carta, são exortados a acolher a sabedoria que vem do alto e a deixar que ela os guie pelo caminho da fé e da vida.

            O texto que a liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe como segunda leitura pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26), que reflete sobre a fé. De uma forma muito prática, este “sábio” cristão ensina que a fé se concretiza no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); e que a fé se expressa, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). De acordo com o autor da Carta de Tiago, a fé dos crentes deve ser uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O autor da Carta de Tiago tem razão: a nossa fé em Cristo Jesus é incompatível com qualquer atitude que sugira a aceção de pessoas. Sabemos como Jesus viveu: Ele sentou-se à mesa com os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um publicano para fazer parte do seu grupo de discípulos, disse que os pobres eram os filhos queridos de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava amaldiçoados e condenados… Ora, a comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o rosto vivo de Cristo; por isso, deve ser a “casa de família” onde todos os filhos de Deus, sem exceção, se sentem acolhidos, queridos e amados. Isto é, naturalmente, uma evidência que ninguém contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com respeito e amor? Na nossa comunidade cristã tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem, quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante de certas opções dos responsáveis da comunidade?
  • Na nossa vida do dia a dia deparamo-nos, a cada passo – no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso prédio, talvez até na nossa família – com pessoas que têm ideias diferentes, das nossas, que têm comportamentos que reprovamos, que talvez levam vidas pouco recomendáveis, que vivem “fora da caixa” e não são social ou politicamente corretas… Como lidamos com as pessoas “diferentes”, com aqueles que a sociedade marcou, julgou e condenou? Somos, para todos e em todos os momentos, testemunhas daquele Jesus que nunca fez aceção de pessoas e que acolheu até aqueles que a sociedade julgava e condenava?
  • Deus tem uma relação privilegiada com os pobres. Isto não quer dizer, contudo, que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de outros… Na verdade, Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns acolhem os seus dons e outros não… Os “pobres” são aqueles que, na sua simplicidade e humildade estão disponíveis para acolher os dons de Deus. Estamos conscientes de que temos de despir-nos do orgulho, da autossuficiência, dos preconceitos, das ostentações, das vaidades, para que nos nossos corações haja espaço para os desafios e as propostas de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 7,31-37

Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

CONTEXTO

            Na fase final da “etapa da Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu projeto, apesar do rasto de esperança que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e a passar, por algum tempo, ao território pagão.

            Marcos refere, neste contexto, uma viagem de Jesus pela Fenícia, que o leva até Tiro e Sídon, cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no Líbano atual (cf. Mc 7,24). Aí teria curado a filha de uma mulher pagã, siro-fenícia de origem (cf. Mc 7,25-30). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus não teria vindo diretamente na direção do Mar da Galileia, mas teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). O nome Decápole servia para designar uma liga de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Bet-Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata), que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos (ano 63 a.C.). Essas cidades situavam-se a oriente do Mar da Galileia e estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram centros de cultura grega, e cada uma delas tinha um certo grau de autonomia. Os judeus, por sua vez, viam a Decápole como um território pagão, completamente à margem dos caminhos da salvação.

            É nesse ambiente geográfico e humano que Marcos situa a cura, por Jesus, de um homem surdo-mudo. Provavelmente o catequista Marcos está a sugerir, com este enquadramento, que o anúncio do Evangelho aos pagãos – que alguns anos mais tarde, após o Concílio de Jerusalém, vem a ser uma aposta firme da comunidade cristã – foi algo que estava já nos planos e na prática de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A “surdez” e a “mudez” que atacam os seres humanos não estavam no plano original de Deus para a humanidade. Deus criou o ser humano para a relação, para o diálogo, para a comunhão (“não é conveniente que o homem esteja só” – disse Deus no início de tudo – cf. Gn 2,18). A “surdez” e a “mudez” que nos paralisam e nos tornam infelizes não vêm de Deus, mas são consequência das escolhas erradas feitas pelo homem. Contudo, Deus nunca se conformou com essa opção que priva os seres humanos de Vida verdadeira. Para nos curar da nossa “surdez” e da nossa “mudez”, enviou-nos o seu Filho, a sua “Palavra eterna”. Cumprindo a missão que o Pai Lhe entregou, Jesus convidou-nos insistentemente a superar o egoísmo, a autossuficiência, o isolamento, e a abrir o coração à comunhão, à partilha, ao amor (“effathá”, “abre-te”). Estamos disponíveis para nos encontrar com Jesus, para acolher o desafio que Ele nos veio propor, para assumir os valores do Reino de Deus, para O seguir até à cruz, até ao dom da vida por amor? Estamos convictos de que escolher viver na “surdez” e na “mudez” é uma opção estúpida, que impede a nossa realização plena, a nossa felicidade?
  • O “surdo-mudo”, incapaz de escutar a Palavra de Deus, pode perfeitamente representar aqueles homens e mulheres que vivem fechados aos projetos e aos desafios de Deus, que não têm espaço nem disponibilidade para Deus e para as suas propostas. Essa é, aliás, uma das “doenças” mais significativas do nosso tempo. O que carateriza o séc. XXI não é o ateísmo; mas é a indiferença em relação a Deus. Muitos dos nossos contemporâneos optam por permanecer surdos a Deus e às suas indicações; o que Deus diz e propõe não lhes interessa. O que é que as propostas de Deus significam para nós? Damos ouvidos aos apelos e desafios de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo nos apresenta?
  • O “surdo-mudo” pode também ser figura daqueles que não se preocupam em comunicar, em escutar e acolher os outros, em partilhar a vida, em deixar-se questionar pelas achegas e sugestões dos irmãos… Os “surdos-mudos” são que não precisam dos irmãos para nada, que vivem instalados nas suas certezas e nos seus preconceitos, convencidos de que são donos absolutos da verdade; são aqueles que não têm tempo nem disponibilidade para ouvir os outros com paciência e compaixão, que não conseguem compreender os erros e as falhas dos outros e não sabem perdoar… Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril, triste, egoísta, fechada, sem amor. Temos consciência de que nesse caminho nunca encontraremos a nossa realização e a nossa felicidade?
  • O “surdo-mudo” representa ainda aqueles que se fecham no egoísmo e no comodismo e ficam indiferentes aos apelos do mundo… Somos “surdos-mudos” quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as nossas mãos; somos “surdos-mudos” quando toleramos estruturas que geram injustiça, miséria, sofrimento e morte; somos “surdos-mudos” quando pactuamos com valores que tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos “surdos-mudos” quando encolhemos os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao analfabetismo; somos “surdos-mudos” quando nos demitimos das nossas responsabilidades e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos “surdos-mudos” quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos “surdos-mudos” quando nos resignamos a vegetar no nosso espaço de conforto, sem nos empenharmos na construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez-mudez” descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
  • O “surdo-mudo” de que o Evangelho deste vigésimo terceiro domingo comum nos fala foi trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. Isto deve fazer-nos pensar na nossa obrigação de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros da “surdez-mudez” e a proposta libertadora de Jesus. Poderemos ficar de braços cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de fechamento, de egoísmo, de autossuficiência, e renuncia assim à possibilidade de construir uma vida com sentido? O que poderemos fazer – respeitando sempre as opções e a liberdade de cada um – para que os “surdos-mudos” que encontramos nos caminhos da vida descubram a alegria do encontro, da comunhão, da partilha, do serviço, do amor?
  • Antes de curar o “surdo-mudo”, Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus. Não conseguiremos ser arautos de uma nova humanidade – de uma humanidade liberta do egoísmo e da autossuficiência – se não nos mantivermos conectados com Deus, em diálogo com Deus, atentos aos projetos e desafios de Deus, fortalecidos pelo Espírito de Deus. Deus é a nossa referência, a razão última de tudo aquilo que fazemos? Procuramos encontrar tempo para o escutar, para lhe colocar as nossas dúvidas e questões, para falar com Ele e para entender os seus caminhos e projetos? Quando tentamos fazer alguma coisa em favor de alguém, sentimos que agimos em nome de Deus e não em nome de nós próprios ou dos nossos projetos e interesses? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

TUDO FEZ BEM FEITO

            Em termos de caixilho geográfico, a cura de um surdo-mudo narrada no Evangelho deste Domingo XXIII (Marcos 7,31-37) decorre fora das fronteiras de Israel, a oriente do mar da Galileia, na Decápole. Além do episódio de hoje, o Evangelho de Marcos regista apenas mais três episódios fora das fronteiras de Israel: também na Decápole (Gerasa), a cura de um endemoninhado (5,1-20) e a segunda «multiplicação» dos pães (8,1-9), e a Noroeste, na região de Tiro, o episódio da mulher sirofenícia (7,24-30). Estas saídas do Evangelho em pessoa para terra pagã baralham os nossos esquemas de «antes» e «depois» [primeiro os judeus, depois os gregos], próprios da nossa mentalidade fechada, mas que não cabem no amor de Deus. Além disso, podem ser vistos ainda como uma prolepse da futura pregação do Evangelho entre os pagãos.

            Sendo um entre muitos relatos de cura por parte de Jesus, este episódio da cura de um surdo-mudo apresenta uma fisionomia própria assente em traços singulares. As pessoas trazem o pobre homem, incapaz de falar e de ouvir e inapto para entrar na assembleia de Deus, e pedem a Jesus que lhe imponha as mãos (Marcos 7,32). Em vez disso, Jesus faz uma série de ações: 1) toma-o à parte, para longe da multidão; 2) toca os órgãos privados da sua função: ouvidos e língua; 3) ergue os olhos para o céu; 4) suspira; 5) diz para o surdo-mudo: «Effatha, abre-te!».

            Jesus atende sempre a nossa súplica. Mas não do modo que lhe pedimos. Assim: não impôs as mãos ao surdo-mudo, mas tocou com as suas mãos os ouvidos e a língua daquele homem. Entenda-se já este gesto e mais do que este gesto: é tocando com as suas mãos tudo o que está doente, que Jesus o assume e o cura. É assumindo a nossa carne toda de pecado, de recusa e violência, que Jesus cura a nossa humanidade ferida e pecadora. Ergue os olhos para o céu: gesto sacerdotal da oração sacerdotal de Jesus (João 17,1). Suspirou: suspirar (stenázô) é rezar e interceder por nós à maneira do Espírito, que intercedia por nós com «suspiros sem palavras» (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26). O gesto de erguer os olhos para o céu, gesto de oração, logo traduzido no suspiro mostra que Jesus age em especialíssima relação com o Pai. De resto, no contexto de uma cura, só aqui Jesus ergue os olhos para o céu; do mesmo modo, só Marcos recorda o suspiro de Jesus (7,34; 8,12). Riquíssima simbologia. Também só aqui (Effatha) e em Marcos 5,41 (Thalitha kûm), a ordem de Jesus aparece pronunciada em aramaico, e depois traduzida em grego. Effatha (etftah, de ptah, abrir).

            Depois desta sequência de gestos de Jesus, que culmina com aquela ordem (Effatha), o sucesso surge imediatamente: o surdo-mudo abre-se, e começa a ouvir e a falar (Marcos 7,35). E a multidão reage manifestando um estado de maravilha (exeplêssonto: imperf. pass. de ekplêssô) para além de todas as medidas (hyperperismòs) (Marcos 7,37a), expressão que não encontramos em mais nenhum lugar do Evangelho. E a palavra que acompanha o espanto: «Bem todas as coisas fez: os surdos faz ouvir e os mudos falar» (Marcos 7,37b). remete claramente para a obra da criação (Génesis 1).

            Serve de chão ao Evangelho de hoje o texto de Isaías 35,4-7, que se integra no chamado «Pequeno Apocalipse de Isaías» (Isaías 34-35). Neste díptico, que reúne a destruição de Edom (34) e a resturação de Judá (35), fica à vista um belo link, que fecha, como em analepse, a linha desgraçada que pervade Isaías 1-33, e aponta, em prolepse, para a nova página, paisagem renovada, que aparecerá em Isaías 40-48. Se o Capítulo 34 aparece construído sobre um mundo de castigo e de julgamento, de cólera e destruição, o Capítulo 35 transporta-nos para um mundo de paz e de alegria, pondo em destaque a marcha de todo um povo que se levanta da miséria para a esperança e liberdade. É neste contexto de felicidade, novo Êxodo e nova Criação, que se leem as expressões: «Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos hão de desobstruir-se. Então o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo cantará de alegria» (Isaías 35,5-6). O Evangelho de hoje mostra a realização deste sonho. A exuberância de Isaías 35 não encaixa diretamente na estrada descrita em Isaías 40,3-5, e que é a estrada geográfica que conduz da Babilónia até Judá, no regresso do Exílio. Isaías 35 apresenta um colorido fortemente escatológico, que constitui uma metáfora para dizer a passagem deste mundo para o mundo novo que há de vir. Não se pode, portanto, sem mais, acostar Isaías 35 a Isaías 40 e ao chamado «segundo Isaías», e alinhá-los em continuidade. Há um problema de monta a considerar para evitar cair nessa tentação, e esse problema consiste em que as particularidades históricas de Isaías 40-55 estão completamente ausentes de Isaías 35, que apresenta um cenário completamente a-histórico, semelhante a uma projeção imaginária para o futuro, de colorido não histórico, mas de teor muito mais escatológico, ético e espiritual, que será, de resto, o sentido que se irá encontrar, com o mesmo vocabulário, em Isaías 57,14 e 62,10. Isto chega para mostrar que a estrada de Isaías 35 se associa, não tanto com o chamado «segundo-Isaías», mas mais com o chamado «trito-Isaías». É a todos os níveis  compreensível que a auto estrada histórico-geográfica de Isaías 40,3-5 seja expandida e transformada na auto estrada espiritual de Isaías 35, Isaías 57,14 e Isaías 62,10. E é assim também que o tema da auto estrada espiritual chegará a João Batista, o qual, nos alvores do Novo Testamento, e postando-se expressamente na linha de Isaías, continua a convocar o povo para a construção da ponte da conversão que leva a uma vida nova (cf. Mateus 3,3; Marcos 1,3; Lucas 3,4; João 1,23).

            S. Tiago continua, na incisiva lição de hoje (2,1-5), a reclamar a nossa atenção carinhosa para com os pobres, que são os escolhidos de Deus. E adverte-nos de que não podemos encher os olhos com os ricos, e pôr de lado os pobres, pois não pode haver disjunção entre culto e vida, fé e empenho eclesial. Na verdade, a nossa fé em Cristo tem de se traduzir em obras compatíveis. A atenção e o carinho que pusermos no nosso relacionamento com os pobres será sempre o exame e a verificação da nossa fé.

            É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo faz-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXII do Tempo Comum – Ano B – 01.09.2024

Viver a Palavra

            A Liturgia da palavra deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei” de Deus, que não se esgota no mero cumprimento de ritos ou de práticas vazias de significado. A “Lei” de Deus (1.ª Leitura) é o caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Para Jesus (Evangelho) a verdadeira religião não se centra no cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à comunhão com Deus e com os irmãos. Por isso (2.ª Leitura) a Palavra escutada e acolhida no coração tem de tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e com os homens. in Voz Portucalense.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 4,1-2.6-8

Moisés falou ao povo, dizendo:
«Agora escuta, Israel,
as leis e os preceitos que vos dou a conhecer
e ponde-os em prática,
para que vivais e entreis na posse da terra
que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais.
Não acrescentareis nada ao que vos ordeno,
nem suprimireis coisa alguma,
mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus,
tal como eu vo-los prescrevo.
Observai-os e ponde-os em prática:
eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência
aos olhos dos povos,
que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão:
‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’
Qual é, na verdade, a grande nação
que tem a divindade tão perto de si
como está perto de nós o Senhor, nosso Deus,
sempre que O invocamos?
E qual é a grande nação
que tem mandamentos e decretos tão justos
como esta lei que hoje vos apresento?»

CONTEXTO

            O Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei” (ou parte dele) que, de acordo com a notícia de 2 Re 22, 8-13, foi descoberto no Templo de Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nesse livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os elementos principais da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma Aliança eterna; o Povo de Deus é propriedade pessoal de Javé e deve viver para o serviço de Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé por direito.

            Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

            O texto que a liturgia do vigésimo segundo domingo comum nos propõe como primeira leitura apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”. Isso indica que, na perspetiva dos teólogos deuteronomistas, o compromisso que agora se vai pedir a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

            O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. Neste contexto os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Na catequese de Israel, as leis e os preceitos dados por Javé são vistos como o resultado do amor e da solicitude de Deus pelo seu Povo. O Deus criador, libertador e salvador acompanha os passos que Israel dá na história e, a cada instante, oferece-lhe indicações seguras sobre o caminho a seguir. A escuta e o acolhimento dessas “palavras” de Deus garantem, quer em termos pessoais, quer em termos comunitários, felicidade, harmonia, paz, Vida em abundância. Ora, o tesouro da Palavra de Deus continua à nossa disposição hoje. Os tempos são diferentes, mas as indicações de Deus não têm prazo de validade: continuam a dizer, aos homens e mulheres do séc. XXI, o que devem fazer para construírem vidas com sentido. Que importância é que as palavras de Deus assumem na construção da nossa vida e na escolha dos nossos caminhos? No meio da azáfama e do ativismo em que a nossa vida decorre, conseguimos encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e para interiorizar a Palavra eterna de Deus?
  • Há quem considere que as leis e preceitos de Deus condicionam a autonomia e limitam a liberdade do homem; há quem veja nas leis e preceitos de Deus expressões de uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, há quem olhe para as leis e preceitos de Deus como um caminho sempre válido, que ajuda os seres humanos a construírem vidas com sentido, livres de todas as escravidões e balizadas por valores verdadeiros, como o amor, a partilha, o serviço, o dom da vida… E nós, como vemos e entendemos as leis e preceitos de Deus?
  • Uma das recomendações do texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais ou grupais. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspetos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham connosco, que nos questionam e que partilham connosco a sua perspetiva das coisas. Que Palavra testemunhamos: a de Deus, ou a nossa? Aceitamos que a nossa visão pessoal das coisas seja confrontada com perspetivas ou entendimentos diferentes? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 14 (15)

Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?
Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?

 

O que vive sem mancha e pratica a justiça
e diz a verdade que tem no seu coração
e guarda a sua língua da calúnia.

O que não faz mal ao seu próximo nem ultraja o seu semelhante,
o que tem por desprezível o ímpio,
mas estima os que temem o Senhor.

O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
e não empresta dinheiro com usura,
nem aceita presentes para condenar o inocente.
Quem assim proceder jamais será abalado.

LEITURA II – Tiago 1,17-18.21-22.27

Caríssimos irmãos:
Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto,
descem do Pai das luzes,
no qual não há variação nem sombra de mudança.
Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade,
para sermos como primícias das suas criaturas.
Acolhei docilmente a palavra em vós plantada,
que pode salvar as vossas almas.
Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes,
pois seria enganar-vos a vós mesmos.
A religião pura e sem mancha,
aos olhos de Deus, nosso Pai,
consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações
e conservar-se limpo do contágio do mundo.

CONTEXTO

            O autor da Carta de onde foi extraída a segunda leitura deste vigésimo segundo domingo comum apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (cf. Tg 1,1). A tradição liga-o ao Tiago “irmão” (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). De acordo com Flávio Josefo, teria sido martirizado em Jerusalém no ano 62. No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até a recursos retóricos como a “diatribe” (um género muito usado pela filosofia popular helénica), a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram nas palavras e no ensinamento de Jesus.

            A carta de Tiago foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, também pode referir-se, em termos metafóricos, à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo mundo greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Apela a que os cristãos vivam com coerência e verdade a própria fé.

            O texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-26). Aí, o autor apresenta, aparentemente sem ordem nem lógica, um conjunto de desenvolvimentos e de sentenças sobre a autenticidade e a coerência da fé. Convida os cristãos a enfrentarem com alegria as provações (Tg 1,2-18), a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus (cf. Tg 1,19-27), a viverem no amor (cf. Tg 2,1-13) e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos (cf. Tg 2,14-26). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Na nossa época há uma marcada tendência para a superabundância de palavras. As redes sociais, de forma especial, deram-nos possibilidades quase ilimitadas de fazer ouvir a nossa voz e de dar a nossa opinião sobre tudo o que nos apetecer. Isso abre-nos canais de comunicação, de diálogo e de partilha que nos enriquecem e nos aproximam uns dos outros. Mas, por outro lado, faz-nos viver imersos num ruído de fundo – muitas vezes feito de fake news, de opiniões pouco fundamentadas, de ditos pouco sérios, de pronunciamentos agressivos, de conversas sem conteúdo – que vai degradando o poder e a força das palavras. Habituamo-nos, para nossa defesa, a não levar demasiado a sério todas as palavras que escutamos, a relativizar aquilo que vamos ouvindo aqui e ali… E a Palavra eterna de Deus, como a situamos e valorizamos no meio de tudo isto? Ela tem, na nossa vida, um valor superlativo, ou é mais ou menos igual a tantas outras palavras que todos os dias ferem os nossos ouvidos e intoxicam a nossa mente?
  • Por vezes, nos nossos “tiques” de autossuficiência, temos a tentação de encarar as sugestões que nos são apresentadas como ingerências estranhas, que põem em causa a nossa autonomia e a nossa liberdade. Como reação, fechamo-nos no casulo das nossas certezas e rejeitamos aquilo que nos é proposto, correndo o risco de passar ao lado de desafios importantes. É por isso que o autor da Carta de Tiago nos convida a acolher a Palavra de Deus com docilidade, com boa vontade, com um coração disponível e obediente. Deus não é um adversário dos homens; as palavras que Ele diz nunca serão um atentado contra a nossa liberdade. Deus, ao propor-nos a “Palavra da verdade”, apenas pretende vestir a nossa vida de sentido e apontar-nos caminhos seguros para chegarmos à Vida em plenitude. Alguma vez encaramos as indicações de Deus como intromissões que limitam as nossas escolhas ou a nossa liberdade?
  • A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos deve conduzir-nos à ação e ao compromisso. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. A Palavra de Deus leva-nos efetivamente a uma mudança de vida, a um refazer as nossas prioridades, a uma purificação dos valores que sustentam a nossa caminhada? A Palavra de Deus faz-nos sair de nós próprios, abandonar a nossa zona de conforto e envolver-nos na luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos mais pobres, por um mundo mais humano e mais fraterno?
  • A vivência da religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos e práticas devocionais, a simples preservação de uma tradição que herdámos dos nossos antepassados, a adoção de práticas que tornam mais fácil a nossa inserção num determinado meio social… A Palavra de Deus põe-nos em diálogo com Deus, faz-nos conhecer os projetos de Deus, envolve-nos na vida de Deus, chama-nos a viver na obediência a Deus, compromete-nos com Deus e com o projeto que Ele tem para o mundo e para os homens. Que lugar tem a Palavra de Deus na nossa vivência religiosa? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 7,1-8.14-15.21-23

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
‘Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

CONTEXTO

            Enquanto andava pela Galileia a anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos fariseus e doutores da Lei (cf. Mc 2,6.16.18.24; 3,6.22).

            Os fariseus eram uma presença determinante no universo religioso judaico. Procuravam a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal – contagiar o povo com o amor que eles próprios sentiam pela Tora (a Lei). Apoiando-se nos “escribas” (ou “doutores da Lei”), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir cada passo da vida dos israelitas. A santidade, para eles, não estava reservada aos sacerdotes, mas era algo que dizia respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências da Lei. E quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias viria trazer a salvação a Israel. Nesse sentido, vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das “tradições dos antigos”.

            Essa “tradição dos antigos” não se cingia – na visão dos fariseus – às normas escritas contidas na Tora, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.

            Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. Como proceder? O cumprimento da Lei de Moisés era importante para a experiência cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (realizado por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rm 14,1-15,6).

            O evangelista Marcos está ciente, na altura em que escreve o seu Evangelho, de que esta questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos vindos do mundo judaico e cristãos vindos do mundo pagão. Neste relato, recorrendo à autoridade de Jesus, Marcos pretende responder a esta problemática. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Muitas pessoas estão mais à vontade com definições claras, objetivas e seguras; mas não se sentem tão à vontade no campo nem sempre bem balizado da consciência e do coração. Têm medo do imprevisto, do que é novo e diferente, daquilo que não é claramente “branco” ou “preto”. Por isso, sentem necessidade de leis que lhes digam, sem margem para dúvidas, o que devem fazer e o como devem viver. Preferem que seja outra pessoa – talvez até o padre – a pensar por elas, a decidir por elas, a dizerem-lhe o que está certo e o que está errado. Escondem-se atrás de leis e sentem-se de consciência tranquila porque descarregaram a sua responsabilidade nas leis. As leis são a sua salvaguarda, as leis definem o seu caminho, as leis são uma proteção segura para lidar com aquilo que as ultrapassa. Vivem a religião das leis. Se transgredirem as leis, confessam-se e voltam a estar de consciência tranquila. O problema é que esta forma de viver a religião não liberta, não traz alegria, não enche o coração de paz. Também não ajuda a abraçar a religião de Jesus, a religião do amor. As leis, na sua rigidez de pedra, deixam pouco espaço para o amor, a misericórdia, a compaixão. Era esse o problema de Jesus com a religião das leis e com os fariseus, os arautos dessa experiência religiosa. E nós? A nossa vivência religiosa está presa a leis que balizam tudo aquilo que fazemos e dizemos, ou é a religião do amor, da tolerância, da misericórdia, do Evangelho, da abertura de coração aos desafios sempre novos de Deus?
  • “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”, diz Jesus, citando o profeta Isaías. Esse é o risco de uma vivência religiosa que assenta na simples repetição de orações decoradas, na mera reprodução mecânica de respostas não assumidas interiormente, em hábitos e gestos rotineiros, em tradições fixas e imutáveis, num aparato externo que não envolve o coração e uma clara opção por Deus e pelas suas propostas. A nossa forma de viver e de celebrar a fé tem alguma coisa a ver com isto?
  • “A doutrina que ensinam são preceitos humanos”, diz Jesus. É inevitável: com o passar do tempo, as religiões vão acumulando normas, costumes, devoções, hábitos, tradições, rituais, fórmulas teológicas, que nasceram num determinado contexto cultural, social e religioso e que se transformaram em património inalienável. Todas essas coisas podem ser úteis e fazer bem; mas também podem fazer mal, se nos distraem e afastam da Palavra de Deus e do seguimento radical de Jesus. Os “preceitos humanos” nunca devem ter a primazia. Seria um erro grave se a comunidade de Jesus ficasse prisioneira das tradições humanas do passado e não buscasse, antes de tudo, a fidelidade a Jesus e ao Evangelho; seria uma falha grave se nos esforçássemos por manter intactas as tradições do passado, sem nos preocuparmos em dar testemunho vivo do Reino de Deus com a linguagem que os homens e mulheres do nosso tempo entendem; seria um grave equívoco se dessemos a mesma importância a certas leis da Igreja (sobre a liturgia, o jejum, o celibato dos padres, a organização paroquial, por exemplo) e às palavras de Jesus. Na nossa vivência da fé, a que é que damos o primeiro lugar: a tradições e a doutrinas humanas, ou à Palavra eterna e sempre nova de Deus?
  • “É vão o culto que me prestam”, diz Jesus. Ao dizer isto, Jesus poderia perfeitamente estar a falar de certas celebrações litúrgicas cheias de pompa e circunstância que todos os domingos se desenrolam nas nossas igrejas, mas que não correspondem, para aqueles que nelas participam, a uma opção clara por Deus e pela Vida de Deus: há celebrações do matrimónio que são meros acontecimentos de caráter social; há celebrações de batismo que não passam de atos impostos pela tradição familiar ou pela cultura ambiente; há celebrações da primeira caminhão que são vistos como simples “rituais de passagem” na história de vida de uma criança. Todas as nossas belas, solenes e elevadas celebrações litúrgicas são um encontro sincero com Deus? Quando vamos celebrar a fé preparamos o coração para o encontro com Deus?
  • “É do interior dos homens que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez”, diz Jesus. É verdade. Podemos criar todo o tipo de mecanismos legais que combatam a injustiça, a corrupção, a violência, as desigualdades sociais, a indiferença diante da miséria, a deterioração moral da sociedade… Mas nada disso modificará substancialmente o estado do nosso mundo se não atuarmos ao nível dos corações. A conversão é sempre um processo pessoal, que implica uma renovação do coração, um redirecionar o coração para Deus e para as propostas de Deus. Estamos disponíveis para uma conversão, para uma mudança do coração que nos leve a viver segundo Deus?
  • A “religião das leis” pode ter efeitos perversos na nossa forma de vermos Deus e de situarmos a nossa relação com Deus… Quando absolutizamos as leis, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Vivemos de acordo com as leis, procuramos cumpri-las integralmente, ficamos satisfeitos e descansados, sentimo-nos em regra com Deus e com a nossa consciência… Na sequência, corremos o risco de nos tornarmos orgulhosos e autossuficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do nosso amor a Deus. Tenho consciência de que o mero cumprimento das leis não torna Deus meu devedor? Sei que a salvação é um dom de Deus e não o resultado de uma conquista que eu fiz ao cumprir as leis? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

PÔR O CORAÇÃO NO PREGO

            Depois de termos feito durante cinco Domingos consecutivos, desde o XVII ao XXI, uma incursão pelo Capítulo VI do Evangelho segundo S. João, regressamos, neste Domingo XXII do Tempo Comum, ao Evangelho segundo S. Marcos, em que nos é dado escutar, ainda que com alguns cortes, o texto de Marcos 7,1-23.

            O texto referido divide-se claramente em três partes: Marcos 7,1-13, em que os interlocutores de Jesus são os fariseus e os escribas (1); Marcos 7,14-16, em que Jesus constitui um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos (2); Marcos 7,17-23, em que Jesus entra em casa e fala para os seus discípulos (3).

            No caso dos fariseus e escribas, são estes que fazem uma pergunta a Jesus: «Porque é que os teus discípulos não seguem a tradição (parádôsis) dos antigos, e comem o pão com as mãos impuras?» (Marcos 7,5). Jesus inicia a sua resposta com uma citação de Isaías 29,13: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; é vazio (mátên) o culto que me prestam, e as doutrinas que ensinam são preceitos humanos» (Marcos 7,6-7). Note-se que o texto hebraico de Isaías 29,13 abre assim: «Este povo aproxima-se (nagash) de mim só com palavras e honra-me com os lábios, pois o seu coração está longe de mim». Esta versão é fortíssima, pois reclama Jeremias 30,21 que, ao pôr Deus a fazer aproximar (nagash) de si o novo chefe que será posto à frente da comunidade que vem do exílio, justifica assim: «Na verdade, quem empenharia o coração (ʽarab ʼet-libô), aproximando-se (nagash) de mim?». «Empenhar o coração» é pôr o coração no prego, numa casa de penhores. É, portanto, igual a morrer. Portanto, o que Jesus começa por criticar aos fariseus e escribas é o facto de erguerem à sua volta uma muralha de palavras, de ficarem enredados nas palavras, e de não arriscarem a vida. Neste sentido, são apostrofados por Jesus por três vezes (modo enfático), quase com as mesmas palavras: «Vós abandonais / violais / anulais o mandamento de Deus em favor da vossa tradição» (Marcos 7,8.9.13).

            Na parte do discurso dirigido aos fariseus e escribas (Marcos 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que d’Ele vem, e só com rodeios humanos. É quanto Jesus diz com as expressões «só com os lábios, e não com o coração», «só com preceitos humanos, e sem os preceitos de Deus». Na nova vaga agora iniciada (Marcos 7,14-16), Jesus chama para junto de si a multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois imperativos a todos: «Escutai-me e compreendei» (Marcos 7,14). É assim que Jesus reclama de todos a máxima atenção. Posto este novo cenário, Jesus enuncia então o novo princípio ético do Novo Testamento: a pureza do coração. De fora para dentro. Da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na pureza do coração: «Nada há fora do homem, que entrando nele, o possa tornar impuro; são as coisas que saem do homem que tornam o homem impuro» (Marcos 7,15).

            Proclamado diante de todos o novo princípio ético fundamental (o que se passa no coração é a chave da ética), Jesus separa-se da multidão e entra em casa, novo espaço relacional, e aí e desse modo, explica aos seus discípulos o princípio sapiencial, o mashal, proposto à escuta e compreensão de todos. Note-se, todavia, que são os discípulos que pedem explicações em casa (Marcos 7,17). Só eles estão com Jesus «em casa», e pretendem, não tirar-se de razões, atropelar-se com palavras, mas compreender melhor o dizer sapiencial (mashal) de Jesus à multidão. E Jesus adverte-os, como quem espera deles e de nós uma melhor compreensão. Mas explica, apontando outra vez o dedo ao coração: «Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a fossa? E dizia: o que sai do homem, isso sim, torna o homem impuro. Na verdade, é de dentro do coração dos homens que saem as más intenções, imoralidades, roubos, homicídios, adultérios, cobiças, malvadez, fraudes, luxúria, mau-olhado, calúnia, soberba, insensatez. Todas estas coisas más vêm de dentro, e tornam o homem impuro» (Marcos 7,18-23). Notável elenco de vícios. E como nos dá Jesus uma extraordinária e incisiva explicação, pondo completamente a nu a nossa vida antiga, e ensinando-nos novíssimas maneiras de viver.

            Vê-se bem que não basta lavar por fora. O essencial não é o «envelope» no bolso, à entrada da porta, por cima ou por baixo da mesa. Não basta, portanto, a «lavagem das mãos», a chamada netilat yadayim, como forma exterior de traduzir a pureza interior, do coração. Na verdade, é sempre necessário manter puro o coração, e nada de exterior pode iludir ou camuflar esta ação fundamental.

            Acompanha a proclamação do Evangelho de hoje a leitura do Livro do Deuteronómio 4,1-8. Fantástico discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra Prometida. O Deuteronómio inteiro é formado por quatro longos discursos proferidos por Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e praticar os mandamentos de Deus.

            E S. Tiago, na sua Carta, também hoje lida (1,17-27), insiste no mesmo tom: sede fazedores (poiêtaì) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus (1,22) todos os dias e em todas as circunstâncias, atentos sempre aos mais pobres. É pela nossa atitude para com os pobres e necessitados (1,27), que podemos verificar se somos ou não fazedores da Palavra de Deus.

            O Salmo 15 é uma «Liturgia de ingresso» no santuário, ou uma «Liturgia das portas». Constituía, na prática, uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo, para se aquilatar se a pessoa reúne condições para poder entrar no Templo. Quer isto dizer que, para alguém poder transpor o limiar do Templo, para poder ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual, que nem sequer é falada no Salmo. Nas fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia estavam inscritas as condições requeridas para se aceder ao culto. Tratava-se, em quase todos os casos, de preceitos de natureza ritual ou exterior. Também o Talmude lembrava que «o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó; não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas, e muito menos cuspir neles». Como se vê, o nosso Salmo não se entretém com ritualismos exteriores, mas requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais, que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia e o insulto e a usura. Tenha-se presente que, no mundo oriental, o empréstimo interesseiro atingia, por vezes, níveis altíssimos. Por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de empréstimo chegaram a variar entre 17 e 50%. O nosso Salmo apela à generosidade.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXI do Tempo Comum – Ano B – 25.08.2024

Viver a Palavra

            A liturgia do 21.º Domingo do Tempo Comum fala-nos de opções. Lembra-nos que podemos gastar a vida a perseguir valores estéreis ou, em contrapartida, a apostar em valores eternos, capazes de dar pleno sentido à nossa existência. Deus aponta-nos o caminho; mas a decisão final é sempre nossa. In Dehonianos

                                                        + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Josué 24,1-2a.15-17.18b

Naqueles dias,
Josué reuniu todas as tribos de Israel em Siquém.
Convocou os anciãos de Israel,
os chefes, os juízes e os magistrados,
que se apresentaram diante de Deus.
Josué disse então a todo o povo:
«Se não vos agrada servir o Senhor,
escolhei hoje a quem quereis servir:
se os deuses que os vossos pais serviram no outro lado do rio,
se os deuses dos amorreus em cuja terra habitais.
Eu e a minha família serviremos o Senhor».
Mas o povo respondeu:
«Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses;
porque o Senhor é o nosso Deus,
que nos fez sair, a nós e a nossos pais,
da terra do Egipto, da casa da escravidão.
Foi Ele que, diante dos nossos olhos,
realizou tão grandes prodígios
e nos protegeu durante o caminho que percorremos
entre os povos por onde passámos.
Também nós queremos servir o Senhor,
porque Ele é o nosso Deus». 

CONTEXTO

O Livro de Josué é uma reflexão sobre a história do Povo de Deus no período que vai desde a sua entrada em Canaã até à morte de Josué (talvez por meados do séc. XII a.C.). Descreve sobretudo a conquista da Terra Pronetida (cf. Js 1,1-12,24) e a distribuição do território pelas tribos (cf. Js 13,1-21,45). Um apêndice final, redigido provavelmente durante o Exílio na Babilónia, apresenta outro material, nomeadamente refere a despedida e a morte de Josué, bem como a notícia de uma reunião geral de tribos em Siquém, antes da morte de Josué (cf. Js 22,1-24,33).

Em geral, a preocupação dos autores da “escola deuteronomista” que compuseram este livro é mais de caráter teológico do que histórico. Por exemplo, a conquista da Terra é apresentada como uma campanha fulgurante e fácil em que as doze tribos a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram facilmente de toda a Terra. Mas, historicamente as coisas não aconteceram dessa forma… O livro dos Juízes, muito mais realista, fala de uma conquista lenta, difícil (cf. Jz 1) e incompleta (cf. Jz 13,1-6; 17,12-16), que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Mais do que descrever factos históricos, os autores do livro estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que, com os seus prodígios, ofereceu a Israel a Terra Prometida; Israel, por sua vez, deve responder a esse dom mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.

O texto que a liturgia deste vigésimo domingo comum nos propõe como primeira leitura situa-nos na fase final da vida de Josué. Sentindo aproximar-se a morte, Josué teria reunido em Siquém os líderes das tribos e ter-lhes-ia proposto uma cerimónia de renovação da Aliança com Javé. Terá sido uma assembleia onde participaram as doze tribos que, mais tarde (na época de David) vão constituir uma unidade nacional? Os biblistas acham que não. Na “assembleia de Siquém” não estaria certamente a tribo de Judá, já que os contactos entre Judá e a “casa de José” só se estabeleceram na época do rei David. Por outro lado, a “casa” de Josué, referida no texto, reuniria provavelmente apenas as tribos do centro do país (Efraim, Benjamim e Manassés), as tribos que viveram a experiência da libertação do Egito, da caminhada pelo deserto e da Aliança do Sinai e que há muito tempo tinham aderido a Javé e à Aliança. E as outras tribos, convidadas a comprometer-se com Javé? Seriam, provavelmente, as tribos do norte do país (Issacar, Zabulón, Neftali, Asher e Dan), que não tinham estado no Egito e não tinham experimentado a maravilhosa aventura da libertação.

Alguns pensam que a “assembleia de Siquém”, referida em Js 24, foi a primeira tentativa histórica de estabelecer laços entre as tribos instaladas no centro e as tribos instaladas no norte da Palestina. Na perspetiva de Josué, a ligação deveria fazer-se à volta de uma fé comum num mesmo Deus. Na realidade, a união das tribos do norte e do centro não se deu de uma vez; mas foi uma caminhada lenta e progressiva, que só se completou muitos anos depois de Josué ter desaparecido de cena.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Vivemos mergulhados na cultura do efémero e do contingente. Somos condicionados para acreditar que, enquanto andarmos na terra, a nossa vida nunca estará fechada. As condições alteram-se, as pessoas mudam, os cenários variam, a nossa compreensão das coisas vai-se modificando. O que hoje nos parece perfeitamente adquirido, amanhã é-nos apresentado como incerto e variável. Dizem-nos que nada é definitivo e que a nossa liberdade de tudo rever é ilimitada. Neste vórtice, perguntamo-nos a cada instante: que caminhos escolher? Que valores privilegiar? Em que cenário de fundo queremos desenhar a nossa vida? É neste contexto que hoje somos convidados a escutar o desafio colocado por Josué ao Povo de Deus na “assembleia de Siquém”: “escolhei hoje a quem quereis servir”. A expressão interpela-nos acerca das nossas opções fundamentais, dos valores que sustentam a nossa caminhada, das nossas referências e prioridades… O que é que para nós é decisivo e inegociável? Quais são os “deuses” que nos fazem correr? Que lugar é que Deus e as suas propostas ocupam na construção da nossa vida? Como queremos realmente viver?
  • Israel aceitou “servir o Senhor” e comprometer-se com Ele, não por obrigação, mas pela convicção de que era esse o caminho para ser feliz e encontrar Vida. Foi uma escolha livre de um povo que, depois de ver como Deus atuava, acreditou na bondade e no amor de Deus. Nós não somos escravos de Deus, obrigados a cumprir as regras que Ele impõe; Deus não é um concorrente do homem, um adversário controlador e ciumento que limita a nossa independência e que rouba a nossa liberdade. Deus apenas está interessado na nossa libertação, na nossa realização e na nossa felicidade. Como é que nós entendemos as propostas e os mandamentos de Deus: como exigências que condicionam e reprimem, ou como indicações seguras, fruto do amor e da bondade de Deus, para nos fazerem chegar à nossa plena realização?
  • Josué, o líder que sucedeu a Moisés na condução do Povo de Deus, teve um papel fundamental no sentido de ajudar o Povo a discernir os caminhos mais adequados para construir um futuro com sentido. O discurso de Josué não é um discurso populista ou politicamente correto; o procedimento de Josué não procura condicionar as escolhas do Povo e obrigá-lo a fazer opções que não desejava; o pronunciamento de Josué não é um pronunciamento irresponsável e descomprometido… Josué, com firmeza, mas também com respeito, limitou-se a afirmar os seus valores e a oferecer o seu testemunho de forma clara, coerente e incisiva: “eu e a minha família serviremos o Senhor”. É assim – com esta lisura, com esta verdade e com esta coerência – que vemos proceder aqueles que têm a responsabilidade de presidir à comunidade (religiosa ou civil)? E nós próprios, quando temos a responsabilidade de animar uma comunidade, é assim que procedemos? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Os olhos do Senhor estão voltados para os justos
e os ouvidos atentos aos seus rogos.
A face do Senhor volta-se contra os que fazem o mal,
para apagar da terra a sua memória.

Os justos clamaram e o Senhor os ouviu,
livrou-os de todas as suas angústias.
O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado
e salva os de ânimo abatido.

Muitas são as tribulações do justo,
mas de todas elas o livra o Senhor.
Guarda todos os seus ossos,
nem um só será quebrado.

A maldade leva o ímpio à morte,
os inimigos do justo serão castigados.
O Senhor defende a vida dos seus servos,
não serão castigados os que n’Ele se refugiam.

LEITURA II – Efésios 5,21-32

Irmãos:
Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo.
As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor,
porque o marido é a cabeça da mulher,
como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo,
do qual é o Salvador.
Ora, como a Igreja se submete a Cristo,
assim também as mulheres
se devem submeter em tudo aos maridos.
Maridos, amai as vossas mulheres,
como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela.
Ele quis santificá-la,
purificando-a no batismo da água pela palavra da vida,
para a apresentar a Si mesmo como Igreja cheia de glória,
sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante,
mas santa e imaculada.
Assim devem os maridos amar as suas mulheres,
como os seus corpos.
Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo.
Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo,
antes o alimenta e lhe presta cuidados,
como Cristo à Igreja;
porque nós somos membros do seu Corpo.
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua mulher,
e serão dois numa só carne.
É grande este mistério,
digo-o em relação a Cristo e à Igreja.

CONTEXTO

Paulo passou em Éfeso, no decurso da sua terceira viagem missionária, e ficou lá um pouco mais de dois anos (cf. At 19,8.10). Éfeso era, por essa altura, a capital da Província romana da Ásia e um dos mais importantes centros comerciais e religiosos do mundo greco-romano. O seu templo de Artémis, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo, era conhecido em toda a bacia mediterrânea.

A partir do trabalho missionário de Paulo, formou-se em Éfeso uma comunidade cristã dinâmica, viva e fervorosa. Paulo viveu esse tempo de estadia em Éfeso de forma muito intensa, criando uma relação privilegiada com a comunidade, como ficou patente quando o apóstolo, no final dessa viagem, quis encontrar-se com os anciãos de Éfeso, em Mileto, numa despedida carregada de emoção e de sentimento (cf. At 20,17-38).

Estranhamento, na Carta aos Efésios não transparece essa ligação pessoal entre Paulo e os cristãos de Éfeso. É uma carta com uma reflexão madura e cuidada, mas bastante formal e impessoal. Isso tem contribuído para que alguns neguem a autenticidade paulina da Carta aos Efésios, considerando-a como obra tardia de um discípulo de Paulo. O mais provável, contudo, é que se trate de uma “carta circular”, enviada por Paulo a diversas igrejas do ocidente da Ásia Menor (atual Turquia), entre as quais se contava também a comunidade cristã de Éfeso.

O texto que a liturgia deste vigésimo primeiro domingo comum nos apresenta como primeira leitura está incluído na parte moral e parenética da Carta aos Efésios (cf. Ef 4,1-6,20). Aí, o autor da Carta aos Efésios lembra aos crentes, de forma bastante concreta, a opção que fizeram no dia do seu Batismo e que os obriga a viver como Homens Novos, à imagem de Jesus.

Na secção de Ef 5,21-6,9 são apresentadas algumas das normas que devem reger as relações familiares. De forma especial referem-se os deveres dos esposos, cuja união é apresentada como figura da união de Cristo com a sua Igreja. Trata-se de um dos temas mais importantes da teologia desenvolvida na Carta aos Efésios. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O compromisso com Jesus mexe com a totalidade da vida dos seres humanos e tem consequências em todos os níveis da existência, nomeadamente ao nível da relação familiar. Para além de ser oásis de amor e de felicidade, o espaço da relação familiar também é, para os casais cristãos, um lugar onde se vivem e se manifestam os valores do Reino de Deus. Com a sua partilha de amor, com a sua união, com a sua comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e reflexo da união de Cristo com a sua Igreja. Por isso, a Igreja pede: “os esposos, feitos à imagem de Deus e estabelecidos numa ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em comunhão de afeto e de pensamento e com mútua santidade de modo que, seguindo a Cristo, princípio da vida, se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das alegrias e sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que Deus revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição” (Gaudium et Spes, 52). Os casais cristãos estão conscientes de que são chamados a dar testemunho no mundo, com o seu amor, com a sua entrega, com a sua harmonia, com a sua vida partilhada, da união entre Cristo e a sua Igreja?
  • O amor de Cristo, manifestado em todos os gestos da sua vida, mas tornado patente de forma superlativa na cruz, é o modelo para todos os nossos “amores”, incluindo o amor dos esposos. O amor dos casais cristãos é um amor definido pelo dom total de si próprio em favor do outro; é um amor que vive de olhos postos no bem do outro; é um amor que não procura ser servido, mas servir e dar vida; é um amor que não é competição de direitos e deveres, mas comunidade de partilha e de serviço; é um amor que não é arrogante, nem orgulhoso, nem injusto, nem prepotente; é um amor que compreende os erros e as falhas do outro, e que tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (cf. 1 Co 13,4-7). É assim que vivem e amam aqueles de entre nós que foram chamados à vocação matrimonial?
  • Paulo, dirigindo-se às mulheres, recomenda-lhes que assumam, frente aos maridos uma atitude de “submissão” (poderíamos traduzir também a palavra utilizada pelo apóstolo como “docilidade”). Evidentemente, temos de enquadrar a recomendação de Paulo no contexto sociocultural da época, em que o marido era considerado a referência fundamental da ordem familiar (“porque o marido é a cabeça da mulher” – diz Paulo). Seja como for, esta “palavra” de Paulo nunca poderá ser utilizada como pretexto para justificar qualquer atitude de discriminação baseada no sexo ou de imposição da autoridade do homem sobre a mulher: nem na sociedade, nem na Igreja, nem no contexto familiar. Aliás, Paulo dirá, noutras circunstâncias, que “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Respeitamos a dignidade de cada pessoa, sem discriminar e sem tratar de forma menos própria aqueles que caminham connosco? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,60-69

Naquele tempo,
muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:
«Estas palavras são duras.
Quem pode escutá-las?»
Jesus, conhecendo interiormente
que os discípulos murmuravam por causa disso,
perguntou-lhes:
«Isto escandaliza-vos?
E se virdes o Filho do homem
subir para onde estava anteriormente?
O espírito é que dá vida,
a carne não serve de nada.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.
Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,
quais eram os que não acreditavam
e quem era aquele que O havia de entregar.
E acrescentou:
«Por isso é que vos disse:
Ninguém pode vir a Mim,
se não lhe for concedido por meu Pai».
A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se
e já não andavam com Ele.
Jesus disse aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»
Respondeu-Lhe Simão Pedro:
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus».

CONTEXTO

Depois de Jesus ter saciado a fome da multidão que o seguia (cf. Jo 6,1-15), gerou-se uma situação equívoca. A multidão esperava que Jesus fosse um messias-rei que lhe oferecesse uma vida confortável e pão em abundância; e Jesus estava bem consciente de que a sua missão não era “dar coisas”, mas sim oferecer-se a si próprio para que a humanidade tivesse Vida. A multidão esperava de Jesus uma proposta humana que conduzisse ao triunfo e à glória; e Jesus sabia claramente que o caminho que tinha para propor era o caminho da cruz, da vida dada até ao extremo, por amor. Percebendo que a multidão e Ele não estavam no mesmo comprimento de onda, Jesus não quis alimentar mal-entendidos; e, no “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59), procurou deixar clara a sua proposta. Depois de escutarem Jesus, os seus interlocutores perceberam que tinham de fazer uma opção decisiva: ou continuar a viver numa lógica humana, virada para os bens materiais e para as satisfações mais imediatas, ou assumir a lógica de Deus, seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida um dom de amor para ser partilhado.

O texto do Evangelho que a liturgia deste vigésimo primeiro domingo comum nos propõe refere a reação negativa de “muitos discípulos” às propostas que Jesus deixou no ar, naquele discurso feito na sinagoga de Cafarnaum, no dia a seguir à partilha dos pães e dos peixes. Nem todos os discípulos que, até agora, o seguiam pelas aldeias e vilas da Galileia estão dispostos a identificar-se com Jesus (“comer a sua carne e beber o seu sangue”) e a oferecer a sua vida como dom de amor que deve ser partilhado com toda a humanidade.

Poderá ser útil também, para entendermos a “catequese” aqui feita pelo autor do Quarto Evangelho, lembrarmos o contexto em que vivia a comunidade joânica, nos finais do séc. I, quando o Evangelho segundo João foi escrito… Os cristãos eram discriminados e perseguidos em todo o Império romano; muitos discípulos afastavam-se, recusando-se a seguir Jesus no caminho do dom da vida; outros, confusos e perplexos, questionavam-se se para ser cristão seria preciso percorrer um caminho tão radical e de tanta exigência… A proposta que Jesus tinha apontado aos seus conduziria, efetivamente, à felicidade e à Vida plena, ou ao fracasso e à morte? Neste cenário – um cenário que exigia opções decisivas – o “catequista” João procura, recorrendo às palavras de Jesus, encontrar respostas que devolvam aos cristãos o ânimo e a esperança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Um dos mais belos dons de Deus é a liberdade. Contudo, no exercício da liberdade, somos a cada passo confrontados com escolhas; e, muitas vezes as escolhas que fazemos são decisivas para o êxito ou o fracasso da nossa vida. É essa a grande questão que atravessa o Evangelho que escutamos neste domingo. De um lado está um projeto de vida – alimentado e cultivado por alguns dos discípulos que seguem Jesus – alicerçado na ambição pessoal, que busca glória humana, poder, bens materiais, resposta imediata a interesses próprios; é um projeto que responderá a determinadas necessidades básicas do homem, mas que dificilmente preencherá uma vida com sentido. Do outro lado está o projeto de Jesus, que propõe uma vida feita dom, concretizada em gestos de serviço, de partilha, de generosidade, de amor até ao extremo; é um projeto que, muitas vezes, implica andar contra a corrente e enfrentar a incompreensão e a perseguição, mas que conduz à Vida verdadeira e eterna. Como nos situamos face a isto? Qual a nossa opção?
  • Confrontados com a radicalidade do projeto de Jesus, “muitos discípulos” decidiram que aquilo não era para eles e foram-se embora. Estavam demasiado reféns dos seus sonhos de riqueza fácil, dos seus desejos egoístas, dos seus valores fúteis, dos seus jogos de poder e de influência, dos seus comodismos e seguranças… Provavelmente tinham ido atrás de Jesus pelas razões erradas. Trata-se de um “equívoco” que tem tendência a repetir-se: em cada época da história há “discípulos” de Jesus – talvez até figuras de referência nas nossas comunidades cristãs – que andam com Ele pelas razões erradas e que assumem um estilo de vida claramente divorciado da proposta de Jesus. Cultivam valores ocos, vivem obcecados com os bens materiais, tratam os irmãos com prepotência e arrogância, não têm escrúpulos em pôr os outros a servi-los, tratam a comunidade como sua propriedade privada, não olham a meios para atingir determinados fins. Este quadro diz-nos alguma coisa? O quê?
  • Os Doze ficaram com Jesus, pois estavam convictos de que só Ele tem “palavras de Vida eterna”. Ao lado de Jesus descobriram outra maneira de viver; a mensagem de Jesus apontou-lhes uma Vida verdadeira e definitiva que eles antes não conheciam. Por isso, estão decididos a deixarem-se conduzir por Jesus. Não veem ninguém que os ajude, melhor do que Jesus, a dar sentido às suas vidas. Esses Doze representam aqueles que não se conformam com a banalidade de uma vida construída sobre valores efémeros e que querem ir mais além; representam aqueles que não estão dispostos a conduzir a sua vida ao sabor da preguiça, do comodismo, da instalação; representam aqueles que aderem sinceramente a Jesus, se comprometem com o seu projeto e se esforçam por viver em coerência com a opção por Jesus que fizeram no dia do seu Batismo. Vemos esses Doze como modelo da nossa adesão a Jesus e ao seu projeto? Mesmo com as falhas que resultam da nossa fragilidade, procuramos viver com coerência e verdade o nosso compromisso com o seguimento de Jesus?
  • Jesus não parece estar tão preocupado com o número de discípulos que continuarão a segui-l’O, quanto com o manter a verdade e a coerência do seu projeto. Ele não faz cedências fáceis para ter êxito ou para captar a benevolência e os aplausos das multidões, pois o Reino de Deus não é um concurso de popularidade… O Evangelho que Jesus veio propor conduz à Vida plena, mas por um caminho que é de radicalidade e de exigência e que muitas vezes está em contradição com as ideias e valores que o mundo privilegia. “Suavizar” as exigências do Evangelho, a fim de que ele seja mais facilmente aceite pelos homens do nosso tempo, pode ser desvirtuar a proposta de Jesus e despojar o Evangelho daquilo que ele tem de verdadeiramente transformador. O que deve inquietar-nos não é tanto o número de pessoas que vão à Igreja, mas é mais o mantermos a fidelidade ao programa de Jesus. Anunciamos e testemunhamos o Evangelho de Jesus sem cedências fáceis e sem prescindirmos da sua radicalidade e exigência?
  • Um dos elementos que sobressai no Evangelho deste domingo é a serenidade com que Jesus encara o “não” de alguns discípulos ao projeto que Ele veio propor. Diante desse “não”, Jesus não força as coisas, não protesta, não ameaça, mas respeita absolutamente a liberdade de escolha dos seus discípulos. Jesus mostra, assim, o respeito de Deus pelas decisões (mesmo erradas) do homem, pelas dificuldades que o homem sente em comprometer-se, pelos caminhos diferentes que o homem escolhe seguir. O nosso Deus é um Deus que respeita o homem, que o trata como adulto, que aceita que ele exerça o seu direito à liberdade. É bom caminharmos sentindo que Deus respeita a nossa autonomia e liberdade. Por outro lado, um Deus tão compreensivo e tolerante convida-nos a dar mostras de misericórdia, de respeito e de compreensão para com os irmãos que seguem caminhos diferentes, que fazem opções diferentes, que conduzem a sua vida de acordo com valores e critérios diferentes dos nossos. É esse o testemunho que damos? Procuramos respeitar as diferenças, os “diferentes”, sem assumirmos atitudes de marginalização ou de exclusão? Respeitamos a legítima liberdade dos homens e das mulheres que caminham ao nosso lado? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O BISTURI DA PALAVRA DE DEUS

            Neste Domingo XXI do Tempo Comum, escutaremos a sexta e última Parte do Capítulo VI do Quarto Evangelho, que contempla os últimos versículos (João 6,60-69), e estende a discussão antes havida da multidão (João 6,25-40) e dos judeus (João 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram agora em cena em João 6,60, para pouco depois saírem de cena, para fora da ação de Jesus, em João 6,66, sendo então a vez dos Doze e de Pedro entrarem em cena (João 6,67-69).

            Veja-se a gradação: multidão, judeus, discípulos, Doze e Pedro. Curiosamente, os discípulos, numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam em cena: murmuram (goggýzô) como eles contra o escândalo da incarnação e das origens divinas de Jesus (João 6,61), e classificam como duro (sklêrós), incompreensível, intragável (João 6,60), o discurso de Jesus sobre a sua carne-vida dada em alimento para a vida verdadeira.

            Além de «murmurar» como os judeus de Cafarnaum e do deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36), muitos dos discípulos abandonam Jesus e «voltam para trás» (João 6,66), configurando-se como anti discípulos e anti povo de Deus, que, no deserto, também pretende voltar para trás, para o Egito (Êxodo 14,12; 16,3; 17,3; Números 14,3-4). Ora, o discípulo verdadeiro é aquele que vai atrás de Jesus, seguindo-o, e não o que volta para trás, abandonando-o.

            De notar ainda que, no caso dos discípulos, e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus que faz a pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram, não ouvem, não respondem e vão-se embora. No caso dos Doze, é Jesus que faz a pergunta, e é Pedro que, em nome dos Doze e em contraponto com todos os grupos anteriores, não se limita apenas a responder, mas profere uma verdadeira profissão de fé (João 6,68-69).

            Vendo bem, neste Capítulo VI do Evangelho de João, que hoje atinge o seu ápice, as diversas reações aos acontecimentos de Jesus, a que a exegese chama «crise galilaica», antecipam e leem já as crises sucessivas que vão aparecer na Igreja. Trata-se sempre da grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia. A Palavra de Jesus que se ouve aqui, e continua a ouvir-se ainda hoje, será sempre como um bisturi que divide, julga e purifica.

            A mesma grande decisão ou incisão está patente no grande texto de Josué 24,1-18. Josué profere diante de todo o povo reunido um dos mais belos e completos «módulos narrativos» de toda a Escritura, mostrando ao povo que foi Deus que conduziu a inteira história de Israel, com amor poderoso, desde o outro lado do Rio Eufrates, chamando e conduzindo os passos de Abraão, libertando depois o povo da opressão do Egito, guiando-o pelo deserto, libertando-o dos inimigos poderosos que o ameaçavam por todos os lados, e fazendo-o entrar na Terra de Canaã (Josué 24,2-14). Depois desta descrição maravilhosa que tem Deus por sujeito, Josué abre o tempo das decisões, em que «servir» é a palavra-chave, que se ouve por 14 vezes. Servir ou não servir, eis a questão posta por Josué ao povo: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir» (Josué 24,15a). Josué avança a sua escolha e decisão: «Eu e a minha família serviremos o Senhor!» (Josué 24,15b). Então, o povo repassa outra vez na memória do coração todos os benefícios que lhe fez o Senhor, desde a libertação do Egito, aos sinais e prodígios realizados em seu favor, à proteção assegurada pelo Senhor ao longo do caminho percorrido e perante os adversários (Josué 24,16-18a), para afirmar logo convictamente: «Nós também serviremos o Senhor» (Josué 24,18b).

            E, na Carta aos Efésios 5,21-32, o «serviço» chama-se amor. O texto hoje lido constitui um extrato de um dos «Códigos familiares», que se encontram nas chamadas Cartas editadas de S. Paulo. Estas Cartas que remontam a Paulo, mas que são editadas depois da sua morte, já não traduzem o esforço evangelizador patente nas Cartas autênticas, mas procuram levar o Evangelho a situações concretas da vida, como sejam a família e o trabalho. O texto de hoje realça sobretudo a relação marido-esposa, que deve retratar a relação sublime e salutar Cristo-Igreja. Mas, se a leitura continuasse, também veríamos o Evangelho a renovar as relações pais-filhos e patrões-empregados.

            Voltamos, pelo terceiro Domingo consecutivo, à música do Salmo 34. Desta vez para nos apercebermos melhor que Deus atende sempre com solicitude os gritos de socorro do justo perseguido (v. 16.18), ao mesmo tempo que apaga da terra a memória dos malfeitores (v. 17.22). Esta certeza é muitas vezes a única e a última defesa do justo que sofre às mãos dos ímpios. Os Salmos de imprecação, ou as suas partes mais violentas, foram abolidos da oração oficial, como se não fossem, na verdade, Palavra inspirada. Pecado nosso, que assim mostramos não compreender o realismo e a eficácia da oração bíblica, e dificultamos aos aflitos o poder extravasar diante de Deus as suas amarguras, e deixamos os violentos a maquinar tranquilamente as suas crueldades, como se Deus não visse nem ouvisse nem lhes pedisse contas.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XX do Tempo Comum – Ano B – 18.08.2024

Viver a Palavra

Não convém interromper o Discurso, o Evangelho, o Sermão do Pão.

Um convite. Ler em contínuo todo o Capítulo 6 do Evangelho de João, que foi “partido” ao longo de 5 domingos

XVII DTC – Jo 6, 1-15 “De onde comprareis pão para dar de comer a esta gente toda?”
XVIII DTC – Jo 6, 24-35 “O meu pai é que vos dá o Pão, o do céu, o verdadeiro.”
XIX DTC – Jo 6, 41-51 “Eu sou o Pão Vivo, o do Céu.”
XX DTC – Jo 6, 51-58 “Assim como eu vivo do Pai, quem me comer viverá de mim.”
XXI DTC – Jo 6, 60-69 “Vós não quereis ir-vos embora, pois não?”

Jo 6, 51-58

51Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo.»52Então, os judeus, exaltados, puseram-se a discutir entre si, dizendo: «Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?!» 53Disse-lhes Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. 54Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei de ressuscitá-lo no último dia, 55porque a minha carne é uma verdadeira comida e o meu sangue, uma verdadeira bebida. 56Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e Eu nele. 57Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim. 58Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram; quem come mesmo deste pão viverá eternamente.»

                                                        + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Provérbios 9,1-6

A Sabedoria edificou a sua casa e levantou sete colunas.
Abateu os seus animais,
preparou o vinho e pôs a mesa.
Enviou as suas servas
a proclamar nos pontos mais altos da cidade:
«Quem é inexperiente venha por aqui».
E aos insensatos ela diz:
«Vinde comer do meu pão e beber do vinho que vos preparei.
Deixai a insensatez e vivereis;
segui o caminho da prudência».

CONTEXTO

O “Livro dos Provérbios” apresenta diversas coleções de ditos, de sentenças, de máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza o resultado da reflexão e da experiência (“sabedoria”) de várias gerações de “sábios” antigos (israelitas e alguns não israelitas). O objetivo desses provérbios é definir uma espécie de “ordem” do mundo e da sociedade que, uma vez apreendida e aceite pelo indivíduo, o levará a uma integração plena no meio em que está inserido. Dessa forma, o indivíduo poderá viver sem traumas nem sobressaltos que destruam a sua harmonia interior e o incapacitem para dar o seu contributo à comunidade. Ficará, assim, de posse da chave para viver em harmonia consigo mesmo e com os outros, e assegurará uma vida feliz, tranquila e próspera.

O livro apresenta-se como tendo sido composto por Salomão (cf. Pr 1,1), o rei “sábio”, conhecido pelos seus dotes de governação, pelos seus dons literários, por numerosas sentenças sábias (cf. 1 Re 3,16-28; 5,7; 10,1-9.23) e que se tornou uma espécie de “padrão” da tradição sapiencial… Na realidade, não podemos aceitar, de forma acrítica, essa indicação: a leitura atenta do livro revela que estamos diante de coleções de proveniência diversa, compostas em épocas diversas. Alguns dos materiais apresentados no livro podem ser do séc. X a.C., a época de Salomão (embora isso não nos garanta que venham do próprio Salomão); outros, no entanto, são bem mais recentes.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo domingo comum integra uma secção que poderíamos intitular, genericamente, “instruções e advertências” (cf. Pr 1,8-9,18). Trata-se de um conjunto de exortações e de instruções de um pai/educador, convidando o filho a adquirir a “sabedoria”. É dentro desta secção que nos aparece a antítese entre a “senhora sabedoria” e a “senhora insensatez” (cf. Pr 9,1-6.13-18) – um dos textos emblemáticos do “Livro dos Provérbios”. A nossa leitura é, precisamente, a primeira parte da antítese (a apresentação da “senhora sabedoria”).

Segundo os especialistas, esta secção é a parte mais recente do “Livro dos Provérbios” e não pode ser anterior ao séc. IV ou III a.C. Provavelmente, foi escrita como introdução ao livro quando todas as outras secções já estavam organizadas. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A questão das opções é absolutamente determinante na construção da nossa vida. O que são opções corretas? O que é que determina o êxito ou o fracasso da nossa existência? O que é que nos faz viver uma vida com sentido? Em que caminhos podemos encontrar a nossa felicidade e a nossa realização plena? Todos os dias nos deparamos com mil e uma respostas a estas questões. Os líderes políticos, os publicitários, os “fazedores de opinião”, os agentes dos lobbies, não cessam de nos soprar indicações que, segundo eles, nos garantem o sucesso, o êxito, a realização, a felicidade. Como discernir, no meio desse vendaval de propostas, aquilo que nos ajuda e aquilo que nos prejudica? Em quem acreditar? Para os cristãos, há uma “sabedoria” que não pode ser ignorada: Jesus, a “sabedoria de Deus”. Andaremos bem-avisados se as propostas de Jesus forem o critério decisivo para sabermos o que nos serve e o que não nos serve, aquilo que nos realiza e aquilo que nos prejudica, aquilo que nos traz paz e aquilo que nos rouba a paz, aquilo que nos leva à Vida e aquilo que nos leva à morte. Procuramos conduzir a nossa vida pela “sabedoria” que é Jesus? As palavras e os gestos de Jesus são indicações decisivas para construirmos a nossa vida?
  • Os que são admitidos na casa da “dona Sabedoria” e que participam do banquete que ela preparou são os “simples” e os “insensatos que querem deixar a insensatez e seguir o caminho da prudência”. Os “simples” são aqueles que não têm o coração demasiado cheio de si próprio, que não se fecham no orgulho e na autossuficiência, que reconhecem a sua pequenez e finitude e que se entregam com humildade e confiança nas mãos de Deus; os “insensatos que buscam o caminho da prudência” são aqueles que estão dispostos a mudar, que não se conformam com a vida do homem velho e querem ir mais além… Uns e outros são o paradigma de uma determinada atitude: a atitude de abertura aos dons de Deus, de disponibilidade para acolher a Vida de Deus… Como é que nos situamos diante de Deus, das suas indicações e propostas? Reconhecemos a nossa pequenez e a nossa incapacidade para encontrarmos, contando apenas connosco, o caminho para a realização, para a felicidade, para a Vida plena? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Temei o Senhor, vós os seus fiéis,
porque nada falta aos que O temem.
Os poderosos empobrecem e passam fome,
aos que procuram o Senhor não faltará riqueza alguma.

Vinde, filhos, escutai-me,
vou ensinar-vos o temor do Senhor.
Qual é o homem que ama a vida,
que deseja longos dias de felicidade?

Guarda do mal a tua língua
e da mentira os teus lábios.
Evita o mal e faz o bem,
procura a paz e segue os seus passos.

LEITURA II – Efésios 5,15-20

Irmãos:
Vede bem como procedeis.
Não vivais como insensatos, mas como pessoas inteligentes.
Aproveitai bem o tempo, porque os dias que correm são maus.
Por isso não sejais irrefletidos,
mas procurai compreender qual é a vontade do Senhor.
Não vos embriagueis com o vinho, que é causa de luxúria,
mas enchei-vos do Espírito Santo,
recitando entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais,
cantando e salmodiando em vossos corações,
dando graças, por tudo e em todo o tempo, a Deus Pai,
em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

CONTEXTO

Éfeso, situada na costa ocidental da Ásia Menor era, na antiguidade, considerada a segunda cidade do Império romano, logo a seguir a Roma. A sua numerosa população, o seu importante porto de mar e o seu templo dedicado a Ártemis (considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo), tornavam-na conhecida em todo o Mediterrâneo.

Paulo esteve em Éfeso mais de dois anos, no decurso da sua terceira viagem missionária. Durante esse tempo ensinou “na escola de Tirano” (At 19,9), propondo a Boa nova de Jesus. Como resultado da ação do apóstolo, nasceu uma comunidade cristã viva e fervorosa, que vivia com entusiasmo o seu compromisso com Jesus. Os laços entre Paulo e os cristãos de Éfeso eram fortes. Ao embarcar para a Palestina, no final dessa viagem missionária, Paulo despediu-se dos representantes da Igreja de Éfeso com um discurso veemente e apaixonado, revelador dos laços que o uniam aos cristãos dessa cidade (cf. At 20,1738).

Estranhamente, a carta aos Efésios é uma carta algo impessoal, onde não aparecem sinais dessa relação forte que unia Paulo à comunidade. Alguns consideram, por isso, que a Carta aos Efésios não seria um texto paulino, mas um texto redigido por um seu discípulo de Paulo, alguns anos após a morte do apóstolo. Muitos consideram, no entanto, que se trataria de uma “carta circular”, redigida por Paulo enquanto estava na prisão (em Cesareia Marítima? Em Roma?) e dirigida a diversas comunidades do ocidente da Ásia Menor, entre as quais se contava também a comunidade cristã de Éfeso.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo domingo comum pertence à segunda parte da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Nessa “exortação aos batizados”, Paulo retoma alguns dos temas tradicionais do catecismo primitivo e convida os cristãos a deixarem a antiga forma de viver para assumir a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31), imitando Deus (cf. Ef 4,32-5,2), passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20). Como cenário de fundo da reflexão paulina está sempre a necessidade de os cristãos deixarem a vida do homem velho, para assumirem a vida do Homem Novo. É neste sentido que devem ser entendidos essas normas práticas de conduta que Paulo apresenta aos seus cristãos no texto que nos é proposto. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não resulta fácil vivermos sempre a cem por cento os compromissos que assumimos no nosso batismo. Com o passar do tempo, com o cansaço, com a monotonia, com o desencanto, com as preocupações e problemas que a vida traz, chegam a acomodação, a instalação, a tentação de “deixar correr” e passamos a viver a fé de uma forma “morna”, pouco empenhada, às vezes pouco consentânea com os compromissos que assumimos com Cristo. O autor da Carta aos Efésios diz, a propósito disto, que é uma estupidez termos descoberto e experimentado a Vida verdadeira e deixarmos que o homem velho do egoísmo e do pecado nos domine de novo… Não necessitaremos de “acordar” do sono que nos paralisa e de reencontrar o entusiasmo, a novidade de Deus, o desafio da fé? O que podemos fazer para revitalizar o nosso compromisso com a Vida nova que nos foi oferecida no dia do nosso batismo?
  • A todos os instantes somos bombardeados com propostas de valores que, pretensamente, nos asseguram o êxito, o triunfo, a popularidade, a realização, a felicidade. No entanto, já reparamos que muitos vezes os valores que nos “vendem” não fazem mais do que aumentar a frustração e o vazio que enche a nossa vida de nada. O autor da Carta aos Efésios diz-nos para não acolhermos, de forma acrítica, os valores que nos são propostos. A verdadeira sabedoria está em conseguir discernir aquilo que nos ajuda a viver uma vida mais humana e mais digna daquilo que nos traz desilusão e sofrimento. Quais são os valores a que damos importância e que dirigem a nossa vida? Esses valores ajudam-nos a encontrar a paz, a viver uma vida com sentido, uma vida mais feliz e realizada?
  • O viver “no Espírito” implica ainda, na perspetiva de Paulo, a oração, o louvor, a ação de graças. Um crente que tem Deus como a coordenada fundamental da sua existência e que se sente chamado a fazer parte da família de Deus é um crente que vive em diálogo contínuo com Deus. É nesse diálogo que ele percebe os planos e os projetos de Deus para si próprio e para o mundo e encontra a coragem para percorrer o caminho da fidelidade e do compromisso. Conseguimos, no meio da azáfama e da tensão em que a nossa vida diária decorre, encontrar tempo e disponibilidade para falar com Deus e para escutar as propostas que Ele nos apresenta? Estamos conscientes dos dons de Deus e respondemos-Lhe com o louvor e a ação de graças? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,51-58

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».
Os judeus discutiam entre si:
«Como pode ele dar-nos a sua carne a comer?»
E Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a carne do Filho do homem
e não beberdes o seu sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha carne é verdadeira comida
e o meu sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
permanece em Mim e eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou
e eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como o dos vossos pais, que o comeram e morreram:
quem comer deste pão viverá eternamente».

CONTEXTO

Jesus está na sinagoga de Cafarnaum. À sua volta estão muitos daqueles que, no dia anterior, tinham sido agraciados com uma refeição de pão e de peixe (cf. Jo 6,1-15). Jesus diz-lhes que devem correr atrás, não do alimento que perece, mas do alimento que dá a Vida eterna (cf. Jo 6,22-58). Fala-lhes também de si próprio como o “pão que desceu do céu para dar Vida ao mundo”; e convida-os a comer desse pão. Também estão ali alguns líderes judaicos (os “judeus”) que recebem com hostilidade as palavras de Jesus.

No trecho do “discurso do pão da Vida” que a liturgia deste vigésimo domingo comum nos serve, Jesus avança um pouco mais e convida os seus interlocutores a comer a sua carne e a beber o seu sangue. São palavras inauditas, impossíveis de ser entendidas pelos interlocutores de Jesus, se as situarmos no cenário da sinagoga de Cafarnaum. Elas só são compreensíveis após a instituição da eucaristia, na última ceia.

Alguns biblistas pensam que este trecho poderia ser uma reflexão da primitiva comunidade cristã, que reinterpretou a primeira parte do “discurso do pão da Vida”, explicitando-a a partir da celebração eucarística posterior. Outros, contudo, pensam que João reelaborou e colocou neste lugar uma série de materiais que estavam inicialmente incluídos no relato da última ceia, mas que foram deslocados para aqui por conveniências teológicas, já que na sua versão da última ceia, o autor do Quarto Evangelho preferiu dar relevo à cena do lava pés (no entanto, dada a relevância que o discurso eucarístico de Jesus assumiu na tradição cristã, João não quis omiti-lo completamente, transladando-o para o lugar que lhe pareceu mais apropriado: o cenário do discurso sobre “o pão descido do céu para dar Vida ao mundo).

Seja como for, o discurso sobre o “pão da vida” (cf. Jo 6,22-58) ficou, no esquema final do Quarto Evangelho, com a seguinte sequência lógica: os homens buscam o pão material; Jesus traz-lhes o “pão do céu que dá vida ao mundo”; e o pão eucarístico realiza, de forma plena, a missão de Jesus no sentido de dar Vida ao homem. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A parte final do “discurso do pão da Vida” (Jo 6,26-58) – precisamente o texto que escutamos neste vigésimo domingo comum – coloca-nos, indubitavelmente, em contexto eucarístico. Leva-nos às palavras e aos gestos de Jesus na última ceia, quando Ele deu aos discípulos o pão e o cálice e os convidou a “comer” o seu corpo e a “beber” o seu sangue (cf. Mc 14,22-25). A eucaristia revive e atualiza a vida, os gestos, as palavras de Jesus, a sua paixão, morte e ressurreição. A eucaristia é uma experiência central para os seguidores de Jesus; a Igreja vive e alimenta-se da eucaristia. Ora, um dos sinais mais graves da crise da fé cristã entre nós é o abandono tão generalizado da eucaristia dominical. Revela indiferença por Jesus, pelo projeto de Jesus, pela Vida que Jesus quer oferecer. Que importância é que a eucaristia assume na nossa vida e na nossa existência cristã? Para nós, a eucaristia é um rito tradicional a que “assistimos” por obrigação, para acalmar a consciência ou para cumprir as regras do “religiosamente correto”, ou é um encontro pessoal e comunitário com esse Jesus que é fonte inesgotável de Vida? O que podemos fazer – inclusive ao nível do ritual eucarístico – para tornar a celebração da eucaristia uma experiência forte, sentida e inolvidável de encontro com Jesus?
  • Muito novos ainda, depois de uma preparação mais ou menos conseguida, aproximamo-nos da mesa eucarística e fizemos a “primeira comunhão”. Tinham-nos ensinado que, no momento de comungar, Jesus vinha ao nosso encontro e ficava connosco pela graça do sacramento da eucaristia. Depois disso, entramos numa espiral de comunhões, muitas vezes rotineiras e pouco sentidas. Em cada celebração eucarística, no momento previsto, colocamo-nos distraidamente na fila para cumprir o rito sacramental de receber o pão consagrado e voltamos ao nosso lugar, sem mais consequências nem desenvolvimentos… Como é que sentimos e vivemos o encontro com Jesus feito “pão” para nos dar Vida? O momento em que recebemos Jesus no pão eucarístico é sentido por nós como o momento em que O acolhemos no coração, em que nos abrimos à sua verdade, em que acolhemos o seu Evangelho, em que interiorizamos o seu estilo de vida, em que O colocamos no centro da nossa vida?
  • Na Eucaristia, o alimento servido é o próprio Jesus. Quem acolhe (quem “come”) essa Vida que Ele oferece torna-se, portanto, um com Ele. “Comer” cada domingo (ou cada dia) o alimento que Jesus oferece e que é a sua própria pessoa, leva os crentes a uma comunhão total de vida com Ele. É a Vida de Jesus que passa a circular em nós e a animar tudo aquilo que fazemos. Celebrar a Eucaristia é aprofundar os laços familiares que nos unem a Jesus, é identificarmo-nos com Ele. Quando comungamos, temos a consciência clara de que ficamos intimamente ligados a Jesus e que Jesus fica connosco, a alimentar a nossa vida a partir de dentro?
  • Na conceção judaica, a partilha do mesmo alimento à volta da mesa gera entre os convivas familiaridade e comunhão. Assim, os crentes que participam da Eucaristia passam a ser irmãos: em todos circula a mesma Vida, a Vida que brota da mesma “videira” que é Jesus. Dessa forma, a participação na eucaristia tem de resultar no reforço da comunhão dos irmãos. Uma comunidade que celebra a eucaristia e que vive depois na divisão, no ciúme, no conflito, no orgulho, na autossuficiência, na indiferença para com as dores e as necessidades dos irmãos, é uma comunidade que não está a ser coerente com aquilo que celebra; e, nesse caso, a celebração eucarística é uma incoerência e uma mentira. O pão eucarístico que partilhamos com outros irmãos leva-nos a ser testemunhas e sinais de união e de comunhão? A participação na eucaristia torna-nos menos egoístas e mais atentos aos irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado?
  • “Comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus implica um compromisso com esse mesmo projeto que Jesus procurou concretizar em toda a sua vida, em todos os seus gestos, em todas as suas palavras. Como Jesus, o crente que celebra a Eucaristia tem de levar ao mundo e aos homens essa vida que aí recebe… Tem de lutar, como Jesus, contra a injustiça, o egoísmo, a opressão, o pecado; tem de esforçar-se, como Jesus, por eliminar tudo o que desfeia o mundo e causa sofrimento e morte; tem de construir, como Jesus, um mundo de liberdade, de amor e de paz; tem de testemunhar, como Jesus, que a vida verdadeira é aquela que se faz amor, serviço, partilha, doação até às últimas consequências. Se a Eucaristia for, de facto, uma experiência profunda e sentida de adesão a Cristo e ao seu projeto, dela resultará o imperativo de uma entrega semelhante à de Cristo em favor dos nossos irmãos e da construção de um mundo novo. A Vida que recebemos de Jesus leva-nos ao compromisso com a transformação do mundo?
  • Jesus apresenta-se como fonte de Vida para todos aqueles que aceitam a sua proposta e decidem caminhar atrás d’Ele. Ele garante poder saciar a nossa fome de Vida eterna e verdadeira. Na verdade, todos nós andamos à procura dessa Vida, de uma Vida que nos realize. Muitas vezes fazemo-lo em caminhos equivocados e temos, depois, de lidar com a frustração e a desilusão. Constatamos, a partir de experiências amargas, que o dinheiro, o poder, a ambição, o êxito social, a marca do carro que utilizamos, a qualidade da urbanização onde vivemos, a capacidade do nosso smartphone, não saciam nossa fome de Vida. Na nossa busca de Vida, há lugar para Jesus e para a proposta de Vida que Ele faz? Estamos disponíveis para acolher as indicações de Jesus, mesmo que elas nos pareçam desfasadas dos valores que a nossa sociedade cultiva e impõe? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UMA NOVA POSSIBILIDADE NA HISTÓRIA HUMANA

Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo XX começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por João 6,51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo XX fecha a quarta secção (João 6,41-51), e já foi lido no passado Domingo XIX. Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correta!

Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo VI do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão» ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que é a minha carne, que dá a vida» (João 6,51). A pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta acima referida por Jesus, soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).

Esclarecedor é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). Que a vida eterna, que é Jesus, entre em nós e transforme, transfigure e configure a nossa vida à maneira de viver de Jesus, eis a temática da transparência e da mútua imanência e pertença entre nós e Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.

A lição do Livro dos Provérbios, que hoje escutamos (Provérbios 9,1-6), mostra-nos a Sabedoria personificada, que edifica a sua casa, prepara o banquete, escolhe o vinho, põe a mesa, e convida todas as pessoas [= toda a humanidade] para o seu banquete. Para significar que o convite para uma nova maneira de viver é feito a todos, sem exceção, é dito que é feito dos pontos mais altos da cidade (Provérbios 9,3).

E a Carta de São Paulo aos Efésios 5,15-20 reclama também de nós uma vida nova, assente num coração inteligente que saiba ler o tempo em que estamos, discernir a vontade de Deus, decantar quotidianamente em música a Palavra de Deus e levantar a Deus permanente ação de graças. A não ser assim, teremos de nos haver com a crítica certeira de Nietzsche, que refere: «Se a Boa Nova da vossa Bíblia estivesse também escrita no vosso rosto, não teríeis necessidade de insistir tanto para que as pessoas acreditem. As vossas obras e ações deviam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós mesmos seríeis Bíblia nova e Boa Nova».

A música do Salmo 34, a que já nos referimos no Domingo passado (XIX), continua hoje a acompanhar-nos, realçando-se sobretudo o sabor sapiencial dos conselhos da Sabedoria personificada: «Vinde, meus filhos, escutai-me: ensinar-vos-ei o temor do Senhor» (v. 12); «afasta-te do mal e faz o bem: procura a paz e segue-a sempre» (v. 15). E continuamos hoje a cantar repetidamente o refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pedro 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome, que nos acompanha sempre.

António Couto

ASSUNÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA – 15 agosto 2024

Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

            O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

            É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

            Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida, não por uma pressa qualquer, mas por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

            O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

            Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, que é a Igreja, ao mesmo tempo perseguida e preservada, grávida de um filho varão, e que sofre já as dores de parto, que dá à luz, não obstante a guerra em que está envolvida. Pode ver-se sempre por detrás também a figura de Maria. Resulta, todavia, surpreendente que este filho varão, mal nasceu foi logo arrebatado para junto de Deus. Vê-se bem que esta surpreendente representação da vida de Jesus (nasce, e é logo elevado ao céu!) cai fora das pautas tradicionais, que fazem Jesus nascer em Belém, atravessar a Paixão e a Cruz, e só depois vem a Ressurreição e a Ascensão. É claro que este nascimento messiânico dorido e vitorioso, descrito no Apocalipse, não é o de Belém, mas o da manhã de Páscoa, sendo as dores da maternidade as dores de parto da comunidade dos discípulos, vista como uma mulher que sofre para dar à luz, mas logo se alegra quando nasce o filho (cf. Jo 16,19-22). Nova maneira de ler o Calvário! Este nascimento do homem novo é visto como um «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, o do Dragão de cor vermelha, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).

            O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai. «Cristo foi ressuscitado (egêgertai: perf. pass. de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram» (1 Coríntios 15,20). Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro e primícias, então representa-nos a todos e constitui promessa e certeza para todos. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.

            O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe, e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.

            Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

            Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

            No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

            No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XIX do Tempo Comum – Ano B – 11.08.2024

51Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente;

e o pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo. Jo 6, 51

Viver a Palavra

«Somos aquilo que comemos!».

Esta expressão é popularmente repetida e hoje aparece frequentemente ligada a planos alimentares e programas nutricionais, para sublinhar que o que comemos diz muito sobre nós, sobre o que somos e sobre aquilo que defendemos. Esta frase que parece recentemente inventada por algum publicitário remonta a Hipócrates, pai da medicina, que há mais de 2500 anos divulgou esta ideia, acrescentando: «que o vosso alimento seja o vosso primeiro medicamento».

Sabemos que a alimentação é fundamental para uma vida saudável e, hoje mais do que nunca, sabemos do impacto que as nossas escolhas alimentares têm na nossa vida. Conscientes que esta página não se destina a refletir sobre planos alimentares e nutricionais, estas linhas servem apenas de prelúdio para tomarmos consciência que o «Pão vivo que desceu do Céu» não só sustenta a nossa caminhada como a configura e lhe aponta o rumo a traçar.

Como Elias temos consciência que temos um longo caminho a percorrer, ainda que tantas vezes possamos ser vencidos pelo desânimo e procuremos um junípero onde carpir as nossas misérias e soltar o nosso último suspiro. Também não nos contentamos com um pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água que entremeie o estado de apatia ou letargia em que nos encontramos, como se estivéssemos resignados a comer, beber e dormir até que o curso dos dias ache o seu fim.

Somos filhos do Deus do amor e da vida, chamados a inscrever a nossa existência num horizonte de eternidade que preenche de sentido os dias e as horas do nosso caminhar. Por isso, como nos exorta S. Paulo: «seja eliminado do meio de vós tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade». Afastemos de nós o que nos afasta de Deus e dos irmãos e sejamos construtores de uma vida verdadeiramente plena que possa fazer ecoar no coração de cada homem e de cada mulher as palavras que cantamos no Salmo: «saboreai e vede como o Senhor é bom».

Na verdade, é isto mesmo que nos revela Jesus: o nosso Deus bom e misericordioso é um Deus que somos chamados a saborear. A Sua vida entregue sem medida é pão partido e repartido para a redenção do mundo. Apresentando-se como o «Pão que desceu do Céu», Jesus depara-se com a perplexidade e admiração dos judeus que murmuram entre si sobre a loucura destas palavras. Um homem que se apresenta como alimento e, mais ainda, um alimento que vem do céu, quando eles até conhecem bem o Seu pai e Sua mãe.

Acostumados a estas palavras, não nos sentimos interpelar com a força que elas deveriam provocar em nós. Não somos alimentados por um pão qualquer, tampouco somos alimentados pelo maná que não evitou a morte daqueles que o comeram. Somos nutridos pelo Pão Vivo descido do Céu, pelo alimento que oferece vida em plenitude e prenhe de eternidade.

Jesus desce do céu, faz-se pão e oferece-se em alimento. Este é o dinamismo da incarnação que deve moldar a vida de todos aqueles que dele se alimentam: descer, fazer-se pão e oferecer-se. Nestas três formas verbais encontramos os pilares de uma vida verdadeiramente eucarística. Na verdade, se quando ingerimos algum alimento, os seus nutrientes são assimilados pelo nosso organismo, também todas as vezes que nos alimentamos do Pão da Eucaristia somos chamados a configurar a nossa vida com a vida Daquele que se quer fazer presente em nós. in Voz Portucalense

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Neste Domingo XIX do Tempo Comum tem início em Portugal a Semana Nacional da Mobilidade Humana. O tempo de férias e descanso não pode permitir esquecer quantos por motivações tão diferentes têm de se deslocar e fazer a experiência de serem estrangeiros e peregrinos. As comunidades cristãs devem estar atentas e criar processos de acolhimento e integração para que possamos anunciar a certeza que «Deus caminha com o Seu Povo», como escreve o Papa na sua mensagem para o 110º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a celebrar no dia 29 de setembro de 2024. A oração proposta pelo Papa, no final da mensagem, pode ser distribuída pelos fiéis e ser rezada nas diversas Eucaristias desta semana, convidando-os a terem essa intenção presente na sua oração pessoal.in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 1 Re 19,4-8

Leitura do Primeiro Livro dos Reis

Naqueles dias,
Elias entrou no deserto e andou o dia inteiro.
Depois sentou-se debaixo de um junípero
e, desejando a morte, exclamou:
«Já basta, Senhor. Tirai-me a vida,
porque não sou melhor que meus pais».
Deitou-se por terra e adormeceu à sombra do junípero.
Nisto, um Anjo do Senhor tocou-lhe e disse:
«Levanta-te e come».
Ele olhou e viu à sua cabeceira
um pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água.
Comeu e bebeu e tornou a deitar-se.
O Anjo do Senhor veio segunda vez, tocou-lhe e disse:
«Levanta-te e come,
porque ainda tens um longo caminho a percorrer».
Ele levantou-se, comeu e bebeu.
Depois, fortalecido com aquele alimento,
caminhou durante quarenta dias e quarenta noites
até ao monte de Deus, Horeb.

CONTEXTO

Elias actua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).

Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.

Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.

Após o massacre dos 400 profetas de Baal no monte Carmelo, Acab e a sua esposa fenícia juraram matar Elias; e o profeta fugiu para o sul, a fim de salvar a vida. Chegado à zona de Beer-Sheba, Elias internou-se no deserto. É precisamente nesse contexto que o episódio do Livro dos Reis que hoje nos é proposto nos situa. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • No quadro que o texto nos apresenta, Elias aparece como um homem vencido pelo medo e pela angústia, marcado pela deceção e pelo desânimo, que experimentou dramaticamente a sua impotência no sentido de mudar o coração do seu Povo e que, por isso, desistiu de lutar; a sua desilusão é de tal forma grande, que ele prefere morrer a ter de continuar. “Este” Elias testemunha essa condição de fragilidade e de debilidade que está sempre presente na experiência profética. É um quadro que todos nós conhecemos bem… A nossa experiência profética está, muitas vezes, marcada pelas incompreensões, pelas calúnias, pelas perseguições; outras vezes, é o sentimento da nossa impotência no sentido de mudar o mundo que nos angustia e desanima; outras vezes ainda, é a constatação da nossa fragilidade, dos nossos limites, da nossa finitude que nos assusta… Como responder a um quadro deste tipo e como encarar esta experiência de fragilidade e de debilidade? A solução será baixar os braços e abandonar a luta? Quem pode ajudar-nos a enfrentar o drama da desilusão e da deceção?
  • O nosso texto garante-nos que Deus não abandona aqueles a quem chama a dar testemunho profético. No “pão cozido sobre pedras quentes” e na “bilha de água” com que Deus retempera as forças de Elias, manifesta-se o Deus da bondade e do amor, cheio de solicitude para com os seus filhos, que anima os seus profetas e lhes dá a força para testemunhar, mesmo nos momentos de dificuldade e de desânimo. Quando tudo parece cair à nossa volta e quando a nossa missão parece condenada ao fracasso, é em Deus que temos de confiar e é n’Ele que temos de colocar a nossa segurança e a nossa esperança.
  • Como nota marginal, atentemos na forma de atuar de Deus: Ele não resolve magicamente os problemas do profeta, nem Se substitui ao profeta… O profeta deve continuar a sua missão, enfrentando os mesmos problemas de sempre; mas Deus “apenas” alimenta o profeta, dando-lhe a coragem para continuar a sua missão. Por vezes, pedimos a Deus que nos resolva milagrosamente os problemas, com um golpe mágico, enquanto nós ficamos, de braços cruzados, a olhar para o céu… O nosso Deus não Se substitui ao homem, não ocupa o nosso lugar, não estimula com a sua ação a nossa preguiça e a nossa instalação; mas está ao nosso lado sempre que precisamos d’Ele, dando-nos a força para vencer as dificuldades e indicando-nos o caminho a seguir.
  • A “peregrinação” de Elias ao Horeb/Sinai, para se reencontrar com as origens da fé israelita e para recarregar as baterias espirituais, sugere-nos a necessidade de, por vezes, encontrarmos momentos de “paragem”, de reflexão, de “retiro”, de reencontro com Deus, de redescoberta dos fundamentos da nossa missão… Essa “paragem” não será nunca um tempo perdido; mas será uma forma de recentrarmos a nossa vida em Deus e de redescobrirmos os desafios que Deus nos faz, no âmbito da missão que nos confiou. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Enaltecei comigo o Senhor
e exaltemos juntos o seu nome.
Procurei o Senhor e Ele atendeu-me,
libertou-me de toda a ansiedade.

Voltai-vos para Ele e ficareis radiantes,
o vosso rosto não se cobrirá de vergonha.
Este pobre clamou e o Senhor o ouviu,
salvou-o de todas as angústias.

O Anjo do Senhor protege os que O temem
e defende-os dos perigos.
Saboreai e vede como o Senhor é bom:
feliz o homem que n’Ele se refugia.

LEITURA II – Ef 4,30-5,2

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios

Irmãos:
Não contristeis o Espírito Santo de Deus,
que vos assinalou para o dia da redenção.
Seja eliminado do meio de vós
tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência
e toda a espécie de maldade.
Sede bondosos e compassivos uns para com os outros
e perdoai-vos mutuamente,
como Deus também vos perdoou em Cristo.
Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados.
Caminhai na caridade, a exemplo de Cristo,
que nos amou e Se entregou por nós,
oferecendo-Se como vítima agradável a Deus.

CONTEXTO

A nossa segunda leitura apresenta-nos, mais uma vez, um texto dessa “carta circular” que Paulo escreveu a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor (inclusive aos cristãos de Éfeso), enquanto estava na prisão (em Roma, durante os anos 61-63?). Esta carta (escrita na fase final da vida de Paulo) é uma carta onde o apóstolo expõe aos cristãos, de forma serena e refletida, as principais exigências da vida nova que resulta do Batismo,

Na secção que vai de 4,1 a 6,20, temos uma “exortação aos batizados”: é um texto parenético, que tem por objetivo principal exortar os cristãos a viverem de forma coerente com o seu Batismo e com o seu compromisso com Cristo. A perícope de 4,14-15,14 (que inclui o nosso texto) deve ser entendida como um convite a viver de acordo com a condição de Homem Novo, que o cristão adquiriu no dia do seu Batismo.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Pelo Batismo, os cristãos tornam-se filhos amados de Deus e passam a integrar a comunidade de Deus. O Batismo não é, portanto, uma tradição familiar, um rito cultural, ou uma obrigação social; mas é um momento sério de opção por Deus e de compromisso com os valores de Deus. Tenho consciência de que me comprometi com a família de Deus e que devo viver como filho de Deus? Tenho consciência de que assumi o compromisso de testemunhar no mundo, com os meus gestos e atitudes, os valores de Deus? Tenho consciência de que devo, portanto, procurar ser perfeito “como o Pai do céu é perfeito” (cf. Mt 5,48)?
  • Para os batizados, o modelo do “Filho amado de Deus” que cumpre absolutamente os planos do Pai, é Jesus… A vida de Jesus concretizou-se na contínua escuta dos projetos do Pai e no amor total aos homens. Esse amor (que teve a sua expressão máxima na cruz) expressou-se sempre em gestos de entrega aos homens, de serviço humilde aos irmãos, de dom de Si próprio, de acolhimento de todos os marginalizados, de bondade sem fronteiras, de perdão sem limites… Dessa forma, Jesus foi o paradigma do Homem Novo, o modelo que Deus propõe a todos os outros seus filhos. Como é que me situo face a esse “modelo” que é Jesus? Como Ele, vivo numa atenção constante às propostas de Deus e disposto a responder positivamente aos seus desafios? Como Ele, estou disposto a despir-me do egoísmo, a caminhar na caridade e a fazer da minha vida um dom total aos irmãos?
  • Seguir Cristo e ser um Homem Novo implica, na perspetiva de Paulo, assumir uma nova atitude nas relações com os irmãos. O apóstolo chega a especificar que o azedume, a irritação, os rancores, os insultos, as violências, a má-língua, a inveja, os orgulhos mesquinhos devem ser totalmente banidos da vida dos cristãos. Esses “vícios” são manifestações do “homem velho” que não cabem na existência de um “filho de Deus”, cuja vida foi marcada com o selo do Espírito. É necessário que estejamos cientes desta realidade: quando na nossa vida pessoal ou comunitária nos deixamos levar pelo rancor, pelo ciúme, pelo ódio, pela violência, pela mesquinhez e magoamos os irmãos que nos rodeiam, estamos a ser incoerentes com o compromisso que assumimos no dia do nosso Batismo e a cortar a nossa relação com a família de Deus.in Dehonianos.

EVANGELHO – Jo 6,41-51

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito:
«Eu sou o pão que desceu do Céu».
E diziam: «Não é ele Jesus, o filho de José?
Não conhecemos o seu pai e a sua mãe?
Como é que Ele diz agora: ‘Eu desci do Céu’?»
Jesus respondeu-lhes:
«Não murmureis entre vós.
Ninguém pode vir a Mim,
se o Pai, que Me enviou, não o trouxer;
e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.
Está escrito no livro dos Profetas:
‘Serão todos instruídos por Deus’.
Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino
vem a Mim.
Não porque alguém tenha visto o Pai;
só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Em verdade, em verdade vos digo:
Quem acredita tem a vida eterna.
Eu sou o pão da vida.
No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram.
Mas este pão é o que desce do Céu
para que não morra quem dele comer.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».

CONTEXTO

No seu “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), João apresenta-nos um conjunto de cinco catequeses sobre Jesus; e, em cada uma delas, usando diferentes símbolos, Jesus é apresentado como o Messias que veio ao mundo para cumprir o plano do Pai e fazer aparecer um Homem Novo. Todas essas catequeses (“Jesus, a água que dá a vida” – cf. Jo 4,1-5,47; “Jesus, o verdadeiro pão que sacia todas as fomes” – cf. Jo 6,1-7,53; “Jesus, a luz que liberta o homem das trevas” – cf. Jo 8,12-9,41; “Jesus, o Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” – cf. Jo 10,1-42; “Jesus, vida e ressurreição para o mundo” – cf. Jo 11,1-56) terminam com uma secção onde se manifesta a oposição dos judeus a essa vida nova que Jesus veio propor aos homens. João vai, dessa forma, preparando os seus leitores para aquilo que vai acontecer em Jerusalém no final da caminhada histórica de Jesus: a morte na cruz.

O texto que nos é hoje proposto apresenta-nos uma dessas histórias de confronto entre Jesus e os judeus. No final do discurso explicativo da multiplicação dos pães e dos peixes, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6,22-40), Jesus propusera-Se como “o Pão da vida” e convidara os seus interlocutores a aderirem à sua proposta para nunca mais terem fome. O nosso texto é a sequência desse episódio. Refere a murmuração dos judeus a propósito das palavras de Jesus e descreve a controvérsia que se seguiu. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Repetindo o tema central do texto que refletimos no passado domingo, também o Evangelho que hoje nos é proposto nos convida a acolher Jesus como o “pão” de Deus que desceu do céu para dar a vida aos homens… Para nós, seguidores de Jesus, esta afirmação não é uma afirmação de circunstância, mas um facto que condiciona a nossa existência, as nossas opções, todo o nosso caminho. Jesus, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus gestos, com o seu amor, com a sua proposta, veio dizer-nos como chegar à vida verdadeira e definitiva. Que lugar é que Jesus ocupa na nossa vida? É à volta d’Ele que construímos a nossa existência? O projeto que Ele veio propor-nos tem um real impacto na nossa caminhada e nas opções que fazemos em cada instante?
  • “Quem acredita em Mim, tem a vida eterna” – diz-nos Jesus. “Acreditar” não é, neste contexto, aceitar que Ele existiu, conhecer a sua doutrina, ou elaborar altas considerações teológicas a propósito da sua mensagem… “Acreditar” é aderir, de facto, a essa vida que Jesus nos propôs, viver como Ele na escuta constante dos projetos do Pai, segui-l’O no caminho do amor, do dom da vida, da entrega aos irmãos; é fazer da própria vida – como Ele fez da sua – uma luta coerente contra o egoísmo, a exploração, a injustiça, o pecado, tudo o que desfeia a vida dos homens e traz sofrimento ao mundo. Eu posso dizer, com verdade e objetividade, que “acredito” em Jesus?
  • No seu discurso, Jesus faz referência ao maná como um alimento que matou a fome física dos israelitas em marcha pelo deserto, mas que não lhes deu a vida definitiva, não lhes transformou os corações, não lhes assegurou a liberdade plena e verdadeira (só o “pão” que Jesus oferece sacia verdadeiramente a fome de vida do homem). O maná pode representar aqui todas essas propostas de vida que, tantas vezes, atraem a nossa atenção e o nosso interesse, mas que vêm a revelar-se falíveis, ilusórias, parciais, porque não nos libertam da escravidão nem geram vida plena. É preciso aprendermos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança no “pão” que não sacia a nossa fome de vida definitiva; é necessário aprendermos a discernir entre o que é ilusório e o que é eterno; é preciso aprendermos a não nos deixarmos seduzir por falsas propostas de realização e de felicidade; é necessário aprendermos a não nos deixarmos manipular, aceitando como “pão” verdadeiro os valores e as propostas que a moda ou a opinião pública dominante continuamente nos oferecem…
  • Porque é que os judeus rejeitam a proposta de Jesus e não estão dispostos a aceitá-l’O como “o pão que desceu do céu”? Porque vivem instalados nas suas grandes certezas teológicas, prisioneiros dos seus preconceitos, acomodados num sistema religioso imutável e estéril e perderam a faculdade de escutar Deus e de se deixar desafiar pela novidade de Deus. Eles construíram um Deus fixo, calcificado, previsível, rígido, conservador, e recusam-se a aceitar que Deus encontre sempre novas formas de vir ao encontro dos homens e de lhes oferecer vida em abundância. Esta “doença” de que padecem os líderes e “fazedores” de opinião do mundo judaico não é assim tão rara… Todos nós temos alguma tendência para a acomodação, a instalação, o aburguesamento; e quando nos deixamos dominar por esse esquema, tornamo-nos prisioneiros dos ritos, dos preconceitos, das ideias política ou religiosamente corretas, de catecismos muito bem elaborados mas parados no tempo, das elaborações teológicas muito coerentes e muito bem arrumadas mas que deixam pouco espaço para o mistério de Deus e para os desafios sempre novos que Deus nos faz. É preciso aprendermos a questionar as nossas certezas, as nossas ideias pré-fabricadas, os esquemas mentais em que nos instalamos comodamente; é preciso termos sempre o coração aberto e disponível para esse Deus sempre novo e sempre dinâmico, que vem ao nosso encontro de mil formas para nos apresentar os seus desafios e para nos oferecer a vida em abundância. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, deve ter-se em atenção à palavra «jupero» que se repete duas vezes durante a leitura, para uma correta acentuação da palavra. Deve ter-se também em consideração as frases curtas e as intervenções em discurso direto, para uma leitura articulada e fluente.

Na segunda leitura, estar atento às formas verbais na forma imperativa que evidenciam o tom exortativo que deve pautar a proclamação deste texto. Deve haver ainda um especial cuidado com a proclamação enumeração presente no texto: «azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O PÃO QUE DÁ A VIDA

            Continuamos, neste Domingo XIX do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de João 6,41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo XVII). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (João 6,25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (João 6,41-51).

João 6,25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de João 6,25-59 mostra-se organizado em cinco secções: João 6,25-29 (a), João 6,30-33 (b), João 6,34-40 (c), João 6,41-51 (d) e João 6,52-59 (e).

O texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (João 6,41-51). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (João 6,2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (João 6,41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.

E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (João 6,42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas indiretamente, em 3.ª pessoa: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42).

Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração: «Não murmureis entre vós» (João 6,43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44). Jesus põe, portanto, fim à murmuração, isto é, ao falar mal de alguém, em 3.ª pessoa, abrindo um discurso novo, direto, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Isaías 54,13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (João 6,45). Os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. De pai para Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: só nos identificando com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos entrar em nós a vida eterna. Notável interligação: o IV Evangelho já nos tinha ensinado que é Jesus que explica o Pai (João 1,18) e que conduz ao Pai (João 14,6). Nesta passagem, é o Pai que explica Jesus e que conduz a Jesus.

Notar-se-á por debaixo do falar de Jesus o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um deles é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (João 6,45), que é uma citação de Isaías 54,13. Todavia, a música é diferente: o texto de Isaías é restritivo, pois fala de «Todos os teus filhos» (de Jerusalém). Jesus alarga a perspetiva, falando de todos em geral. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44), que tem por debaixo Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere: «Com um amor eterno, Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo (hebraico e grego) traduz bem. Entenda-se: Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!

Como os judeus cortam laços e cavam fossos, murmurando, também Elias (1 Reis 19,4-8) se afasta de Deus e do mundo e de si mesmo. Murmurando. De acordo com a murmuração de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, de pernas para o ar, já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso e desanimado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem Deus e sem sentido. Tudo somado, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais (1 Reis 19,4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo.

Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Manda o seu anjo, que lhe toca (como toca em nós um anjo?), fala-lhe, alimenta-o, e abre-lhe um caminho imenso para uma nova nascente. Também não fala mal de nós, mas ama-nos.

Na linha do que bem faz hoje o Apóstolo Paulo para nós na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, bons (chrêstoí, leitura viva: christoí) uns para com os outros, misericordiosos, perdoadores (Efésios 4,32), «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados» (Efésios 5,1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E vistas as coisas do nosso lado: «o amor não faz mal ao próximo» (Romanos 13,10).

O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (v. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9), como cantamos hoje repetidamente no refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pe 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

À entrada de agosto,
Com o sol no rosto,
Dá Deus o descanso
De um ribeiro manso,
Uma roseira brava,
Um silêncio em lava,
Uma bilha de água,
Pão folhado a arder na frágua
Um anjo à cabeceira,
Celestial pulseira,
Com que o céu nos guia
De noite e de dia,
Pelo deserto ardente,
Rumo à nascente
Da alegria.

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVIII do Tempo Comum – Ano B – 04.08.2024

Viver a Palavra

            Atravessamos um contexto social e cultural marcado por rápidas e profundas transformações e se há uma constante no tempo em que vivemos é estar em estado permanente de mudança. Na verdade, no coração de cada homem e de cada mulher reside uma insatisfação que o faz partir à procura de um garante de estabilidade e equilíbrio que lhe ofereça um horizonte de plenitude e de sentido. Contudo, tantas vezes gastamos o nosso tempo e as nossas energias naquilo que não é capaz de satisfazer a verdade que o nosso coração anseia. Acredito que mesmo quando alguém entra num caminho mais árduo e exigente por escolhas menos acertadas e desviantes, o faz procurando o bem e a verdade, mas erra o alvo e os objetivos saem frustrados.

            Num contexto marcado pela diversificação e a diferenciação, a proposta da fé emerge como uma entre tantas outras e o itinerário crente torna-se mais exigente, pois pode carecer de atração e entusiasmo diante de tantas propostas aparentemente mais atrativas e entusiasmantes. Há, de facto, no coração humano um desejo de vida nova que tantas vezes é camuflado e aliviado pelas mudanças exteriores. Basta ver como na publicidade, repetidas vezes, surgem propostas de mudança de vida pela transformação da aparência física, com dietas e operações estéticas que procuram uma eterna juventude ou uma mudança de vida que rompa com o passado. «Sinta-se bem consigo mesmo!» é refrão que caracteriza uma sociedade do bem-estar que procura a satisfação imediata e a autorrealização pessoal. A proposta da vida cristã convida a percorrer o itinerário que nos conduz do «bem-estar» ao «bem-maior», isto é, à procura de um horizonte de plenitude e felicidade que nos faz entrar num caminho de renovação interior que cria em nós um modo novo de ser e de estar porque nos abre a um modo novo de servir e amar: «renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus na justiça e santidade verdadeiras».

            As grandes transformações que o mundo anseia começam a partir de dentro, a partir do coração de cada homem e de cada mulher, e manifestam-se na vida concreta que o amor de Deus faz florescer quando a humanidade pela fé adere livremente à proposta que Deus lhe dirige. Não é uma mudança interior porque acontece no íntimo da pessoa e aí fica resguardada e escondida, mas interior porque nasce de uma opção fundamental que começa no íntimo do homem e se manifesta exteriormente, pela coerência de vida, nas ações concretas, no modo de ser e de estar no mundo.

            Aquela multidão que procura Jesus precisa ainda de purificar as suas motivações. A frontalidade das palavras de Jesus – «vós procurais-Me, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados» – é o convite a recentrar a nossa busca. A procura daquela multidão está ainda centrada na lógica da satisfação das necessidades mais imediatas e prementes e não na gratuidade de Deus que nos oferece muito mais do que o nosso coração deseja e nos desconcerta pelo excesso de graça que Dele recebemos. Enquanto procuramos coisas que possam preencher os nossos vazios, Deus oferece-nos uma Pessoa, Jesus Cristo, feito pão partido e repartido, que sustenta a nossa caminhada.

            Para atravessar o limiar que nos oferece vida nova e verdadeira é necessário acolher a vida plena e eterna que nos oferece o Pão que desceu do Céu, conscientes que a obra de Deus não se realiza pela conjugação do verbo fazer, mas pela capacidade de deixar Deus acontecer nas nossas vidas pela fé que depositamos no Seu amor e na Sua graça.in Voz Portucalense

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            Do Domingo XVII ao Domingo XXI do Tempo Comum, interrompemos a leitura do Evangelho de S. Marcos, evangelista deste Ano Litúrgico, para escutarmos o capítulo seis do Evangelho de S. João. O capítulo do Pão da Vida, como tantas vezes é designado, é o convite a recentrar a vida cristã na Eucaristia e descobrir em Jesus, Pão Vivo descido do Céu, o alimento que sacia a nossa fome e oferece novo sentido e configuração à nossa vida. Que estes Domingos sejam a oportunidade de caminharmos juntos, renovando a consciência que a Eucaristia é «fonte e centro da vida cristã» (LG 11) e, preparando o novo ano pastoral, que possa ser a oportunidade de criativamente fazer da Eucaristia o centro da vida de cada comunidade.in Voz Portucalense

                                                            + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Êxodo 16,2-4.12-15

Naqueles dias,
toda a comunidade dos filhos de Israel
começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão.
Disseram-lhes os filhos de Israel:
«Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egipto,
quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne
e comíamos pão até nos saciarmos.
Trouxestes-nos a este deserto,
para deixar morrer à fome toda esta multidão».
Então o Senhor disse a Moisés:
«Vou fazer que chova para vós pão do céu.
O povo sairá para apanhar a quantidade necessária para cada dia.
Vou assim pô-lo à prova,
para ver se segue ou não a minha lei.
Eu ouvi as murmurações dos filhos de Israel.
Vai dizer-lhes:
‘Ao cair da noite comereis carne
e de manhã saciar-vos-eis de pão.
Então reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus’».
Nessa tarde apareceram codornizes,
que cobriram o acampamento,
e na manhã seguinte havia uma camada de orvalho
em volta do acampamento.
Quando essa camada de orvalho se evaporou,
apareceu à superfície do deserto uma substância granulosa,
fina como a geada sobre a terra.
Quando a viram, os filhos de Israel perguntaram uns aos outros:
«Man-hu?», quer dizer: «Que é isto?»,
pois não sabiam o que era.
Disse-lhes então Moisés:
«É o pão que o Senhor vos dá em alimento».

CONTEXTO

            A secção de Ex 15,22-18,27 desenvolve um dos grandes temas do Pentateuco: a marcha pelo deserto dos hebreus libertados da escravidão no Egito. Aqui estamos, ainda, na primeira etapa dessa marcha, a que vai desde a passagem do mar (cf. Ex 14,15-31), até ao Sinai.

            Ao longo desta etapa, o tema da murmuração do Povo contra Moisés e contra Deus aparece em três episódios (cf. Ex 15,22-27; 16,1-21; 17,1-7). Em geral, esta temática desenvolve-se à volta de um esquema semelhante: diante das dificuldades que encontra no caminho, o Povo murmura, revolta-se contra Moisés e acusa Deus pelos desconfortos da caminhada; Moisés intervém e intercede junto de Deus; finalmente, Deus acaba por conceder ao Povo os bens de que este sente necessidade. Os relatos apresentam-se sempre de uma forma dramática, . prodigiosa de Deus em benefício do seu Povo.

            Provavelmente, estes relatos têm por base dificuldades concretas sentidas pelos hebreus no seu caminho pelo deserto em direção à Terra Prometida. Essas dificuldades ficaram na memória coletiva; e, mais tarde, foram utilizadas pelos teólogos de Israel com um objetivo catequético. O objetivo dos catequistas que nos legaram estes relatos nunca foi apresentar uma reportagem factual dos acontecimentos do caminho, mas sim fazer catequese. Percebe-se nas entrelinhas que a grande preocupação de quem compôs estes relatos é pôr o Povo de sobreaviso contra a tentação de procurar refúgio e segurança longe de Javé.

            O episódio que hoje nos é proposto – o episódio em que Deus oferece ao seu Povo codornizes e maná como alimento – é situado no deserto de Sin, “que está entre Elim e o Sinai, no décimo quinto dia do segundo mês após a saída da terra do Egipto” (Ex 16,1). Os estudiosos identificam o referido espaço geográfico com o território que vai de Kadesh Barnea para ocidente, nomeadamente para noroeste, onde está o Wadi El Arish.

            A história das codornizes tem por base um fenómeno que se observa, por vezes, na Península do Sinai: a migração em massa de codornizes que, depois de atravessar o mar, chegam ao Sinai cansadas da viagem, pousam junto das tendas dos beduínos e deixam-se apanhar com facilidade. A história do maná deve ter por base a secreção de uma pequena árvore (“tamarix mannifera”) existente em certas zonas do Sinai que, após ser picada por um inseto, segrega uma substância granulosa e aguada, de cor branca e com sabor a mel, que logo se coagula; os beduínos recolhem, ainda hoje, essa substância (a que chamam “man”), derretem-na ao calor do sol e passam-na sobre o pão.

            Vai ser com estes elementos – elementos que o Povo conheceu e que o impressionaram, ao longo da marcha pelo deserto – que os catequistas bíblicos vão “amassar” a catequese que nos transmitem no texto da primeira leitura deste décimo oitavo domingo comum. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Peregrinar pelos caminhos desolados do deserto e experimentar privações e carências de todo o tipo não é uma realidade improvável para nós, gente sedentária e acomodada que vive no séc. XXI e que tem mais ou menos garantidas as respostas às necessidades mais prementes. Também nós, à medida que caminhamos, experimentamos a precariedade da existência, o cansaço da caminhada, a expetativa do que nos espera lá para a frente, a instabilidade que os problemas de todos os dias trazem, a tentação de nos acomodarmos e de ficarmos para trás, o medo de deixarmos a nossa tranquila zona de conforto… E também nós, como os escravos hebreus que Javé salvou do Egito e acompanhou no caminho para a liberdade, experimentamos a presença de Deus, desse Deus libertador e salvador que nos acompanha com solicitude e amor, dando-nos a mão, pegando-nos ao colo e oferecendo-nos, com ternura, o “alimento” que nos fortalece e que nos permite continuar a caminhar. Temos consciência da presença de Deus ao nosso lado no caminho que fazemos todos os dias? Vamos reparando no seu amor previdente que nos cerca, que nos protege e que nos salva? A presença salvadora e amorosa de Deus ao nosso lado é incentivo e alimenta a nossa esperança?
  • As “saudades” que os israelitas sentem do Egipto, onde estavam “sentados junto de panelas de carne” e tinham “pão com fartura”, revelam a realidade de um Povo acomodado à escravidão, instalado tranquilamente numa vida sem perspetivas e sem saída, incapaz de enfrentar a novidade, de querer mais, de arriscar a liberdade que se constrói na luta e no compromisso. Esta mentalidade de escravidão continua, nos nossos dias, a marcar a vida e as opções de muita gente… É a mentalidade dos que vivem obcecados pelo “ter” e que são capazes de renunciar à sua dignidade para acumular bens materiais; é a mentalidade dos que trocam valores importantes pelos “cinco minutos de fama” e de exposição mediática; é a mentalidade dos que têm como único objetivo na vida a satisfação das suas necessidades mais básicas; é a mentalidade dos que se instalam comodamente nos seus esquemas cómodos, nos seus preconceitos e se recusam a ir mais além, a deixarem-se interpelar pela novidade e pelos desafios de Deus; é a mentalidade dos que vivem voltados para o passado, que idealizam o passado, recusando-se a enfrentar os desafios da história e a descobrir o que há de positivo e de desafiante nos novos tempos; é a mentalidade dos que se resignam à mediocridade e que não fazem nenhum esforço para que a sua vida faça sentido… A Palavra de Deus que nos é proposta diz-nos: o nosso Deus não Se conforma com a resignação, o comodismo, a instalação, a mediocridade que fazem de nós escravos; Ele vem ao nosso encontro, desafia-nos a ir mais além, convida-nos a crescer e a dar passos firmes em direção à liberdade e à Vida nova… Como nos enquadramos em tudo isto? Vivemos agarrados às velhas certezas e seguranças, de olhos postos no chão, ou vivemos de cabeça levantada, sempre à procura da novidade de Deus e dispostos a confrontar-nos com os desafios sempre novos que a vida traz?
  • A ideia de que Deus dá ao seu Povo, dia a dia, o pão necessário para a subsistência (proibindo “juntar” mais do que o necessário para cada dia) pretende ajudar o Povo a libertar-se da tentação do “ter”, da ambição desmedida. É um convite a não nos deixarmos dominar pelo desejo descontrolado de posse dos bens, a libertarmos o nosso coração da ganância que nos torna escravos das coisas materiais, a não vivermos obcecados e angustiados com o futuro, a não colocarmos na conta bancária a nossa segurança e a nossa esperança. Só Deus é a nossa segurança, só n’Ele devemos confiar, pois só Ele (e não os bens materiais) nos liberta e nos leva ao encontro da Vida definitiva. Onde está a nossa esperança? Como é que está organizada a nossa escala de prioridades e qual o lugar que Deus ocupa nela? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 77 (78)

Refrão: O Senhor deu-lhes o pão do céu.

Nós ouvimos e aprendemos,
os nossos pais nos contaram
os louvores do Senhor e o seu poder
e as maravilhas que Ele realizou.

Deus ordens às nuvens do alto
e abriu as portas do céu;
para alimento fez chover o maná,
deu-lhes o pão do céu.

O homem comeu o pão dos fortes!
Mandou-lhes comida com abundância
e introduziu-os na sua terra santa,
na montanha que a sua direita conquistou.

 

 

LEITURA II – Efésios 4,17.20-24

Irmãos:
Eis o que vos digo e aconselho em nome do Senhor:
Não torneis a proceder como os pagãos,
que vivem na futilidade dos seus pensamentos.
Não foi assim que aprendestes a conhecer a Cristo,
se é que d’Ele ouvistes pregar e sobre Ele fostes instruídos,
conforme a verdade que está em Jesus.
É necessário abandonar a vida de outrora
e pôr de parte o homem velho,
corrompido por desejos enganadores.
Renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência
e revesti-vos do homem novo, criado á imagem de Deus
na justiça e santidade verdadeiras.

CONTEXTO

            A controversa carta de Paulo aos Efésios é tradicionalmente incluída nas “cartas do cativeiro”. Teria sido escrita por Paulo quando estava na prisão (em Cesareia Marítima? Em Roma?). No entanto, há quem a considere obra de um discípulo do apóstolo, que a escreveu no último terço do séc. I (depois da morte de Paulo) para combater doutrinas judaico-gnósticas que ameaçavam algumas comunidades cristãs da Ásia Menor. Embora reconhecendo que a Carta apresenta uma linguagem, um estilo e até alguns desenvolvimentos teológicos diferentes dos que encontramos nas cartas genuinamente paulinas, muitos consideram, contudo, que a Carta aos Efésios poderá ser uma “carta circular” escrita por Paulo e endereçada a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor, incluindo a de Éfeso. Convencido de que tinha concluído o seu trabalho missionário no oriente, Paulo apresenta, de forma serena e refletida, uma amadurecida síntese do seu pensamento e da sua teologia. O autor da Carta expõe “o Mistério”, isto é, o projeto salvador de Deus, oculto durante séculos até ser finalmente revelado em Cristo e concretizado no testemunho e na vida da Igreja, Corpo de Cristo. Da execução desse projeto nasce um novo Povo de Deus, um Povo de Homens novos que vivem do Espírito.

            A secção da Carta aos Efésios que vai de 4,1 a 6,20 é um texto parenético, que tem por objetivo principal exortar os cristãos a viverem de forma coerente com o seu Batismo e com o seu compromisso com Cristo. Depois de convidar os crentes a viverem na unidade do amor (cf. Ef 4,1-6) e de lhes apresentar uma reflexão sobre a comunidade, Corpo de Cristo formado por muitos membros (cf. Ef 4,7-13), o autor da Carta exorta os cristãos a viverem de acordo com a sua condição de Homens Novos em Cristo (cf. 4,14-5,14). O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo oitavo domingo comum é parte dessa exortação.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A interpelação de Paulo atinge-nos especialmente a nós que fomos batizados em Cristo. É possível que não guardemos memória do dia do nosso batismo, desse momento decisivo em que o “homem velho” que existia em nós ficou sepultado na água e nasceu o “homem novo”, animado e conduzido pelo Espírito. No entanto, a opção que nesse dia fomos convidados a fazer tornou-se explícita mais tarde e, possivelmente, foi renovada em diversos momentos do nosso caminho. Talvez hoje seja um dia propício para revisitarmos o nosso batismo e para nos apercebermos das suas implicações… A celebração do nosso batismo não foi um momento de folclore religioso ou uma ocasião de cumprimento de um ritual cultural qualquer; foi o momento do nosso encontro com Cristo e da nossa adesão ao seu Evangelho; foi o momento em que aderimos à família de Deus e passamos a integrá-la; foi o momento em que recebemos o Espírito e aceitamos que a nossa vida fosse animada pelo Seu dinamismo. Temos vivido de forma coerente com essa opção?
  • Paulo convida insistentemente os crentes a deixar a vida do “homem velho”. O “homem velho” é o homem dominado pelo egoísmo, pelo orgulho, que vive de coração fechado a Deus e aos irmãos, que vive instalado em esquemas de opressão e de injustiça, que gasta a vida a correr atrás dos deuses errados (o dinheiro, o poder, o êxito, o bem-estar…), que se deixa dominar pela cobiça, pela corrupção, pela concupiscência, pela ira, pela maldade e se recusa a escutar a proposta libertadora que Deus lhe apresenta. Provavelmente, não nos revemos na totalidade deste quadro; mas não teremos momentos em que construímos a nossa vida à margem das propostas de Deus e em que negligenciamos os valores de Deus para abraçar valores que nos escravizam?
  • Paulo apela a que os crentes vivam a vida do “homem novo”. O “homem novo” é o homem continuamente atento às propostas de Deus, que aceita integrar a família de Deus, que não se conforma com a maldade, a injustiça, a exploração, a opressão, que procura viver na verdade, no amor, na justiça, na partilha, no serviço, que pratica obras de bondade, de misericórdia, de humildade, que dia a dia dá testemunho, com alegria e simplicidade, dos valores de Deus. É este o nosso “projeto” de vida? Os nossos gestos e atitudes de cada dia manifestam a realidade de um “homem novo”, que vive em comunhão com Deus, que é “sal da terra e luz do mundo, que testemunha o amor e a bondade de Deus na vida dos seus irmãos?
  • Mesmo que a nossa opção fundamental por Deus e pelos seus valores tenha sido há muito plenamente assumida, não podemos esquecer que a construção do “homem novo” nunca é um processo terminado… A monotonia, o cansaço, os problemas da vida, as influências do mundo, a nossa preguiça e o nosso comodismo levam-nos, muitas vezes, a instalarmo-nos na mediocridade, nas “meias tintas”, na não exigência, na acomodação. O “homem velho” espreita-nos a cada esquina e, na primeira oportunidade, volta a assumir o controle das nossas vidas. Precisamos de ter consciência de que em cada minuto que passa tudo começa outra vez; precisamos de renovar continuamente as nossas opções e o nosso compromisso, numa atenção constante ao chamamento de Deus. Vivemos de braços cruzados, considerando que já atingimos um nível satisfatório de perfeição, ou vivemos numa atitude de vigilância e de conversão, questionando a cada passo a direção que a nossa vida vai tomando? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,24-35

Naquele tempo,
quando a multidão viu
que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago,
subiram todos para as barcas
e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus.
Ao encontrá-l’O no outro lado do mar, disseram-Lhe:
«Mestre, quando chegaste aqui?»
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
vós procurais-Me, não porque vistes milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes saciados.
Trabalhai, não tanto pela comida que se perde,
mas pelo alimento que dura até à vida eterna
e que o Filho do homem vos dará.
A Ele é que o Pai, o próprio Deus,
marcou com o seu selo».
Disseram-Lhe então:
«Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?»
Respondeu-lhes Jesus:
«A obra de Deus
consiste em acreditar n’Aquele que Ele enviou».
Disseram-Lhe eles:
«Que milagres fazes Tu,
para que nós vejamos e acreditemos em Ti?
Que obra realizas?
No deserto os nossos pais comeram o maná,
conforme está escrito:
‘Deu-lhes a comer um pão que veio do céu’».
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu;
meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu.
O pão de Deus é o que desce do Céu
para dar a vida ao mundo».
Disseram-Lhe eles:
«Senhor, dá-nos sempre desse pão».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu sou o pão da vida:
quem vem a Mim nunca mais terá fome,
quem acredita em Mim nunca mais terá sede».

CONTEXTO

            Depois da partilha dos pães e dos peixes Jesus, “sabendo que estavam prestes a vir apoderar-se dele para o fazer rei, retirou-se sozinho para o monte” (Jo 6,15). Provavelmente demorou-se por lá em oração, pois no final de cada dia Ele sentia necessidade de conversar longamente com o Pai. Os discípulos, por sua vez, meteram-se no barco dispostos a voltar a Cafarnaum. Navegaram sozinhos durante algum tempo, até que Jesus veio ter com eles, caminhando sobre o mar. Depois de Jesus ter entrado no barco, logo chegaram a Cafarnaum (cf. Jo 6,16-21).

            O episódio que o Evangelho deste décimo oitavo domingo comum nos apresenta situa-nos em Cafarnaum (cf. Jo 6,59), no dia imediatamente a seguir aos factos anteriormente narrados. Passada a noite, a multidão que tinha sido agraciada com os pães e os peixes, não encontrando Jesus e os discípulos, conjeturou que eles tinham voltado a Cafarnaum e dirigiu-se para lá. Cafarnaum, a cidade de pescadores situada na margem ocidental do Mar da Galileia, era a cidade onde Jesus se tinha instalado depois de deixar Nazaré. A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. De Cafarnaum Jesus podia facilmente dirigir-se a qualquer aldeia ou cidade da Galileia para proclamar a chegada do Reino de Deus. Alguns dos discípulos de Jesus – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.

            Jesus estava na sinagoga quando a multidão veio ao seu encontro. Naturalmente, os acontecimentos do dia anterior foram tema de conversa; e Jesus, sentindo que era necessário deixar as coisas bem claras, teve com aquela gente uma longa conversa. O que Ele disse nesse dia à multidão, na sinagoga de Cafarnaum, ficou conhecido como o “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O pão de que necessitamos diariamente para saciar a nossa fome física é algo sem o qual não podemos viver; mas não é tudo. Temos sempre a impressão de que nos falta algo para que a nossa vida seja mais plena e mais realizada. Temos sempre “fome” de mais qualquer coisa: de amor, de felicidade, de justiça, de paz, de esperança, de liberdade, de realização, de verdade, de transcendência, até dessas coisas mais ou menos fúteis que nos asseguram bem-estar e segurança… Procuramos, de mil formas, saciar essa fome; mas continuamos sempre insatisfeitos, tropeçando na nossa finitude, em respostas parciais, em tentativas falhadas de realização, em esquemas equívocos, em falsas miragens de felicidade, em valores efémeros, em propostas que parecem sedutoras mas que só geram escravidão e dependência. Por vezes, a nossa procura conduz-nos ao beco sem saída da frustração e do pessimismo; outras vezes, a nossa busca sempre repetida leva-nos ao cinismo ou ao cansaço… É esta também a nossa experiência? Como podemos “encher” a nossa vida e dar-lhe pleno significado? Onde encontrar o “pão” que mata a nossa fome de Vida?
  • O Evangelho que escutámos neste décimo oitavo domingo comum diz-nos que Jesus de Nazaré é o “pão de Deus que desce do céu para dar a vida ao mundo”. É em Jesus e através de Jesus que Deus responde à fome dos homens e lhes oferece a Vida em plenitude. Que papel desempenha Jesus na nossa vida? Para nós, Jesus é uma figura do passado (embora tenha sido um homem excecional) que a história absorveu e digeriu, ou é o Deus que continua vivo e a caminhar ao nosso lado, oferecendo-nos Vida em plenitude? Ele é “mais uma” das nossas referências (ao lado de tantas outras) ou a nossa referência fundamental? Ele é alguém a quem adoramos, com respeito e à distância, ou o irmão que nos indica o caminho, que nos propõe valores, que condiciona a nossa atitude face a Deus, face aos irmãos e face ao mundo?
  • O que é preciso fazer para ter acesso a esse “pão de Deus que desce do céu para dar a vida ao mundo”? De acordo com o Evangelho deste domingo, a resposta é clara: é preciso aderir (“acreditar”) a Jesus, o “pão” que o Pai enviou ao mundo para saciar a fome dos homens. Aderir a Jesus não é, no entanto, cumprir corretamente um código de práticas e observâncias rituais, ou termos os nossos nomes nos livros de registos de batismos, de crismas ou de casamentos na nossa paróquia; mas é criar uma ligação a Jesus, caminhar atrás d’Ele, escutar as suas palavras, aprender com os seus gestos, viver ao estilo d’Ele, identificar-se com Ele, pensar, sentir, amar, trabalhar, sofrer e viver como Ele. Como é que vivemos a nossa adesão a Jesus: como religião de crenças e de práticas externas, ou como uma religião de discípulos que seguem e vivem ao estilo do Mestre? Identificamo-nos realmente com Jesus e com o seu projeto?
  • No Evangelho deste domingo, Jesus mostra-Se profundamente incomodado quando constata que a multidão o procura pelas razões erradas e, sem preâmbulos, apressa-Se em desfazer os equívocos. Ele não quer, de forma nenhuma, que as pessoas O sigam por engano, ou iludidas. Há, aqui, um convite implícito a repensarmos as razões porque nos envolvemos com Cristo… É um equívoco procurar o Batismo porque é uma tradição da nossa cultura; é um equívoco celebrar o matrimónio na Igreja porque, assim, a cerimónia é mais espetacular e proporciona fotografias mais bonitas; é um equívoco assumir tarefas na comunidade cristã para nos autopromovermos ou para resolvermos os nossos problemas materiais; é um equívoco receber o sacramento da Ordem porque o sacerdócio nos proporciona uma vida menos problemática; é um equívoco praticarmos certos atos de piedade para que Jesus nos recompense, nos livre de desgraças, nos resolva algumas das nossas necessidades materiais… Porque é que um dia aderimos a Jesus? Porque é que ainda mantemos a nossa adesão a Jesus? Estamos plenamente convictos de que só Jesus é o “pão” que sacia a nossa fome de Vida?
  • A recusa de Jesus em realizar gestos espetaculares (como fazer o maná cair do céu), mostra que, normalmente, Deus não vem ao encontro do homem para lhe oferecer a sua vida em gestos portentosos, que deixam toda a gente espantada e que testemunham, de forma inequívoca, a sua autoridade e o seu poder; mas Deus atua na vida dos homens de forma discreta, embora duradoura e permanente. Deus vem, todos os dias, ao encontro do homem e, sem forçar nem se impor, convida-o a escutar a Palavra de Jesus, propõe-lhe a adesão a Jesus e ao seu projeto, ensina-lhe os caminhos do amor, da partilha, do serviço. Procuramos ler todos os dias, nas páginas que registam a nossa caminhada pela terra, as indicações discretas que Deus vai colocando para que nós possamos chegar à Vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em consideração as diferentes intervenções em discurso direto que devem ser articuladas com o texto narrativo, tendo particular atenção nas introduções ao discurso direto. A frase final deve ser lida afirmativa e pausadamente como conclusão de todo o texto.

            A proclamação da segunda leitura deve ser marcada pelo tom exortativo, tendo especial atenção às formas verbais no modo imperativo

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

SENHOR, DÁ-NOS SEMPRE DESSE PÃO!

            Continuamos, neste Domingo XVIII do Tempo Comum, a revisitar a página Evangélica de João 6, no caso de hoje, 6,24-35. Depois do episódio do CONDIVISÃO dos pães, Jesus afastou-se sozinho para o monte (João 6,15), e os seus discípulos entraram na Barca e atravessaram o Mar da Galileia, na direção de Cafarnaum (João 6,16-17). Em pleno Mar, foram apanhados pelo escuro, por um vento grande e pelo medo (João 6,17-20). Na verdade, iam sós, pois Jesus ainda não tinha vindo ter com eles. Mas vem, e com ele vem também a calma e a serenidade, e logo encontram rumo seguro para terra (João 6,21). Definitivamente: os discípulos de Jesus não podem andar sozinhos, sem Jesus: quando o fazem, invade-os a noite, a tormenta, o medo.

            Com o afastamento de Jesus para o monte, também a multidão ficou sozinha, mas leva mais tempo até se aperceber da sua solidão e da ausência de Jesus. O escuro não os preocupa. Passam a noite a dormir descansadamente. Só no dia seguinte se apercebem da falta de Jesus, da falta que Jesus lhes faz, e vão à procura d’Ele (João 6,22-24). Encontram-no, e manifestam a confusão neles instalada, perguntando: «Rabbî, quando vieste para aqui?» (João 6,25).

            Sem contemplações e com palavras duríssimas, Jesus desvenda logo, de forma clara e solene, a sonolência e incompreensão que os habita: «Em verdade, em verdade, vos digo: “Vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e enchestes a barriga como animais (chortázô)”» (João 6,26). A comparação é forte e de denso sabor profético. O verbo usado é chortázô, derivado de chórtos, que significa «erva seca», «feno», «palha». No dizer de Jesus, aquela multidão comeu como comem os animais. E, no fim, deitam-se a dormir. Até ao dia seguinte. A comida dos animais também é dom de Deus, mas eles não se apercebem, nem agradecem. Do mesmo modo, a multidão come e dorme. Não vê nem lê «sinais». O alimento recebido não dá que pensar e que rezar. Não se apercebe que o alimento é dom de Deus, e que remete, portanto, para Deus.

            E tão-pouco entendem que está ali o verdadeiro pão da vida (João 6,35). Não veem nem ouvem Jesus, e o sentido novo que traz para a vida das pessoas. Limitam-se a contar a história antiga do maná antigo que os seus pais comeram no deserto. Como quem diz (e nós repetimos muitas vezes o mesmo refrão viciado): «antigamente é que era!».

            E esse maná antigo era, afinal, bem pouca coisa. Mas foi «visto» como sinal da providência de Deus em pleno deserto, como ensina a lição de hoje do Livro do Êxodo 16. Trata-se do maná chamado lecanora, que se encontra desde o Irão até ao Norte de África, portanto também no norte da Península sinaítica, que é granuloso e aguado, de dimensões bem reduzidas, minúsculas, do tamanho da semente do coentro [= cerca de 5 milímetros de diâmetro], de cor branca, e tem sabor a mel (Êxodo 16,31). Trata-se, na verdade, da secreção produzida pelo tamarisco, chamado tamarix gallica ou tamarix-mannifera, após a picada de um inseto, o coccus manniparus, ou de dois, a trabutina-mannipara e o naiacoccus serpentinus.

            Afinal, é bem pouca coisa o maná. Tal como os cinco pães e os dois peixinhos. Mas, quando se vê como um dom de Deus, essa pouca coisa é tanto! Eis como admiravelmente escreve o Livro da Sabedoria, quando fala do maná: «nutriste o teu povo com um alimento de anjos, DESTE-lhe o PÃO do CÉU, com mil sabores: ele manifestava a tua DOÇURA (glykýtês, glicose). Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor, que  NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens, mas a tua Palavra que a todos sustenta» (Sabedoria 16,20-21.26). Aí está, claro, claríssimo, o indicador correto da compreensão da chamada «multiplicação» dos pães por Jesus. Não, Jesus não faz o papel de um qualquer produtor ou empresário que faz uma operação de multiplicação de bens, para satisfazer os desejos das pessoas, em termos de consumo e de mercado. Ele distribui, reparte, partilha a Palavra de Deus, fazendo nascer desta operação um mundo novo. Já todos devíamos saber que aumentar a produção pode aumentar a ganância, mas não resolve o problema da fome ou da pobreza. Aumentar a produção não é nenhum milagre. O milagre reside na partilha! O nosso povo simples, que guarda sempre uma inteligência grata e penetrante, diz bem que «o pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada!». Admirável sabedoria e sintonia com o Evangelho de Jesus!

            Jesus é a Palavra Viva, o Pão da Vida, que, no meio de nós, manifesta a Doçura ou a Glicose de Deus (cf. Sabedoria 16,21). É sempre tendo este Jesus como referência e fonte de vida nova, que devemos abandonar a antiga vida oca e vã (mátaios), a inteligência obscurecida (skótos), a alienação (apallotrióô) e a ignorância (agnôsía) de Deus, o coração endurecido (pôrôsis), que geram insensibilidade, dissolução, impureza e avidez, e, em Jesus, renovar a nossa inteligência, compreensão e sentido da vida, revestindo-nos (endýô) de hábitos novos, que não se vendem ou compram no pronto-a-vestir (Efésios 4,17-24).

            Sim, Ele está no meio de nós, mas não é nosso. Não é um sistema de produção ou de abastecimento. Ele é o Amor, a Alegria, a Vida Vivente e Eterna, Vida divina, dita zôê (João 6,33) ou zôê aiônios (João 6,27), e não bíos ou psychê, vocábulos que dizem a nossa vida corrente e o seu sustento. Ele é o Céu e o Pão descido do Céu à nossa terra, para nos fazer viver felizes e nos elevar à sua condição de Filho, filhos no Filho. Está no meio de nós, mas não o podemos reter ou possuir. Ensina-nos bem Abraham Joshua Heschel que um dom é como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Senhor Jesus, dá-nos sempre desse pão!

            O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias, enlatadas ou requentadas fórmulas ou teses teológicas.

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVII do Tempo Comum – Ano B – 28.07.2024

IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos

Viver a Palavra

            Jesus parte para o outro lado do mar… Jesus sobe ao monte… Jesus senta-se com os discípulos! O nosso Deus, em Jesus Cisto, é um Deus a caminho, que nos impele a atravessar para a outra margem, que nos conduz mais alto para contemplarmos o mundo e a humanidade de um modo novo, que nos liberta do nosso comodismo e nos ensina a arte de conceber a vida como um desafiante peregrinar. É curioso que grande parte da ação dos Evangelhos acontece a caminho, percorrendo as vilas e aldeias, o mar e o deserto, o alto do monte ou a planície. A vida cristã não é estática nem paralisadora, mas quando assumida com verdade e ousadia torna-se um lugar de inquietação e desacomodação.

            Jesus coloca-se a caminho, convoca os discípulos para caminharem com Ele e no caminho educa o Seu coração para arte de serem peregrinos. Nós, como os discípulos de outrora, queremos aprender a arte de estarmos tranquilos e serenos, enquanto nos soubermos inquietos e despertos para a missão. A vida da fé não é um conjunto de conhecimentos a adquirir, mas a entrada num dinamismo de salvação e de vida que tem a marca da incarnação, isto é, que permanentemente parte ao encontro do mundo e da realidade, transformando tudo a partir de dentro. As grandes mudanças não acontecem pela condenação ou acusação, mas pela acção concerta, generosa e gratuita que faz do mundo um lugar favorável e uma imperdível oportunidade para que a obra de Deus se realize.

            O relato da multidão saciada por Jesus é narrado pelos quatro evangelhos e Mateus e Marcos narram-no duas vezes. As diferentes versões deste relato convergem na apresentação de um Deus solícito e generoso, que em Jesus Cristo se faz próximo e sacia a nossa fome. O nosso Deus não é um Deus indiferente às nossas dores e angústias, alegrias e esperanças, fomes e sedes… É um Deus atento e misericordioso, que vê e assume consequentemente a tarefa de socorrer as nossas carências.

            Na versão de S. João que escutamos este Domingo, sublinha-se ainda mais a gratuidade e a generosidade de Jesus. Este gesto de Jesus é soberanamente gratuito, uma verdadeira ação e não apenas uma reação a um pedido dos discípulos ou à compaixão pela multidão. A Páscoa aproxima-se e sobre o monte começa já a contemplar-se a plenitude da gratuidade de Deus que se antecipa aos nossos pedidos e que nos liberta da nossa autossuficiência e egocentrismo. Jesus ensina-nos a ter um olhar largo e amplo que não pensa apenas nas necessidades e carências próprias, mas que faz suas as carências e necessidades dos homens e mulheres que se cruzam connosco no caminho.

            O primeiro aprendiz desta arte é aquele rapazito. No meio daquela multidão, tendo ouvido falar de que era necessário prover ao alimento de toda aquela gente, coloca à disposição de todos «cinco pães de cevada e dois peixes». Qual de nós teria a coragem de oferecer tão pouco para a fome de tantos? Contudo, a desproporção entre as nossas capacidades e potencialidades e as necessidades que temos diante de nós há-de sempre acompanhar-nos. Devemos aprender a confiar o nosso pouco nas mãos de Deus, para que se torne muito para bem de todos. O verdadeiro milagre acontece quando o meu pão passa a ser o nosso pão. A verdadeira surpresa é que a fome não acaba quando eu como o meu pão até ficar saciado, mas quando partilho o pouco que tenho. Ao contrário, a fome começa quando guardo só para mim o pão.

            Uma vida colocada nas mãos de Jesus, feita ação de graças ao Pai pelos dons que deposita em nossas mãos, torna-se uma vida partida e repartida que rasga horizontes de esperança e nos fala da abundância da ternura e da misericórdia que nenhuma dúzia de cestos poderá conter. in Voz Portucalense

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            No dia 28 de julho, XVII Domingo do Tempo Comum, celebramos o IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, instituído pelo Papa Francisco, no dia 31 de janeiro de 2021. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem (fica em anexo) intitulada «Na velhice, não me abandones (cf. Sal 71, 9)» e desafia-nos: «não deixemos de mostrar a nossa ternura aos avós e aos idosos das nossas famílias, visitemos aqueles que estão desanimados e já não esperam que seja possível um futuro diferente. À atitude egoísta que leva ao descarte e à solidão, contraponhamos o coração aberto e o rosto radioso de quem tem a coragem de dizer «não te abandonarei!» e de seguir um caminho diferente». Este Domingo pode ser a oportunidade para realizar um conjunto de iniciativas que manifestem a proximidade da comunidade para com os mais idosos e isolados. A cultura do cuidado é a resposta para a construção de um mundo mais fraterno, como lugar de comunhão e unidade. in Voz Portucalense (adaptado)

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 2 Reis 4,42-44

Naqueles dias,
veio um homem da povoação de Baal-Salisa
e trouxe a Eliseu, o homem de Deus,
pão feito com os primeiros frutos da colheita.
Eram vinte pães de cevada e trigo novo no seu alforge.
Eliseu disse: «Dá-os a comer a essa gente».
O servo respondeu:
«Como posso com isto dar de comer a cem pessoas?»
Eliseu insistiu:
«Dá-os a comer a essa gente,
porque assim fala o Senhor:
‘Comerão e ainda há de sobrar’».
Deu-lhos e eles comeram,
e ainda sobrou, segundo a palavra do Senhor.

CONTEXTO

            As tradições proféticas sobre Elias e Eliseu (os “ciclos” de Elias e Eliseu) ocupam um espaço significativo no Livro dos Reis (cf. 1 Re 17,1-21,29; 2 Re 1,1-13,21). Referem-se a um período bastante conturbado – quer em termos políticos, quer em termos religiosos – da vida do Reino do Norte (Israel). Elias exerce a sua missão profética durante os reinados de Acab (874-853 a.C.) e de Acazias (853-852 a.C.); Eliseu dá o seu testemunho profético durante os reinados de Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797 a.C.).

            Os reis de Israel, com a mira no desenvolvimento e na viabilidade do reino, procuraram estabelecer relações comerciais, económicas, políticas e militares com os povos circunvizinhos. Essa abertura de fronteiras teve, no entanto, os seus custos no que diz respeito à vivência religiosa, uma vez que os cultos aos deuses estrangeiros, com entrada livre no país, começaram a ocupar um lugar significativo na vida e no coração dos israelitas. É uma época de sincretismo religioso, em que a religião javista é, com a complacência e até com o apoio declarado dos reis de Israel, preterida em favor dos cultos de Baal e de Astarte. Em termos sociais, é uma época de instabilidade social e política, em que se multiplicam as injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Os israelitas fiéis viam em tudo isto um quadro de graves infidelidades contra Deus e contra a Aliança.

            É contra este “mundo” que se levantam as vozes proféticas de Elias e de Eliseu. Elias aparece como o representante desses israelitas fiéis aos valores religiosos tradicionais, que recusavam a coexistência de Javé e de Baal no horizonte da fé de Israel; e a luta de Elias será continuada por um dos seus discípulos – Eliseu.

            Parece que Eliseu – o ator principal da primeira leitura deste décimo sétimo domingo comum – fazia parte de uma comunidade de “filhos de profetas” (os “benê nebi’im” – 2 Re 2,3; 4,1). Trata-se de uma comunidade de homens que viviam pobremente (2 Re 4,1-7) e que eram os seguidores incondicionais de Javé. Encontramo-los em algumas localidades do reino de Israel, talvez em ligação com alguns santuários locais, como Betel, Jericó ou Guilgal. O Povo consultava-os regularmente e buscava neles apoio face aos abusos dos poderosos. Eliseu é apresentado muitas vezes, nas histórias narradas no “ciclo de Eliseu” (cf. 2 Re 2; 3,4-27; 4,1-8,15; 9,1-10; 13,14-21), como um profeta “dos milagres”, cujas ações poderosas mostram a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo. Outras vezes, Eliseu é o profeta da intervenção política; a sua ação neste campo ultrapassa mesmo as fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco (cf. 2 Re 8,7-15).

            O cenário do episódio da primeira leitura deste décimo sétimo domingo comum é, provavelmente, Guilgal, o santuário situado a leste de Jericó onde tinha sido erguido um monumento de pedra para comemorar a passagem do rio Jordão pelos israelitas quando entraram na Terra Prometida (Jos 4,20). Havia em Guilgal uma comunidade de “filhos de profetas” que Eliseu costumava visitar (cf. 2 Re 4,38). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O “profeta” é o rosto de Deus no mundo. Ele fala e age em nome de Deus; ele “diz”, com as suas palavras e com os seus gestos, como é que Deus encara as dificuldades e as vicissitudes dos seus filhos que caminham pela terra. Assim, ao repartir com os seus irmãos famintos o pão que lhe tinha sido dado, Eliseu não está simplesmente, por sua iniciativa, a fazer um gesto gratuito de bondade; mas está a dizer solenemente – com a linguagem dos gestos, que é ainda mais expressiva do que a linguagem das palavras – que Deus não fica indiferente quando os seus filhos e filhas estão com “fome”: fome de pão, fome de amor, fome de liberdade, fome de justiça, fome de dignidade, fome de paz, fome de realização plena, fome de esperança. Que sentimos quando ouvimos alguém dizer que Deus abandonou os homens à sua sorte e não quer saber da “fome” dos seus filhos? Como é que nós próprios entendemos e avaliamos a preocupação de Deus com os seus filhos que caminham pela história?
  • Como é que Deus atua para saciar a fome de vida dos homens? É fazendo chover do céu, milagrosamente, o “pão” de que o homem necessita? A primeira leitura deste domingo sugere que Deus atua de forma mais simples e mais normal… É através da generosidade e da partilha dos homens (primeiro do homem que decide oferecer o fruto do seu trabalho; depois, do profeta que manda distribuir o alimento) que o “pão” chega aos necessitados. Normalmente, Deus serve-Se dos homens para intervir no mundo e para fazer chegar ao mundo os seus dons. Muitas vezes sonhamos com gestos espetaculares de Deus e vivemos de olhos fixos no céu à espera que Deus Se digne intervir no mundo; e acabamos por não perceber que Deus já veio ao nosso encontro e que Ele Se manifesta na ação generosa de tantos homens e mulheres que praticam, sem publicidade, gestos de partilha, de solidariedade, de generosidade, de doação, de entrega. É preciso que aprendamos a detetar a presença e o amor de Deus nesses gestos simples que todos os dias testemunhamos e que ajudam a construir um mundo mais justo, mais fraterno e mais solidário. Temos consciência de que é através de nós, seus profetas, que Deus sacia a “fome” do mundo?
  • O gesto de partilha de Eliseu é um manifesto contra o egoísmo, contra o açambarcamento, contra a ganância, contra o fechamento em si próprio. Diz-nos que a partilha nunca empobrece, mas multiplica infinitamente os dons que Deus põe à nossa disposição. É um gesto que anuncia um mundo novo, um mundo transformado, um mundo solidário, um mundo construído ao estilo de Deus, um mundo onde todos os filhos e filhas de Deus têm lugar à mesa da Vida e da esperança. Acreditamos nesse mundo e estamos genuinamente apostados em construí-lo? Quando somos chamados a fazer opções – inclusive políticas e ideológicas – temos em conta o projeto de Deus para o mundo? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 144 (145)

Refrão: Abris, Senhor, as vossas mãos e saciais a nossa fome.

 

Graças Vos deem, Senhor, todas as criaturas
e bendigam-Vos os vossos fiéis.
Proclamem a glória do vosso reino
e anunciem os vossos feitos gloriosos.

Todos têm os olhos postos em Vós,
e a seu tempo lhes dais o alimento.
Abris as vossas mãos
e todos saciais generosamente.

O Senhor é justo em todos os seus caminhos
e perfeito em todas as suas obras.
O Senhor está perto de quantos O invocam,
de quantos O invocam em verdade.

LEITURA II – Efésios 4,1-6

Irmãos:
Eu, prisioneiro pela causa do Senhor,
recomendo-vos que vos comporteis
segundo a maneira de viver a que fostes chamados:
procedei com toda a humildade, mansidão e paciência;
suportai-vos uns aos outros com caridade;
empenhai-vos em manter a unidade de espírito
pelo vínculo da paz.
Há um só Corpo e um só Espírito,
como existe uma só esperança na vida a que fostes chamados.
Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo.
Há um só Deus e Pai de todos,
que está acima de todos, atua em todos
e em todos Se encontra.

CONTEXTO

            Éfeso, antiga capital da província romana da Ásia, era, nos tempos apostólicos, um dos principais centros comerciais e culturais do Mediterrâneo. Estava situada na costa oeste da Ásia Menor, junto da foz do rio Cayster, ao lado da moderna Selçuk (Turquia). A sua população rondava os 250.000 habitantes. Chegou a ser a segunda maior cidade do Império Romano, logo a seguir a Roma. As suas escolas filosóficas eram famosas em todo o Império. A vida religiosa da cidade girava muito à volta do culto a Ártemis, cujo templo era considerado umas das sete maravilhas do mundo antigo.

            Paulo contactou a comunidade cristã de Éfeso durante a sua terceira viagem missionária e acabou por permanecer na cidade durante cerca de dois anos (cf. At 19,1-40). Aí desenvolveu um meritório trabalho apostólico, do qual resultou uma Igreja viva, fervorosa e comprometida.

            A Carta aos Efésios é considerada uma “carta de cativeiro”, escrita por Paulo na altura em que estava na prisão (discute-se se em Cesareia Marítima, se em Roma, ou em qualquer outro lugar). No entanto, alguns biblistas consideram que a carta não foi escrita por Paulo. Há uma forte hipótese de ser uma “carta circular”, não dirigida especificamente à comunidade cristã de Éfeso, mas antes a um conjunto de comunidades da zona ocidental da Ásia Menor.

            Seja como for, a Carta aos Efésios é um texto bem trabalhado, que apresenta uma catequese sólida e bem elaborada. Poderia ser um texto da fase “madura” de Paulo. Muitos consideram que a Carta aos Efésios é uma espécie de síntese do pensamento paulino.

            O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo sétimo domingo comum é o início da parte moral e parenética da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Temos, nesses três capítulos, uma espécie de “exortação aos batizados”, na qual Paulo reflete longamente sobre a edificação e o crescimento do “Corpo de Cristo” (a Igreja). Em termos sempre bastante concretos, Paulo dá pistas aos cristãos acerca da forma como eles devem viver os seus compromissos com Cristo, de maneira a serem “Homens Novos”, homens que vivem a partir do dinamismo do Espírito.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A lógica do autor da Carta aos Efésios é irrebatível: a comunidade nascida de Jesus não pode viver de outra forma senão na unidade e na comunhão. Os membros da comunidade cristã têm o mesmo Pai (Deus), têm um projeto comum (o projeto de Jesus), têm o mesmo objetivo (fazer parte da família de Deus e encontrar a Vida em plenitude), caminham na mesma direção animados pelo mesmo Espírito, têm a mesma missão (dar testemunho no mundo do projeto de amor que Deus tem para os homens). Só vivendo unidos eles podem dar um testemunho coerente de Cristo e do mandamento do amor. No entanto, não é raro encontrarmos comunidades cristãs feridas por divisões, rivalidades, invejas, ciúmes, divergências inconciliáveis, jogos de influência… Quando isso acontece é porque os membros da comunidade ainda não descobriram os fundamentos da sua fé. Como é que as comunidades cristãs de que fazemos parte vivem o sagrado “sacramento” da unidade e da comunhão? O nosso envolvimento comunitário ajuda a consolidar a unidade e a comunhão, ou é fator de divisão e de conflito?
  • Para que a unidade seja possível, Paulo recomenda aos destinatários da Carta aos Efésios a humildade, a mansidão e a paciência. São atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de preconceito em relação aos irmãos. Como é que eu me situo face aos outros? A minha relação com os irmãos é marcada pelo egoísmo ou pela disponibilidade para acolher, servir e partilhar? Procuro estar atento às necessidades dos outros e ir ao encontro de cada irmão ou irmã que necessita de mim, ou levanto muros de orgulho e de autossuficiência que impedem a comunicação, a relação, a comunhão? Estou aberto às diferenças e disposto a dialogar, ou vivo entrincheirado nos meus preconceitos, catalogando e marginalizando aqueles que não concordam comigo?
  • A Igreja é uma unidade; mas é também uma comunidade de pessoas muito diferentes, em termos de raça, de cultura, de língua, de condição social ou económica, de maneiras de ser e de ver a vida… As diferenças legítimas nunca devem ser vistas como algo negativo, mas como uma riqueza para a vida da comunidade; não devem levar ao conflito e à divisão, mas a uma unidade cada vez mais estreita, construída no respeito e na tolerância. A diversidade é um valor, que não pode nem deve anular a unidade e o amor dos irmãos. Como é que lidamos com as diferenças e as “originalidades” dos irmãos que caminham connosco? Vemo-las como algo que nos enriquece a todos, ou como ameaças à nossa “ordem” e aos nossos esquemas pessoais? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,1-5

Naquele tempo,
Jesus partiu para o outro lado do mar da Galileia,
ou de Tiberíades.
Seguia-O numerosa multidão,
por ver os milagres que Ele realizava nos doentes.
Jesus subiu a um monte
e sentou-Se aí com os seus discípulos.
Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus.
Erguendo os olhos
e vendo que uma grande multidão vinha ao seu encontro,
Jesus disse a Filipe:
«Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?»
Dizia isto para o experimentar,
pois Ele bem sabia o que ia fazer.
Respondeu-Lhe Filipe:
«Duzentos denários de pão não chegam
para dar um bocadinho a cada um».
Disse-Lhe um dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro:
«Está aqui um rapazito
que tem cinco pães de cevada e dois peixes.
Mas que é isso para tanta gente?»
Jesus respondeu: «Mandai sentar essa gente».
Havia muita erva naquele lugar
e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil.
Então, Jesus tomou os pães, deu graças
e distribuiu-os aos que estavam sentados,
fazendo o mesmo com os peixes;
E comeram quanto quiseram.
Quando ficaram saciados,
Jesus disse aos discípulos:
«Recolhei os bocados que sobraram,
para que nada se perca».
Recolheram-nos e encheram doze cestos
com os bocados dos cinco pães de cevada
que sobraram aos que tinham comido.
Quando viram o milagre que Jesus fizera,
aqueles homens começaram a dizer:
«Este é, na verdade, o Profeta que estava para vir ao mundo».
Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l’O para O fazerem rei,
retirou-Se novamente, sozinho, para o monte.

CONTEXTO

            A liturgia propõe-nos hoje – e durante os próximos domingos – a leitura do capítulo 6 do Evangelho segundo João. O texto integra uma parte do Quarto Evangelho que alguns biblistas designam como o “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56). Nesse “livro”, a partir de alguns símbolos com um especial poder evocador (a “água” – cf. Jo 4,1-5,47; o “pão” – cf. Jo 6,1-71; a “luz” – cf. Jo 8,12-9,41; o “pastor” – cf. Jo 10,1-42; a “ressurreição” – cf. Jo 11,1-56), são-nos propostas diversas catequeses que definem Jesus como aquele que veio de Deus para recriar, dar Vida, fazer nascer uma humanidade nova.

            No centro da catequese que o capítulo 6 nos apresenta, está um desses símbolos: o pão. O pão era, no mundo bíblico, o elemento básico na alimentação de todos os dias. O homem bíblico não podia viver sem pão. Muitas vezes era mesmo o único alimento disponível, especialmente para os pobres. Pão era vida. Ora, esse alimento fundamental para viver era considerado um dom de Deus. Por isso, pedia-se continuamente a Deus que desse ao seu Povo o pão necessário para a subsistência de cada dia (cf. Mt 6,11). “Ter pão” era gozar do favor de Deus; “ter pão” era receber Vida de Deus. O pão acabou mesmo por ser considerado o símbolo por excelência de todos os dons de Deus. Via-se a época escatológica que havia de chegar como o tempo em que Deus ofereceria ao seu Povo um pão abundante, nutritivo e saboroso (cf. Is 30,23), o “pão da Vida” definitiva. Por outro lado, o pão era para ser partilhado. “Partilhar o pão” era reunir outras pessoas à mesa familiar; “partilhar o pão” com alguém era estabelecer laços íntimos, laços familiares com essa pessoa; partilhar o pão era criar comunidade, uma comunidade unida por laços fraternos. Tudo isto está subjacente à catequese sobre Jesus como “Pão da Vida” que este capítulo nos apresenta.

            O cenário do episódio que o Evangelho deste décimo sétimo domingo comum nos apresenta situa-nos “na outra margem” do Lago de Tiberíades, no cimo de um monte não identificado (no capítulo anterior, Jesus estava em Jerusalém, no centro da instituição judaica; agora, sem transição, aparece na Galileia). A tradição cristã considera que essa “outra margem” não seria o lado oriental do lago, mas sim a zona de Tabga, não longe de Cafarnaum. Em termos cronológicos, João nota que estava perto a Páscoa, a festa mais importante do calendário religioso judaico, que celebrava a libertação do Povo de Deus da opressão do Egipto. É possível que a referência à Páscoa funcione, nesta catequese joânica, como um convite a que o leitor entenda a narração como figura da Páscoa e da instituição da eucaristia. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A preocupação de Jesus com a “fome” daquela multidão que O segue, sinaliza a preocupação de Deus em dar a todos os seus filhos e filhas Vida em abundância. É uma boa e bela notícia: Deus preocupa-se connosco, com a nossa carências e dificuldades, e está verdadeiramente empenhado em proporcionar-nos o “alimento” de que necessitamos para construirmos vidas com sentido. Estamos e estaremos sempre no coração de Deus; Ele encontrará sempre forma de vir ao nosso encontro para nos oferecer a sua Vida. Sabemos isto? Sentimo-nos acompanhados por Deus, mesmo quando nos parece que caminhamos de mãos e de coração vazio? Confiamos na bondade, no cuidado e no amor de Deus?
  • Apesar da generosidade de Deus, os dons que Ele coloca à nossa disposição nem sempre chegam à mesa de todos. Sabemos porquê: alguns homens e mulheres, por egoísmo e ganância, açambarcam os dons que pertencem a todos os filhos e filhas de Deus. Isso é subverter o projeto de Deus e condenar os irmãos a passar necessidades. Que sentimos em relação a isso? Temos consciência de que os nossos hábitos consumistas e esbanjadores podem estar a causar sofrimento e dificuldade aos irmãos que caminham ao nosso lado? A nossa preocupação excessiva com o nosso bem-estar não será uma injustiça que priva muitos dos nossos irmãos de dons de Deus que também lhes pertencem por direito?
  • O “pão” que Jesus faz distribuir à multidão faminta refere-se a algo mais do que o pão material que mata a nossa fome física. Aquelas pessoas que correm atrás de Jesus para saciar a sua “fome” são aqueles homens e mulheres que, todos os dias encontramos nos caminhos que percorremos e que, de alguma forma, estão privados daquilo que é necessário para viver uma vida digna… Os “que têm fome” são os que são explorados e injustiçados e que não conseguem libertar-se; são os que vivem na solidão, sem família, sem amigos e sem amor; são os que têm que deixar a sua terra e enfrentar uma cultura, uma língua, um ambiente estranho para poderem oferecer condições de subsistência à sua família; são os marginalizados, abandonados, segregados por causa da cor da sua pele, por causa do seu estatuto social ou económico, ou por não terem acesso à educação e aos bens culturais de que a maioria desfruta; são as crianças que sofrem violência; são as vítimas da economia global, cuja vida dança ao sabor dos interesses das multinacionais; são os que são espezinhados pelos interesses dos grandes do mundo… Que outras “fomes” conhecemos e que poderíamos acrescentar a esta lista?
  • Jesus dirige-Se aos seus discípulos e diz-lhes, referindo-se à multidão faminta: “dai-lhes vós mesmos de comer”. Fica assim clara a responsabilidade dos discípulos de Jesus em saciar a “fome” do mundo e em repartir o “pão” que mata a fome de vida, de justiça, de liberdade, de esperança, de felicidade de que os homens sofrem. Depois disto, nenhum discípulo de Jesus pode olhar tranquilamente os seus irmãos com “fome” e dizer que isso não lhe diz respeito; depois dasquelas palavras de Jesus, o egocentrismo e a autossuficiência deixaram de ser opção para todos aqueles que se comprometeram a construir o Reino de Deus… Como é que nos situamos em relação aos nossos irmãos vítimas do sofrimento, da maldade, da injustiça, da indiferença? Estamos conscientes de que a “fome” que faz sofrer os nossos irmãos também é um problema que nos diz respeito?
  • Os discípulos, questionados por Jesus, constatam que, recorrendo ao sistema económico vigente, é impossível responder à “fome” dos necessitados. O sistema capitalista vigente – que, quando muito, distribui a conta gotas migalhas da riqueza para adormecer a revolta dos explorados – será sempre um sistema que se apoia na lógica egoísta do lucro e que só cria mais opressão, mais dependência, mais necessidade. Não chega criar melhores programas de assistência social ou programas de rendimento mínimo garantido, ou outros sistemas que apenas perpetuam a injustiça e a dependência… Jesus propõe algo de realmente diferente: propõe uma lógica de partilha solidária. Os discípulos de Jesus são convidados a reconhecer que os bens são um dom de Deus para todos os homens e que pertencem a todos; são convidados a quebrar a lógica do açambarcamento egoísta dos bens e a pôr os dons de Deus ao serviço de todos. Como resultado, não se obtém apenas a saciedade dos que têm fome, mas um novo relacionamento fraterno entre quem dá e quem recebe, feito de reconhecimento e harmonia, que enriquece ambos e é o pressuposto de uma nova ordem, de um novo relacionamento entre os homens. Para nós, esta proposta faz sentido? Estamos disponíveis para a acolher e implementar na nossa vida e no nosso mundo?
  • No seu serviço aos “famintos”, os discípulos de Jesus nunca deverão apresentar-se com arrogância ou com tiques de superioridade; e nunca deverão usar a “caridade” para servir os seus interesses ou os seus projetos pessoais. Deverão agir com humildade e simplicidade (a “criança” do Evangelho), apenas preocupados em servir os irmãos com “fome”. Como é que nos apresentamos diante dos irmãos que necessitam da nossa ajuda para saciar a sua “fome” de Vida? Com arrogância e superioridade, ou com humildade e amor? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura devem ter cuidado na pronunciação da palavra Baal-Salisa (Báál-Salisa) e ter em atenção os verbos que introduzem o discurso: «disse», «respondeu» e «insistiu».

            A segunda leitura é constituída por duas partes distintas e a proclamação deve refletir isso mesmo. Devem ter especial cuidado na repetição da expressão: «Há um só…». As repetições devem ser proclamadas com especial cuidado para que se possa aproveitar toda a expressividade do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ONDE COMPRAREMOS PÃO?

            O grande texto que forma o Capítulo 6 do Evangelho de João, e que vamos ter a graça de escutar nestes cinco Domingos, pode dividir-se em seis Partes: a primeira Parte, que funciona como Introdução ou preparação do cenário, engloba os v. 1-4 e apresenta as personagens (Jesus, uma grande multidão, os discípulos), o lugar (na «outra margem do mar da Galileia», na «montanha») e o tempo («estava próxima a Páscoa dos judeus»); a segunda Parte, que se estende pelos v. 5-15, abre com uma pergunta pedagógica de Jesus dirigida a Filipe («Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?»), não corretamente respondida por Filipe e André, mas resolvida por Jesus; a terceira Parte, que compreende os v. 16-21, mostra-nos os discípulos a atravessar, no escuro, o mar encapelado, e Jesus vindo ao seu encontro caminhando sobre o mar; a quarta Parte, entre os v. 22-24, apresenta-nos um novo começo, no dia seguinte, mostrando-nos a multidão que nota a ausência de Jesus e parte à sua procura para Cafarnaum; a quinta Parte, que compreende a longa extensão de texto entre os v. 25-59, traz para a cena a importante discussão, travada entre Jesus e a multidão ou os judeus, sobre o pão vindo do céu; a sexta Parte, que contempla os últimos versículos (v. 60-71), estende a discussão aos discípulos, mostrando a deserção de muitos (v. 60-66), em contraponto com a confissão de fé de Pedro (v. 67-71).

            Dois Capítulos à frente de João 4, em João 6 (este agrafo de João 4 a João 6 é oportuno e necessário), diz-nos o narrador que Jesus subiu à montanha, que se sentou lá com os seus discípulos, e que uma grande multidão acorria a Jesus (João 6,3 e 5). É nessas circunstâncias que Jesus retoma o tema do alimento. Descendo agora ao nível dos discípulos, Jesus diz a Filipe: «Onde (póthencompraremos (agorázô) pão para que eles comam?» (João 6,5). De facto, o verbo comprar é corrente nos lábios dos discípulos, mas é estranho na boca de Jesus. No cenário anterior, de Jesus e da Samaritana (João 4), os discípulos passam quase o tempo todo a comprar, enquanto Jesus fala de dar, e dá-se mesmo.

            Na chamada «primeira multiplicação dos pães», que podemos ler nos Evangelhos de Mateus e de Marcos, Jesus recusa mesmo a solução de comprar (agorázô), avançada pelos discípulos, e propõe a de dar (dídômi) (Mateus 14,15-16; Marcos 6,36-37). Por que será, então, que Jesus fala agora de comprar, ainda para mais conjugando o verbo na 1.ª pessoa do plural, Ele incluído: «Onde compraremos»? Mas a questão não é apenas sobre comprar. É sobre «Onde comprar». Face à lógica da misericórdia, da condivisão e da partilha proposta por Jesus, já os discípulos, céticos, se tinham perguntado: «“De onde” (póthen) poderá alguém saciar estas pessoas de pães num lugar deserto?» (Marcos 8,4). Esse «Onde» (póthen) já tinha sido ouvido em João 1,48, quando Natanael pergunta a JESUS: «“De onde” (póthen) me conheces?». Será também ouvido em João 2,9, em que o narrador nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia “de onde” (póthen) era» a água feita vinho. Da mesma forma, Nicodemos também não sabe, acerca do Espírito, «“de onde” (póthen) vem nem para onde vai» (João 3,8). Tal como a mulher samaritana não sabe «“de onde” (póthen) Jesus tira a água-viva (João 4,11). E as autoridades de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá “de onde” (póthen) Ele é» (João 7,27). E, mais à frente, em polémica com os fariseus, Jesus afirma: «Eu sei “de onde” (póthen) venho; vós, porém, não sabeis “de onde” (póthen) venho» (João 8,14). E na cena da cura do cego de nascença, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos “de onde” (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis “de onde” (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos: «“De onde” (póthen) és TU?» (João 19,9). E, no Evangelho de Lucas, Isabel também exclama: «“De onde” (póthen) a mim isto: “Que venha a mãe do meu Senhor ter comigo?”» (Lucas 1,43). E, no Evangelho de Marcos, como no de Mateus, os conterrâneos de JESUS, apontando as Suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares que, na mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa, exclamam acerca d’ELE: «“De onde” (póthen) a ESTE estas coisas, e que sabedoria é esta a ESTE dada, e os prodígios que pelas mãos d’ELE vêm?» (Marcos 6,2; cf. Mateus 13,54.56).

            Retornando à pergunta feita a Filipe: «Onde comparemos pão para que eles comam?» (João 6,5), o narrador anota outra vez com perspicácia que Jesus disse isto para pôr Filipe à prova (peirázô), pois bem sabia o que havia de fazer (João 6,6). Com esta anotação, o narrador deixa-nos declaradamente perante uma pergunta pedagógica, um teste, pelo que ficamos à espera de saber se Filipe reúne ou não competência para resolver o problema. E, enquanto temos os olhos postos em Filipe, e dado que se trata de um teste, também nós nos vamos perguntando: «E eu, será que saberei responder e resolver o teste?

            Não temos de esperar muito tempo. Filipe é rápido a fazer contas, e diz logo que duzentos denários (um denário corresponde ao salário de um dia) de pão não chegam para que cada um receba ainda que seja só uma migalhinha (João 6,7). O leitor atento, mas incauto, é com certeza levado a concordar com Filipe. Se a pergunta é: «Onde comprar pão», o leitor pensará logo certamente como Filipe no dinheiro e no shopping. E será também levado a concluir que, para tanta gente, feitas as contas em termos de mercado, pouco ou nada haverá a fazer. Mas o «leitor implícito» ou «leitor modelo», que a análise narrativa ou narratologia define como aquele que está apto a fazer as operações mentais e afetivas que o mundo do relato dele requer, terá certamente estranhado que Filipe se tenha deixado levar tão depressa pelo verbo «comprar» da pergunta de Jesus, dado que se trata de um verbo que Jesus não só não usa, como até recusa.

            André, que estava ali ao lado e que também terá ouvido a pergunta, passa a Jesus a informação preciosa de que havia ali um rapazito (paidárion) que tinha cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas apressou-se logo a minar a utilidade do achado, dada a imensa desproporção entre tão pouco alimento e tanta gente (João 6,8-9). Se a lógica de mercado de Filipe o levou, e a nós com ele, a desistir rapidamente de apresentar uma solução positiva à pergunta de Jesus, a lógica de André levou-o, e a nós outra vez também com ele, a desvalorizar os dons que descobrimos nos outros, nomeadamente nos nossos irmãos mais pequeninos.

            Parece agora claro para o leitor que a pergunta de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?», não obteve de Filipe a resposta adequada, e que a ajuda de André tão-pouco se terá revelado satisfatória.

            Filipe ouviu a pergunta de Jesus. E André, pelos vistos, também a ouviu. Mas nem Filipe nem André sabiam que se tratava de uma prova, de um teste. Só o leitor o sabe, porque foi disso informado pelo narrador. E então a pergunta agora é: e eu e tu, leitores informados, será que sabemos resolver a questão que Filipe e André deixaram sem resposta? Ou será que preferimos prestar toda a nossa atenção ao desempenho de Jesus, dado que também fomos informados de que ele sabia bem o que havia de fazer? A ação de Jesus reclama a nossa atenção.

            Soberanamente, Jesus, que bem sabia o que havia de fazer, ordenou àqueles discípulos, com certeza estupefactos, que fizessem reclinar (anapíptô) as pessoas (ánthrôpoi) para comer (João 6,10). O verbo usado, anapíptô, implica mesmo dispor-se à mesa para comer. O narrador anota agora que «os homens (ándres) eram em número de cerca cinco mil», a que acrescenta a sugestiva anotação de que «havia muita erva (chórtos) naquele lugar» (João 6,10). Depois, Jesus, que preside à mesa, RECEBEU (lambánô) os pães, e TENDO DADO GRAÇAS (eucharistéô), DISTRIBUIU-OS (diadídômi) ele mesmo aos que estavam reclinados à mesa (anakeiménois), e o mesmo fez com os peixinhos, tanto quanto queriam (João 6,11). Ficámos a saber que Jesus recolheu a informação preciosa de André acerca dos pães e dos peixinhos do rapazito, e que, ao contrário de André, não os depreciou. E quando todos foram saciados (eneplêsthêsan), Jesus, que preside à mesa, deu ordens aos seus discípulos para que reunissem (synágô) os pedaços que sobraram (perisseúô). Note-se que o verbo usado para dizer «sobrar» é o verbo perisseúô, que implica o excesso que ultrapassa toda a medida e a abundância que transborda, tornando curtas todas as nossas normas, regras e medidas. É assim normal que o narrador nos informe de que, com os pedaços que sobraram, os discípulos encheram doze cestos (João 6,12-13), símbolo da plenitude transbordante e inesgotável.

            De notar que, aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de «multiplicação» dos pães, mas de «divisão» e «com-divisão», «partilha» dos pães! O milagre de Jesus – aquilo que suscita surpresa e maravilha – não consiste em aumentar a quantidade do pão (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica do mercado, do vender e do comprar, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom, e ir por este mundo consumista, partindo o pão e dividindo-o, com a clara consciência de que onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos («todos comeram e foram saciados»), mas instaura-se igualmente o «excesso», a superabundância da graça («os discípulos encheram doze cestos»).

            A multidão, porém, face ao sucedido, não viu o «excesso», a superabundância da graça (Romanos 5,20; 1 Timóteo 1,14), mas tornou-se apenas materialmente dependente de Jesus, procurando-o por toda a parte (João 6,24), como se de verdadeira fonte de rendimento se tratasse (velha lógica consumista). E, quando o encontra no «outro lado do mar» (João 6,25), é duramente recriminada por Jesus, com estas palavras solenes: «Em verdade, em verdade, vos digo: “vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos enchestes (chortázô)”» (João 6,26). E continua: «Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo que permanece até à vida eterna» (João 6,27).

            Pouco depois, Jesus revelará: «Eu sou o pão da vida» (João 6,35 e 48) e «Eu sou o pão vivo descido do céu» (João 6,41 e 51), e retirará daí um rol de consequências em termos da sua carne e do seu sangue dados para a vida do mundo. Jesus compreende então que os judeus e os seus discípulos murmuravam por causa disso (João 6,61), e o narrador informa-nos que muitos deles se afastaram de Jesus (João 6,66). É então a hora decisiva de Jesus perguntar aos Doze: «Vós também quereis ir embora?» (João 6,67), ao que Simão Pedro responderá exemplarmente: «Senhor, a quem iremosTu tens palavras de vida eterna» (João 6,68).

            O leitor que seguiu atentamente tudo desde o princípio, desde a primeira pergunta pedagógica de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?», e que assistiu ao falhanço das respostas dos discípulos, e que terá, porventura, verificado a sua própria incapacidade para responder, e que prestou depois toda a atenção ao desempenho de Jesus, e que viu entretanto a deserção de judeus e discípulos dececionados, terá com certeza compreendido a última resposta de Simão Pedro: «Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna», como a verdadeira resposta à primeira pergunta pedagógica de Jesus. Com a resposta de Pedro, fica estabelecida a conjunção entre palavra e alimento. Mas falta ainda um agrafo que explique aquele estranho verbo comprar, estranhamente usado por Jesus. É um trabalho de casa que o leitor competente tem de fazer sozinho. E nem é difícil, pois ele sabe que é preciso conhecer as Escrituras. Percorrendo-as, encontrará esta passagem de Isaías:

«Todos vós, que tendes sede, vinde às águas! Vós, que não tendes dinheiro, vinde! Comprai (agorázô LXX) cereal e comei! Comprai cereal sem dinheiro, e sem pagar, vinho e leite. (…) Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2).

            Está aqui o elo que faltava: o verbo comprar, significativamente não agrafado com dinheiro. Comprar cereal sem dinheiro. Mas esta lição de Isaías reforça ainda a conjunção entre palavra e alimento, com aquela proposta: «Ouvi-me, ouvi-me e comei!», que soa também a abrir o Livro do grande profeta: «Se vierdes e escutardes, o melhor da terra (tûb ha’arets) comereis» (Isaías 1,19), clarificada pelo confronto: «Mas se vos recusardes (ma’na) e vos rebelardes (marah), será a espada que vos comerá» (Isaías 1,20). Mas também sai esclarecida ainda aquela disjunção mostrada por Jesus entre «o alimento que perece» e «o que permanece até à vida eterna» (João 6,27). O que perece é a «erva» (ou «feno») (chórtos), seja ela qual for, que compramos com dinheiro e nos cala a boca e enche (chortázô) o estômago, fartando-nos como animais (cf. João 6,26). O que permanece é a palavra que Deus diz, e que é por nós ouvida, recebida e respondida. Mas esta disjunção, a que podemos agora acrescentar a sugestiva anotação de que «havia muita erva (chórtos) naquele lugar» (João 6,10), pode ainda ser mais bem explicitada se lermos outro texto de Isaías:

«(…) Toda a carne é erva (chórtos LXX), e toda a sua graça como a flor do campo. Seca a erva (chórtos LXX) e murcha a flor, mas a palavra do Senhor permanece para sempre» (Isaías 40,6 e 8).

            Os leitores que se julgam supercompetentes, mas que na verdade nada entendem, gostam de ver na anotação de que «havia muita erva naquele lugar» a evocação do Salmo 23,2:

«O Senhor é meu pastor, nada me falta: num lugar de ‘erva verde’ (tópos chlóês LXX) me faz repousar».

Nem reparam que o vocabulário não é o do Salmo. O leitor instruído nas Escrituras saberá agora responder à estranha pergunta de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?» É claramente em Deus. Também este cenário transborda de pedagogia. Jesus que, no cenário anterior (João 4), desceu ao nível da mulher da Samaria para ganhar a mulher da Samaria, desce agora ao nível dos discípulos para ganhar os discípulos (João 6). A iniciativa é sempre de Jesus. Os discípulos tinham ficado na linha do comprar (João 4). É aí que Jesus os vai buscar, formulando a pergunta: «Onde compraremos pão, para que eles comam?» (João 6,5). Vimos atrás que o verbo «comprar» é estranho na boca de Jesus, mas usual na dos discípulos. Usando agora o verbo «comprar», Jesus desce ao nível dos discípulos. Não, porém, simplesmente para dizer com eles, mas para os levar a dizer com ele. Depois de muitos mal-entendidos e deserções, uma última interpelação de Jesus acaba por lhes dar a oportunidade de se dizerem com Jesus. A multidão é levada pelo interesse meramente material, tornando-se dependente, no mau sentido, de Jesus. É duramente recriminada por Jesus. O leitor encontra, neste cenário, um jogo de muitas surpresas, de muitos olhares. E é o leitor o que mais tem a ganhar, se verdadeiramente entrar no jogo empenhativo do relato.

A narrativa do Segundo Livro dos Reis (4,42-44) reclama já as diferentes cenas de «multiplicação» dos pães presentes nos Evangelhos. Nos Evangelhos, é Jesus o protagonista. Em 2 Reis 4,42-44 é o profeta Eliseu que, com vinte pães de cevada alimenta até à saciedade cem pessoas. Claro que por detrás do profeta está sempre a Palavra de Deus que tudo orienta e clarifica: «Comerão e ainda sobrará» (2 Reis 4,43). E assim sucedeu. E assim sucederá ao longo das páginas da Escritura Santa. Experimente o leitor.

São Paulo lembra-nos, na lição da sua Carta aos Efésios 4,1-6, que a fome não é só de pão. É também de paz e de unidade. A matar esta fome que nos vai matando, lá está, reafirma Paulo, um só Senhor, um único Espírito, um só Deus e Pai de todos. Não há dúvida: uma comunidade unida e reunida sabe partilhar com alegria. E é assim que se resolvem todas as fomes, também a de pão.

Fica bem hoje cantar com alegria renovada o grande hino alfabético que é o Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração. E enquanto saboreamos as imensas riquezas que nos vêm de Deus: a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9), usando, para o efeito, toda a gama de sabores e todas as letras do alfabeto, continuemos a cantar: «Abris, Senhor, a vossa mão, e saciais a nossa fome!» (Salmo 145,16).

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024

Viver a Palavra

O Evangelho deste Domingo parece colocar-nos em sintonia com o tempo de férias que se avizinha. Poderia ser até um bom slogan para uma agência de viagens: «Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco». Contudo, não se trata da instituição bíblica das férias, nem uma canonização do nada fazer, mas a certeza de que Deus quer que todo o trabalhador conheça o merecido repouso e que todo aquele que se gasta possa descansar.

Os apóstolos regressam da sua primeira grande missão! Tinham sido enviados por Jesus com uma missão muito concreta e indicações precisas. Tinham partido dois a dois e, seguindo as instruções de Jesus, contemplaram maravilhas e milagres que, efetivamente, nunca tinham pensado realizar: «os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento, expulsaram muitos demónios, ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos» (Mc 6,12). Agora é hora de regressar a Jesus e começam a contar tudo quanto tinham feito e ensinado. Como foi bela esta partilha! Cada a um a seu modo a narrar as maravilhas que Deus tinha realizado através deles. Com certeza, acontecimentos e milagres tão diferentes, mas todos preenchidos pela alegria da missão, pela certeza de que é Deus quem opera através das suas frágeis mãos.

Jesus não é indiferente aos trabalhos e canseiras daqueles que são enviados em missão. Escutando paciente e atenciosamente a partilha que faz cada um deles, desafia-os a um tempo de repouso num lugar isolado. Jesus quer o nosso merecido repouso. Jesus deseja que cada um possa encontrar o merecido tempo de serenidade e tranquilidade para renovar as forças e partir de novo em missão. Mas, mais do que isso, que cada um saiba fazer do tempo de repouso um tempo privilegiado de encontro com Deus, nosso rochedo seguro onde podemos encontrar abrigo e conforto.

Diante da missão que o Senhor deposita em nossas mãos, é fácil e tentador deixarmo-nos levar por um ativismo estéril que cria em nós a ilusão de estarmos sempre em trabalho indispensável e imprescindível, esquecendo que o descanso é querido por Deus e condição necessária para a missão que realizamos: «devemos conceber a nossa vida como um serviço por amor. As vinte e quatro horas do nosso dia. Porque mesmo quando estamos a dormir estamos em serviço de Deus que depois do nosso trabalho quer o nosso merecido repouso» (Padre Virginio Rotondi). Descansar é um modo de servir o Senhor, quando o tempo de repouso é lugar para ganhar forças para o caminho e tempo privilegiado de encontro com Aquele que é o refúgio e conforto para as nossas fadigas e feridas.

Como seria belo se o nosso tempo de repouso e descanso pudesse ser tempo e lugar para contar a Jesus quanto temos feito e ensinado como fizeram os discípulos. Neste tempo de férias que se aproxima, poderia ser este o nosso compromisso: encontrar tempo para estar com Jesus, para reler a nossa vida à luz da Sua palavra e da Sua graça. Jesus conhece a nossa vida e sabe bem o que temos feito. Contudo, mais do que Ele, somos nós que precisamos de tomar consciência quais as prioridades da nossa vida, o que tem marcado o ritmo dos nossos dias, ao serviço de quem temos colocado as nossas forças…

Que o olhar compassivo de Jesus sobre as multidões que são como «ovelhas sem pastor» eduque o nosso olhar, afine o nosso coração e marque o ritmo da nossa existência. E nos dias mais exigentes e difíceis sintamos este olhar de Jesus ser derramado sobre nós e encontremos no Seu coração manso e humilde o alento e conforto de que precisamos. in Voz Portucalense

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Tempo de (FÉ) rias. «Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco». As palavras de Jesus no Evangelho deste Domingo são um bom mote para este período estival em que muitas famílias aproveitam para gozar um tempo de férias e descanso. Que as merecidas férias do trabalho e do frenesim diário não permitam um tempo de férias para a fé e para a nossa relação com Cristo. Pelo contrário, que este tempo possa ser uma ocasião privilegiada para um renovado encontro com Cristo quer a nível pessoal, quer em família e em comunidade. Descansar com Jesus, encontrar Nele descanso e como os discípulos aproveitar esse tempo para lhe dizer «tudo o que tinham feito e ensinado»: eis um bom programa para férias que em nada diminui o lazer e o descanso, mas que oferece novo sentido ao tempo. Que possa ser um tempo de reler a vida com Jesus e ganhar um novo folgo e entusiasmo para o regresso ao trabalho e aos afazeres quotidianos. in Voz Portucalense (adaptado)

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jeremias 23,1-6

Diz o Senhor:
«Ai dos pastores que perdem e dispersam
as ovelhas do meu rebanho!»
Por isso, assim fala o Senhor, Deus de Israel,
aos pastores que apascentam o meu povo:
«Dispersastes as minhas ovelhas
e as escorraçastes, sem terdes cuidado delas.
Vou ocupar-Me de vós e castigar-vos,
pedir-vos contas das vossas más ações
– oráculo do Senhor.
Eu mesmo reunirei o resto das minhas ovelhas
de todas as terras onde se dispersaram
e as farei voltar às suas pastagens,
para que cresçam e se multipliquem.
Dar-lhes-ei pastores que as apascentem
e não mais terão medo nem sobressalto;
nem se perderá nenhuma delas – oráculo do Senhor.
Dias virão, diz o Senhor,
em que farei surgir para David um rebento justo.
Será um verdadeiro rei e governará com sabedoria;
Há de exercer no país o direito e a justiça.
Nos seus dias, Judá será salvo e Israel viverá em segurança.
Este será o seu nome: ‘O Senhor é a nossa justiça’».

CONTEXTO

Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é o reino do Sul (Judá), e sobretudo a cidade de Jerusalém.

A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei – preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus – leva a cabo uma grande reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à Aliança. No entanto, em 609 a.C., Josias é morto em Megido, em combate contra os egípcios. Depois de uns meses de instabilidade, o trono de Judá foi ocupado por Joaquim (609-597 a.C.).

Começa, por essa altura, a segunda fase da atividade profética de Jeremias. Com Joaquim no trono, a infidelidade de Judá à Aliança com Javé volta a estar na ordem do dia. Nesta fase, a voz profética de Jeremias denuncia as graves injustiças sociais, às vezes fomentadas pelo próprio rei, e o abandono de Javé. A infidelidade religiosa de Judá manifesta-se de forma particular nas alianças políticas que Joaquim procura fazer com outras nações: em lugar de confiar em Deus, Judá coloca a sua segurança em exércitos estrangeiros. Jeremias, convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas, anuncia a iminência de uma invasão babilónica, que irá castigar os pecados do Povo de Deus. De facto, as previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém. No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.).

A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante o reinado de Sedecias. Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Jeremias, uma vez mais, mostra o seu desacordo: a esperança de Judá deve estar em Javé e não em exércitos estrangeiros… Mas, nem o rei, nem os notáveis do país lhe prestam qualquer atenção à opinião do profeta. Considerado um amargo “profeta da desgraça”, Jeremias apenas consegue criar o vazio à sua volta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

Provavelmente, o texto que a liturgia deste décimo sexto domingo comum nos propõe como primeira leitura deve enquadrar-se no tempo que vai desde o primeiro exílio (após a primeira queda de Jerusalém, em 597 a.C.) ao segundo exílio (após a segunda tomada de Jerusalém pelos Babilónios, em 586 a. C.). É um tempo de desnorte nacional, em que Judá, sem líderes capazes, já perdeu as referências e a esperança no futuro. Pela voz de Jeremias, Deus denuncia a incompetência e a incúria dos “pastores” de Judá: com as suas políticas erráticas, eles dispersaram as ovelhas do rebanho. É, certamente, uma alusão ao exílio do Povo na Babilónia.

A utilização da imagem do “pastor” para falar dos líderes da nação é bastante frequente no Antigo Testamento. Aliás, a imagem adquiriu uma força especial na sequência de David, o pastor de Belém que Javé tirou da guarda do rebanho, ungiu e transformou em rei, encarregando-o de cuidar do rebanho do Povo de Deus. Aliás, na memória coletiva de Israel, David será sempre o pastor por excelência, que cuidou do seu Povo de acordo com as indicações recebidas de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O quadro de desorientação, de confusão e de abandono que os habitantes de Judá experimentaram no início do séc. VI a.C., é um quadro que não nos é completamente estranho. Também nós conhecemos momentos conturbados da nossa história (coletiva ou pessoal), em que nos sentimos órfãos, perdidos, traídos e abandonados ao sabor dos ventos e das marés… As catástrofes que afetam o mundo, os conflitos que dividem os povos, a miséria que toca a vida de tantos dos nossos irmãos, os perigos dos fundamentalismos, as mudanças vertiginosas que o mundo todos os dias sofre, a perda dos valores em que apostávamos, as novas e velhas doenças, as crises pessoais, os problemas laborais, as dificuldades familiares trazem-nos a consciência da nossa pequenez e impotência frente aos grandes desafios que a vida nos apresenta. Sentimo-nos, então, “ovelhas” sem rumo e sem destino, abandonadas à nossa sorte. A Palavra de Deus que nos chega neste domingo pela voz de Jeremias garante-nos que Deus é o “Pastor” que se preocupa connosco, que está atento a cada uma das suas “ovelhas”; Ele cuida das nossas necessidades e está permanentemente disposto a intervir na nossa história para nos conduzir por caminhos seguros e para nos oferecer a Vida e a paz. É n’Ele que temos de apostar, é n’Ele que temos de confiar. Esta constatação é, para nós que acreditamos na bondade, no amor e na solicitude de Deus, fonte de alegria, de esperança, de serenidade e de paz?
  • A cada passo Por vezes, no nosso desespero, apostamos em “pastores” humanos que, em lugar de nos conduzirem para a vida e para a felicidade, nos usam para satisfazer a sua ânsia de protagonismo e para realizar os seus projetos egoístas…
  • As palavras de Jeremias contra os “pastores” que se aproveitam do rebanho em benefício próprio talvez nos tenham levado a apontar imediatamente para alguns líderes humanos que conhecemos e que consideramos responsáveis por boa parte do sofrimento que desfeia o nosso mundo… Na verdade, a história humana – mesma a mais recente – está cheia de situações em que as pessoas encarregadas de cuidar da comunidade humana usam o “rebanho” em benefício próprio e magoam, torturam, roubam, assassinam, privam de vida e de felicidade as pessoas que Deus lhes confiam… Teremos alguma responsabilidade – pela nossa indiferença, pelo nosso comodismo, pela nossa instalação, pelo nosso receio de denunciar – em tudo isso? E nós próprios, como é que lidamos com aqueles cuja responsabilidade Deus nos confiou: na família, no emprego, na Igreja? Procuramos colocar o bem de cada pessoa que caminha ao nosso lado acima dos nossos interesses e projetos pessoais?
  • O nosso texto faz referência a “um rei” que Deus vai enviar ao encontro do seu Povo e que governará com sabedoria e justiça. Jesus é a concretização desta promessa. Ele veio propor ao “rebanho” de Deus a Vida plena e verdadeira… As propostas de Jesus encontram eco na nossa vida? Estamos sempre dispostos a acolher as indicações e os valores que Ele continuamente nos apresenta com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 22 (23)

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

 

O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.

Ele me guia por sendas direitas por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.

Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça,
e o meu cálice transborda.

A bondade e a graça hão de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

LEITURA II – Efésios 2,13-18

Irmãos:
Foi em Cristo Jesus que vós, outrora longe de Deus,
vos aproximastes d’Ele, graças ao sangue de Cristo.
Cristo é, de facto, a nossa paz.
Foi Ele que fez de judeus e gregos um só povo
e derrubou o muro da inimizade que os separava,
anulando, pela imolação do seu corpo,
a Lei de Moisés com as suas prescrições e decretos.
E assim, de uns e outros,
Ele fez em Si próprio um só homem novo,
estabelecendo a paz.
Pela cruz reconciliou com Deus
uns e outros, reunidos num só Corpo,
levando em Si próprio a morte á inimizade.
Cristo veio anunciar a boa nova da paz,
paz para vós, que estáveis longe,
e paz para aqueles que estavam perto.
Por Ele, uns e outros podemos aproximar-nos do Pai,
num só Espírito.

CONTEXTO

Éfeso, cidade cosmopolita situada na costa da Jónia, na Ásia Menor (junto da atual Selçuk – Turquia), famosa pelo seu templo de Ártemis e pelo seu enorme teatro ao ar livre, era um dos principais centros comerciais e religiosos do mundo greco-romano. Durante o séc. I a.C. albergava uma população de cerca de 250.000 pessoas. No decurso da sua terceira viagem missionária, Paulo foi até Éfeso e permaneceu lá por cerca de dois anos (cf. At 19,10). Da pregação e da catequese de Paulo resultou uma comunidade viva, fervorosa, empenhada em dar testemunho de Jesus. No final dessa viagem missionária, antes de embarcar para Tiro, Paulo fez questão de chamar a Mileto os anciãos da Igreja de Éfeso, a fim de se despedir da comunidade (cf. At 20,17-38). Isso atesta a relação especial que havia entre Paulo e os cristãos de Éfeso.

Não conhecemos as circunstâncias que levaram Paulo a escrever a Carta aos Efésios. Mas, quando a escreveu, Paulo estava na prisão (em Roma? Em Cesareia Marítima?). O seu portador foi um tal Tíquico. Estamos, muito provavelmente, por volta dos anos 58/60.

No entanto, a carta não reflete a proximidade que Paulo tinha com os cristãos de Éfeso. Apresenta-se num tom impessoal, solene, desligado, que parece distante da forma como Paulo se costumava dirigir às comunidades a que se sentia especialmente ligado. Isso leva alguns a negar e sua autoria paulina, e outros a considerar que o texto que nos chegou com o título “carta aos efésios” poderá ser um dos exemplares de uma “carta circular” enviada por Paulo a várias Igrejas da Ásia Menor, incluindo a comunidade cristã de Éfeso. A questão permanece em aberto.

Considera-se, em geral, que a Carta aos Efésios apresenta uma espécie de síntese da teologia paulina, redigida numa altura em que Paulo sentia ter terminado a sua missão apostólica na Ásia. Prisioneiro por causa do Evangelho (cf. Ef 4,1), Paulo não sabe o que o futuro lhe reserva e entende deixar o seu testemunho às comunidades da Ásia Menor que tinha especialmente acompanhado.

O tema central da Carta aos Efésios é aquilo a que Paulo chama “o mistério”: o desígnio (ou projeto) salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, oculto durante séculos aos homens, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo sexto domingo comum integra a parte dogmática da carta. Depois de refletir sobre o papel de Cristo no projeto de salvação que Deus tem para os homens (cf. Ef 2,1-10), Paulo refere-se à reconciliação operada por Cristo, que com a sua doação uniu judeus e pagãos num mesmo Povo (cf. Ef 2,11-22). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Domingo após domingo a palavra de Deus recorda-nos o projeto de salvação que Deus preparou em nosso favor. A repetição não incomoda: trata-se da questão mais decisiva quanto ao sentido da nossa vida, uma questão que deve estar sempre diante dos nossos olhos para dar sentido ao caminho que vamos percorrendo na história. No entanto, a segunda leitura deste décimo sexto domingo comum põe em relevo um aspeto essencial desse projeto: ele abrange todos os filhos e filhas de Deus, sem distinção de raças, de etnias, de diferenças sociais ou culturais, de experiências religiosas. Deus não faz aceção de pessoas, Deus não discrimina os seus filhos; a todos Ele quer salvar, a todos Ele quer reunir à sua volta. Nós, seres humanos, inventamos fronteiras para proteger as nossas possessões, criamos espaços onde só alguns privilegiados podem aceder, decidimos quem merece e não merece a nossa atenção e o nosso acolhimento; mas Deus enviou-nos o seu Filho Jesus para abolir as barreiras que nos separam, para destruir as velhas inimizades e para nos inserir numa única família, a família de Deus. Que implicações tem isto na nossa forma de ver Deus, de ver a vida e de ver os irmãos que caminham ao nosso lado?
  • A Igreja é a comunidade daqueles que aceitam a oferta de salvação que Deus faz; é uma comunidade de irmãos e de irmãs que Cristo, com a sua entrega, reconciliou e ensinou a viver no amor; é um “corpo”, formado por uma grande diversidade de membros, unidos em Cristo e entre si numa efetiva fraternidade; é a família de Deus, chamada a dar testemunho no mundo da bondade, do amor e da Vida de Deus. É essa, de facto, a experiência que temos do viver em Igreja? As nossas comunidades cristãs são espaços de fraternidade, de acolhimento, de partilha, de amor anunciado e vivido? Nas nossas comunidades cristãs todos os irmãos são acolhidos e amados, ou há pessoas que são marginalizadas, condenadas, tratadas com menos consideração e estima?
  • O fenómeno da globalização contribuiu para que nos aproximássemos dos outros homens e mulheres que partilham connosco esta casa comum que é o mundo. Ajudou-nos a conhecer o outro, a acolher a riqueza do outro, a aceitar com tolerância as diferenças. Contudo, subsistem muros – alicerçados nas diferenças rácicas, políticas, religiosas, sociais, afetivas – que impedem uma total experiência de fraternidade universal. Nós, os discípulos desse Cristo que veio reconciliar “judeus e gentios” e fazer de todos “um só povo”, temos o dever de dar testemunho de unidade e de lutar objetivamente contra tudo aquilo que impede os homens de caminharem de mãos dadas. Quais são, no séc. XXI, as principais barreiras que nos impedem de comunicar, de partilhar, de viver em fraternidade? Na nossa vida pessoal e na nossa experiência de caminhada comunitária, quais são os muros que nos dividem, que impedem o encontro e a comunhão? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 6,30-34

Naquele tempo,
os Apóstolos voltaram para junto de Jesus
e contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado.
Então Jesus disse-lhes:
«Vinde comigo para um lugar isolado
e descansai um pouco».
De facto, havia sempre tanta gente a chegar e a partir
que eles nem tinham tempo de comer.
Partiram, então, de barco
para um lugar isolado, sem mais ninguém.
Vendo-os afastar-se, muitos perceberam para onde iam;
e, de todas as cidades, acorreram a pé para aquele lugar
e chegaram lá primeiro que eles.
Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão
e compadeceu-Se de toda aquela gente,
que eram como ovelhas sem pastor.
E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

CONTEXTO

Depois de narrar o envio dos Doze em missão (cf. Mc 6,6b-13), Marcos faz um compasso de espera, como se tivéssemos de dar tempo aos enviados de Jesus para cumprir a missão que lhes foi entregue. Marcos aproveita, enquanto esperamos o regresso dos Doze, para retomar a questão da identidade de Jesus; e conta-nos que Herodes se interroga sobre Jesus, vendo n’Ele um João Batista redivivo (cf. Mc 6,14-16). A propósito, Marcos julga necessário narrar-nos o martírio do Batista, mandado decapitar por Herodes (cf. Mc 6,17-29) enquanto estava prisioneiro em Maqueronte, a fortaleza herodiana situada a leste do Mar Morto. A sequência parece não ser por acaso: ao entrelaçar o ministério de João Batista, de Jesus e dos discípulos, Marcos está a sugerir que se trata de uma única e mesma missão. A morte violenta de João converte-se em sinal premonitório do que mais tarde acontecerá com Jesus e com os Doze.

Depois deste parêntesis, Marcos retoma o fio condutor do seu Evangelho, apresentando o regresso dos Doze da missão. Marcos chama-lhes, agora, “apóstolos” (“enviados”): é a única vez que a palavra aparece no Evangelho segundo Marcos. Não há, no texto, qualquer indicação do lugar onde a cena se teria desenrolado.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Em pleno séc. XXI, são muitos os homens e as mulheres que caminham pelo mundo perdidos e sem rumo, “como ovelhas sem pastor”. As “ovelhas” perdidas e sem rumo são, nos nossos dias, as vítimas sem rosto e sem voz da economia global, os que são colocados à margem da sociedade e da vida, os estrangeiros que buscam noutro país condições dignas de vida mas não encontram lugar, os doentes que não têm acesso a um sistema de saúde eficiente, os idosos abandonados pela família e que sofrem em silêncio, as crianças que crescem nas ruas e que são maltratadas e violentadas, os “diferentes” que são marginalizados pela sociedade e pelas igrejas, os que carregam culpas que não conseguem esquecer, os que a vida magoou e que ainda não conseguiram sarar as suas feridas, as vítimas de todas as guerras e de todas as violências… Como os vemos, como nos abeiramos deles? Olhamo-los com o mesmo olhar de Jesus e sentimos compaixão? Sentimo-nos responsáveis por eles? A nossa consciência sente-se tranquila e em paz quando não respondemos às necessidades dos nossos irmãos sofredores?
  • A Igreja será sempre a “casa de Jesus”, a casa onde Jesus a todos acolhe com amor. Muitos dos homens e mulheres que partilham connosco o caminho e que se sentem perdidos e desorientados “como ovelhas sem pastor” voltam-se para a comunidade cristã à procura de ajuda, de orientação, de compreensão, de acolhimento… Como é que a nossa comunidade cristã responde a essa procura? Com um elenco de normas, de obrigações, de mandamentos, de regras rígidas, de proibições, de discursos cheios de dogmas e de chavões teológicos, ou com o olhar compadecido e compreensivo de Jesus? As nossas comunidades cristãs são o “hospital de campanha” onde aqueles que a vida magoou podem curar as suas feridas e experimentar a compreensão, o amor, a ternura, a misericórdia de um Deus bom, que é pai e mãe para todos os seus filhos e filhas? A nossa Igreja é rosto de Jesus para os homens e mulheres do nosso tempo?
  • Hoje como ontem, a missão dos “enviados” não pode desenrolar-se à margem de Jesus. É de Jesus que eles partem e é a Jesus que eles voltam. É imprescindível que os discípulos, apesar de todas as solicitações que lhes são feitas, arranjem tempo para estar com Jesus, para escutar as suas indicações, para lhe contar as coisas bonitas que viram acontecer ou os obstáculos que encontraram no caminho. Por vezes, os discípulos, genuinamente comovidos com a situação das “ovelhas sem pastor”, mergulham num ativismo descontrolado e acabam por perder as referências; deixam de ter tempo e disponibilidade para se encontrar com Jesus, para confrontar as suas opções e motivações com o projeto de Jesus… E passam a “vender”, como verdade libertadora, soluções que são parciais e que geram dependência e escravidão (e que não vêm de Jesus); ou tornam-se funcionários mais ou menos eficientes, que resolvem problemas sociais pontuais, mas sem oferecerem às “ovelhas sem pastor” uma libertação verdadeira e global; ou, então, cansam-se e abandonam a atividade e o testemunho… Vemos Jesus como o princípio e o fundamento do nosso apostolado? Estamos conscientes de que é a comunhão sempre renovada com Ele que nos permite redescobrir o sentido das coisas e renovar o nosso empenho? Procuramos encontrar tempo para rezar, para escutar a Palavra, para aprofundar a nossa comunhão com Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é importante ter presente a mensagem que Jeremias dirige aos maus pastores em nome do Senhor Deus, mas deve evitar-se um tom exageradamente dramático e acusatório. Além disso, deve haver um especial cuidado na pronunciação da expressão «oráculo do Senhor». Deve ser dito num tom diferente, mas deve haver o cuidado de não parecer a conclusão final do texto, evitando que as pessoas respondam antes da conclusão da leitura.

Na segunda leitura, temos algumas frases mais longas, orações curtas, muitas vírgulas. Deste modo, este texto para ser bem proclamado deve ser preparado tendo em conta as diversas pausas e respirações que são fundamentais para a compreensão do texto

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS, A NOSSA ÚNICA REFERÊNCIA

O Evangelho deste Domingo XVI do Tempo Comum (Marcos 6,30-34) insere-se numa bela sequência de preciosos textos. Importante não perder de vista o fio de ouro (ou de sentido) que entretece os episódios que, com extrema habilidade, Marcos coloca diante dos nossos olhos. Em Marcos 6,1-6, Jesus é rejeitado na sua pátria, prolepse de tudo o que lhe vai acontecer. No episódio seguinte, Marcos 6,7-13, Jesus envia os «Doze» em missão. Envia-os dois a dois, leves, sem nada a que se agarrar ou distrair. A sua única bagagem é o Evangelho. Logo a seguir, em Marcos 6,14-29, é narrada a versão popular do martírio de João Batista, que difere da versão política de Flávio Josefo. Em Marcos 6,30, «os Apóstolos» (hoi apóstolloi) reúnem-se junto de Jesus, e narraram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado.

De notar, em primeiro lugar, que a missão dos «Doze» aparece premonitoriamente colocada entre a rejeição de Jesus e o martírio de João Batista. Esta leitura sai ainda reforçada se tivermos em conta que o episódio do martírio de João Batista rasga em duas partes a missão dos «Doze», intrometendo-se entre o envio, a partida de junto de Jesus e o anúncio feito pelos «Doze» (Marcos 6,7-13), e o regresso de «os Apóstolos» a Jesus (Marcos 6,30).

De notar, em segundo lugar, a permanente referência a Jesus por parte dos «Doze». Na verdade, é Jesus que os envia, e envia-os dois a dois, é d’Ele que partem, é d’Ele que são arautos, mensageiros ou testemunhas, é a Ele que regressam, é a Ele que fazem a «relação» do acontecido.

Uma inteligência mais profunda do envio «dois a dois»: não vão em nome próprio, mas são apenas testemunhas daquele que os enviou. E, porque é de testemunho que se trata, para que este seja válido, requer-se a presença de duas ou três testemunhas (cf. Deuteronómio 19,15 e João 8,17). Neste caso, as testemunhas estão vinculadas a Jesus. Mas o vínculo a Jesus sai ainda reforçado neste «dois a dois», se tivermos em conta a palavra de Jesus: «Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou Eu no meio deles» (Mateus 18,20).

Esta centralidade de Jesus na vida dos «Doze» está ainda referida no facto de regressarem a Ele e de a Ele apresentarem a «relação» de tudo o que aconteceu. Note-se que não fazem uma «relação» por alto, mas uma «relação» exaustiva: «de tudo». Tudo o que fizeram e ensinaram tinha, na verdade, Jesus como única referência.

Depois de noticiado este regresso a Jesus e da menção ao relatório exaustivo da missão, os «Doze» são, pela primeira vez, chamados «os Apóstolos» (hoi apóstoloi) (Marcos 6,30). E Jesus retoma agora a iniciativa, vinculando-os ainda mais, se assim se pode dizer, a si mesmo, convidando-os à comunhão com Ele («Vinde»), separando-os para o efeito da multidão que os apertava (Marcos 6,31). «E partiram na barca para um lugar deserto, à parte» (Marcos 6,32). No Evangelho de Marcos, a «barca» (tò ploîon) demarca um espaço privilegiado que Jesus partilha unicamente com os seus discípulos.

Fica-se unicamente pela barca a estreita comunhão de Jesus com os seus discípulos. É mesmo só a comunhão que sai realçada, pois nada nos é dito sobre nenhum particular assunto de conversa durante a viagem. Saídos na barca da pressão da multidão, ei-los que, ao sair da barca, estão de novo no meio da multidão. E o narrador lá está para nos dizer que «Ele viu» (eîden) (Marcos 6,34). É a quinta vez, neste Evangelho, que o narrador nos diz que Jesus «viu» (Marcos 1,10; 1,16; 1,19; 2,14; 6,34).  A primeira vez, «viu» os céus abertos e o Espírito a descer (Marcos 1,10). A segunda vez, «viu» Simão e André (Marcos,1,16). A terceira vez, «viu» Tiago e João (Marcos 1,19). A quarta vez, «viu» Levi (Marcos 2,14). Nestas quatro primeiras vezes, este «ver» de Jesus desencadeia um agir novo e decisivo. Também agora, na quinta vez, o olhar de Jesus abre para uma página de sublime misericórdia (esplagchnísthê) (Marcos 6,34), que leva Jesus a reunir e abraçar aquela multidão de ovelhas sem pastor, e a ensiná-las demoradamente, dando resposta plena à preocupação de Moisés no deserto, à entrada da Terra Prometida, pedindo a Deus um novo guia «para que a comunidade do Senhor não seja como um rebanho sem pastor» (Números 27,17). Depois, Jesus repartirá com eles o pão. Primeiro, ensiná-los-á demoradamente. Depois, repartirá com eles o pão. O grão do espírito precede o grão de trigo.

Jeremias 23,1-6 constitui um marco, traça uma fronteira entre um tempo velho e a cair de podre, marcado por aquele «Ai (hôy) dos pastores que perdem e dispersam as ovelhas» (Jeremias 23,1), que retoma aquele «Ai» que arrasa o tirano rei Joaquim (609-597), e o toma como paradigma dos maus pastores (Jeremias 22,11 e 18). O grande profeta de Anatôt vê bem a ruína dos poderosos, mas vê e sente na própria pele também a desgraça que se abate sobre os pobres, porque não há pastores bons e justos que lhes indiquem os caminhos a seguir. Jeremias, o profeta do ramo de amendoeira (Jeremias 1,11), não pode ficar com os olhos enterrados na lama, mas já vê vir, lá ao longe, um «Gérmen justo» (tsemah tsaddîq), um pastor bom e justo, que trará a salvação, e o seu nome será «YHWH, nossa justiça» (YHWH tsidqenû) (Jeremias 23,6). Este nome novo, no plural, atinge e condena também o rei Sedecias (tsidqiyah) (597-587), cujo nome significa «YHWH, minha justiça», no singular, e que, devido aos seus cambalachos políticos entre a Babilónia e o Egito, acarretou sobre o povo de Judá o desastre de 587. Mas é sobretudo notório que o «Gérmen justo», que receberá o nome de «YHWH, nossa justiça», da descendência de David e que salvará o seu povo, aponta já para Jesus, o Bom e Belo Pastor, que sente compaixão pelas suas ovelhas, como se vê no Evangelho de hoje.

Na lição da Carta aos Efésios 2,13-18, Paulo põe diante de nós todos, judeus e pagãos, a ação salvadora e unificadora de Jesus Cristo. Nele, na sua Cruz, no seu Corpo, novo Templo, não há mais lugar para separações, cai o muro que, no velho Templo, separava o átrio dos pagãos do átrio dos judeus. Jesus Cristo, aproximando-se de todos, aproximou-nos a todos, os de longe e os de perto, destruiu ódios e toda a espécie de barreiras, e estabeleceu a Paz entre nós. O Evangelho, que é Cristo, une, reúne, enlaça, entrelaça, gera fraternidade. Bem à vista no Evangelho de hoje.

Quanto ao mais, todo o tempo é tempo para nos deixarmos conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom e Belo Pastor, cantando o Salmo 23. Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (shulhan), que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos… É a alegria da nossa família reunida. Confessou o filósofo francês Henri Bergson: «As centenas de livros que li nunca me trouxeram tanta luz e conforto como os versos do Salmo 23».

Deixamos já aberta a página que se segue no Evangelho de Marcos: o pão, o pão, o pão! No texto grego, original, o nome «Jesus» aparece em Marcos 6,30, para reaparecer depois só, 89 versículos depois, em Marcos 8,27. Escritura sublime: desaparece o nome «Jesus» e a paisagem textual enche-se com o nome «pão» (21 vezes). Claríssimo convite a aprendermos a ver Jesus no pão! Mas nos próximos cinco Domingos (XVII a XXI), não leremos Marcos, mas João 6, que contém o grande discurso do pão da vida.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 (Jer 23, 1-6)
        2. Leitura II do Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 (Ef 2, 13-18)
        3. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 – Oração Universal
        5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024

7Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. Mc 6,7

Viver a Palavra

            Ser amado, escolhido e destinatário da predileção de alguém é sempre momento de um contentamento humano profundo e de uma alegria e felicidade que nos calam fundo no coração. Se nas nossas relações interpessoais esta experiência é consoladora e gratificante, bem maior deveria ser a nossa alegria e júbilo por tomarmos consciência de que somos homens e mulheres profundamente amados por Deus. Além disso, não somos amados por Deus como recompensa pelos nossos méritos, pelas nossas boas ações ou pela atenção que lhe dispensamos. O amor de Deus é infinito, gratuito e prévio a qualquer iniciativa da nossa parte.

            No belíssimo hino que a Liturgia da Palavra nos oferece na segunda leitura, S. Paulo recorda-nos que somos abençoados por Deus por meio de Jesus Cristo e que Nele fomos escolhidos antes da criação do mundo. Somos obra das mãos de Deus e fomos inscritos desde o início no Seu desígnio universal de salvação. Deus escolhe-nos como escolheu Amós, Maria, os Doze Apóstolos, Paulo e tantos outros ao longo da história, porém a Sua escolha e eleição não é uma imposição, mas uma escolha da nossa liberdade, da nossa vida prenhe de possibilidades e decisões.

            Deus escolhe a nossa liberdade, retira-nos de uma vida autocentrada e egocêntrica e desafia o nosso comodismo e as nossas seguranças. Convoca-nos para a missão porque livremente O aceitamos seguir, nos deixamos seduzir pelo Seu amor e fizemos a experiência do encontro único, íntimo e decisivo com a Sua misericórdia.

            Ele envia-nos dois a dois como enviou os Doze Apóstolos, libertando-nos de uma opção missionária autocentrada. S. Gregório Magno, no seu comentário aos Evangelhos, ensina-nos que os discípulos são enviados dois a dois, porque são dois os mandamentos da caridade e só o amor a Deus e aos irmãos entrelaçados como um único amor numa dupla direção, poderá ser protagonista da nossa missão. Na verdade, estando sozinho, o homem é levado a duvidar até de si próprio. Ao invés, caminhar juntos, percorrer unidos a mesma estrada e levar o mesmo Senhor no coração constitui a primeira e grande pregação. A comunhão e unidade constroem e estruturam a missão. O enviado não é um aventureiro isolado, mas um promotor da comunhão.

            As indicações de Jesus para o caminho são precisas e radicais: «ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias, e não levassem duas túnicas». Nestas palavras de Jesus encontramos a certeza que na missão evangelizadora o mais importante a levar não são os bens materiais ou as nossas seguranças, mas a Palavra de Jesus que antecede, acompanha e aponta a missão. Contudo, que o sentido espiritual deste envio de Jesus não impeça de ver a radicalidade que estas palavras encerram. Jesus envia os discípulos desprovidos não apenas do supérfluo, mas mesmo do essencial que poderia tornar a missão humanamente mais eficiente e produtiva: provisões de comida para o alforge ou dinheiro na bolsa para fazer frente a qualquer necessidade urgente. Jesus situa a missão cristã dentro do radicalismo evangélico que testemunha que a nossa única segurança e providência se encontra em Jesus Cristo.

            Amados, escolhidos e enviados como testemunhas do amor e da misericórdia do Pai só podemos proclamar como Paulo: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo».in Voz Portucalense

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            O Domingo XV do Tempo Comum será dia de ordenações presbiterais na Diocese do Porto. O dia de ordenações para uma diocese é sempre dia de louvor e ação de graças ao Senhor da Messe que não cessa de enviar pastores para a Sua seara e que continua a conduzir a Igreja através de homens escolhidos para serem para os seus irmãos sinal de Cristo Cabeça e Pastor. As comunidades cristãs são convidadas a unirem-se neste dia de júbilo e de festa através da oração. É imperioso e necessário preparar este dia em comunhão orante, invocando sobre os neo-presbíteros o dom do Espírito Santo, podendo realizar-se momentos de oração comunitária agradecendo o dom dos que serão ordenados e pedindo ao Senhor que continue a despertar no coração dos jovens a docilidade de coração para o seguirem no ministério ordenado. As comunidades cristãs, sobretudo nas atividades de encerramento do ano catequético, podem organizar momentos de reflexão e testemunho vocacional, que ajudem as crianças, adolescentes e jovens a conhecer os diversos caminhos que o Senhor propõe para o serviço da Igreja e do Mundo.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Amós 7,12-15

Naqueles dias,
Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós:
«Vai-te daqui, vidente.
Foge para a terra de Judá.
Aí ganharás o pão com as tuas profecias.
Mas não continues a profetizar aqui em Betel,
que é o santuário real, o templo do reino».
Amós respondeu a Amasias:
«Eu não era profeta, nem filho de profeta.
Era pastor de gado e cultivava sicómoros.
Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse:
‘Vai profetizar ao meu povo de Israel’».

CONTEXTO

            Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C. (possivelmente, por volta de 762 a. C.), durante o reinado de Jeroboão II. É uma época de prosperidade económica e de estabilidade política: as conquistas de Jeroboão II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a entrada de tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e têxtil) desenvolveram-se significativamente… As habitações da burguesia urbana atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.

            A prosperidade e o bem-estar das classes favorecidas contrastavam, porém, com a miséria de uma parte significativa da população do país. O sistema de distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os direitos dos menos poderosos.

Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Mais ainda: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Javé misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé javista.

            É neste contexto que aparece o profeta Amós. Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é profeta de profissão; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra, o seu trabalho e a sua família e parte para o reino vizinho (Israel) para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época.

            O episódio que a primeira leitura deste décimo quinto domingo comum nos relata leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Trata-se de um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo com Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Javé. Mais tarde, Betel aparece como o local onde se reúne a assembleia de “todo o Israel” para “consultar Deus” (cf. Jz 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade (cf. Jz 20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz 21,2). Tudo isto reflete a importância cultual do lugar.

            Quando o Povo de Deus se dividiu em dois reinos, após a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do norte (Israel) potenciaram o culto em Betel, para impedir que os seus súbditos se deslocassem a Jerusalém, situada no reino inimigo do sul (Judá), para se encontrarem com Deus. Então, Betel transformou-se numa espécie de “santuário oficial” do regime, onde o culto era financiado, em grande parte, pelo próprio rei. O sacerdote que presidia ao culto era uma espécie de “funcionário real”, encarregado de zelar para que os interesses do rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos fiéis de Israel. Na época em que Amós exerce o seu ministério profético em Betel, o sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias.

Betel foi, portanto, um dos lugares onde se ouviu a denúncia profética de Amós. Aí o profeta criticou as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente; aí denunciou um culto que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas corruptos dos poderosos.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O nosso caminho de todos os dias está semeado de obstáculos que nos fazem tropeçar, que nos mergulham no medo, que nos roubam a esperança. Sentimo-nos, a cada passo, inseguros e desprotegidos, sem saber por onde vamos e que garantias temos de chegar a porto seguro. Nesses momentos lembramo-nos de Deus e perguntamo-nos por onde andará Ele… Será que Deus desistiu de nós? Será que Ele fica indiferente diante dos nossos pequenos e grandes dramas? Será que Deus se recusa a interferir na história dos homens e assiste às nossas escolhas erradas sem mexer um dedo? O fenómeno profético diz-nos que Deus não se alheou da história e da vida dos seres humanos. Através dos “profetas”, Ele continua a vir ao nosso encontro, a falar-nos, a indicar-nos caminhos, a tentar dissuadir-nos de escolher caminhos de violência e de morte, a apontar-nos o sem sentido dos nossos valores errados, a abrir-nos horizontes de esperança. Os profetas são a voz e o rosto da solicitude de Deus pelos seus queridos filhos e filhas que peregrinam na terra. Estamos dispostos a escutar os profetas que nos trazem as indicações e propostas de Deus, mesmo quando a mensagem que proclamam vai contra a corrente e exige de nós tomadas de posição incómodas?
  • O profeta é um homem de Deus. Escolhido por Deus, chamado por Deus, enviado por Deus, legitimado por Deus, o profeta tem Deus como a sua referência fundamental. Nenhuma pessoa se torna profeta por iniciativa própria ou para veicular propostas próprias. O profeta existe a partir de Deus e em função do serviço de Deus. Por isso, para ser um verdadeiro profeta, Ele deve manter uma ligação fundamental a Deus: deve escutar Deus e manter com Deus um diálogo permanente, a fim de conseguir discernir os projetos de Deus, antes de ir dizê-los aos homens. O profeta é, portanto, o homem da oração e da escuta da Palavra de Deus. Tem de manter uma ligação muito forte a Deus. Ora, nós crentes fomos constituídos profetas pelo Batismo. Foi-nos confiada a missão de dar testemunho de Deus e dos seus planos no mundo. Deus é a nossa referência? Encontramos tempo para falar com Ele, para escutar a sua Palavra, para tentar discernir os seus projetos?
  • Amasias é o homem comodamente instalado nos seus privilégios e benesses, que cala a voz da própria consciência porque tem muito a perder e não quer arriscar; Amós é o profeta livre da preocupação com os bens materiais, que não está preocupado com a defesa dos próprios interesses, mas sim com a defesa intransigente dos interesses dos pobres e marginalizados, que são os interesses de Deus. A diferença entre os dois é a diferença entre aquele para quem os valores materiais são a prioridade fundamental e aquele para quem os valores de Deus são a prioridade fundamental. O verdadeiro profeta não pode colocar os bens materiais como a sua prioridade fundamental; se isso acontecer, perderá a sua liberdade profética e tornar-se-á um escravo de quem lhe paga. Enquanto profetas, quais são as nossas prioridades? Os interesses materiais, a salvaguarda da nossa posição ou da nossa imagem, a vontade de não ferir suscetibilidades, o comodismo e a instalação alguma vez nos impediram de cumprir a nossa missão profética?
  • Este texto fala-nos também da promiscuidade entre a religião e o poder. Trata-se de uma combinação que não produz bons frutos (como, aliás, a história da Igreja tem demonstrado nas mais diversas épocas e lugares). A Igreja, para poder exercer com fidelidade a sua missão profética, tem de evitar colar-se aos poderosos e depender deles, sob pena de ser infiel à missão que Deus lhe confiou. Uma Igreja que está preocupada em não incomodar o poder para manter privilégios fiscais, ou para continuar a receber dinheiro para as instituições que tutela, será uma Igreja escrava, de mãos atadas, dependente, que está longe de Jesus Cristo e da sua proposta libertadora. Como vemos a missão profética que a Igreja é chamada a viver no mundo? Na nossa avaliação, essa missão vai-se cumprindo sem desvios nem transigências, na fidelidade radical ao Evangelho de Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)

Refrão 1: Mostrai-nos, Senhor, o vosso amor
e dai-nos a vossa salvação.

Refrão 2: Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia.

 

Deus fala de paz ao seu povo e aos seus fiéis
e a quantos de coração a Ele se convertem.
A sua salvação está perto dos que O temem
e a sua glória habitará na nossa terra.

Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade,
abraçaram-se a paz e a justiça.
A fidelidade vai germinar da terra
e a justiça descerá do Céu.

O Senhor dará ainda o que é bom,
e a nossa terra produzirá os seus frutos.
A justiça caminhará à sua frente
e a paz seguirá os seus passos.

LEITURA II – Efésios 1,3-14

Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que do alto dos Céus nos abençoou
com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo.
N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis,
em caridade, na sua presença.
Ele nos predestinou, de sua livre vontade,
para sermos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo,
para que fosse enaltecida a glória da sua graça,
com a qual nos favoreceu em seu amado Filho.
N’Ele, pelo seu sangue,
temos a redenção, a remissão dos pecados.
Segundo a riqueza da sua graça,
que Ele nos concedeu em abundância,
com plena sabedoria e inteligência,
deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade:
segundo o beneplácito que n’Ele de antemão estabelecera,
para se realizar na plenitude dos tempos:
instaurar todas as coisas em Cristo,
tudo o que há nos Céus e na terra.
Em Cristo fomos constituídos herdeiros,
por termos sido predestinados,
segundo os desígnios d’Aquele que tudo realiza
conforme a decisão da sua vontade,
para servir à celebração da sua glória,
nós que desde o começo esperámos em Cristo.
Foi n’Ele que vós também,
depois de ouvirdes a palavra da verdade,
o Evangelho da vossa salvação,
abraçastes a fé e fostes marcados pelo Espírito Santo prometido,
que é o penhor da nossa herança,
para a redenção do povo que Deus adquiriu
para louvor da sua glória.

CONTEXTO

            A cidade de Éfeso, capital da Província romana da Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor, a cerca de três quilómetros a sudoeste da moderna Selçuk, na província de Esmirna (Turquia). Era um dos principais centros comerciais e religiosos do mundo antigo. O seu importante porto e a sua numerosa população faziam de Éfeso uma cidade florescente. Era famosa pelo templo de Artémis, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo, e pelo imponente teatro, que levava cerca de 25.000 pessoas.

            Paulo passou em Éfeso no final da sua segunda viagem missionária (cf. Act 18,19-21). Mas foi mais tarde, durante a sua terceira viagem missionária, que ele se deteve na cidade (cf. At 19,1). Encontrou lá alguns cristãos escassamente preparados. Paulo procurou instruí-los e dar-lhes uma adequada formação cristã. De acordo com o Livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano” (At 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23). Paulo viveu em Éfeso alguns momentos delicados, como o tumulto que se levantou contra ele quando foi acusado pelos comerciantes efésios de estar a destruir a fé em Artémis, pondo em causa o negócio de imagens da deusa (cf. Ef 19,23-40). Ainda de acordo com o autor dos Atos, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso.

            Curiosamente, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.

            Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.

            Alguns veem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que Paulo considerava ter terminado a sua missão no oriente. O tema mais importante da carta aos Efésios é aquilo que o autor chama “o mistério”: trata-se do projeto salvador de Deus, definido e elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no mundo pela Igreja.

            O texto que nos é hoje proposto aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Pertence ao género da “bênção”, muito frequente na liturgia judaica. Expressa o louvor e o reconhecimento pelo maravilhoso projeto de salvação que Deus pôs em marcha. O hino tem uma estrutura trinitária: refere o projeto do Pai (cf. Ef 1,3-6), concretizada pelo Filho (cf. Ef 1,7-12), e selado do Espírito (cf. Ef 1,13-14).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Em pleno séc. XXI temos consciência, mais do que em qualquer outra época da história, das dimensões inabarcáveis deste universo, sempre em contínua expansão, onde Deus nos colocou. E nós, ao olhar para a imensidão do cosmos, sentimos especialmente a nossa pequenez de criaturas, finitas e limitadas; sentimo-nos pequenos grãos de pó perdidos num espaço cujos contornos nunca conseguiremos totalmente abarcar. Qual o nosso lugar e o nosso papel nesta fantástica arquitetura de Deus? Qual o nosso lugar no projeto de Deus para o universo? A propósito de tudo isto, o autor da Carta aos Efésios diz-nos algo muito belo e motivador: não somos um acidente de percurso na evolução inexorável do cosmos, nem somos imprestáveis grãos de pó perdidos na imensidão do universo; mas somos atores principais de uma história de amor que o nosso Deus sonhou e quis viver connosco… Deus “elegeu-nos” desde sempre, deu-nos um papel e um lugar centrais no seu projeto; e, ao longo da história, nunca se cansou de vir ao nosso encontro e de procurar relacionar-se connosco. No meio das nossas desilusões e dos nossos sofrimentos, da nossa finitude e do nosso pecado, dos nossos medos e dos nossos dramas, não esqueçamos que somos filhos amados de Deus, a quem Ele oferece continuamente a Vida definitiva, a verdadeira felicidade. Esta certeza alimenta a nossa peregrinação pela terra? Somos gratos a Deus por nos ter escolhido e amado, louvamo-l’O pela sua bondade e pelo seu amor?
  • De acordo com o autor da Carta aos Efésios, Deus “elegeu-nos… para sermos santos e irrepreensíveis”. Os “santos” são aqueles que pertencem ao Deus santo, são aqueles que Deus chamou e consagrou para o seu serviço. Ora, essa consagração a Deus tem sempre implicações práticas. Requer que vivamos atentos a Deus, procurando descobrir e acolher os projetos que Ele tem para nós e para o mundo; implica procurarmos concretizar esses projetos, com verdade, fidelidade e radicalidade… Caminhamos pela vida conscientes desse chamamento que nos é feito à santidade? No meio das solicitações do mundo e das exigências da nossa vida profissional, social e familiar, conseguimos encontrar tempo para Deus, para dialogar com Ele e para tentar perceber os seus projetos e propostas? Temos disponibilidade e vontade de concretizar a “obra de Deus”, mesmo quando ela não parece conciliável com os nossos interesses pessoais?
  • O hino da Carta aos Efésios que a liturgia deste domingo nos trouxe afirma a centralidade de Cristo nesta história de amor que Deus quis viver connosco… Jesus veio ao nosso encontro, mostrou-nos o amor que o Pai nos tem e deu-nos a conhecer o “mistério” da sua vontade. Ele apontou-nos o caminho que devemos percorrer para nos tornarmos “filhos de Deus”, herdeiros da Vida eterna. Cristo, o nosso irmão, o Deus que se fez um de nós e caminhou no meio de nós, é a nossa grande referência. Estamos conscientes disso e caminhamos atrás de Jesus, sem o perder de vista? As suas palavras e os seus gestos são para nós a suprema indicação do caminho que devemos percorrer? Aqueles que caminham pelo mundo ao nosso lado encontram nos nossos gestos e atitudes sinais vivos do amor de Deus revelado em Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 6,7-13

Naquele tempo,
Jesus chamou os doze Apóstolos
e começou a enviá-los dois a dois.
Deu-lhes poder sobre os espíritos impuros
e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho,
a não ser o bastão:
nem pão, nem alforge, nem dinheiro;
que fossem calçados com sandálias,
e não levassem duas túnicas.
Disse-lhes também:
«Quando entrardes em alguma casa,
ficai nela até partirdes dali.
E se não fordes recebidos em alguma localidade,
se os habitantes não vos ouvirem,
ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés
como testemunho contra eles».
Os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento,
expulsaram muitos demónios,
ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos.

CONTEXTO

            Desde os primeiros instantes do seu ministério apostólico, Jesus aparece rodeado de discípulos. Esses discípulos – alguns pescadores do lago de Tiberíades, um cobrador de impostos chamado Mateus, um zelote chamado Simão, entre outros – formavam um grupo bastante heterogéneo. Eram homens e mulheres de origens diversas que tinham abandonado, pelo menos durante algum tempo, as suas casas, as suas famílias, as suas profissões, para acompanhar Jesus na sua atividade de profeta itinerante, pelas aldeias e vilas da Galileia. Eles seguiam Jesus, partilhavam a Sua vida, escutavam a mensagem que Ele ia repetindo de terra em terra, admiravam-se com os gestos curadores que Ele fazia, surpreendiam-se com a forma como Ele acolhia os pecadores e aqueles que a sociedade condenava, ajudavam-no a acolher as multidões… No final de cada dia, depois de a multidão ter ido embora, eles sentavam-se com Jesus e conversavam longamente… Era com eles que Jesus partilhava, de forma mais próxima, o seu sonho do Reino de Deus.

            No entanto, estes discípulos não eram apenas os companheiros de jornada de Jesus na etapa da Galileia. Aos poucos, Jesus ia-os preparando para serem seus colaboradores na construção do Reino de Deus. Aliás, Ele tinha dito aos primeiros que O seguiram que contava com eles para serem “pescadores de homens” (Mc 1,17). A tarefa que lhes ia ser confiada consistia em libertar do mar do sofrimento, da opressão e da morte todos os homens e mulheres que aí estivessem mergulhados. Na verdade, tratava-se da mesma missão que o Pai do céu confiara a Jesus: proclamar a salvação de Deus a todos aqueles que necessitam de ser salvos.

            A dada altura, de entre todos os discípulos que O seguiam, Jesus escolheu um grupo especial de doze. Eram, de entre os discípulos, o núcleo mais importante, os mais chegados a Jesus. Jesus chamou-os “para estarem com Ele e para os enviar a proclamar, com autoridade para expulsar os demónios” (Mc 3,14-15). A esses doze Marcos chama “apóstolos” (“enviados”). O número doze é simbólico. Era o número das doze tribos de Israel. Ao constituir este grupo de doze apóstolos, Jesus estaria a sinalizar o nascimento de um novo Povo de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A questão central, incontornável, no evangelho deste décimo quinto domingo comum é que Jesus associa os seus discípulos à missão que o Pai lhe confiou: anunciar, testemunhar, construir o Reino de Deus. Os discípulos que seguem Jesus e que o acompanham desde a Galileia a Jerusalém não são uma associação pia que se reúne de quando em quando para um momento de oração, mas são homens e mulheres com que Jesus conta e que Jesus envia para serem arautos de um mundo novo, de um mundo transformado. Trata-se de uma realidade que nós, discípulos de Jesus, não deveríamos esquecer. O nosso seguimento de Jesus concretiza-se na missão, uma missão que implica testemunho e intervenção no mundo. Como é que encaramos o nosso compromisso com Jesus e com o seu projeto? Somos cristãos de rituais, que se limitam a “espreitar” Jesus em certos momentos de oração e de celebração comunitária dentro dos espaços protegidos dos nossos templos, ou somos discípulos comprometidos, que aceitam ser enviados às periferias da vida para testemunhar e construir, com gestos concretos, o Reino de Deus?
  • Qual é a missão dos discípulos de Jesus? É libertar e curar; é lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem, que o impede de ser feliz, que lhe rouba a Vida. É uma missão sempre atual, sempre necessária. O nosso mundo mantém estruturas que geram guerra, violência, terror, morte: a missão dos discípulos de Jesus é desmontá-las; o nosso mundo aposta em “valores” – frequentemente apresentados como o “último grito” da moda, do avanço cultural ou científico, das conquistas civilizacionais – que produzem escravidão, alienação, sofrimento: a missão dos discípulos de Jesus é recusá-los e denunciá-los; o nosso mundo aceita esquemas de exploração – disfarçados de sistemas económicos geradores de bem estar – que criam miséria, marginalização, debilidade: a missão dos discípulos de Jesus é combatê-los; o nosso mundo pactua com ideologias desumanas, que potenciam o racismo, a exclusão, a indiferença: a missão dos discípulos de Jesus é contestá-las. Aceitamos estes desafios?
  • Jesus é a fonte, o inspirador e o modelo de ação dos seus enviados. É de Jesus que eles recebem autoridade para se apresentarem ao mundo como arautos do Reino. Eles devem atuar ao estilo de Jesus, com o amor e a solicitude de Jesus, dando testemunho, com gestos concretos, da ternura e da bondade de Deus para com todos os seus filhos. Eles não atuam em nome próprio nem proclamam as suas teorias pessoais, mas propõem o Evangelho de Jesus, o Evangelho do Reino. Ora, para que isso seja possível, esses enviados têm de manter-se vinculados a Jesus. Têm de manter com Ele uma relação viva, próxima, apaixonada, alimentada pelo encontro pessoal com Jesus. Se isso não acontecer, esses enviados facilmente se tornam gestores egoístas de projetos pessoais ou funcionários descomprometidos que executam um trabalho mecânico e sem alma. Nós, discípulos e enviados de Jesus, mantemo-nos ligados a Ele? Renovamos cada dia a nossa adesão a Ele e ao seu projeto? Confrontamo-nos com a sua Palavra e deixamo-nos questionar por ela? Encontramo-nos com Jesus e os outros irmãos da comunidade à mesa da Palavra e do Pão e acolhemos a Vida que Ele nos oferece e que somos convidados a levar ao mundo?
  • Jesus apenas autoriza os seus enviados a levarem para o caminho um cajado, sandálias e uma túnica. Ele considera que quanto mais livres e despojados os discípulos se apresentarem, mais convincentes serão como testemunhas do Reino de Deus. No entanto, esta lógica parece ainda não nos ter convencido… Vinte e um séculos depois de Jesus, continuamos a interessar-nos por postos e lugares que nos assegurem autoridade e poder; continuamos a agarrar títulos que possam dar-nos prestígio social; continuamos a montar estruturas e estratégias que nos proporcionem visibilidade e capacidade de intervenção; continuamos a procurar recursos económicos que financiem os nossos projetos e nos permitam combater os “filhos das trevas”. É evidente que vivemos neste mundo e temos de ser realistas… Mas, em última análise, a abundância de meios será útil ou será prejudicial para a causa do Reino de Deus? A preocupação com o “ter” não roubará aos discípulos espaço, disponibilidade e liberdade para se lançarem na aventura do anúncio do Reino? A preocupação com os bens materiais, com as honras e privilégios, não poderá levar os discípulos a calarem-se perante a maldade e a injustiça, a fim de preservarem os seus interesses económicos e os seus benefícios particulares?
  • O testemunho e a construção do Reino de Deus são o grande desafio que Jesus deixou aos seus seguidores. No entanto, todos nós, discípulos de Jesus, sabemos como é difícil que o nosso testemunho seja escutado e acolhido. Sentimos que temos uma ótima proposta para apresentar, mas que essa proposta nem sempre encontra o acolhimento que merece; parece que, por muito que nos esforcemos, o “mundo” não está interessado no testemunho que damos de Jesus. Porquê? A culpa é da sociedade e dos valores vigentes, ou é da forma como damos testemunho? O que é que torna pouco convincente e pouco credível aquilo que anunciamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura ter em atenção as palavras de mais difícil pronunciação e menos usuais: Amasias (deve ler-se: Amazias); Betel (deve ler-se: Betél) e Sicómoros (deve acentuar-se apenas a sílaba tónica: ).

            A segunda leitura é um hino litúrgico das primeiras comunidades cristãs de louvor e ação de graças. A sua proclamação deve ser feita com a solenidade de um hino, mas também com atenção às pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

EXCESSO DE MEIOS, MÍNGUA DE FINS

            O Evangelho deste Domingo XV do Tempo Comum, que narra o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13), situa-se estrategicamente entre a rejeição de Jesus na sua pátria (Marcos 6,1-6) e o martírio de João Batista (Marcos 6,14-29). O contexto é, pois, claro, intenso e dramático acerca do destino dos missionários: entre a rejeição e martírio. Mas este destino sai ainda acentuado se tivermos em conta que o martírio do João Batista (Marcos 6,14-29) está colocado entre o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13) e o seu regresso (Marcos 6,30). Dado o contexto, não é possível evitar o entrelaçamento de destinos de Jesus, João Batista e os missionários. Em todos os casos, a rejeição e o martírio derivam do facto de as pessoas (nós) não acreditarem que a missão (claríssimo no caso de Jesus) provém de Deus!

            Mas este envio em missão dos «Doze» também não pode deixar de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em que, do cimo da montanha, Jesus chama os que quer (fórmula de eleição), deles faz «Doze» (belíssima fórmula de criação), para estarem com Ele (fórmula de aliança e de assistência), e, finalmente, para Ele os enviar (fórmula de missão). Bem se vê que o texto deste Domingo torna operativo este último aspeto, sem anular, diminuir ou diluir aquele fortíssimo «estar com Ele». Na verdade, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (Marcos 6,30), que é assim apresentado como o marco e a referência fundamental da vida deles e da nossa.

            Quer através dos verbos narrativos, quer dos elocutivos, fica claro que a iniciativa da missão dos «Doze» é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão: é Ele que chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade para o serviço da missão (Marcos 6,7-8), que define a leveza do equipamento (Marcos 6,8-10) e o comportamento a assumir no serviço da missão (Marcos 6,10-11). Note-se bem aquelas levíssimas recomendações negativas: nada para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro (Marcos 6,8). É fácil de ver que estas disposições tornam os «Doze» mais pobres, materialmente falando, do que os destinatários a quem são enviados. Assumidamente, não é o volume das coisas a medida do mundo dos discípulos de Jesus.

            Este despojamento, ou empobrecimento, ou leveza, está na base da credibilidade da mensagem que devem transmitir. O narrador anota no final que os «Doze» cumpriram as diretivas de Jesus (Marcos 6,12-13). Bela maneira de testemunhar que o dizer de Jesus tem, sobre os missionários, carácter performativo: na verdade, não tendo nada de próprio para oferecer, limitam-se a desempenhar o encargo recebido e a transmitir a mensagem a eles confiada. O uso do verbo «anunciar» (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas ser simplesmente arautos ou mensageiros transparentes do seu Senhor, define os «Doze» como completamente dependentes de Jesus. E a exiguidade do equipamento é para realçar a absoluta importância da mensagem, e que não se podem ocupar de nenhum outro negócio.

            A lição do profeta Amós (7,12-15), que hoje temos também a graça de escutar, ilustra bem o Evangelho de hoje. Amós era provavelmente um importante criador de gado e agricultor bem-sucedido ao serviço do grande rei Ozias (787-736), sem dúvida o maior rei de Judá em termos de visão política e desenvolvimento, grande amante da terra e que em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver na descrição do Cronista (2 Crónicas 26,10). Amós seria, como diz a maioria dos estudiosos de hoje, um alto funcionário agrícola de Ozias. Mas quando Deus «pegou» nele, também Amós se despiu da riqueza da sua vida regalada e bem-sucedida, e foi para o Reino de Israel, do Sul para o Norte, equipado apenas com a mensagem que Deus o incumbiu de anunciar. Amós tinha, portanto, a sua profissão de grande agricultor e criador de gado, que lhe assegurava uma vida tranquila e sem percalços. Mas foi-lhe por Deus dada uma vocação e confiada uma missão. Nesse dia, acaba o profissional, o funcionário, e nasce o profeta. «Profeta» não é uma profissão, uma função ou uma herança. Não passa de pai para filho. É uma vocação e uma missão. E é a Palavra de Deus que, irrompendo sobre alguém, marca um final e um começo novo, constituindo-o profeta: «Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor…» (Amós 7,14-15).

            Também São Paulo é modelo insigne de quem se sabe amado e escolhido por Deus desde a eternidade, desde antes de antes (Efésios 1,3-14). Por isso, não resmunga, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir e amar de coração inteiro.

            João Batista, Jesus, os «Doze», Amós, Paulo, os missionários. São todos figuras em contracorrente de uma sociedade rica, insensível, anestesiada, medicada, dormente, autossuficiente, auto referente e indiferente. Porque sabe que é rica, é que se sente agora em crise! Estranha crise. Os textos de hoje ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de Deus. Só, de facto, Deus, Primeiro e Último, pode pôr em crise o segundo e penúltimo. Infelizmente, a crise que por aí anda parte do penúltimo e quer pôr em crise o Último. Edmund Pellegrino, médico e filósofo da medicina, recentemente falecido (2013), já nos tinha advertido seriamente que, no campo da medicina, há excesso de meios e míngua de fins. Mas podemos, sem medo de errar, alargar a análise de Edmund Pellegrino a todas as áreas da nossa sociedade de hoje, e dizer que vivemos na «noite do mundo», mergulhados numa cultura de excesso de meios e míngua de fins!

            Escutemos, por isso, mais um pequeno extrato da Palavra pertinente do Profeta de hoje: «Eis que virão dias, oráculo do Senhor, em que enviarei a fome à terra; não fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor. Cambalearão de um mar a outro mar, andarão errantes do Norte até ao nascente, à procura da Palavra do Senhor, mas não a encontrarão» (Amós 8,11-12).

            O Salmo 85 é um canto de júbilo pela restauração pós-exílica operada por Deus em favor do seu Povo maravilhado e agradecido. Com Deus, que vem viver e caminhar connosco, vem a paz, a justiça, a verdade, a fidelidade, a salvação, o bem. A nossa terra exulta. O nosso coração exulta. Mas também hoje podemos cantar esta ação maravilhosa de Deus, que sabe sempre renovar a nossa vida e a nossa história, mesmo quando, em pleno exílio, pouco vemos. O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), já nos lembrava, há uns anos, que «estamos a perder a capacidade de cantar». E o famoso poeta inglês John Milton (1608-1674) lerá assim os versos 9-14 do nosso Salmo 85 numa Ode natalícia, datada de 1629: «Sim, Fidelidade e Justiça, então, / voltarão para junto dos homens, / envoltas num arco-íris, e, gloriosamente vestida, / a Bondade sentar-se-á no meio…/ E o céu, como para uma festa, / escancarará as portas do seu palácio excelso». Em consonância com Isaías, que grita: «Destilai, céus, lá do alto, e que as nuvens façam chover a justiça, que se abra a terra e germine a salvação, e ao mesmo tempo faça brotar a justiça». E a assinatura: «Eu, o Senhor, criei isto!» (Isaías 45,8). Mundo novo à vista.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 (Am 7, 12-15)
        2. Leitura II do Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 (Ef 1, 3-14)
        3. Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 – Oração Universal
        5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024

1E partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. 2Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? 3Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso.
4Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.» 5E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. 6Estava admirado com a falta de fé daquela gente. Mc 6, 1-6

Viver a Palavra

            Se há marca que perpassa todo o Evangelho ao longo dos séculos é a da estupefação. O evangelho que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe é exemplo acabado disso. Os habitantes de Nazaré estão admirados com tudo o que sai da boca de Jesus e com a novidade que brota do Seu ensinamento. Jesus espanta-se com a falta de fé daquela gente. E nós, dois mil anos depois, estamos estupefactos com a resistência de coração dos patrícios de Jesus e com a atitude do «carpinteiro, Filho de Maria» que devido à fala de fé daquela gente opera apenas algumas curas e segue o Seu caminho.

            O entusiasmo desvanece facilmente e, no itinerário crente, desafia à fidelidade que se constrói pela perseverança e pela capacidade de se deixar surpreender pelo devir dos dias e pela banalidade do nosso quotidiano. Os habitantes de Nazaré ao ouvirem Jesus não conseguem esconder o espanto pelas palavras que Ele dirige e, ao verem os Seus milagres, não conseguem ficar indiferentes aos prodígios por Ele realizados. Contudo, depressa passam do assombro ao menosprezo: «De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?».

            Jesus abre o Seu coração e manifesta o seu descontentamento: «Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa». Todo o desprezo e rejeição são difíceis gerir, porém, o desprezo daqueles que nós conhecemos, que viveram e conviveram connosco e que nos viram crescer, torna-se assim mais difícil de gerir.

            Mas Jesus é mesmo o «carpinteiro, filho de Maria», o «irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão» e «as suas irmãs estão aqui entre nós». Como é que algo de tão maravilhoso e espantoso pode acontecer na vida de quem conhecemos tão bem, de quem vimos crescer, até ajudamos a andar e pegamos Nele ao colo? É o espanto do mistério da incarnação! Deus faz-se homem, assume a nossa frágil humanidade e percorre os caminhos da nossa história. Em Jesus Cristo, Deus diz-se em linguagem humana e revela-se com mãos de carpinteiro, com sede e com fome, cansado e sofredor. Mas como é belo e consolador contemplar um Deus que toma a iniciativa de se dar a conhecer assumindo as alegrias e esperanças, os dramas e sofrimentos de cada homem e de cada mulher.

            É fácil ficar admirado e espantado com um Deus que põe os cegos a ver, os coxos a andar, que ressuscita os mortos, que manda calar os ventos e as tempestades… Contudo, o nosso caminho de fé, ainda que possa ter início com um evento marcante e surpreendente, alimenta-se, cresce e fortalece-se no encontro com Jesus Cristo no quotidiano da nossa existência.

            Amar e reconhecer a divindade de Jesus Cristo exige entrar no mistério da Sua humanidade. Mais, implica reconhecer que a nossa humanidade não é um obstáculo à graça de Deus e ao Seu amor mas o lugar concreto onde ela se revela e manifesta. Aqui está presente, muitas vezes, o conflito entre quotidiano e profecia. Que o profeta seja um homem extraordinário e carismático, já o esperávamos. Mas que o profeta tenha um passado que conhecemos bem, que essa profecia esteja plasmada de quotidiano e tenha habitado uma oficina de carpinteiro, isso já parece mais difícil.

            Creio que este é um dos maiores desafios para a nossa vida de fé: acolher a presença de Deus na banalidade dos dias e no quotidiano da nossa existência e ser capaz de fazer da nossa vida toda e de toda a nossa vida o lugar onde Deus se faz presente, vivo e atuante na história. in Voz Portucalense

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Ez 2,2-5

Leitura da Profecia de Ezequiel

Naqueles dias,
o Espírito entrou em mim e fez-me levantar.
Ouvi então Alguém que me dizia:
«Filho do homem,
Eu te envio aos filhos de Israel,
a um povo rebelde que se revoltou contra Mim.
Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje.
É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado
que te envio, para lhes dizeres:
‘Eis o que diz o Senhor’.
Podem escutar-te ou não
– porque são uma casa de rebeldes -,
mas saberão que há um profeta no meio deles».

CONTEXTO

            Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte dessa primeira leva de exilados que, em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilónia.
A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor e uma nova leva de exilados foi encaminhada para a Babilónia). Nesta fase, o profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Jahwéh por parte desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.

            A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrolou-se a partir de 586 a.C. e prolongou-se até cerca de 570 a.C. Instalados numa terra estrangeira, privados de Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados estavam desiludidos e duvidavam de Jahwéh e do compromisso que Deus tinha assumido com o seu Povo. Nessa fase, Ezequiel procurou alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador não tinha abandonado nem esquecido o seu Povo.

            O texto que nos é proposto hoje como primeira leitura faz parte do relato da vocação de Ezequiel (cf. Ez 1,1-3,27). Depois de descrever a manifestação de Deus, num quadro que apresenta todas as características especiais das teofanias (cf. Ez 1,1-28), o profeta apresenta um discurso no qual Jahwéh define a missão que lhe vai confiar (cf. Ez 2,1-3,15). O episódio é situado “no quinto ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na Caldeia, nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2).

            Seria um erro interpretar este relato como informação biográfica… Trata-se, antes, de mostrar – com a linguagem da época e utilizando os processos típicos da literatura da época – que o profeta recebeu uma missão de Deus e que fala e atua em nome de Deus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Os “profetas” não são um grupo humano extinto há muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde estão eles?
  • No Batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de Cristo. Cada um de nós tem a sua história de vocação profética: de muitas formas Deus entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta positiva à sua proposta. Temos consciência de que Deus nos chama – às vezes de formas bem banais – à missão profética? Estamos atentos aos sinais que Ele semeia na nossa vida e através dos quais Ele nos diz, dia a dia, o que quer de nós? Temos a noção de que somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus se dirige aos homens?
  • O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que Ele tem para o mundo, e confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a distância que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que desfeiam o nosso mundo? Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer a minha vocação profética?
  • A denúncia profética implica, tantas vezes, a perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte (Óscar Romero, Luther King, Gandhi…). Como lidamos com a injustiça e com tudo aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça, alguma vez nos impediram de ser profetas?
  • É preciso ter consciência, também, que as nossas limitações e indignidades muito humanas não podem servir de desculpa para realizar a missão que Deus quer confiar-nos: se Ele nos pede um serviço, dar-nos-á também a força para superar os nossos limites e para cumprir o que nos pede. As fragilidades que fazem parte da nossa humanidade não podem, em nenhuma circunstância, servir de desculpa para não cumprirmos a nossa missão profética no meio dos nossos irmãos. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 122 (123)

Refrão: Os nossos olhos estão postos no Senhor, até que Se compadeça de nós.

 

Levanto os olhos para Vós,
para Vós que habitais no Céu,
como os olhos do servo
se fixam nas mãos do seu senhor.

Como os olhos da serva
se fixam nas mãos da sua senhora,
assim os nossos olhos se voltam para o Senhor nosso Deus,
até que tenha piedade de nós.

Piedade, Senhor, tende piedade de nós,
porque estamos saturados de desprezo.
A nossa alma está saturada do sarcasmo dos arrogantes
e do desprezo dos soberbos.

LEITURA II – 2Cor 12,7-10

Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Para que a grandeza das revelações não me ensoberbeça,
foi-me deixado um espinho na carne,
– um anjo de Satanás que me esbofeteia –
para que não me orgulhe.
Por três vezes roguei ao Senhor que o apartasse de mim.
Mas Ele disse-me: «Basta-te a minha graça,
porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder».
Por isso, de boa vontade me gloriarei das minhas fraquezas,
para que habite em mim o poder de Cristo.
Alegro-me nas minhas fraquezas,
nas afrontas, nas adversidades,
nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo,
porque, quando sou fraco, então é que sou forte.

CONTEXTO

            A Segunda Carta de Paulo aos Coríntios espelha uma época de relações conturbadas entre Paulo e os cristãos de Corinto. As críticas de Paulo a alguns membros da comunidade que levavam uma vida pouco consentânea com os valores cristãos (Primeira Carta aos Coríntios) provocaram uma reação extremada e uma campanha organizada no sentido de desacreditar Paulo. Essa campanha foi instigada por certos missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo. Entre outras coisas, esses missionários afirmavam que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter convivido com Jesus e que a catequese apresentada por Paulo não estava em consonância com a doutrina da Igreja. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. Depois, bastante magoado, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar a reconciliação.
Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.

            Reconfortado, Paulo escreveu uma tranquila apologia do seu apostolado, à qual juntou um apelo em favor de uma coleta para os pobres da Igreja de Jerusalém. Esse texto é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Estamos no ano 56 ou 57.

            O texto que nos é proposto integra a terceira parte da carta (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Aí Paulo, num estilo apaixonado, às vezes cáustico, mas sempre levado pela exigência da verdade e da fé, defende a autenticidade do seu ministério frente a esses “super-apóstolos” que o acusavam.

            Como apóstolo, Paulo não se sente inferior a ninguém e muito menos aos seus detratores. Estes orgulhavam-se das suas credenciais e afirmavam por toda a parte os seus dons carismáticos… Paulo, se quisesse entrar no mesmo jogo, podia orgulhar-se de muitas coisas, nomeadamente das revelações que recebeu e das suas experiências místicas (cf. 2 Cor 12,1-4); mas ele quer apenas que o vejam como um homem frágil e vulnerável, a quem Deus chamou e a quem enviou para dar testemunho de Jesus Cristo no meio dos homens. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O caso pessoal de Paulo diz-nos muito sobre os métodos de Deus… Para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar a sua proposta de salvação, Deus não utiliza métodos espetaculares, poderosos, majestosos, que se impõem de forma avassaladora e que deixam uma marca de estupefação e de espanto na memória dos povos; mas, quase sempre, Deus utiliza a fraqueza, a debilidade, a fragilidade, a simplicidade para nos dar a conhecer os seus caminhos. Nós, homens e mulheres do séc. XXI, deixamo-nos, facilmente, impressionar pelos grandes gestos, pelos cenários magnificentes, pelas roupagens sumptuosas, por tudo o que aparece envolvido num halo cintilante de riqueza, de prestígio social, de poder, de beleza; e, por outro lado, temos mais dificuldade em reparar naquilo que se apresenta pobre, humilde, simples, frágil, débil… A Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante-nos que é na fraqueza que se revela a força de Deus. Precisamos de aprender a ver o mundo, os homens e as coisas com os olhos de Deus e a descobrir esse Deus que, na debilidade, na simplicidade, na pobreza, na fragilidade, vem ao nosso encontro e nos indica os caminhos da vida.
  • A consciência de que as suas qualidades e defeitos não são determinantes para o sucesso da missão, pois o que é importante é a graça de Deus, deve levar o “profeta” a despir-se de qualquer sentimento de orgulho ou de autossuficiência. O “profeta” deve sentir-se, apenas, um instrumento humano, frágil, débil e limitado, através do qual a força e a graça de Deus agem no mundo. Quando o “profeta” tem consciência desta realidade, percebe como são despropositadas e sem sentido quaisquer atitudes de vedetismo ou de busca de protagonismo, no cumprimento da missão… A missão do “profeta” não é atrair sobre si próprio as luzes da ribalta, as câmaras da televisão ou o olhar das multidões; a missão do “profeta” é servir de veículo humano à proposta libertadora de Deus para os homens.
  • Como pano de fundo do nosso texto, está a polémica de Paulo com alguns cristãos que não o aceitavam. Ao longo de todo o seu percurso missionário, Paulo teve de lidar frequentemente com a incompreensão; e, muitas vezes, essa incompreensão veio até dos próprios irmãos na fé e dos membros dessas comunidades a quem Paulo tinha levado, com muito esforço, o anúncio libertador de Jesus. No entanto, a incompreensão nunca abalou a decisão e o entusiasmo de Paulo no anúncio da Boa Nova de Jesus… Ele sentia que Deus o tinha chamado a uma missão e que era preciso levar essa missão até ao fim, doesse a quem doesse… Frequentemente, temos de lidar com realidades semelhantes. Todos experimentámos já momentos de incompreensão e de oposição (que, muitas vezes, vêm do interior da nossa própria comunidade e que, por isso, magoam mais). É nessas alturas que o exemplo de Paulo deve brilhar diante dos nossos olhos e ajudar-nos a vencer o desânimo e a tentação de desistir.
  • Neste texto de Paulo (como, aliás, em quase todos os textos do apóstolo), transparece a atitude de vida de um cristão para quem Cristo é, verdadeiramente, o centro da própria existência e que só vive em função de Cristo… Nada mais lhe interessa senão anunciar as propostas de Cristo e dar testemunho da graça salvadora de Cristo. Que lugar ocupa Cristo na minha vida? Que lugar ocupa Cristo nos meus projetos, nas minhas decisões, nas minhas opções, nas minhas atitudes? in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 6,1-6

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se à sua terra
e os discípulos acompanharam-n’O.
Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga.
Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam:
«De onde Lhe vem tudo isto?
Que sabedoria é esta que Lhe foi dada
e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?
Não é ele o carpinteiro, Filho de Maria,
e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?
E não estão as suas irmãs aqui entre nós?»
E ficavam perplexos a seu respeito.
Jesus disse-lhes:
«Um profeta só é desprezado na sua terra,
entre os seus parentes e em sua casa».
E não podia ali fazer qualquer milagre;
apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente.
E percorria as aldeias dos arredores, ensinando.

CONTEXTO

            O Evangelho de hoje fala-nos de uma visita à “terra” de Jesus. De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma pequena vila da Galileia situada a 22 Km a oeste do Lago de Tiberíades. Esta povoação tipicamente agrícola nunca teve grande importância no universo na história do judaísmo… O Antigo Testamento ignora-a completamente; Flávio Josefo e os escritores rabínicos também não lhe fazem qualquer referência. Os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf. Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus cresceu e onde reside a sua família.

            A cena principal que nos é relatada por Marcos passa-se na sinagoga de Nazaré, num sábado. Jesus, como qualquer outro membro da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e, fazendo uso do direito que todo o israelita adulto tinha, leu e comentou as Escrituras.

            O episódio que nos é proposto integra a primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Jesus é apresentado como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Na secção que vai de 3,7 a 6,6, contudo, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo face à proclamação de Jesus… À medida que o “caminho do Reino” vai avançando, vão-se multiplicando as oposições e incompreensões face ao projeto que Jesus anuncia. O nosso texto deve ser entendido neste ambiente.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O texto do Evangelho repete uma ideia que aparece também nas outras duas leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na fraqueza e na fragilidade. Normalmente, Ele não se manifesta na força, no poder, nas qualidades que o mundo acha brilhantes e que os homens admiram e endeusam; mas, muitas vezes, Ele vem ao nosso encontro na fraqueza, na simplicidade, na debilidade, na pobreza, nas situações mais simples e banais, nas pessoas mais humildes e despretensiosas… É preciso que interiorizemos a lógica de Deus, para que não percamos a oportunidade de O encontrar, de perceber os seus desafios, de acolher a proposta de vida que Ele nos faz…
  • Um dos elementos questionantes no episódio que o Evangelho deste domingo nos propõe é a atitude de fechamento a Deus e aos seus desafios, assumida pelos habitantes de Nazaré. Comodamente instalados nas suas certezas e preconceitos, eles decidiram que sabiam tudo sobre Deus e que Deus não podia estar no humilde carpinteiro que eles conheciam bem… Esperavam um Deus forte e majestoso, que se havia de impor de forma estrondosa, e assombrar os inimigos com a sua força; e Jesus não se encaixava nesse perfil. Preferiram renunciar a Deus, do que à imagem que d’Ele tinham construído. Há aqui um convite a não nos fecharmos nos nossos preconceitos e esquemas mentais bem definidos e arrumados, e a purificarmos continuamente, em diálogo com os irmãos que partilham a mesma fé, na escuta da Palavra revelada e na oração, a nossa perspetiva acerca de Deus.
  • Para os habitantes de Nazaré Jesus era apenas “o carpinteiro” da terra, que nunca tinha estudado com grandes mestres e que tinha uma família conhecida de todos, que não se distinguia em nada das outras famílias que habitavam na vila; por isso, não estavam dispostos a conceder que esse Jesus – perfeitamente conhecido, julgado e catalogado – lhes trouxesse qualquer coisa de novo e de diferente… Isto deve fazer-nos pensar nos preconceitos com que, por vezes, abordamos os nossos irmãos, os julgamos, os catalogamos e etiquetamos… Seremos sempre justos na forma como julgamos os outros? Por vezes, os nossos preconceitos não nos impedirão de acolher o irmão e a riqueza que Ele nos traz?
  • Jesus assume-Se como um profeta, isto é, alguém a quem Deus confiou uma missão e que testemunha no meio dos seus irmãos as propostas de Deus. A nossa identificação com Jesus faz de nós continuadores da missão que o Pai Lhe confiou. Sentimo-nos, como Jesus, profetas a quem Deus chamou e a quem enviou ao mundo para testemunharem a proposta libertadora que Deus quer oferecer a todos os homens? Nas nossas palavras e gestos ecoa, em cada momento, a proposta de salvação que Deus quer fazer a todos os homens?
  • Apesar da incompreensão dos seus concidadãos, Jesus continuou, em absoluta fidelidade aos planos do Pai, a dar testemunho no meio dos homens do Reino de Deus. Rejeitado em Nazaré, Ele foi, como diz o nosso texto, percorrer as aldeias dos arredores, ensinando a dinâmica do Reino. O testemunho que Deus nos chama a dar cumpre-se, muitas vezes, no meio das incompreensões e oposições… Frequentemente, os discípulos de Jesus sentem-se desanimados e frustrados porque o seu testemunho não é entendido nem acolhido (nunca aconteceu pensarmos, depois de um trabalho esgotante e exigente, que estivemos a perder tempo?)… A atitude de Jesus convida-nos a nunca desanimar nem desistir: Deus tem os seus projetos e sabe como transformar um fracasso num êxito. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção que grande parte da leitura se encontra em discurso direto. Apesar de não ter nenhuma dificuldade aparente, nem palavras de difícil pronunciação, os leitores devem estar atentos à pontuação e às pausas para uma leitura articulada do texto.

            Na segunda leitura, deve começar-se por ter cuidado com a palavra «ensoberbeça», por ser uma palavra menos usual e de difícil pronunciação. Além disso, a proclamação da segunda parte do texto deve ser marcada pela dicotomia presente no texto entre a fraqueza da natureza humana e a força que brota do poder de Cristo

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

REJEIÇÃO DE JESUS

            O Evangelho deste Domingo XIV do Tempo Comum (Marcos 6,1-6) enlaça no do Domingo passado (XIII), pondo Jesus a sair de lá (ekeîthen) (Marcos 6,1), isto é, de Cafarnaum, da casa de Jairo (Marcos 5,35-43), e a dirigir-se para a sua pátria (pátris) (Marcos 6,1), ao encontro dos seus familiares e conterrâneos, sendo o sábado e a sinagoga (Marcos 6,2) o natural lugar desse encontro. Esta primeira ida de Jesus à sua pátria fica a marcar também, no Evangelho de Marcos, a última vez que Jesus ensina numa sinagoga (Marcos 1,21.23.29.30; 3,1; 6,2), e também o sábado será mencionado apenas mais uma vez, precisamente na manhã de Páscoa, escrevendo o narrador: «passado o sábado» (Marcos 16,1).

            E, portanto, tudo neste texto, neste encontro, assume um carácter decisivo. Desde logo a escolha do termo «pátria», que carrega consigo um significado mais intenso e mais amplo do que o mais habitual de «povoação». Com esta forma de dizer, este decisivo encontro com Jesus não fica apenas circunscrito a uma pequena região da Galileia, mas prefigura já o encontro de Jesus com o inteiro Israel, e a mesma rejeição que lhe será movida por este. São mesmo já visíveis desde aqui as resistências ao Evangelho radicadas no nosso coração, e que o Quarto Evangelho porá a claro: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11). Mas também esta última vez a ensinar na sinagoga, e este sábado que aponta para aquele último «passado o sábado» (Marcos 16,1), devem gravar em nós evocações e apelos decisivos. Tudo o que tem sabor a último carrega um particular peso específico.

            Aventurando-nos um pouco mais dentro do texto, não ficaremos certamente admirados por vermos que estes conterrâneos de Jesus estejam a par das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares que, na mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa. Notaremos ainda, sem grande espanto, que os conterrâneos de Jesus sabem, em termos anagráficos, muito mais do que o leitor, sobre Jesus: dele sabem indicar a família, a profissão, a residência. O que nos deve espantar, isso sim, é que aqueles conterrâneos de Jesus não saibam dizer «DE ONDE» (póthen) lhe vem aquela sabedoria única e aqueles divinos prodígios que realiza.

            Às vezes, por termos os olhos tão embrenhados na terra, nas coisas da terra, não conseguimos ver o céu! Veja-se a iluminante cena da cura do cego de nascença (João 9). Em diálogo com o cego curado, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos DE ONDE (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando, com evidente ironia, a cegueira deles: «Isso é “espantoso” (tò thaumastón): vós não sabeis DE ONDE (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! Tal como o cego, e fazendo uso da mesma linguagem, também Jesus “estava espantado” (ethaúmazen) com a falta de fé dos seus conterrâneos (Marcos 6,6). Note-se bem que a falta de fé aqui assinalada não é apenas a negação de Deus. É a rejeição de Jesus em nome de uma errada conceção de Deus. Podemos dizer mesmo: para salvar a honra de Deus! Veja-se bem até onde pode chegar a nossa cegueira! Sim, não é possível, pensam os compatriotas de Jesus, que um carpinteiro, filho de Maria e membro daquela família, que todos conhecem, diga o que diz e faça o que faz! De facto, às vezes, para salvar a honra de Deus, rejeitamos tanta gente humilde!

            Numa altura em que se continua a falar da «receção» do Concílio II do Vaticano, dado que ainda estamos na esteira da celebração dos 50 anos da sua realização (1962-1965), podemos falar também, com as devidas distâncias, da «receção» de Jesus e do seu Evangelho. O texto diz-nos que os seus conterrâneos não o receberam, não se deixaram atravessar por Ele, pelo Céu que Ele indicava e trazia consigo. Ponte para o próximo Domingo (XV), em que ouviremos o episódio que se segue imediatamente ao de hoje (Marcos 6,7-13). Aí, Jesus enviará os seus Doze Apóstolos, dois a dois, despojados de meios ou de equipamento, para ressaltar bem a importância do Anúncio do Evangelho. Mas a ponte entre os dois textos e respetivos Domingos está em que ouviremos Jesus dizer aos seus Apóstolos: «Qualquer lugar (tópos) que não vos “receba” (déxetai)…». Os livros dizem que, em Marcos, o verbo «receber» (déchomai) está sempre referido a Jesus. Trata-se de «receber», de «acolher» Jesus. É então também fácil ver qual é o «lugar» que não «recebeu» Jesus. Mas o problema é sempre este: e nós?

            A figura de Ezequiel, profeta frágil, mas que aponta para um «Deus que dá força» (etimologia do seu nome), por 93 vezes interpelado por Deus com a locução «Filho do Homem», é por Deus incumbido da missão difícil de ser sentinela (tsopeh) (Ezequiel 3,17; 33,7) da casa rebelde de Israel, junto do rio Cobar, em Tel ’Abîb (Ezequiel 1,1-3; 3,15), na Babilónia, uma espécie de «pároco dos exilados». Tel ’Abîb significa «colina da primavera» ou das «espigas». É um lugar duro de exílio, mas, porque lembra a primavera, é também um nome carregado de esperança. Os judeus deram este nome significativo a uma das primeiras colónias que fundaram na Palestina, junto da costa Mediterrânica, em finais do século XIX, onde se situa hoje a capital política de Israel. O rio Cobar é um canal de irrigação, hoje chamado Shatt Ennil, que parte do Eufrates para irrigar a cidade de Nippur, onde os Babilónios instalaram deportados oriundos de diferentes proveniências, entre os quais se contam os deportados de Judá. Na sua fragilidade e na rejeição que experimenta, o profeta Ezequiel ajuda a perceber e a «receber» melhor a figura de Jesus, o Deus feito homem, que a si mesmo se diz nos Evangelhos, por 82 vezes, «Filho do Homem».

            E São Paulo dá testemunho, na Segunda Carta aos Coríntios (12,7-10) da força nova de Cristo, que o habita: «Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que se manifesta a minha força» (2 Coríntios 12,9). E ainda: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Coríntios 12,10).

            O Salmo 123 mostra-nos a força do olhar através de uma série de olhares que se entrecruzam: os meus olhos, os olhos dos servos, os olhos da escrava, os nossos olhos. Os meus olhos e os nossos olhos estão postos em Deus; os dos servos nas mãos dos seus patrões; os da escrava nas mãos da sua patroa. Há, todavia, uma diferença entre as mãos de Deus e as dos patrões. As mãos dos patrões dão ordens. As mãos de Deus abençoam, dão, salvam, embalam com ternura, fazem graça. Portanto, o homem que reza neste Salmo não junta as mãos, mas abre-as para as de Deus, formando uma espécie de puzzle, para receber os dons de Deus; também não fecha os olhos, mas escancara-os para o céu; e tão-pouco se fecha no seu mundo interior, mas abre-se completamente para fora. O orante deste Salmo reza com as mãos e os olhos abertos, com a alma aberta.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 (Ez 2, 2-5)
        2. Leitura II do Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 (2 Cor 12, 7-10)
        3. Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024

41Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûm!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!» 42E logo a menina se ergueu e começou a andar, pois tinha doze anos. Todos ficaram assombrados. Mc 5, 41-42

Viver a Palavra

Como é belo ver Jesus percorrer os caminhos do tempo e da história para que a vida de Deus se cruze com a vida da humanidade! Jesus é o Verbo Eterno que se faz carne e habita no meio de nós. É o Deus eterno que assume a fragilidade e a contingência da nossa natureza. Como nos escreve S. Paulo «Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa, para vos enriquecer pela sua pobreza». Não somos os mais fortes, mas somos filhos do Deus da força e somos enriquecidos pela poderosa força da mansidão e humildade revelados na carne de Jesus, o Messias chamado Cristo.

Jesus atravessa de barco para a outra margem, encontra-se com a multidão, detém-se à beira-mar e percorre com Jairo o caminho até sua casa, tocando e deixando-se tocar por aqueles que se cruzam com Ele no caminho. Deus visita-nos e coloca-se a caminho connosco.

«A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva». É este o surpreendente e desconcertante pedido de Jairo, um notável chefe de uma sinagoga, que se coloca de joelhos diante de Jesus, procurando uma última esperança para a sua filha que está em perigo. Jesus não perde tempo a aferir sobre a gravidade da situação, a questionar a idoneidade daquele homem e da sua família ou da pertinência e disponibilidade para ir a sua casa. Jesus coloca-se a caminho com Ele e acompanha-o uma imensa multidão.

Jesus não é indiferente às nossas dores e angústias, mas também não se limita a meras palavras de circunstância ou discursos mais ou menos compadecidos das mazelas e sofrimentos alheios. Jesus continua a Sua missão de descer ao encontro da humanidade, descendo ao concreto das nossas vidas cheias de bem, bondade e beleza, mas também sujeitas à dor e sofrimento. A prontidão de Jesus para acompanhar Jairo é para nós um desafio a vivermos de olhos e coração abertos sobre o mundo como sentinelas vigilantes e peregrinos da bondade e da ternura.

O ritmo acelerado dos dias e a panóplia de trabalhos e ocupações que nos absorvem não podem ser desculpa para uma vida indiferente ao mundo e aos outros. Só a revolução da ternura poderá inaugurar um tempo novo na história e tornar as nossas vidas um lugar mais belo e o mundo num lugar melhor e mais feliz.

No frenesim da nossa vida quotidiana, cruzamo-nos com uma multidão de pessoas, que tantas vezes não passa de uma massa indistinta que ocupa os lugares do comboio e do metro e me fazem ir de pé ou uma amálgama de viaturas que ocupam as vias de trânsito e que me atrasam ou até de um conjunto de anónimos que trabalham no mesmo espaço laboral que eu ocupo. Não é assim para Jesus! A multidão não é uma massa anónima: «Vês a multidão que Te aperta e perguntas: ‘Quem Me tocou?’». Para Jesus cada um de nós é único e irrepetível e, por isso, sujeito de uma atenção única e pessoal. Como seriam diferentes os nossos dias e como os desencontros quotidianos se poderiam tornar verdadeiros lugares de encontro se fossemos capazes de fazer de cada pessoa um irmão único e irrepetível que sou chamado a acolher, a amar e a cuidar.

Aquela mulher que sofre de uma perda de sangue há doze anos alimenta a esperança que tocando ao menos nas Suas vestes poderá ficar curada. Porventura, esta mulher desconhece que tocar é sempre um gesto recíproco e que tocar em alguém ou algo implica também ser tocado por aquilo que toco. Tocando Jesus, aquela mulher é tocada pelo Seu amor que salva, cura e oferece sentido para a vida. in Voz Portucalense

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No dia 29 de junho celebramos a Solenidade de S. Pedro e S. Paulo e no Domingo, dia 30 de junho, o diretório litúrgico oferece a indicação que em todas as dioceses de Portugal, os ofertórios se destinam à Santa Sé ou, como tradicionalmente é designado, o ofertório é para a Cadeira de S. Pedro. É importante recordar os fiéis da comunhão das igrejas que ela representa e, sobretudo, da caridade a que somos chamados alargando os nossos horizontes à Igreja universal. Celebrar S. Pedro e S. Paulo significa celebrar a unidade fé e a comunhão da Igreja que em Pedro e Paulo encontra duas fortes colunas. Na confissão da fé de Pedro e na força evangelizadora de Paulo, a Igreja encontra um poderoso testemunho para ser lugar da profissão de uma só fé e mãe de coração aberto que sai ao encontro dos seus filhos para que todos possam encontrar em Cristo a única e verdadeira fonte de salvação. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sabedoria 1, 13-15; 2,23-24

Não foi Deus quem fez a morte,
nem Ele Se alegra com a perdição dos vivos.
Pela criação deu o ser a todas as coisas,
e o que nasce no mundo destina-se ao bem.
Em nada existe o veneno que mata,
nem o poder da morte reina sobre a terra,
porque a justiça é imortal.
Deus criou o homem para ser incorruptível
e fê-lo à imagem da sua própria natureza.
Foi pela inveja do demónio que a morte entrou no mundo,
e experimentam-na aqueles que lhe pertencem.

CONTEXTO

O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito na primeira metade do séc. I a. C., muito provavelmente. O seu autor terá sido um judeu piedoso, de língua grega, nascido e educado na Diáspora (fala-se, em concreto, de Alexandria como o “berço” deste escrito). Ele conhece bem a história e a fé de Israel; mas, por outro lado, também conhece as correntes filosóficas gregas e sabe a atração que elas exercem sobre os seus irmãos na fé. Inquieta-o a tentação da idolatria que ameaça os judeus das comunidades da Diáspora, seduzidos pelo brilho da cultura helénica. Pondo em diálogo a fé tradicional de Israel com a cultura grega, o autor deste escrito pretende mostrar a superioridade da sabedoria de Israel, que brota da fé ancestral do seu povo, em relação à sabedoria que inspira a cultura e o estilo de vida gregos.

Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o justo e o ímpio no mais-além e descreve, com exemplos tirados da história do Êxodo, as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé). Aos seus compatriotas judeus, mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade, o autor convida a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; aos pagãos, convida, por outro lado, a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus… Judeus e pagãos devem estar cientes de que só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste 13º domingo do tempo comum pertence à primeira parte do livro (cf. Sb 1-5). Aí, o autor do livro propõe uma reflexão sobre o destino do ímpio e o destino do justo. A sua finalidade é consolidar a fé dos judeus perseguidos, ensinando-lhes que as provas suportadas no tempo presente hão de conduzir, necessariamente, à imortalidade na vida que há de vir. Os versículos que compõem a nossa leitura não são contínuos… Mas, quer a primeira parte (Sb 1,13-15), quer a segunda parte (Sb 2,23-24) supõem a catequese exposta nos primeiros três capítulos do livro do Génesis: constituem um comentário e uma atualização do relato da criação e da queda do homem e da mulher. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Apesar das incríveis conquistas da ciência e da técnica, os seres humanos continuam presos à sua debilidade e finitude. Vimos do nada, mas criamos raízes nesta terra e apaixonamo-nos pela vida que conhecemos e construímos, montamos a nossa tenda precária com a ilusão de que ela é duradoura; sonhamos com eternidade, mas somos confrontados a cada instante com a realidade da nossa finitude e perguntamo-nos pelo sentido de uma vida sobre a qual paira sempre a sombra da morte… A morte parece-nos uma força cruel e maliciosa que põe fim aos nossos melhores sonhos e projetos. Quem a inventou? Quem lhe deu poder sobre nós? O “sábio” que redigiu o “Livro da Sabedoria” diz-nos que a morte não vem de Deus. Deus não nos criou para a morte, mas sim para a Vida. Deus, na sua imensa bondade e misericórdia, não quer os seus queridos filhos condenados à morte, mas sim a partilhar com Ele a Vida eterna, a felicidade sem fim. Deus, ao fazer-nos semelhantes a Ele, imprimiu em nós a marca da eternidade. Estamos destinados a viver para sempre com Deus. Acreditamos nisto? É com esta certeza que caminhamos? Esta certeza ilumina o nosso caminho de todos os dias com as cores da esperança?
  • No entanto, é certo que o nosso tempo nesta terra é um tempo limitado. Não somos daqui. O nosso corpo tem o seu ciclo de vida, desgasta-se com o tempo, o cansaço, a doença, e a certa altura termina o seu caminho. É a morte biológica que todos os seres criados, incluindo o homem, conhecerão. Contudo, a morte biológica não é a morte verdadeira, a morte que conta. Precisamos de passar por ela, precisamos de deixar este mundo imperfeito, limitado e precário para entrar na realidade de Deus, na Vida eterna. Custa-nos, naturalmente, despedir-nos daqueles que amamos e que terminam o seu caminho na terra; custa-nos, também, despedir-nos dos nossos projetos, das nossas conquistas, até mesmo das coisas materiais que juntamos… Mas a morte biológica é o passo imprescindível para aceder à Vida eterna, à Vida plena. Como lidamos com a morte biológica, a nossa ou a das pessoas que amamos? Somos capazes de encará-la como um nascimento para a Vida eterna?
  • O “sábio” que redigiu o “Livro da Sabedoria” diz que “foi pela inveja do demónio que a morte entrou no mundo, e experimentam-na aqueles que lhe pertencem”. É uma forma de dizer algo muito sério e muito verdadeiro: sempre que prescindimos de Deus e das suas indicações, sempre que escolhemos caminhos de autossuficiência e que ignoramos Deus, estamos a introduzir no mundo e nas nossas vidas mecanismos de morte. A verdadeira morte não é a morte biológica; é a “morte” de quem escolhe a violência, a injustiça, a exploração dos mais fracos, a ganância que priva de recursos os outros irmãos, a indiferença de quem escolhe ignorar os sofrimentos dos outros homens e mulheres. Quem vive assim, está “morto”. A sua vida deixou de fazer sentido; e o seu egoísmo gera morte e sofrimento à sua volta. Essa é a verdadeira morte, a morte que nunca abrirá as portas de Vida plena, da Vida eterna. Ora, no nosso mundo são muitos os mecanismos que geram morte e sofrimento. Conseguimos identificá-los? Seremos nós próprios, em alguma circunstância, promotores de morte? Que fazemos para combater os mecanismos de morte que desfeiam o mundo e que destroem a vida de tantos dos nossos irmãos e irmãs? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 29 (30)

Refrão: Eu Vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.

 

Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes
e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos.
Tirastes a minha alma da mansão dos mortos,
vivificastes-me para não descer ao túmulo.

Cantai salmos ao Senhor, vós os seus fiéis,
e dai graças ao seu nome santo.
A sua ira dura apenas um momento
e a sua benevolência a vida inteira.
Ao cair da noite vêm as lágrimas
e ao amanhecer volta a alegria.

Ouvi, Senhor, e tende compaixão de mim,
Senhor, sede Vós o meu auxílio.
Vós convertestes em júbilo o meu pranto:
Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.

LEITURA II – 2 Coríntios 8, 7.9.13-15

Irmãos:
Já que sobressaís em tudo
– na fé, na eloquência, na ciência,
em toda a espécie de atenções
e na caridade que vos ensinámos –
deveis também sobressair nesta obra de generosidade.
Conheceis a generosidade de Nosso Senhor Jesus Cristo:
Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa,
para vos enriquecer pela sua pobreza.
Não se trata de vos sobrecarregar para aliviar os outros,
mas sim de procurar a igualdade.
Nas circunstâncias presentes,
aliviai com a vossa abundância a sua indigência
para que um dia
eles aliviem a vossa indigência com a sua abundância.
E assim haverá igualdade, como está escrito:
«A quem tinha colhido muito não sobrou
e a quem tinha colhido pouco não faltou».

CONTEXTO

As críticas deixadas por Paulo, na sua primeira carta aos coríntios, a alguns cristãos da cidade pela sua conduta pouco coerente com os valores do Evangelho, tinha criado um conflito grave entre o apóstolo e a comunidade. Na sequência, alguns pregadores cristãos de tendência judaizante, entretanto chegados a Corinto, aproveitaram a “onda” para ajustar contas com Paulo: acusaram-no de cuidar apenas dos seus próprios interesses e de pregar uma doutrina que não estava em consonância com o Evangelho anunciado pelos outros apóstolos. Ao saber disto, Paulo dirigiu-se a Corinto para enfrentar o problema; mas foi mal recebido e retirou-se da cidade bastante incomodado. No entanto, a relação entre Paulo e a comunidade de Corinto não podia terminar dessa forma. Por isso, Paulo enviou a Corinto o seu colaborador Tito, com a missão de acalmar os ânimos e de tentar a reconciliação. Quando Tito se reuniu novamente a Paulo, trazia notícias animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, outra vez, em comunhão com o apóstolo.

Foi então que Paulo dirigiu uma nova carta aos cristãos de Corinto. Nessa carta, Paulo faz uma serena apologia do seu apostolado, apresentando aos seus amigos de Corinto as razões que o movem no seu testemunho e na sua entrega ao serviço do Evangelho (cf. 2 Cor 1,12-71,16). Também responde dos seus detratores, por vezes em tom polémico e mordaz, defendendo a autenticidade e a verdade do seu ministério (cf. 2 Cor 10,1-13,13). Há, ainda, na segunda carta de Paulo aos coríntios uma parte que é eminentemente prática e que se refere a uma questão bastante material e concreta: a uma coleta em favor dos cristãos de Jerusalém, e para a qual Paulo pede a atenção e a generosidade dos cristãos de Corinto (2 Cor 8,1-9,15). Há quem pense que este tema da coleta não fazia parte da segunda carta aos coríntios original, mas sim de uma carta autónoma, cujo texto foi mais tarde “colado” na segunda carta aos coríntios. Pode ser; mas a questão não parece relevante. Seja como for, a segunda leitura que a liturgia deste décimo terceiro domingo comum apresenta-nos palavras de Paulo sobre a coleta em benefício da igreja de Jerusalém.

A comunidade cristã de Jerusalém, hostilizada pelos judeus, não tinha uma vida fácil, inclusive em termos económicos. Além disso, a fome crónica sentida em vários pontos do império romano no tempo do imperador Cláudio, afetou especialmente a Judeia (cf. At 11,28-29) entre os anos 45 e 48, e deixou os cristãos dessa região em situação de grande carência. Paulo encarregou-se de promover uma coleta nas igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia para ajudar os “pobres” de Jerusalém. Essa campanha não tinha apenas o objetivo de mostrar solidariedade para com uma Igreja em situação económica débil; pretendia também fomentar nas novas Igrejas que estavam a surgir a comunhão com a Igreja-mãe de Jerusalém e criar um sentido de universalidade entre todas as comunidades nascidas de Jesus.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Os números da fome no mundo são avassaladores: cerca de 800 milhões de pessoas não têm comida ou não a têm em quantidade suficiente, com incidência especial em certas zonas do nosso planeta, afetadas pela pobreza extrema ou por períodos de colheitas deficientes. Em contrapartida, nas “sociedades do bem-estar”, comemos demasiado, esbanjamos alimentos, destruímos colheitas para manter os preços, potenciamos o consumismo para estimular a economia… Criamos um mundo desigual e desumano, onde o egoísmo se sobrepõe ao amor e à solidariedade. Este não é o “mundo bom” que Deus sonhou para os seus filhos e filhas. Os recursos que Deus colocou à nossa disposição não pertencem a alguns, mas devem chegar a todos. Estamos conscientes de que há muitos irmãos nossos que não têm o necessário para viver? Sentimos que isso nos diz respeito ou, ao contrário, que é algo que não nos tira o sono? Estamos disponíveis para um estilo de vida mais sóbrio, mais simples, menos consumista, menos frívolo, a fim de que os bens que Deus colocou à nossa disposição possam chegar a todos os nossos irmãos?
  • Percebe-se que a preocupação de Paulo, ao propor a coleta em favor da Igreja de Jerusalém, não se esgota numa ajuda material que permita minorar circunstancialmente a carência dos cristãos dessa comunidade. Paulo pretende, principalmente, que os discípulos de Jesus aprendam a viver de acordo com um dinamismo fraterno de partilha e de comunhão, que enriquece quem dá e quem recebe e que é pressuposto de uma nova ordem, de um novo relacionamento entre os homens. Os seguidores de Jesus aprenderam com o seu Mestre a partilha, a solidariedade, a fraternidade, a comunhão; aprenderam com Jesus que “os outros” não são concorrentes ou adversários, mas sim irmãos. Por isso, os seguidores de Jesus são, no mundo, arautos e testemunhas de uma nova ordem, da revolução do amor. Vemos os homens e mulheres que caminham ao nosso lado como irmãos por quem somos responsáveis? Sentimo-nos implicados na procura de soluções para que todos os nossos irmãos tenham uma vida digna? Fazemos o que está ao nosso alcance para criar uma nova ordem, um relacionamento mais fraterno e mais humano entre todos aqueles que partilham connosco esta “casa” que é o nosso mundo?
  • Paulo refere o exemplo de Cristo que, sendo rico se fez pobre, a fim de nos enriquecer pela sua pobreza. É uma expressão muito bela, que nos convida a olhar para o essencial. Cristo chegou até nós feito criança indefesa, sem manias de grandeza ou de importância; cresceu como menino pobre de uma aldeia desconhecida das montanhas da Galileia; fez-se profeta do reino de Deus, mas nem tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça. Nunca comprou a nossa atenção distribuindo bens materiais; mas fez-se, nosso companheiro de caminho, solidarizou-se com as nossas dores e dificuldades, mostrou-nos em gestos simples e fraternos o amor de Deus Pai. Tornou-nos ricos com a sua pobreza. É possível que nós também não tenhamos bens materiais para partilhar. Mas, como Jesus, podemos fazer-nos companheiros de caminho dos nossos irmãos e irmãs, partilhar as suas dores e as suas alegrias, servir humildemente aqueles que necessitam do nosso cuidado e do nosso amor. Estamos dispostos, como Jesus, a enriquecer os outros com a nossa pobreza? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 5, 21-43

Naquele tempo,
depois de Jesus ter atravessado de barco
para a outra margem do lago,
reuniu-se grande multidão à sua volta,
e Ele deteve-Se à beira-mar.
Chegou então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo.
Ao ver Jesus, caiu a seus pés
e suplicou-Lhe com insistência:
«A minha filha está a morrer.
Vem impor-lhe as mãos,
para que se salve e viva».
Jesus foi com ele,
seguido por grande multidão,
que O apertava de todos os lados.
Ora, certa mulher
que tinha um fluxo de sangue havia doze anos,
que sofrera muito nas mãos de vários médicos
e gastara todos os seus bens,
sem ter obtido qualquer resultado,
antes piorava cada vez mais,
tendo ouvido falar de Jesus,
veio por entre a multidão
e tocou-Lhe por detrás no manto,
dizendo consigo:
«Se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada».
No mesmo instante estancou o fluxo de sangue
e sentiu no seu corpo que estava curada da doença.
Jesus notou logo que saíra uma força de Si mesmo.
Voltou-Se para a multidão e perguntou:
«Quem tocou nas minhas vestes?»
Os discípulos responderam-Lhe:
«Vês a multidão que Te aperta
e perguntas: ‘Quem Me tocou?’»
Mas Jesus olhou em volta,
para ver quem O tinha tocado.
A mulher, assustada e a tremer,
por saber o que lhe tinha acontecido,
veio prostrar-se diante de Jesus e disse-Lhe a verdade.
Jesus respondeu-lhe:
«Minha filha, a tua fé te salvou».
Ainda Ele falava,
quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga:
«A tua filha morreu.
Porque estás ainda a importunar o Mestre?»
Mas Jesus, ouvindo estas palavras,
disse ao chefe da sinagoga:
«Não temas; basta que tenhas fé».
E não deixou que ninguém O acompanhasse,
a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago.
Quando chegaram a casa do chefe da sinagoga,
Jesus encontrou grande alvoroço,
com gente que chorava e gritava.
Ao entrar, perguntou-lhes:
«Porquê todo este alarido e tantas lamentações?
A menina não morreu; está a dormir».
Riram-se d’Ele.
Jesus, depois de os ter mandado sair a todos,
levando consigo apenas o pai da menina
e os que vinham com Ele,
entrou no local onde jazia a menina,
pegou-lhe na mão e disse:
«Talitha Kum»,
que significa: «Menina, Eu te ordeno: levanta-te».
Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar,
pois já tinha doze anos.
Ficaram todos muito maravilhados.
Jesus recomendou-lhes insistentemente
que ninguém soubesse do caso
e mandou dar de comer à menina.

CONTEXTO

Depois da sua incursão no território pagão da Decápole (cf. Mc 5,1), Jesus atravessou de barco “para a outra margem”, o que significa que veio novamente para território judeu, na margem ocidental do Mar da Galileia. Marcos não identifica o local onde Jesus está (ele diz, apenas, que Jesus se encontrava “à beira-mar”); mas o mais provável é que se trate da cidade de Cafarnaum.

Na narrativa de Marcos, são referidos dois encontros com Jesus, entrelaçados um no outro. Num deles conta-se como um tal Jairo, “um chefe da sinagoga”, que vem ao encontro de Jesus para Lhe pedir ajuda para a sua filha, que está muito doente. Em Israel havia um chefe à frente de cada sinagoga. O titular do cargo era eleito entre os homens mais respeitados da comunidade. Estava encarregue de dirigir o serviço religioso sinagogal, escolher os que deviam recitar as orações e ler as escrituras, procurar pregadores adequados, cuidar de que tudo decorresse de acordo com o que estava definido, encarregar-se da manutenção do edifício sinagogal e da sua ornamentação. Era, portanto, um lugar de destaque na comunidade judaica local.

No outro relato, é uma mulher anónima que vem sozinha ao encontro de Jesus e que espera receber d’Ele a cura para o seu mal. Ora, o “mal” que a afligia, não era um “mal menor”: ela sofria de uma hemorragia incurável que, além de lhe causar um incómodo físico, a impedia de ter uma vida normal, quer em termos familiares, quer em termos sociais, quer em termos religiosos. Marcos guarda um silêncio discreto sobre a origem dessa hemorragia; mas essa descrição indica, provavelmente, que se trata de um qualquer transtorno menstrual. De acordo com a legislação levítica (cf. Lv 15,19-33), essa situação colocava a mulher num estado de “impureza” que a impedia de se aproximar de Deus e de manter contactos com as outras pessoas. Aquela mulher estava impedida pela Lei de ter vida. Sofre muito, física e moralmente. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A nossa precariedade manifesta-se a cada instante. As doenças físicas, a impotência que sentimos diante da violência e da maldade, os medos que nos paralisam, o cansaço que nos afoga, a debilidade que vem com o avançar da idade, a morte daqueles que amamos, fazem-nos sentir vulneráveis e frágeis. A par disso, subsiste em nós o desejo de Vida que não seja precária, de Vida verdadeira e eterna, de Vida que não seja derrotada pela morte. O Evangelho deste domingo garante-nos que o projeto que Deus tem para nós é um projeto de Vida. Foi para nos dar Vida que Deus nos enviou Jesus. Ele veio até nós para nos oferecer a salvação de Deus. Com palavras e com gestos concretos, Jesus mostrou-nos o caminho que vence a morte e que leva à Vida eterna. Estamos cientes de que esse é o projeto de Deus para nós? Vemos em Jesus “o Salvador”, aquele que veio de Deus para nos dar Vida?
  • As histórias da mulher curada de uma hemorragia e da ressurreição da filha de Jairo mostram a importância da fé nesse processo de aceder à Vida que Jesus oferece. É a fé que nos faz procurá-lo, é a fé que nos faz tocá-l’O, é a fé que nos faz ir atrás d’Ele, é a fé que nos faz aderir ao seu projeto, é a fé que nos faz segui-l’O no caminho do amor e da entrega da vida, é a fé que nos permite aderir incondicionalmente às suas propostas e adotar o seu estilo de vida. Sem essa fé, podemos andar à volta d’Ele, frequentar a igreja, ter responsabilidades na comunidade cristã, rezar, receber os sacramentos, mas nunca nos deixaremos transformar por Ele; e, se assim for, nunca haverá lugar no nosso coração para a Vida que Jesus pretende dar-nos. Como é e como vivemos a nossa fé? A nossa fé em Jesus traduz-se numa adesão incondicional à sua pessoa, às suas palavras, aos seus gestos? Estamos verdadeiramente dispostos a segui-l’O no caminho que Ele nos aponta?
  • A mulher que sofria de uma hemorragia fez a experiência dramática de se sentir rejeitada e ostracizada por causa do seu problema de saúde. Sentia-se impura, ignorada, sozinha, perdida, sem poder confiar a alguém aquilo que tanto a fazia sofrer; procurava compreensão, paz, consolação sem saber onde os encontrar; sentia-se suja e não conseguia encontrar maneira de viver uma vida nova e limpa. Não é uma experiência incomum. Há muitos homens e mulheres que, por vezes por razões pouco consistentes, se sentem indignos, impuros, malditos, pecadores, condenados por Deus, e vivem a sua vida num pesadelo de angústia e de culpa, sem saberem como romper a cadeia que as faz escravas. E nem sempre essas pessoas encontram na comunidade cristã, compreensão, acolhimento, testemunho do amor e da ternura de Deus. Alguma vez contribuímos, com a forma como falamos de Deus e da sua justiça, para manter alguém preso a essa cadeia de culpa e de angústia? Somos testemunhas do amor misericordioso de Deus junto dos nossos irmãos, nomeadamente junto daqueles que se sentem pecadores e malditos?
  • No Evangelho deste domingo Jesus ajuda e dá Vida a duas mulheres que sofrem. Ao contrário do que acontecia na sociedade palestina do seu tempo, quer a nível de legislação quer a nível de prática, Jesus não as discrimina nem as ignora; acolhe-as, valoriza-as, compreende-as, respeita-as na sua dignidade, coloca-as ao nível de filhas muito amadas de Deus. Na Igreja de Jesus, já aprendemos isto? Valorizamos suficientemente tudo aquilo que as mulheres fazem no sentido de construir a comunidade de Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

            A aparente facilidade na proclamação das leituras não deve levar os leitores a descurar a sua preparação. Sobretudo, na segunda leitura, é necessário um especial cuidado nas pausas e respirações, sobretudo nas frases mais longas. Uma ajuda na preparação do texto será prestar mais atenção à pontuação do que às quebras de linha que o texto apresenta.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

QUANDO JESUS ENTRA NA NOSSA VIDA

O Evangelho deste Domingo XIII do Tempo Comum (Marcos 5,21-43) oferece-nos dois milagres de Jesus, relatados de forma entrelaçada, um dentro do outro: o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia (Marcos 5,25-34), dentro do relato da chamada «ressuscitação» da filha, de doze anos de idade, de Jairo, um dos chefes da sinagoga (Marcos 5,22-24.35-43).

Aí está Jesus outra vez (pálin), e pela última vez, junto do mar e no meio da multidão, retomando e culminando as situações já anotadas em Marcos 3,7-10 e 4,1. Na multidão anónima, além de Jesus, em quem estão postos todos os olhares, também o do leitor, emerge agora também um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, que rasga a multidão e vem religiosamente prostrar-se aos pés de Jesus e implorar-lhe muito (pollá) que vá impor as mãos à sua filhinha (tygátrion: diminutivo de tygátêr), que está a morrer. E o narrador diz-nos que Jesus foi com ele (met’ autoû), sempre rodeado pela multidão.

Primeira grande verificação: Jesus é aquele que vai sempre connosco. Sobretudo com os que sofrem. Acompanhando-nos, partilha o nosso caminho e as nossas dores. Vai, portanto, Jesus com Jairo e a multidão que os cerca, a caminho da casa de Jairo, quando o narrador nos surpreende e fixa a objetiva nos movimentos e pensamentos de uma mulher anónima que sofria de uma hemorragia havia doze anos, situação física, social e religiosamente dolorosa e embaraçosa, pois a tornava impura e distante de Deus e das pessoas. Ei-la que, com toda a ousadia e fé e confiança, consegue chegar junto de Jesus e tocar-lhe por detrás, na fímbria do manto, de modo que nem Jesus se apercebesse. Fá-lo e fica curada.

A história do contacto desta mulher anónima com Jesus podia terminar aqui. A mulher conseguiu os seus objetivos. Aparentemente, ninguém notou nada. É Jesus quem faz a história avançar, trazendo esta mulher do escuro para a luz. Não quer que a situação desta mulher dolorosa fique apenas no domínio físico e, por assim dizer, impessoal. Olha à sua volta e pergunta: «Quem me tocou as vestes?» (Marcos 5,30). E indo além do descuidado, superficial e insensível dizer dos seus discípulos, que se limitam à mais óbvia das reações: «Então tu vês a multidão que te aperta e dizes: “Quem me tocou?”» (Marcos 5,31). Mas Jesus, senhor de toda a situação, «olhava à volta para ver aquela (tên) que lhe tinha tocado» (Marcos 5,32). É assim que a mulher sai do seu esconderijo, e confessa a Jesus toda a verdade (Marcos 5,33). E ouve de Jesus uma palavra única, única vez dita no Evangelho no feminino! carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade: «Minha filha (tygátêr), a tua fé te salvou!» (Marcos 5,34). Quanto caminho andado! Quanto amor condensado! Esta pobre mulher sofredora e humilhada é agraciada por Jesus e passa a fazer parte da sua família: «Minha filha!».

Mas estava uma menina de doze anos, moribunda, à espera da morte… ou de Jesus. O seu pai, Jairo, luta pela vida da sua filhinha, e veio buscar Jesus para ir a sua casa impor as suas mãos de bênção, portanto, de bem e de cura, sobre a sua filhinha. Todavia, enquanto caminham, chegam os seus criados, que trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus. Aquele pai fica certamente destroçado, como o estavam também os demais familiares e os vizinhos, que, em tais circunstâncias, apenas sabiam chorar e entoar lamentações, como era habitual fazer entre os judeus. E Jesus, que até aqui se tinha limitado a acompanhar Jairo, sem nada dizer, diz agora para Jairo a primeira palavra audível: «Não tenhas medo; tem apenas fé!» (Marcos 5,36).

Jesus nunca chega atrasado. Ele é o Senhor que pelo caminho se demora connosco. À chegada à casa de Jairo, vê prantos e lamentações. Os orientais são excessivos na expressão dos seus sentimentos, quer de alegria, quer de dor. Contra aqueles gritos desarticulados, uma vez mais Jesus diz uma palavra carregada de sentido: «A menina não morreu, mas dorme» (Marcos 5,39). Esta maneira de falar da morte como de um sono é linguagem habitual na Igreja primitiva (1 Tessalonicenses 4,13-15; 1 Coríntios 11,30; 15,6 e 20; Mateus 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje. Notemos que a nossa palavra «cemitério» deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente «dormitório». E, na liturgia, é habitual rezarmos pelos nossos irmãos que adormeceram em Cristo.

Jesus entra depois naquela casa e pega terna e soberanamente na mão da menina. Note-se o número pleno de sete pessoas presentes: Jesus, Pedro, Tiago e João, o pai e a mãe da menina, e a menina. A plenitude rasga a nossa planitude! Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Marcos 5,41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte, e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Sim, Jesus é o «Filho de Deus», o «Cordeiro de Deus», o «Servo de Deus», o «Pão de Deus». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta, ressuscita e levanta.    E a sua voz é mais fina do que o silêncio (1 Reis 19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Hebreus 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (Êxodo 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (Lucas 24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (Atos dos Apóstolos 2,3). É uma voz nova que quebra as nossas crostas, e, desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração. Palavra nova, absolutamente nova, que se capta só em alta-fidelidade, hi-fi, alta sintonia, alta frequência, que acorda até os que dormem nos sepulcros o sono da morte, e deles os retira (João 5,25 e 28).

Desta «ressuscitação» da menina, Jesus manda não dizer nada a ninguém (Marcos 5,43). Mas também se vê bem que esta «ressuscitação» da menina, da irmãzinha, aponta para a verdadeira e plena «ressurreição» de Jesus. E esta, a ressurreição de Jesus, não é para ser calada. É para ser anunciada aos quatro ventos, a todas as nações, a todos os corações.

Como se vê, trata-se de duas cenas únicas e belíssimas, cheias, plenas de humanidade e divindade. Passa, Senhor Jesus, à nossa porta, entra em nossa casa, veste o nosso dorido coração de festa. Faz-nos sentir que somos teus filhos e irmãos queridos. E que as nossas lágrimas de dor podem sempre transformar-se em lágrimas de amor! Porque o teu olhar carinhoso nos descobre sempre e nos faz sair dos nossos esconderijos, e a tua Palavra rasga inclusive o véu da morte!

É-nos hoje dada a graça de ler e de ouvir um pequeno extrato compósito do Livro da Sabedoria (1,13-15; 2,23-24). A Sabedoria exorciza e otimiza o mundo com a luz intensíssima da misericórdia de Deus. Este mundo exorcizado e otimizado por obra da misericórdia de Deus não pode conter em si nem a origem do pecado nem a morte. Por isso, é ao demónio, e não à mulher (cf. Ben-Sirá 25,24), nem sequer à cobra, que o autor do Livro da Sabedoria atribui a entrada do pecado no mundo (Sabedoria 2,24). Se afirma que nenhuma criatura é portadora de veneno, é para ilibar também a cobra (Sabedoria 1,14). Tudo vem de Deus. Tudo caminha para Deus.

A lição continuada da Segunda Carta aos Coríntios (8,7-15) abre-nos hoje uma janela para a teia de caridade tecida com delicadeza nas primeiras comunidades cristãs. À imagem e transparência de Jesus Cristo que, «sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9), S. Paulo, que é, no dizer de Bento XVI, «o maior missionário de todos os tempos», e, de acordo com S. Paulo VI, «modelo de cada evangelizador», regeu a sua missão pela bússola: «Nós só nos devíamos lembrar dos pobres» (Gálatas 2,10). Por isso, porque a atenção para com os pobres constitui o critério de validação da missão, S. Paulo empenhou-se naquela famosa Coleta (logeía), empenhando nela todas as Igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia. Esta Coleta intereclesial constitui, de facto, um verdadeiro «fenómeno único» (hápax phainómenon) no mundo antigo, e são-lhe atribuídos sobretudo os nomes de koinônía [= comunhão], diakonía [= serviço] e sobretudo cháris [= graça], «a graça (cháris) servida por nós», como refere exemplarmente S. Paulo (2 Coríntios 8,19). Aí está uma imensa provocação para as Igrejas de hoje.

O Salmo 30 é uma bela e sentida Ação de Graças a um Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de alegria, saúde, vida, dança e música de festa. O Deus aqui louvado é um Deus que muda as nossas situações difíceis e, por vezes, sem saída, em amplas avenidas floridas. É por isso que, como diz o próprio título «Cântico para a Dedicação do Templo», este Salmo anda ligado à Festa da Hanûkkah ou da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 164 e o fez purificar depois de um período de ocupação e paganização pelos selêucidas.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 ( Sab 1, 13-15;2,23-24)
        2. Leitura II do Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 (2 Cor 8, 7.9.13-15)
        3. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024

Viver a Palavra

Recentemente ao visitar uma família, quando nos preparávamos para rezar, um dos mais pequenos perguntou-me: «Padre Sérgio, como seria a nossa vida se Jesus não existisse?». Confesso que esta pergunta me tem acompanhado na oração nas últimas semanas, obrigando-me a descobrir novas razões sobre o lugar transformador da presença de Cristo nas nossas vidas. Não bastam como resposta os lugares-comuns que nos saem boca fora, nem as frases feitas sempre à medida para respostas inesperadas. É necessário entrar na oração e na vida quotidiana e descobrir o lugar decisivo que Jesus ocupa na nossa vida. Em primeiro lugar, é importante registar que não está em causa a existência de Deus e a Sua ação na nossa vida. A pergunta é precisamente que diferença haveria na nossa vida se não contássemos com a presença de Jesus que para aquele pequeno é clara e evidente.

  1. Paulo recorda-nos a radical diferença da vida que se constrói em Jesus Cristo: «se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram: tudo foi renovado». A vida em Jesus Cristo é nova e renovadora. A vida sem Cristo não seria apenas mais pobre ou com menos sentido. Na verdade, não seria vida, não teria o mesmo sabor e a mesma força, porque lhe faltaria Aquele que oferece vida verdadeira e prenhe de sentido. Jesus Cristo é o único capaz de dominar e ultrapassar os limites da nossa existência: Ele domina os ventos e marés, vence o pecado e a morte. Por isso, caminhar com Ele é fazer a experiência da força transformadora e renovadora do Seu amor.

Caminhar com Jesus, é, antes de tudo, seguir com Aquele que permanentemente nos desafia: «passemos à outra margem do lago». Como aos discípulos de outrora, Jesus conduz-nos mais longe, mais largo e mais alto. Jesus retira-nos da nossa mediocridade e aponta-nos sempre um horizonte maior e mais largo. Jesus não nos quer instalados e acomodados e ensina-nos a viver a arte de estarmos tranquilos enquanto estivermos inquietos, enquanto no nosso coração residir o desejo de progredir na estrada da santidade.

Atravessar o mar da vida implica largar as seguranças. O medo pode assolar-nos, mas dissipa-se se formos capazes de levar Jesus na nossa barca. Se é Ele que nos convoca e envia, também é Ele que nos precede e acompanha na missão. Por isso, não espanta que diante dos ventos contrários façamos a experiência do aparente sono de Deus. O medo sacode a barca ao ponto de nos fazer sentir totalmente desprotegidos e nem as seguranças de outras tempestades nem as palavras consoladoras que tantas vezes dirigimos a outros parecem fazer sentido: «Mestre, não Te importas que pereçamos?».

A mim surpreende-me sempre que diante daquela tempestade o primeiro instinto tenha sido acordar Jesus. Eles sabiam bem que Ele era o filho de José, o carpinteiro, e que sua mãe era Maria que viva em Nazaré. Não seria mais sensato gritar por Pedro ou André, Tiago ou João, pescadores acostumados às lides do mar? Jesus era aprendiz de carpinteiro na oficina de S. José… Contudo, os discípulos sabem bem que só Jesus conhece o segredo do mar e da tempestade. Sabem que muitas vezes é precisar gritar para acordar Jesus, ou melhor, para acordar dentro de nós a presença efetiva de Jesus.

Os ventos e os mares sopram e Jesus dorme. Diante da violenta força dos ventos e das ondas, a aparente fragilidade de um Deus que dorme. Caminhar com Jesus será sempre abraçar o horizonte maior e mais largo da cruz, onde diante de desafios e exigências que parecem maiores do que as nossas forças, se levanta o Deus forte que dissipa os nossos medos, afasta as nossas trevas e nos abre horizontes de esperança. in Voz Portucalense

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O texto do Evangelho proposto para este XII Domingo do Tempo Comum é um incisivo apelo à fé e à confiança no meio das adversidades do tempo e da história. Diante dos dramas hodiernos, com as sombras e dificuldades que nos envolvem, precisamos de continuar a sentir ressoar nos nossos corações a voz de Jesus que dissipa os nossos medos e renova a confiança e a esperança. Este texto evangélico foi a passagem escolhida pelo Papa Francisco para nos dirigir uma palavra de esperança, no dia 27 de março de 2020, naquele inesquecível momento extraordinário de oração na Praça de S. Pedro. A leitura deste texto é uma oportuna proposta de meditação para todos nós e ajudar-nos-á sempre a repensar a vida e as suas inerentes dificuldades e exigências, convidando-nos a recentrar a nossa vida em Jesus Cristo e no Seu infinito amor. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Job 38,1.8-11

O Senhor respondeu a Job do meio da tempestade, dizendo:
«Quem encerrou o mar entre dois batentes,
quando ele irrompeu do seio do abismo,
quando Eu o revesti de neblina
e o envolvi com uma nuvem sombria,
quando lhe fixei limites e lhe tranquei portas e ferrolhos?
E disse-lhe:
‘Chegarás até aqui e não irás mais além,
aqui se quebrará a altivez das tuas vagas’».

CONTEXTO

O Livro de Job é um clássico da literatura universal, não só pela sua extraordinária beleza literária, mas também pelas questões que aborda e que tocam o âmago da existência humana. A história de Job serve de pretexto para refletir sobre alguns dos grandes desafios que se colocam aos homens de todas as épocas, nomeadamente a questão do sofrimento do justo inocente, a situação do homem diante de Deus e a atitude de Deus face ao homem.

Apresenta-nos a história de um homem bom e justo (Job), repentinamente atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a própria saúde. No corpo central do livro (cf. Job 3,1-37,24), Job interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal. Alguns dos amigos de Job procuram responder às suas questões, apresentando as explicações dadas pela teologia oficial: o sofrimento é sempre o resultado do pecado do homem; assim, se Job está a sofrer, é porque pecou… Com a veemência que vem de uma consciência em paz, Job recusa conclusões tão simplistas e demonstra a falência da doutrina oficial para explicar o seu drama pessoal. Com um apurado sentido crítico, Job vai desmontando os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusando esse Deus “contabilista” que Se limita a registar as ações boas e más do homem para lhe pagar em conformidade. Deus não pode ser isso; e o caso concreto de Job prova-o.

Rejeitada a explicação tradicional para o drama do sofrimento, Job dirige-se diretamente àquele que lhe pode fornecer as respostas: o próprio Deus. No seu discurso, muito crítico, cruzam-se a animosidade, a violência, as queixas, o inconformismo, a dúvida, a revolta, com a esperança, a fé e a confiança em Deus. Quando, finalmente, Deus enfrenta Job, recorda-lhe o seu lugar de criatura, limitada e finita; mostra-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, mostra-lhe a sua preocupação e o seu amor com cada ser criado; convida-o a não se pôr em bicos de pés, a ocupar o seu lugar de criatura e a não pôr em causa os desígnios de Deus para o mundo, já que esses desígnios ultrapassam infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento de qualquer criatura. Deus tem uma lógica, um plano, um projeto que ultrapassa infinitamente aquilo que cada homem (também Job) poderá entender.

A história termina com Job a perceber o seu lugar, a reconhecer a transcendência de Deus e a incompreensibilidade dos seus projetos, a entregar-se nas mãos de Deus com humildade e confiança.

O texto que nos é proposto faz parte do discurso com que Deus responde a Job (cf. Job 38,1-40,2). Nesse discurso, Deus coloca a Job uma série de questões sobre a terra, o mar, os grandes mistérios da natureza e da vida; a finalidade não é obter respostas de Job, mas levá-lo a perceber os seus limites, a sua ignorância, a sua incapacidade para entender o mistério insondável de Deus e os projetos que Deus tem para o mundo e para os homens.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Convivemos diariamente com realidades que são, para nós, fonte de inquietação: o terrorismo e a violência mergulham-nos num clima de ansiedade e de medo; as doenças, novas e velhas, geram angústia e sofrimento; as catástrofes naturais obrigam-nos a tomar consciência da nossa fragilidade e impotência diante das forças da natureza; as injustiças e arbitrariedades provocam revolta e descontentamento social; o desmoronamento de velhas estruturas políticas e sociais trazem insegurança e anarquia… E nós, movendo-nos neste cenário, sentimo-nos confusos e desorientados. Porque não existe ordem e harmonia no nosso mundo? Então, viramo-nos para Deus e atiramos-Lhe as nossas perguntas ou lançamos-Lhe à cara as nossas certezas. Por vezes, criticamos a sua indiferença face aos dramas do mundo; outras vezes, sentimos a tentação de Lhe mostrar, de forma clara e lógica, como é que Ele devia atuar para que o mundo fosse mais ordenado e harmonioso… Pomo-nos em bicos de pés, como se nos quiséssemos colocar no lugar de Deus e dar-Lhe lições. Estamos conscientes da omnipotência de Deus e dos nossos limites, enquanto seres humanos frágeis e limitados? Assumimos com humildade o nosso lugar de criaturas que não conseguem abarcar a grandeza e o sentido pleno dos projetos que Deus tem para o mundo e para os homens?
  • Na verdade, o Deus que criou tudo o que existe, que estabeleceu as leis que regem o universo, que conhece os segredos de cada uma das suas criaturas, que cuida de cada ser com cuidados de pai e de mãe, que mil vezes manifestou na história o seu amor e a sua bondade, não pode ignorar os problemas do homem, ou deixar que a humanidade chegue a um beco sem saída. Ele tem um projeto coerente, maduro, estável, irrevogável para o mundo e para os homens; Ele conduz-nos, através das armadilhas da história, ao encontro da realização plena, da Vida definitiva. Esta certeza deve colorir o nosso caminho de todos os dias com as cores da esperança. Somos homens e mulheres de esperança?
  • Mergulhados no mistério insondável desse Deus omnipotente, por vezes desconcertante e incompreensível, resta-nos entregarmo-nos nas suas mãos com humildade e confiança. Há desafios que Deus nos coloca e que parecem não fazer sentido à luz de uma lógica puramente humana; há caminhos que Deus nos aponta que subvertem absolutamente as nossas certezas e os nossos projetos pessoais ou comunitários; há situações da nossa vida para as quais não encontramos respostas nem sentido… Atrevemo-nos a saltar confiadamente para os braços de Deus, acreditando que Ele não nos deixa cair? É assim a nossa fé? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 106 (107)

Refrão 1: Dai graças ao Senhor, porque é eterna a sua misericórdia.

Refrão 2: Cantai ao Senhor, porque é eterno o seu amor.

 

Os que se fizeram ao mar em seus navios,
a fim de labutar na imensidão das águas,
esses viram os prodígios do Senhor
e as suas maravilhas no alto mar.

À sua palavra, soprou um vento de tempestade,
que fez encapelar as ondas:
subiam até aos céus, desciam até ao abismo,
lutavam entre a vida e a morte.

Na sua angústia invocaram o Senhor
e Ele salvou-os da aflição.
Transformou o temporal em brisa suave
e as ondas do mar amainaram.

Alegraram-se ao vê-las acalmadas,
e Ele conduziu-os ao porto desejado.
Graças ao Senhor pela sua misericórdia,
pelos seus prodígios em favor dos homens.

LEITURA II – 2 Coríntios 5,14-17

Irmãos:
O amor de Cristo nos impele,
ao pensarmos que um só morreu por todos
e que todos, portanto, morreram.
Cristo morreu por todos,
para que os vivos deixem de viver para si próprios,
mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles.
Assim, daqui em diante,
já não conhecemos ninguém segundo a carne.
Ainda que tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne,
agora já não O conhecemos assim.
Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura.
As coisas antigas passaram: tudo foi renovado.

CONTEXTO

Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo tinha criticado alguns membros da comunidade por viverem de forma pouco condizente com os valores cristãos. Ora, a crítica de Paulo provocara uma reação extremada de algumas pessoas da comunidade e uma campanha organizada no sentido de desacreditar o apóstolo. É provável que essa campanha tenha sido instigada por missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo (afirmavam, inclusive, que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter convivido com Jesus enquanto Ele andou pela Palestina com os seus discípulos). Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. Depois, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar compor as coisas.

Paulo, entretanto, partiu para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.

Reconfortado, Paulo escreveu novamente aos coríntios, fazendo uma tranquila apologia do seu apostolado e apresentando os princípios que sempre nortearam o seu ministério apostólico. Juntou ainda, nesse escrito, um apelo a que os coríntios colaborassem numa coleta em favor dos pobres da Igreja de Jerusalém, que por essa altura viviam com bastante dificuldade. Além da ajuda económica, esse gesto solidário pretendia fomentar a unidade e a comunhão entre as Igrejas. Esse escrito é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Estamos nos anos 56/57.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo segundo domingo comum integra a primeira parte da Carta (cf. 2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo analisa as suas relações com a comunidade de Corinto e explica os valores que ele sempre procurou seguir enquanto missionário e testemunha de Jesus. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Paulo convida-nos a olhar para a cruz e a contemplar o amor de Jesus. A cruz não pode apenas ser um enfeite de ouro que trazemos ao pescoço; mas tem de ser um programa de vida, um programa que o próprio Jesus nos deixou. Aquele Homem que está na cruz, que ama sem medida e que se dá completamente – até à última gota de sangue – para mudar as nossas vidas convida-nos a repensar o nosso estilo de vida, os nossos modelos de construção do mundo, os nossos valores… O “amor até ao extremo” que Jesus mostra na cruz é uma violenta denúncia da nossa indiferença diante dos desprezados, dos marginalizados, dos que não têm condições para viver com dignidade; o despojamento total de Jesus na cruz, por amor, questiona a nossa apatia diante de tantos nossos irmãos que não têm pão, nem casa, nem acesso à instrução ou à saúde; a entrega de Jesus “por todos” põe em causa o nosso egoísmo diante de tantos e tantos irmãos que olhamos sem ver e que todos os dias deixamos abandonados e perdidos nas estradas da vida… Quando contemplamos a cruz de Jesus, o que é que vemos? O que é que sentimos? O amor de Jesus de que a cruz fala tão eloquentemente, inspira-nos a amar, a cuidar, a salvar os nossos irmãos?
  • O objetivo de Deus é fazer aparecer o Homem Novo e a Nova Humanidade. Aos homens, é pedido que aceitem a proposta de Deus, que aceitem renunciar à vida velha do egoísmo e da escravidão e que aceitem nascer, livres e transformados, para o amor que nos torna livres. Como é que acolhemos esta proposta de Deus? Ela conta alguma coisa para nós?
  • Paulo, depois de ter encontrado Jesus, de ter aderido à sua proposta e de ter feito a experiência da liberdade e da Vida nova, tornou-se testemunha, diante dos homens, do projeto salvador e libertador de Deus para os homens. Cada homem e cada mulher que se encontra com Jesus e que faz a mesma experiência de Paulo, tem de tornar-se arauto das propostas de Deus e de anunciar aos seus irmãos, com gestos concretos, essa oferta de Vida nova e verdadeira que Deus nos faz. Nós, os que somos “de Jesus”, somos testemunhas, com palavras e gestos concretos, da Vida nova e da salvação de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 4,35-41

Naquele dia, ao cair da tarde,
Jesus disse aos seus discípulos:
«Passemos à outra margem do lago».
Eles deixaram a multidão
e levaram Jesus consigo na barca em que estava sentado.
Iam com Ele outras embarcações.
Levantou-se então uma grande tormenta
e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água.
Jesus, à popa, dormia com a cabeça numa almofada.
Eles acordaram-n’O e disseram:
«Mestre, não Te importas que pereçamos?»
Jesus levantou-Se,
falou ao vento imperiosamente e disse ao mar:
«Cala-te e está quieto».
O vento cessou e fez-se grande bonança.
Depois disse aos discípulos:
«Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?»
Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros:
«Quem é este homem,
que até o vento e o mar Lhe obedecem?»

CONTEXTO

Jesus está junto do Mar da Galileia (cf. Mc 4,1), talvez ao lado da cidade de Cafarnaum. Acabou de apresentar à multidão que o rodeia o seu anúncio, em parábolas, sobre o Reino de Deus (cf. Mc 4,2-34). Com o dia a terminar (“ao entardecer”), Jesus decidiu passar “à outra margem”. Do ponto de vista geográfico, a “outra margem” do Mar da Galileia é o território pagão da “Decápole”: era o nome dado a uma região situada na Palestina oriental, que se estendia desde Damasco, ao norte, até Filadélfia, ao sul. As “dez cidades” (“Decápole”) situadas nesse território (Damasco, Filadélfia, Rafana, Beth Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata) formavam uma confederação, constituída após a conquista da Palestina pelos romanos, no ano 63 a.C… Eram cidades de cultura grega, não sujeitas às leis judaicas. Estavam sob a administração direta do legado romano da Síria. Os judeus consideravam os habitantes da “Decápole” como pagãos, que viviam completamente à margem dos caminhos da salvação.

O episódio que Marcos nos narra, no Evangelho deste domingo, passa-se durante a travessia do “Mar da Galileia”. Na realidade, o designado “Mar da Galileia” não é um “mar”, mas antes um lago de água doce, alimentado sobretudo pelas águas do rio Jordão, com cerca de 12 quilómetros de largura e 21 quilómetros de comprimento. As tempestades que se levantavam neste “mar”, causadas pelo cruzamento dos ventos que vêm do Mar Mediterrâneo com os ventos que vêm do deserto, podiam aparecer subitamente e ser especialmente violentas.

Para entendermos melhor o que está em causa no episódio que hoje Marcos nos propõe, convém ter presente o que dissemos na primeira leitura a propósito do que o “mar” significava para a mentalidade judaica: era uma realidade assustadora, indomável, orgulhosa, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não conseguia controlar e onde estavam os poderes maléficos que queriam destruir os homens… Só Deus, com o seu poder e majestade, podia pôr limites ao mar, dar-lhe ordens e libertar os homens dessas forças descontroladas do caos que o mar encerrava.

Mais do que uma crónica fiel de uma viagem de Jesus com os discípulos através do Mar da Galileia, a narração que Marcos nos apresenta deve ser vista como uma página de catequese. Usando elementos com uma forte carga simbólica (o mar, o barco, a tempestade, a noite, o sono de Jesus), Marcos apresenta-nos uma reflexão sobre a comunidade dos discípulos em marcha pela história. Marcos escreve numa época em que a Igreja de Jesus enfrenta sérias “tempestades” (perseguição de Nero, problemas internos causados pela diferença de perspetivas entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, dificuldades sentidas pelas comunidades em encontrar o caminho para o futuro…); e propõe-se, com a sua narrativa, apresentar aos crentes indicações sobre a forma de viverem a sua fé e o seu compromisso com Jesus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A imagem de um barco onde os discípulos viajam, na companhia de Jesus, é uma bela e feliz imagem da Igreja. Há vinte e um séculos que a comunidade de Jesus viaja pela história; ao longo desta longa e atribulada viagem tem-se confrontado, permanentemente, com impérios hostis, com projetos contrários, com ideologias desafiantes, com a incompreensão do mundo… De vez em quando, ou por imperícia dos marinheiros, ou por falhas na navegação, ou porque as borrascas são especialmente violentas, parece que o barco de Jesus perdeu o rumo e vai naufragar… Mas Jesus vai nele, cuidando de tudo, presidindo a tudo e transmitindo aos discípulos que o acompanham a sua serenidade e a sua paz. Confiamos em Jesus e sentimos que Ele é mais forte do que todos os ventos e marés que temos de enfrentar? Viajamos tranquilos, com a certeza de que o barco de Jesus chegará a bom porto? Vemos e entendemos a Igreja como uma comunidade fraterna que avança na história conduzida por Jesus?
  • Esta imagem de uma viagem onde Jesus também vai poderá servir-nos para ler, ainda, as nossas “viagens” pessoais, durante as quais temos de enfrentar medos, conflitos, perseguições, incompreensões e vicissitudes de todo o tipo. Em certos momentos da “viagem” podemos enfrentar uma tremenda solidão, um medo paralisante, um desânimo angustiante, e perder a noção da presença de Jesus ao nosso lado. Perguntamo-nos, então, se Deus nos abandonou e se Jesus, o nosso companheiro de viagem, adormeceu e nos deixou entregues à nossa sorte… Ora, o Evangelho deste domingo garante-nos que Jesus nunca abandona os seus. O que talvez necessitemos é de tomar verdadeira consciência da presença d’Ele ao nosso lado. Na “viagem” da nossa vida encontramos tempo, espaço e disponibilidade para nos sentarmos ao lado de Jesus, para falarmos com Ele, para escutarmos as suas palavras, para acolhermos a paz que Ele nos oferece, ou só temos olhos e ouvidos para a voz do vento, o rugido do mar, a fúria da tempestade, o tumulto ensurdecedor de um mundo que nos rouba a paz?
  • Jesus convida os discípulos convida os discípulos a entrarem no barco com Ele e a irem até “à outra margem”, ao território dos pagãos que ainda não escutaram a Boa notícia da salvação de Deus. A comunidade que nasce de Jesus é uma comunidade missionária, cuja tarefa é ir ao encontro dos homens e mulheres prisioneiros do egoísmo e do pecado para lhes apresentar a Boa Nova da salvação. A “outra margem” de que Marcos fala no seu Evangelho é hoje qualquer lugar onde haja homens e mulheres abandonados, feridos, injustiçados, que necessitam de se encontrar com a proposta libertadora de Jesus; a “outra margem” é qualquer lugar onde haja pessoas que são violentadas nos seus direitos e na sua dignidade e que precisam que lhes seja aberta a porta da esperança; a outra margem é esse mundo indiferente e hostil que olha com desconfiança o testemunho que damos sobre Jesus, mas que necessita de se encontrar com a proposta de salvação de Deus. Estamos conscientes de que fazemos parte de uma Igreja “missionária”, que não se limita a celebrar liturgias solenes dentro de igrejas ou catedrais imponentes, mas que é enviada por Jesus às periferias da vida para aí testemunhar a salvação de Deus?
  • “Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?” – pergunta Jesus aos discípulos… Não, se eles estão com medo, é porque não confiam incondicionalmente em Jesus. Além disso, eles ainda estão na fase em que, diante das dificuldades, acham que a solução é pedir a Deus que faça uma intervenção milagrosa para os livrar dos perigos. Ainda não chegaram àquele “estado” (que é o da verdadeira fé), que os leva a dizer: “Senhor, entregamo-nos nas tuas mãos de Pai; que a tua vontade se realize, pois estamos disponíveis para a aceitar, seja ela qual for. Faça-se a tua vontade, cumpra-se o teu projeto”. Como é e como se expressa a nossa fé? Enfrentamos as crises da vida com total confiança no amor de Deus, dispostos a acolher com o coração em paz a vontade de Deus?
  • A intervenção de Jesus provoca o “temor” dos discípulos. No contexto do relato evangélico que escutamos neste domingo, o “temor” não significa o medo que paralisa, mas significa o reconhecimento de que Jesus é o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. Este “temor” é um “temor” bom, que é caminho para a fé. Também nós, como os discípulos que iam naquele barco, temos o coração tomado por esse santo “temor” que nos leva confiar totalmente em Jesus e a segui-l’O no caminho do amor até ao extremo, no caminho do dom da vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            Que a brevidade da primeira leitura não faça descurar a sua preparação, pois é um texto que requer bastante cuidado na sua proclamação. A leitura é constituída pela resposta do Senhor a Job e mais de metade do texto é composto por uma única interrogação. Pede-se o cuidado de não deixar a entoação interrogativa para o final da frase, mas ter presente logo no início na partícula interrogativa «quem».

A segunda leitura deve ser marcada por um tom exortativo com especial atenção para as pausas e respirações para uma leitura articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS, À POPA, DORMIA SOBRE UMA ALMOFADA

Vale a pena abrir a página com a serenidade do belíssimo episódio do Evangelho deste Domingo XII do Tempo Comum (Marcos 4,35-41):

«E diz-lhes naquele dia, à tardinha: “Passemos para a outra margem”. E tendo eles deixado a multidão, tomam-n’O consigo (paralambánousin autón), assim como estava (hôs ên), na Barca (en tô ploíô), e outras barcas estavam com ELE. E acontece uma grande tempestade de vento, e as ondas atiravam-se para dentro da Barca, de maneira a ficar cheia a Barca. E ELE estava à popa (prýmna), dormindo (katheúdôn) sobre a almofada (epì tô proskephálaion). E acordam-n’O e dizem-LHE: “Mestre, Tu não Te importas que pereçamos?”. E, tendo acordado, ordenou ao vento e disse ao mar: “Cala-te! Acalma-te!”. E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?”. E foram amedrontados (ephobêthêsan) de um medo grande (phóbos mégas), e diziam uns para os outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”».

Um Evangelho de excelência o deste Domingo XII do Tempo Comum. Um luxo. Em pleno mar da Galileia, os discípulos de Jesus lutam, aflitos, contra a tempestade que ameaça desfazer a pequena e frágil embarcação no meio do mar encapelado (Marcos 4,35-41). A arqueologia pôs a descoberto as pequenas embarcações de pesca do tempo de Jesus. Tinham cerca de 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, tornando-se, portanto, presa fácil das ondas. E em claro e sereno contraponto, narra o Evangelho, «Jesus, à popa, dormia deitado sobre uma almofada» (Marcos 4,38). Não nos esqueçamos que a popa, a traseira do barco, é o lugar de comando da embarcação. A dianteira é a proa. Jesus permanece, portanto, no comando da nossa barca, da nossa vida, ainda que muitas vezes nem nos apercebamos da serenidade da sua condução. A presença da almofada na pobre embarcação e do sono sereno de Jesus marcam bem o tom doce e tranquilo deste condutor diferente da nossa vida agitada. Não é a nossa agitação que conta. É o seu sono tranquilo. Ainda que algumas vezes nós caiamos na tentação, como, de resto, sucede com aqueles discípulos, de julgar o sono de Jesus como indiferença em relação a nós (Marcos 4,38).

Canta bem a Liturgia das Horas da Igreja:

«Se me colhe a tempestade,

                        E Jesus vai a dormir na minha barca,

                        Nada temo porque a Paz está comigo».

Senhor, Tu falas, tu fazes, tu chamas, tu ordenas. Todos os caminhos vêm de ti, vão para ti. És tu o Senhor de todos os chamados, de todos os reunidos, de todos os enviados. Tu és a casa, a mesa, o caminho, o vinho, o pão, o peixe. Velas por todos: pelos pais, pelos filhos, pelos irmãos, pelos desfilhados, pelos órfãos, pelos desirmanados. Vela por nós, Senhor, orienta a nossa barca, deita-te tranquilamente à popa (Marcos 4,38): o teu sono sereno há de certamente serenar as nossas tempestades.

Marcos descreve três travessias do mar da Galileia. Além da de hoje (Marcos 4,35-41), veja-se também Marcos 6,45-52 e 8,13-21. Carateriza-as sempre o facto de a precedê-las estar o afastamento das multidões. Por outro lado, estas travessias do mar na barca deixam Jesus a sós com os seus discípulos, possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. A barca (tò ploîon) demarca, de resto, um espaço privilegiado que Jesus partilha unicamente com os seus discípulos. Mais ninguém entra nessa barca, ainda que o solicite (veja-se Marcos 5,18).

Na travessia de hoje, levantou-se uma violenta tempestade, que encheu de água a pequena barca e de medo aqueles discípulos. Como Jesus dormia tranquilamente deitado sobre a almofada, os discípulos correram a acordá-lo, deixando no ar um certo tom acusatório por aquilo que julgavam ser o desinteresse de Jesus pela vida dos que seguiam com Ele: «Tu não te importas que pereçamos?» (Marcos 4,38).

Jesus levanta-se e mostra um modo novo de fazer, bem diferente dos seus discípulos. Dirige-se primeiro ao vento e ao mar, dando duas ordens: «Cala-te! Acalma-te!» (Marcos 4,39). E parou o vento, e fez-se bonança no mar (Marcos 4,39). Só depois disto, Jesus se dirige aos seus discípulos, não com duas ordens, mas com duas perguntas: «Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?» (Marcos 4,40). Os discípulos não responderam, mas expressam a sua reação perante tudo o que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer: «Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?» (Marcos 4,41).

Já lá atrás, em Cafarnaum, Jesus tinha dado ordens a um espírito impuro, e ele obedeceu (Marcos 1,26-27). Fica então claro que os espíritos impuros e as forças da natureza, que não reagem a palavras humanas, seguem à letra as ordens de Jesus. Os discípulos saem então de um temor para outro ainda maior. É o temor que resulta da experiência do poder divino, sobre humano (cf. Êxodo 14,31). Tal como o perigo, também a salvação do perigo é superior ao homem e vence a humana impotência. O temor novo daqueles discípulos mostra o sentido que começam a ver nascer do fazer divino de Jesus. Mas expressa também o seu espanto diante da pergunta de Jesus, que deixa supor que os devia habitar uma fé sem medida. Em relação a um homem, uma tal fé seria impossível e sem sentido. A pergunta que os discípulos se fazem entre si é, portanto, dupla: «Quem é este que faz tais coisas e que pede uma fé sem medida»? Esta pergunta não exprime dúvida, mas espanto sagrado e pesquisa nova. Acompanhá-los-á daqui para a frente no seu caminho com Jesus.

Note-se que, no episódio hoje diante de nós estendido, a iniciativa de entrar na Barca é de Jesus (Marcos 4,35), mas também é dito que os discípulos «pegam em Jesus, assim como estava, na Barca» (Marcos 4,36). Fica então claro que «nós pegamos nele assim como estava, do mesmo modo que Ele, que nos fez entrar na Barca, «pega em nós assim como estamos»: impotentes, desarmados, cheios de medo!

A lição do Livro de Job, de hoje (Job 38,1.8-11), faz boa companhia à soberba página do Evangelho. Antes de mais, mostra um Deus absolutamente soberano, incontrolável, que não surge na ponta das nossas perguntas ou pedidos. É um Deus absolutamente livre, que irrompe do seio da tempestade, isto é, do seio da liberdade, como nas antigas teofanias. Não vem para responder às muitas perguntas de Job. Vem, antes, para mostrar as maravilhas da criação que nos rodeiam, e fazer-nos perguntas, para as quais não temos resposta nenhuma. Apenas a adoração e o louvor. É assim que Deus faz passar diante de Job as páginas de um álbum repleto de maravilhas impenetráveis. E Job fica maravilhado, atónito, e reconhece que nada sabe, ou que apenas sabe decifrar um ou outro fragmento deste mapa deslumbrante. Uma das páginas deste álbum, a de hoje, é dedicada ao mar, de acordo com o Evangelho. As tintas são excecionais: o ventre de que irrompe, as faixas em que é envolvido como uma criança quando nasce, as portas e ferrolhos que o seguram… Só pode tudo isto ser afazer de Deus!

E aí está S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios (5,14-17), que continuamos a ter a graça de escutar. A chave da vida de Paulo e da nossa é o amor de Cristo por nós, que deve desencadear em nós o nosso amor por Cristo, de modo a vivermos, não já para nós mesmos, em clave egoísta, egocêntrica e autorreferencial, mas para Cristo que por nós morreu e ressuscitou. E aí está uma nova e bela criatura, nascida da graça, chamada a dar graças.

Hoje temos a graça de sermos postos a cantar o Salmo 107, que, na sua estrutura, se apresenta como que composto por quatro ex-votos de pessoas libertadas no meio das diferentes dificuldades que as assolavam. O primeiro ex-voto é de um viajante que se perde e é salvo no deserto (v. 4-9). O segundo vem de um prisioneiro, salvo das cadeias que o oprimiam (v. 10-16). O terceiro vem de um doente libertado das suas dores e da morte (vv. 17-22). O quarto e o mais original, que será a parte cantada hoje, vem de um marinheiro libertado no meio de uma tempestade. De forma significativa, Santo Agostinho, na sua exegese espiritual e alegórica, aplica esta última parte do Salmo aos timoneiros da barca da Igreja, isto é, aos pastores que, diz ele, «quanto mais honras têm, mais perigos têm». E eu digo: é de ter a peito esta leitura sapiencial e profunda, que perfura a superfície das coisas, e nos deixa ocupados num sério exame de consciência. Diga-se ainda, que o Salmo apresenta duas palavras dominantes: uma é a hesed divina, o amor de Deus sempre fiel; a outra é a tôdah humana, a humana gratidão a Deus pelos seus feitos maravilhosos em nosso favor. As duas formam um belo abraço.

Pega em nós, Senhor,
Pega em nós assim como somos,
Assim como estamos,
Perdidos e cansados
Neste mar imenso em que nos afogamos!
Concede-nos, Senhor Jesus,
Que neste tempo de dor e desalento,
Nos ajoelhemos aqui,
Nos refugiemos aqui,
Ao pé da tua Cruz de Luz,
À espera de encontrar algum alento.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 (Job 38, 1.8-11)
        2. Leitura II do Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 (2Cor 5, 14-17)
        3. Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024

Viver a Palavra

Já todos fizemos a experiência de estar a escutar alguém e não conseguir perceber o alcance das suas palavras e o seguimento do seu raciocínio. É uma experiência exigente e desconcertante, pois muitas vezes é exigente para nós interpelar constantemente a pessoa para que se faça entender. Pelo contrário, todos guardamos na memória aquele professor que era capaz de descer ao nosso nível de entendimento, fazer-se entender mesmo quando falava das matérias mais complexas e profundas. A capacidade de se tornar percetível é sinal de empatia e da aptidão para sintonizar com a experiência e a realidade do outro, para que possamos ser eficazes na mensagem que queremos transmitir. Deste modo, esta missão só é possível através de um real interesse pela realidade concreta do nosso interlocutor e uma consciência acurada da importância da mensagem que queremos dirigir.

Assim nos aparece Jesus no evangelho deste Domingo! Ele conhece bem a realidade concreta dos seus interlocutores e está consciente da importância da mensagem que tem para lhes dirigir. Jesus é o Verbo Incarnado, o Rosto da Misericórdia do Pai, Deus eterno e omnipotente dito em carne humana. Vem ao encontro da humanidade para anunciar o Reino de Deus. Este é o centro de toda a Sua missão. Tudo aquilo que disse, fez e ensinou foi para instaurar no mundo o Reino do Pai. Esse Reino está já no meio de nós, mas ainda não se realizou em plenitude: «nós estamos sempre cheios de confiança, sabendo que, enquanto habitarmos neste corpo, vivemos como exilados, longe do Senhor, pois caminhamos à luz da fé e não da visão clara». Vemos este Reino ainda entre as trevas e sombras do tempo presente, mas vislumbrando e saboreando já o Reino que se faz semente a germinar, mesmo quando dormimos, pois, ele não é um reino a conquistar ou a merecer, mas um dom a saber acolher.

Jesus fala da profundidade e da beleza deste Reino por meio de linguagem parabólica, sapiencial e concreta. Jesus sabe dizer e dizer-se utilizando as palavras que o nosso entendimento pode acolher. Utiliza as imagens que o quotidiano dos Seus interlocutores está acostumado a contemplar e assim faz-se percetível, acolhido e compreendido. Jesus fala de Deus através do quotidiano concreto e não de um silogismo filosófico ou um exuberante e enigmático raciocínio teológico.

Como ainda temos tanto a aprender com Jesus…. Temos ainda tanta estrada a percorrer para entrar na verdadeira sabedoria da comunicação do Evangelho do amor! Quantas vezes nos fazemos detentores de um conhecimento profundo de Deus, comunicando-O de modo complexo, fazendo jus da profundidade dogmática e exegética do conhecimento teológico, falando dos mistérios do Reino de modo elevado e abstrato.

O Reino dos Céus é como uma semente, um pequeno grão de mostarda! O Reino de Deus diz-se na simplicidade e concretude de algo insignificante, banal e quotidiano. Assim há-de ser o nosso modo de falar de Deus: deve estar presente no mais insignificante e banal do nosso quotidiano. Na normal sucessão dos nossos dias, nos mais pequenos gestos e partilhas, na nossa vida concreta e real, sem malabarismos nem máscaras, dizer Deus que se faz presente nas nossas vidas quando criamos disponibilidade para que a semente do Evangelho possa germinar e crescer. Quando deixamos esta semente crescer e somos dóceis à ação de Deus em nós, a nossa vida alarga-se, rasgam-se novos horizontes e o arco da nossa vida torna-se uma frondosa árvore onde outros se podem acolher e saborear connosco a alegria de sermos profundamente amados por Deus e chamados a tomar parte na mesa do Seu Reino. in Voz Portucalense

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A proclamação e anúncio do Reino de Deus ocupa o centro da pregação de Jesus. O Reino de Deus não é apenas o Reino que se inaugura para lá da vida sobre esta terra, mas o Reino já inaugurado por Jesus Cristo, que somos chamados a construir no aqui e agora do tempo e da história, para que se realize em plenitude no céu. Este Domingo é a oportunidade para exortar os fiéis a se sentirem protagonistas ativos da construção eclesial e da transformação do mundo, para que o Reino dos Céus se comece a construir sobre a terra e, assim, os homens e mulheres possam experimentar já o desejo do céu e acolher a salvação que o Senhor lhes oferece. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Ezequiel 17, 22-24

Eis o que diz o Senhor Deus:
«Do cimo do cedro frondoso, dos seus ramos mais altos,
Eu próprio arrancarei um ramo novo
e vou plantá-lo num monte muito alto.
Na excelsa montanha de Israel o plantarei
e ele lançará ramos e dará frutos
e tornar-se-á um cedro majestoso.
Nele farão ninho todas as aves,
toda a espécie de pássaros habitará à sombra dos seus ramos.
E todas as árvores do campo hão de saber
que Eu sou o Senhor;
humilho a árvore elevada e elevo a árvore modesta,
faço secar a árvore verde e reverdeço a árvore seca.
Eu, o Senhor, digo e faço».

CONTEXTO

No ano de 609 a. C., o faraó Necao derrotou o rei Josias e colocou no trono de Judá Joaquim, que durante algum tempo foi vassalo do Egipto. Contudo, em 605 a.C., Nabucodonosor derrotou as tropas assírias e egípcias em Carquemish, prosseguiu a sua campanha em direção ao Egipto e assumiu o controlo da Síria e da Palestina. Joaquim ficou a pagar tributo aos babilónios. Quando, em 601, Nabucodonosor não conseguiu conquistar o Egipto, Joaquim julgou chegada a hora de se libertar do domínio babilónico. Contudo, Nabucodonosor reagiu sitiando Jerusalém, em 598 a. C., e Joaquim morreu durante o cerco, ou foi deportado para a Babilónia. Sucedeu-lhe Jeconias que, ao fim de três meses de resistência, se rendeu aos babilónios (597 a.C.).

Nabucodonosor instalou, então, no trono de Judá um tal Sedecias. Durante algum tempo, Judá manteve-se tranquilo, pagando pontualmente os tributos devidos aos babilónios; mas, ao fim de algum tempo, aproveitando a conjuntura política favorável, Sedecias aliou-se com os egípcios e deixou de pagar o tributo. Nabucodonosor enviou imediatamente um exército que cercou Jerusalém. Apesar do socorro de um exército egípcio, Jerusalém teve de se render aos babilónios (586 a.C.). Sedecias tentou fugir da cidade; mas foi feito prisioneiro, viu os seus filhos serem assassinados e ele próprio foi levado prisioneiro para a Babilónia, onde acabou os seus dias.

Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte do primeiro grupo de exilados que, em 597 a.C., foram levados para Babilónia, após a derrota de Jeconias.

A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor). Nesta fase, o profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Javé por parte desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.

É precisamente neste contexto que Ezequiel propõe uma parábola, que nos é apresentada ao longo do capítulo 17 do seu livro. Fala de uma “águia” (provavelmente o rei Nabucodonosor), que “veio do Líbano comer a ponta do cedro (a “casa de David”). Apanhou o ramo mais elevado” (o rei Jeconias) e levou-o “para o país dos comerciantes” (a Babilónia). Em seu lugar, plantou outra árvore (provavelmente Sedecias). Esta árvore, uma “videira”, não irá, contudo, prosperar, apesar das tentativas de aliança com o Egipto. Essa “videira” será, por sua vez, levada para a Babilónia, para o Exílio, e aí morrerá (Ez 17,16).

A parábola é dirigida aos exilados da primeira leva que, na Babilónia, se entusiasmam com as alianças políticas entre Sedecias e os egípcios. Convencidos de que os babilónios irão ser derrotados, eles esperam poder voltar muito em breve à sua terra. Ezequiel, que vê as coisas com mais realismo, convida-os a não terem ilusões: as jogadas políticas de Sedecias não significarão a liberdade dos exilados, mas, pelo contrário, conduzirão a uma nova deportação e à destruição de Jerusalém.

Estará então tudo terminado? Já não há esperança? Deus abandonou definitivamente o seu Povo e esqueceu as suas promessas de salvação?

É precisamente aqui que, subitamente, Ezequiel encaixa o oráculo de salvação que a primeira leitura deste domingo nos apresenta: não, apesar das dramáticas circunstâncias do tempo presente, Deus não abandonou o seu Povo; mas irá construir com ele uma história nova, de salvação e de graça. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Ezequiel, nas condições terríveis do Exílio, transmite ao seu Povo uma mensagem de esperança. Ele garante aos exilados que Deus não os abandonou nem esqueceu. Deus é o Senhor do Universo, que conduz a História humana de acordo com o seu projeto de salvação; Ele é o Deus fiel em quem podemos sempre colocar a nossa confiança, com a certeza de que não ficaremos desiludidos. Esta mensagem também é para nós, homens e mulheres do séc. XXI, que viajamos pela História sob a ameaça de guerras, de conflitos, de injustiças, de maldades, de egoísmos que ferem a nossa dignidade e a dignidade de tantos dos nossos companheiros de caminho… Não estamos abandonados à nossa sorte; Deus não desistiu desta humanidade que Ele ama e continua a querer salvar. A última palavra – uma palavra que não pode deixar de ser de salvação e de graça – será sempre de Deus. Ancorados nessa certeza, temos de vencer o medo e o pessimismo que, por vezes, nos paralisam e dar aos homens nossos irmãos um testemunho de esperança, de serena confiança. Confiamos em Deus, o Senhor da História, que tem um desígnio de salvação e de graça para todos os seus filhos e filhas? Cientes do amor e da fidelidade de Deus, somos testemunhas e arautos da esperança no meio dos irmãos que caminham ao nosso lado?
  • Ezequiel também lembra aos exilados que os modelos de intervenção de Deus na História não são exatamente coincidentes com os modelos e esquemas dos homens. Enquanto os homens apostam em intervenções “musculadas” e poderosas para levar em frente os seus planos, Deus serve-se do que é débil e frágil para concretizar os seus projetos de salvação. A lógica de Deus convida-nos a repensar a nossa forma de ver, de julgar, de atuar; convida-nos a mudar os nossos critérios de avaliação e a nossa atitude face ao mundo e face aos que nos rodeiam. Por um lado, ensina-nos a valorizar aquilo e aquelas pessoas simples e humildes que o mundo, por vezes, marginaliza ou despreza; ensina-nos, por outro lado, que as grandes realizações de Deus não estão dependentes das grandes capacidades dos homens, mas antes da vontade amorosa de Deus; ensina-nos ainda que o fundamental, para sermos agentes de Deus, não é possuir brilhantes qualidades humanas, mas uma atitude de disponibilidade humilde que nos leve a acolher os apelos e desafios de Deus. A nossa forma de “abordar” o mundo e a vida tem em conta essa “lógica de Deus”? Somos capazes de “ler” os sinais de Deus na simplicidade, na humildade, na pequenez que se faz dom a todos? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 91 (92)

Refrão: É bom louvar-Vos, Senhor.

É bom louvar o Senhor
e cantar salmos ao vosso nome, ó Altíssimo,
proclamar pela manhã a vossa bondade
e durante a noite a vossa fidelidade.

O justo florescerá como a palmeira,
crescerá como o cedro do Líbano;
plantado na casa do Senhor,
florescerá nos átrios do nosso Deus.

Mesmo na velhice dará o seu fruto,
cheio de seiva e de vigor,
para proclamar que o Senhor é justo:
n’Ele, que é o meu refúgio, não há iniquidade.

LEITURA II – 2 Coríntios 5, 6-10

Irmãos:
Nós estamos sempre cheios de confiança,
sabendo que, enquanto habitarmos neste corpo,
vivemos como exilados, longe do Senhor,
pois caminhamos à luz da fé e não da visão clara.
E com esta confiança, preferíamos exilar-nos do corpo,
para irmos habitar junto do Senhor.
Por isso nos empenhamos em ser-Lhe agradáveis,
quer continuemos a habitar no corpo,
quer tenhamos de sair dele.
Todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo,
para que receba cada qual o que tiver merecido,
enquanto esteve no corpo,
quer o bem, quer o mal.

CONTEXTO

Por volta de 56/57, chegam a Corinto missionários itinerantes que se apresentam como apóstolos e criticam Paulo, lançando a confusão na comunidade. Trata-se, provavelmente, de “judaizantes” que queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei de Moisés; ou então de cristãos que condenam a severidade de Paulo e que apoiam o laxismo da vida dos coríntios. Em qualquer caso, trata-se de gente que põe em causa a validade do ministério de Paulo. O apóstolo, informado do que estava a acontecer, dirige-se a toda a pressa para Corinto, disposto a enfrentar o problema. O confronto é violento e Paulo é gravemente injuriado por um membro da comunidade (cf. 2 Cor 2,5-11; 7,11). Na sequência, Paulo abandona Corinto e parte para Éfeso. Passado algum tempo, Paulo envia Tito a Corinto, a fim de tentar a reconciliação. Quando Tito regressa, traz notícias animadoras: o diferendo foi ultrapassado e os coríntios estão, outra vez, em comunhão com Paulo. É nessa altura que Paulo, aliviado e com o coração em paz, escreve esta Carta aos Coríntios, explicando os princípios que norteiam o seu trabalho apostólico.

O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo reflete sobre a grandeza e as dificuldades, os riscos e as compensações do ministério apostólico.

O trabalho pastoral é extremamente exigente e está marcado por grandes tribulações (cf. 2 Cor 4,7-12). Paulo está cansado; mas, como homem de fé, “acredita e por isso fala” (cf. 2 Cor 14,13-15). Considera que, apesar de tudo, vale a pena acolher os desafios de Deus: no final do caminho percorrido nesta terra, espera-nos uma vida nova, uma Vida plena e eterna. Para pintar o contraste entre a vida nesta terra e a Vida futura, Paulo utiliza (cf. 2 Cor 5,1-4) a imagem da tenda que se monta e desmonta (que representa a vida transitória e corruptível desta terra) e da casa solidamente construída (que representa a vida plena e eterna). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O quadro civilizacional em que nos inserimos está fortemente marcado por uma cultura do provisório, que dá prioridade ao que é efémero sobre as realidades perenes com a marca da eternidade. Tendemos a viver ao sabor do imediato e do momento, subalternizando as opções definitivas e os valores duradouros. É também uma cultura do bem-estar material: ao seduzir os homens com o brilho dos bens perecíveis, ao potenciar o reinado do “ter” sobre o “ser”, escraviza o homem e relativiza a sua busca de eternidade. É ainda uma cultura da facilidade, que ensina a evitar tudo o que exige esforço, sofrimento e compromisso: produz pessoas incapazes de lutar por objetivos exigentes e por realizar projetos que exijam esforço, fidelidade, compromisso, sacrifício. Neste contexto, a palavra de Paulo aos cristãos de Corinto soa a desafio profético: é necessário que tenhamos sempre diante dos olhos a nossa condição de “peregrinos” nesta terra e que aprendamos a dar valor àquilo que tem a marca da eternidade. É nos valores duradouros – e não nos valores efémeros e passageiros – que encontramos a Vida plena. O fim último da nossa existência não está nesta terra; o nosso horizonte e as nossas apostas devem apontar sempre para o mais além, para a Vida plena e definitiva. Como é que nos situamos perante a vida: como alguém que se limita a “aproveitar o momento”, ou como alguém que caminha de olhos postos na eternidade? Quais são as nossas prioridades?
  • No entanto, o facto de vivermos a olhar para o mais além não pode levar-nos a ignorar as realidades terrenas e os compromissos com a construção da cidade dos homens. O Reino de Deus – que atingirá a sua plena maturação quando tivermos ultrapassado o transitório e o efémero da vida presente – começa a ser construído nesta terra e exige o nosso compromisso pleno com a construção de um mundo mais justo, mais fraterno, mais verdadeiro, mais humano. Não há comunhão com Cristo se nos demitimos das nossas responsabilidades em testemunhar os gestos e os valores de Cristo. Sentimo-nos plenamente envolvidos na construção da “cidade” dos homens? As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, como diz a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, do Concílio Vaticano II. in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 4, 26-34

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«O reino de Deus é como um homem
que lançou a semente à terra.
Dorme e levanta-se, noite e dia,
enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como.
A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga,
por fim o trigo maduro na espiga.
E quando o trigo o permite, logo mete a foice,
porque já chegou o tempo da colheita».
Jesus dizia ainda:
«A que havemos de comparar o reino de Deus?
Em que parábola o havemos de apresentar?
É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra,
é a menor de todas as sementes que há sobre a terra;
mas, depois de semeado, começa a crescer,
e torna-se a maior de todas as plantas da horta,
estendendo de tal forma os seus ramos
que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra».
Jesus pregava-lhes a palavra de Deus
com muitas parábolas como estas,
conforme eram capazes de entender.
E não lhes falava senão em parábolas;
mas, em particular, tudo explicava aos seus discípulos.

CONTEXTO

Estamos na Galileia, nas margens do lago de Tiberíades, certamente junto da cidade de Cafarnaum. Uma grande multidão está com Jesus, interessada em escutar os seus ensinamentos (cf. Mc 3,7.20.32; 4,1). Então, Jesus “sobe para um barco e senta-se nele”, ficando a multidão na margem, a escutá-l’O (Mc 4,1-2). Para que o anúncio do Reino de Deus chegue ao coração dos que O seguem, Jesus usa uma linguagem acessível, viva, interpeladora, concreta, pedagógica… As suas histórias curtas, incisivas, recamadas de imagens, podem ser catalogadas na categoria das “parábolas”.

As “parábolas” são uma linguagem habitual na literatura dos povos do Médio Oriente: o génio oriental gosta mais de falar e instruir através de imagens, de comparações, de alegorias, do que através de um discurso mais lógico, mais frio, mais racional. De resto, a linguagem parabólica tem várias vantagens em relação a um discurso mais racional e expositivo. Que vantagens?

Em primeiro lugar, é uma excelente arma de controvérsia. A linguagem figurada permite levar o interlocutor a admitir certos pontos que, de outro modo, nunca mereceriam a sua concordância. A parábola é, pois, um bom instrumento de diálogo, sobretudo em contextos polémicos (como era, quase sempre, o contexto em que Jesus pregava).

Em segundo lugar, a imagem ou comparação que caracteriza a linguagem parabólica é muito mais rica em força de comunicação e em poder de evocação, do que a simples exposição teórica. Talvez seja uma linguagem mais vaga e imprecisa, do ponto de vista racional; mas é mais profunda, mais carregada de sentido, mais evocadora e, por isso, “mexe” mais com os ouvintes.

Em terceiro lugar, porque a linguagem parabólica – muito mais do que outro tipo de linguagem – espicaça a curiosidade e incita à busca. Na sua simplicidade, torna-se um verdadeiro método pedagógico, que leva as pessoas a pensar por si, a medir os prós e os contras, a tirar conclusões, a interiorizar soluções e a integrá-las na própria vida. É uma linguagem que, mais do que injetar nas pessoas soluções feitas, as leva a refletir e a tirar daí as devidas consequências. Trata-se, pois, de linguagem altamente subversiva: ensina o povo a pensar, a ser crítico, a descobrir onde está a verdade. Ora, isso é altamente incómodo para os defensores do mundo velho e da ordem estabelecida.

Uma linguagem tão sugestiva não podia ser ignorada por Jesus no seu anúncio do reino de Deus. O evangelho deste décimo primeiro domingo do tempo comum apresenta-nos precisamente duas das mais conhecidas parábolas de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A cada instante os meios de comunicação social colocam à nossa disposição um volume considerável de informação. É uma boa coisa estarmos informados sobre o que acontece à nossa volta; mas, muitas vezes, aquilo que ouvimos e lemos traz-nos preocupação e angústia. Todos os dias somos submersos por uma avalanche de histórias de violência, de injustiça, de exploração dos mais fracos, de ganância, de orgulho, de ambição, de egoísmo. Perguntamo-nos, diante do quadro com que nos deparamos, se Deus perdeu o controle da História e se desistiu de nós… Ficamos com a impressão de que o nosso mundo é um barco desgovernado que caminha para um desastre anunciado. Jesus não tinha essa perspetiva das coisas. Ele achava que Deus semeou no mundo uma semente boa – a semente do Reino de Deus – e que essa semente está todos os dias a germinar, a crescer, a desenvolver-se, a dar fruto. E é verdade: os gestos de amor, de partilha, de serviço, de perdão que acontecem no nosso mundo são mil vezes mais do que os gestos de maldade, os gestos que causam sofrimento e dor. Como é que “lemos” aquilo que vemos acontecer à nossa volta? Como uma história de fracasso, ou como uma história de salvação onde Deus, sem dar nas vistas, está a atuar? Somos capazes de ver os sinais do Reino de Deus na vida e na história do nosso tempo?
  • Jesus veio lançar nos corações a semente do Reino de Deus. Fê-lo, com palavras e gestos, por toda a Galileia e Judeia, até dar a vida na cruz. Depois, quando voltou para o Pai, deixou aos seus discípulos a missão de continuarem a sementeira do Reino. Talvez não nos sejam pedidas coisas grandes capazes de transformar, de um instante para o outro a face do mundo; mas é-nos pedido que espalhemos à nossa volta pequenas sementes de Evangelho, que depois crescem e mudam o mundo e as vidas: um gesto amistoso dirigido a alguém que vive desorientado, um sorriso acolhedor oferecido a alguém que se sente abandonado, um sinal de proximidade acenado a alguém que está desesperado… Somos, de facto, “semeadores do Reino? As nossas palavras e os nossos gestos dão testemunho desse mundo novo que Jesus veio propor?
  • Os que, continuando a missão de Jesus, anunciam a Palavra (que lançam a semente) não devem preocupar-se com a forma como ela cresce e se desenvolve. Devem, apenas, confiar na eficácia da Palavra anunciada, conformar-se com o tempo e o ritmo de Deus, confiar na ação de Deus e no dinamismo intrínseco da Palavra semeada. Isso equivale a respeitar o crescimento de cada pessoa, o seu processo de maturação, a sua busca de caminhos de Vida e de plenitude. Não nos compete exigir que os outros caminhem ao nosso ritmo, que pensem como nós, que passem pelas mesmas experiências e exigências que para nós são válidas. Preocupamo-nos em respeitar a consciência e o ritmo de caminhada de cada homem ou mulher, como Deus sempre faz?
  • A referência à pequenez da semente (segunda parábola) convida-nos – como já o havia feito a primeira leitura deste domingo – a rever os nossos critérios de atuação e a nossa forma de olhar o mundo e os nossos irmãos. Os exemplos que a história da salvação nos revela não deixam margem para qualquer dúvida: é naquilo que é pequeno, débil e aparentemente insignificante que Deus Se revela. Deus está nos pequenos, nos humildes, nos pobres, nos que renunciaram a esquemas de triunfalismo e de ostentação; e é através deles que Deus transforma o mundo e faz acontecer a salvação. Sempre que nos deixamos levar por tentações de grandeza, de orgulho, de prepotência, de vaidade, estamos a ir em sentido contrário ao do Reino de Deus e estamos a frustrar o projeto de Deus. Temos consciência disto? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ler a frase inicial consciente de que ela abre e prepara o discurso que se segue – é Deus quem se dirige ao povo. Ter em atenção as expressões «Eu sou o Senhor» e «Eu, o Senhor, digo e faço». Estas expressões fazem parte do modo como Deus se apresenta e se identifica, por isso, deve ter-se em atenção a sua proclamação.

Na segunda leitura, deve ter-se presente o tom exortativo presente ao longo de todo o texto. Além disso, deve aproveitar-se a expressividade presente na repetição da conjunção disjuntiva «quer… quer».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UMA SEMENTE PEQUENINA

O Evangelho deste Domingo XI do Tempo Comum (Marcos 4,26-34) põe-nos na mão, nos olhos e no coração duas parábolas singulares: a da semente que germina e cresce sozinha (v. 26-29), e a do grão de mostarda (v. 30-32). As parábolas são pequenas, porque falam do que há de mais pequeno: a semente. A semente é a palavra (Marcos 4,14; Lucas 8,11). Ora, a semente – semente de planta, semente de animal, semente de homem – é a vida. Jesus ensina que é a palavra que semeia a vida, pois é o seu começo. Entenda-se por este prisma o começo da vida nova do Reino de Deus que pode sempre nascer em nós, quando temos a graça de ver chegar até nós a palavra do Evangelho, o próprio Evangelho em pessoa, Jesus Cristo, que nos faz nascer do alto e nos faz nascer de novo (ánôthen) (João 3,3).

Também pequeninos são os passarinhos que vêm abrigar-se nos ramos das árvores (Marcos 4,32). As coisas pequeninas – plantas, animais, crianças – requerem uma maior atenção. Toda a atenção, portanto, à palavra de Jesus, que nos é magistralmente repartida aos bocadinhos, como migalhas de pão.

Bem entendido, o texto das duas pequenas, mas belas parábolas hoje expostas diante de nós, vem depois da chamada «parábola do semeador» ou «da semente», que é narrada em Marcos 4,1-9, e explicada em Marcos 4,13-20, mas que devemos ter bem presente para compreendermos melhor as duas pequenas parábolas de hoje. A parábola do «semeador» ou da «semente» segue o esquema «3 + 1» [caminho, terreno pedregoso, espinhos + terra boa], que é já, de per si, ilustrativo, pois nos obriga a esperar até ao fim para ver o correto e lento percurso desde a sementeira [novembro/dezembro] até à colheita [abril/maio]. É mesmo dito, na parábola, pedagogicamente, que a semente que germina depressa também seca depressa (Marcos 4,5-6).

É notório que a semente é coisa bem pequenina. É o que há de mais pequeno. Mas contém inscrito no seu ADN um percurso semelhante ao de Jesus. De facto, uma vez caída à terra, dará o grão e o pão. Caída à terra, morre para nascer de outra maneira. É a Paixão. Da semente à Paixão e ao Pão: é todo o processo ou parábola de JESUS a passar diante dos nossos olhos atónitos! Portanto, se não entendemos a semente, o início do processo, pergunta Jesus, como entenderemos o inteiro processo e o seu final? (Marcos 4,13). Como entenderemos a glória sem a humildade?

De forma significativa, as duas parábolas de hoje, situadas ainda no cone de luz da parábola da «semente», só reclamam a ação humana em dois momentos distanciados no tempo: quando é lançada a semente à terra (Marcos 4,26), e quando chega o tempo da colheita (Marcos 4,29). Entre estes dois momentos, sucedem-se os dias e as noites, o homem dorme e acorda, e a semente lançada na terra germina, cresce e produz o seu fruto «automaticamente» (automátê), sem que o homem saiba «como» (Marcos 4,27-28). Não o sabia, e não o sabe, o homem simples, do campo, de então e de hoje, embora o saiba hoje a biogenética. Hoje, a ciência sabe o «como», mas também não sabe responder ao «porquê». Temos todos de começar mesmo pela atitude sublime da admiração!

E no que ao grão de mostarda diz respeito, a ação humana só é evocada quando o pequeno grão, que é a menor de todas as sementes, é semeado na terra (Marcos 4,31). Depois, só lhe é dado constatar que uma árvore cresce e deita grandes ramos, em que até os pássaros do céu se vêm abrigar (Marcos 4,32).

O que é que isto quer dizer? Quer dizer com certeza que o Reino de Deus tem o seu dinamismo próprio, e que é de crescimento. E mais do que querer saber qual é esse dinamismo, porventura para dele se apoderar e controlar e até empenhar-se no seu desenvolvimento, a reação do homem deve ser, antes de mais, de admiração, adoração, louvor e gratidão. Jesus, o Filho de Deus, Deus Ele mesmo, atravessa o nosso mundo na condição humilde da nossa humana natureza, utilizando a cultura hebraica em que nasceu, falando a língua então popular nessa cultura, o aramaico, servindo-se das imagens mais simples e próximas, ao alcance de todos: os campos, a semente, as árvores, as aves… Também passará pelo sofrimento e pela morte. Só depois virá a glória da ressurreição. E o Apóstolo Paulo dirá: o que aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós; como aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós! Dito por Jesus: a eles (v. 34a), aos de fora (v. 11b), tudo chega em parábolas, mas a vós (v. 11a), «aos próprios discípulos» (toîs idíois mathetaîs) (v. 34b), é dado o mistério do Reino de Deus (v. 11a), e explicava-lhes tudo (v. 34b). De notar que a expressão «os próprios discípulos» só se encontra nesta passagem, e mostra a particularíssima relação que os une a Jesus.

A parábola do pequeno rebento do cedro, apresentada por Ezequiel (17,22-24), está em perfeita sintonia com as parábolas do Evangelho de hoje. Um pequeno rebento plantado por Deus em Israel crescerá tanto que servirá de abrigo a todas as aves do céu. E além disso servirá ainda de aviso a todas as grandes árvores do campo, pois, na verdade, Deus derruba a árvore grande e exalta a pequena, seca a árvore verde e reverdece a seca. Esta pequena parábola ganha ainda mais relevo se posta em confronto com a parábola da videira luxuriante, que é o rei Sedecias, plantada por Nabucodonosor em 597, e que volta os seus ramos quer para a Babilónia quer para o Egito, as duas grandes águias, os dois senhores do tempo. Não terá sucesso Sedecias, pois será apanhada nas malhas da rede de Deus, e não vingará (Ezequiel 17,1-21). Na verdade, embora tendo fugido, é alcançado por Nabucodonosor perto de Jericó, em 587. Antes de lhe serem vazados os olhos e de ser levado cego para a Babilónia, terá de ver ainda, com os seus olhos, serem mortos os seus filhos e a sua mulher. Lição: assim caem as árvores grandes! Mas a árvore pequenina, plantada por Deus continuará a crescer sem sobressaltos e servirá de morada aos passarinhos!

O Apóstolo Paulo continua, na lição contínua ou semi-contínua da Segunda Carta aos Coríntios (5,6-10), a encorajar-nos a habitar sempre na Casa do Senhor, mesmo quando habitamos ainda neste corpo, aparentemente longe do Senhor. Os verbos a que Paulo mais recorre nestes poucos versículos são os verbos endêméô e ekdêméô (três vezes cada um). O termo chave, que explica as duas formas verbais, é dêmos [= povo], com as duas partículas en [= em] e ek [= fora de]. Endêméô significa então habitar junto do seu povo, sentir-se em casa, enquanto ekdêméô significa habitar fora do seu povo, distante de casa. A nossa casa verdadeira é estar em Casa com o Senhor. Mas enquanto estamos distantes dele, sabemos, pela fé, que é para a sua Casa que caminhamos.

O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o Cântico do dia de sábado (Salmo 92), Cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo!

Deita com ternura a semente na terra
É o seu berço natural
E adormece suavemente
Tu e a semente
A semente não erra
A semente não mente
Adormece na terra
Aparece depois um fiozinho de erva
Nasce e cresce
Uma flor floresce
Um fruto amadurece
Um pássaro desce
E reza e canta e dança e debica e agradece
Ao Senhor da messe.
Senhor Jesus,
Dá-me um coração puro e transparente
Como uma nascente,
Como uma semente,
E ensina-me a ser simples e leve
Como aquele pássaro que do céu desce,
E reza e canta e come e agradece.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitua I do Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024 (Ez 17, 22-24)
        2. Leitura II do Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024 (2Cor 5, 6-10)
        3. Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024- Lecionário
        4. Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024- Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024

Viver a Palavra

«Onde estás?»: esta é a primeira pergunta que Deus dirige à humanidade. O primeiro casal humano, ouvindo os passos de Deus, depois de terem transgredido as ordens dadas pelo Criador, esconde-se pela vergonha de se sentirem nus. A nossa fragilidade e o nosso pecado despem as máscaras e adornos com que tantas vezes camuflamos o que verdadeiramente somos. Contudo, é necessário amadurecer a capacidade de integrar na nossa vida os nossos limites e fracassos e aprender a encontrar neles pontos de esforço onde somos chamados a investir para crescer na estrada da santidade.

            Evitar a pergunta decisiva – «onde estás?» – não nos permite amadurecer nem crescer porque nos bloqueia e nos faz ficar escondidos apenas a lamentar a nossa pobre condição. Somos barro frágil e débil que permanentemente precisa de ser visitado pelo Criador para se situar no tempo e na história, na relação com Deus e com os irmãos. O itinerário crente escreve-se no devir do tempo, percorrendo a estrada que nos conduz de onde estamos e daquilo que somos, para onde Deus nos quer e para aquilo que Ele nos chama a ser. Por isso, é necessário enfrentar os medos e a vergonha que nos paralisa e nos faz esconder, para que possamos caminhar com renovada confiança na mão firme e segura Daquele que nos aponta o caminho da verdadeira liberdade.

            É sempre tentador encontrar alguém a quem jogar a culpa e desculpabilizar o nosso erro: «a mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi». Adão consegue culpabilizar a mulher, culpabilizando Deus de lha ter dado como companheira. Mas se, por um lado, é apetecível lançar fora a nossa culpa projetando-a em alguém, mais reconfortante e libertador é assumir a verdade do que somos, situar-nos no tempo e na história com as nossas mãos vazias e avançar cofiando na fragilidade que se faz força quando assumida e integrada com verdade.

            Contrasta com a figura de Adão e Eva o testemunho de Maria, aquela que diante da Sua pequenez se colocou diante de Deus disponível para o seu acontecer. A Virgem de Nazaré encontrou no cumprimento da Palavra de Deus o caminho que a fez avançar do receio e dos temores iniciais para a confiança e a ousadia da adesão total e disponível à vontade de Deus. Confrontado com a presença da sua mãe e dos seus irmãos, Jesus proclama a alta voz que Sua Mãe e Seus irmãos são aqueles que encontram na vontade de Deus a norma orientadora do Seu agir.

            Maria ensina-nos a responder à pergunta – «onde estás?» – com um sim pronto e disponível: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra». O cumprimento da Palavra de Deus e o seguimento da Sua vontade unificam a vida e transformam o coração, ao invés do pecado e da desconfiança que dão lugar à divisão e ruína: «se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode aguentar-se». O pecado fere a nossa relação com Deus e com os irmãos, destrói a harmonia e a comunhão e faz despontar a vergonha e o escondimento. Só a verdade nos liberta e só a vontade de Deus nos conduz à verdadeira liberdade. Efetivamente, a liberdade verdadeira não se define como um átrio largo e vasto onde todas as coisas nos são possíveis, mas na consciência de que sou verdadeiramente livre quando podendo fazer a escolha decisiva entre o bem e o mal, escolho o bem supremo que é Jesus Cristo e o Seu Evangelho.in Voz Portucalense

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            Este mês de junho é marcado pelas festas dos Santos Populares que enchem as nossas terras de alegria, música e comemorações típicas. Na verdade, a celebração das festas dos santos deve ser sempre marcada pela alegria e pela festa, pois recordamos o testemunho gaudioso daqueles que seguiram a Cristo de todo o coração. A Liturgia da Palavra deste Domingo recorda que o seguimento de Jesus se faz abraçando a nova lógica do Reino, assumindo as nossas fragilidades e limitações, encontrando no fiel cumprimento da vontade de Deus o caminho da verdadeira liberdade. in Voz Portucalense

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 3,9-15

Depois de Adão ter comido da árvore,
o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe:
«Onde estás?»
Ele respondeu:
«Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim
e, como estava nu, tive medo e escondi-me».
Disse Deus:
«Quem te deu a conhecer que estavas nu?
Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?»
Adão respondeu:
«A mulher que me destes por companheira
deu-me do fruto da árvore e eu comi».
O Senhor Deus perguntou à mulher:
«Que fizeste?»
E a mulher respondeu:
«A serpente enganou-me e eu comi».
Disse então o Senhor Deus à serpente:
«Por teres feito semelhante coisa,
maldita sejas entre todos os animais domésticos
e todos os animais selvagens.
Hás de rastejar e comer do pó da terra
todos os dias da tua vida.
Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher,
entre a tua descendência e a descendência dela.
Ela há de atingir-te na cabeça
e tu a atingirás no calcanhar».

CONTEXTO

            Como indica a palavra Génesis (que significa «origem»), que intitula o primeiro livro da Sagrada Escritura, este é o livro das origens, não apenas porque narra o início da criação e do mundo (cf. Gn 1,1: «No princípio, Deus criou…»), mas porque vem ao encontro das perguntas existenciais de todos os homens e mulheres: «Quem sou eu? Donde venho? Para onde vou?». Assim, mesmo na divisão clássica em duas partes, o primeiro livro da Bíblia responde à pergunta sobre as origens: primeiro, as origens da criação e do ser humano (cf. Gn 1,1–11,26); depois, as origens de Israel, com os chamados ciclos dos patriarcas (cf. Gn 11,27–50,26).

            Sobretudo no que diz respeito à primeira parte, não se deve procurar uma história factual (cada vez mais, as traduções da Bíblia traduzem «’adam» como «homem», em vez de «Adão», mostrando como, naquele primeiro homem, está presente o drama de cada ser humano); deve ler-se aí uma história poético-simbólica, em que a poesia e o símbolo abraçam a realidade, mas ultrapassam-na. O autor sagrado condensa, com certeza, várias tradições que foram sendo transmitidas oralmente e que respondem à pergunta sobre as origens da criação, do ser humano na sua diferenciação e complementaridade homem-mulher, do mal, das várias línguas, etc.

            Esta primeira leitura faz parte do segundo relato da criação (cf. Gn 2,4b–3,24), o único a narrar a transgressão, não como um facto histórico, mas como um modo de perceber as origens do mal – que, como veremos, não se encontra em Deus, nem no ser humano, mas é externa – e da luta intrínseca dos homens e mulheres contra o autor do mal. Leva-nos até ao relato do encontro de Deus com o homem e a mulher, depois de estes terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (cf. Gn 3,1-7), transgredindo a ordem que lhes tinha sido expressamente dada, de não comer de duas árvores, da árvore do conhecimento do bem e do mal e da árvore da vida (cf. Gn 2,16-17).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O estilo do texto da primeira leitura, de diálogo entre Deus e os personagens deste relato, ajuda a colocar-se na narrativa, escutando as perguntas de Deus ao homem: «Onde estás?» (v. 9), «Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?» (v. 11), e à mulher: «Que fizeste?» (v. 13). Uma vez que todas estas questões têm um sentido existencial, poderá ser bom voltar às origens, poder localizar-nos no espaço de Deus, responder pelas nossas ações e verificar se as nossas respostas diferem das dos personagens deste relato.
  • Diz-se que é comum a tendência para desculpabilizar, desresponsabilizar e autojustificar-se. Também neste relato se vê um contínuo passar da culpa para os outros personagens. Retomando as questões anteriores, poderá ser hora de assumir as nossas responsabilidades diante de Deus, sabendo que, como dirá o Salmo 129 (130), «no Senhor está a misericórdia e a abundante redenção». A autojustificação não é caminho; o caminho passa pela justificação trazida por Cristo na sua morte de cruz, para nos reconciliar com o Pai. Como lido com a culpa? Sou capaz de assumir a minha culpa diante de Deus, confiando na sua misericórdia?
  • A origem última de toda a complicação remonta ao facto de se ter dado ouvidos à serpente: «A serpente enganou-me e eu comi» (v. 13). Se este réptil é uma imagem do diabo e do poder do mal, é importante estar de sobreaviso diante da tentação do maligno. Como várias vezes tem ensinado o Papa Francisco: «Não se dialoga com o demónio». É ainda o Pontífice a dizer: «A vida cristã é uma luta permanente. Requer-se força e coragem para resistir às tentações do demónio e anunciar o Evangelho. […] Não pensemos que é um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia. Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demónio não precisa de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, “como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar” (1Pd 5,8)» (Gaudete et Exsultate161). Como vivo a renúncia ao demónio e às suas seduções, prometida no ato do meu Batismo? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 129 (130)

Refrão:  No Senhor está a misericórdia e abundante redenção.

Ou:  No Senhor está a misericórdia,
no Senhor está a plenitude da redenção.

 

Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor,
Senhor, escutai a minha voz.
Estejam os vossos ouvidos atentos
à voz da minha súplica.

Se tiverdes em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá salvar-se?
Mas em Vós está o perdão
para Vos servirmos com reverência.

Eu confio no Senhor,
a minha alma confia na sua palavra.
A minha alma espera pelo Senhor
mais do que as sentinelas pela aurora.

Porque no Senhor está a misericórdia
e com Ele abundante redenção.
Ele há de libertar Israel
de todas as suas faltas.

LEITURA II – 2 Coríntios 4,13–5,1

Irmãos:
Diz a Escritura: «Acreditei, por isso falei».
Com este mesmo espírito de fé,
também nós acreditamos, e por isso falamos,
sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus
também nos há de ressuscitar com Jesus
e nos levará convosco para junto d’Ele.
Tudo isto é por vossa causa,
para que uma graça mais abundante
multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos
para glória de Deus.
Por isso, não desanimamos.
Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando,
o homem interior vai-se renovando de dia para dia.
Porque a ligeira aflição dum momento
prepara-nos, para além de toda e qualquer medida,
um peso eterno de glória.
Não olhamos para as coisas visíveis,
olhamos para as invisíveis:
as coisas visíveis são passageiras,
ao passo que as invisíveis são eternas.
Bem sabemos que,
se esta tenda, que é a nossa morada terrestre, for desfeita,
recebemos nos Céus uma habitação eterna,
que é obra de Deus
e não é feita pela mão dos homens.

CONTEXTO

            A Segunda Carta aos Coríntios é, em grande parte, uma apologia do Apóstolo Paulo em favor do seu ministério apostólico, diante de quem não o reconhece. Numa primeira apologia, em 2Cor 2,14–4,6, Paulo tinha-se baseado muito na autoridade do Antigo Testamento, para provar a verdade da sua atividade apostólica, tão gloriosa a ponto de ofuscar o ministério de Moisés. O nosso texto situa-se na segunda apologia de Paulo (2Cor 4,7–5,10), desta feita baseada não tanto sobre os textos sagrados do Antigo Testamento, mas sobre uma antropologia em perspetiva escatológica, que será bem visível no nosso texto. Esta segunda apologia responde a algumas questões que os seus adversários poderiam colocar-se: uma delas é perceber como é que o ministério apostólico, por ele defendido na primeira apologia, pode ser tão provado e atribulado (cf. 2Cor 4,8-9.17). A resposta apologética de Paulo pautar-se-á por uma estratégia muito particular de ler toda a situação presente, claramente marcada pelas tribulações, à luz do futuro, do mundo que há de vir, das coisas últimas (escatologia). Nesta releitura, Paulo acentuará a comunhão: a comunhão que o une a Jesus Ressuscitado e a comunhão com os crentes, incluídos muito provavelmente também os destinatários desta Carta.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A atitude de Paulo diante das tribulações serve de modelo para os cristãos de todos os tempos, como atitude a conservar diante das provas e tribulações, quer derivem do exercício dos diversos ministérios na comunidade eclesial, quer se refiram a tantas outras situações que derivam do próprio “ser cristãos” no mundo contemporâneo. É antes de mais uma atitude de fé e de confiança que tem a eternidade como fim bem visível. A ressurreição de Cristo abriu caminho, para mostrar que a vida humana não se confina à vida terrena, mas é chamada à vida de comunhão com Jesus ressuscitado, sentado à direita do Pai. A fé na vida eterna deve continuar a iluminar o momento presente dos cristãos. Que influência tem a fé na forma como olho o mundo?
  • A comunhão eclesial é certamente uma das marcas distintivas do que significa ser cristãos. Jesus dá forma a essa comunhão através do mandamento novo do amor e reza para que esta comunhão se mantenha e seja imagem da sua comunhão com o Pai. Paulo dá mostras de a viver, porque espera continuar unido aos cristãos, a quem se dirige, também na vida eterna. Além disso, todo o seu ministério apostólico se destina a gerar novos cristãos. Paulo é exemplo do desempenho do ministério como serviço à Igreja, não para a sua glória pessoal, não para se servir a si mesmo, mas estar verdadeiramente ao serviço dos outros. Que peso tem a comunhão eclesial na minha existência crente? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 3,20-35

Naquele tempo,
Jesus chegou a casa com os seus discípulos.
E de novo acorreu tanta gente,
de modo que nem sequer podiam comer.
Ao saberem disto, os parentes de Jesus
puseram-se a caminho para O deter,
pois diziam: «está fora de Si».
Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam:
«Está possesso de Belzebu,
e ainda:
«É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios».
Mas Jesus chamou-os e começou a falar-lhes em parábolas:
«Como pode Satanás expulsar Satanás?»
Se um reino estiver dividido contra si mesmo,
tal reino não pode aguentar-se.
E se uma casa estiver dividida contra si mesma,
essa casa não pode aguentar-se.
Portanto, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide,
não pode subsistir: está perdido.
Ninguém pode entrar em casa de um homem forte
e roubar-lhe os bens, sem primeiro o amarrar:
só então poderá saquear a casa.
Em verdade vos digo:
Tudo será perdoado aos filhos dos homens:
os pecados e blasfémias que tiverem proferido;
mas quem blasfemar contra o Espírito Santo
nunca terá perdão: será réu de pecado eterno».
Referia-Se aos que diziam:
«Está possesso dum espírito impuro».
Entretanto, chegaram sua Mãe e seus irmãos,
que, ficando fora, mandaram-n’O chamar.
A multidão estava sentada em volta d’Ele,
quando Lhe disseram:
«Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura».
Mas Jesus respondeu-lhes:
«Quem é minha Mãe e meus irmãos?»
E, olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse:
«Eis minha Mãe e meus irmãos.
Quem fizer a vontade de Deus
esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe».

CONTEXTO

            Em Mc 3,6, tinha terminado a secção das várias controvérsias de Jesus com diversas instituições do mundo judaico. Não quer dizer que tenha terminado o confronto com essas instituições; o nosso texto será uma boa prova desse confronto. Dentro da grande secção de Mc 3,7–8,26, a perícope de Mc 3,7–6,6 em que se encontra o nosso texto será dominada pelo contraste entre a rejeição e a aceitação de Jesus como mestre e agente de ações miraculosas: por um lado, o grupo dos doze apóstolos (cf. 3,13-19) e todos os que aceitam e fazem a vontade do Pai (3,33-35); por outro, a dificuldade da família de Jesus (cf. 3,21), dos escribas (cf. 3,22) e dos habitantes de Nazaré (cf. 6,1-6) em aceitar o ministério de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O tema principal do texto do Evangelho deste domingo – sobre a identidade de Jesus – mostra que desde os inícios do cristianismo os cristãos sentiram necessidade de responder à pergunta: “Quem é Jesus?”. Ainda hoje, na ação pastoral da Igreja, sobretudo nas catequeses, é importante que todos os cristãos conheçam a identidade de Jesus, até mesmo para poderem estabelecer com ele uma relação personalizada. Que importância tem o conhecimento de Jesus na minha vida espiritual?
  • Fazer parte da família de Jesus é a vocação fundamental dos cristãos de todos os tempos. Por isso, são chamados a formar comunidade, que está centrada na pessoa de Jesus e que tem como única missão fazer a vontade de Deus em todas as circunstâncias da vida. É a isso que chama o Evangelho quando Jesus apresenta a sua verdadeira família: é quem faz a vontade de Deus e toma lugar ao redor de Jesus. Sinto que vivo em comunhão com Jesus? Quais os sinais dessa familiaridade?
  • O método para estabelecer uma relação de familiaridade com Jesus passa necessariamente por seguir o seu exemplo: é Ele o primeiro a fazer a vontade de Deus, mesmo quando isso acarreta incompreensão e rejeição do seu ministério. O cristão continua no mundo a missão de Jesus e tem como único horizonte fazer a vontade de Deus; esta é uma das petições do Pai Nosso, a oração que Jesus ensina a rezar: «Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu». De que modo deixo que a minha vida seja modelada pelo cumprimento da vontade de Deus?
  • Quando o cristão se decide a seguir Jesus, isso implica necessariamente que renuncie ao mal e ao demónio. Tal como Jesus estabelece uma clara separação entre o seu serviço e o poder de Satanás, desde o primeiro momento da vida cristã, os cristãos são chamados a renunciar a Satanás e a fazer a sua profissão de fé em Deus. Na vida ordinária, isso implica que se tenha claro que algumas práticas de bruxaria, feitiçaria e cartomancia não são práticas próprias de um cristão, mas aprisionam; Jesus vem libertar-nos desse aprisionamento de Satanás e é necessário deixar-se libertar. Na minha vida cristã há lugar para estas práticas dúbias? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter especial cuidado na articulação das diversas intervenções do diálogo entre Deus, Adão e a mulher, de modo particular, nas frases interrogativas.

            Na segunda leitura, encontramos frases longas com diversas orações intercaladas com frases muito curtas. Deve preparar-se a leitura com atenção às diversas pausas e respirações para uma leitura bem articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A VERDADEIRA FAMÍLIA DE JESUS

            É-nos dado neste Domingo X do Tempo Comum escutar o Evangelho de Marcos 3,20-35. É um texto considerado difícil, em que são facilmente identificáveis três cenas organizadas em crescendo. Primeira cena: Marcos 3,20-21: Jesus em «casa», em Cafarnaum (cf. Marcos 1,29.32; 2,1-2), procurado por todos, e sem tempo sequer para comer. Nestas condições, os «seus» (familiares), de Nazaré, saem para tomar conta dele, pois se dizia: «está fora de si» (exéstê). Segunda cena: Marcos 3,22-30: descem os escribas de Jerusalém para verem também o que se passa com Jesus. Ao verem as maravilhas que realiza, concluem que «está possuído por Belzebu» (Marcos 3,22) ou «por um espírito impuro» (Marcos 3,30), e que «é pelo príncipe dos demónios que Ele expulsa os demónios» (Marcos 3,22). Terceira cena: Marcos 3,31-35: o próprio Jesus indica quem são os seus verdadeiros familiares: não os que estão fora e de pé, mas os que estão dentro e sentados à sua volta.

            A primeira cena requer alguma atenção. A «casa» de que se fala é claramente a casa de Simão e de André, em Cafarnaum (Marcos 1,29). É aí que as multidões procuram Jesus (Marcos 3,20), como já tinha sido anotado antes em Marcos 1,33 e 2,2. Não eram, ao contrário do que algumas versões deixam entender, os familiares de Jesus, vindos de Nazaré, que «diziam: está fora de si», ou, por outras palavras, «enlouqueceu». Todo o problema reside em identificar o sujeito daquele «diziam». A forma verbal grega é élegon, que é um imperfeito impessoal, 3.ª pessoa do plural, do verbo légô. Deve, pois, traduzir-se, não que os familiares de Jesus diziam, mas que «se dizia», isto é, as pessoas diziam. Muda tudo na compreensão do texto. Os mais céticos podem sempre ver, acerca deste acerto exegético, M. Zerwich, M. Grosvenor, A Grammatical Analisis of vthe Greek New Testament, Roma, Biblical Institute Press, ed. rev., 1981, p. 109. E porque era isto que corria acerca de Jesus, os seus familiares são os primeiros que devem intervir (Deuteronómio 13,2-12; Zacarias 13,2-5).

            Na segunda cena, os escribas, representantes do saber oficial de Jerusalém, afirmam logo que Jesus faz o que faz, porque está em colaboração com as forças do mal. Este raciocínio viciado é completamente desmontado por Jesus, que faz ver aos escribas que se alguém luta contra si mesmo entra em dissolução, autodestruindo-se. Não pode, portanto, ser o mal a lutar e vencer o mal. O mal só pode ser vencido pelo bem (cf. Romanos 12,21). Só a cegueira de corações empedernidos pode recusar evidência tão evidente: de facto, quem estiver postado do lado do mal, não se porá a combater o mal, pois uma tal atitude equivaleria a destruir-se a si mesmo. Confundir a fonte do bem, operado por Jesus, com a fonte do mal, é não querer reconhecer a ação de Deus, e reconhecer o mal como único poder, único deus. E o mal não perdoa. Conta-se que Hillel, um dos grandes Mestres do judaísmo do tempo de Jesus, ao ver um cadáver a ser arrastado por uma corrente, sentenciou: «Foste morto porque mataste, mas quem te matou também será morto!». Portanto, o mal não perdoa, e funciona em cadeia. Prender Jesus, operador só do Bem, a este cadeado do mal, é contradizer a verdade reconhecida como tal. É confundir o Bem com o mal. É neste ponto preciso que não tem perdão o pecado contra o Espírito Santo.

            A terceira cena é uma bela cúpula do texto. Põe em contraponto a «casa» nova e a «casa» antiga. A casa antiga permanece vinculada ao velho livro anagráfico, que nos prende à terra, e não nos deixa ver o céu. Que nos enreda em laços familiares antigos ligados à casa antiga, e não nos deixa ver tantos novos irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas, que Deus nos dá. A família antiga, assente na terra e no sangue, fica fora e de pé. A família nova, assente no céu e na graça, fica dentro e sentada a escutar a Palavra de Jesus, para aprender a fazer a vontade de Deus.

            «Onde estás?» é a pergunta que Deus faz todos os dias a cada um de nós, e que abre hoje a narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. Vale a pena inserir aqui uma história guardada por Martin Buber nos seus escritos. Conta Buber que o Rabino Shneur Zalman foi levado pelos seus adversários para a prisão de S. Petersburgo. Um dia, enquanto aguardava o julgamento, o comandante da guarda entrou na cela do Rabino. Vendo o seu ar pensativo e sério, o comandante pôs-se a falar com ele, e aproveitou para lhe colocar algumas das perguntas que se tinham levantado no seu espírito ao ler a Escritura. Por fim, perguntou: «Como se deve interpretar que o Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás”» (Génesis 3,9). «Acredita o senhor», respondeu o Rabino, «que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todos os homens?». «Sim, acredito», respondeu o guarda. «Então», retomou o Rabino, «em cada tempo Deus interpela cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e anos que te foram atribuídos, já passaram muitos. Entretanto, até onde já chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Repara, já há quarenta e seis anos que estás nesta vida. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante teve dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabino, e exclamou: «Muito bem, muito bem!». Mas o coração estremecia-lhe.

            Depois da história incisiva que acabámos de transcrever, voltemos à narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta. «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados. A narrativa que hoje lemos, e que também nos lê, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus», porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão. É assim que chegamos a Cristo, que veio (e tinha que vir) por amor à nossa procura. À procura da ovelha perdida e escondida.

            É assim, continua S. Paulo na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,13-5,1), a afirmar que não seremos abandonados nesta tenda em ruínas, que é a nossa vida mortal. Deus vela por nós, e salva a nossa vida da ruína. É esta a experiência do orante do Salmo 116, a cuja fé e ação da fé Paulo se refere: «Também nós acreditamos, e por isso falamos (laléô) (2 Coríntios 4,13). Falar o Evangelho nunca sai de cor, mas da experiência da ação de Deus em nós. Por isso também não devemos fixar-nos na lama. Os olhos do nosso coração já devem estar postos na tenda nova e maior, no céu, onde Deus acolhe os seus filhos.

            Neste sentido, o Salmo 130 surge hoje como um grito desde o abismo profundo em que muitas vezes jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau ou degrau de profundidade está. Sim, este é um dos 15 Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações (120-134). É uma voz que se levanta e sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce, para nos ajudar a subir!

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 (Gen 3, 9-15)
        2. Leitura II do Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 (2Cor 4, 13-5,1)
        3. Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024

27E disse-lhes: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. 

28O Filho do Homem até do sábado é Senhor.» Mc 2, 27-28

 

Viver a Palavra

O descanso sabático é, por diversas vezes, objeto de discussão entre Jesus e os fariseus. Para os fariseus, o Sábado deve ser observado para lá de todas as necessidades e urgências. É o dia abençoado e santificado pelo Senhor no sétimo dia da criação e, por isso, nada nem ninguém o poderá diminuir ou subverter. Na verdade, como regista o livro do Génesis: «Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação» (Gn 2,3).

Imagem e semelhança de Deus, o homem e a mulher são chamados a viver o ritmo dos dias na sublime articulação entre o trabalho e o descanso, entre a ação e a contemplação. Como afirma Ermes Ronchi: «o Sábado é o dom mais precioso que Deus concedeu a todos os outros povos. Só a partir de então, se tornou norma para todos este ritmo de trabalho e de festa, o ritmo septenário do homem e de Deus, que articulam juntos, a vida de ambos».

O descanso, mais do que uma conquista, é um dom de Deus que resgata a humanidade do trabalho escravo que não conhece descanso, mas oferece um tempo para a comunhão com Deus e com os irmãos, para a vida em comunidade, em família e em sociedade.

Deste modo, os fariseus observando estritamente a lei herdada, fixaram o seu coração na letra da lei, ignorando que a lei deve servir o homem e que toda e qualquer lei que não respeite a dignidade humana e não a promova contradiz o desígnio do Criador. Jesus inscreve a vida humana na esteira da verdadeira liberdade, porque, para os fariseus, até o descanso era um lugar hermético e de escravidão.

Jesus vem para estabelecer um novo modo de ser e de estar, que se traduz num modo novo de servir e amar. Jesus vem para levantar a humanidade decaída e restabelecer-lhe uma nova dignidade e centralidade: «levanta-te e vem aqui para o meio». Jesus liberta e cura aquele homem, erguendo-o da sua condição e colocando-o no meio. Como cristãos, o nosso amor absolutamente centrado em Deus, deve viver-se num amor universalmente alargado aos irmãos. A verdadeira fé em Jesus Cristo não permite que ninguém seja relegado para segundo plano ou possa ficar à margem, muito menos se essa secundarização e marginalização acontecer seguindo um conjunto de regras ou preceitos que têm uma aparente capa religiosa, mas que não passam de regras rígidas que oferecem uma falsa garantia de segurança.

Aqueles que seguem Jesus Cristo libertam-se de quanto endurece o seu coração e os impede de viver a verdadeira liberdade. A verdadeira cura de coração opera-se pela capacidade de estender a mão em direção a Deus e aos irmãos. Aquele homem foi restabelecido da sua doença, estendendo a mão para Jesus: «ele estendeu-a e a mão ficou curada». Quando oferecemos a Deus tudo quanto temos e somos, mais seremos para os outros, porque na vida cristã o amor que devotamos a Deus transforma-se em amor oferecido, em gestos concretos de bondade e de ternura, para quantos se cruzam connosco na estrada da vida.

É certo que somos pecadores e como S. Paulo podemos afirmar «nós trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós». Contudo, quanto mais nos soubermos instrumentos nas mãos de Deus e deixarmos que a nossa fragilidade seja testemunho da misericórdia de Deus, tanto mais se manifestará a grandeza Daquele que atua em nós.in Voz Portucalense

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No dia 7 de junho, Sexta-feira depois do segundo Domingo depois do Pentecostes, celebramos a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. Neste dia, assinala-se também o Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes. Esta solenidade está muito enraizada na devoção dos fiéis e em muitos lugares são diversas as formas de piedade popular que assinalam este mês e este dia. É importante lembrar as palavras do Papa Francisco, nos números 122-126 da Evangelii Gaudium, onde o Santo Padre apresenta a força evangelizadora da piedade popular e dinamizar este mês e este dia ajudando os fiéis a encontrar no Coração de Jesus Cristo a revelação do rosto misericordioso de Deus. in Voz Portucalense

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Continuamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deut 5,12-15
Leitura do Livro do Deuteronómio
Eis o que diz o Senhor:
«Guarda o dia de sábado, para o santificares,
como te mandou o Senhor, teu Deus.
Trabalharás durante seis dias
e neles farás todas as tuas obras.
O sétimo, porém, é o sábado do Senhor, teu Deus.
Não farás nele qualquer trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu escravo, nem a tua escrava,
nem o teu boi, nem o teu jumento,
nem nenhum dos teus animais,
nem o estrangeiro que mora contigo.
Assim, o teu escravo e a tua escrava
poderão descansar como tu.
Recorda-te que foste escravo na terra do Egipto
e que o Senhor, teu Deus, te fez sair de lá
com mão forte e braço estendido.
Por isso, o Senhor, teu Deus,
te mandou guardar o dia de sábado».

CONTEXTO
            O livro do Deuteronómio, mesmo que de redação posterior ao tempo da narração (que seria o tempo do caminho deserto, sob a guia de Moisés) e com notórias influências de textos extra-bíblicos de culturas vizinhas do Povo de Israel (nomeadamente dos tratados de vassalagem neo-assírios), é importante para as reformas de Ezequias (725-697 a.C.; cf. 2Rs 18,4.22) e sobretudo de Josias (640-609 a.C.; cf. 2Rs 23,4-20), uma vez que as centra no evento fundador de Israel como Povo, com a celebração da Aliança no Sinai-Horeb. Os elementos fundamentais que dão corpo às reformas são: o monoteísmo (um só Deus), a centralidade do curso num só lugar (Jerusalém), a Aliança de Deus-YHWH com o povo, que faz do Povo propriedade de Deus-YHWH e, portanto, a unidade do povo, demostrando a insensatez da constituição de dois reinos no período pós-salomónico e afirmando o ideal de regressar à unidade política das 12 tribos de Israel.

O livro do Deuteronómio é tradicionalmente dividido em três grandes secções, que corresponderiam a três grandes discursos de Moisés; o nosso texto situa-se no início do segundo discurso (cf. Dt 4,44 – 26,19), depois de uma breve introdução histórica que o situa no contexto da teofania do Sinai-Horeb (Dt 4,44 – 5,5) e é parte da versão deuteronómica do decálogo (Dt 5,6-21). Quanto à sua forma literária, sendo parte do decálogo (dez mandamentos), é um texto de carácter legislativo, sem perder, porém, a sua componente didática como se vê pelo início do discurso de Moisés. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Uma compreensão anárquica da realidade poderia relativizar os preceitos do Decálogo do Deuteronómio e, mais concretamente, de «guardar o dia de sábado para o santificar». Há que ter em conta que a Lei é sobretudo instrução paternal de Deus, uma oferta para o seu Povo, para regular as relações em sociedade. O texto da primeira leitura convida-nos a regressar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, tomando a sério o valor do verbo «santificar».
  • Destacámos para o sábado e podemos fazê-lo para o domingo cristão as duas fundamentações teológicas expressas no livro do Êxodo e do Deuteronómio, respetivamente, fazendo memória do repouso do Senhor, depois da obra da criação, e da sua obra de libertação da escravidão do Egito. É importante voltar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, vivendo-o como memorial da libertação do Pecado na Páscoa de Cristo que atualiza a obra libertadora de Deus da escravidão do Egito.
  • Notámos que a celebração do Dia do Senhor – sábado para os judeus e domingo para os cristãos – tem uma grande dimensão social, sendo dia de descanso para todos, garantindo esse direito sobretudo aos pobres que se veem assim protegidos pela Lei divina. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica: «O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus “descansou” no sétimo dia, o homem deve também “descansar” e deixar que os outros, sobretudo os pobres, “tomem fôlego”. O sábado faz cessar os trabalhos quotidianos e concede uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro» (n. 2172).
  • O texto do Deuteronómio socorre-se de uma tradição antiga, que está na origem de Israel como Povo, para redefinir a própria identidade em tempo de crise, concretamente no tempo do exílio e pós-exílio. A celebração do Dia do Senhor pode ser um bom recurso para recuperar a identidade cristã. De facto, se no passado irmãos nossos deram a vida para defender o domingo («Não podemos passar sem o domingo», diziam diante do cônsul que os condenaria à morte, como quem diz, «sem nos reunirmos em assembleia ao domingo para celebrar a Eucaristia não podemos viver»). Como ensinou Bento XVI, a experiência dos mártires de Abitene pode ser paradigmática para nós cristãos do séc. XXI: «Precisamos do pão da vida para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do Senhor, é a ocasião propícia para haurir a força d’Ele, que é o Senhor da vida. Por conseguinte, o preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso sobre os nossos ombros. Ao contrário, participar na Celebração dominical, alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a comunhão dos irmãos e irmãs em Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e assim pode encontrar a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as semanas. Um caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na direção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão caminham juntas. Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para o homem realizar-se a si mesmo; perdê-la equivale a perder-se a si próprio.» in Dehonianos.

LEITURA II – 2Cor 4,6-11
Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Deus, que disse: «Das trevas brilhará a luz»
fez brilhar a luz em nossos corações,
para que se conheça em todo o seu esplendor
a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo.
Nós trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério,
para que se reconheça que um poder tão sublime
vem de Deus e não de nós.
Em tudo somos oprimidos, mas não esmagados;
andamos perplexos, mas não desesperados;
perseguidos, mas não abandonados;
abatidos, mas não aniquilados.
Levamos sempre e em toda a parte no nosso corpo
os sofrimentos da morte de Jesus,
a fim de que se manifeste também no nosso corpo
a vida de Jesus.
Porque, estando ainda vivos,
somos constantemente entregues à morte por causa de Jesus,
para que se manifeste também na nossa carne mortal
a vida de Jesus.

CONTEXTO
            A relação de Paulo com as comunidades cristãs por ele fundadas ou pelo menos solidificadas é semelhante à de um pai que se ocupa da educação dos filhos: ao verificar comportamentos pouco condizentes com a fé cristã, Paulo intervém indicando o caminho a seguir. Esta atitude não será certamente estranha a quem conhece a Primeira Carta aos Coríntios, em que o apóstolo das gentes individua vários comportamentos reprováveis e mostra o caminho a seguir, oferecendo também, normalmente, um fundamento teológico. A Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios insere-se nestas relações paternas de Paulo com aquela comunidade, que se fazem através de visitas presenciais e de correspondência epistolar. Uma vez que o seu ministério apostólico é posto em causa, muito provavelmente pelo grupo dos “Homens Espirituais” a que se refere a Primeira Carta aos Coríntios (cf. 2,6-16; 4,8-10) e nem sequer os seus cristãos vêm em sua defesa, Paulo faz a sua apologia, uma espécie de defesa do seu ministério apostólico, mostrando que nele se verificam os critérios que permitem identificar um verdadeiro apóstolo.

É neste contexto que se insere este texto proposto pela liturgia, que se esforça por demonstrar que o ministério apostólico de Paulo é condizente com o mistério de Cristo e, sobretudo, não o ofusca com pretensões de protagonismo, uma vez que é o conteúdo da mensagem transmitida por Paulo que assume o verdadeiro papel de protagonista na sua missão apostólica. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES
• São Paulo é um modelo de servidor do Evangelho para todos os que, na Igreja, se posicionam ao serviço humilde do Povo de Deus. Dele aprendemos que a grande característica do apostolado, mais que as ações pastorais inovadoras ou não, é a relação com Cristo, a ponto de trazer na própria vida as marcas dessa união, seja nas tribulações que se sofre por causa de Cristo e do Evangelho, seja porque se incarna na própria vida aquilo que se ensina.

  • Para se exercer um serviço na Igreja, mais concretamente ao serviço do anúncio e da evangelização, sem excluir nenhum dos outros serviços e ministérios, é necessário pôr de parte todo e qualquer desejo de ser protagonista, para dar protagonismo ao Evangelho, verdadeiro «tesouro» que transportamos «em vasos de barro», frágeis, da nossa fragilidade humana. Mesmo quando o Senhor fortalece a nossa fragilidade, é importante que seja claro para nós, como era para Paulo, que o verdadeiro tesouro é o Evangelho que não depende de nós, mas de Deus que no-lo deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo.
  • A vida do evangelizador deve conformar-se cada vez mais à vida de Cristo a ponto de se tornar um espelho de Cristo, um livro aberto do Evangelho, onde se pode ler os sinais da vida oferecida de Jesus. Só uma grande intimidade com Jesus Cristo, como a que teve Paulo, poderá dar-nos a possibilidade de sermos pessoas identificadas com o Evangelho que anunciamos. in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 2,23–3,6
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Passava Jesus através das searas, num dia de sábado,
e os discípulos, enquanto caminhavam,
começaram a apanhar espigas.
Disseram-Lhe então os fariseus:
«Vê como eles fazem ao sábado o que não é permitido».
Respondeu-lhes Jesus:
«Nunca lestes o que fez David,
quando ele e os seus companheiros
tiveram necessidade e sentiram fome?
Entrou na casa de Deus,
no tempo do sumo sacerdote Abiatar,
e comeu dos pães da proposição,
que só os sacerdotes podiam comer,
e os deu também aos companheiros».
E acrescentou:
«O sábado foi feito para o homem
e não o homem para o sábado.
Por isso, o Filho do homem é também Senhor do sábado».
Jesus entrou de novo na sinagoga,
onde estava um homem com uma das mãos atrofiada.
Os fariseus observavam Jesus,
para verem se Ele ia curá-lo ao sábado
e poderem assim acusá-l’O.
Jesus disse ao homem que tinha a mão atrofiada:
«Levanta-te e vem aqui para o meio».
Depois perguntou-lhes:
«Será permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal,
salvar a vida ou tirá-la?».
Mas eles ficaram calados.
Então, olhando-os com indignação
e entristecido com a dureza dos seus corações,
disse ao homem:
«Estende a mão».
Ele estendeu-a e a mão ficou curada.
Os fariseus, porém, logo que saíram dali,
reuniram-se com os herodianos
para deliberarem como haviam de acabar com Ele.

CONTEXTO
O texto evangélico deste domingo conclui a primeira secção do Evangelho de Marcos, que descreve a fase inicial do ministério de Jesus (cf. 1,14-3,6), e é a última das controvérsias de Jesus com os seus opositores acerca de algumas práticas rituais judaicas, no caso sobre o sábado judaico. É de notar que estes dois textos que formam Mc 1,23 – 3,6 são os únicos dois textos de Marcos em que Jesus se contrapõe ao sábado; no resto do Evangelho, tanto Jesus como quem está com Ele observam as práticas judaicas a respeito do mandamento de guardar o sábado. Recapitulando, Jesus tinha-se já confrontado com os escribas a respeito do perdão dos pecados ao paralítico (cf. 2,1-13), do estar à mesa com os publicamos e pecadores (cf. 2,14-17); depois, com os discípulos de João Batista e os fariseus sobre as práticas do jejum, não observado pelos discípulos de Jesus (cf. 2,18-22); confronta-se agora com os fariseus sobre o respeito pelo dia de sábado em dois episódios (2,23-28; 3,1-6), sendo que, neste último episódio, pela primeira vez os seus opositores se reuniam com os herodianos para encontrar maneira de condenar Jesus à morte (3,6), funcionando esta decisão como conclusão de todos os confrontos.
Será bom ter em conta o objetivo desta primeira secção do Evangelho de Marcos; o evangelista pretende mostrar a novidade trazida pelo movimento de Jesus, bem diferente do ambiente judaico e rabínico, mostrando o amor de Deus pelos que estavam marginalizados (os publicamos e pecadores), uma mensagem que toma corpo no perdão dos pecados (na cura do paralítico) e a total rejeição de leituras rigoristas da Lei de Moisés, demonstrando que o formalismo pode aniquilar a experiência de fé, que deve estar sempre orientada para o bem do outro. Como se verá o critério que Jesus deixa para interpretar o sábado judaico, mas também outros preceitos é o amor ao outro. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus ensina-nos a posicionar-nos com verdadeira liberdade diante da Lei de Moisés, ou melhor, diante da Lei de Deus, que nos chegou por Moisés, sem perder nunca de vista o seu objetivo de regular a nossa vida em sociedade e em Igreja, protegendo os mais frágeis e evitando toda e qualquer opressão por parte de quem exerce o poder. Interpretações rigoristas da Lei – como são as dos fariseus no nosso texto – cegam e não deixam ver as necessidades humanas que, na perspetiva de Jesus, são o verdadeiro critério para manter uma atitude livre diante da Lei.
  • O nosso texto não coloca em causa a celebração do culto no dia de sábado, mas reposiciona-a de modo que possa coabitar com o serviço dos necessitados, na pessoa dos discípulos com fome e de uma pessoa com uma mão atrofiada. A celebração do Dia do Senhor, ao domingo, pode ser cada vez mais expressão desta dupla faceta do sábado reinterpretado com Jesus que, em dia de sábado entra na sinagoga, lugar onde se realiza o culto, mas não pactua com a necessidade de quem sofre, indo em seu auxílio, dando conforto e, no caso, mesmo a cura. Se o cristão prolonga na existência a vida de Cristo, é importante que no dia maior, a Ele consagrado, não se perca de vista aqueles que foram os seus prediletos.
  • A regra hermenêutica que Jesus dá para saber o que se pode fazer ou não ao domingo pode ser transposta para outros campos da nossa vida: é importante saber que queremos estar ao serviço do bem e da salvação da vida humana, em linha com o desejo de Deus, tal como se manifesta na vida e mensagem de Jesus; a par disso, sabemos que as instituições, sejam elas religiosas ou civis, devem estar ao serviço da vida humana, para que possam realizar a missão para a qual nasceram. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em atenção o tom exortativo do texto, valorizando as formas verbais no imperativo. Além disso, o leitor deve dedicar especial cuidado à enumeração que aparece acompanhada pela partícula «nem».

Na segunda leitura, devem ser tidas em atenção as frases mais longas e com diversas orações que exigem uma acurada preparação nas pausas e respirações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

É PERMITIDO AO SÁBADO FAZER O BEM OU FAZER O MAL?

O Evangelho deste Domingo IX do Tempo Comum faz-nos escutar as últimas duas (Marcos 2,23-3,6) das cinco controvérsias reunidas em Marcos 2,1-3,6. Depois do jejum e do Esposo (Marcos 2,18-22), que ocupa o centro da estrutura, e que são escutadas no Domingo VIII, eis-nos agora perante dois episódios que nos mostram Jesus como Senhor do sábado e sob o olhar acusador de fariseus e herodianos, que começam a tramar a forma como o hão de matar (Marcos 3,6).

O primeiro episódio (Marcos 2,23-28) mostra Jesus e os seus discípulos, em dia de sábado, a atravessar os campos. E dos discípulos de Jesus, diz-nos o narrador, que, atravessando os campos, colhiam espigas (Marcos 2,23), sob o olhar judicioso e acusador dos fariseus, que interrogam Jesus acerca deste incumprimento da Lei por parte dos seus discípulos (Marcos 2,24). Colher espigas em dia de sábado, naturalmente com o intuito de comerem os grãos, eis o que não era permitido fazer. Duplo, ou mesmo triplo, incumprimento da Lei. Ao sábado era proibido colher fosse o que fosse (Êxodo 34,21), bem como preparar qualquer tipo de refeição. E era apenas permitido percorrer, entre ida e volta 1892 metros. Dado que andavam pelos campos, é provável que também este último preceito estivesse a ser violado.

Jesus responde chamando a atenção dos fariseus para o episódio narrado no Primeiro Livro de Samuel 21,2-7. Aí, David, que andava fugido de Saul, que o perseguia, dirigiu-se a Aquimelec, sacerdote do santuário de Nob, e pediu-lhe cinco pães para si e para os combatentes que o acompanhavam. Aquimelec apenas dispõe dos chamados «Pães do Rosto» (lehem panîm), que são colocados, de sábado a sábado, diante do Rosto de Deus, em número de Doze, tantos quantas as tribos de Israel, dispostos em duas filas de seis sobre uma mesa revestida de ouro colocada diante do Santo dos Santos. Trata-se de pão consagrado a Deus, renovado todos os sábados. Ao sábado, colocavam-se sobre a mesa doze pães novos, e os doze pães antigos eram comidos ou consumidos apenas pelos sacerdotes e dentro do santuário. A mais ninguém era permitido comer aqueles pães (Levítico 24,5-9; cf. Êxodo 25,23-30). Todavia, dadas as condições de miséria e de fome de David e dos seus companheiros, Aquimelec dá-lhes para comer os pães consagrados. Esta remissão para a Escritura, este «Nunca lestes…», serve a Jesus para mostrar aos fariseus que o seu rigor está em contradição com as próprias Escrituras que querem citar a seu favor.

Mas há mais. Depois de referir aos fariseus este episódio (Marcos 2,25-26), Jesus dá por subentendido, tendo em conta a conhecida argumentação rabínica «do menor para o maior», que, se foi permitido a David e aos seus companheiros comer os pães consagrados, por causa da fome, quanto mais é permitido ao Filho de David e aos seus companheiros arrancar e comer espigas profanas. E quanto ao facto de as espigas terem sido colhidas em dia de sábado, Jesus aproveita a embalagem da subentendida argumentação rabínica, para declarar logo ali que «o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado», e que, «portanto, o Filho do Homem é Senhor também do sábado» (Marcos 2,27-28).

Com estas declarações conclusivas, fica claro que Jesus tem do sábado uma noção bem diferente da que têm os fariseus. Estes também admitiam algumas exceções no que se refere à prática das prescrições sabáticas. Por exemplo, era permitido fugir para salvar a vida, ajudar uma pessoa em perigo de vida, ajudar uma mulher com dores de parto, ajudar a apagar um incêndio, e coisas semelhantes. Mas eram sempre vistas como exceções à regra. Em relação ao entendimento dos fariseus, Jesus não é apenas mais liberal, alargando, por assim dizer, o leque das exceções à regra. Não. Jesus muda própria a regra, apresentando uma diferente conceção de Deus e da reverência que lhe é devida. A diferença reside sobretudo nisto: o amor devido a Deus não colide com o bem do homem. Deus está do lado do homem. E não há mais um pedaço de tempo para dedicar a Deus e outro pedaço para dedicar ao homem. Agora, o tempo é todo de Deus, e é por ser todo de Deus, que é também todo para o homem.

A controvérsia sobre o sábado continua no segundo episódio do Evangelho de hoje (Marcos 3,1-6), em que Jesus assume todo o protagonismo. Entra na sinagoga, em dia de sábado. Não nos é dito de que sinagoga se trate: se da de Cafarnaum (cf. 1,21-28) ou de alguma das sinagogas da Galileia (cf. 1,39). Mas é-nos dito que na sinagoga em que Jesus entra está um homem (ánthrôpos) com uma mão paralisada (Marcos 3,1). E é-nos dito igualmente que estão lá outros a ver se Jesus o curaria em dia de sábado, para o poderem acusar (Marcos 3,2). Se o homem aparece apenas com a determinação genérica de «ser humano» (ántrôpos), os outros não passam de «eles», que estão lá apenas como observadores que desejam poder transformar-se em acusadores. Só Jesus tem nome. Só Jesus entra. O homem e «eles» já lá estão. O homem não pede nada; «eles» não perguntam nada. Só Jesus tem nome, só Jesus fala, só Jesus age. Ele é verdadeiramente o Senhor do Sábado.

Desenhado e preenchido o cenário, Jesus diz (légei), no presente, ao homem: «Levanta-te (egeírô), e vem para o meio!» (Marcos 3,3). E diz (légei), no presente, para «eles»: «É permitido, ao sábado, fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matá-la?» (Marcos 3,4a). Não é dito, no texto, que o homem se tenha movimentado, mas é dito que «eles» se calavam (esiôpôn: imperfeito de duração de siôpáô) (Marcos 3,4b).

Note-se bem a voz de Jesus a ecoar no presente e no silêncio. Note-se também a força da pergunta que formula, e que tem resposta demasiado óbvia. Na verdade, o bem deve fazer-se sempre, não apenas ao sábado, mas em todos os dias da semana! E o mal nunca se deve fazer, nem ao sábado nem em dia nenhum da semana! Quanto a matar, é proibido pela Lei sem mais detalhes (Êxodo 20,13). E, portanto, não salvar uma vida é violar a Lei, pois é demasiado óbvio que matamos sempre que não salvamos alguém da morte. Neste momento, o narrador mostra-nos um dos gestos mais fortes de Jesus: olha ao redor (periblépô) para «eles», com ira e tristeza, por causa da dureza do coração «deles» (Marcos 3,5a). E diz (légei), no presente, para o homem: «Estende a mão!». «Estendeu-a, e ficou restabelecida a sua mão» (Marcos 3,5b).

Esta é, nos Evangelhos, a única vez que Jesus opera uma cura por sua própria iniciativa. Note-se, porém, que «aqueles» que estavam lá para verificar se Jesus curaria ao sábado, ficaram sem nenhum registo no bloco-notas. Na verdade, Jesus nada fez que se visse no que à ação de curar diz respeito. Mas note-se agora também que Jesus tudo fez para que «eles» pudessem ver bem a sua soberania. Ao fazer vir o homem para o meio, deixou-o claramente à vista de todos. Não o tomou à parte, como referem outros relatos (cf. Marcos 7,33; 8,23). Ao dirigir-se ao homem por duas vezes (Marcos 3,3 e 5), Jesus quer que todos vejam que ele se interessa pessoalmente por aquele homem. Sim, Jesus é a transparência de Deus-Pai, que não quer nunca ficar confinado na lonjura e impessoalidade.

O texto do Deuteronómio 5,12-15, que hoje fica a retinir nos nossos ouvidos, constitui o contraponto ideal de quanto vimos e ouvimos no Evangelho. O sábado transporta consigo a memória da liberdade. Não para alguns, mas para todos: para ti, para os teus filhos e as tuas filhas, para o teu escravo e a tua escrava, para o teu boi, para o teu jumento, para todos os teus animais, para o estrangeiro que reside no teu meio. Extraordinária lição de liberdade! O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), via o Sábado como uma pérola de Israel oferecida a toda a humanidade, um Templo de tempo, e não de espaço. Israel constrói o tempo onde outros povos constroem o espaço. Novidade arquitetónica de Israel. Por isso, não se pode reduzir o sábado a um preceito. Digamos nós: o nosso Domingo não pode reduzir-se a um preceito sob pena de pecado.

E S. Paulo, na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,6-11), diz, com finura e verdade, que levamos este tesouro em vasos de barro. Ele é a Luz, faz luzir a luz, tudo alumia. A nossa luz é reflexa, e reside aí a sua beleza. Assim, não há motivo para vanglórias, mas fica claro que somos apenas (e tanto!) pura transparência de Cristo, deixando que se manifeste no nosso corpo a sua vida. Noutro lugar dirá: «Levo no meu corpo os estigmas de Jesus» (Gálatas 6,17). Belo programa de vida.

Entretanto, e sempre, ressoa no nosso pobre coração comovido e agradecido, o belo canto do Salmo 81. Sim, Deus colocou-se ao lado de Israel e ao nosso lado para nos aliviar das cargas pesadas que nos oprimem, desde o Egito até aos nossos dias.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I da Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 (Ex 24, 3-8)
        2. Leitura II da Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 (Heb 9, 11-15)
        3. Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 – Lecionário
        4. Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 – Oração Universal
        5. Leitura I do Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 (Deut 5, 12-15)
        6. Leitura II do Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 (2 Cor 4, 6-11)
        7. Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 – Lecionário
        8. Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 – Oração Universal
        9. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Solenidade da Santíssima Trindade

Dia Diocesano da Família

Fim de semana da I Jornada Mundial das Crianças – Roma – 25 e 26.05.2024

 

Viver a Palavra

DEUS!

Com toda a certeza, esta é a palavra sobre a qual mais se escreveu ao longo da história: grandes tratados demonstrando a sua existência e inúmeros escritos que negam, quer a necessidade do divino, quer a necessidade de relação com ele. Mas como é Deus em si mesmo? Como é que Deus se relaciona connosco?

É inegável que no mais íntimo do coração humano reside um desejo de plenitude e de transcendência. Na verdade, como nos recorda S. Agostinho, o coração humano é um coração inquieto que não se satisfaz com nada menos do que Deus e é, precisamente assim, que se torna um coração que ama. O nosso coração vive inquieto por Deus e não pode ser doutro modo, ainda que hoje o ser humano procure de tantos modos libertar-se desta inquietação. Contudo, como afirmou o Papa Bento XVI na homilia da Solenidade da Epifania, a 6 de janeiro de 2012: «não somos só nós, seres humanos, que vivemos inquietos relativamente a Deus. Também o coração de Deus vive inquieto relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também Ele não descansa enquanto não nos tiver encontrado. O coração de Deus vive inquieto, e foi por isso que se pôs a caminho até junto de nós – até Belém, até ao Calvário, de Jerusalém até à Galileia e aos confins do mundo. Deus vive inquieto connosco!».

Este Deus inquieto, que nos ama com amor infinito, que nos criou por amor e, por amor, nos acompanha nos caminhos da história, revela-se em Jesus Cristo e, na força do Espírito Santo, dá-nos a conhecer o Seu rosto terno e misericordioso. Deste modo, a Solenidade da Santíssima Trindade é a oportunidade de olharmos o coração de Deus, de entrarmos no Seu mistério de amor e comunhão para nos deixarmos envolver por esta corrente de graça que transforma a vida e o coração humano. A missão dos Apóstolos foi precisamente esta: acolher a inquietação de Deus por cada homem e mulher e levar o próprio Deus ao coração dos homens. Como discípulos missionários, também nós hoje somos chamados a deixar-nos tocar por esta inquietação de Deus, a fim de que o anseio de Deus pelo homem possa ser satisfeito.

Para entrar neste dinamismo de amor é necessário como os discípulos regressar à Galileia. Impressiona-me sempre que em diferentes relatos da Ressurreição Jesus dê aos discípulos indicação de voltarem ali. Regressar à Galileia significa voltar ao encontro primeiro com Jesus, ao momento em que deixaram que o Seu coração fosse tocado pelo incisivo convite de Jesus para partirem com Ele. É verdade que apesar da experiência que fizeram de Jesus Ressuscitado «alguns ainda duvidaram», mas isso não foi impedimento para que Jesus lhes confiasse a missão de partir e anunciar o Evangelho a todos os povos. A última palavra não pertence às nossas dúvidas ou receios. Eles fazem parte do caminho e devermos aprender a enfrentá-los. A última palavra pertence a Jesus que nos garante: «Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos». Acompanhados por esta certeza, os nossos medos dissipam-se, as nossas dúvidas desvanecem e diante de nós rasgam-se horizontes de esperança que na força do Espírito nos permitem olhar o céu e invocar «Abá, Pai». in Voz Portucalense

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No Domingo da Santíssima Trindade somos convidados pela liturgia a viver como artífices da comunhão e da unidade. A Igreja é Povo de Deus reunido na unidade do Pai, Filho e Espírito Santo (LG 4) e, por isso, chamada a testemunhar esta comunhão de amor. Deste modo, ao celebrar esta solenidade, cada família e cada comunidade cristã são desafiadas a renovar o seu compromisso de ser testemunhas da alegria da comunhão e da beleza de caminhar juntos. No contexto desta celebração, podem ser apresentadas alguns desafios concretos e ações de saída missionária que em família ou em comunidade se podem levar a cabo para que a comunhão e unidade que somos chamados a testemunhar não sejam apenas um conjunto de boas intenções, mas uma realidade concreta na vida e na missão de cada batizado. in Voz Portucalense

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Estamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 4,32-34.39-40

Moisés falou ao povo, dizendo:
«Interroga os tempos antigos que te precederam,
desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra.
Dum extremo ao outro dos céus,
sucedeu alguma vez coisa tão prodigiosa?
Ouviu-se porventura palavra semelhante?
Que povo escutou como tu a voz de Deus
a falar do meio do fogo
e continuou a viver?
Qual foi o deus que formou para si
uma nação no seio de outra nação,
por meio de provas, sinais, prodígios e combates,
com mão forte e braço estendido,
juntamente com tremendas maravilhas,
como fez por vós o Senhor vosso Deus no Egipto,
diante dos vossos olhos?
Considera hoje e medita no teu coração
que o Senhor é o único Deus,
no alto dos céus e cá em baixo na terra,
e não há outro.
Cumprirás as suas leis e os seus mandamentos,
que hoje te prescrevo,
para seres feliz, tu e os teus filhos depois de ti,
e tenhas longa vida
na terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre».

CONTEXTO

O Livro do Deuteronómio (“segunda Lei”) é o “livro da Lei” ou “livro da Aliança”, cujo achamento no Templo de Jerusalém, na época do rei Josias, é referido no segundo livro dos Reis (cf. 2 Re 22,3-13). Este livro teve origem no reino do Norte (Israel), em pleno séc. VIII a.C., quando alguns teólogos de Israel, descontentes com os cultos religiosos estrangeiros que pululavam por todo o lado, se dedicaram a uma reflexão sobre os compromissos de Israel no âmbito da Aliança. Dessa reflexão saiu a primeira versão do livro do Deuteronómio. Mais tarde, quando a Samaria estava para cair nas mãos dos Assírios (722/721 a.C.), esses teólogos refugiaram-se no sul (Reino de Judá) e levaram com eles as suas ideias religiosas. O livro do Deuteronómio, enquanto expressão dessas ideias, despertou algum interesse nos ambientes religiosos de Jerusalém; mas alguns decénios depois, na altura em que Judá foi governado pelos reis ímpios Manassés (687 a 642 a.C.) e Amon (642 a 640 a.C.), o livro do Deuteronómio foi retirado de circulação. Só em 622 a.C. foi encontrado em Jerusalém, a tempo de servir de motor à grande reforma religiosa levada a cabo pelo rei Josias (cf. 2 Re 23,1-14). A teologia deste livro gira à volta de algumas coordenadas fundamentais: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Javé. A partir das ideias e da teologia do livro do Deuteronómio constituiu-se uma “escola” de reflexão e de pensamento teológico, a que os modernos biblistas chamam “escola deuteronomista”. Diversos livros do Antigo Testamento nasceram a partir das ideias desta “escola”.

Literariamente, o livro do Deuteronómio apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão e entrar na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua Aliança com Javé.

O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro desses discursos (cf. Dt 1,6-4,43).  Moisés começa, no referido discurso, por fazer um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Nebo, na Transjordânia, em frente a Jericó (cf. Dt 1,6-3,29); depois, Moisés propõe ao Povo um resumo da Aliança e das suas exigências (cf. Dt 4,1-43). Os teólogos deuteronomistas pretendem sugerir, com esta sequência, que o compromisso pedido a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos.          A ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

É provável que o capítulo quatro do Livro do Deuteronómio não fizesse parte das primeiras edições da obra. A maior parte dos estudiosos veem-no como um texto redigido na fase final do Exílio na Babilónia. Mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo de Deus corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo, pela boca de Moisés, a olhar para a sua história, a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • É frequente falar-se do nosso tempo, a propósito da proliferação de certas experiências religiosas, como um tempo de redescoberta do sagrado, de regresso do espiritual, de reencontro com o divino; e nós falamos disso com um certo ar de triunfo e de contentamento. Por detrás desse discurso está, muitas vezes, o nosso desejo de voltarmos a encher as nossas igrejas e de regressarmos ao tempo em que o fenómeno religioso era estruturante na construção do edifício social. Mas, será que todas as experiências religiosas ajudam a fazer uma descoberta positiva de Deus? Certas imagens de Deus apresentadas nos discursos das seitas religiosas são verdadeiramente libertadoras? O deus fundamentalista dos fanáticos, que exige que se mate em nome dele terá algo a ver com o Deus verdadeiro? O vago aroma espiritual que alguns encontram em determinadas experiências isotéricas conduzem a uma experiência profunda e verdadeira de Deus? A “onda espiritual” que nos dá tanta esperança não terá por base, em muitos casos, uma imagem profundamente deturpada de Deus? A Solenidade da Santíssima Trindade é, antes de mais, um convite a descobrirmos o verdadeiro rosto de Deus. Quem é Deus para nós? Como O vemos? Como O entendemos?
  • No texto do livro do Deuteronómio que hoje nos é proposto como primeira leitura, os catequistas de Israel referem-se a Javé, o Deus em quem acreditam, como um Deus compassivo, misericordioso, que vem ao encontro dos homens, que está permanentemente atento aos problemas dos homens, que intervém no mundo para libertar os seus filhos de tudo aquilo que os oprime, que nunca desiste de oferecer aos homens perspetivas de Vida plena e verdadeira. Como é que os catequistas de Israel chegaram a esta “definição” de Deus? Foi a partir da vida, da contemplação da ação de Deus na história. A forma de Deus atuar mostra, claramente, a sua essência, o seu ADN, o seu rosto, o seu coração: Javé é o Deus da Aliança, da relação, da comunhão, do amor nunca desmentido. Esta “retrato” de Deus que a catequese de Israel nos oferece diz-nos alguma coisa? Podemos confirmá-la a partir da nossa própria experiência?
  • Os catequistas de Israel garantem-nos que mais nenhum “deus” é capaz de fazer por alguém aquilo que Javé faz pelo seu Povo. Esta garantia convida-nos a refletir sobre o papel que outros “deuses” (bem mais falíveis, bem menos dignos de confiança) desempenham nas nossas apostas e no nosso percurso de vida. Em quem é que pomos a nossa esperança? Esses “deuses” que tantas vezes nos seduzem (o dinheiro, o poder, a fama, o sucesso, o reconhecimento social, os valores da moda), são verdadeiramente garantia de Vida e de felicidade? Esses “deuses” trazem-nos liberdade e esperança ou escravidão e alienação?
  • Os catequistas de Israel convidam o Povo a responder a Deus cumprindo as leis e os mandamentos que Ele propõe. Faz sentido: não servirá de muito que Deus se interesse por nós e que nos aponte caminhos de Vida e de felicidade se depois nós ignoramos as suas indicações e escolhemos caminhos de egoísmo e de autossuficiência que nos levam ao encontro de uma vida completamente falhada. Os mandamentos não são propostas destinadas a limitar a nossa liberdade e a prender-nos a um deus ciumento e castrador; mas são sugestões de um Deus que nos ama, que quer a nossa felicidade e que, no respeito absoluto pela nossa liberdade, não desiste de nos indicar o caminho para a verdadeira Vida. Estamos disponíveis para escutar as indicações de Deus e para conduzir a nossa vida na direção que Deus nos sugere? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)

Refrão: Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança.

 

A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do Senhor.

A palavra do Senhor criou os céus,
o sopro da sua boca os adornou.
Ele disse e tudo foi feito,
Ele mandou e tudo foi criado.

Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.

A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.

LEITURA II – Romanos 8,14-17

Irmãos:
Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus
são filhos de Deus.
Vós não recebestes um espírito de escravidão
para recair no temor,
mas o Espírito de adoção filial,
pelo qual exclamamos: «Abba, Pai».
O próprio Espírito dá testemunho,
em união com o nosso espírito,
de que somos filhos de Deus.
Se somos filhos, também somos herdeiros,
herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo;
se sofrermos com Ele,
também com ele seremos glorificados.

CONTEXTO

A Carta aos Romanos é um texto sereno e amadurecido, escrito por Paulo por volta do ano 57/58, no final da sua terceira viagem missionária, e no qual o apóstolo apresenta uma síntese do seu pensamento teológico. O motivo invocado por Paulo para o envio desta carta é comunicar aos cristãos de Roma a sua próxima passagem pela cidade, a caminho de Espanha (cf. Rm 15,23-24): o apóstolo sente que terminou a sua missão no oriente e quer anunciar o Evangelho de Jesus no ocidente.

Muito provavelmente esse “motivo” é apenas um pretexto a que Paulo recorre para se dirigir aos Romanos e para lhes expor as suas ideias acerca da salvação. Na comunidade cristã de Roma – como, aliás, em quase todas as comunidades cristãs de então – havia divergências entre cristãos vindos do judaísmo e cristãos vindos do paganismo acerca do caminho cristão. Para os judeo-cristãos, a salvação dependia, além da fé em Cristo, da prática da Lei de Moisés; para os pagano-cristãos, a adesão a Cristo bastava. Cada um dos grupos evocava as suas raízes e considerava que o caminho que propunha era a única via para aceder à salvação. A uns e a outros, Paulo vai apresentar o essencial da mensagem cristã. Insiste, sobretudo, no facto de a salvação não ser uma conquista do homem (que resulta dos atos ou dos méritos do homem), mas um dom do amor de Deus. Na verdade, todos os homens – judeus e romanos – vivem mergulhados no pecado, pois o pecado é uma realidade universal (cf. Rm 1,18-3,20); mas Deus, na sua bondade, a todos “justifica” e salva (cf. Rm 3,1-5,11); e essa salvação é oferecida por Deus ao homem através de Jesus Cristo; ao homem, resta aderir a essa proposta de salvação, na fé (cf. Rm 5,12-8,39). Se os cristãos de Roma tiverem sempre isto em mente, não deixarão que as diferenças de perspetiva os ponham uns contra os outros.

O texto que hoje nos é oferecido como segunda leitura faz parte de um capítulo em que Paulo reflete sobre a Vida nova que Deus oferece ao batizado e à qual Paulo chama “a vida no Espírito”. O pensamento teológico de Paulo atinge, neste capítulo, um dos seus pontos culminantes, pois todos os grandes temas paulinos (o projeto salvador de Deus em favor dos homens; a ação libertadora de Cristo, através da sua vida de doação, da sua morte e da sua ressurreição; a nova vida que faz dos crentes Homens Novos e os torna filhos de Deus), se cruzam aqui.

Paulo procura, de forma especial, mostrar que os cristãos, libertos da Lei, do pecado e da morte por Jesus Cristo, deixaram a vida velha da “carne” (que é viver em oposição a Deus, numa vida de egoísmo, de autossuficiência, de orgulho, de fechamento) para viverem a vida nova do Espírito (que é viver em comunhão com Deus, escutando as suas propostas e acolhendo os seus projetos).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Paulo de Tarso era judeu. Conhecia bem a história do seu Povo e aquilo que a catequese de Israel contava sobre a ação libertadora e salvadora de Deus, concretizada na história em tantos gestos inesquecíveis. Ele, como os outros judeus piedosos, ouvira falar de Javé como o Deus da Aliança, da relação, da comunhão; e acreditava n’Ele. Mas, no texto da Carta aos Romanos que a liturgia deste dia nos propõe como segunda leitura, Paulo vai bem mais longe do que a fé tradicional do seu Povo e fala de Deus como um “Abbá”, um Pai querido, cheio de ternura e amor, preocupado em reunir à sua volta todos os seus filhos para lhes dar Vida. Provavelmente foi com Jesus que Paulo aprendeu a ver Deus como “Abbá”. Jesus e Paulo convidam-nos a olhar para Deus com a confiança, a familiaridade, o carinho, a admiração de uma criança pequenina que se sente profundamente amada, cuidada e protegida pelo seu pai. É deste jeito que nós vemos Deus? É desta forma que falamos de Deus aos nossos irmãos que O procuram?
  • Deus não se limitou a criar-nos. Ele continua a acompanhar-nos ao longo do caminho e a dar-nos Vida a cada instante. No entanto, não se impõe nem nos obriga a aceitar o seu dom; respeita sempre a nossa liberdade, as nossas opções. Cabe-nos a nós responder à oferta de Vida que Deus nos faz. É claro que, se preferirmos viver “segundo a carne” e trilhar caminhos de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência, estamos a recusar os dons de Deus e a construir uma vida sem sentido e sem objetivo; mas se optarmos por viver “segundo o Espírito”, tornamo-nos herdeiros da vida eterna. Em que situação é que nos colocamos, perante a oferta de Vida que Deus nos faz?
  • Fazer parte de uma família que tem Deus como Pai, como “Abbá”, é frequentar a escola do amor. Com Deus aprendemos a amar os nossos irmãos, a amar sem condições, a amar de forma ilimitada. A relação que temos com os outros homens e mulheres que caminham connosco deve espelhar o amor, a ternura, a misericórdia, a bondade, o perdão, o serviço, que aprendemos com o nosso Pai do céu e com Jesus, nosso irmão mais velho. É isso que acontece? As nossas relações comunitárias refletem esse amor que é a marca da “família de Deus”?in Dehonianos.

EVANGELHO – Mateus 28,16-20

Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram-n’O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou-Se e disse-lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e fazei discípulos de todas as nações,
batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos»

CONTEXTO

O texto situa-nos na Galileia, após a ressurreição de Jesus (embora não se diga se é muito ou pouco tempo após a descoberta do túmulo vazio). De acordo com Mateus, Jesus, pouco antes de ser preso, havia marcado encontro com os discípulos na Galileia (cf. Mt 26,32); e na manhã da Páscoa, tanto o anjo que apareceu às mulheres no sepulcro (cf. Mt 28,7), como o próprio Jesus, vivo e ressuscitado (cf. Mt 28,10), renovam o convite para que os discípulos se dirijam à Galileia, a fim de lá encontrar o Senhor.

A Galileia, território setentrional da Palestina, era uma região próspera e bem povoada, de solo fértil e bem cultivado. A sua situação geográfica fazia desta região o ponto de encontro de muitos povos; por isso, um número importante de pagãos fazia parte da sua população. A coabitação de populações pagãs e não pagãs fazia com que os judeus da Galileia vivessem a religião de uma maneira diferente dos judeus da Judeia, e de Jerusalém em particular: a presença diária dos pagãos levava os galileus a suavizar a sua prática da Lei e a interpretar de forma menos rígida as regras que se referiam, por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. No entanto, isto fazia com que os judeus de Jerusalém desprezassem os galileus e considerassem que da Galileia “não podia sair nada de bom”.

No entanto, foi na Galileia que Jesus começou a anunciar o Reino de Deus (cf. Mt 4,12-17); foi na Galileia que Ele reuniu à sua volta um grupo de discípulos (cf. Mt 4,12-22); foi na Galileia que Ele, ao longo de quase três anos, propôs o Reino com palavras e gestos. Depois, Jesus foi até Jerusalém para enfrentar as autoridades e para morrer; mas, vencida a violência do sistema e vencida a morte, voltou à Galileia para retomar o projeto do Reino. Ao atribuir esta centralidade à Galileia, Mateus está provavelmente a sugerir que o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal: destina-se a judeus e pagãos. De acordo com a conceção teológica de Mateus, é na Galileia e a partir da Galileia que o Evangelho de Jesus irá ao encontro do mundo.

O encontro final entre Jesus ressuscitado e os discípulos acontece num “monte que Jesus lhes indicara”. No entanto, Mateus não identifica o “monte” em questão. O “monte” é sempre, na cultura bíblica, o lugar onde Deus se revela aos homens. No entanto, o “monte” também aparece, nos Evangelhos sinóticos, como o lugar onde Jesus reúne os discípulos para lhes dar a sua “lei” ou para lhes apresentar as suas diretrizes, como aconteceu no “monte das Bem-aventuranças” (cf. Mt 5-7) ou no “monte da Transfiguração” (cf. Mt 17,1-13). Esse “monte” não identificado para onde Jesus ressuscitado convoca os discípulos será o “monte do Envio”: aqui os discípulos recebem o mandato de ir anunciar o Reino ao mundo inteiro.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Esta página final do Evangelho segundo Mateus, lida em contexto da celebração da Solenidade da Santíssima Trindade, tem um sabor especial. Convida-nos a levantar os olhos daquelas questões rasteiras e materiais que todos os dias atraem a nossa atenção e a contemplar aquilo que está no final do nosso caminho: a comunhão plena com Deus, a integração na família de Deus. Jesus veio ao nosso encontro, enviado pelo Pai, para nos convidar a integrar a família de Deus; e, quando concluiu a sua missão entre nós e voltou para o Pai, confiou aos seus discípulos a missão de levarem a todos os homens e mulheres esse mesmo convite. A proposta de Jesus também nos chegou; e nós aceitamos o convite que nos foi feito e fomos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ficamos vinculados à família trinitária. A nossa vida tem sido coerente com o compromisso que assumimos no momento do nosso batismo? Como é que sentimos, vivemos e testemunhamos esse privilégio de integrar a família de Deus?
  • O papel dos discípulos é continuar a missão de Jesus, testemunhar o amor de Deus pelos homens e convidar os homens a integrar a família de Deus. Os irmãos e irmãs com quem nos cruzamos diariamente recebem essa mensagem? As nossas palavras e os nossos gestos testemunham esse amor com que Deus ama todos os homens? As nossas comunidades são a imagem viva da família de Deus e apresentam um convite credível e convincente aos homens para que integrem a comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo?
  • A missão que Jesus confiou aos discípulos – introduzir todos os homens na família de Deus – é uma missão universal: as fronteiras, as raças, a diversidade de culturas, não podem ser obstáculo para a presença da proposta libertadora de Jesus no mundo. Todos os homens e mulheres, sem exceção, têm lugar na família de Deus. Temos consciência de que Jesus nos envia a todos os homens – sem distinção de raças, de etnias, de diferenças religiosas, sociais ou económicas – a anunciar-lhes o amor de Deus e a convocá-los para integrar a comunidade trinitária? As nossas comunidades cristãs são “casa de acolhimento” onde todos têm lugar e onde todos podem fazer a experiência de integrar a família de Deus?
  • Num mundo onde Deus nem sempre faz parte dos planos e das preocupações dos homens, testemunhar o amor de Deus e apresentar aos homens o convite para integrar a família de Deus é um enorme desafio. O confronto com um mundo indiferente a Deus gera muitas vezes, nos discípulos, desilusão, sofrimento, frustração e desencanto. Jesus sabia isso quando enviou os discípulos. Por isso garantiu-lhes: “Eu estarei convosco até ao fim dos tempos”. Estamos conscientes da presença vivificante e reconfortante de Jesus ao nosso lado nesses caminhos cheios de obstáculos que temos de percorrer? A certeza de que Jesus vai ao nosso lado sustenta o nosso testemunho e transparece nas nossas palavras e gestos?
  • A celebração da Solenidade da Trindade convida-nos a mergulhar no mistério de Deus. Fala-nos de um Deus que é amor. Diz-nos que Deus não é um ente solitário, afastado dos homens, apenas ocupado em dirigir a máquina do universo; mas é uma família onde o amor está sempre presente. Em Deus coexistem a unidade e a comunhão de pessoas. Nós dizemos, na nossa linguagem imperfeita, que Deus é um em três pessoas. Mas Deus escapa a todas as fórmulas dos teólogos para ser, apenas, um mistério de amor, uma família de três Pessoas em perfeita comunhão. E, melhor que tudo, Deus convida-nos a integrar essa comunidade de amor que Ele forma com o Filho e com o Espírito: a família de Deus, a Trindade, está sempre aberta para acolher novos filhos. Muitas vezes dizemos, pessoal e comunitariamente, “eu creio em Deus”: qual é e como é o Deus em que acreditamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é constituída pelo discurso de Moisés ao povo e, por isso, deve ser proclamada com tom solene. A maior dificuldade na proclamação desta leitura são as quatro interrogações presentes no texto, sobretudo a quarta interrogação, que é uma longa frase e com diversas orações. Na leitura das frases interrogativas deve dar-se a entoação interrogativa nas partículas interrogativas ou nas formas verbais, evitando deixar a entoação para o final da frase.

Na segunda leitura ter atenção a palavra «Abá» que deve ler-se «Ábá».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

NÃO ADORES NUNCA NINGUÉM MAIS…

Mateus 28,16-20: última página do Evangelho de Mateus, que hoje, Solenidade da Santíssima Trindade, é solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho de Mateus, condensa-o e resume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes.

Algumas notas surpreendentes enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade (1); a missão universal confiada a uma Igreja discipular, toda reunida à volta de um único Mestre e Senhor (2); só nesta página é dito que os Discípulos devem, por sua vez, ensinar, não se tornando, todavia, Mestres, mas permanecendo Discípulos (3); não ensinam, por isso, nada de próprio nem por conta própria, mas apenas «tudo o que Ele mandou» (4); a Presença nova e permanente [= «todos os dias»] do Ressuscitado na comunidade dos discípulos (5).

A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Indo depressa, dizei aos seus discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, Jesus apresenta-se às mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, apontando para nós e envolvendo-nos num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, de acordo com o dizer de Jesus, e à montanha indicada por Jesus (Mateus 28,16), é ainda Jesus que toma a dianteira e se aproxima deles e de nós (Mateus 28,18). É sempre d’Ele a iniciativa. A montanha lembra e reúne em analepse todas as montanhas que atravessam o Evangelho de Mateus: a montanha da tentação (Mateus 4,8), a das bem-aventuranças (Mateus 5,1), a da oração (Mateus 14,23), a das curas (Mateus 15,29) e a da Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça e abre caminhos à nossa frágil humanidade.

Aquele «Indo (poreuthéntes), fazei discípulos (mathêteúsate) de todas as nações» (Mateus 28,19), é a missão sem fim que é colocada diante dos nossos olhos, pois todas as nações são todos os corações. E «Ir» é não ficar aqui ou ali à espera. É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se medida tem é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está connosco todos os dias. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho: «Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos» (Mateus 28,20). Note-se a intensidade e a beleza da sanduíche: «Eu convosco sou» (Egô meth’ hymôn eimi). É assim a abrir o Evangelho: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco”» (Mateus 1,23). Então é assim todo o Evangelho, como indica a figura da inclusão literária. Mas a inclusão literária em paralelismo ou em confronto vai ainda da Galileia (Mateus 4,12-17) à Galileia (Mateus 28,16), da visão (Mateus 2,11) à visão (Mateus 28,17), da adoração (Mateus 2,11; 4,9) à adoração (Mateus 28,17), do poder dado (Mateus 4,9) ao poder dado (Mateus 28,18).

E aquele «ensinando» (didáskontes) discipular, e não magistral, apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade. De resto, para evitar dúvidas e deixar tudo claro, lá está bem expresso o conteúdo deste ensinamento novo: «tudo o que Eu vos mandei» (Mateus 28,20). É só permanecendo Discípulos fiéis que se pode ensinar. Discípulo define o estilo de vida de quem segue com fidelidade o Senhor que nos preside e nos precede sempre.

Atente-se também neste discurso em dois tempos de Moisés no Livro do Deuteronómio (4,32-40), salientando a iniciativa gratuita de Deus e exortando-nos à verdadeira Sabedoria bíblica: SABE HOJE! Não se trata de um saber assente naquilo que fizemos, fazemos ou faremos, centrado em nós, mas naquilo que, por amor, nos foi feito, nos é feito e nos será feito. Páginas admiráveis, em que a consciência do homem não é a autoconsciência daquilo que eu fiz, mas a hétero-consciência daquilo que me é feito e que eu sou HOJE chamado a reconhecer: «SABE HOJE e volta-o no teu coração: sim, o Senhor, teu Deus, é o único Deus nos céus, no alto, e sobre a terra, em baixo, e não há outro» (Deuteronómio 4,39).

SABE hoje e VOLTA-O NO TEU CORAÇÃO! Outra Sabedoria, outro saber, outro sabor. À outra luz do coração, que é onde arde o dom de Deus, Sabedoria de Deus, escrita nova de Deus no coração, viagem de Jeremias 17,1 a Jeremias 31,33, lume novo no coração dos dois Discípulos de Emaús (Lucas 24,32), em todos os que estavam reunidos em Jerusalém (Atos 2,3), e que Paulo quer acender no coração de Timóteo e no nosso (2 Timóteo 1,6).

Mas também o Espírito Santo, ensina-nos Paulo na Carta aos Romanos 8,14-17, hoje lida, escutada e meditada, opera em nós, tornando-nos de tal modo participantes da vida do Filho, que nos capacita a tratar a Deus por ʼAbbaʼ, Pai, com a mesma intimidade de Jesus (Romanos 8,15). É a adoção filial, a hyiothesía, termo jurídico grego, desconhecido no mundo hebraico, com o qual Paulo quer indicar a graça divina que constitui o homem na dignidade de filho de Deus de modo totalmente imprevisível e gratuito. Oh admirável ciência do amor e da graça, que nos põe a nós, filhos acabados de nascer, a balbuciar o mais belo nome de Deus!

Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (Salmo 33,2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós.

E não nos esqueçamos que «adorar» é «orientar a vida toda para…». Adorar Jesus é orientar a vida toda para Jesus. Adoremos hoje o Pai e o Filho e o Espírito Santo, unidos no mesmo Nome (Mateus 28,19). Não adores nunca ninguém mais…

O Filho e o Espírito Santo são,
No dizer de Santo Ireneu de Lião,
As duas mãos do Pai,
Enviadas em missão
Para junto dos seus filhos de adoção.
À semelhança, claro,
Daquelas mãos de amor,
Que, no alvor da Criação,
Modelaram da terra pura o nosso coração,
E de misericórdia o vestiram.
Filhos no Filho, divina hyiothesía,
Hemorragia de graça e de alegria:
Jesus, o Filho, assume a nossa humana condição,
E dá-nos em herança a sua divina filiação.
E o Espírito, que une e distingue o Pai e o Filho,
Divina comunhão, sem confusão,
Toma conta do nosso coração de filhos recém-nascidos,
E faz circular em nós, já hoje, já esta manhã,
A mais bela lalação que há, o nome novo Ab-ba!

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 (Dt 4, 32-34.39-40)
        2. Leitura II da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 (Rom 8, 14-17)
        3. Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 – Lecionário
        4. Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 – Oração Universal
        5. Mensagem Papa Francisco para I JORNADA MUNDIAL DAS CRIANÇAS – 25 e 26 maio 2024
        6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024

 

Viver a Palavra

Cinquenta dias depois da Páscoa os Apóstolos continuam fechados com medo. Não estão em isolamento social recomendado pelas autoridades sanitárias, mas como discípulos de Jesus de Nazaré que foi crucificado estão recolhidos em casa e, com certeza, começam a pensar o que farão para vencer o temor e avançar para o desconfinamento. Contudo, algo de surpreendente e inesperado acontece. No lugar onde se encontravam «fez-se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam».

Este grupo que estava fechado, amedrontado e barricado em casa, subitamente encontra a audácia para enfrentar a multidão e corajosamente sai para a rua, proclamando as maravilhas de Deus nas mais variadas línguas, conforme o Espírito lhes inspirava. Estes homens não estavam habituados a fazer discursos, nem eram profissionais da palavra. São homens simples que não apoiavam os seus discursos na eloquência humana, mas em qualquer coisa de novo e diferente que os fazia anunciar de modo apaixonado e desassombrado as maravilhas de Deus. É o Espírito Santo, o Paráclito que o Mestre prometera e que agora desce sobre eles para os enviar em missão. Cheios do Espírito Santo, o medo deu lugar à coragem e o silêncio e o recolhimento deram lugar à proclamação da Palavra na praça pública.

A primeira leitura situa estes acontecimentos no dia de Pentecostes, isto é, cinquenta dias após a Páscoa. Por seu lado, a narrativa evangélica situa a descida do Espírito Santo «na tarde daquele dia, o primeiro da semana», isto é, no dia de Páscoa. Na verdade, a aparente contradição na descrição temporal destes acontecimentos permite-nos unir a Páscoa e o Pentecostes, recordando que o Espírito Santo é dom de Jesus Ressuscitado à Sua Igreja para que iluminados e guiados pelo Seu Espírito possam continuar no tempo e na história a Sua obra redentora.

«Recebei o Espírito Santo». O Espírito Santo é dom gratuito do amor de Deus que nos faz participar na Sua obra de amor. Deste modo, o Espírito Santo é um dom a invocar e a agradecer. Mas juntamente com o Seu Espírito, o Ressuscitado concede também a Sua paz e envia os discípulos em missão para que sejam anunciadores da Boa Nova da Paz e da reconciliação. Jesus une à missão que o Pai lhe confiou a missão de cada um de nós: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».

Somos enviados tal como o Pai enviou o Seu Filho muito amado e unimo-nos assim à missão de Jesus para que o rosto de misericórdia e perdão do Pai continue a brilhar no mundo. Jesus envia os discípulos mostrando-lhes as mãos e o lado, confiando-lhes a missão de perdoar os pecados. Perdoar é dar através das feridas recebidas, é fazer do mal sofrido uma oportunidade para o amor e a reconciliação, é criar paz com uma superabundância de amor que vence o ódio e a violência sofridos.

Unido ao Espírito Santo, o perdão é um acontecimento muito mais escatológico do que ético, porque nos faz participar no aqui e agora do tempo e da história da comunhão e da paz que se viverá em plenitude no céu. Vinde Espírito Santo! Vinde e rasgai horizontes de esperançam e tornai-nos anunciadores da nova civilização do amor para que o mundo possa ser esse lugar que Deus sonhou para nós. in Voz Portucalense

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O Diretório Litúrgico indica que o Domingo de Pentecostes é Dia do Apostolado Organizado dos Leigos e do contributo para o mesmo Apostolado por decisão da Conferência Episcopal. Apesar da escassez de informação sobre esta efeméride indicada no diretório, é importante valorizar o apostolado dos leigos e, sobretudo, valorizar a diversidade de ministérios, dons e carismas que o Espírito Santo oferece à Igreja. Como afirmou o Papa Francisco: «na Igreja, a variedade, que é uma grande riqueza, sempre se funde na harmonia da unidade, como um grande mosaico onde todos os ladrilhos concorrem para formar o único grande desígnio de Deus». in Voz Portucalense

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Estamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 2,1-11

Quando chegou o dia de Pentecostes,
os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar.
Subitamente, fez-se ouvir, vindo do Céu,
um rumor semelhante a forte rajada de vento,
que encheu toda a casa onde se encontravam.
Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo,
que se iam dividindo,
e poisou uma sobre cada um deles.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo
e começaram a falar outras línguas,
conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
Residiam em Jerusalém judeus piedosos,
procedentes de todas as nações que há debaixo do céu.
Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se
e ficou muito admirada,
pois cada qual os ouvia falar na sua própria língua.
Atónitos e maravilhados, diziam:
«Não são todos galileus os que estão a falar?
Então, como é que os ouve cada um de nós
falar na sua própria língua?
Partos, medos, elamitas,
habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia,
do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília,
do Egipto e das regiões da Líbia, vizinha de Cirene,
colonos de Roma, tanto judeus como prosélitos,
cretenses e árabes,
ouvimo-los proclamar nas nossas línguas
as maravilhas de Deus».

CONTEXTO

A obra de Lucas abarca dois “tempos” diferentes, duas etapas da “história da salvação”: o “tempo de Jesus” (Evangelho), e o “tempo da Igreja” (Atos dos Apóstolos). O “tempo de Jesus” é o “tempo” em que Jesus estava fisicamente presente no meio dos seus discípulos e andava com eles pelas vilas e aldeias da Palestina a anunciar o Reino de Deus; o “tempo da Igreja” é o tempo em que Jesus já voltou para o Pai e são os discípulos que assumem a missão de dar testemunho da salvação de Deus.

Os Atos dos Apóstolos situam-nos, portanto, no “tempo da Igreja”. O livro apresenta-nos os momentos principais dessa aventura missionária que leva a proposta de Jesus desde Jerusalém até aos confins do mundo (At 1,8). Os discípulos, no entanto, não percorrerão sozinhos este caminho: serão ajudados e orientados pelo Espírito Santo, conforme a promessa de Jesus (cf. At 1,5.8).

O “tempo da Igreja” começa em Jerusalém, logo depois da ressurreição/ascensão de Jesus. De acordo com o plano teológico de Lucas, foi em Jerusalém que a salvação de Deus irrompeu na história dos homens; e será a partir de Jerusalém que essa salvação se vai espalhar pelo mundo inteiro. O “pontapé de saída” nessa aventura que vai levar o Evangelho de Jesus ao encontro do mundo foi dado com a receção, pelos discípulos, do Espírito Santo.

No livro dos Atos, Lucas diz-nos que a comunidade de Jesus se encontrou com o Espírito Santo no dia em que os judeus celebravam a festa judaica do Pentecostes (em hebraico “Shavu’ot”). Essa festa (também chamada “festa das semanas” e “festa das primícias”) ocorria cinquenta dias após a Páscoa e era, antes de mais, uma festa agrícola: terminada a colheita dos cereais, os agricultores dirigiam-se ao Templo, ao som de música de flautas, para entregar a Deus os primeiros frutos da colheita (“bicurim”). Eram acolhidos com cânticos de boas-vindas, entravam no templo e entregavam nas mãos dos sacerdotes os cestos com os frutos que tinham trazido. Mais tarde, contudo, a tradição rabínica ligou esta festa à celebração da “aliança” e ao dom da Lei, no Sinai; e, no séc. I, esta dimensão tinha um lugar importante na celebração do Pentecostes.

No que diz respeito ao texto que nos é proposto neste domingo como primeira leitura e que descreve os acontecimentos do dia do Pentecostes, não existem dúvidas de que é uma construção artificial, criada por Lucas com uma clara intenção teológica. Para apresentar a sua catequese, Lucas recorre a imagens, a símbolos, à linguagem poética das metáforas. Temos de descodificar os símbolos para chegarmos à interpelação essencial que a catequese primitiva, pela palavra de Lucas, quis deixar-nos. Uma interpretação literal deste relato seria, portanto, uma boa forma de passarmos ao lado do essencial da mensagem; far-nos-ia reparar na roupagem exterior, no folclore, e ignorar o fundamental. O interesse fundamental de Lucas, o nosso catequista, é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, que é assistida pelo Espírito e que é chamada a testemunhar aos homens o projeto libertador do Pai. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Hoje, para o bem e para o mal, toda a gente fala da “Igreja” e tem opinião sobre a vida da “Igreja”. O que é a “Igreja”? Qual é a essência, a “alma” dessa realidade a que chamamos “Igreja”? O que é que ela pretende? Qual o seu papel no mundo? Temos, nesta catequese sobre os acontecimentos do dia de Pentecostes, os elementos essenciais para responder a estas questões. Segundo o autor dos Atos, a Igreja é uma comunidade de homens e de mulheres convocados por Jesus, que aderiram a Jesus e à sua Boa Nova; são animados, sustentados e dirigidos pelo Espírito Santo ao longo de todo o caminho que percorrem na história; têm por missão continuar no mundo a obra de Jesus: anunciar o Reino de Deus, lutar contra o mal, curar os que sofrem, testemunhar em palavras e gestos o amor de Deus, levar a todos os cantos da terra a salvação de Deus. Da escuta e do acolhimento da proposta que, em nome de Jesus, a Igreja apresenta ao mundo, resulta a comunidade universal da salvação, que vive no amor e na partilha, apesar das diferenças culturais e étnicas. Sentimo-nos, efetivamente, membros desta família? Identificamo-nos com ela? A “Igreja” de que fazemos parte é uma comunidade de irmãos que se amam, apesar das diferenças? Está reunida por causa de Jesus e à volta de Jesus? Tem consciência de que o Espírito está presente e que a anima? Testemunha, de forma efetiva e coerente, a proposta libertadora que Jesus deixou?
  • O relato do autor dos Atos dos Apóstolos quer claramente afirmar que o Espírito Santo foi o responsável pela mudança de atitude dos discípulos em relação à tarefa que lhes foi confiada por Jesus. Antes do Pentecostes, o grupo dos discípulos estava fechado dentro de quatro paredes, incapaz de superar o medo e de arriscar, sem iniciativa e sem a coragem de dar testemunho; depois do Pentecostes, aparece-nos uma comunidade unida, sem medo, que ultrapassa as suas limitações humanas e testemunha bem alto a sua fé em Jesus ressuscitado. O Espírito clarifica as coisas, varre o medo, abre as portas, limpa as teias de aranha que a passagem do tempo deixa acumular, aponta os caminhos que devem ser percorridos, esbate as diferenças e apresenta ao mundo uma Igreja com um rosto belo, renovado e corajoso. As nossas comunidades cristãs têm consciência do papel do Espírito na construção e na animação da Igreja? Damos suficiente espaço à ação do Espírito, em nós e nas nossas comunidades?
  • A Igreja reúne na sua “casa” gente muito diversa, vinda de realidades culturais, políticas e sociológicas muito diversas. Essa diversidade nunca deve ser vista como um problema, mas sim como uma imensa riqueza. Para se tornar cristão, ninguém deve ser espoliado da própria cultura ou da sua identidade: nem os africanos, nem os europeus, nem os sul-americanos, nem os negros, nem os brancos; mas todos são convidados, com as suas diferenças, a acolher esse projeto libertador de Deus, que faz os homens deixarem de viver de costas voltadas, para viverem no amor. A Igreja de que fazemos parte é esse espaço de liberdade e de fraternidade? Nela todos encontram lugar e são acolhidos com amor e com respeito – mesmo os de outras raças, mesmo aqueles de quem não gostamos, mesmo aqueles que não fazem parte do nosso círculo, mesmo aqueles que a sociedade marginaliza e afasta? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 103 (104)

Refrão 1: Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e renovai a face da terra.

Refrão 2: Mandai, Senhor, o vosso Espírito, e renovai a terra.

Refrão 3: Aleluia.

 

Bendiz, ó minha alma, o Senhor.
Senhor, meu Deus, como sois grande!
Como são grandes, Senhor, as vossas obras!
A terra está cheia das vossas criaturas.

Se lhes tirais o alento, morrem
e voltam ao pó donde vieram.
Se mandais o vosso espírito, retomam a vida
e renovais a face da terra.

Glória a Deus para sempre!
Rejubile o Senhor nas suas obras.
Grato Lhe seja o meu canto
e eu terei alegria no Senhor.

LEITURA II – 1 Coríntios 12,3b-7.12-13

Irmãos:
Ninguém pode dizer: «Jesus é o Senhor»,
a não ser pela ação do Espírito Santo.
De facto, há diversidade de dons espirituais,
mas o Espírito é o mesmo.
Há diversidade de ministérios,
mas o Senhor é o mesmo.
Há diversas operações,
mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.
Em cada um se manifestam os dons do Espírito
para o bem comum.
Assim como o corpo é um só e tem muitos membros,
e todos os membros, apesar de numerosos,
constituem um só corpo,
assim também sucede com Cristo.
Na verdade, todos nós
– judeus e gregos, escravos e homens livres –
fomos batizados num só Espírito,
para constituirmos um só Corpo.
E a todos nos foi dado a beber um único Espírito. 

CONTEXTO

O trabalho missionário de Paulo de Tarso, em meados do séc. I, levou o cristianismo ao encontro do mundo grego. Paulo, depois de um certo discernimento, tinha concluído que a proposta de Jesus era para todos os povos da terra e não exclusivamente para os judeus. No entanto, o contexto judaico – de onde o cristianismo era originário – e o contexto grego eram realidades culturais e religiosas bastante diferentes. Como é que a proposta cristã se aguentaria quando mergulhasse num mundo que funcionava com dinamismos que lhe eram estranhos? Iria a brilhante cultura grega absorver ou desvirtuar os valores cristãos? Como é que os cristãos de origem grega integrariam a sua fé na realidade cultural em que estavam inseridos? A comunidade cristã de Corinto sentiu toda esta problemática de forma especial. Na Primeira Carta aos Corintos, Paulo aborda diversas questões que lhe foram colocadas pelos cristãos de Corinto e onde, como “pano de fundo”, está a questão do encaixe dos valores cristãos nos valores da cultura grega.

Uma das questões onde esta problemática, de alguma forma, está presente é a questão dos “carismas”. A palavra “carisma” tem a sua origem no campo religioso cristão, especialmente na teologia paulina. Designa dons especiais do Espírito, concedidos a determinado indivíduo – independentemente do posto que ocupa na instituição eclesial – para o bem das pessoas, para as necessidades do mundo e, em particular, para a edificação da Igreja. Nas cartas de Paulo fala-se insistentemente em “carismas” que animavam a vida e o dinamismo das comunidades cristãs.

Alguns cristãos de Corinto, no entanto, influenciados por determinadas experiências religiosas que existiam na religião grega tradicional, entenderam os “carismas” de uma forma bem peculiar. Eles conheciam, por exemplo, os “oráculos”, através dos quais os deuses, servindo-se de intermediários humanos, transmitiam as suas indicações (santuário de Delfos, sacerdotisas de Dodona); conheciam também certos rituais em que os crentes, através do transe, de experiência orgiásticas, de excessos de vários tipos, se “fundiam” com o deus a quem prestavam culto (mistérios de Dionísio, culto de Cibele). Confundiram, portanto, os “carismas” cristãos com algumas dessas práticas pagãs; e, possivelmente, chegaram a fazer uso dos dons carismáticos em ambiente semelhante ao de certas cerimónias religiosas pagãs.

Mais ainda: considerando-se a si próprios “escolhidos de Deus”, alguns destes carismáticos reivindicavam um protagonismo que danificava a comunhão fraterna. Apresentando-se como “iluminados”, mensageiros incontestados das coisas divinas, assumiam atitudes de autoritarismo e de prepotência que não favoreciam a fraternidade; desprezavam os que não tinham sido dotados destes dons, considerando-os como “cristãos de segunda”, limitados a um lugar subalterno no contexto comunitário.

Tudo isto causou natural alarme na comunidade cristã de Corinto. Paulo, informado da situação, entendeu intervir para evitar abusos e mal-entendidos. Na Primeira Carta aos Coríntios, ele corrige, dá conselhos, mostra a incoerência destes comportamentos, incompatíveis com o Evangelho de Jesus. A sua intervenção neste campo aparece nos capítulos 12 a 14 da referida Carta. A nossa segunda leitura deste domingo insere-se neste contexto. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Todos aqueles que integram a comunidade cristã são membros de um único “corpo”, o “corpo de Cristo”; todos aqueles que são membros do “corpo de Cristo” vivem e alimentam-se do mesmo Espírito; todos aqueles que se alimentam do mesmo Espírito formam uma família de irmãos e de irmãs, iguais em dignidade. Podem, naturalmente, desempenhar funções diversas, como acontece com os membros de um corpo; mas todos eles são igualmente importantes enquanto membros do “corpo de Cristo”. Tudo isto parece incontestável, à luz da doutrina de Paulo. No entanto encontramos, com alguma frequência, cristãos com uma consciência viva da sua superioridade e da sua situação “à parte” na comunidade (seja em razão da função que desempenham, seja em razão das suas “qualidades” humanas), que gostam de se fazer notar e de afirmar a sua autoridade ou o seu “estatuto”. Às vezes, veem-se atitudes de prepotência e de autoritarismo por parte daqueles que se consideram depositários de dons especiais; por vezes, ficamos com a sensação de que a estrutura eclesial funciona em modelo piramidal, com uma elite que preside e toma as decisões instalada no topo, e um “rebanho” silencioso que obedece instalado na base. Isto faz algum sentido, à luz da doutrina que Paulo expõe? Como entendemos o nosso lugar e o nosso papel na comunidade cristã?
  • Os dons que o Espírito concede, por mais pessoais que sejam, são para servir o bem comum e para reforçar a vivência comunitária. Quem os recebe deve pô-los ao serviço de todos, com humildade e simplicidade. Não faz sentido escondermos os “dons” que recebemos, guardando-os só para nós e deixando que eles fiquem estéreis; também não faz sentido usar os “dons” que recebemos de tal forma que eles se tornem fator de conflitos ou de divisões. Os “dons” que nos foram concedidos são postos ao serviço da comunidade? São fonte de encontro, de comunhão, de partilha, de Vida, para a comunidade de que fazemos parte?
  • O Espírito Santo é uma presença imprescindível no caminho que a Igreja vai percorrendo todos os dias: é Ele que alimenta, que anima, que fortalece, que dá Vida ao Povo de Deus peregrino; é Ele que distribui os dons conforme as necessidades e que, com esses dons, continuamente recria a Igreja; é Ele que conduz a marcha, que indica os caminhos a percorrer, que ajuda a tomar as decisões que se impõem para que a “barca de Pedro” chegue a bom porto. Temos consciência da presença do Espírito, procuramos ouvir a sua voz e perceber as suas indicações?in Dehonianos.

 

SEQUÊNCIA DO PENTECOSTES

 

Vinde, ó santo Espírito,
vinde, Amor ardente,
acendei na terra
vossa luz fulgente.

Vinde, Pai dos pobres:
na dor e aflições,
vinde encher de gozo
nossos corações.

Benfeitor supremo
em todo o momento,
habitando em nós
sois o nosso alento.

Descanso na luta
e na paz encanto,
no calor sois brisa,
conforto no pranto.

Luz de santidade,
que no Céu ardeis,
abrasai as almas
dos vossos fiéis.

Sem a vossa força
e favor clemente,
nada há no homem
que seja inocente.

Lavai nossas manchas,
a aridez regai,
sarai os enfermos
e a todos salvai.

Abrandai durezas
para os caminhantes,
animai os tristes,
guiai os errantes.

Vossos sete dons
concedei à alma
do que em Vós confia:

Virtude na vida,
amparo na morte,
no Céu alegria.

EVANGELHO – João 20,19-23

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

CONTEXTO

Jesus foi crucificado na manhã de uma sexta-feira – dia da “preparação” da Páscoa – e morreu pelas três horas da tarde desse dia. Já depois de morto, um soldado trespassou-lhe o coração com uma lança; e do coração aberto de Jesus saiu sangue e água (cf. Jo 19,31-37). O evangelista João vê no sangue que sai do lado aberto de Jesus o sinal do seu amor dado até ao extremo (cf. Jo 13,1); e vê na água que sai do coração trespassado de Jesus o sinal do Espírito (cf. Jo 3,5), desse Espírito que Jesus “entregou” aos seus e que é fonte de Vida nova. Da água e do sangue, do batismo e da eucaristia, nascerá a nova comunidade, a comunidade da Nova Aliança. Contudo, os discípulos que tinham subido com Jesus a Jerusalém e que seriam o embrião dessa comunidade da Nova Aliança, desapareceram sem deixar rasto. Estão escondidos, algures na cidade de Jerusalém, paralisados pelo medo. O projeto de Jesus falhou?

No final da tarde dessa sexta-feira, o corpo morto de Jesus foi sepultado à pressa num túmulo novo, situado num horto ao lado do lugar onde se tinha dado a crucificação (cf. Jo 19,38-42). Depois veio o sábado, o último dia da semana, o dia da celebração da Páscoa judaica. Durante todo aquele sábado o túmulo de Jesus continuou cerrado.

A partir daqui a narração de João muda de tempo e de registo. Chegamos ao “primeiro dia da semana”. É o primeiro dia de um tempo novo, o tempo da humanidade nova, nascida da ação criadora e vivificadora de Jesus. “No primeiro dia da semana”, Maria Madalena, a mulher que representa a nova comunidade, vai ao túmulo e vem de lá confusa e desorientada porque o túmulo está vazio (cf. Jo 20,1-2). Logo depois, ainda “no primeiro dia da semana”, Pedro e outro discípulo correm ao túmulo e constatam aquilo que Maria Madalena tinha afirmado: Jesus já não está encerrado no domínio da morte (cf. Jo 20,3-10). A comunidade de Jesus começa a despertar do seu letargo; começa a viver um tempo novo. Mas é preciso mais qualquer coisa para que os discípulos vençam o medo e assumam o seu papel enquanto comunidade da Nova Aliança. O que falta? Ao entardecer do “primeiro dia da semana” (ou seja, ao concluir-se este primeiro dia da nova criação) Jesus encontra-se com toda a comunidade reunida na casa onde se escondiam.

O texto do evangelho que a liturgia da Solenidade do Pentecostes nos apresenta descreve esse encontro entre Jesus ressuscitado e a sua comunidade.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Nos relatos pascais aparece sempre, em pano de fundo, a convicção profunda de que a comunidade dos discípulos nunca estará sozinha, abandonada à sua sorte: Jesus ressuscitado, Aquele que venceu a morte, a injustiça, o egoísmo, o pecado, acompanhá-la-á em cada passo do seu caminho histórico. É verdade que os discípulos de Jesus não vivem num mundo à parte, onde a fragilidade e a debilidade dos humanos não os tocam. Como os outros homens e mulheres, eles experimentam o sofrimento, o desalento, a frustração, o desânimo; têm medo quando o mundo escolhe caminhos de guerra e de violência; sofrem quando são atingidos pela injustiça, pela opressão, pelo ódio do mundo; conhecem a perseguição, a incompreensão e a morte… Mas, apesar de tudo isso, não se deixam vencer pelo pessimismo e pelo desespero pois sabem que Jesus vai “no meio deles”, oferecendo-lhes a sua paz e apontando-lhes o horizonte da Vida definitiva. É com esta certeza que caminhamos e que enfrentamos as tempestades da vida? Os outros homens e mulheres que partilham o caminho connosco descobrem Jesus, vivo e ressuscitado, através do testemunho de esperança que damos?
  • O Espírito Santo é o grande dom que Jesus ressuscitado faz à comunidade dos discípulos. Ele é o sopro de Vida que nos recria e que nos transforma, a cada instante, em pessoas novas. Sem o Espírito, seremos barro inerte e não imagem viva de Deus; sem o Espírito, ficaremos paralisados pelos nossos medos e pelos nossos comodismos, incapazes de ter uma atitude construtiva e transformadora; sem o Espírito, ficaremos instalados no ceticismo e na desilusão, sem a audácia profética que transforma o mundo; sem o Espírito, esconder-nos-emos atrás de leis, de rituais, de doutrinas, e não passaremos de funcionários medíocres de uma religião sem alma e sem amor; sem o Espírito recairemos continuamente nos esquemas velhos e nos hábitos velhos, incapazes de nos deixarmos questionar pelos desafios sempre novos de Deus; sem o Espírito, ficaremos cada vez mais fechados dentro das paredes dos nossos templos, incapazes de ir ao encontro do mundo e de lhe levar a proposta de Jesus… Sem o Espírito, nunca teremos a coragem para continuar no mundo a obra de Jesus. No entanto, o Espírito só atua em nós se estivermos disponíveis para o acolher. Ele não se impõe nem desrespeita a nossa liberdade. Estamos disponíveis para acolher o Espírito? O nosso coração está aberto aos desafios que o Espírito constantemente nos lança?
  • São bem sugestivos os nomes com que Jesus, na última ceia, designa o Espírito prometido: “Espírito da Verdade” e “Paráclito”. Ele é “Espírito da Verdade” porque nos traz, a cada passo a Verdade de Deus, uma Verdade que o mundo precisa escutar e que os discípulos de Jesus devem testemunhar sem tibiezas; Ele é “Paráclito” (“aquele que consola ou conforta”; “aquele que encoraja”; “aquele que intercede”; “aquele que defende”) porque nos dá a força e a coragem para enfrentar as tempestades e as incompreensões do mundo. Não caminhamos “sem rede” e sem rumo, entregues à nossa sorte, tropeçando a cada passo na obscuridade e na incerteza; caminhamos com o Espírito que nos aponta a Verdade, que nos mostra o caminho, que nos encoraja e fortalece a cada passo. Confiamos no Espírito da Verdade que Jesus nos deixou e deixamo-nos guiar por Ele? Sentimo-nos confiantes e serenos no caminho, certos de que o Paráclito nos defenderá e nos dará a força para vencer a maldade e a morte?
  • A ação do Espírito Santo não se circunscreve às fronteiras institucionais da Igreja. Ele está presente nos corações de todos os homens e mulheres de boa vontade, crentes ou não crentes, que se dispõem a lutar por um mundo mais belo, mais justo e mais humano. Podemos perceber a presença e a ação do Espírito em tantos e tantos gestos de bondade, de amor, de partilha, de serviço, de perdão, de cuidado, de acolhimento que vão acontecendo por todo o lado e são sementes de um mundo novo. A contemplação desses gestos, sinais vivos do Espírito, deve ser, para nós, fonte de alegria e de esperança. Temos reparado nos sinais de vida nova que vão brotando por todo o lado e que sinalizam a presença e a ação do Espírito no mundo? Sentimo-nos gratos a Deus por tudo o que Ele vai fazendo no mundo, mesmo quando a sua ação se concretiza através de homens e mulheres que têm uma posição diferente da nossa quanto à fé ou quanto à forma de encarar a vida?in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura além de extensa possui palavras inusuais e de difícil pronunciação quando refere os diversos lugares de proveniência dos judeus residentes em Jerusalém: «Partos» deve ler-se «Pártos»; «medos» deve ler-se «médus»; «elamitas» deve ler-se «elamítas». As restantes devem seguir a acentuação colocada no texto.

A segunda leitura possui diversos pormenores a ter em atenção: a dualidade das frases introduzidas pelas expressões «Há diversidade» ou «há diversas»; a frase que possui as conjunções «assim». Nestas frases, as expressões e conjunções devem ser proclamadas de modo a explorar toda a expressividade do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O ESPÍRITO SANTO E NÓS!

O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir de entrar ou de sair, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!», Shalôm. Mostra-lhes, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aorde horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito Santo, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

«Recebei o Espírito Santo» (João 20,22). É o Espírito Santo que nos faz «filhos de Deus», «filhos no Filho», irmãos de Jesus e seus contemporâneos, e impede que sejamos catalogados, como reza a história empírica, em simples continuadores de Jesus.

O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos o vento impetuoso do Espírito a recriar e renovar a nossa face e a face da terra, em duas vagas sucessivas: primeiro, no cenáculo, onde estávamos todos reunidos (v. 1-4); depois na rua, onde está a multidão das gentes oriundas do mundo inteiro (v. 5-11). Num e noutro lugar, em toda a parte, o vento impetuoso do Espírito varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e purifica os nossos corações com o seu fogo ardente. O Espírito, irrompendo em línguas como de fogo, não poisa, mas senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós (v. 3), Mestre novo dos tempos novos, que viria para orientar e guiar a nossa vida, como Jesus tinha prometido e anunciado, por cinco vezes, no Evangelho de João: 14,15-17; 14,25-26; 15,26; 16,7; 16,13-15. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna no seu sentido mais puro, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, aquele balbuciar, repetindo sons, entre a mãe e o seu bebé. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –, do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

A tradição situa no Cenáculo e à sua volta, em frequências cada vez mais alargadas, as duas cenas acima descritas (João 20,19-23 e Atos 2,1-11). É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74).

Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

  1. Escrevendo aos Romanos (8,9-13) e a nós, S. Paulo adverte-nos que não é «na carne» (en sarkí), mas «no Espírito» (en pneúmati), que devemos viver. E ele insiste em dizer como é importante Cristo estar «em vós» (en hymîn), e o Espírito, Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos, habitar (oikéô) «em vós» (en hymîn). A carne tem a ver com o currículo, o status, a importância, a ganância… Para nossa instrução e mapa de vida, podemos sempre socorrer-nos do vasto elenco, sempre atualizado, das «obras da carne», que S. Paulo faz na Carta aos Gálatas: «São manifestas as obras da carne, que são: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, magia, inimizades, rixa, ciúme, iras, ambições, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, sobre as quais vos previno, como já preveni, que os que tais coisas fizerem não herdarão o Reino de Deus» (Gálatas 5,19-21). E podemos também ver o confronto que ele faz com os «frutos do Espírito», que são: «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).

O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). «A alegria de Deus é a nossa força» (Neemias 8,10). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

Nós somos do tempo da missão do Espírito, Aquele que vem para nós da humanidade glorificada do Filho de Deus e de Maria, Jesus. Note-se a fortíssima e ousada vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28).

Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

Todas as tuas criaturas, Senhor,
respiram, vivem, sorriem,
cantam,
por causa do teu alento criador.
O teu pão de mil sabores
sacia todas as fomes e todas as dores,
a tua Palavra bela e plena de harmonia
a todos envolve e alumia,
irmana, aconchega e alivia.
Por isso,
ainda que espalhados pelos quatro cantos do mundo,
continuamos todos reunidos no Cenáculo,
a primeira Catedral da Igreja nascente,
mas com ramificações em todas as casas,
em todos os corações,
bem assente em quatro colunas:
o ensino dos Apóstolos,
a comunhão fraterna,
a fração do pão
e a oração.
Com a boca cheia de louvor,
os olhos de graça,
as mãos de paz e de pão,
as entranhas de misericórdia e de perdão,
a comunidade bela crescia, crescia, crescia.
Não admira.
era tão jovem, leve e bela,
que as pessoas lutavam por entrar nela!
Envia, Senhor,
sobre nós,
o teu vento,
o teu alento,
o teu Espírito,
e renova por favor,
renova por amor
a nossa face
e a face da terra.

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 (Act 2, 1-11)
    2. Leitura II – Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 (1 Cor 12,3b-7.12-13)
    3. Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 – Lecionário
    4. Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 – Oração Universal
    5. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
    6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VII da Páscoa – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024

58.º Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social.

 

Viver a Palavra

O Salmo deste Domingo convida-nos a entoar cheios de alegria «Ergue-Se Deus, o Senhor, em júbilo e ao som da trombeta». Parece paradoxal rejubilar e exultar porque vemos o Senhor partir. Contudo, bem sabemos que a ascensão do Senhor não é uma fuga nem um abandono porque os homens e mulheres não acolheram a Sua mensagem. A ascensão do Senhor atesta a verdade da Ressurreição e faz-nos compreender que Jesus vive agora na glória do Pai, revelando assim o sentido pleno da Páscoa como entrada no Reino dos Céus e como participação da vida nova e eterna que só Jesus e o Seu amor nos podem oferecer.

A Ascensão do Senhor recorda-nos, em primeiro lugar, a meta da nossa existência, tal como rezamos na oração coleta: «a ascensão de Cristo, vosso Filho, é a nossa esperança: tendo-nos precedido na glória como nossa Cabeça, para aí nos chama como membros do seu Corpo». A Ascensão de Cristo recorda que cada homem e cada mulher são chamados a peregrinar sobre a terra, mas de olhos fitos no céu onde reside a meta das suas vidas. Somos peregrinos a caminho do céu, percorrendo com alegria, coragem e radicalidade a estrada da santidade.

Celebrar esta solenidade não nos pode deixar apenas de olhos fitos no Céu, pasmados, a olhar esse Jesus que subiu aos Céus: «Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?». Caminhamos de olhar fito no Céu e com os pés bem assentes no caminho que o Senhor nos chama a percorrer. Cristo parte para o Céu, mas permanece muito vivo e atuante na história pela força do Seu Espírito e convoca-nos para a missão, recomendando a cada um de nós que sejamos continuadores da Sua obra de amor: «Ide por todo o mundo».

Celebrar a Ascensão do Senhor é tomar verdadeiramente consciência da nossa missão de cristãos: «sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra». Uma testemunha, tal como indica o dicionário da língua portuguesa, é uma «pessoa que presenciou ou ouviu algum fato ou dito e que dele pode dar pormenores». Ser testemunha significa ser portador da alegria da ressurreição pela experiência pessoal, íntima e decisiva de encontro com Jesus Cristo, apresentando os pormenores, isto é, narrando com a vida, em gestos concretos de amor e misericórdia, a ternura e a bondade de Deus.

Subindo ao Céu, Jesus recorda os Seus discípulos que eles terão de ser os continuadores da Sua obra redentora, que no mundo eles serão os braços que continuarão a abraçar como Jesus, que eles serão os pés que percorrerão com os homens as estradas da história, que eles serão os lábios portadores do Evangelho do amor, que eles serão presença e companhia junto de quantos estão sós e abandonados.

Por isso, dizia Jesus: «Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem: expulsarão os demónios em meu nome; falarão novas línguas; se pegarem em serpentes ou beberem veneno, não sofrerão nenhum mal; e quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados». Ainda que pareçam excessivas estas palavras são para nós: sempre que afastamos o mal da nossa vida e da vida daqueles que nos rodeiam estamos a expulsar os demónios que nos dividem e separam; sempre que com os nossos gestos e palavras anunciamos o amor, estamos a pronunciar com os nossos lábios e com a nossa vida a nova linguagem que Jesus nos veio ensinar; sempre que abraçamos as dificuldades e os desafios com coragem e ousadia, estamos a pegar em serpentes e beber veneno e a ser capazes de resistir com a força do Espírito Santo; sempre que visitamos os doentes e os reconfortamos com as nossas palavras e a nossa presença estamos a impor as mãos e a curar.

«Eles partiram a pregar por toda a parte e o Senhor cooperava com eles, confirmando a sua palavra com os milagres que a acompanhavam». Foi assim com os discípulos; há-de ser assim connosco sempre que formos capazes de disponibilizar o nosso coração para o acontecer de Deus. in Voz Portucalense

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No Domingo da Solenidade da Ascensão do Senhor celebramos o 58.º Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social. O Papa Francisco em diversas ocasiões, sobretudo nas suas viagens apostólicas, faz questão de agradecer pessoalmente aos jornalistas e meios de comunicação social o seu trabalho e dedicação. No contexto atual, onde a informação é abundante e tantas vezes até excessiva e os meios de comunicação habitam diferentes plataformas, precisamos de uma comunicação que promova o bem comum, a dignidade humana e ajude cada homem e cada mulher a caminhar na verdade, num clima de harmonia social. Para este ano, o Papa Francisco escreveu uma mensagem intitulada: «Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana». Esta mensagem (ver anexo) pode ser um bom recurso para dinamizar alguma atividade ou iniciativa neste Domingo ou nesta semana.in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 1,1-11

No meu primeiro livro, ó Teófilo,
narrei todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar,
desde o princípio até ao dia em que foi elevado ao Céu,
depois de ter dado, pelo Espírito Santo,
as suas instruções aos Apóstolos que escolhera.
Foi também a eles que, depois da sua paixão,
Se apresentou vivo, com muitas provas,
aparecendo-lhes durante quarenta dias
e falando-lhes do reino de Deus.
Um dia em que estava com eles à mesa,
mandou-lhes que não se afastassem de Jerusalém,
mas que esperassem a promessa do Pai,
«da Qual – disse Ele – Me ouvistes falar.
Na verdade, João batizou com água;
vós, porém, sereis batizados no Espírito Santo,
dentro de poucos dias».
Aqueles que se tinham reunido começaram a perguntar:
«Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?»
Ele respondeu-lhes:
«Não vos compete saber os tempos ou os momentos
que o Pai determinou com a sua autoridade;
mas recebereis a força do Espírito Santo,
que descerá sobre vós,
e sereis minhas testemunhas
em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria
e até aos confins da terra».
Dito isto, elevou-Se à vista deles
e uma nuvem escondeu-O a seus olhos.
E estando de olhar fito no Céu, enquanto Jesus Se afastava,
apresentaram-se-lhes dois homens vestidos de branco,
que disseram:
«Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?
Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu,
virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu».

CONTEXTO

O livro dos “Atos dos Apóstolos” constitui a segunda parte da obra de Lucas. Depois de ter apresentado, na primeira parte (o “Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas”), “o tempo de Jesus”, Lucas completa a sua obra apresentando “o tempo da Igreja”: é o “tempo” em que a proposta de salvação de Deus é levada ao encontro do mundo pela comunidade de Jesus (a “Igreja”), animada e conduzida pelo Espírito Santo.

O livro dos Atos aparece algum tempo depois do terceiro Evangelho, nos últimos anos da década de 80 do primeiro século. Dirige-se a comunidades cristãs de língua grega, provavelmente comunidades que nasceram do trabalho missionário de Paulo de Tarso. São comunidades que, por essa altura, passam algumas dificuldades quanto ao compromisso com a fé: passou já a fase da expetativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o “Reino” e há uma certa desilusão porque essa vinda não se concretizou; as questões doutrinais causam confusões e conflitos internos; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida… Resultado: há já algum tempo que as comunidades cristãs se instalaram na mediocridade, falta-lhes o entusiasmo e o empenho na construção e no testemunho do Reino de Deus.

Nos Atos dos Apóstolos, Lucas procura deixar claro que o projeto de salvação que Jesus veio apresentar não pode ficar parado. Enquanto Jesus não volta, são os seus discípulos que têm de continuar a propor ao mundo a salvação de Deus. Eles devem, com alegria e entusiasmo, ser testemunhas de Jesus e do seu Evangelho em todos os cantos da terra. Foi essa a tarefa de que Jesus os incumbiu quando voltou para o Pai.

O texto que a liturgia do Domingo da Ascensão nos propõe como primeira leitura, é precisamente o início do livro dos Atos dos Apóstolos. Apresenta a despedida de Jesus, o seu regresso ao Pai, e a entrega da missão aos discípulos.

A despedida de Jesus teria acontecido em Jerusalém, após uma refeição com os discípulos (cf. At 1,4.9). No Evangelho, Lucas é ainda mais explícito: foi em Betânia, uma localidade situada no cimo do Monte das Oliveiras, mesmo em frente da cidade de Jerusalém, que Jesus se despediu dos discípulos e, à vista deles, subiu ao céu (cf. Lc 24,50). De acordo com o esquema teológico de Lucas, Jerusalém é o lugar onde a salvação irrompe (de acordo com a mentalidade judaica, é em Jerusalém que o Messias deve manifestar-se e que a sua proposta libertadora se há de concretizar na vida de Israel), e também o lugar de onde a salvação de Jesus parte para ir ao encontro do mundo.

Hoje, em Jerusalém, uma pequena capela em formato octogonal, situada no cimo do Monte das Oliveiras, faz memória da Ascensão de Jesus ao céu. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A ascensão de Jesus deve ser vista no contexto de toda a sua vida. Ele veio ao encontro dos homens, caminhou no meio deles, procurou viver na fidelidade ao projeto do Pai, pagou com a própria vida o seu compromisso com a construção do Reino de Deus. Mas Deus não aceitou que a maldade vencesse e libertou Jesus da escravidão da morte; e Jesus, glorificado por Deus, entrou definitivamente na glória do Pai. A ascensão de Jesus diz-nos qual é o destino final daqueles que, como Ele, vivem na fidelidade aos projetos de Deus: estão destinados à glorificação, à comunhão definitiva com Deus. Contemplando a ascensão de Jesus, percebemos qual é a meta do nosso caminho: a Vida plena junto do Pai. Isto dá um novo sentido à nossa vida, às nossas lutas, ao nosso compromisso, à nossa entrega à construção do Reino de Deus. Não caminhamos ao encontro do vazio, do nada, mas caminhamos ao encontro da Vida definitiva nos braços de Deus, como Jesus. Temos consciência disso? Essa consciência alimenta a nossa entrega, o nosso compromisso, a nossa fidelidade ao projeto de Deus?
  • É bem significativo que a “partida” de Jesus apareça associada ao envio dos discípulos. Jesus, terminada a sua missão, foi ter com o Pai; mas aquilo que Ele começou não está concluído. Agora a missão que o Pai tinha confiado a Jesus passa para as mãos dos seus discípulos. Como Jesus, eles têm a tarefa de ir pelo mundo curar, dar Vida, lutar contra o sofrimento e a morte, testemunhar com palavras e gestos a salvação de Deus. “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” – disse-lhes Jesus ao partir para o Pai. A comunidade dos discípulos é uma comunidade “missionária”: todos os discípulos são “enviados” a dar testemunho de Jesus e do seu projeto, em todo o tempo e em todos os lugares. Sentimo-nos “missionários” de Jesus no nosso mundo, mensageiros da salvação de Deus em todos os lugares onde a vida nos leva?
  • Jesus garantiu aos discípulos que iriam receber uma força, a do Espírito Santo, que os capacitaria para serem testemunhas da salvação de Deus em toda a terra. Trata-se de uma “promessa” decisiva. Não estamos sozinhos, entregues à nossa sorte, às nossas decisões falíveis, aos nossos medos e contradições. Através do Espírito é o próprio Jesus que nos acompanha, que nos orienta, que nos dá força para levar para a frente a missão. Estamos conscientes da presença do Espírito nas nossas vidas e na vida das nossas comunidades cristãs? Procuramos escutar o Espírito e discernir os desafios de Deus que Ele nos traz?
  • “Porque estais assim a olhar para o céu?” – perguntam os “dois homens vestidos de branco” aos discípulos de Jesus, após a ascensão. É frequente ouvirmos dizer que os seguidores de Jesus passam muito tempo a olhar para o céu e negligenciam o seu compromisso com a transformação do mundo. Estamos, efetivamente, atentos aos problemas e às angústias dos homens, ou vivemos de olhos postos no céu, num espiritualismo alienado? Sentimo-nos questionados pelas inquietações, pelas misérias, pelos sofrimentos, pelos sonhos, pelas esperanças que enchem o coração dos que nos rodeiam? Sentimo-nos solidários com todos os homens, particularmente com aqueles que sofrem? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 46 (47)

Refrão 1:  Por entre aclamações e ao som da trombeta,
ergue-Se Deus, o Senhor.

 

Refrão 2: Ergue-se, Deus, o Senhor,
em júbilo e ao som da trombeta.

 

Povos todos, batei palmas,
aclamai a Deus com brados de alegria,
porque o Senhor, o Altíssimo, é terrível,
o Rei soberano de toda a terra.

Deus subiu entre aclamações,
o Senhor subiu ao som da trombeta.
Cantai hinos a Deus, cantai,
cantai hinos ao nosso Rei, cantai.

Deus é Rei do universo:
cantai os hinos mais belos.
Deus reina sobre os povos,
Deus está sentado no seu trono sagrado

LEITURA II – Efésios 1,17-23

Irmãos:
O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos conceda um espírito de sabedoria e de luz
para O conhecerdes plenamente
e ilumine os olhos do vosso coração,
para compreenderdes a esperança a que fostes chamados,
os tesouros de glória da sua herança entre os santos
e a incomensurável grandeza do seu poder
para nós os crentes.
Assim o mostra a eficácia da poderosa força
que exerceu em Cristo,
que Ele ressuscitou dos mortos
e colocou à sua direita nos Céus,
acima de todo o Principado, Poder, Virtude e Soberania,
acima de todo o nome que é pronunciado, não só neste mundo,
mas também no mundo que há de vir.
Tudo submeteu aos seus pés e pô-l’O acima de todas as coisas
como Cabeça de toda a Igreja, que é o seu Corpo,
a plenitude d’Aquele que preenche tudo em todos.

CONTEXTO

Éfeso era uma cidade situada na costa da Jónia, a cerca de três quilómetros da moderna Selçuk, província de Esmirna, na atual Turquia. Durante o período romano chegou a ser a segunda cidade do império, logo a seguir a Roma. Era famosa pelo Templo de Ártemis, uma das sete maravilhas do mundo antigo, e pelo seu enorme teatro, com capacidade para cerca de 25.000 espetadores. Era também conhecida pela excelência das suas escolas filosóficas, pela sua vida cultural e por ser o principal centro comercial do Mediterrâneo.

Paulo passou em Éfeso durante a sua terceira viagem missionária e permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10). Reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23); e assim, à volta da sua pregação e do seu testemunho, desenvolveu-se uma comunidade cristã numerosa e entusiasta. Foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso. Estranhamente, a Carta aos Efésios não reflete essa relação.

Na verdade, a carta está escrita num tom impessoal, sem referências a pessoas ou a circunstâncias concretas. Parece estranho que Paulo, depois de ter passado um tempo relativamente longo em Éfeso, escrevesse uma carta sem deixar transparecer a relação estreita que o unia aos Efésios. Alguns duvidam, por essa razão, da autenticidade paulina da Carta aos Efésios; mas outros consideram que o texto que chegou até nós com a designação de “Carta aos Efésios”, poderia ser um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor (também à Igreja de Éfeso), numa altura em que Paulo estava na prisão, talvez em Roma. Ora, uma carta desse tipo não poderia ser uma carta muito pessoal. Tíquico, o portador da carta, tê-la-ia distribuído pelas Igrejas da zona. Estaríamos, provavelmente, pelos anos 58/60.

O tema central da Carta aos Efésios é o projeto salvador de Deus (aquilo a que Paulo chama “o mistério”): definido desde toda a eternidade, permaneceu oculto ao entendimento dos homens durante séculos, até que foi dado a conhecer em Jesus e revelado aos apóstolos. O projeto salvador de Deus concretiza-se, agora, na Igreja, Corpo de Cristo, sacramento de salvação, onde judeus e pagãos se encontram e vivem em unidade.

O texto da Carta aos Efésios que nos é proposto como segunda leitura neste domingo da Ascensão, integra a primeira parte da carta, que reflete sobre o “Mistério” de Cristo e da Igreja (cf. Ef 1,3-3,21). Ao hino de louvor a Deus pelo seu plano de salvação, concretizado em Cristo (cf. Ef 1,3-14), segue-se uma ação de graças pela fé dos efésios e pela caridade que eles manifestam para com todos os irmãos na fé (cf. Ef 1,15-23). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • No dia em que celebramos a ascensão de Jesus ao céu, Paulo pede a Deus que “ilumine os olhos” do nosso coração para termos sempre presente “a esperança a que fomos chamados”. É um pedido que faz sentido. Curvados pelo cansaço do caminho, seduzidos pelos apelos de um mundo que vive “a prazo”, encandeados pelo brilho falso dos valores passageiros, podemos ceder à tentação de caminhar de olhos postos no chão, limitando-nos a seguir a corrente e a aproveitar algumas migalhas de felicidade efémera. Mas a ascensão de Jesus fala-nos de um projeto de vida com dimensão de eternidade e de plenitude. Qual o cenário de fundo que domina a nossa caminhada: o da terra, sempre muito rasteiro e limitado, ou o horizonte largo do mundo de Deus, de onde o nosso irmão Jesus nos chama?
  • É bela e sugestiva a imagem da Igreja como um “corpo” do qual Cristo é a “cabeça”. Todos nós, membros vivos desse “corpo”, estamos ligados a Cristo. É Ele o nosso “centro”, a nossa referência, a nossa fonte de Vida. A imagem também nos lembra a comunhão, a solidariedade, os laços fraternos que unem todos aqueles que integram esse “corpo”, apesar das diferenças e distâncias que possam existir entre nós. Estas duas coordenadas estão presentes na nossa experiência de fé? Procuramos manter permanentemente a nossa ligação a Jesus e fazer d’Ele o centro à volta do qual construímos toda a nossa existência? Sentimo-nos ligados aos nossos irmãos na fé e procuramos, com eles e junto deles, viver o mandamento do amor que Jesus nos deixou?
  • A Igreja é a “plenitude” de Cristo. Nela Cristo reside no mundo e nela Cristo continua a oferecer ao mundo a plenitude da salvação de Deus. Os homens e mulheres do nosso tempo, quando olham para a Igreja, encontram Cristo e a proposta de salvação que Cristo veio trazer? Nós, membros da Igreja, damos testemunho coerente e verdadeiro de Cristo e do Evangelho?

(Nota: em vez desta leitura, pode-se escolher a seguinte leitura facultativa: Ef 4,1-13). in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 16,15-20

Naquele tempo,
Jesus apareceu aos Doze e disse-lhes:
«Ide por todo o mundo
e pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem acreditar e for batizado será salvo;
mas quem não acreditar será condenado.
Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem:
expulsarão os demónios em meu nome;
falarão novas línguas;
se pegarem em serpentes ou beberem veneno,
não sofrerão nenhum mal;
e quando impuserem as mãos sobre os doentes,
eles ficarão curados».
E assim o Senhor Jesus, depois de ter falado com eles,
foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus.
Eles partiram a pregar por toda a parte
e o Senhor cooperava com eles,
confirmando a sua palavra
com os milagres que a acompanhavam.

CONTEXTO

Há consenso entre os biblistas em admitir que o texto original do Evangelho segundo Marcos terminava em 16,8 com a referência ao silêncio e ao medo das mulheres que, na manhã de Páscoa, encontraram vazio o túmulo de Jesus. Parece uma forma estranha de concluir a história de Jesus; mas, ao terminar o seu evangelho com este “final aberto”, Marcos estaria a deixar os seus leitores um convite implícito a que eles próprios completassem o relato com a sua própria experiência pessoal de adesão e de seguimento de Jesus ressuscitado.

A perícope de Mc 16,9-20, conhecida como “conclusão longa”, parece ter sido acrescentada posteriormente ao texto de Marcos. Apresenta um estilo e um vocabulário que a distinguem nitidamente do resto do evangelho. Aliás, essa “conclusão longa” não aparece nos manuscritos mais importantes e mais antigos, como sejam os códices Vaticano e Sinaítico.

Provavelmente, a forma como Marcos concluiu o seu evangelho deixou os seus leitores insatisfeitos e, rapidamente, apareceram tentativas de lhe dar um final mais satisfatório. Algumas dessas tentativas estão, aliás, atestadas em diversos documentos antigos que nos transmitiram o texto do segundo Evangelho. De entre os diversos “finais” que apareceram, houve um que se impôs aos outros. Trata-se de um texto de meados do séc. II, que apresenta um resumo das aparições de Jesus ressuscitado contadas por outros evangelistas. Assim, a aparição de Jesus ressuscitado aos Onze (cf. Mc 16,14) depende de Lc 24,36-43 e de Jo 20,19-29; a definição da missão dos apóstolos (cf. Mc 16,15-18) depende de Mt 28,16-20 e de Lc 24,44-49; o relato da Ascensão (cf. Mc 16,19) depende de Lc 24,50-53 e de At 1,4-11. Embora tardio e não redigido por Marcos, este “final” é, contudo, parte integrante da Escritura Sagrada. A Igreja reconhece-o como canónico, como inspirado por Deus e como Palavra de Deus.

O quadro traçado pelo autor dessa “conclusão longa” apresenta os discípulos a reagir de uma forma muito negativa ao facto de Jesus já não estar com eles. Na manhã da ressurreição, eles estavam “em luto e em pranto” (Mc 16,10); depois, receberam o testemunho das mulheres que encontraram Jesus ressuscitado com incredulidade e com um coração obstinado (cf. Mc 16,14). É uma comunidade que não ousa sair para enfrentar a hostilidade do mundo; prefere ficar dentro de portas, prisioneira dos seus medos, a “lamber as feridas”.

No entanto, depois de aparecer a Maria Madalena (cf. Mc 16,9) e a dois discípulos “que iam a caminho do campo” (cf. Mc 16,12), Jesus ressuscitado apresentou-se aos “onze” quando estes estavam à mesa (cf. Mc 16,14). É precisamente aqui que o evangelho proclamado na Solenidade da Ascensão do Senhor nos situa. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A partida de Jesus, a sua entrada definitiva no mistério do Pai, marca uma etapa nova na história da salvação. Nesse dia começa o tempo da Igreja, o tempo em que a responsabilidade de testemunhar a salvação de Deus fica nas mãos dos discípulos de Jesus. Eles acolheram o convite de Jesus, dispuseram-se a segui-l’O, ouviram as suas palavras, viram os seus gestos, aprenderam as suas lições, foram formados na sua “escola”. Conhecem o projeto de Jesus e adotaram-no como projeto de vida. É altura de se mostrarem adultos e responsáveis na vivência da fé. Não podem continuar “á boleia” de Jesus, à espera que Jesus faça tudo. Compete-lhes agora continuarem no mundo, com alegria, criatividade e compromisso, a obra libertadora e salvadora de Jesus. Sentimos esta responsabilidade? Somos capazes de vencer os nossos medos e as nossas hesitações, a nossa preguiça e o nosso comodismo, para nos assumirmos como testemunhas coerentes e comprometidas de Jesus e do seu projeto?
  • No Evangelho segundo Marcos Jesus define a missão dos discípulos como pregar o Evangelho, combater o mal que oprime os homens, curar os doentes e dar Vida a todos aqueles que sofrem. É a mesma tarefa que Jesus cumpriu, por mandato do Pai. O nosso anúncio é uma “boa notícia” que liberta do medo e que acende a esperança? Anunciamos e testemunhamos o amor misericordioso de Deus? Estamos empenhados em combater a injustiça, a violência, o egoísmo, a indiferença, tudo aquilo que gera escravidão e opressão? Os doentes, os prisioneiros, os que a todo o momento veem pisados os seus direitos e a sua dignidade, os que vivem ignorados e abandonados, os que são privados do acesso à saúde e à educação, os que são “marcados” e excluídos por serem “diferentes”, podem contar com a nossa solidariedade ativa, com o nosso amor, com o nosso esforço para lhes levar Vida?
  • A missão que Jesus confiou aos discípulos é uma missão universal: as fronteiras, as raças, as diferenças culturais, as diferenças ideológicas, as diferenças de estatuto social, as marcas da vida, os “acidentes” pessoais que tornam cada pessoa única e diferente, não podem ser obstáculos para a presença da proposta libertadora de Jesus no mundo. Temos consciência de que Jesus nos envia a todas as pessoas, independentemente daquilo que as torna diferentes, “estranhas”, singulares? Nas nossas comunidades cristãs há lugar para todos, sejam quais forem as situações de vida ou as feridas que cada um carrega?
  • De acordo com Jesus, o Evangelho é uma proposta libertadora não apenas para os seres humanos, mas para “toda a criatura”. A tradição bíblica ensina que Deus, depois de concluir a sua obra criadora, a confiou ao Homem (cf. Gn 1,28-30); mas o Homem, ferido pelo egoísmo e pela autossuficiência, tratou mal a natureza e os outros seres criados por Deus. Relacionou-se com o resto da criação com “tiques” de ambição, de cobiça, de ganância, tornando-a refém do seu egoísmo. Destruiu florestas, provocou o desaparecimento de espécies animais e vegetais, introduziu desequilíbrios na natureza, envenenou as terras e os rios, criou a poluição que mata, explorou de forma descontrolada os recursos naturais, potenciou a difusão de doenças, destruiu a harmonia desse “mundo bom” que Deus lhe tinha confiado. A terra, a natureza, os outros seres criados, precisam de ser libertados da escravidão que lhes vem do pecado do Homem. Sim, é verdade que o Evangelho é uma proposta libertadora para “toda a criatura”: se “curar” o coração do Homem, fará nascer um mundo novo, também no que à natureza e aos outros seres criados diz respeito. O nosso apreço pelo Evangelho e pela proposta de Jesus traduz-se, também, no respeito pela natureza e por todos os outros seres que Deus criou?
  • Jesus nunca se cansou de dizer aos seus discípulos que não os abandonaria, que não os deixaria sozinhos no mundo. Responsabilizou-os por dar testemunho da salvação de Deus; mas garantiu-lhes que os acompanharia e que os ajudaria a cada passo a discernir os caminhos que deveriam percorrer. De facto, Ele continua a caminhar ao nosso lado, a sentar-se à mesa connosco, a oferecer-nos a sua Palavra, a corrigir os nossos passos mal dados, a sustentar com a sua força as nossas indecisões, a levantar-nos depois das nossas quedas. Sentimos essa presença reconfortante de Jesus ao nosso lado no caminho de todos os dias? Notamos a sua presença quando nos reunimos com os outros irmãos à mesa da eucaristia? Procuramos manter a ligação com Ele? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, deve haver um especial cuidado nas frases mais longas e com diversas orações, tendo atenção às diversas pausa e respirações. No início da leitura, deve haver cuidado na pronunciação do vocativo «ó Teófilo». Na proclamação de um vocativo, não se deve empregar a mesma duração na pausa das vírgulas. A primeira deve ser praticamente omitida para que se faça a pausa na segunda de modo a não parecer existir uma interrupção no texto. Além disso, deve haver especial atenção com as frases em discurso direto e a sua articulação com todo o texto.

Na segunda leitura, insisto na extensão das frases que exige uma leitura pausada e articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ASCENSÃO DO SENHOR

Também hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, dada a riqueza e a delicadeza da filigrana do texto do Evangelho de Marcos 16,15-20, que constitui a sua conclusão, e que vamos ter a graça de escutar, parece-me importante começar por colocar o texto diante dos nossos olhos, começando com o v. 14:

«16,14Em último lugar fez-se ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham visto ressuscitado. 15E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura”. 16Quem acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. 17São estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, 18e, se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem.

19O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. 20Eles, então, tendo saído, anunciaram o Evangelho por toda a parte, enquanto o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Marcos 16,14-20).

Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente tardia, talvez do séc. II, mas grandiosa e imponente, e cheia de referências significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a abrir o Evangelho (1,14-15) e a fechar o Evangelho (16,15-16). Mas o anúncio do Evangelho a toda a criatura (16,15) reclama também o início da inteira Escritura, a página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Génesis 1,26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então o ser humano (Génesis 3,1-5), são agora dominadas (16,18), do mesmo modo que é o bem (kalôs), em vez da cura, que agora se estabelece sobre os doentes (16,18). É outra vez o eco intertextual da Criação, onde, no texto grego dos LXX, o bembom e belo (kalós) impregna por completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Génesis 1,4.8.10.12.18.21.25.31 LXX). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta nota com o termo tôb, que passa o mesmo significado de bembom e belo (Génesis 1,4.10.12.18.21.25.31).

«O Senhor Jesus» (ho Kýrios Iêsoûs) (16,19), única menção em todos os Evangelhos, enche a cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16,14), quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante a nossa incredulidade, e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16,15 e 20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e a prova somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.

Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho:

  1. a) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade;
  2. b) a missão total a nós confiada;
  3. c) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho;
  4. d) o envolvimento de todos;
  5. e) a Presença nova e sempre ativa e comprometida do Ressuscitado connosco.

a). A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16,17), mediante envio seu (16,15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16,20) e confirmante (bebaióô) (16,20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do verbo baínô, que significa «caminhar», e supõe terreno firme e sólido (bébaios) sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza.

b). A missão total a nós confiada, que deve envolver «todos, tudo e sempre» (Bento XVI, Mensagem para o 85.º Dia Missionário Mundial 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as expressões «indo por todo o mundo» (16,15), «anunciai o Evangelho a toda a criatura» (16,15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16,20). É a missão total, e não por etapas. Jesus não recomenda: «a começar pela rua tal, ou pela cidade tal…». Portanto, esta missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a decisão de Jesus em Marcos 1,38-39; Lucas 4,42-43). A ventania do Pentecostes ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de rentabilidade.

c). Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado, sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente transparência do Deus criador e senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Génesis 1,26-31). Até a cobra perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3,1-5, e mostra-se mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora, nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sabedoria 1,14), e a doença é vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à imagem de Deus, que enche este mundo de bem (kalôs LXX) (16,18), que é uma nota que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o verbo therapeúô (cf. Mateus 4,24; 8,16; 10,1.8; Marcos 1,34; 3,10; 6,13; Lucas 4,40; 6,18b; 9,1.6) ou iáomai (Marcos 5,29; Lucas 6,18a.19; 9,2). De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração, catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer,sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Coríntios 10,16). Celebrar a Eucaristia é, pois, sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom, que é a fonte da comunhão.

d). Nós já sabemos, são muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de Jesus compete a todos. É por natureza que a Igreja é missionária, diz-nos o Decreto Conciliar Ad gentes, n.º 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo VI, na feliz Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi, n.º 5; Bento XVI, Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2012). É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são realizados por todos os que acreditam (Marcos 16,17-18). Esta extraordinária «democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que acreditam serve para datar este texto do século II. No século I, estes prodígios estavam confinados aos Apóstolos, e, a partir do século III, será o clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do «Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.

e). Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos, ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16,19), sinal de proeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16,20). «Sair», hebraico yatsa՚, é o verbo clássico do Êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento. «Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii gaudium [2013], n.os 20.23.27.97.259.261. A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A Igreja existe para evangelizar» (Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o retira do nosso convívio, pois Ele continua connosco, cooperando e confirmando a missão da Evangelização que nos confiou.

O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambánodos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).

Tanto VER. Da panóplia de verbos registados (blépôatenízôhoráôemblépôtheáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. É, pois, importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

Verificação. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença, descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

Como se vê, há também um impressionante condensado de olhares a marcar este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáôatenízôblépôepéchôAtenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade-mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes diretamente no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [= «sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [= «lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [= «no Olival»], que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster, e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que corresponde a 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (v. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (v. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada, vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (v. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (v. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão do Senhor, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

Quando a Palavra de Deus,
Como uma enchente,
Encheu o tempo,
Dando ao homem a necessária oportunidade de ter de responder
E de não poder não responder,
O Filho de Deus,
Sem deixar de ser Deus,
Fez-se também filho de Maria,
Jesus,
Assumindo assim também a nossa frágil natureza humana.
Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,
É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,
Jesus,
E é desta humanidade glorificada,
À direita de Deus sentada,
Que vem o Espírito Santo para nós.
É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,
Pois se Eu não for,
O Espírito Santo não virá para vós.
Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,
Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,
Da qual,
Por contágio sacramental,
Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.
Senhor Jesus,
Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,
E derrama no nosso humano coração
O Espírito da consolação,
Da paz e da alegria.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VII do Tempo Pascal – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 (Act 1, 1-11)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo VII do Tempo Pascal – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 (Ef 1, 17-23)
  3. Domingo da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 – Lecionário
  4. Domingo da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para o LVIII Dia Mundial das Comunicações Sociais – 12.05.2024 – Solenidade da Ascensão do Senhor
  6. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VI da Páscoa – Ano B – 05.05.2024
Dia da Mãe

 

Viver a Palavra

O Evangelho que escutamos neste Domingo é a resposta acabada àquilo que é a essência do cristianismo: o amor superabundante de Deus, revelado em Jesus Cristo, torna-se norma do nosso agir, pois a nossa missão como discípulos encontra-se unida à vida de Jesus, como Jesus está unido ao Pai: «assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei». Deste modo, podemos afirmar que a liturgia da Palavra deste Domingo é uma janela aberta com vista direta para o coração de Deus, pois como afirma S. João: «Deus é amor». Esta é a imagem de marca de Deus, esta é a essência da vida de Deus e configura o Seu modo de agir no mundo.

O amor corre sempre o risco de ser uma palavra banal da qual se usa e abusa e os discursos construídos a partir dele facilmente se convertem em discursos bem-intencionados, mas inconsequentes. Aquele que se encontra com Jesus Ressuscitado, Rosto da misericórdia do Pai, faz a experiência de que o amor não é mera afeição nem um sentimento fugaz ou banal, mas uma experiência de encontro que me faz sentir profundamente amado e chamado a construir a nova civilização do amor.

A verdadeira experiência de amar não é autorreferencial nem egocêntrica, mas alarga os meus horizontes, abre os meus olhos e o meu coração para que todos aqueles que se cruzam comigo façam a experiência de ser profundamente amados por Deus.

Deus ama-nos com um amor unilateral e assimétrico, pois Ele revelou o Seu amor enviando o Seu Filho unigénito que se entregou todo e para sempre por cada um de nós: «ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos». Na verdade, na vida cristã o verbo amar conjuga-se com o verbo dar e de modo particular e radical na sua forma reflexa «dar-se». Em Jesus Cristo, Deus não nos dá algo exterior a si próprio, mas o Seu próprio Filho. Se existe um princípio económico que afirma que uma determinada coisa vale o que estamos dispostos a dar por ela, então nós somos profundamente valiosos aos olhos de Deus, pois Ele esteve disposto a entregar o Seu único filho para a salvação de todos.

Este amor infinito de Deus eleva a nossa condição de servos e converte a nossa vida num lugar de experiência da amizade profunda que Deus tem por cada um de nós: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai». A nossa condição de fragilidade e pecado não tem mais a última palavra, porque Jesus Cristo, o Ressuscitado, nos faz Seus amigos e participantes da Sua vida divina. O amor que Deus derrama em nossos corações concede-nos a verdadeira alegria, que não se contenta com contentamentos fugazes, mas se abre à alegria verdadeira e completa que só o amor de Deus pode oferecer e garantir.

O amor de Deus revelado na vida de Jesus por meio de palavras e gestos intimamente ligados entre si (DV 2) deve manifestar-se também assim na vida de cada um de nós. Apesar dos nossos limites e fragilidades, somos convidados a seguir Jesus na escola da arte de amar. Escutando a Sua palavra, alimentados pelo Pão da Eucaristia e contemplando os Seus gestos cheios de ternura e bondade, somos chamados a construir uma nova humanidade que tem consciência que o amor não é mais uma coisa a fazer, mas o modo de fazer todas as coisas. in Voz Portucalense

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O primeiro Domingo de Maio é dedicado à celebração do Dia da Mãe. Para que este dia se possa também viver em comunidade e não fique refém da lógica comercial, na Eucaristia deste Domingo pode dirigir-se uma palavra especial a todas as mães, acompanhada de algum gesto que assinale este dia. Pode dirigir-se uma bênção especial às mães presentes na celebração, bem como um envolvimento da catequese e da pastoral familiar para que este dia seja valorizado como lugar de ação de graças pelo dom da maternidade. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 10,25-26.34-35.44-48

Naqueles dias,
Pedro chegou a casa de Cornélio.
Este veio-lhe ao encontro
e prostrou-se a seus pés.
Mas Pedro levantou-o, dizendo:
«Levanta-te, que eu também sou um simples homem».
Pedro disse-lhe ainda:
«Na verdade, eu reconheço
que Deus não faz aceção de pessoas,
mas, em qualquer nação,
aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável».
Ainda Pedro falava,
quando o Espírito desceu
sobre todos os que estavam a ouvir a palavra.
E todos os fiéis convertidos do judaísmo,
que tinham vindo com Pedro,
ficaram maravilhados ao verem que o Espírito Santo
se difundia também sobre os gentios,
pois ouviam-nos falar em diversas línguas e glorificar a Deus.
Pedro então declarou:
«Poderá alguém recusar a água do Batismo
aos que receberam o Espírito Santo, como nós?»
E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo.
Então, pediram-lhe que ficasse alguns dias com eles.

CONTEXTO

O texto que a liturgia deste sexto domingo da Páscoa nos propõe como primeira leitura integra uma secção do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. 9,32-11,18) cujo protagonista é o apóstolo Pedro. Essa secção refere a atividade missionária de Pedro no litoral da costa palestina, entre Jope e Cesareia Marítima, onde Pedro, assumindo o papel de pregador itinerante, vai visitando diversas comunidades cristãs.

O episódio que nos é proposto situa-nos em Cesareia Marítima, uma cidade construída por Herodes, o Grande, no séc. I a. C., num lugar antigamente designado por “Torre de Estraton”. Cesareia era a sede do poder romano na Palestina, pois era aí que residiam os procuradores romanos da Judeia. No centro da cena está um centurião romano, chamado Cornélio, que era “piedoso e temente a Deus” (At 10,2). Pedro estava em Jope (atual Jafa), um pouco mais a sul, hospedado em casa de Simão, o curtidor (cf. At 9,43); mas, convidado por Cornélio, vai até Cesareia, dirige-se à casa do centurião romano e, encontrando-o reunido com diversos familiares e amigos (cf. At 10,24), anuncia-lhes Jesus.

A atitude de Pedro deve ter gerado alguma polémica nas comunidades cristãs primitivas, particularmente na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 11,2-3). Para os primeiros cristãos, oriundos do mundo judaico, não era claro que os pagãos pudessem entrar na comunidade cristã. O pagão era considerado um ser impuro, em casa de quem o bom judeu estava proibido de entrar, a fim de não se contaminar. Quereria Deus que a salvação fosse também anunciada aos pagãos?

Para o autor dos Atos dos Apóstolos, é perfeitamente claro que Deus também quer oferecer a salvação aos pagãos. Para deixar isso bem claro, ele põe Deus a dirigir toda a trama: é Deus que, numa visão, pede a Cornélio que mande chamar Pedro (cf. At 10,1-8); e é Deus que arrebata Pedro “em êxtase” e lhe sugere que poderá ir ao encontro de Cornélio sem ficar contaminado pelo contacto com um pagão (cf. At 10,9-23). A decisão de Pedro de apresentar a proposta de Jesus a uma família pagã será, pouco depois, aprovada pela Igreja de Jerusalém (cf. At 11,18).

Este episódio tem uma especial importância no esquema imaginado por Lucas para a expansão da Igreja… Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade de Jesus. A conversão de Cornélio marca uma viragem decisiva na proclamação do Evangelho que, a partir deste momento, se abre também aos pagãos.

A conversão de Cornélio será, basicamente, histórica; as “visões” e os detalhes são, provavelmente, o cenário que Lucas monta para apresentar a sua catequese. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Deus vê todos os homens e mulheres como seus filhos e suas filhas muito queridos. Ele não os discrimina pela cor da pele, pela raça, pela nação a que pertencem, pela posição de que disfrutam na sociedade: Ele ama a todos por igual, com um amor sem limites. O seu grande desejo é vê-los caminhar pela vida, livres e felizes, até ao encontro final com Ele. Por isso, Ele oferece-lhes a salvação: chama-os, fala-lhes, abraça-os, indica-lhes os caminhos que devem percorrer, apoia-os e sustenta-os ao longo da caminhada, mostra-lhes a meta a alcançar… A salvação que Ele oferece só não chega àqueles que se fecham no orgulho e na autossuficiência, recusando os dons de Deus. O Batismo foi, para todos nós, o momento do nosso “sim” a Deus e à sua oferta de salvação; mas é preciso que, em cada instante, renovemos esse primeiro “sim” e que vivamos numa permanente disponibilidade para acolher Deus, as suas propostas, os seus dons, o seu amor. Depois do nosso “sim” inicial, continuamos disponíveis para acolher a salvação que Deus nos oferece? Procuramos escutar as indicações que Ele nos dá e caminhar de acordo com elas? Acreditamos firmemente que as propostas de Deus nos conduzem na direção da Vida verdadeira, da Vida eterna, da felicidade sem fim?
  • A ideia de que Deus não exclui ninguém da salvação e não faz aceção de pessoas parece-nos um dado perfeitamente lógico e evidente. Mas, aceitar essa lógica, traz consequências à nossa vida, particularmente à forma como vemos os outros homens e mulheres com quem nos cruzamos nos caminhos da vida. O Deus que ama todos os seus filhos e filhas, sem exceção, convida-nos a acolher todos os irmãos – mesmo os “diferentes”, mesmo os incómodos – com bondade, com compreensão, com amor; o Deus que derrama sobre todos a sua salvação convida-nos a não discriminar “bons” e “maus”, “santos” e “pecadores” (frequentemente, os nossos juízos acerca da “bondade” ou da “maldade” dos outros falham redondamente); o Deus que convida cada homem e cada mulher a integrar a comunidade da salvação diz-nos que temos de acolher e amar todos, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua origem, da sua preparação cultural, do seu lugar na escala social. Não apenas em teoria, mas sobretudo nos nossos gestos concretos, somos chamados a anunciar esse mundo de Deus, sem exclusão, sem marginalização, sem intolerância, sem preconceitos. Como vemos e como lidamos com os “diferentes”? Nós, filhos amados de um Deus que não faz aceção de pessoas, alinhamos em preconceitos, em conclusões precipitadas, em juízos defeituosos, em posições ideológicas que dividem, que marginalizam, que segregam pessoas ou grupos humanos?
  • Quando Pedro chega a casa de Cornélio, este veio-lhe ao encontro e prostrou-se a seus pés… Mas Pedro disse-lhe imediatamente: “levanta-te, que eu também sou um simples homem” (vers. 25-26). A atitude humilde de Pedro faz-nos pensar como são ridículas e desprovidas de sentido certas tentativas de afirmação pessoal diante dos irmãos, certas poses de superioridade, a busca de privilégios e de honras, as lutas pelos primeiros lugares… Aqueles a quem, numa comunidade – civil ou religiosa – foi confiada a responsabilidade de presidir, de coordenar, de organizar, de animar, devem sentir-se “simples homens”, humildes instrumentos de Deus. A sua missão é servir, ajudar, cuidar, não procurar privilégios, honrarias, situações que satisfaçam as suas ambições pessoais. Quando sou chamado a uma determinada missão na comunidade, como a encaro? Como é que trato aqueles a quem devo servir no contexto da missão que me foi confiada? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)

Refrão 1: O Senhor manifestou a salvação a todos os povos.

Refrão 2: Diante dos povos manifestou Deus a salvação.

Cantai ao Senhor um cântico novo
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação,
revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade
em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.

LEITURA II – 1 João 4,7-10

Caríssimos:
Amemo-nos uns aos outros,
porque o amor vem de Deus
e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.
Quem não ama não conhece a Deus,
porque Deus é amor.
Assim se manifestou o amor de Deus para connosco:
Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito,
para que vivamos por Ele.
Nisto consiste o amor:
não fomos nós que amámos a Deus,
mas foi Ele que nos amou
e enviou o seu Filho
como vítima de expiação pelos nossos pecados.

CONTEXTO

Como vimos nos domingos anteriores, a Primeira Carta de João é uma instrução escrita destinada a algumas Igrejas da Ásia Menor nascidas em contexto joânico (quer dizer, ligadas à figura do apóstolo João, que passou os últimos anos da sua vida em Éfeso, cidade situada na costa da Jónia, junto da moderna Selçuk, na atual Turquia). Combate as doutrinas heréticas de seitas pré-gnósticas que, pelo final do séc. I, lançavam a confusão nas comunidades cristãs; e define os princípios fundamentais da vida cristã autêntica.

Neste contexto de confronto com as heresias pré-gnósticas, uma das questões mais controversas (e à qual o autor da Primeira Carta de João dá uma importância fundamental) era a questão do amor ao próximo. Os hereges pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé residia na vida de comunhão com Deus e negligenciavam as realidades do mundo. Achavam que se podia descobrir “a luz” e estar próximo de Deus, mesmo odiando o próximo (cf. 1 Jo 2,9). Ora, de acordo com o autor da Primeira Carta de João, o amor ao próximo é uma exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele se não se deixou contagiar e embeber pelo amor.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte da carta (cf. 1 Jo 4,7-5,12). Aí, o autor estabelece como critério da vida cristã autêntica a relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. É nessa dupla dimensão que os cristãos devem encontrar a sua identidade. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • “Deus é amor” – diz o autor da Primeira Carta de João. Não se trata de uma definição abstrata ou de uma tese académica; é uma constatação que se impõe a partir da contemplação das ações e das intervenções de Deus na história e na vida dos homens. Deus começou por criar o universo, o mundo e os seres humanos com amor e cuidado de artista. Depois, ao longo da história humana, Ele procurou sempre fazer-se presente no caminho dos seus filhos e dar-lhes o seu amor: revelou-lhes o seu rosto, comprometeu-se com eles numa aliança, indicou-lhes os caminhos que eles deviam percorrer para encontrar Vida, avisou-os repetidamente para não enveredarem por caminhos de morte…. Chegou mesmo a enviar o seu Filho Unigénito ao encontro dos homens para lhes oferecer a salvação. É verdade: a história da salvação é uma extraordinária história de amor que tem Deus como protagonista. E esta história não está terminada, pois o amor de Deus pelos seus filhos nunca se esgota. Nós continuamos hoje, a cada passo do caminho, a experimentar a realidade desse amor. E é com a certeza do amor sempre fiel de Deus que avançamos, enfrentando as crises, as incertezas, as tempestades e as vicissitudes que marcam a história do nosso tempo. Estamos conscientes disto? Sentimo-nos amparados pelo amor de Deus ao longo do caminho que todos os dias percorremos? Damos testemunho diante dos outros homens e mulheres que caminham ao nosso lado da nossa confiança inquebrantável num Deus que nos ama?
  • “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus”. É uma afirmação extraordinária, que talvez nos obrigue a rever alguns dos nossos esquemas mentais. Convida-nos a ver como nossos irmãos, membros da família de Deus, todos aqueles que, por amor, fazem o bem. Os seus nomes podem nem constar nos livros de registos dos batizados que guardamos nos nossos cartórios paroquiais; mas eles “conhecem a Deus”, estão muito próximos de Deus, são de Deus. Como vemos os nossos irmãos e irmãs que estão fora da comunidade cristã ou que levam vidas condenáveis do ponto de vista da moral vigente, mas que procuram servir, amar e cuidar os seres humanos que sofrem? Como consideramos aqueles que, dizendo-se ateus ou agnósticos, defendem os mais fracos, lutam pelos direitos e pela dignidade dos seus irmãos?
  • Se somos “filhos” desse Deus que é amor, “amemo-nos uns aos outros” com um amor igual ao de Deus – amor incondicional, gratuito, desinteressado. Ser “filho de Deus” não significa passar a vida a olhar para o céu, ignorando as dores, as necessidades e as lutas dos irmãos que caminham ao nosso lado; ser “filho de Deus” não é ter apreço pelas “coisas da religião” e ignorar os dramas dos pobres, dos oprimidos, dos marginalizados; ser “filho de Deus” não é tratar bem algumas pessoas que nos “calham bem” ou com as quais nos identificamos mais, e passar ao lado daqueles que não nos agradam ou com as quais não nos identificamos. A vida de Deus que enche os corações dos crentes deve manifestar-se em gestos concretos de solidariedade, de serviço, de dom, em benefício de todos os irmãos. É assim que eu vivo a minha filiação divina, amando todos, sem distinção, em gestos concretos de serviço, de entrega, de doação? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 15,9-17

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos:
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei.
Permanecei no meu amor.
Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor,
assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai
e permaneço no seu amor.
Disse-vos estas coisas,
para que a minha alegria esteja em vós
e a vossa alegria seja completa.
É este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei.
Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida pelos amigos.
Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando.
Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas chamo-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai.
Não fostes vós que Me escolhestes;
fui eu que vos escolhi e destinei,
para que vades e deis fruto
e o vosso fruto permaneça.
E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome,
Ele vo-lo concederá.
O que vos mando é que vos ameis uns aos outros».

CONTEXTO

O Evangelho do sexto domingo da Páscoa situa-nos, outra vez, em Jerusalém, numa noite de quinta-feira do mês de Nisan do ano trinta, um dia antes da celebração da Páscoa judaica. Jesus está à mesa com os seus discípulos, numa inolvidável ceia de despedida. É o mesmo cenário do Evangelho que escutamos no passado domingo.

Sobre Jesus e o seu grupo de discípulos paira a sombra da cruz. Nessa noite, após a ceia, Jesus atravessará o Vale do Cedron, a oriente da cidade, e dirigir-se-á ao Getsemani (“lagar de azeite”), um jardim situado no sopé do Monte das Oliveiras, onde estará alguns momentos em oração. Aí será preso pelos soldados do Templo. Durante essa noite comparecerá diante do Sinédrio, será julgado e condenado à morte. Na manhã do dia seguinte, depois de a sentença ser confirmada pelo governador romano, será crucificado.

Enquanto convive, à mesa, com os discípulos, Jesus está perfeitamente consciente do que o espera nas próximas horas. Não está preocupado com o que lhe vai acontecer: quando aceitou o projeto do Pai e começou a anunciar o Reino, Ele sabia os riscos que iria correr; mas preocupa-se com aqueles discípulos que estão com Ele à mesa nessa noite de quinta-feira… Que será deles quando o seu Mestre lhes for tirado? Poderão, sem Jesus a mostrar-lhes o caminho a cada passo, levar para a frente o projeto do Reino? Saberão discernir, no meio das crises e tempestades que terão de enfrentar, o que é importante e o que é secundário? Conseguirão manter-se em relação com Jesus?

Depois da ceia, Jesus fala longamente com os discípulos e deixa-lhes as suas últimas indicações. Relembra-lhes o essencial da mensagem que procurou transmitir-lhes enquanto percorria com eles os caminhos da Galileia e da Judeia; anima-os com a promessa do Espírito; diz-lhes como é que poderão, pelo tempo fora, manter a ligação a Ele e continuar a receber d’Ele Vida. Tudo o que foi dito nessa noite, à volta da mesa, soa a “testamento final”. Os discípulos nunca mais esquecerão aquilo que Jesus disse nessa ceia de despedida. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A primeira grande certeza que fica para os discípulos na sequência do que Jesus lhes disse naquela memorável ceia de despedida é que eles não vão andar sozinhos na sua marcha pela história. Jesus acompanhá-los-á em cada pedaço do caminho, sustentando-os com o seu amor, com a sua presença amiga, com as suas palavras luminosas e reconfortantes. Não é fácil para nós, homens e mulheres do séc. XXI, fazermos caminho carregando às costas o fardo pesado dos desafios e dos obstáculos que o nosso tempo nos traz; não é fácil, num contexto hostil e crítico, sentirmo-nos um “pequeno rebanho”, sem influência e sem poder, ignorados pelo mundo e aparentemente incapazes de mudar o rumo da história… Mas há uma coisa que não podemos esquecer: Jesus caminha ao nosso lado, dando-nos coragem e esperança, lutando connosco para vencer as forças da opressão, da injustiça, da violência e da morte. Sentimos que Jesus, vivo e ressuscitado, nos acompanha no caminho e alimenta a nossa esperança? Sentimo-nos pessoalmente ligados a Ele e alimentados pelo seu amor?
  • “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei” – disse Jesus aos discípulos ao despedir-se deles. Jesus deu testemunho do amor de Deus em cada gesto que fez e diante de cada homem ou mulher que com Ele se cruzou; por amor aos seus irmãos, Jesus lutou contra tudo aquilo que os fazia sofrer e os impedia de ter Vida; por amor a todos os homens e mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, Jesus deu a vida até à última gota de sangue… Ele amou “até ao extremo”, numa doação total. Quem é “de Jesus” é convidado a viver do mesmo jeito, amando e doando a própria vida como Ele fez. É isto que fazemos, é assim que vivemos? Os homens e as mulheres que se cruzam connosco na estrada da vida veem brilhar em nós o amor de Jesus? As nossas comunidades, nascidas do amor de Jesus, são, realmente, cartazes vivos que anunciam e testemunham o amor, ou são espaços de conflito, de divisão, de luta pelos próprios interesses, de realização de projetos egoístas? As pessoas feridas e magoadas que se aproximam das nossas comunidades cristãs são acolhidas com o amor que aprendemos de Jesus, ou são tratadas com indiferença e arrogância?
  • Há quem ache que o caminho apontado por Jesus aos seus discípulos é um caminho de renúncia, de sofrimento, de sacrifício, que obriga a viver alheado de tudo aquilo que é belo, interessante e agradável. Mas não é assim. Tudo o que Jesus propôs aos discípulos vai no sentido de os ajudar a serem felizes: “Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa” – disse-lhes Ele. Segundo Jesus, a verdadeira alegria não está nos bens efémeros, nos valores fúteis que não matam a sede de felicidade do ser humano; mas está no dom de si mesmo, no serviço simples e humilde aos irmãos, no cuidado dos mais frágeis, na vida oferecida por amor. Acreditamos nisto? Já fizemos a comparação entre a alegria titubeante que resulta dos valores efémeros e a alegria profunda e duradoura que brota de gestos autênticos de doação, de serviço, de cuidado aos irmãos?
  • Os discípulos são os “amigos” de Jesus. Jesus escolheu-os, chamou-os, partilhou com eles o conhecimento e o projeto do Pai, associou-os à sua missão; estabeleceu com eles uma relação de confiança, de proximidade, de intimidade, de comunhão. A comunidade cristã é uma comunidade de “amigos” reunidos à volta de Jesus. Pode ter irmãos a quem foi confiado o serviço da autoridade; mas não é uma comunidade de “senhores” e de “servos”, de “gente que manda” e “gente que obedece”, de “superiores” e de “súbditos”. É a comunidade dos “amigos” de Jesus, uma comunidade de “iguais”. E Jesus continua, apesar de tudo, a ser o centro e a referência, à volta da qual se constrói a comunidade dos discípulos. A Igreja de Jesus funciona realmente como uma família de “amigos” que se amam, que se ajudam mutuamente no caminho, que partilham projetos e ideais? A Igreja é uma comunidade de “irmãos”, onde todos têm voz, onde a opinião de todos conta e onde todos colaboram na descoberta dos caminhos apontados pelo Espírito? Jesus é, de facto, o centro à volta do qual se articula a vida dos seus “amigos”? Como é que no dia a dia nós, amigos de Jesus, desenvolvemos e aprofundamos o nosso encontro e a nossa comunhão com Ele?
  • “Fui eu que vos escolhi e destinei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça” – disse Jesus aos discípulos. Jesus não chamou os discípulos para os fechar nas sacristias; mas chamou-os para que dessem testemunho no mundo do projeto salvador de Deus. Os “amigos” de Jesus são chamados a mostrar em gestos concretos que Deus ama cada homem e cada mulher – e de forma especial os pobres, os marginalizados, os débeis, os pequenos, os oprimidos; os “amigos” de Jesus são convidados a eliminar o sofrimento, o egoísmo, a miséria, a injustiça, tudo o que oprime e escraviza os irmãos e desfeia o mundo; os “amigos” de Jesus são desafiados a ser arautos da justiça, da paz, da reconciliação, do amor; os “amigos” de Jesus têm como tarefa denunciar os pseudovalores que oprimem e escravizam os homens… Os membros da comunidade do Reino de Deus, transformados em Homens Novos pelo amor de Jesus, têm como missão testemunhar esse mundo novo que Deus quer oferecer aos homens e que Jesus anunciou na sua pessoa, nas suas palavras e nos seus gestos. Estamos, de facto, disponíveis para colaborar com Jesus nessa missão? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, devem ter em atenção as diversas intervenções em discurso direto. Sem dramatizar exageradamente devem respeitar a forma dialógica do texto.

A segunda leitura apesar de breve e sem palavras de maior exigência na sua pronunciação, requer um especial cuidado devido às frases curtas. É necessária uma boa articulação das diferentes frases para evitar uma leitura telegráfica.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

COMO EU VOS AMEI

Sendo o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 15,9-17) a continuação imediata do Evangelho do Domingo V (João 15,1-8), e porque a sua rede terminológica continua a ser finíssima, vamos começar também por observar atentamente a sua paisagem textual:

«Como me amou (agapáô) o Pai, também eu vos amei. Permanecei no meu amor (agápê). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Falei-vos (laléô) estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêróô).

É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (títhêmi) a sua vida (tên psychên autoû) pelos seus amigos (phíloi). Vós sois meus amigos, se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (gnôrízô). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros» (João 15,9-17).

As notas mais vezes ouvidas nesta melodia são: «Amar/Amor» (9 vezes), «mandar/mandamento» (5 vezes), «Pai» (4 vezes), «permanecer» (4 vezes), «amigos» (3 vezes), «alegria» (2 vezes), «fruto» (2 vezes). Mas a raiz, o tronco e a seiva do texto, isto é, a sua verdadeira linha melódica, reside na rede exposta do amor: a fonte do amor é o Pai, que o comunica ao Filho, o qual, por sua vez, o comunica aos seus discípulos e amigos (João 15,9-10), para que estes o vivam e, por contágio, a outros o comuniquem, fazendo-o frutificar (João 15,16). O modo é sempre o mesmo e único: guardar os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (João 15,10), e entrega o seu mandamento aos seus discípulos fiéis: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15,12; cf. 13,34), para que estes o guardem também (João 15,10.14).

Ainda se define claramente em que consiste este amor: amar assim é dar a própria vida (tên psychên autoû) (João 15,13). Este «dar» aparece no texto grego expresso com o verbo títhêmi, «pôr», «apostar» a vida. Tudo fica ainda mais claro se lermos com atenção o grande dito de Jesus no contexto do Bom e Belo Pastor: «Por isto o Pai me ama: porque Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para de novo a receber (lambánô). Ninguém ma retira (aírô) de mim; sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim mesmo. Tenho autoridade de a pôr (títhêmi), e tenho autoridade de a receber (lambánô) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (lambánô) do meu Pai» (João 10,17-18). Sem qualquer equívoco agora: amar é dar a própria vida. E este amor novo, que consiste em dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.

Pode parecer estranho, à primeira vista, que o Amor seja objeto de um mandamento. Mas prestando um pouco mais de atenção, acabamos por perceber que amar não é estar apaixonado. E estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor (agôn tês ágapês), do amor novo, que não é contra alguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Neste sentido, o amor (agápê) verdadeiro é agónico. Implica luta (agôn), porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. No mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte; está, antes, no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra» (leb ha՚eben), oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).

É, portanto, tudo o que Jesus, o Filho, faz por nós. E nos manda fazer também, dado que nos manda amar como Ele nos amou (João 13,34; 15,12), nova e paradoxal, desmesurada medida do amor, que plenifica e subverte a antiga equação nivelada: «Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Levítico 19,18). Para tanto, dá-nos a conhecer, por graça, tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio, habilitando-nos assim a rezar ao Pai (João 15,16).

O Apóstolo reforça, na sua Primeira Carta (1 João 4,7-10), a insistência no horizonte novo do amor, repetindo que «quem ama, nasceu de Deus, e conhece-o (ginôskô) (1 João 4,7), ao contrário de quem não ama, que não conhece Deus (1 João 4,8). Se Deus é amor (1 João 4,8 e 16), e se «só o semelhante conhece o semelhante», é decisivo que este amor chegue até nós, para que, sendo feitos por amor semelhantes a Deus, possamos também conhecer Deus. E expõe de novo a rede do amor, desde a sua fonte, que é o Pai, que nos amou e enviou o seu Filho Unigénito para nos dar a vida mediante a oferta propiciatória (hilasmós) da sua vida pelos nossos pecados, que Ele absorve e absolve (1 João 4,9-10).

Atenção, porém, que o amor de Deus não é um património restrito e limitado, um exclusivo só acessível a alguns privilegiados, mediante inscrições, quotas pagas, registos, determinadas raças ou grupos. Chega a todos aqueles que o acolhem. Também esses nascem de Deus. O amor é de Deus; não é sequer prerrogativa dos discípulos de Jesus. Se quem ama nasceu de Deus, foi gerado por Deus (gennáô), então o amor não é nosso; é de Deus. Esta imensa afirmação implica que nunca nos podemos julgar donos do amor, pois não é nossa a patente do amor. Tem outro registo. Apenas nos é dado humildemente reconhecer que «é gerado por Deus» quem já vive no amor. Aí está, a prová-lo, na leitura de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos 10,25-48, o pagão Cornélio a entrar de pleno direito na comunidade dos filhos de Deus, perante o espanto dos judeo-cristãos de Jerusalém, que julgavam que Deus e o Amor de Deus eram só para eles!

É sempre importante que tomemos consciência de que temos o dever de entregar este amor a outros, e não de nos fecharmos dentro de uma cerca, ainda que de rosas seja a cerca! Escreveu bem e rezou bem, em «As idades da vida espiritual», o conhecido teólogo ortodoxo russo Pavel Evdokimov (1901-1970): «Não permitas, Senhor, que o teu Amor e a tua Palavra sejam na minha vida como um santuário, que uma vedação separa da casa e da estrada». Um tal fechamento seria pecar contra o Amor.

Levantar-se-á sempre, desde o santuário do nosso coração emocionado, o hino coral e universal, que é o Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas.

Passa também no ano em curso, neste Domingo VI da Páscoa, o Dia da Mãe. Sobre esta terra dorida, mas também anestesiada e tantas vezes indiferente, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo deste amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso. É de Deus. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás, com certeza, a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição da Leitura do Livro do Apocalipse 21,4

António Couto

Mensagem para o Dia da Mãe

Comissão Episcopal do Laicado e Família

No primeiro Domingo deste mês de maio celebramos o Dia da Mãe. A todas as Mães levamos o nosso apreço e a nossa gratidão.

Para nós cristãos católicos, o Dom da Maternidade surge do coração de Deus, Ele que é Pai e Mãe, e modelou na Virgem Maria de Nazaré toda a beleza e ternura da Maternidade Divina. Através d’Ela, Deus tornou-se próximo de cada um de nós, fez-se um de nós. Por isso, na maternidade de cada mulher podemo-nos encontrar com a nascente da vida e com o autor da Vida. No Amor de cada Mãe aproximamo-nos de modo eloquente do Amor de Deus por cada um de nós. Não duvidamos que o Amor de Mãe é a mais perfeita metáfora do Amor de Deus.

Celebrar o Dia da Mãe, no mês de maio, mês das flores e do coração, é lembrar Maria, aquela que acolheu sempre as preces de todas as Mães sofridas pelos desgostos da vida – dias de sal – ou exultantes pelas alegrias que ao longo do caminho surgem como flores de Esperança – dias de sol! Todas as Mães têm direito ao apoio de todos. Se tivéssemos de sublinhar o acréscimo de apoio a algumas Mães, evidenciaríamos as mais pobres, as mais sós, aquelas que têm de ser mãe e pai.

Como não admirar as Mães que tiveram de enfrentar todas as dificuldades sem a presença responsável e comprometida dos Pais? Como não valorizar a Mães que por adoção deram vida por filhos não biológicos, mas de coração? Como não exaltar a heroicidade das Mães que pela morte de seu cônjuge ou companheiro, enfrentaram na solidão a criação e educação dos seus filhos? Em tempos de Paz frágil ou mesmo de países em guerra, lembramos com intensa solidariedade, todas as Mães em territórios exacerbados de violência, em campos de refugiados, em fugas de emergência, em migração forçada e, pior ainda, em luto por filhos perdidos neste contexto desumano.

Ao celebrarmos os cinquenta anos da “Revolução dos Cravos”, com todas a Mães crentes, agradecemos a Deus, por meio da Mãe de Jesus, pelo Dom da Paz que continuamos a experimentar no nosso País. Que as Mães renovem nos corações valores de respeito, tolerância e Paz, e que nos demostrem pelo seu exemplo e afeto que todos somos filhos, portanto, irmãos. Que prossigam na defesa da dignidade de cada Ser Humano na riqueza das suas diferenças e na diversidade das suas raças, culturas, credos e talentos.

A todas as Mães a nossa renovada gratidão. Pedimos à Mãe das Mães a sua intercessão a fim de as auxiliar na grandeza da sua Missão e para que em todos os filhos desperte a correspondência do reconhecimento e do compromisso no Bem das suas extremosas Mães.

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 (Act 10, 25-26.34-35.44-48)
  2. Leitura II do Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 (1 Jo4, 7-10)
  3. Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 – Lecionário
  4. Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 – Oração Universal
  5. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V da Páscoa – Ano B – 28.04.2024

 

Viver a Palavra

Liberdade e comunhão, entrega e fecundidade são coordenadas fundamentais da vida cristã. A adesão livre e libertadora à vontade de Deus abre o meu coração à comunhão com Deus e os irmãos e desafia-me a uma entrega fecunda que difunde ao longe e ao largo a suave fragrância do amor de Deus. Jesus Cristo é a «a verdadeira vide» que nos revela o coração misericordioso do Pai, «agricultor» paciente que semeia, cuida e espera o tempo da fecunda frutificação.

Fascina-me sempre ver Jesus apresentar o Pai como agricultor. Na verdade, é a única profissão que vemos Jesus atribuir ao Pai: «Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor». Tendo nascido num ambiente rural e tendo sido habituado a ver os meus avós trabalhar a terra, compreendo bem a força destas palavras de Jesus. O agricultor tem um amor apaixonado à terra que lhe está confiada, trabalha afincada e esforçadamente, vive atento aos perigos e adversidades que podem ameaçar a sementeira e procura defendê-la e protegê-la dos perigos que a assaltam, não se resigna a um horário das nove às cinco, mas labuta incansavelmente de sol a sol. O agricultor poda, arranca as ervas e sacha o terreno, uma e outra vez, para que a sementeira possa germinar e crescer.

Por isso, como é belo poder ver Deus como um agricultor que ama e cuida de mim com paciência e desvelo, com uma atenção, cuidado e proteção permanentes para que eu possa crescer e frutificar. Zeloso pela obra das suas mãos, este Agricultor «corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto e limpa todo aquele que dá fruto, para que dê ainda mais fruto». Quem faz a experiência de ver uma vinha abandonada e não podada percebe como é assaltada pelas ervas e silvas, emaranha-se sobre si própria e adoece, os seus ramos tornam-se cada vez mais esguios e enredados, dá pouquíssimas uvas e de fraco sabor e as folhas desbotam. Bem diferente é a vide podada e cuidada que se tona bela e viçosa, com frutos abundantes e de delicioso sabor.

A Palavra que Deus nos dirige limpa os nossos ramos, a seiva que a união com Cristo nos comunica fortalece e dá vida e assim podemos crescer firmes e fortes, prontos e disponíveis para frutificar e encher o mundo da alegria e da felicidade que só o amor de Jesus nos pode oferecer e garantir.

Permanecer é imperativo para que possamos dar fruto. Estar unidos a Jesus e, por Ele e Nele, aos nossos irmãos é condição fundamental para que a nossa vida se liberte da autorreferencialidade e alargue os nossos horizontes à comunhão, partilha e fraternidade que converte a vida num lugar mais fecundo e generoso.

Se Jesus é a verdadeira vide à qual a nossa vida se une como os ramos à videira, unidos a Cristo estamos também unidos aos irmãos que se alimentam da mesma seiva e se nutrem da mesma vida. A diversidade daquilo que somos e realizamos muitas vezes cria dificuldades e resistências na comunhão que estabelecemos. Na primeira leitura, vemos a dificuldade da comunidade de Jerusalém em acolher Paulo, vendo nele um adversário e uma ameaça. Sempre que olhamos para o outro como uma ameaça e um concorrente a comunhão rompe-se e a unidade torna-se impossível. Como ramos unidos à videira que é Cristo, somos chamados a cultivar uma atitude de acolhimento e disponibilidade, capaz de instaurar no mundo uma nova fraternidade que rasga horizontes de paz e esperança. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 9,26-31

Naqueles dias,
Saulo chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos.
Mas todos os temiam, por não acreditarem que fosse discípulo.
Então, Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos Apóstolos
e contou-lhes como Saulo, no caminho,
tinha visto o Senhor, que lhe tinha falado,
e como em Damasco tinha pregado com firmeza
em nome de Jesus.
A partir desse dia, Saulo ficou com eles em Jerusalém
e falava com firmeza no nome do Senhor.
Conversava e discutia também com os helenistas,
mas estes procuravam dar-lhe a morte.
Ao saberem disto, os irmãos levaram-no para Cesareia
e fizeram-no seguir para Tarso.
Entretanto, a Igreja gozava de paz
por toda a Judeia, Galileia e Samaria,
edificando-se e vivendo no temor do Senhor
e ia crescendo com a assistência do Espírito Santo.

CONTEXTO

A secção de At 9,1-30 é dedicada a um acontecimento que marcará a história do cristianismo: a vocação/conversão de Paulo. Foi depois de se encontrar com Jesus ressuscitado que Paulo, convertido à Boa Nova de Jesus, abraçou a missão de levar a Boa Nova da salvação ao encontro de outras culturas e realidades; e o projeto de Jesus “viajou” com Paulo desde as fronteiras do mundo judaico até ao coração do mundo greco-romano.

De acordo com At 9,1 Paulo, pouco depois da morte do diácono Estevão, pôs-se a caminho de Damasco, mandatado pelo Sinédrio, para prender e trazer algemados para Jerusalém os membros da comunidade judaica que tivessem aderido a Jesus; mas, no caminho, viu-se “envolvido por uma luz intensa” e fez a experiência do encontro com Jesus ressuscitado. Percebeu, então, que estava a perseguir o próprio Jesus. Isso abalou todas as suas certezas e levou-o a questionar o caminho que estava a seguir (cf. At 9,1-9). Entrando em Damasco, Paulo encontrou-se com Ananias, membro da comunidade cristã dessa cidade, que o ajudou a situar as coisas, a esclarecer as dúvidas que tinha e a posicionar-se face a Jesus (cf. At 9,10-19a). Paulo ficou em Damasco, integrado na comunidade cristã, dando testemunho de Jesus (cf. At 9,20-22); mas, ao fim de algum tempo, os judeus da cidade conspiraram para o matar e Paulo teve que fugir (cf. At 9,23-25). Dirigiu-se, então, para Jerusalém, indo apresentar-se à comunidade cristã da cidade.

Pensa-se que a conversão de Paulo terá acontecido por volta do ano 36 e que ele permaneceu em Damasco cerca de três anos. O regresso de Paulo a Jerusalém deve ter acontecido, portanto, por volta do ano 39 (cf. Gal 1,18).

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste quinto domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, logo após o regresso do regresso de Paulo. Inclui, além disso, num versículo final, um breve sumário da vida da Igreja: é um dos tantos sumários típicos de Lucas, através dos quais o autor dos Atos faz um balanço da situação e prepara os temas que vai tratar nas secções seguintes.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A comunidade cristã de Jerusalém colocou algumas reticências ao acolhimento de Paulo. Trata-se de uma “precaução” que podemos compreender, considerando o historial de Paulo. Mas a verdade é que a comunidade cristã não é um condomínio fechado, com direito de admissão reservado; mas é uma casa de portas abertas, onde todos podem entrar, onde todos são acolhidos como irmãos e onde todos podem fazer uma experiência de encontro com Jesus ressuscitado. Como é a nossa comunidade cristã? É uma comunidade fechada, pouco acolhedora, cheia de preconceitos, criadora de exclusão, ou é uma comunidade aberta, fraterna, solidária, disposta a acolher?
  • Paulo, mal chega a Jerusalém, procura imediatamente a comunidade cristã. Já tinha, então, percebido, que a vivência da fé é uma experiência comunitária. É no diálogo e na partilha com os irmãos que a nossa fé nasce, cresce e amadurece; é na comunidade, unida por laços de amor e de fraternidade, que a nossa vocação se realiza plenamente; é na comunidade e sempre em referência comunitária que celebramos ritualmente a fé. Como é que nós vivemos a fé? Como experiência isolada (“eu cá tenho a minha fé”), ou como experiência comunitária? Consideramos que a comunidade, apesar das tensões e conflitos que possa ter, é a “casa de família” onde nos sentimos bem e onde podemos fazer, de forma privilegiada, a experiência do encontro com o nosso irmão Jesus?
  • Barnabé assume, na comunidade cristã de Jerusalém, o papel de questionar os preconceitos, o fechamento, a atitude defensiva da comunidade em relação a Paulo. Faz-nos pensar no papel que Deus reserva a cada um de nós, no sentido de ajudarmos a nossa comunidade cristã a crescer, a sair de si própria, a viver com mais coerência o seu compromisso com Jesus Cristo e com o Evangelho. Nenhum membro da comunidade é detentor de verdades absolutas; mas todos os membros da comunidade devem sentir-se responsáveis para que a comunidade dê, no meio do mundo, um verdadeiro testemunho de Jesus e do seu projeto de salvação. Somos, nas nossas comunidades cristãs, pessoas envolvidas e comprometidas, que questionam, que propõem caminhos, que colaboram na procura comum da verdade de Deus e do Espírito?
  • O encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco foi um momento transformador. A partir desse encontro, Paulo tornou-se o arauto entusiasta e imparável do projeto libertador de Jesus. A perseguição dos judeus, a oposição das autoridades, a indiferença dos não crentes, a incompreensão dos irmãos na fé, os perigos dos caminhos, as incomodidades das viagens, não conseguiram desencorajá-lo e desarmar o seu testemunho. O exemplo de Paulo recorda-nos que ser cristão é dar testemunho de Jesus e do Evangelho. A experiência que fazemos de Jesus e do seu projeto libertador não pode ser calada ou guardada apenas para nós; mas tem de se tornar um anúncio libertador que, através de nós, chega a todos os nossos irmãos. Procuramos assumir, no dia a dia, este papel de “missionários” (“enviados”), de testemunhas da Boa Notícia de Jesus?
  • A Igreja é uma comunidade formada por homens e mulheres e, portanto, marcada pela debilidade e fragilidade; mas é, sobretudo, uma comunidade que marcha pela história assistida, animada e conduzida pelo Espírito Santo. O “caminho” que percorremos como Igreja pode ter avanços e recuos, infidelidades, quedas e vicissitudes várias; mas é um caminho que conduz a Deus, à Vida definitiva à salvação. A presença do Espírito dirigindo a caminhada dá-nos essa garantia. Confiamos na ação do Espírito? Acreditamos que a Igreja, apesar da fragilidade dos seus membros, será sempre “sacramento universal de salvação”, pois é conduzida pelo Espírito de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)

Refrão 1: Eu Vos louvo, Senhor, na assembleia dos justos.

Refrão 2: Eu Vos louvo, Senhor, no meio da multidão.

Cumprirei a minha promessa na presença dos vossos fiéis.
Os pobres hão de comer e serão saciados,
louvarão o Senhor os que O procuram:
vivam para sempre os seus corações.

Hão de lembrar-se do Senhor e converter-se a Ele
todos os confins da terra;
e diante d’Ele virão prostrar-se
todas as famílias das nações.

Só a Ele hão de adorar
todos os grandes do mundo,
diante d’Ele se hão de prostrar
todos os que descem ao pó da terra.

Para Ele viverá a minha alma,
Há de servi-l’O a minha descendência.
Falar-se-á do Senhor às gerações vindouras
e a sua justiça será revelada ao povo que há de vir:
«Eis o que fez o Senhor».

LEITURA II – 1 João 3,18-24

Meus filhos,
não amemos com palavras e com a língua,
mas com obras e em verdade.
Deste modo saberemos que somos da verdade
e tranquilizaremos o nosso coração diante de Deus;
porque, se o nosso coração nos acusar,
Deus é maior que o nosso coração
e conhece todas as coisas.
Caríssimos, se o coração não nos acusa,
tenhamos confiança diante de Deus
e receberemos d’Ele tudo o que Lhe pedirmos,
porque cumprimos os seus mandamentos
e fazemos o que Lhe é agradável.
É este o seu mandamento:
acreditar no nome de seu Filho, Jesus Cristo,
e amar-nos uns aos outros, como Ele nos mandou.
Quem observa os seus mandamentos
permanece em Deus e Deus nele.
E sabemos que permanece em nós
pelo Espírito que nos concedeu.

CONTEXTO

Já vimos, nos domingos anteriores, que a Primeira Carta de João é um escrito dirigido às Igrejas joânicas da Ásia Menor, destinado a intervir na controvérsia levantada por hereges pré-gnósticos a propósito de pontos fundamentais da teologia cristã. Nesse contexto, o autor da Carta procura fornecer aos cristãos (algo confusos diante das proposições heréticas) uma síntese da vida cristã autêntica.

Uma questão que tem um tratamento desenvolvido na Primeira Carta de João é a questão do amor ao próximo. Os hereges pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé residia na vida de comunhão com Deus; mas, ocupados a olhar para o céu, negligenciavam o amor ao próximo (cf. 1 Jo 2,9). Ora, de acordo com o autor da Primeira Carta de João, o amor ao próximo é uma exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele se não se deixou contagiar e embeber pelo amor. Jesus demonstrou isso mesmo ao amar os homens até ao extremo de dar a vida por eles, na cruz; e exigiu que os seus discípulos O seguissem no caminho do amor e do dom da vida aos irmãos (cf. 1 Jo 3,16). Em última análise, é o amor aos irmãos que decide o acesso à Vida: só quem ama alcança a Vida verdadeira e eterna (cf. 1 Jo 3,13-15). A realização plena do homem depende da sua capacidade de amar os irmãos.

O texto que a liturgia deste quinto domingo da Páscoa nos apresenta como segunda leitura pertence a uma secção que poderíamos intitular “viver como filhos de Deus” (3,1-24). Conclui a reflexão sobre o tema do amor aos irmãos, que é apresentado como consequência da filiação divina. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O autor da primeira Carta de João define a vida cristã autêntica como “acreditar no Nome” de Jesus Cristo e amar os irmãos “como Jesus nos mandou”. Aliás, parece evidente que uma coisa não “vai” sem a outra. É possível “acreditar” em Jesus e aceitar a marginalização dos “diferentes”, dos que não têm voz nem vez no nosso mundo? É possível “acreditar” em Jesus e não nos sentirmos profundamente comovidos quando encontramos alguém caído e abandonado na berma da estrada (cf. Lc 10,33)? É possível “acreditar” em Jesus sem nos dispormos a servir, com simplicidade e humildade, os nossos irmãos (cf. Jo 13,13-17)? É possível “acreditar” em Jesus e recusar o perdão a quem fez opções erradas, mas busca uma vida nova, um recomeço (cf. Lc 19,8-10)? É possível “acreditar” em Jesus e vivermos fechados na nossa vida cómoda, ignorando a sorte daqueles que têm fome, ou que não conseguem garantir uma vida digna aos seus filhos? A minha adesão a Jesus traduz-se em gestos semelhantes aos que Ele fazia e que levavam Vida e esperança aos pobres, aos doentes, aos abandonados, aos condenados que Ele encontrava pelos caminhos da Galileia e da Judeia? Como é que vivemos o mandamento do amor? Com declarações inconsequentes de boas intenções, ou com ações concretas que dão significado às vidas?
  • Por vezes, apesar do nosso esforço e da nossa vontade em acertar, sentimo-nos indignos e longe de Deus. Como é que sabemos se estamos no caminho certo? Qual é o critério para avaliarmos a força da nossa relação e da nossa proximidade com Deus? A vida de uma árvore vê-se pelos frutos que ela dá… Se realizamos obras de amor, se os nossos gestos de bondade e de solidariedade curam o sofrimento dos nossos irmãos, se a nossa ação torna o mundo um pouco melhor, é porque estamos em comunhão com Deus e a vida de Deus circula em nós. O nosso amor a Deus vê-se nos nossos gestos? Os nossos gestos reproduzem e anunciam o amor e a bondade de Deus na vida daqueles que caminham ao nosso lado?
  • Muitas vezes somos testemunhas de espantosos gestos proféticos realizados por pessoas que fizeram opções religiosas diferentes das nossas ou até por parte de pessoas que assumem uma aparente atitude de indiferença face a Deus… No entanto, não tenhamos dúvidas: onde há amor, aí está Deus. O Espírito de Deus está presente até fora das fronteiras da Igreja e atua no coração de todos os homens de boa vontade. De resto, certos testemunhos de amor e de solidariedade que vemos surgir nos mais variados quadrantes constituem uma poderosa interpelação aos crentes, convidando-os a uma maior fidelidade a Jesus e ao seu projeto. Sou capaz de reconhecer e de agradecer o “toque” de Deus nos gestos de amor, de bondade, de misericórdia que vejo acontecer à minha volta? Deixo-me interpelar pelo exemplo e testemunho daqueles que procuram tornar o mundo mais belo e mais humano, mesmo quando se trata de pessoas que não se consideram membros da minha Igreja ou da minha família cristã? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 15,1-8

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor.
Ele corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto
e limpa todo aquele que dá fruto,
para que dê ainda mais fruto.
Vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei.
Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós.
Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo,
se não permanecer na videira,
assim também vós, se não permanecerdes em Mim.
Eu sou a videira, vós sois os ramos.
Se alguém permanece em Mim e Eu nele,
esse dá muito fruto,
porque sem Mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanece em Mim,
será lançado fora, como o ramo, e secará.
Esses ramos, apanham-nos, lançam-nos ao fogo e eles ardem.
Se permanecerdes em Mim
e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis o que quiserdes e ser-vos-á concedido.
A glória de meu Pai é que deis muito fruto.
Então vos tornareis meus discípulos».

CONTEXTO

O Evangelho do quinto domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, numa noite de quinta-feira, um dia antes da celebração da Páscoa judaica, por volta do ano 30. Jesus está reunido com os seus discípulos à volta de uma mesa. Consciente de que os dirigentes judaicos tinham decidido dar-Lhe a morte e que a cruz estava no seu horizonte próximo, Jesus organizou uma ceia especial de despedida. Queria preparar os seus discípulos para os acontecimentos dramáticos que se avizinhavam. Não queria que a sua morte lançasse os discípulos num desespero sem esperança. Naquela hora, de certeza que algumas perguntas pairavam no ar… Que iria acontecer àquele grupo de discípulos quando Jesus lhes fosse tirado? O projeto do Reino seria viável sem Jesus? Os discípulos conseguiriam, sozinhos no mundo, viver e testemunhar aquilo que tinham aprendido enquanto caminhavam atrás de Jesus? Como é que os discípulos poderiam manter uma ligação a Jesus e continuar a receber d’Ele a Vida de que necessitavam para continuar o caminho?

Nessa noite, Jesus conversou longamente com os discípulos e deu-lhes indicações para o caminho… Lembrou-lhes que deviam ser sempre uma comunidade de serviço (cf. Jo 13,3-17), recomendou-lhes que colocassem no centro de tudo o mandamento do amor (cf. Jo 13,33-35), deixou-lhes a promessa do Espírito (cf. Jo 14,15-6. 25-26; 15,26-27; 16,5-15), transmitiu-lhes a sua paz (cf. Jo 14,27-31), prometeu-lhes que nunca os abandonaria e que não os deixaria órfãos (cf. Jo 14,18-21), pediu-lhes que continuassem unidos a Ele (cf. Jo 15,1-8). Os gestos e as palavras de Jesus, nessa noite, foram o seu “testamento”. No Quarto Evangelho, o “discurso de despedida” de Jesus vai de 13,1 a 17,26.

O texto que a liturgia deste domingo nos propõe integra esse “discurso de despedida”. É designado como a “alegoria da videira e dos ramos”. Diz aos discípulos o que devem fazer para que, pelo tempo fora, se mantenham em comunhão com Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus é “a verdadeira videira”; é n’Ele e nas suas propostas que os homens podem encontrar a Vida. Ele permanece sempre no centro, como nossa referência fundamental, como fonte inesgotável de Vida; e nós dispomo-nos à volta d’Ele, atentos à suas palavras, aos seus gestos, às suas indicações. À nossa volta ecoam, a cada instante, mil e uma outras propostas que nos oferecem acesso rápido ao sucesso, à realização, aos triunfos humanos, à concretização de todos os nossos sonhos e anseios… Mas, quase sempre, essas outras propostas deixam-nos frustrados e insatisfeitos: são efémeras e fúteis e não matam a nossa sede de Vida autêntica. O Evangelho deste domingo, através da alegoria da videira e dos ramos, garante-nos: na nossa busca de uma vida com sentido, é para Cristo que devemos olhar. Temos consciência de que é em Cristo que podemos encontrar uma proposta de Vida autêntica? Ele é, para nós, a verdadeira “árvore da Vida”, ou preferimos trilhar caminhos de autossuficiência e colocamos a nossa confiança e a nossa esperança noutras “árvores”, noutras propostas, noutras sugestões?
  • Hoje Jesus, “a verdadeira videira”, continua a oferecer ao mundo e aos homens os seus frutos; e fá-lo através dos seus discípulos. A missão da comunidade de Jesus é produzir esses mesmos frutos de justiça, de amor, de verdade, de paz, de reconciliação que Ele produzia quando andava pela Galileia a proclamar a Boa Nova do Reino e a curar os que sofriam. Jesus não criou um gueto fechado onde os seus discípulos podem viver tranquilamente sem “incomodarem” os outros homens e mulheres; mas criou uma comunidade viva e dinâmica, que tem como missão testemunhar em gestos concretos o amor e a salvação de Deus. Se ficamos indiferentes diante das injustiças, se não procuramos curar as feridas dos que sofrem, se não abraçamos aqueles que a sociedade abandonou e condenou, se não somos arautos da paz e da reconciliação, se não defendemos a verdade contra todas as formas de mentira e de manipulação, se não lutamos com todas as nossas forças para construir um mundo mais são e mais humano, estamos a trair Jesus e a missão que Ele nos confiou. A Vida de Jesus – essa Vida de que se alimentam os que estão unidos a Ele – transparece nos nossos gestos, nas nossas causas, nas nossas apostas, na nossa vida?
  • No entanto, o discípulo só pode produzir bons frutos se permanecer unido a Jesus. No dia do nosso Batismo, optámos por Jesus e assumimos o compromisso de O seguir no caminho do amor e da entrega; quando celebramos a Eucaristia, acolhemos e assimilamos a vida de Jesus – vida partilhada com os homens, feita entrega e doação total por amor, até à morte. O cristão identifica-se com Jesus, vive em comunhão com Ele, segue-O a cada instante. Nunca interrompe a sua ligação a Jesus. O cristão vive de Cristo, vive com Cristo e vive para Cristo. Reavivamos e alimentamos a cada passo a nossa união a Cristo através da escuta da Palavra, da oração, dos sacramentos?
  • A comunidade cristã é o lugar privilegiado para o encontro com Cristo, “a verdadeira videira” da qual somos os “ramos”. É no âmbito da comunidade que celebramos, experimentamos e acolhemos – no Batismo, na Eucaristia, na Reconciliação – a Vida nova que brota de Cristo. A comunidade cristã é o Corpo de Cristo; e um membro amputado do Corpo é um membro condenado à morte… Por vezes, a comunidade cristã, com as suas misérias, fragilidades e incompreensões, dececiona-nos e magoa-nos; por vezes sentimos que a comunidade segue caminhos onde não nos revemos… Sentimos, então, a tentação de nos afastarmos e de vivermos a nossa relação com Cristo à margem da comunidade. Contudo, não é possível continuar unido a Cristo e a receber vida de Cristo, em rutura com os nossos irmãos na fé. É a mesma Vida de Cristo que nos alimenta a todos e que nos une a todos. Como é que sentimos e vivemos a ligação à comunidade cristã de que fazemos parte?
  • O que é que pode interromper a nossa união com Cristo e tornar-nos ramos secos e estéreis? Tudo aquilo que nos impede de responder positivamente ao desafio de Jesus no sentido do O seguir provoca em nós esterilidade e privação de Vida: o egoísmo, a autossuficiência, o orgulho, a vaidade, a arrogância, a preguiça, o comodismo, a ganância, a instalação, o amor ao dinheiro ou aos aplausos… O que é que, na minha maneira de ser ou no meu estilo de vida constitui obstáculo para que eu permaneça unido a Jesus?
  • A escuta da Palavra de Deus tem um papel decisivo no processo (de conversão) destinado a eliminar tudo aquilo que impede a nossa união com Cristo. Precisamos de escutar a Palavra de Jesus, de a meditar, de confrontar a nossa vida com ela, de olhar para os desafios que ela nos deixa… Então, por contraste, vão tornar-se nítidas as nossas opções erradas, os valores falsos e essas mil e uma pequenas infidelidades que nos impedem de ter acesso pleno à Vida que Jesus oferece. Que espaço é que tem na minha vida a escuta da Palavra de Deus? Ela é, para mim, critério para afinar e redimensionar as minhas opções e apostas? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção o carácter descritivo do texto, esforçando-se para que a proclamação se torne fluída e evite a transmissão de um conjunto de informações telegráficas.

Na segunda leitura, o leitor deve ter presente o carácter exortativo do texto expresso nas formas verbais no imperativo, bem como o tom de esperança que permeia toda a leitura e deve estar presente na proclamação do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A VIDEIRA VERDADEIRA

Embora, neste espaço, não o possamos fazer sempre, é sempre oportuno visitar e revisitar o texto do Evangelho, vê-lo, lê-lo, acariciá-lo, saboreá-lo. Hoje, Domingo V da Páscoa, entramos por aí:

«Eu sou (Egô eimi) a videira (hê ámpelos), a verdadeira (hê alêthinê), e o meu Pai é o agricultor. Todo o ramo (tò klêma) em mim (en emoí) não dando fruto (mê phérô karpós), ele corta-o, e todo o que dá fruto, limpa-o, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra que vos falei (laléô). Permanecei (ménô) em mim, e eu em vós (en hymîn). Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, é lançado fora, como o ramo, e seca, e recolhem-nos, e lançam-nos no fogo, e arde. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e ser-vos-á feito. Nisto é glorificado o meu Pai: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos» (João 15,1-8).

Servindo-se da estratégia da repetição, e articulando muito bem, numa rede finíssima, vocábulos e locuções, o Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 15,1-8) serve-nos a vida verdadeira, divina comunhão, que, do Pai, mediante o Filho, no Espírito, vem até nós, e nos é oferecida e dada. A rede terminológica é imponente: «permanecer» (7 vezes), «em mim» (6 vezes), «dar fruto» (6 vezes), «ramo» (4 vezes), «videira» (3 vezes).

O cenário do Evangelho do passado Domingo (João 10,11-18) era a Festa da Dedicação (hanûkkah), perfeitamente ajustada ao amor dedicado do Bom e Belo Pastor. O cenário do Evangelho de hoje (João 15,1-8) é a Festa da Páscoa (desde João 13,1-2), do Fruto novo a nós dado, da Vida nova a nós dada, da passagem de Jesus deste mundo para o Pai, do vinho novo do Reino a chegar. Aí está, portanto, em sintonia e em primeiro plano, «a videira, a verdadeira», que é Jesus (João 15,1). Note-se bem o adjetivo «verdadeira», com artigo (he alêthinê), colocado enfaticamente no final da afirmação inicial. Esta afirmação remete analepticamente para tantas passagens do Antigo Testamento que apresentavam Israel como a videira com carinho transplantada do Egito para a Terra Prometida, tratada sempre com amor, mas depois abandonada e queimada no fogo (Salmo 80,9-17), amada e cantada, mas depois entregue aos animais para que a devastassem (Isaías 5,1-7), guardada, regada, cuidada, mas depois pisada e queimada (Isaías 27,2-4; Jeremias 2,21; Ezequiel 19,10-14). Videira antiga, fracassada, que dá lugar à Videira nova, a verdadeira, que é Jesus. Salta à vista que a única solução para esta videira brava, que é Israel e que somos nós também, passa por uma enxertia em «a videira, a verdadeira», que é Jesus. E pela poda ou limpeza levada a cabo pela Palavra de Jesus (João 15,2-3).

A videira que era Israel produziu uvas azedas em vez de uvas boas e doces, porque abandonou o Deus verdadeiro, para ir atrás dos ídolos. Mas «a videira, a verdadeira», que é Jesus, está agora plantada no meio de nós. E nós podemos ser os seus ramos, enxertados nele, e dar assim uvas boas e doces, Bom e Belo fruto. Basta, para tanto, «permanecer» nele, que é «a videira, a verdadeira», e deixar a sua vida, a sua seiva, vivificar os ramos. Trata-se, para nós, de permanecer em Jesus, como ele permanece em nós (João 15,4), pois veio habitar em nós (João 14,23). Ele habita «em homem», em nós, pela sua incarnação; nós somos chamados a habitar nele.

Habitar nele é fazer dele a nossa casa, o nosso chão, a nossa porta, as nossas janelas, a nossa mesa, o lugar em que nos alimentamos, repousamos, amansamos, depois das nossas agitações complicadas, deceções, fracassos, lutas e incompreensões. O lugar onde nos reunimos, para repartir e saborear o pão e o vinho da alegria, para partir depois com nova alegria e energia ao encontro de mais irmãos. Boa Nova em movimento. Seara ondulante ao sabor do vento do Espírito.

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