Liturgia da Palavra

Domingo IV da Páscoa – Ano B – 21.04.2024

Domingo do Bom Pastor

 

Viver a Palavra

Em cada ano, no IV Domingo da Páscoa, somos convidados a colocar o nosso olhar em Jesus, Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. A imagem bucólica do pastor fazia parte do quotidiano dos que escutavam Jesus e manifestava a solicitude, o desvelo, a dedicação e o cuidado do pastor para com o seu rebanho. Hoje, nos nossos ambientes mais industrializados e urbanizados, esta imagem pode perder a sua força evangelizadora. Na verdade, a figura do pastor transmitia uma proximidade e atenção desconcertantes que contrasta com o mercenário que não sente as ovelhas como suas e quando vê abeirar-se o perigo, coloca-se em fuga. Não se pode ser pastor de segunda a sexta, com folgas e feriados. Ser pastor implica uma disponibilidade e atenção constantes, uma ternura e desvelo que cuida, ama, conhece, nutre e protege.

Jesus é «o Bom Pastor». Ele não se apresenta apenas como um pastor, mas «o bom» Pastor. A bondade é marca característica do Seu ser e agir. De olhar fixo em Jesus, Bom e Belo Pastor, também nós queremos aprender a arte de ser «bom», tomando consciência que a bondade não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas.

«Conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas conhecem-Me». O verdadeiro pastor não cuida do rebanho em abstrato nem trata das ovelhas como uma massa indiscriminada, mas dá a cada uma um nome, conhece as suas qualidades e limites e protege-as de acordo com as suas necessidades e carências. Como recorda o biblista Raymond E. Brown no seu comentário ao Evangelho de João, os rebanhos que pastavam nas montanhas da Judeia pertenciam a diversos proprietários e, assim, cada pastor fazia-se reconhecer junto das suas ovelhas através da sua voz e pelo nome com que as chamava.

Mesmo que o rebanho possa já ser numeroso, o pastor não descansa enquanto não reunir todas as ovelhas e, por isso, escutamos Jesus afirmar: «tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir». Para Jesus, ninguém é dispensável, nem é admissível desistir seja de quem for, pois cada um de nós é precioso e necessário para que o rebanho possa estar completo. Acolher, procurar e ir ao encontro é palavra de ordem numa Igreja que queira ser fiel ao mandato de Jesus Cristo e que caminha animada pela força do Espírito Santo.

«Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamarmos filhos de Deus». Somos filhos muito amados de Deus e, por isso, irmãos uns dos outros. Pertencemo-nos porque somos pertença de Deus pela filiação divina. Filiação e fraternidade caminham indissociavelmente e impelem-nos a construir uma cultura da ternura e do cuidado. É muito curioso que apesar de Jesus sublinhar esta atenção e cuidado no conhecimento das suas ovelhas, chamando cada uma pelo seu nome, os evangelhos falam sempre de rebanhos e não de ovelhas isoladas. Quando se fala de uma ovelha sozinha ou separada é para descrever uma situação negativa de uma ovelha perdida que se afastou do rebanho, que deixou de seguir o pastor e ouvir a sua voz.

Não podemos permitir que ninguém se possa perder, ficar à margem ou ser descartado. Podemos e devemos respeitar a liberdade e as opções de cada um, mas temos de oferecer sempre o acolhimento e o acompanhamento que não deixa ninguém para trás, apontando sempre Jesus Cristo e o Seu Evangelho como único caminho de salvação.

Mas até onde deve ir a nossa entrega e dedicação? Jesus é muito claro: «Eu dou a vida pelas minhas ovelhas». Enquanto não dermos tudo, damos muito pouco. Enquanto não oferecermos a nossa vida toda, a nossa entrega estará incompleta.in Voz Portucalense (adaptado)

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O dia 21 de abril, IV Domingo da Páscoa, é o Dia Mundial de Oração pelas Vocações e Domingo do Bom Pastor. Neste Domingo, as comunidades cristãs são convidadas a rezar pelas vocações, pedindo ao Senhor que cada homem e cada mulher, fazendo a experiência do infinito amor com que Deus os cumula, respondam afirmativamente ao chamamento que o Senhor lhes dirige. No site da Comissão Episcopal Vocações e Ministérios estão disponíveis diversos materiais para a dinamização desta semana (http://www.ecclesia.pt/cevm/). Contudo, a proposta vocacional feita a todos através de diversas dinâmicas e iniciativas, não pode deixar descurar o acompanhamento pessoal e personalizado que a tarefa vocacional exige. Esta é uma missão de todos, em especial dos pastores, catequistas e demais agentes evangelizadores. Ver, em anexo, Mensagem do Papa Francisco para este dia, (in Voz Portucalense – adaptado).

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 4,8-12

Naqueles dias,
Pedro, cheio do Espírito Santo, disse-lhes:
«Chefes do povo e anciãos,
já que hoje somos interrogados
sobre um benefício feito a um enfermo
e o modo como ele foi curado,
ficai sabendo todos vós e todo o povo de Israel:
É em nome de Jesus Cristo, o Nazareno,
que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos,
é por Ele que este homem
se encontra perfeitamente curado na vossa presença.
Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes
e que veio a tornar-se pedra angular.
E em nenhum outro há salvação,
pois não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens,
pelo qual possamos ser salvos».

CONTEXTO

O testemunho sobre Jesus e sobre a libertação que Ele veio oferecer aos homens, manifestado nos gestos (cura de um paralítico junto da Porta Formosa, à entrada do Templo de Jerusalém – cf. At 3,1-11) e nas palavras de Pedro (discurso à multidão, no Pórtico de Salomão – cf. At 3,12-26), provoca a imediata reação das autoridades judaicas e a consequente prisão de Pedro e de João. É a reação lógica dos líderes judaicos, ainda convencidos de que podiam silenciar a proposta libertadora de Jesus.

No dia seguinte, Pedro e João são conduzidos diante do Sinédrio – a autoridade que superintendia à organização da vida religiosa, jurídica e económica dos judeus. Presidido pelo sumo-sacerdote em funções, o Sinédrio era constituído por 70 membros, oriundos das principais famílias do país. Na época de Jesus, o Sinédrio era, ao que parece, dominado pelo grupo dos saduceus, os quais negavam a ressurreição. No Sinédrio havia, também, um grupo significativo de fariseus, os quais aceitavam a ressurreição… No entanto, os dois grupos vão pôr de lado as suas divergências particulares para fazerem causa comum contra os discípulos de Jesus. Referem-se, neste contexto, duas figuras sacerdotais: Caifás e Anás. Josefo ben Caifás era o sumo-sacerdote em exercício à data dos factos narrados neste episódio (exerceu o sumo-sacerdócio entre os anos 18 e 36); Anás ben Sete tinha exercido o sumo-sacerdócio algum tempo antes (anos 6 a 15), era sogro de Caifás, e continuava a ser uma figura muito influente nos círculos sacerdotais de Jerusalém. Um e outro tinham estado na primeira linha no processo de condenação de Jesus à morte (cf. Mt 26,57; Jo 18,12-14.19-24).

A pergunta posta aos apóstolos pelos membros do Sinédrio é: “com que poder ou em nome de quem fizestes isto?” (At 4,7). O texto que a nossa primeira leitura nos apresenta é a resposta de Pedro à questão que lhe foi posta.

É mais do que provável que o episódio assente, em geral, em bases históricas… O testemunho sobre esse Messias crucificado pouco antes pelas autoridades constituídas devia aparecer como uma provocação e provocar uma natural reação dos líderes judaicos. No entanto, o episódio, tal como nos é apresentado, sofreu retoques de Lucas, empenhado em demonstrar que a reação negativa do “mundo” não pode nem deve calar o testemunho dos discípulos de Jesus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • De acordo com o testemunho de Pedro, Jesus é o único salvador, já que “não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. Nós, discípulos de Jesus, sabemos isso; mas, apesar de tudo, somos frequentemente convidados a correr atrás de líderes humanos que se apresentam como “salvadores” e que acabam por se revelar amargas deceções. Mais ainda: muitas vezes as propostas que esses líderes humanos nos apresentam estão em flagrante contradição com as propostas e os valores de Jesus. Na hora de optar, não esqueçamos que a proposta de Jesus tem o selo de garantia de Deus; não esqueçamos que o caminho proposto por Jesus (e que, tantas vezes, à luz da lógica humana, parece um caminho de fracasso e de derrota) é o caminho que nos conduz ao encontro da Vida plena e definitiva. Onde está a nossa melhor hipótese de encontrar a salvação? Em Jesus, ou nos nossos falíveis líderes humanos? Em quem tenho eu apostado, na minha incessante procura de Vida?
  • Mesmo depois de dois mil anos de cristianismo, parece que a proposta de Jesus ainda não se tornou decisiva na construção da história do nosso tempo. O verniz cristão de que revestimos a nossa civilização ocidental não tem impedido a corrida aos armamentos, os genocídios, os atos bárbaros de terrorismo, as guerras religiosas, a exploração dos mais fracos, o desprezo pelos direitos e pela dignidade dos seres humanos, o abandono dos que não têm voz ou influência, a indiferença face à sorte de tanta gente que não tem a possibilidade de satisfazer as suas necessidades básicas… Os critérios que presidem à construção do mundo estão, demasiadas vezes, longe dos valores do Evangelho. Porque é que isto acontece? Podemos dizer que Cristo é, para os cristãos, a referência fundamental? Nós cristãos fizemos d’Ele, efetivamente, a “pedra angular” sobre a qual construímos a nossa vida e a história do nosso tempo?
  • Através do exemplo de Pedro, Lucas sugere que o testemunho dos discípulos deve ser desassombrado, mesmo em condições hostis e adversas. A preocupação dos discípulos não deve ser apresentar um testemunho politicamente correto, que não incomode os poderes instituídos e não traga perseguições à comunidade do Reino; mas deve ser um discurso corajoso e coerente, que tem como preocupação fundamental apresentar com fidelidade a proposta de salvação que Jesus veio fazer. Como é o nosso testemunho? É um testemunho de “meias tintas”, calculado, que não incomoda nem agita, ou é um discurso corajoso, verdadeiro, profético?
  • Os discípulos de Jesus não estão sozinhos, entregues a si próprios, nessa luta contra as forças que oprimem e escravizam os homens. O Espírito de Jesus ressuscitado está com eles, ajudando-os, animando-os, protegendo-os em cada passo desse caminho que Deus lhes mandou percorrer. Nos momentos de crise, de desânimo, de frustração, os discípulos devem tomar consciência da presença amorosa de Deus a seu lado e retomar a esperança. Sinto a presença do Espírito e sinto-me confortado por essa presença?
  • Os líderes judaicos são, mais uma vez, apresentados como modelos de cegueira e de fechamento face aos desafios de Deus. São “maus pastores”, preocupados com os seus interesses pessoais e corporativos, que impedem que o seu Povo adira às propostas de salvação que Deus faz. O seu exemplo mostra-nos como a autossuficiência, os preconceitos, o comodismo, levam o homem a fechar-se aos desafios de Deus e a recusar os dons de Deus. Independentemente do papel que desempenhamos na sociedade ou na Igreja, alguma vez deixamos que os nossos interesses pessoais ou de grupo tenham sido obstáculo ao projeto de Deus para o mundo e para os homens? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular.

Refrão 2: Aleluia.

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.
Mais vale refugiar-se no Senhor,
do que fiar-se nos homens.
Mais vale refugiar-se no Senhor,
do que fiar-se nos poderosos.

Eu Vos darei graças porque me ouvistes
e fostes o meu Salvador.
A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.

Bendito o que vem em nome do Senhor,
da casa do Senhor nós vos bendizemos.
Vós sois o meu Deus: eu Vos darei graças.
Vós sois o meu Deus: eu Vos exaltarei.
Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

LEITURA II – 1 João 3,1-2

Caríssimos:
Vede que admirável amor o Pai nos consagrou
em nos chamarmos filhos de Deus.
E somo-lo de facto.
Se o mundo não nos conhece,
é porque não O conheceu a Ele.
Caríssimos, agora somos filhos de Deus
e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Mas sabemos que, na altura em que se manifestar,
seremos semelhantes a Deus,
porque O veremos tal como Ele é.

CONTEXTO

A primeira Carta de João é, como já dissemos nos domingos anteriores, um escrito polémico, dirigido a comunidades cristãs nascidas no mundo joânico, provavelmente situadas à volta de Éfeso, na parte ocidental da Ásia Menor.

Numa altura em que as heresias pré-gnósticas começavam a lançar a confusão entre os crentes e ameaçavam subverter a identidade cristã, um “presbítero” (“ancião”) ligado à escola joânica (constituída à volta da figura e da teologia do apóstolo João), decidiu escrever às comunidades cristãs da sua zona, denunciando as doutrinas heréticas e reavivando a fé da Igreja.

As principais questões postas pelos hereges eram de ordem cristológica e ética. Em termos de doutrina cristológica, negavam que o Filho de Deus tivesse encarnado através de Maria e que tivesse morrido na cruz: Jesus era um simples homem, de quem o Cristo celeste se tinha apropriado, na altura do Batismo, para levar a cabo a revelação; mas, imediatamente antes da paixão, o Cristo celeste tinha-se retirado (porque não podia padecer), deixando o homem Jesus enfrentar sozinho a Paixão e a morte. Do ponto de vista ético e moral, esses hereges não cumpriam os mandamentos e desprezavam especialmente o mandamento do amor ao irmão.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste terceiro domingo da Páscoa integra a segunda parte da carta (cf. 1 Jo 3,1-24). Aí, o autor lembra aos crentes a sua condição de filhos de Deus e exorta-os a viver no dia a dia de forma coerente com essa filiação. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O autor da primeira Carta de João garante que Deus ama-nos com um amor “admirável”, um amor que se traduz no dom da Vida nova e que nos coloca na situação de filhos queridos de Deus. Neste 4º Domingo da Páscoa, o Domingo do Bom Pastor, somos, portanto, convidados a contemplar a bondade, a ternura, a misericórdia, o amor de um Deus apostado em levar os seres humanos a superarem a sua condição de debilidade, a fim de chegarem à Vida nova e eterna, à plenitudização das suas capacidades, até se tornarem “semelhantes” ao próprio Deus. Isso corresponde, afinal, ao grande objetivo que todos nós temos: encontrar a felicidade, a Vida verdadeira… E tudo isso é um dom de Deus, um dom que não depende dos nossos méritos mas que é fruto exclusivo do amor que Deus tem por nós. Sentimo-nos, verdadeiramente, filhos queridos e amados de Deus? Que impacto tem isso na nossa forma de encarar a vida? Sentimo-nos gratos a Deus pelo seu amor e por tudo aquilo que Ele faz no sentido de nos proporcionar Vida em abundância?
  • Como é que os “filhos de Deus” respondem ao dom que Deus lhes faz? No texto que nos é hoje proposto, esta questão não é desenvolvida; contudo, outras passagens da primeira Carta de João lembram que ser “filho de Deus” significa viver de forma coerente com as propostas de Deus (cf. 1 Jo 5,1-3), cumprindo os mandamentos e amando os irmãos, a exemplo de Jesus Cristo. Como é que se processa a nossa resposta ao amor de Deus? Como “filhos de Deus”, procuramos conduzir a nossa vida de acordo com os valores e as propostas de Deus?
  • O autor da carta avisa também os cristãos para o inevitável choque com a incompreensão do “mundo”. Viver como “filho de Deus” implica fazer opções que, muitas vezes, estão em contradição com os valores que o mundo considera prioritários; por isso, os crentes são frequentemente objeto do desprezo, da irrisão, dos ataques daqueles que não estão dispostos a acolher os valores e propostas de Deus. Jesus Cristo conheceu e enfrentou a mesma realidade; mas viveu sempre na obediência ao Pai e nunca se deixou condicionar pela opinião do “mundo”. Como Jesus, aguentamos os embates do mundo e mantemo-nos coerentes com a nossa condição de “filhos de Deus”? O que é que “dirige” e condiciona a nossa forma de viver: as propostas de Deus, ou as propostas do “mundo”? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 10,11-18

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai».

CONTEXTO

O capítulo 10 do 4º Evangelho é dedicado à catequese do “Bom Pastor”. O autor utiliza esta imagem para propor uma catequese sobre a missão de Jesus: a obra do “Messias” consiste em conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de onde brota a Vida em plenitude.

A imagem do “Bom Pastor” não foi inventada pelo autor do 4º Evangelho. Literariamente falando, este discurso simbólico está construído com materiais provenientes do Antigo Testamento. Em especial, este discurso tem presente o texto de Ez 34, onde se encontra a chave para compreender a metáfora do “pastor” e do “rebanho”. Falando aos exilados da Babilónia, Ezequiel constata que os líderes de Israel foram, ao longo da história, maus “pastores”, que conduziram o Povo por caminhos de sofrimento, de injustiça e de morte; mas – diz também Ezequiel – o próprio Deus vai agora assumir a condução do seu Povo; Ele irá colocar à frente do seu “rebanho” um “Bom Pastor” (o “Messias”), que o livrará da escravidão e o conduzirá à Vida. A catequese que o 4º Evangelho nos oferece sobre o “Bom Pastor” sugere que a promessa de Deus – veiculada por Ezequiel – se cumpre em Jesus.

De acordo com o Evangelho de João, Jesus teria pronunciado o “discurso do Bom Pastor” (cf. Jo 10) em Jerusalém, em contexto da “festa da Dedicação do Templo” (cf. Jo 10,22). Esta festa (chamada, em hebraico, “Hanûkkah”) celebra a purificação do Templo de Jerusalém (164 a.C.), por Judas Macabeu, depois de o rei selêucida Antíoco IV Epifânio o ter profanado (167 a.C.), construindo um altar em honra de Zeus dentro do espaço sagrado. É a festa da Luz. O símbolo por excelência dessa festa é um candelabro de oito braços (“hanûkkiyyah”), que vão sendo progressivamente acesos durante os oito dias que a festa dura. Jesus tinha, pouco antes, curado um cego de nascença, assumindo-se como “a Luz” que veio para iluminar as trevas do mundo (cf. Jo 8,12; 9,1-41).

Apesar do ambiente festivo, a relação entre Jesus e os líderes judaicos é de grande tensão (cf. Jo 9,40; 10,19-21.24.31-39). Depois de ver a pressão que esses líderes colocaram sobre um cego de nascença para que ele não abraçasse a luz (cf. Jo 9,1-41), Jesus denuncia a forma como eles tratam a comunidade: estão apenas interessados em proteger os seus interesses pessoais e usam o Povo em benefício próprio; são, pois, “ladrões e salteadores” (Jo 10,1.8.10), que tomaram de assalto o rebanho que lhes foi confiado e roubam ao Povo a oportunidade de encontrar Vida.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Todos nós temos os nossos heróis, os nossos mestres, os nossos modelos. São figuras que consideramos como referências, figuras que respeitamos e de quem esperamos orientações, figuras cujas opiniões acolhemos e seguimos. Os povos antigos, ainda muito ligados a contextos agrários e pastoris, facilmente designavam uma figura dessas como “o Pastor” (nós hoje utilizamos outras palavras: “presidente”, “rei”, “diretor”, “superior”, “chefe”, “professor”, “guru”…). Será que todas essas figuras que admiramos e cujas opiniões seguimos merecem a nossa confiança? Todas elas estarão interessadas no nosso bem?
  • O Evangelho deste domingo diz-nos que, para o cristão, o “Pastor” por excelência é Jesus. É n’Ele que devemos confiar, é à volta d’Ele que nos devemos juntar, são as suas indicações e propostas que devemos seguir. O nosso “Pastor” é, de facto, Cristo, ou temos outros “pastores” que nos arrastam e que são as referências fundamentais à volta das quais construímos a nossa existência? Quem é que nos dita os caminhos em que andamos e os valores em que apostamos: Jesus Cristo? O patrão que nos paga o salário? O presidente do nosso partido político ou da nossa equipa desportiva? Um qualquer líder da moda ou um qualquer “influencer”? O herói mais bonito da telenovela? A conta bancária? O comodismo e a instalação? O êxito e o triunfo profissional a qualquer custo?
  • No cumprimento da sua missão de “Pastor”, Jesus não atua por interesse, mas por amor. Ele não foge quando as ovelhas estão em perigo, mas defende-as e até é capaz de dar a vida por elas; Ele preocupa-se com as suas ovelhas e mantém com cada uma delas uma relação única, especial, pessoal; Ele não se serve das suas ovelhas, mas serve-as e condu-las onde há alimento em abundância; Ele cuida de cada uma delas, particularmente das mais frágeis e necessitadas. Ora, esta forma de atuar de Jesus deve ser uma referência para aqueles que têm responsabilidades na condução e animação da comunidade, quer em âmbito civil, quer em âmbito religioso. Quando somos chamados à missão de presidir a um grupo, de animar uma comunidade, de exercer o serviço da autoridade, cumprimos a nossa missão no dom total, no amor incondicional, no serviço desinteressado, a exemplo de Jesus?
  • No “rebanho” de Jesus, não se entra por convite especial, nem há um número restrito de vagas a partir do qual mais ninguém pode entrar. A proposta de salvação que Jesus faz destina-se a todos os homens e mulheres, sem exceção. O que é decisivo para entrar a fazer parte do rebanho de Deus é “escutar a voz” de Jesus, aceitar as suas indicações, tornar-se seu discípulo… Isso significa, concretamente, ir atrás de Jesus, aderir ao projeto de salvação que Ele veio apresentar, percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu, na entrega total aos projetos de Deus e na doação total aos irmãos. Atrevemo-nos a seguir o nosso “Pastor” (Jesus) no caminho exigente do dom da vida, ou estamos convencidos que esse caminho é apenas um caminho de derrota e de fracasso, que não leva aonde nós pretendemos ir?
  • O nosso texto acentua a identificação total de Jesus com a vontade do Pai e a sua disponibilidade para colocar toda a sua vida ao serviço do projeto de Deus. Garante-nos também que é dessa entrega livre, consciente, assumida, que resulta Vida eterna, verdadeira e definitiva. O exemplo de Jesus convida-nos a aderir, com a mesma liberdade, mas também com a mesma disponibilidade, às propostas de Deus e ao cumprimento do projeto de Deus para nós e para o mundo. Procuramos, como Jesus, discernir a vontade do Pai e obedecer ao projeto que Ele tem para nós, mesmo que isso signifique abandonar os nossos esquemas pessoais, as nossas conveniências, os nossos caminhos particulares?
  • Nas nossas comunidades cristãs, temos pessoas que presidem e que animam, pessoas a quem foi confiado o serviço da autoridade. Podemos aceitar, sem problemas, que elas receberam essa missão de Jesus e da Igreja, apesar dos seus limites e imperfeições. Mas convém igualmente ter presente que o único “Pastor verdadeiro”, aquele que nunca falha, aquele que somos convidados a escutar e a seguir sem condições, é Jesus. Procuremos escutar e acolher, com humildade, mas também com consciência crítica, as indicações que nos são dadas pelos líderes das nossas comunidades; mas não nos esqueçamos de as confrontar, para aquilatar da sua validade, com as indicações que nos foram deixadas por Jesus, o Bom Pastor, o nosso único Pastor. Como me posiciono diante daqueles a quem foi confiado, na comunidade cristã, o serviço da autoridade?
  • Para que distingamos a “voz” de Jesus de outros apelos, de propostas enganadoras, de “cantos de sereia” que não conduzem à vida plena, é preciso um permanente diálogo íntimo com “o Pastor” (Jesus), um confronto permanente com a sua Palavra e a participação ativa nos sacramentos onde se nos comunica essa vida que “o Pastor” nos oferece. Procuro manter um diálogo frequente com Jesus, a fim de ter sempre vivas as suas indicações? in Dehonianos

Para os leitores:

            A brevidade das duas leituras e a inexistência de palavras mais incomuns não pode permitir descurar a preparação dos textos. Ambos os textos exigem uma acurada preparação nas pausas e respirações e ambos são marcados por um tom alegre e jubiloso pela ressurreição de Jesus Cristo (1.ª leitura) e pela boa notícia de que em Jesus Cristo somos filhos muito amados de Deus (2.ª leitura).

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

BOM PASTOR

Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico tôb, que qualifica o nome Pastor. Por isso, hoje é também o Dia do Bom e Belo Pastor, e Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são sempre um dom do amor de Deus à sua Igreja e ao mundo.

O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,11-18, que surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (ver João 10,22). Situemo-nos. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Isto aconteceu em 167 a. C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, em 164 a. C., Judas Macabeu procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2021, corresponde ao nosso dia 29 de novembro.

A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista, paganismos modernos, escuro), não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais. Mais luz.

Como este simbolismo é importante para os dias de hoje e para o tempo que atravessamos! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é sempre o segredo maior do Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

O resto é a força e a beleza da imagem do Bom Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, que as ama, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem. Maravilhosa Comunhão. Música encantatória.

A figura do Pastor Bom e Belo como que salta da página selada, para surgir em pessoa à nossa frente. Ao dizer «Eu sou», está também, ao mesmo tempo, a dizer «vós sois». Está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade, confiança e intimidade connosco, bem expressa, de resto, pelas articulações verbais «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «dar a vida». Note-se que, no mundo bíblico, o «conhecimento» não exprime teoria ou teorias, mas é a expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso. O bocadinho da Primeira Carta de S. João, hoje lido (3,1-2), mostra também a maravilha deste conhecimento novo, que faz de nós «filhos de Deus» (tékna Theoû) e «semelhantes a Ele» (hómoioi autô). Em boa verdade, «só o semelhante conhece o semelhante». Por isso e para isso, Deus se fez primeiro semelhante a nós, homem verdadeiro, para nos tornar depois semelhantes a Ele, «deuses por graça» (cf. João 10,34-35). Por isso também, Jesus, o Filho, nos dá a conhecer tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio. E se, na inteira história humana, se pode afirmar, como faz a Escritura Santa, que «nunca ninguém viu Deus» (João 1,18; cf. 6,46), essa visão, em versão transformante, fica, todavia, em aberto, para o cume da nossa vida de filhos de Deus, como diz o Apóstolo, hoje: «semelhantes a Ele seremos, porque o veremos como Ele é» (1 João 3,2).

Mas esta vida livre, verdadeira, plena e bela, assente na verdade e na confiança, sem mentiras nem imposturas nem malabarismos, deixa ver em expresso contraponto o seu oposto. É que também saltam da página os ladrões, os salteadores, os mercenários que, em vez de conjugarem os verbos acima indicados para traduzir a relação do Pastor Bom e Belo com o seu rebanho, conjugam antes os verbos «roubar», «matar», «destruir», «abandonar», «fugir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,11-18 lê e desvenda os tempos de hoje! Pedro já tinha montado este cenário no Sinédrio (Atos 4,8-12), apresentando outra vez aos chefes do povo e anciãos (Atos 4,8), membros do Sinédrio, este Jesus, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos (Atos 4,10), como o único em que há salvação (Atos 4,12). Ele é o Bom e Belo Pastor, dador de vida, face ao qual os membros do Sinédrio fazem claramente a figura de mercenários, impostores e ladrões! Mas esta história seriada vem já da primeira página do Génesis, desde aquele fruto a nós dado (Génesis 1,29), ou por nós furtado (cf. Génesis 3,6) – fruto de um furto! –, história que emerge novamente nas últimas páginas de Mateus, que nos mostram ainda melhor o verdadeiro fruto a nós dado na Eucaristia (Mateus 26,26-29) e no Ressuscitado, Fruto novo que deve ser dado a toda a gente (Mateus 28,1-10.16-20), vendo-se, todavia, já no escuro, em contraluz, os impostores que congeminam e propagam, para tentar anular a força daquele Fruto, a lenda de um furto (Mateus 27,62-66; 28,11-15). Leitura admirável, mas também implacável.

Mas o texto grandioso de João 10,11-18 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo latino «aprire»] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos pelo pastor.

Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se também que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas. É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo e o alimento bom que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite!

Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez, / nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a alegria que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar faz-nos olhar para Jesus, pedra rejeitada pelos construtores, que veio a tornar-se, na verdade, pedra angular na construção do edifício espiritual, novo, que se constrói a partir do cume, e não à nossa maneira, desde baixo, sobre pesados alicerces. Ele é o nosso único Salvador. Por isso, este grande Salmo transborda de Ação de Graças.

Concede-nos, Senhor, Belo e Bom Pastor, que nunca nos tresmalhemos do teu imenso amor, e que saibamos sempre levar o tom e o sabor da tua voz que chama e ama a cada irmão perdido em casa ou numa estrada de lama.

Senhor Jesus Cristo, / Único Senhor da minha vida, / Bom Pastor dos meus passos inseguros/ E do silêncio inquieto do meu coração, / Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações. //

Senhor Jesus, / Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura. / Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura, / E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura. //

Fico contigo sentado junto ao poço. / Alumia o meu pobre coração. / Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão. / Dispõe de mim, Senhor, / Nesta hora de Nova Evangelização. //

Que eu saiba, Senhor, / Interpretar bem a tua melodia. / Que eu saiba, Senhor, / Dizer sempre SIM como Maria.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.202 (Act 4, 8-12)
  2. Leitura II do Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 (1 Jo 3, 1-2)
  3. Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem Papa Francisco para o LXI Dia Mundial de Oração pelas Vocações – 21.04.2024
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III da Páscoa – Ano B – 14.04.2024

 

Viver a Palavra

            Apesar da liturgia da Semana Santa e mais concretamente do Tríduo Pascal nos oferecerem um relato detalhado de todo o processo da paixão e crucifixão de Jesus, a ressurreição de Jesus acontece durante o silêncio da madrugada, na intimidade de Jesus com o Pai. Deste modo, o testemunho da ressurreição de Jesus não chega até nós pela descrição do modo como ela aconteceu, mas pelo testemunho daqueles que se encontraram com o ressuscitado. Um testemunho cheio de força e entusiasmo, de convicção e ousadia que contrasta com o medo que os assaltou durante o processo da condenação e crucifixão de Jesus. Basta pensar no testemunho destemido de Pedro, na primeira leitura deste Domingo. Pedro corajosamente diante da multidão proclama a boa notícia da ressurreição. Acusando a multidão de ter agido por ignorância no processo da morte de Jesus, convida-os ao arrependimento e à conversão para que também eles confessem a sua fé em Jesus Ressuscitado e se tornem também testemunhas da alegria da Páscoa.

            Como contrasta este discurso de Pedro com as palavras titubeantes com que negava conhecer Jesus no pátio da casa do Sumo Sacerdote! O encontro com o ressuscitado transforma de tal modo a vida e o coração que nada nem ninguém os fará recuar e temer no anúncio da vida nova que Jesus ressuscitado oferece.

            A novidade da ressurreição de Jesus irrompe no tempo e na história como garantia de que o bem trinfa sobre o mal e que pela ressurreição de Jesus também a nossa vida se inscreve no horizonte de vida e ressurreição que a Páscoa de Jesus nos oferece. Como é sempre belo e reconfortante ler as palavras do Papa Francisco na exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit: «Contempla Jesus feliz, transbordando de alegria. Alegra-te com o teu Amigo que triunfou. Mataram o Santo, o Justo, o Inocente, mas Ele venceu. O mal não tem a última palavra. Também na tua vida, o mal não terá a última palavra, porque o teu Amigo, que te ama, quer triunfar em ti. O teu Salvador vive» (CV 126).

            A afirmação de que a ressurreição de Jesus se vive e experimenta como encontro íntimo e pessoal com Aquele que por mim se entregou à morte e ressuscitou glorioso, não me desliga da comunidade nem me permite uma experiência isolada da fé, mas recorda-me como o ressuscitado se faz presente no meio dos discípulos e lhes comunica o seu amor e a sua paz: «A paz esteja convosco». A experiência pascal é comunitária e o testemunho da ressurreição ganha consistência, força e concretização na alegria e na beleza de caminhar juntos, estabelecendo laços fraternos e comunitários que permitem ver, tocar e comer juntos.

            Na verdade, para dissipar os medos e as dúvidas, Jesus pronuncia os verbos mais simples e familiares: vede, tocai, comamos juntos… Os discípulos rendem-se à evidência da ressurreição não pelos sinais teofânicos mais espetaculares, mas pela contemplação das marcas da paixão, por poder tocar o corpo do ressuscitado e saborearem juntos uma refeição. Jesus entra na nossa vida, não como uma ideologia ou uma formulação intelectual e abstrata, mas plasmando a nossa vida concreta: a nossa ação, o nosso toque, a nossa comunhão e partilha fraterna.

            Somos convidados a continuar hoje a experiência de Jesus ressuscitado vendo o rosto de tantos irmãos nossos que atravessam o limiar da dor e do sofrimento, tocando as suas feridas que nos recordam as marcas da paixão do ressuscitado e participando da mesa da comunhão e da partilha que perpetua no tempo e na história a presença Daquele que por nós morreu e ressuscitou.in Voz Portucalense (adaptado)

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           No terceiro Domingo da Páscoa, dia 14 de abril, tem início a 61.ª Semana de Oração pelas Vocações, celebrando-se no dia 21 de abril o Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem intitulada: Chamados a semear a esperança e a construir a paz. Ficará em anexo nesta e próxima semana. in Voz Portucalense (adaptado)

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           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 3,13-15.17 -19

Naqueles dias, Pedro disse ao povo:
«O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus de nossos pais,
glorificou o seu Servo Jesus,
que vós entregastes e negastes na presença de Pilatos,
estando ele resolvido a soltá-I’O.
Negastes o Santo e o Justo
e pedistes a libertação dum assassino;
matastes o autor da vida,
mas Deus ressuscitou-O dos mortos, e nós somos testemunhas disso.
Agora, irmãos, eu sei que agistes por ignorância,
como também os vossos chefes.
Foi assim que Deus cumpriu
o que de antemão tinha anunciado pela boca de todos os Profetas:
que o seu Messias havia de padecer.
Portanto, arrependei-vos e convertei-vos,
para que os vossos pecados sejam perdoados».

 CONTEXTO

            A primeira leitura do terceiro Domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, na “Porta Formosa”, uma porta situada no lado oriental da cidade, que dava acesso ao Templo para quem vinha do Monte das Oliveiras.

            Pedro e João (esta “dupla” aparece, frequentemente associada na primeira parte do Livro dos Atos dos Apóstolos – cf. At 4,7-8.13.19) tinham subido ao Templo para a oração da “hora nona” (três horas da tarde). Junto da Porta Formosa estava um homem, coxo de nascença, a mendigar. As portas que davam acesso ao Templo eram consideradas “sítios estratégicos” pelos mendigos, uma vez que um crente que ia encontrar-se com Deus tinha tendência para ser generoso com os que solicitavam ajuda. O homem dirigiu-se a Pedro e a João e pediu-lhes esmola. Pedro avisou-o de que não tinha “ouro nem prata” para lhe dar; mas, “em nome de Jesus Cristo Nazareno”, curou-o. “Cheia de assombro e estupefacta”, as pessoas que tinham testemunhado o acontecimento reuniram-se “sob o chamado pórtico de Salomão” (espaço coberto, situado a leste, no pátio externo do Templo) para ouvir da boca de Pedro uma explicação (cf. At 3,1- 11). O “assombro” e a “estupefação” traduzem o estado daqueles que testemunham a ação de Deus manifestada através dos apóstolos; é a mesma reação com que as multidões acolheram os gestos libertadores realizados por Jesus. A ação dos apóstolos aparece, assim, na continuidade da ação de Jesus. O nosso texto é parte do discurso que, segundo o autor dos Atos, Pedro teria feito à multidão (cf. At 3,12-26).

            Nas figuras de Pedro e João, é-nos apresentado o testemunho da primitiva comunidade de Jerusalém, apostada em continuar a missão de Jesus e em apresentar aos homens o projeto salvador de Deus. O autor dos Atos está convencido de que esse testemunho se concretiza, não só através da pregação, mas também da ação dos apóstolos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Para os cristãos, Jesus não é uma figura do passado, que a morte venceu e que ficou sepultado no museu da história; mas é alguém que continua vivo, sempre presente nos caminhos do mundo, oferecendo aos homens uma proposta de Vida verdadeira, plena, eterna. Como é que os nossos irmãos que caminham ao nosso lado podem descobrir que Jesus está vivo e fazer uma experiência de encontro com Cristo ressuscitado? Para o autor dos Atos, o fator decisivo para que os homens descubram que Cristo está vivo é o testemunho dos discípulos. Jesus está vivo e apresenta-se aos homens do nosso tempo nos gestos de amor, de partilha, de solidariedade, de perdão, de acolhimento que os cristãos são capazes de fazer; Jesus está vivo e atua hoje no mundo, quando os cristãos se comprometem na luta pela paz, pela justiça, pela liberdade, pelo nascimento de um mundo mais humano, mais fraterno, mais solidário; Jesus está vivo e continua a realizar aqui e agora o projeto de salvação de Deus, quando os seus cristãos oferecem aos coxos a possibilidade de avançar em direção a um futuro de esperança, aos que vivem nas trevas a capacidade de encontrar a luz e a verdade, aos prisioneiros a possibilidade de ter voz e de decidir livremente o seu futuro. Os meus gestos anunciam aos irmãos com quem me cruzo nos caminhos deste mundo que Cristo está vivo?
  • A existência humana é uma busca incessante de Vida. Essa busca, contudo, nem sempre se desenrola em caminhos fáceis e lineares. Por vezes é cumprida num caminho onde o homem tropeça com equívocos, com falhas, com opções erradas. Aquilo que parece ser garantia de vida gera morte; e aquilo que parece ser fracasso e frustração é, afinal, o verdadeiro caminho para a Vida. Pedro garante-nos, no seu testemunho, que a proposta que Jesus veio apresentar é uma proposta geradora de vida, apesar de passar pelo aparente fracasso da cruz. Acredito firmemente que é da doação, da entrega, do amor total a Deus e aos irmãos, a exemplo de Jesus, que brota a Vida eterna e verdadeira para mim e para aqueles que caminham ao meu lado?
  • O apelo ao arrependimento e à conversão que aparece no discurso de Pedro lembra-nos essa necessidade contínua de reequacionarmos as nossas opções, de deixarmos os caminhos de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de autossuficiência em que, por vezes, se desenrola a nossa existência. É preciso que, em cada instante da nossa vida, nos convertamos a Jesus e aos seus valores, numa disponibilidade total para acolhermos os desafios de Deus e a sua proposta de salvação. Procuro viver em estado de conversão permanente? Esforço-me, ao longo do meu caminho, por recentrar continuamente a minha vida em Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 4

Refrão: Fazei brilhar sobre nós, Senhor, A luz do vosso rosto.

Quando Vos invocar, ouvi-me, ó Deus de justiça.
Vós que na tribulação me tendes protegido,
compadecei-vos de mim
e ouvi a minha súplica.

Sabei que o Senhor faz maravilhas pelos seus amigos,
o Senhor me atende quando O invoco.
Muitos dizem: «Quem nos fará felizes?»

Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face.
Em paz me deito e adormeço tranquilo,
porque só Vós, Senhor, me fazeis repousar em segurança.

LEITURA II – 1 João 2,1-5a

Meus filhos,
escrevo-vos isto, para que não pequeis.
Mas se alguém pecar,
nós temos Jesus Cristo, o Justo, como advogado junto do Pai.
Ele é a vítima de propiciação pelos nossos pecados,
e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo inteiro.
E nós sabemos que O conhecemos,
se guardamos os seus mandamentos.
Aquele que diz conhecê-l’O
e não guarda os seus mandamentos
é mentiroso e a verdade não está nele.
Mas se alguém guardar a sua palavra,
nesse o amor de Deus é perfeito.

 CONTEXTO

            Já vimos no passado domingo que este escrito de tom polémico – destinado provavelmente às comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor – procura combater doutrinas heréticas pré-gnósticas e apresentar aos cristãos o caminho da autêntica vida cristã.

            O autor da carta, logo depois de um prólogo inicial (cf. 1 Jo 1,1-4) que faz lembrar o do Quarto Evangelho, retoma um tema eminentemente joânico para expor a realidade de Deus: “Deus é luz”; n’Ele não há qualquer espécie de treva, de mentira ou de erro (cf. 1 Jo 1,5). A luz de Deus brilha e orienta os homens no caminho que eles são chamados a percorrer. Quem é de Deus deixa-se iluminar pela luz de Deus, adere a Jesus e à sua proposta e vive em comunhão com os irmãos (cf. 1 Jo 1,7). Mas os adeptos das heresias, que espalham a confusão nas comunidades cristãs, não são de Deus e não se deixam guiar pela luz de Deus. Dizem que estão em comunhão com Deus; mas, na realidade, andam nas trevas, pois mentem e não praticam a verdade (cf. 1 Jo 1,6); dizem que não têm pecados (cf. 1 Jo 1,8.10); mas, ao fazê-lo enganam-se a si mesmos e fazem de Deus um mentiroso. Que necessidade teria Deus de enviar ao mundo o seu Filho com uma proposta de salvação, se o pecado não fosse uma realidade universal (cf. 1 Jo 1,8-10)? Esses hereges andam nas trevas; o seu caminho não é, decididamente, o caminho da vida autêntica. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Uma das questões que o nosso texto coloca é a da coerência de vida. No momento da nossa opção por Deus, dispusemo-nos a viver na luz e comprometemo-nos a acolher as indicações de Deus, seguindo os passos de Jesus; renunciámos a optar por caminhos de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de indiferença face a Deus e às suas propostas. No entanto, ao longo da viagem, o cansaço, a monotonia do caminho, o arrefecimento do entusiasmo, a desilusão, a acomodação, os apelos do mundo que nos rodeia, podem ter minado as nossas convicções e afetado a seriedade do nosso compromisso. Na minha vida procuro viver, com coerência e honestidade, os meus compromissos com Deus e com os meus irmãos, ou deixo-me levar ao sabor da corrente, das situações, das oportunidades?
  • Viver de forma coerente significa, também, reconhecer a fragilidade e a debilidade que são inerentes à nossa condição humana. Para o crente, o pecado não é algo “normal” (o pecado é sempre um “não” a Deus e às suas propostas e isso deve ser visto pelos crentes como uma “anormalidade”); mas é uma realidade que o crente reconhece e que sabe que está sempre presente ao longo da sua caminhada pela vida. O autor da Carta de João convida-nos a tomar consciência da nossa condição de pecadores, a acolher a salvação que Deus nos oferece, a confiar em Jesus, o “advogado” que nos entende (porque veio ao nosso encontro, partilhou a nossa natureza, experimentou a nossa fragilidade) e que nos defende. Reconhecer a nossa realidade pecadora não pode levar-nos ao desespero; tem de levar-nos a abrir o coração aos dons de Deus, a acolher humildemente a sua salvação e a caminhar com esperança ao encontro do Deus da bondade e da misericórdia que nos ama e que nos oferece, sem condições, a vida eterna. Reconheço a minha condição de pecador, que por vezes diz “não” a Deus e opta por caminhos de egoísmo e de autossuficiência? Estou disposto a aproximar-me novamente de Deus e a acolher as suas propostas?
  • A coerência que o autor da primeira Carta de João nos pede deve manifestar-se, também, na identificação entre a fé e a vida. A nossa fé não é uma bela teoria que caminha separada da vida concreta. Mentimos quando dizemos que amamos a Deus e depois, na vida concreta, abraçamos valores que contradizem de forma absoluta a lógica de Deus. Um crente que diz amar Deus e, no dia a dia, cria à sua volta injustiça, conflito, opressão, sofrimento, vive na mentira; um crente que diz “conhecer Deus” e fomenta uma lógica de guerra, de ódio, de intransigência, de intolerância, está bem distante de Deus; um crente que diz ter “a sua fé” e recusa o amor, a partilha, o serviço, a comunidade, está muito longe dos caminhos onde se revela a vida e a salvação de Deus; um crente que se preocupa em oferecer a Deus muitas rezas e solenes rituais litúrgicos, mas não se compadece dos filhos e filhas de Deus feridos e abandonados nas bermas da estrada da vida, não sabe nada de Deus. A minha vida concreta, as minhas atitudes para com os irmãos que me rodeiam, os sentimentos que enchem o meu coração, os valores que condicionam as minhas ações, são coerentes com a minha fé? in Dehonianos.

EVANGELHO – Lucas 24,35-48

Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão.
Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito.
Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações?
Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.
E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?»
Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles.
Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito
na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer
e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém.
Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

CONTEXTO

            O episódio que Lucas nos relata no Evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal situa-nos em Jerusalém, pouco depois da ressurreição. Os onze discípulos estão reunidos; já conhecem uma aparição de Jesus a Pedro (cf. Lc 24,34), bem como o relato do encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,35). Mas é bem provável que, apesar das notícias que lhes chegaram nas últimas horas sobre as aparições de Jesus, se sintam com medo, confusos, perturbados e cheios de dúvidas. Afinal, a maior parte deles ainda não tinha feito a experiência do encontro pessoal com Jesus ressuscitado.

            O evangelista Lucas, nestes relatos pós-pascais, procura mostrar como os discípulos descobrem, progressivamente, Jesus vivo e ressuscitado. Não lhe interessa fazer uma descrição jornalística e fotográfica das aparições de Jesus aos discípulos, mas interessa-lhe, sobretudo, afirmar aos cristãos que Cristo continua vivo e presente, acompanhando a sua Igreja, e que os discípulos de todas as épocas, reunidos em comunidade, podem fazer uma experiência de encontro verdadeiro com Jesus ressuscitado. Estamos no âmbito da catequese, mais do que no âmbito da descrição pormenorizada de acontecimentos reais.

            De acordo com Lucas, os onze não estão sozinhos; com eles estão “outros companheiros” (Lc 24,33). Lucas estará a referir-se a nós? Estará a convidar-nos para nos reunirmos aos onze para fazermos, com eles, a experiência de encontro com Jesus ressuscitado?

            Para a sua catequese, Lucas vai utilizar diversas imagens que não devem ser tomadas à letra nem absolutizadas. Elas são, apenas, o invólucro que apresenta a mensagem. O que devemos procurar, neste texto, é algo que está para além dos pormenores, por muito reais que eles pareçam: é a catequese da comunidade cristã primitiva sobre a sua experiência de encontro com Jesus vivo e ressuscitado. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus ressuscitou verdadeiramente, ou a ressurreição é fruto da imaginação dos discípulos? Como é possível ter a certeza da ressurreição? Como encontrar Jesus ressuscitado? Lucas diz-nos que nós, como os primeiros discípulos, temos de percorrer o nem sempre claro caminho da fé, até chegarmos à certeza da ressurreição. Não se chega lá através de deduções lógicas, de construções de carácter intelectual ou de teorias vagas e etéreas; mas chega-se à descoberta de Jesus ressuscitado quando se faz a experiência de um verdadeiro encontro com Ele e se sente a sua presença viva ao nosso lado. Essa experiência, essa descoberta, pode ter uma dimensão pessoal; mas acontece, de forma privilegiada, em âmbito comunitário. Jesus, vivo e ressuscitado, está sempre presente “no meio” da comunidade quando os irmãos se reúnem em seu nome; é a referência fundamental desse grupo de irmãos e de irmãs que é a nossa comunidade cristã. Ele manifesta-se no encontro comunitário, no diálogo com os irmãos que partilham a mesma fé, na escuta comunitária da Palavra de Deus, no amor partilhado em gestos de fraternidade e de serviço. O que é que isto me diz? Tenho feito esta experiência da presença de Jesus, ressuscitado e cheio de vida, no caminho que vou percorrendo? Como é que a minha comunidade cristã me tem ajudado a fazer esta experiência?
  • A catequese de Lucas põe Jesus ressuscitado no meio dos discípulos, como centro vital da comunidade. Os discípulos estão reunidos à volta de Jesus pois Ele é, para eles, a referência fundamental, a fonte de Vida onde todos vão beber. Qual é o centro vital, a referência fundamental nas nossas comunidades cristãs? Estamos todos voltados para Jesus, ou andamos distraídos com outras pessoas, outras figuras, outros temas, outros interesses, outras prioridades, outros valores?
  • O “documento” que Jesus apresenta para que os discípulos o identifiquem é as mãos e os pés marcados pelos sinais da crucificação. Aquelas feridas são o sinal da sua entrega e da sua vida dada em favor dos seus irmãos. Naquelas marcas está o ser profundo de Jesus, aquilo que o identifica. A nós, discípulos de Jesus, o que é que nos identifica? A verdade profunda da nossa vida está na forma como servimos, como cuidamos, como perdoamos, como praticamos o amor que Jesus nos ensinou? Reconhecemos os sinais de Jesus ressuscitado nos gestos de amor e de bondade que vemos acontecer à nossa volta, mesmo quando são praticados por pessoas que não pertencem à comunidade cristã?
  • Jesus ressuscitado abriu aos discípulos “o entendimento para compreenderem as Escrituras”. Quando a comunidade se reúne para escutar a Palavra, Ele está presente e fala-nos; através da Palavra, Ele oferece-nos a Boa Notícia de Deus, questiona-nos sobre as nossas opções, aponta-nos caminhos, deixa-nos desafios, abre-nos horizontes novos… Não sentimos, tantas vezes, a presença de Cristo a indicar-nos caminhos de Vida nova e a encher o nosso coração de esperança quando escutamos, lemos e meditamos a Palavra de Deus?
  • Na presença dos discípulos, Jesus tomou uma posta de peixe assado e “começou a comer diante deles”. O catequista Lucas pretende que este gesto seja, para os discípulos, uma “prova de vida”: Ele não é um fantasma, mas esse mesmo Jesus que tantas vezes se tinha sentado com os discípulos à mesa para aquelas refeições inolvidáveis que anunciavam e antecipavam o Reino de Deus. Mas podemos também ver neste gesto uma indicação de que o Ressuscitado continuará, pelo tempo fora, a “sentar-se à mesa” com os seus discípulos, a estabelecer laços com eles, a partilhar as suas inquietações, anseios, dificuldades e esperanças, sempre solidário com os seus. Não sentimos a presença viva de Jesus, de forma especial, quando nos sentamos com Ele à mesa da eucaristia?
  • Jesus deixa aos discípulos a missão de serem “testemunhas de todas estas coisas” junto de “todos os povos, começando por Jerusalém”. A comunidade de Jesus é precisamente isto: uma comunidade de testemunhas. Isto significa, apenas, que os cristãos devem ir contar a todos os homens, com lindas palavras, com raciocínios lógicos e inatacáveis que Jesus ressuscitou e está vivo? O testemunho que Cristo nos pede passa pelo nosso estilo de vida, pelos nossos valores, pela forma como amamos e servimos, pela forma como vemos o mundo. A minha vida, os meus gestos, os meus valores dão testemunho de que Jesus está vivo e a dar Vida ao mundo? A minha vida é, como foi a de Jesus, uma luta contra o egoísmo, a maldade, a violência, o pecado? A minha vida é, como foi a de Jesus, uma luta pela justiça, pela verdade, pela dignidade dos meus irmãos, especialmente dos mais frágeis e desprezados? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é constituída por um discurso em que Pedro proclama a ressurreição e acusa os que o ouvem de terem agido por ignorância no processo da condenação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom alegre e jubiloso da proclamação da ressurreição e ter um especial cuidado para evitar um severo tom acusativo e condenatório.

            A brevidade da segunda leitura não deve permitir descurar a sua preparação e requer sobretudo uma acurada preparação das pausas e respirações, sobretudo na articulação entre as diversas frases que iniciam com a conjugação adversativa, «mas» ou copulativa «e».

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS: SURPRESA PERMANENTE

            É-nos dada hoje, Domingo III da Páscoa, a graça de escutar a página sublime do Evangelho de Lucas 24,35-48, em que Jesus Ressuscitado se faz ver aos seus discípulos reunidos, que não são apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), dissipa as suas dúvidas e os seus medos, e lhes indica o sentido da Escritura, enquanto abre diante dos seus olhos o sentido obrigatório da missão. Podem assaltar-nos questões como estas: a) o que terá acontecido àqueles discípulos depois da morte de Jesus?; b) como chegaram ao ponto de afirmar a sua ressurreição?; c) terão sido vítimas de alguma desmedida ilusão?; d) autoconvenceram-se de que a obra de Jesus não podia terminar com aquela morte?; e) é a partir de si mesmos que chegam à fé na ressurreição, e que começam a anunciar convictamente que Jesus está vivo? A página do Evangelho de hoje ajuda-nos a compreender melhor os acontecimentos.

            Ainda os dois discípulos de Emaús faziam exegese demorada (exegoûnto: impf. de exêgéomai) das coisas acontecidas no caminho e de como Jesus se deu a conhecer (egnôsthê: aor. pass. de ginôskô) a eles (autoîs), dativo do beneficiário, no partir do pão (en tê klásei toû ártou) (Lucas 24,35), quando o próprio Ressuscitado irrompeu e ficou de pé no MEIO deles (o lugar da presidência), e saudou-os, dizendo: «A Paz convosco!» (Lucas 24,36). O leitor estaria à espera de uma receção apoteótica, do rebentamento de recalcadas emoções, de incontidos gritos de júbilo e de alegria. E, em vez disso, assistimos ao extravasar de medos, perturbação e dúvidas, pois o que pensavam estar a ver diante deles, no MEIO deles, era um espírito, um fantasma! (Lucas 24,37 e 39).

            Esta reação é importante, e manifesta que estes discípulos de Jesus, após aquela morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam dele (Lucas 24,21). Qualquer novo início só poderia vir de fora, só poderia vir de Deus. Naqueles discípulos não se vislumbrava nenhuma réstia de esperança, nenhuma acha ainda fumegava. Tudo cinza do mais cinzento que há. É a maneira de a Bíblia inteira realçar a intervenção de Deus. Deus não intervém como consequência de um pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou projeções mais insistentes. É sempre pura iniciativa sua, do nosso lado impensável, imprevisível e incontrolável. Ao mostrar as coisas desta maneira, a Bíblia, toda a Bíblia, antecipa-se em muitos séculos aos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud) e dissolve avant la lettre a sua denúncia de um Deus produzido ou projetado pelos nossos anseios e desejos. É, portanto, de assinalar que estes discípulos de Jesus deem o “dossier Jesus”, que os encantou, por encerrado, e comecem às apalpadelas a planear à sua maneira o “pós-Jesus”, mais ou menos como nós vamos estudando e planeando agora o pós-pandemia. Como se Jesus não estivesse aqui, no MEIO de nós! E como se não houvesse mais nenhuma surpresa para engolir! Não nos esqueçamos da verdade escondida aos olhos dos dois discípulos de Emaús: «Tu és o único que não sabe as coisas que aconteceram em Jerusalém nestes dias?» (Lucas 24,18). Sim, Ele é o único que não sabe aquelas coisas, estas coisas, como nós as sabemos!

            É assim que Jesus vem sem ser esperado e sem se fazer anunciar. E porque não era possível, da nossa parte, acreditar que fosse Ele, Ele tem mesmo de se identificar, coisa estranha. Para o fazer, não exibe, porém, qualquer fotografia ou documento. Mostra as mãos e os pés (Lucas 24,39-40), como em João 20,20 e 27 mostra as mãos e o lado, que levam a reconhecer o Ressuscitado como o Crucificado, sendo as mãos e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada. Note-se uma vez mais que não é pelo rosto que identificamos Jesus Ressuscitado. Senão aqueles discípulos, que com Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora. É a sua maneira de ser que diz Quem Ele é. E a sua maneira de ser é dar a vida. Maneira de ser e de estar connosco. No meio de nós (Lucas 24,36) e à nossa frente (Lucas 24,43), presidindo-nos e precedendo-nos e surpreendendo-nos.

            Sintomático que aqueles discípulos, vendo o que veem, nada digam. Permanecem mudos. Eles que antes estavam cheios de palavras… Mas Jesus continua a ser, é sempre, não o simples orador à maneira dos escribas, mas Aquele que fala com autoridade (Marcos 1,22). Ele é a Palavra criadora de mundos novos e de corações novos (João 1,3). Quando Ele surge, um mundo novo começa a acontecer. Dentro e fora de nós. E como é que podemos falar se ainda estamos a nascer?! Portanto, Ele fala (laléô): «É necessário (deî) que se cumpram todas as coisas escritas (gegramména) na Lei de Moisés e nos Profetas e nos Salmos acerca de mim (perì emoû). […] Assim foi escrito (gégraptai) que o Cristo havia de sofrer (1) e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia (2) e de ser anunciada (kêrýssô) (3) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações» (Lucas 24,44-47). E acrescenta com autoridade: «Vós sois testemunhas (mártyres) destas coisas» (Lucas 24,48).

            A partir deste luminoso falar revelatório (laléô) de Jesus fica claro, para nós, que a Missão do anúncio do Evangelho não é facultativa, mas insere-se na necessidade do plano de Deus, ao mesmo nível da morte e da ressurreição de Jesus. De forma clara, o cristão é batizado na morte de Cristo e vive a vida nova da Ressurreição de Cristo, mas tem de viver também do/e para o anúncio do Evangelho. É este o único lugar do Novo Testamento que guarda esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus (1), ressurreição de Jesus (2), anúncio do Evangelho a todas as nações (3). Nos outros lugares do Novo Testamento, esta necessidade afeta apenas as duas primeiras realidades.

            Esta necessidade teológica fica registada no uso do verbo grego deî e das coisas para sempre escritas em todas as Escrituras. O para sempre escritas fica gravado no uso dos dois perfeitos (gegramména e gégraptai, respetivamente particípio perfeito passivo e perfeito passivo do verbo gráphô). Se o uso do perfeito indica o «para sempre», o uso da forma passiva aponta para Deus, tratando-se, como é usual classificar-se, de um passivo divino ou teológico.

            Importa ainda precisar que este necessário anúncio do Evangelho não afeta apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), entenda-se, todos os discípulos de Jesus, pois é perante todos [«os Onze e os outros com eles»] – não há mudança de cenário – que Jesus pronuncia o luminoso falar revelatório de Lucas 24,44-47. Sem equívocos então: esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de todos os tempos. Fica ainda claro que o anúncio (kêrygma) do Evangelho não decorre por conta e risco do anunciador (kêryx), que não o faz em seu próprio nome; antes, apresenta-se sempre vinculado a Jesus Cristo, pois o anúncio é feito «em seu nome» (Lucas 24,47), é Ele que envia o anunciador. E este anúncio do Evangelho não fica circunscrito a um horizonte limitado, paroquial, diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são «todas as nações» (Lucas 24,47), «todos os lugares», todos os corações.

            Bem se vê que é, neste ponto preciso e nesta necessidade, que S. Paulo, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (S. Paulo VI), enxerta a sua vida e se entende a si mesmo, pois confessa: «Evangelizar não é para mim um título de glória, mas uma necessidade que se me impõe desde fora (epíkeitai). Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Coríntios 9,16).

            Impõe-se ainda uma anotação sobre aquela importante afirmação final de Jesus, que nos designa como testemunhas (mártyres). É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. No mundo de hoje, tal como o conhecemos, falar de testemunhas é falar de alguém que, tendo presenciado um acidente ou um crime, se compromete depois, no tribunal, a apresentar o seu ponto de vista sobre o sucedido. Alguém, portanto, que é chamado a comprometer-se com uma história que não é a dele. Para evitar chatices, acabamos muitas vezes por dizer logo à partida que não vimos nada. Mas, aqui, é Jesus que nos designa como testemunhas. Convenhamos que esta designação dos cristãos como testemunhas não tem sido nem é habitual. A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Jesus Cristo. Aquando da necessária substituição de Judas no colégio apostólico, Pedro traça assim os requisitos necessários que devem presidir à escolha do novo membro que venha a entrar no grupo dos Doze: «É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor Jesus, tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que Ele foi arrebatado (anelêmphthê) diante de nós, um destes se torne connosco testemunha (mártys) da sua Ressurreição» (Atos 1,21-22). Somos, portanto, chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa, para a transmitir aos outros, não com discursos inflamados ou esgotados, mas com a vida! Sim, aquela história e aquela vida são a nossa história e a nossa vida. Aí está o estilo da testemunha e do evangelizador.

            Aí está, então, o importante acerto com a narrativa do Livro dos Atos dos Apóstolos (3,13-19), que nos mostra Pedro no papel de testemunha (mártys) (v. 15) envolvendo-se e envolvendo outros na história «deste Jesus, que vós entregastes» (v. 13), «mas que Deus ressuscitou dos mortos» (v. 15). E a Primeira Carta de S. João (1,1-5) mostra-nos Jesus Cristo como nosso Advogado (paráklêtos) e vítima de expiação (hilasmós) pelos pecados de todos.

            O canto sereno, à serena luz da vela, do Salmo 4, que é um canto noturno, enche-nos de paz e de confiança e ensina-nos a viver serenamente, dia e noite, na companhia daquele Deus que se envolveu e envolve na nossa história e na nossa vida, realizando prodígios e reduzindo a fumo os ídolos e as insensatas e orgulhosas manobras humanas. O poeta francês Paul Claudel, que muitas vezes passeava pela Bíblia, parafraseou assim: «Há em mim esta paz que me leva ao sono. Há em mim este tesouro da esperança que me deste».

Senhor Jesus,/ há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver./ Mas quando dizem que Te querem ver,/ não é para Te conhecer./ É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,/ a tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia./ Querem ver-te como se fosse numa fotografia.//

Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,/ quando Te dás a conhecer a nós,/ não mostras o rosto,/ uma fotografia,/ o cartão de cidadão./ Se fosse assim,/ mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.//

E o facto é que,/ quando surges no meio deles,/ não Te reconhecem./ E em vez do rosto,/ são, afinal, as mãos e o lado,/ ou as mãos e os pés que apresentas./ Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver./ Na verdade, a tua identidade é dar a vida,/ é dar a mão e o coração./ É essa a tua lição,/ a tua paixão,/ a tua ressurreição.//

Senhor, dá-nos sempre desse pão!//

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 (Act 3, 13-15.17-19)
  2. Leitura II do Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 (1 Jo 2, 1-5a)
  3. Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem Papa Francisco para o LXI Dia Mundial de Oração pelas Vocações – 21.04.2024
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II da Páscoa – Ano B – 07.04.2024

 

Viver a Palavra

            O Evangelho deste Domingo situa-se: «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Os discípulos estavam reunidos com medo dos judeus, mas Jesus coloca-se no meio deles e saúda-os com a Sua Paz, mostra-lhes as marcas da Paixão e concede-lhes o dom do Espírito Santo para que eles sejam sinal de reconciliação e de paz junto daqueles a quem são enviados.

Mas Tomé, aquele a quem chamavam Dídimo, não estava com o grupo neste momento e, tendo regressado, afirma que só acreditará se vir com os seus próprios olhos e tocar com as suas mãos. Por isso, Jesus volta a aparecer aos Seus discípulos e o Evangelho indica que tudo isto aconteceu «oito dias depois».

As indicações temporais que o Evangelho nos apresenta não são apenas as anotações jornalísticas para situar a ação descrita. Nestas indicações temporais encontramos o ritmo da vida da Igreja: «o primeiro da semana» e «oito dias depois». Este é o ritmo da assembleia cristã que hebdomadariamente, isto é, semanalmente, se reúne, Domingo após Domingo, para celebrar a sua fé e proclamar a certeza de que o Ressuscitado acompanha a Sua Igreja, oferecendo-lhe a Sua Paz e concedendo-lhe o dom do Espírito.

Por isso, cada Domingo é o Dia do Senhor, dia de festa e de alegria, onde a comunidade cristã reunida à volta da mesa do altar, escutando a Palavra do Senhor e partilhando o Seu pão, renova a certeza desse amor maior que se faz entrega total e plena na Cruz. Ninguém está dispensado desta reunião festiva dos filhos de Deus. A aventura da Fé não é uma aventura isolada à qual nos propomos sozinhos. Como Tomé, quando nos afastamos da comunidade, o desafio de acreditar torna-se mais difícil e exigente. Aquele que se afasta da comunidade afasta-se da experiência comunitária de Jesus, do lugar privilegiado onde Deus se revela e manifesta como Rosto da misericórdia do Pai.

O Evangelho apresenta Tomé como Dídimo, isto é, gémeo. Na verdade, Tomé não está sozinho. Também nós duvidamos, vacilamos e titubeamos, sobretudo quando nos propomos a caminhar sozinhos, quando nos afastamos da comunidade ou quando ferimos a comunhão e unidade pelas divisões e discórdias que nos afastam dos outros e que afastam os outros. O melhor testemunho que a Igreja pode oferecer ao mundo é a sua comunhão e unidade, com comunidades acolhedoras, geradoras de relações fraternas, para que guiadas e iluminadas pelo Espírito Santo se tornem lugares da Paz que só o Ressuscitado e o Seu infinito amor podem oferecer e garantir.

«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». O Ressuscitado identifica-se diante dos discípulos mostrando-lhes «as mãos e o lado». As marcas da paixão identificam Jesus e revelam que o Ressuscitado é Aquele que oferece a Sua vida por nós. Mas também hoje, Jesus continua a revelar as marcas da Sua paixão e do Seu sofrimento nas chagas dolorosas dos que se cruzam connosco. Confessar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado é viver atento ao sofrimento dos irmãos e procurar responder com gestos concretos de proximidade e misericórdia.

Somos discípulos missionários. Somos enviados ao jeito de Jesus, para que as nossas vidas se tornem feliz anúncio da misericórdia de Deus. Não basta sermos crentes, precisamos ser credíveis, proclamando com a vida aquilo que os nossos lábios professam.in Voz Portucalense (adaptado)

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No ano 2000, o Papa S. João Paulo II canonizou Santa Faustina e declarou que daquele dia em diante, o segundo Domingo da Páscoa seria também designado como Domingo da Misericórdia. Além disso, S. João Paulo II «estabeleceu que o citado Domingo seja enriquecido com a Indulgência Plenária, para que os fiéis possam receber mais amplamente o dom do conforto do Espírito Santo e desta forma alimentar uma caridade crescente para com Deus e o próximo e, obtendo eles mesmos o perdão de Deus, sejam por sua vez induzidos a perdoar imediatamente aos irmãos» (Decreto da Penitenciaria Apostólica, 2002). Que este momento peculiar da história que estamos a atravessar nos estimule a recordar a misericórdia infinita do Pai, revelada em Jesus Cristo na força do Espírito Santo. Neste Domingo da Misericórdia aliada à prática das diversas devoções deixadas por Santa Faustina como o Terço da Misericórdia, poderá ser oportuna a meditação em família de uma das Parábolas da Misericórdia. Além disso, podemos usar as redes sociais e os nossos meios de comunicação à distância para agradecer àqueles que são para nós sinal próximo da misericórdia de Deus. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 4,32-35

A multidão dos que haviam abraçado a fé
tinha um só coração e uma só alma;
ninguém chamava seu ao que lhe pertencia,
mas tudo entre eles era comum.
Os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus
com grande poder
e gozavam todos de grande simpatia.
Não havia entre eles qualquer necessitado,
porque todos os que possuíam terras ou casas
vendiam-nas e traziam o produto das vendas,
que depunham aos pés dos Apóstolos.
Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade.

CONTEXTO

O livro dos Atos dos Apóstolos, logo depois da introdução inicial (cf. At 1,1-11), oferece-nos um conjunto de histórias sobre a comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 1,12-6,7). Mas o objetivo primordial de Lucas, o autor dos Atos, não é fornecer-nos um relato real e pormenorizado dos primeiros dias do cristianismo, após a ascensão de Jesus ao céu; o que ele pretende é propor-nos uma catequese sobre a forma como a Igreja de Jesus se deve estruturar e apresentar ao mundo. A comunidade cristã de Jerusalém é, de certo modo, a mãe e o modelo de todas as Igrejas. Lucas, ao falar dela, vai idealizá-la e “embelezá-la”, a fim de que ela funcione como exemplo para todas as Igrejas que depois irão surgir.

Nesses capítulos dedicados à apresentação da Igreja de Jerusalém Lucas insere, a certa altura, três breves sumários que põem em relevo dimensões particularmente importantes da vida eclesial. No primeiro desses sumários sublinha-se especialmente a unidade, a fidelidade à oração e ao ensino dos apóstolos, o espírito fraterno e o testemunho que a comunidade dava aos habitantes de Jerusalém (cf. At 2,42-47); no segundo (e que é exatamente o texto que nos é proposto como primeira leitura neste segundo domingo do tempo pascal) a ênfase é posta na partilha dos bens e na solidariedade dos membros da comunidade (cf. At 4,32-35); no terceiro, realça-se a atividade curadora dos apóstolos, que despertava o interesse da cidade e atraía novos membros à comunidade (cf. At 5,12-16).

Para entendermos todo o alcance da reflexão de Lucas precisamos de ter em conta a situação das comunidades cristãs no final da década de 80 do primeiro século. O entusiasmo inicial dos cristãos estava um tanto diluído: Jesus ainda não tinha vindo para instaurar definitivamente o “Reino de Deus” e, em contrapartida, posicionavam-se no horizonte próximo as primeiras grandes perseguições. Muitos dos crentes tinham-se instalado numa fé “morna” e inconsequente. Havia desleixo, falta de entusiasmo, acomodação, divisão, conflitos e confusão (até porque começavam a aparecer falsos mestres, com doutrinas estranhas e pouco cristãs). Neste contexto, Lucas recorda o essencial da experiência cristã e traça o quadro daquilo que a comunidade deve ser e testemunhar.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A comunidade cristã é uma “multidão” que abraçou a mesma fé – quer dizer, que aderiu a Jesus, aos seus valores, à sua proposta. A Igreja não é um grupo unido por uma ideologia, ou por uma mesma visão do mundo, ou pela simpatia pessoal dos seus membros; mas é uma comunidade que reúne pessoas de diferentes raças e culturas à volta de Jesus e do seu projeto de vida. Que lugar e que papel Jesus e as suas propostas ocupam na minha vida pessoal? Jesus é uma referência distante e pouco real, ou é uma presença constante que me questiona e que me aponta caminhos? Que lugar ocupa Jesus na vida e na programação da minha comunidade cristã? Ele é o centro, a referência a partir da qual se articula a liturgia, a vida sacramental, a catequese, a caridade da comunidade cristã onde eu faço a minha caminhada de fé?
  • A comunidade cristã é uma família unida, onde os irmãos têm “um só coração e uma só alma”. Tal facto resulta da adesão a Jesus: seria um absurdo aderir a Jesus e ao seu projeto e, depois, conduzir a vida de acordo com mecanismos de divisão, de fechamento, de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência… A minha comunidade cristã é uma comunidade de irmãos que vivem no amor, ou é um grupo de pessoas isoladas, em que cada um procura defender os seus interesses, mesmo que para isso tenha de magoar e de espezinhar os outros? No que me diz respeito, esforço-me por amar todos, por respeitar a liberdade e a dignidade de todos, por potenciar os contributos e as qualidades de todos?
  • A comunidade cristã é uma comunidade de partilha. No centro dessa comunidade está o Cristo do amor, da partilha, do serviço, do dom da vida… O cristão não pode, portanto, viver fechado no seu egoísmo, indiferente à sorte dos outros irmãos. Em concreto, o nosso texto fala na partilha dos bens… Uma comunidade onde alguns esbanjam os bens e onde outros não têm o suficiente para viver dignamente, será uma comunidade que testemunha, diante dos homens, esse mundo novo de amor que Jesus veio propor? Será cristão aquele que, embora indo à igreja, só pensa em acumular bens materiais, recusando-se a escutar os dramas e sofrimentos dos irmãos mais pobres? Será cristão aquele que, embora contribuindo com donativos para as necessidades da paróquia, comete injustiças ou explora os seus servidores?
  • A comunidade cristã é uma comunidade que testemunha o Senhor ressuscitado. Como? Através de teorias bem elaboradas ou de discursos teológicos bem construídos, mas que passam ao lado da vida e dos problemas dos homens? Através de rituais solenes e majestosos, mas estéreis e vazios? O testemunho mais impressionante e mais convincente será sempre o testemunho de vida dos discípulos de Jesus… Se conseguirmos criar verdadeiras comunidades fraternas, que vivam no amor e na partilha, que sejam sinais no mundo dessa vida nova que Jesus veio propor, estaremos a anunciar que Jesus está vivo, que está a atuar em nós e que, através de nós, continua a apresentar ao mundo uma proposta de vida verdadeira. As nossas comunidades cristãs são lugares onde se sente pulsar, ao vivo e a cores, a Vida nova de Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

Refrão 2: Aclamai o senhor, porque Ele é bom:
o seu amor é para sempre.

Refrão 3:  Aleluia.

Diga a casa de Israel:
é eterna a sua misericórdia.
Diga a casa de Aarão:
é eterna a sua misericórdia.
Digam os que temem o Senhor:
é eterna a sua misericórdia.

A mão do Senhor fez prodígios,
A mão do Senhor foi magnífica.
Não morrerei, mas hei de viver,
para anunciar as obras do Senhor.
Com dureza me castigou o Senhor,
mas não me deixou morrer.

A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.
Este é o dia que o Senhor fez:
exultemos e cantemos de alegria.

LEITURA II – 1 João 5,1-6

Caríssimos:
Quem acredita que Jesus é o Messias,
nasceu de Deus,
e quem ama Aquele que gerou
ama também Aquele que nasceu d’Ele.
Nós sabemos que amamos os filhos de Deus
quando amamos a Deus e cumprimos os seus mandamentos,
porque o amor de Deus
consiste em guardar os seus mandamentos.
E os seus mandamentos não são pesados,
porque todo o que nasceu de Deus vence o mundo.
Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé.
Quem é o vencedor do mundo
senão aquele que acredita que Jesus é o Filho de Deus?
Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo;
não só com a água, mas com a água e o sangue.
É o Espírito que dá testemunho,
porque o Espírito é a verdade.

CONTEXTO

A opinião tradicional atribuía a autoria da primeira Carta de João (como também a segunda e a terceira) ao apóstolo João, irmão de Tiago; no entanto, essa hipótese foi praticamente descartada pelos biblistas. Discute-se se o seu autor será o mesmo autor do Quarto Evangelho, atendendo à semelhança de vocabulário, de estilo e de doutrina entre os dois documentos; mas nem isso é consensual. Há ainda quem se questione se o autor desta carta (e das outras: a segunda e a terceira) não será um tal “João, o Presbítero” (cf. 2 Jo 1,1; 3 Jo 1,1), conhecido da tradição primitiva e que, aparentemente, era uma personagem distinta do “João, o apóstolo”. Seja como for, o autor da primeira Carta de João é alguém que pertence ao mundo joânico e que conhece bem a teologia joânica.

Também não há, na primeira Carta de João, qualquer referência a um destinatário (pessoa ou comunidade) concreto. A missiva parece dirigir-se a um grupo de igrejas ameaçadas pelo mesmo problema: as heresias. Trata-se, provavelmente, de igrejas da Ásia Menor (à volta de Éfeso), onde estão a ser difundidas doutrinas incompatíveis com a revelação cristã, que ameaçam comprometer a pureza da fé.

Quem são os autores dessas doutrinas heréticas? O autor da Carta chama-lhes “anticristos” (1 Jo 2,18.22; 4,3), “profetas da mentira” (1 Jo 4,1), “mentirosos” (1 Jo 2,22). Diz que eles “são do mundo” (1 Jo 4,5) e deixam-se levar pelo espírito do erro (1 Jo 4,6). Até há pouco tempo pertenciam à comunidade cristã (1 Jo 2,19); mas agora saíram e procuram desencaminhar os crentes que permaneceram fiéis (cf. 1 Jo 2,26; 3,7). Muito provavelmente são pessoas ligadas a grupos pré-gnósticos, cujas ideias começavam a circular, no final do séc. I, e a causar confusão e divisão nas comunidades joânicas. Estes “profetas da mentira” pretendiam “conhecer Deus” (1 Jo 2,4) e viver em comunhão com Deus (1 Jo 2,3); mas apresentavam uma doutrina e uma conduta em flagrante contradição com a revelação cristã. Recusavam-se a ver em Jesus o Messias (cf. 1 Jo 2,22) e o Filho de Deus (cf. 1 Jo 4,15), recusavam a encarnação (cf. 1 Jo 4,2) e ensinavam que o Cristo celeste tinha-Se apropriado do homem Jesus de Nazaré na altura do Batismo (cf. Jo 1,32-33), tinha-o utilizado para levar a cabo a revelação e tinha-o abandonado antes da paixão, porque o Cristo celeste não podia padecer. O comportamento moral destes hereges não era menos repreensível: pretendiam não ter pecados (cf. 1 Jo 1,8.10) e não guardavam os mandamentos (cf. 1 Jo 2,4), em particular o mandamento do amor fraterno (cf. 1 Jo 2,9).

O autor da Primeira Carta de João adverte os cristãos contra as pretensões destes pregadores heréticos e explica-lhes os critérios da vida cristã autêntica.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Amar a Deus significa cumprir os seus mandamentos – diz-nos o autor da primeira Carta de João. O amor a Deus não se diz em belas declarações, em palavras cheias de elevação, em solenes afirmações de princípios; diz-se, muito simplesmente, acolhendo as indicações de Deus e pautando por elas o nosso caminho de vida. Amamos a Deus quando o vemos como um Pai que nos ama e que só quer o nosso bem; amamos a Deus quando o levamos tão a sério que estamos dispostos a fazer a sua vontade, mesmo que isso afete os nossos projetos; amamos a Deus quando tudo o que vem dEle “conta” para nós; amamos a Deus quando caminhamos confiantes no caminho que Ele nos aponta, certos de que chegaremos a um porto seguro e feliz. É desta forma que eu amo a Deus?
  • De acordo com o autor da primeira Carta de João, amar a Deus implica amar também Jesus, o Filho de Deus. Também neste caso o nosso amor expressa-se mais em atitudes do que em palavras. Amamos a Jesus quando respondemos ao seu convite, tornamo-nos seus discípulos, acolhemos a sua Palavra, seguimo-Lo incondicionalmente no caminho do amor, do serviço, do dom da vida; amamos a Jesus quando, como Ele, lutamos contra tudo aquilo que suja o mundo e destrói a vida. É desta forma que eu amo Jesus?
  • Amar a Deus e aderir a Jesus implica amar os irmãos. Quem não ama os irmãos, não cumpre os mandamentos de Deus e não segue Jesus. Como Jesus, somos chamados a testemunhar o amor de Deus a todos os que caminham ao nosso lado, especialmente aos mais pobres, aos mais humildes, aos mais frágeis, aos que a sociedade e a religião condenam, aos que os senhores do mundo e da história humilham e desvalorizam. O amor total e sem fronteiras, o amor que nos leva a oferecer integralmente a nossa vida aos irmãos, o amor que se revela nos gestos simples de serviço, de perdão, de solidariedade, de doação, de atenção, de cuidado, está no nosso programa de vida?
  • Quem nasce de Deus e confia em Deus, quem acredita em Jesus e O segue – diz o autor da primeira Carta de João – “vence o mundo”. Os cristãos não se conformam com a lógica de egoísmo, de ódio, de injustiça, de violência que governa o mundo; a esta lógica, eles contrapõem a lógica do amor, a lógica de Jesus. O amor é um dinamismo que vence tudo aquilo que oprime o homem e que o impede de chegar à vida verdadeira e definitiva, à felicidade total. Ainda que o amor pareça, por vezes, significar fragilidade, debilidade, fracasso, frente à violência dos poderosos e dos senhores do mundo, a verdade é que o amor terá sempre a última e definitiva palavra. Só ele assegura a vida verdadeira e eterna, só ele é caminho para o mundo novo e melhor com que os homens sonham. Conformo-me com o mundo e os seus valores efémeros, ou sou dos que têm a ousadia de dar testemunho dos valores de Deus e de Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 20,19-31

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois,
estavam os discípulos outra vez em casa,
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

CONTEXTO

Jesus foi crucificado na manhã de uma sexta-feira – dia da “preparação” da Páscoa – e morreu pelas três horas da tarde desse dia. Já depois de morto, um soldado trespassou-lhe o coração com uma lança; e do coração aberto de Jesus saiu sangue e água (cf. Jo 19,31-37). O evangelista João vê no sangue que sai do lado aberto de Jesus o sinal do seu amor dado até ao extremo (cf. Jo 13,1): do amor do pastor que dá a vida pelas suas ovelhas (cf. Jo 10,11), do amor do amigo que dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13); e vê na água que sai do coração trespassado de Jesus o sinal do Espírito (cf. Jo 3,5), desse Espírito que Jesus “entregou” aos seus e que é fonte de Vida nova. Da água e do sangue, do batismo e da eucaristia, nascerá a nova comunidade, a comunidade da Nova Aliança. Contudo, os discípulos que tinham subido com Jesus a Jerusalém e que seriam o embrião dessa comunidade da Nova Aliança, desapareceram sem deixar rasto. Estão escondidos, algures na cidade de Jerusalém, paralisados pelo medo. O projeto de Jesus falhou?

No final da tarde dessa sexta-feira, o corpo morto de Jesus foi sepultado à pressa num túmulo novo, situado num horto ao lado do lugar onde se tinha dado a crucificação (cf. Jo 19,38-42). Depois veio o sábado, o último dia da semana, o dia da celebração da Páscoa judaica. Durante todo aquele sábado o túmulo de Jesus continuou cerrado.

A partir daqui a narração de João muda de tempo e de registo. Chegamos ao “primeiro dia da semana”. É o primeiro dia de um tempo novo, o tempo da humanidade nova, nascida da ação criadora e vivificadora de Jesus. “No primeiro dia da semana”, Maria Madalena, a mulher que representa a nova comunidade, vai ao túmulo e vem de lá confusa e desorientada porque o túmulo está vazio (cf. Jo 20,1-2). Logo depois, ainda “no primeiro dia da semana”, Pedro e outro discípulo correm ao túmulo e constatam aquilo que Maria Madalena tinha afirmado: Jesus já não está encerrado no domínio da morte (cf. Jo 20,3-10). A comunidade de Jesus começa a despertar do seu letargo; começa a viver um tempo novo. “Ao entardecer do primeiro dia da semana” (“ou seja, ao concluir-se este primeiro dia da nova criação) a comunidade dos discípulos faz a experiência do encontro com Jesus, vivo e ressuscitado (cf. Jo 20,19-29).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Nos relatos pascais aparece sempre, em pano de fundo, a convicção profunda de que a comunidade dos discípulos nunca estará sozinha, abandonada à sua sorte: Jesus ressuscitado, Aquele que venceu a morte, a injustiça, o egoísmo, o pecado, acompanhá-la-á em cada passo do seu caminho histórico. É verdade que os discípulos de Jesus não vivem num mundo à parte, onde a fragilidade e a debilidade dos humanos não os tocam. Como os outros homens e mulheres, eles experimentam o sofrimento, o desalento, a frustração, o desânimo; têm medo quando o mundo escolhe caminhos de guerra e de violência; sofrem quando são atingidos pela injustiça, pela opressão, pelo ódio do mundo; conhecem a perseguição, a incompreensão e a morte… Mas, apesar de tudo isso, não se deixam vencer pelo pessimismo e pelo desespero pois sabem que Jesus vai “no meio deles”, oferecendo-lhes a sua paz e apontando-lhes o horizonte da Vida definitiva. É com esta certeza que caminhamos e que enfrentamos as tempestades da vida? Os outros homens e mulheres que partilham o caminho connosco descobrem Jesus, vivo e ressuscitado, através do testemunho de esperança que damos?
  • O Espírito Santo é o grande dom que Jesus ressuscitado faz à comunidade dos discípulos. É Ele que nos transforma, que nos anima, que faz de nós pessoas novas, que nos capacita para sermos testemunhas e sinais da Vida de Deus; é Ele que nos dá a coragem e a generosidade para continuarmos no mundo a obra de Jesus. No entanto, o Espírito só atua em nós se estivermos disponíveis para o acolher. Ele não se impõe nem desrespeita a nossa liberdade. Estamos disponíveis para acolher o Espírito? O nosso coração está aberto aos desafios que o Espírito constantemente nos lança?
  • A comunidade cristã gira em torno de Jesus, é construída à volta de Jesus e é de Jesus que recebe Vida, amor e paz. Sem Jesus, seremos um rebanho de gente assustada, incapaz de enfrentar o mundo e de ter uma atitude construtiva e transformadora; sem Jesus, seremos um grupo de gente que se apoia em leis, que vive de ritos, que defende doutrinas e não a comunidade que vive e testemunha o amor de Deus; sem Jesus, estaremos divididos, mergulhados em conflitos estéreis, e não seremos uma comunidade de irmãos e de irmãs; sem Jesus, cairemos facilmente em caminhos errados e iremos beber a fontes que não matam a nossa sede de Vida… Na nossa comunidade, Cristo é verdadeiramente o centro? É para Ele que tudo tende e é d’Ele que tudo parte? Escutamos as suas palavras, alimentamo-nos d’Ele, vivemos d’Ele, estamos ligados a Ele como os ramos estão ligados à videira?
  • Não é em experiências pessoais, íntimas, fechadas, egoístas, que encontramos Jesus ressuscitado; mas encontramo-l’O sempre que nos reunimos em seu nome, em comunidade. É no diálogo comunitário, na Palavra partilhada, no pão repartido, no amor que une os irmãos em comunidade de vida, que fazemos a experiência da presença de Jesus vivo no meio de nós. O que é que a comunidade cristã significa para mim? Sinto-me bem a caminhar em comunidade, ou a minha experiência de fé é uma experiência isolada, à margem da riqueza e dos desafios que a comunidade me oferece? E, neste âmbito, o que é que significa, para mim, a participação na celebração da Eucaristia, no “primeiro dia da semana”, o dia do encontro comunitário à volta da mesa de Jesus?
  • É nos gestos de amor, de partilha, de serviço, de encontro, de fraternidade, que encontramos Jesus vivo, a transformar e a renovar o mundo; é com gestos de bondade, de misericórdia, de compaixão, de perdão que testemunhamos diante do mundo a Vida nova do Ressuscitado. Quem procura Cristo ressuscitado, encontra-O em nós? O amor de Jesus – amor total, universal e sem medida – transparece nos nossos gestos e na nossa vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é a descrição da vitalidade e comunhão vivida na comunidade nascente. A proclamação desta leitura deve ter presente o tom narrativo, mas também o entusiasmo e a maravilha do modo como cresciam em número e santidade os primeiros cristãos.

A segunda leitura é um hino de ação de graças ao Pai pela salvação revelada em Jesus Cristo. Ao tom de louvor e ação de graças que deve caracterizar a proclamação desta leitura, junta-se a recomendação de uma acurada preparação das pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

TOMÉ, CHAMADO «GÉMEO»

Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa João Paulo II, em 30 de abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão em um lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, Vida vivente e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou derreter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «Shalôm!», «A paz convosco!».

Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, a Bondade deste “Bom-Dia”, que ressoa desde a Criação, entra em nós, enche-nos de Bondade e de Alegria, e faz-nos encontrar um modo novo de encarar a vida. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, este “Bom-Dia” estabelece connosco uma relação nova e boa, e inverte por completo a nossa velha maneira de ver e de viver. Na verdade, estamos habituados a pensar, a decidir e a escolher o que vamos fazer, comprar ou vender. Sou eu que penso, decido, escolho. Como se o mundo inteiro começasse em mim e a partir de mim. Como se eu fosse (porque penso que sou) o senhor do mundo. Ora, o imenso texto do Evangelho de hoje, como, de resto, a Escritura inteira, começa com Alguém que vem de fora do meu alcance, e me surpreende, e me saúda, deixando-me na condição nova e inédita, não de senhor que pensa e escolhe, mas de respondedor que é pensado e acolhe. Quando «eu penso», decido e escolho, escolho sempre um alter ego, isto é, algo ou alguém igual a mim, que venha ao encontro do meu mundo desiderativo e projetual, e o encha e satisfaça. Quando «eu sou pensado» e escolhido e saudado, cabe-me acolher aquela Saudação, aquela «Paz», aquele Shalôm, e responder, responder, responder. O “Bom-Dia” precede o cogito. Precede, inverte e investe.

Jesus mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para outras passagens, nomeadamente para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado! Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre! Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.

Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

Nascer de Deus, amar a Deus e o Filho Unigénito de Deus, amar no Filho os filhos de Deus, é a lição da Primeira Carta de São João 5,1-6. O critério é: se nascemos de Deus, então somos filhos de Deus, e, sendo filhos de Deus, somos irmãos. E, se nascemos de Deus, também o amor que nos vincula aos irmãos é de Deus. Amar a Deus é, então, o critério último da fé e da caridade. A vida de Deus em nós, amar como Deus nos ama, permanece, portanto, o único critério verdadeiro. Na Primeira Carta de São João 4,20-21, tínhamos anotado o critério de que o nosso amor a Deus é verificável no nosso amor ao próximo. Mas São Paulo adverte-nos com sabedoria que o amor ao próximo pode fingir-se, pois podemos dar todos os nossos bens aos pobres, e não ter a caridade verdadeira (1 Coríntios 13,3). Neste sentido, diz acertadamente São Máximo Confessor (580-662) que «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». A misericórdia é a chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.

Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom, / porque para sempre é o seu amor!» (v. 1 e 29).

Em tudo e sempre nos precede o nosso bom Deus com a iniciativa do seu amor primeiro e misericordioso.

«O lugar para onde Eu vou,
Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.
«Nós não sabemos para onde vais,
Como podemos saber o caminho para lá?»,
Retorquiu Tomé.
Tomé é como nós:
Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.
E é em função das metas e objetivos,
Que escolhe caminhos e metodologias.
Deus disse a Abraão: «Vai do teu país
Para o país que Eu te fizer ver».
E o narrador diz-nos que «Abraão foi».
Para onde? Para qual país?
Não interessa.
Interessa é saber que uma mão segura nos guia,
E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.
É assim que faz Jesus também.
Não nos indica no mapa o lugar do destino,
Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.
Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».
É assim a procissão e a peregrinação.
Ele vai connosco e à nossa frente.
Ele é o caminho, a mão segura,
A água pura,
O pão de trigo.
Ensina-nos, Senhor,
A caminhar contigo.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 (Act 4, 32-35)
  2. Leitura II do Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 (1 Jo 5, 1-6)
  3. Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 – Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor – Ano B – 31.03.2024

Missa do Dia

 

Viver a Palavra

            «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».

            É madrugada! Está escuro lá fora, mas também no coração de Maria Madalena. Porém, nem a penumbra da noite nem a tristeza que invade o seu coração a detêm. Sai de manhãzinha e vai apressadamente ao sepulcro. Testemunhou com os seus olhos os milagres e prodígios do Mestre, contemplou a força dos Seus braços que levantavam os caídos e ressuscitavam os mortos, maravilhou-se com tantas vidas transformadas pela suave ternura da Sua palavra doadora de sentido que não se conforma com a Sua morte. Como escreveu Gabriel Marcel: «amar é dizer: tu não morrerás!».

            Ao contrário das narrativas de Marcos e de Lucas que indicam que as mulheres que se dirigem ao sepulcro levam perfumes e aromas, seguindo assim as tradições funerárias próprias da sua cultura, nesta narrativa, Maria Madalena nada leva consigo. No crepúsculo daquela jornada que marcará indelevelmente o curso da história, ela dirige-se ao sepulcro, transportando apenas a história de libertação e de vida que o crucificado lhe ofereceu quando outrora a acolheu e renovou no seu coração a esperança e a confiança. Como pode morrer Aquele que lhe ofereceu um horizonte novo de vida? Como pode estar ausente Aquele cuja presença transformou o seu coração e a sua história?

            Chegada ao sepulcro e vendo a pedra removida, dirige-se apressadamente ao encontro de Pedro e do discípulo amado e, como anota Ermes Ronchi, não afirma que levaram o corpo do Senhor, mas apenas «levaram o Senhor do sepulcro», como se Ele ainda estivesse vivo. Maria Madalena entrevê desde já o cumprimento das palavras do Cântico dos Cânticos: «o amor é mais forte do que a morte» (Ct 8,6). Maria sabe que um amor maior não pode morrer e que os gestos e palavras de Jesus preenchiam de eternidade os limites e fragilidades da humanidade.

            As multidões que seguiam Jesus, bem como os Seus discípulos e seguidores mais próximos, ficaram presos ao fracasso da Sua paixão e crucifixão e esqueceram rapidamente as palavras que Jesus lhes houvera dito: «O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar» (Lc 9,22). Ouviram que Ele haveria de morrer, sofrer e ser crucificado, mas não escutaram nem compreenderam que Ele haveria de ressuscitar. Prenderam o seu coração ao provisório e esqueceram o que é pleno e definitivo. Na vida de Jesus, como na vida de quantos O seguem, a morte e o sofrimento têm carácter de transitoriedade e de provisoriedade porque só a ressurreição e a vida nova que brota da Sua Páscoa é verdadeiramente plena e definitiva.

            Jesus ressuscitou e a boa notícia que brotou do sepulcro vazio, mas cheio de sinais, ecoa de geração em geração renovando o coração e a vida de quantos se deixam iluminar pela luz nova e plena da Páscoa. Diante das trevas e sombras que pairam no nosso tempo, a Igreja é chamada a ser portadora da luminosa notícia da manhã de Páscoa para que o mundo saiba e acredite que o amor venceu a morte, que a graça venceu o pecado e que a cruz de Cristo nos abriu as portas da eternidade. As dificuldades, os desafios e até os sofrimentos, que tantas vezes assolam a nossa vida, são provisórios e transitórios como provisória e transitória foi a paixão e morte de Jesus. Plena e definitiva é a glória. Total e duradoira é a ressurreição e a vida nova que Jesus Ressuscitado nos oferece. Por isso, caminhemos com renovada esperança os trilhos da história fazendo ecoar no coração de cada homem e de cada mulher a mais bela notícia: «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».in Voz Portucalense (adaptado)

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           A alegria que brota da Ressurreição do Senhor prolonga-se ao longo de cinquenta dias na celebração do Tempo Pascal. Os diversos sinais litúrgicos, como o círio pascal, os ritos da aspersão, entre outros sinais e gestos, favorecem a tomada de consciência de que o Tempo Pascal se prolonga até ao Pentecostes. Porém, ao contrário do Tempo Quaresmal onde se propõem tantas atividades e dinâmicas, frequentemente o Tempo Pascal aparece desprovido de uma proposta de reflexão e vivência além da Eucaristia Dominical. Por isso, seria de grande proveito para os fiéis, a valorização deste tempo com a proposta de momentos de oração e reflexão como a Via Lucis, as Catequeses ou celebrações mistagógicas, entre outras propostas criativas e dinâmicas, em jeito de saída missionária, que estimulem a comunidade a testemunhar a alegria do Ressuscitado.in Voz Portucalense

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           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 10,34.37-43

Naqueles dias,
Pedro tomou a palavra e disse:
«Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia,
a começar pela Galileia,
depois do batismo que João pregou:
Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem
e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio,
porque Deus estava com Ele.
Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez
no país dos judeus e em Jerusalém;
e eles mataram-n’O, suspendendo-O na cruz.
Deus ressuscitou-O ao terceiro dia
e permitiu-Lhe manifestar-Se, não a todo o povo,
mas às testemunhas de antemão designadas por Deus,
a nós que comemos e bebemos com Ele,
depois de ter ressuscitado dos mortos.
Jesus mandou-nos pregar ao povo
e testemunhar que Ele foi constituído por Deus
juiz dos vivos e dos mortos.
É d’Ele que todos os profetas dão o seguinte testemunho:
quem acredita n’Ele
recebe pelo seu nome a remissão dos pecados.

CONTEXTO

            Todos os anos a liturgia propõe-nos, ao longo dos domingos do tempo pascal, a leitura dos Atos dos Apóstolos. Obra de Lucas (que também foi o autor do 3.º Evangelho), os Atos é o livro “pascal” por excelência: conta-nos como os discípulos, depois de terem feito a experiência de encontro com o Ressuscitado e animados pelo Espírito que lhes foi enviado, abriram as portas da casa onde se encontravam escondidos e tornaram-se testemunhas de Jesus e do seu projeto. Deram assim cumprimento ao mandato que Jesus lhes tinha deixado quando se despediu deles e partiu ao encontro do Pai (cf. At 1,8).

            O “tempo” dos Atos é o “tempo” da Igreja (a comunidade que nasceu de Jesus e que continua a viver de Jesus) e o “tempo” do Espírito. Nesta nova fase da história da salvação, compete aos discípulos, animados e conduzidos pelo mesmo Espírito que ungiu Jesus e o acompanhava na sua missão, levarem ao mundo a salvação de Deus. Os discípulos são nesta nova fase, como Jesus o tinha sido enquanto andou pelas aldeias e vilas da Galileia, o rosto visível do Deus salvador e libertador. O seu testemunho deve percorrer um “caminho” que vai de Jerusalém – no Antigo Testamento, o lugar onde devia manifestar-se definitivamente a salvação de Deus – até “aos confins da terra”. É esse, precisamente, o “percurso” que o livro dos Atos nos apresenta.

            A execução de Estevão (um dos diáconos da Igreja de Jerusalém) e a perseguição que se abateu, logo depois, sobre os cristãos de Jerusalém fez com que diversos membros da comunidade saíssem da cidade e buscassem refúgio nas regiões vizinhas (cf. At 8,1). Assim, o Evangelho de Jesus chegou à Samaria, a Damasco e a Antioquia da Síria. Mais tarde, sobretudo por ação de Paulo, a Boa Nova de Jesus foi anunciada na Ásia Menor e na Grécia. Os Atos terminam com Paulo a chegar a Roma: o anúncio da salvação de Deus tinha alcançado o coração do mundo gentio; era uma proposta de salvação para todos os homens e mulheres que a quisessem acolher.

            Um dos episódios importantes desta saga missionária aconteceu em Cesareia Marítima (cf. At 10,24-48), a cidade da costa mediterrânica que era a sede do poder romano na Palestina. Os protagonistas desse episódio foram o apóstolo Pedro e um centurião romano chamado Cornélio. Pedro, convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20) e respondendo a um pedido de Cornélio (cf. At 10,22), foi a Cesareia, entrou em casa do centurião, expôs-lhe o essencial da fé cristã e batizou-o, bem como a toda a sua família (cf. At 10,23b-48). Cornélio foi o primeiro pagão a ser acolhido na Igreja de Jesus. É a primeira vez que um dos membros proeminentes da comunidade cristã (Pedro) admite que o Evangelho de Jesus é uma Boa Notícia destinada a todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas.

            O texto que, neste dia de Páscoa, nos é proposto como primeira leitura, é parte da “instrução” de Pedro a Cornélio e sua família. Trata-se de uma composição de Lucas onde aparecem os elementos fundamentais do kerigma cristão sobre Jesus.in Dehoniano

INTERPELAÇÕES

  • A ressurreição de Jesus é a consequência de uma vida gasta a “fazer o bem e a libertar os oprimidos”. Isso significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se esforça por vencer o egoísmo, a mentira, a injustiça e por fazer triunfar o amor, está a ressuscitar; significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se dá aos outros e manifesta, em gestos concretos, a sua entrega aos irmãos, está a construir vida nova e plena. Estamos a ressuscitar, porque caminhamos pelo mundo fazendo o bem e libertando os oprimidos, ou a nossa vida é um repisar os velhos esquemas do egoísmo, do orgulho, do comodismo?
  • A ressurreição de Jesus significa também que o medo, a morte, o sofrimento e a injustiça deixam de ter poder sobre a pessoa que ama, que se dá, que partilha a vida. Ela tem assegurada a Vida plena – essa Vida que os poderes do mundo não podem destruir, atingir ou restringir. Ela pode, assim, enfrentar o mundo com a serenidade que lhe vem da fé. Estamos conscientes disto, ou deixamo-nos dominar pelo medo, sempre que temos de agir para combater aquilo que rouba a vida e a dignidade, a nós e a cada um dos nossos irmãos?
  • Aos discípulos pede-se que sejam as testemunhas da ressurreição. Nós não vimos o sepulcro vazio; mas fazemos, todos os dias, a experiência do Senhor ressuscitado, que está vivo e caminha ao nosso lado nos caminhos da história. A nossa missão é testemunhar essa realidade; no entanto, o nosso testemunho será oco e vazio se não for comprovado pelo amor e pela doação, as marcas da vida nova de Jesus. O nosso testemunho da ressurreição é coerente e credível e traduz-se em gestos concretos de amor, de partilha, de serviço? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: Este é o dia que o Senhor fez:
exultemos e cantemos de alegria.

 

Refrão 2: Aleluia.

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

Diga a casa de Israel:
é eterna a sua misericórdia.

A mão do Senhor fez prodígios,
a mão do Senhor foi magnífica.
Não morrerei, mas hei de viver
para anunciar as obras do Senhor.

A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.

LEITURA II – Colossenses 3,1-4

Irmãos:
Se ressuscitastes com Cristo,
aspirai às coisas do alto,
onde está Cristo, sentado à direita de Deus.
Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra.
Porque vós morrestes
e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a vossa vida, Se manifestar,
também vós vos haveis de manifestar com Ele na glória.

CONTEXTO

            Colossos era uma cidade da antiga Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de cento e oitenta quilómetros de Éfeso, a dezasseis de Laodiceia e a vinte de Hierápolis. Pertencia à Província romana da Ásia. Em tempos recuados tinha sido cidade rica e populosa; mas no tempo de Paulo tinha perdido o seu esplendor e importância.

Não foi Paulo que evangelizou Colossos. Durante a longa estadia de Paulo em Éfeso, no decurso da sua terceira viagem, Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cf. Col 4,12), fundou a comunidade (cf. Col 1,7), enquanto as de Hierápolis e Laodiceia (cf. Col 4,13). A maior parte dos membros da comunidade cristã de Colossos tinham vindo do paganismo; mas havia também um bom grupo de judeo-cristãos.

            Quando escreveu a Carta aos Colossenses, Paulo estava na prisão (em Roma?). Epafras visitou-o e falou-lhe da “crise” por que estava a passar a Igreja de Colossos. Alguns doutores locais ensinavam doutrinas estranhas, que misturavam elementos cristãos, judaicos e pagãos: especulações acerca dos anjos (cf. Col 2,18), práticas ascéticas, rituais legalistas, prescrições sobre os alimentos e a observância de determinadas festas (cf. Col 2,16.21). Tudo isso deveria (na opinião desses “mestres”) completar a fé em Cristo, comunicar aos crentes um conhecimento superior de Deus e dos mistérios cristãos e possibilitar uma vida religiosa mais autêntica. Contra este sincretismo religioso, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo: Ele é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criatura, o mediador da Criação, aquele que Deus enviou para reconciliar todas as coisas, a cabeça do Corpo que é a Igreja, o Senhor de todos os poderes e dominações (cf. Cl 1,15-20).

            O texto que a liturgia deste domingo de Páscoa nos propõe como segunda leitura é a introdução à reflexão moral da carta (cf. Col 3,1-4,6). Depois de apresentar a centralidade de Cristo no projeto salvador de Deus (cf. Col 1,13-2,23), Paulo recorda aos cristãos de Colossos que é preciso viver de forma coerente e verdadeira o compromisso assumido com Cristo. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O Batismo introduz-nos numa dinâmica de comunhão com Cristo ressuscitado. A partir do Batismo, Cristo passa a ser o centro e a referência fundamental à volta da qual se constrói toda a vida do crente. Qual o lugar que Cristo ocupa na nossa vida? Temos consciência de que o nosso Batismo significou um compromisso com Cristo e uma identificação com Cristo?
  • A identificação com Cristo implica o assumir uma dinâmica de Vida nova, despojada do pecado e feita doação a Deus e aos irmãos. O cristão torna-se então, verdadeiramente, alguém que “aspira às coisas do alto” – quer dizer, alguém que, embora vivendo nesta terra e desfrutando das realidades deste mundo, tem como referência última os valores de Deus. Não se pede ao crente que seja um alienado, alguém que viva a olhar para o céu e que se demita do compromisso com o mundo e com os irmãos; mas pede-se-lhe que não faça dos valores do mundo a sua prioridade, a sua referência última. A nossa vida tem sido uma caminhada coerente com essa dinâmica de Vida nova que começou no dia em que fomos batizados? Esforçamo-nos, realmente, por nos despojarmos do “homem velho” e por nos revestirmos do “Homem Novo”, do homem que se identifica com Cristo e que vive no amor, no serviço, na doação aos irmãos?
  • Paulo, a partir do exemplo de Cristo, garante-nos que esse caminho de despojamento do “homem velho” não é um caminho de derrota e de fracasso; mas é um caminho de glória, no qual se manifesta a realidade da Vida eterna, da Vida verdadeira. Neste dia de Páscoa, diante do túmulo vazio e da certeza de que Jesus triunfou da morte e do pecado, reconhecemos a verdade do testemunho de Paulo?
  • Quando, de alguma forma, estou envolvido na preparação ou na celebração do sacramento do Batismo, tenho consciência – e procuro passar essa mensagem – de que o sacramento não é um ato tradicional ou social (que, por acaso, até proporciona fotografias bonitas), mas um compromisso sério e exigente com Cristo? in Dehonianos.

SEQUÊNCIA PASCAL

À Vítima pascal
ofereçam os cristãos
sacrifícios de louvor.

O Cordeiro resgatou as ovelhas:
Cristo, o Inocente,
reconciliou com o Pai os pecadores.

A morte e a vida
travaram um admirável combate:
Depois de morto,
vive e reina o Autor da vida.

Diz-nos, Maria:
Que viste no caminho?

Vi o sepulcro de Cristo vivo
e a glória do Ressuscitado.
Vi as testemunhas dos Anjos,
vi o sudário e a mortalha.

Ressuscitou Cristo, minha esperança:
precederá os seus discípulos na Galileia.

Sabemos e acreditamos:
Cristo ressuscitou dos mortos:
Ó Rei vitorioso,
tende piedade de nós.

EVANGELHO – João 20,1-9

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predileto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

CONTEXTO

            O Quarto Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42) apresenta duas partes. Na primeira, João descreve a atividade criadora e vivificadora do Messias, no sentido de dar vida e de criar um Homem Novo – um homem livre da escravidão do egoísmo, do pecado e da morte (para João, o último passo dessa atividade destinada a fazer surgir o Homem Novo foi, precisamente, a morte na cruz: aí, Jesus apresentou a última e definitiva lição – a lição do amor total, que não guarda nada para si, mas faz da vida um dom radical ao Pai e aos irmãos). Na segunda parte do Evangelho (cf. Jo 20,1-31), João apresenta o resultado da ação de Jesus e mostra essa comunidade de Homens Novos, recriados e vivificados por Jesus, que com Ele aprenderam a amar com radicalidade e a quem Jesus abriu as portas da Vida definitiva. Trata-se dessa comunidade de homens e mulheres que se converteram e aderiram a Jesus e que, em cada dia – mesmo diante do sepulcro vazio – são convidados a manifestar a sua fé no Filho de Deus que “ergueu a sua tenda no meio dos homens” para lhes dar Vida em abundância.

            Jesus tinha sido crucificado na manhã de sexta-feira (por volta das nove horas) e tinha morrido na cruz por volta das três horas da tarde desse mesmo dia. No final da tarde, o seu corpo morto tinha sido descido da cruz e depositado, à pressa, num “túmulo novo”, situado num horto, perto do lugar da crucificação (cf. Jo 19,41). Como era habitual, na tradição judaica, uma pedra redonda tinha sido rolada para tapar a entrada do sepulcro. Os rituais fúnebres não tinham sido observados em pormenor, uma vez que nesse dia, ao pôr do sol, começava o sábado e também a celebração da Páscoa judaica (cf. Jo 19,42). Aqueles que lidaram com o sepultamento de Jesus queriam voltar a casa, rapidamente, porque queriam “comer a Páscoa”, nessa noite, em família. Precisavam de se afastar do corpo morto de Jesus para não ficarem “impuros” e serem ritualmente impedidos de celebrar a Páscoa.

            Passado o dia festivo da Páscoa, no “yom rishon”, o primeiro dia da semana, Maria Madalena – uma das mulheres que tinha seguido Jesus desde a Galileia até Jerusalém e que tinha estado junto da cruz de Jesus até à sua morte – dirigiu-se ao túmulo. Presumivelmente levava perfumes para ungir o corpo morto de Jesus (cf. Mc 16,1). Perguntava-se como iria conseguir afastar a enorme pedra que tinha sido rolada, na sexta-feira, para tapar a entrada do sepulcro de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A ressurreição de Jesus é a resposta de Deus aos que pretenderam, de forma injusta e criminosa, calar Jesus e banir da história o seu projeto do Reino de Deus. Deus não permitiu que o mal vencesse; Deus não permitiu que a violência, a injustiça, a maldade e a morte tivessem a última palavra; Deus não aceitou que o mundo ficasse refém daqueles que queriam continuar a viver na escuridão. Ao ressuscitar Jesus, Deus deu-Lhe razão; afirmou, alto e bom som, que o caminho proposto por Jesus – o do amor que se dá até às últimas consequências, o do serviço simples e humilde aos irmãos, o do perdão sem limites – é o caminho que leva à Vida. Neste dia de Páscoa, diante do túmulo de Jesus vazio, tenho alguma dúvida em abraçar tudo aquilo que Jesus me disse, com as suas palavras e com os seus gestos, sobre a forma de chegar à Vida definitiva, à Vida eterna?
  • A vitória de Jesus sobre o egoísmo, a violência, a maldade e a morte muda a nossa perspetiva sobre a forma de encarar tudo aquilo que, de forma objetiva, faz sofrer os homens e mulheres que caminham ao nosso lado. Ficar do lado dos que são magoados e crucificados, combater a injustiça e a opressão nas suas mil e uma formas, gastar a vida a servir os mais frágeis e abandonados, recusar um mundo que se constrói sobre violência e prepotência, lutar até ao dom da própria vida para vencer tudo o que gera morte não é algo absurdo. É, segundo Deus, o caminho que fará com que a nossa vida valha a pena e tenha pleno sentido. Talvez essa opção nos deixe cheios de feridas e cicatrizes; mas serão feridas e cicatrizes que Deus curará. Estamos dispostos a dar a vida para que outros tenham Vida? Estamos dispostos a correr riscos para levar a libertação ao mundo e aos nossos irmãos? Cremos firmemente, com toda a nossa alma e com todas as nossas forças, que uma vida gasta a servir não é uma vida fracassada, mas é uma vida que termina em ressurreição?
  • Pedro parece ter sentido dificuldade, diante do túmulo vazio, em “acreditar” que Jesus estivesse vivo e que aquele caminho de cruz tivesse conduzido à Vida. Na verdade, em muitos passos do caminho que percorreu com Jesus, Pedro manifestou dificuldade em sintonizar com Jesus e com a sua lógica. Ele estava habituado a funcionar de acordo com outros valores e padrões, numa lógica muito “do mundo”. Os interesses de Pedro nem sempre coincidiam com a visão de Jesus. Parece estranho, para alguém que andava com Jesus? Teoricamente, sim. Na prática, talvez reconheçamos, nas hesitações e recusas de Pedro, as nossas indecisões, a nossa dificuldade em arriscar, a nossa dificuldade em abandonarmos os critérios “do mundo” para abraçarmos a lógica de Deus. Será assim? O que podemos fazer para sermos menos “Pedro” e mais discípulos que vão, sem hesitar, atrás de Jesus?
  • A fotografia que o evangelista João nos apresenta do “discípulo predileto” é a fotografia de um discípulo que vive em comunhão com Jesus, que se identifica com Jesus e com os seus valores, que interiorizou e absorveu a lógica da entrega incondicional, do dom da vida, do amor total. Por isso, não tem qualquer problema em aceitar que o caminho seguido por Jesus conduz à ressurreição, à Vida nova. Ele “acredita” em Jesus. Revemo-nos nesta figura? Vemo-la como uma proposta com a qual gostaríamos de nos identificar? O que podemos fazer para sermos verdadeiramente “discípulo predileto”?
  • A ressurreição de Jesus é a vitória da Vida sobre a morte, da verdade sobre a mentira, da esperança sobre o desespero, da justiça sobre a injustiça, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre as trevas. Abre-nos perspetivas completamente novas e garante-nos o triunfo de Deus sobre as forças que querem destruir o mundo e os homens. Nós, que acreditamos e celebramos a ressurreição de Jesus, somos testemunhas da vitória da Vida junto dos nossos irmãos paralisados pelo medo e pelo pessimismo? A mensagem que levamos ao mundo é uma mensagem de alegria e de esperança que tem as cores da manhã de Páscoa? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é um longo discurso de Pedro em casa de Cornélio. A proclamação deste discurso deve ter em conta o tom alegre e jubiloso do anúncio da vitória de Cristo sobre a morte.

            Para a segunda leitura existem duas possibilidades. Ambas as possibilidades são breves, mas a brevidade do texto não deve fazer descurar a sua preparação. Deve ter-se em atenção as pausas e respirações. Na Carta aos Colossenses deve haver um especial cuidado com as formas verbais no imperativo que oferecem ao texto um caracter exortativo e na Primeira Carta aos Coríntios ter em atenção a entoação da frase na forma interrogativa.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O SENHOR RESSUSCITOU. ALLELUIAH!

            «Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, deci­frando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a meto­nímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início). Par­ticularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a «caminhada» quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Efésios 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos (com a Chará, a alegria grande da Páscoa), pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Atos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Atos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico todo, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redi­mida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do al­tar, do ambão, do batistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, donde emerge continuamente a mensagem da Ressurreição. Aleluia!

            O Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-10, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentou-se sobre ela (Mateus 28,2), impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4), dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4), as faixas de linho no chão e o sudário enrolado noutro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram uma presença nova que somos convidados a descobrir.

            O texto imenso de João 20,1-10 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não:

            A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) que até causa aflição a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus(João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece contraponto com a pedra por algum tempo retirada (aoristo de aírô) pelos homens do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41). Cega pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (êran: aor. de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende ou dá bom resultado. A oposição luz – trevas atravessa de lés-a-lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos, que nada pescam de noite (João 21,3) e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido na noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).

            A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e o «discípulo amado». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madale­na vai ao túmulo, e vê (blépô) a pedra (da morte) retirada. 2) O outro discípulo, «o discípulo amado», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e vê (blépô) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o discípulo amado», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo-Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim! Deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, o «discípulo amado» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR o «discípulo amado», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!

            Pedro, que corria juntamente com o «discípulo amado», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que o «discípulo amado» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e vê (theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada tão em ordem! Por isso, Pedro vê com o olhar de quem fica a pensar no que se terá passado… Talvez seja coisa de Deus… Com a indica­ção preciosa de que o véu foi cuidadosamente retirado do seu Rosto, a Revelação convida agora a contemplar o Rosto divino no Rosto humano do Ressuscitado: vendo‑o a Ele, vê‑se o Pai (cf. João 14,9).

            «O discípulo amado» entrou, viu com um olhar histórico (tempo aoristo) de quem vê por dentro a identidade (verbo grego ideîn), e acreditou (v. 8). É o olhar de quem vê o inefável, verdadeiro clímax do relato: anote‑se a passagem do verbo ver do presente para o aoristo, e de fora para dentro: «o discípulo amado» viu na história a identidade dos «sinais»: toda a Economia divina realizada! O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde.

            A narrativa de João 20 abre com a Madalena, que vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. Conforme a grandiosa narrativa, a Madalena tem diante dos olhos o inefável. Mas cega como está pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Não é de admirar, dado que a Madalena anda pelo escuro, e, no IV Evangelho, quem anda no escuro ou na noite, não vê a Luz.

            Ainda que não faça parte do Evangelho deste Dia Grande, vale a pena, para que não fique perdido, acostar aqui o percurso que a Madalena continua a fazer em João 20,11-18. Mudou de olhar. Aparece agora junto do túmulo a chorar, inclina-se e vê, agora também (como Pedro) com um ver que dá que pensar (verbo grego theôréô), dois anjos vestidos de branco (cor divina), estrategicamente colocados no túmulo, como sinais. Perguntam à Madalena: «Mulher, por que choras?». Na verdade, ela ainda está do lado da morte, do escuro, da dor, da tristeza. A paisagem em que se move ou a página que a move ainda é o Capítulo 19 de João, daquele Jesus morto por mãos humanas retirado (João 19,38), daquele Rei por mãos humanas retirado (João 19,15[2x]), ou até daquela pedra por mãos humanas retirada do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41) – em todos os casos o verbo aírô no aoristo –, não sabendo ainda ler a pedra para sempre retirada por Deus, de João 20,1. É ainda à procura de um corpo morto que ela anda. De um corpo morto a que ela se acha com direito de posse. Talvez seja este o preconceito que lhe tolhe o olhar e a impede de ver o inefável. Na verdade, responde assim à pergunta feita pelos dois anjos: «Retiraram o meu Senhor, e não sei onde o puseram» (João 20,13). Note-se outra vez o aoristo do verbo aírô, e note-se agora também o possessivo «meu» afeto a Senhor.

            Voltando-se para o jardim, vê, outra vez com um ver que dá que pensar (theôréô), um homem de pé, que ela pensa ser o jardineiro, mas que, na verdade, é Jesus, que a deixa espantada com a segunda pergunta que lhe faz: «Mulher, por que choras? (normal, pois ela continuava a chorar); a quem procuras?». Esta segunda pergunta desvenda a Madalena, retirando-a dos preconceitos que a cegam. Precedendo-a, antecipando-se a ela, adivinhando-a com aquela pergunta direita ao coração, Jesus dá-se a conhecer à Madalena, deixando-a a pensar mais ou menos assim: «E como é que este desconhecido sabe que eu ando à procura de alguém neste jardim?». Compreendendo-se compreendida, a Madalena começa a sair aqui da sua cegueira, mas ainda precisa de algum tempo para mudar de paisagem, de margem, de página, do Capítulo 19 para o Capítulo 20. A resposta que dá é elucidativa: «Se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste, e eu o retirarei» (João 20,15).

            Ao responder com um pronome três vezes repetido, que esconde o nome, vê-se bem que a Madalena sabe que aquele desconhecido bem sabe quem ela procura. E confessa aqui o intento que desde aquela madrugada, ainda escuro, a movia: retirar para si aquele corpo morto! Manifesta que anda ainda perdida no Capítulo 19, quando responde «em hebraico» (hebraïstí) a Jesus que acabava de pronunciar o nome dela: «Maria!» (João 20,16). A locução adverbial «em hebraico» (hebraïstí) é uma ponte para João 19,13 e 17. Equivocada como anda, ainda quer reter o Ressuscitado, mas não pode: aprende ainda que nada nem ninguém pode reter o Ressuscitado, aquela vida nova, aquele modo novo de estar presente! Leva tempo até passar da margem da morte para a margem da vida verdadeira! E finalmente vai anunciar aos discípulos, que Jesus significativamente chama «meus irmãos» (João 20,17), enviada pelo Ressuscitado: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18). Nova mudança de olhar. O que ela diz agora é: Vi e continuo a ver o Senhor! É o que significa o verbo grego horáô, no tempo perfeito. É o olhar da testemunha que vê o inefável! Aqui termina a Madalena o seu longo e belo percurso, e sai de cena.

            Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-138) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A atual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasis e Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.

            Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Atos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exatamente para dar teste­munho. Viram e testemunham o Batismo de Jesus, a execução da sua missão filial batismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurrei­ção Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.

            O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida batismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coi­sas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exorta­ção que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».

            Em alternativa a Colossenses 3,1-4, pode ler-se e escutar-se 1 Coríntios 5,6-8. A sua linguagem é da cor da Páscoa (grego páscha, hebraico pesah). O Novo Testamento usa o termo grego páscha [= Páscoa] por 28 vezes, assim distribuídas: 24 vezes nos Evangelhos + Atos 12,4 e Hebreus 11,28, todas em referência exclusiva à Páscoa hebraica do Antigo Testamento; as duas menções que faltam são precisamente 1 Coríntios 5,7 e Lucas 22,15, esta com o precioso lógion de Jesus: «Desejei ardentemente esta Páscoa (toûto tò páscha) comer convosco». Em 1 Coríntios 5,7, lemos a expressão tò páscha hêmôn etýthê Christós, cuja tradução não pode ser «Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado», como se vê habitualmente, mas «durante a nossa Páscoa (hebraica), foi imolado Cristo». Os motivos são gramaticais (tò páscha hêmôn é um acusativo adverbial) e teológicos: o cordeiro da Páscoa não é um sacrifício imolado; não é queimado sobre o altar; não é oferecido ao Senhor (só o que é oferecido ao Senhor é sacrifício); é convivialmente comido em família. Sacrifício da Páscoa era a ʽôlat-tamid, o holocausto perpétuo, diário, o sacrifício de dois cordeiros, filhos de um ano, um de manhã e outro de tarde, conforme Êxodo 29,38-42 e Números 28,3-8, e que, sendo diário, precedia qualquer celebração festiva. Só depois deste sacrifício quotidiano, se procedia, em dias de festa, como é a Páscoa, ao sacrifício da festa propriamente dito, sacrifício suplementar, e que, na Páscoa, consistia num «sacrifício de ovelhas e bois», este sim, «Páscoa imolada para o Senhor» (Deuteronómio 16,2). De notar também que o Novo Testamento desconhece em absoluto o adjetivo «pascal», de que nós fazemos uso indiscriminado, e não pensado. A restante linguagem da cor da Páscoa que 1 Coríntios 5,6-8 mostra é o fermento (hamets) e os pães ázimos (matstsôt). Servem os termos para Paulo reclamar dos cristãos vida nova (pães ázimos), sem malícia (fermento velho).

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo de Páscoa – Missa do Dia – Ano B – 31.03.2024 (Act 10, 34.37-43)
  2. Leitura II do Domingo de Páscoa – Missa do Dia – Ano B – 31.03.2024 (Col 3, 1-4)
  3. Tríduo Pascal e Páscoa da Ressurreição – Ano B – 28, 29, 30 e 31 Março 2024
  4. Tríduo Pascal e Páscoa da Ressurreição – Ano B – 28, 29,30 e 31 Março 2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024

 

Viver a Palavra

Continuamos a contar os 40 dias da Quaresma desde a Quarta-Feira de Cinzas até à Páscoa. Mas ao Domingo não é Quaresma. É Páscoa.

Com a celebração do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor damos início à Semana Santa onde somos convidados a fixar o nosso olhar na Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A Semana Santa inicia e termina com um evangelho de festa, marcado pela alegria. Iniciamos a celebração deste Domingo com a proclamação do Evangelho que narra a entrada de Jesus em Jerusalém onde é aclamado com brados de alegria e de júbilo que ainda hoje repetimos na celebração da Eucaristia: «Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!» e na soleníssima noite de Páscoa haveremos de escutar o solene anúncio da Ressurreição gloriosa. Contudo, esta moldura de alegria e de festa encerra no seu interior a paixão e morte, o duro caminho da paixão que escutamos no Evangelho da missa.

O sofrimento e a morte, a paixão e a crucifixão não têm a última palavra. Com Jesus somos chamados a percorrer o caminho da Cruz mas conscientes que caminhamos do transitório para o pleno e definitivo. Só a Ressurreição de Jesus é plena e definitiva! Apesar da inevitabilidade do sofrimento e da morte na nossa peregrinação terrena, tomamos consciência de que o sofrimento e a morte têm carácter de provisoriedade, enquanto a ressurreição e a vida eterna se revestem de plenitude e eternidade.

O nosso Deus não é indiferente às nossas dores e angústias, dores e sofrimentos, mas assumiu a nossa condição humana fazendo suas as dores da humanidade: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz».

Nunca será demais ler, meditar e contemplar estas palavras da Carta de S. Paulo aos Filipenses. Em Jesus Cristo, Deus cheio de amor vem ao nosso encontro, assume a nossa frágil humanidade para nos elevar com Ele à glória da divindade. Assume a natureza frágil e provisória para nos fazer tomar parte da promessa total, plena e definitiva.

Deus desce para que juntos possamos subir. O caminho quaresmal que percorremos é expressão concreta deste caminho como nos recorda o Papa Francisco: «Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor».

Contemplando o caminho da cruz entramos nesta nova lógica da vida cristã: a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos outros; a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Um novo modo de ser e de estar que se traduz numa nova forma de servir e amar. O pão partido e repartido e o cálice partilhado à volta da mesa perpetuam no tempo e na história a entrega da cruz e, por isso, reunidos para celebrar a Eucaristia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor celebramos a paixão e morte de Jesus, mas aclamando a glória da Ressurreição. Como aquela multidão de outrora, queremos sair à rua para acolher e aclamar Jesus que continua a visitar-nos no rosto sofredor dos nossos irmãos, em tantas situações de carência e debilidade que silenciosamente continuam a gritar e a reclamar a nossa presença. in Voz Portucalense (adaptado)

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Com o Domingo de Ramos na Paixão do Senhor iniciamos a Semana Santa. Acolhendo o desafio à conversão e à penitência, devemos ter presente que a conversão pessoal a que somos chamados na contemplação da morte e ressurreição de Cristo nos deve conduzir a uma saída missionária que se manifeste de modo concreto na nossa vida quotidiana.

Este Domingo deve ser marcado pelo convite à participação no Tríduo Pascal, centro de todo o ano litúrgico. Não nos devemos limitar a um anúncio dos horários e locais da celebração, mas, por exemplo, elaborar um pequeno folheto com uma apelativa descrição de cada uma das celebrações. Além disso, pode apontar-se como ação missionária para esta semana o convite aos vizinhos e amigos para a participação nas diversas celebrações pascais. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 50, 4-7

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio,
e, por isso, não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.

CONTEXTO

No livro do Deutero-Isaías (Is 40-55), encontramos quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1.5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem carácter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
  • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
  • Temos consciência de que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
  • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)

Refrão: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Todos os que me veem escarnecem de mim,
estendem os meus lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre,
Ele que o salve, se é meu amigo».

Matilhas de cães me rodearam,
cercou-me um bando de malfeitores.
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés,
posso contar todos os meus ossos.

Repartiram entre si as minhas vestes
e deitaram sortes sobre a minha túnica.
Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim,
sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me.

Hei de falar do vosso nome aos meus irmãos,
Hei de louvar-Vos no meio da assembleia.
Vós, que temeis o Senhor, louvai-O,
glorificai-O, vós todos os filhos de Jacob,
reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel.

LEITURA II – Filipenses 2, 6-11

Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.

CONTEXTO

A cidade de Filipos, situada na Macedónia oriental, era uma cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador. Gozava dos mesmos privilégios das cidades de Itália e os seus habitantes tinham cidadania romana. Paulo chegou a Filipos pelo ano 49 ou 50, no decurso da sua segunda viagem missionária, acompanhado de Silvano, Timóteo e Lucas (cf. At 16,1-40). Da sua pregação nasceu a primeira comunidade cristã em solo europeu.

A comunidade cristã de Filipos era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2 Cor 8,1-5). Paulo nutria pelos cristãos de Filipos um afeto especial; e os filipenses, por seu turno, tinham Paulo em grande apreço. Apesar de tudo, a comunidade cristã de Filipos não era perfeita: os altivos patrícios romanos de Filipos tinham alguma dificuldade em assumir certos valores como o desprendimento, a humildade e a simplicidade.

Paulo escreve aos Filipenses numa altura em que estava na prisão (não sabemos se em Cesareia, em Roma, ou em Éfeso). Os filipenses tinham-lhe enviado, por um membro da comunidade chamado Epafrodito, uma certa quantia em dinheiro, a fim de que Paulo pudesse prover às suas necessidades. Na carta, Paulo agradece a preocupação dos filipenses com a sua pessoa (cf. Fl 4,10-20); exorta-os a manterem-se fiéis a Cristo e a incarnarem os valores que marcaram a vida de Cristo (“tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus” – Fl 2,5).

O texto que a liturgia do domingo de Ramos nos apresenta como segunda leitura é o texto mais notável da carta aos filipenses. Trata-se de um antigo hino, provavelmente pré-paulino, que era recitado nas celebrações litúrgicas cristãs (há quem fale, a propósito deste hino, na catequese primitiva de Simão Pedro, conservada na comunidade cristã de Antioquia da Síria). Lembra aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo, a sua humildade e despojamento.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Não há mesmo volta a dar: a lógica de Deus funciona em sentido contrário à nossa lógica humana. Quanto mais nos despojamos da nossa superioridade, quanto mais renunciamos à capa da importância, quanto mais gastamos a nossa vida a fazer o bem, quanto mais nos fazemos “servos” dos nossos irmãos, quanto mais amamos sem esperar nada em troca, mais subimos na “escala” de Deus. Deus disse-nos isto, com todas as letras, através do seu Filho Jesus. De forma inequívoca, de forma irrefutável, com uma linguagem que só não entende quem não quer. Porque é que, depois de dois mil anos a olhar para a cruz de Jesus, isto ainda não é claro para nós? O que mais tem Deus de fazer para nos mostrar o caminho que conduz à Vida verdadeira?
  • Estamos a chegar ao fim deste caminho quaresmal. Este caminho foi efetivamente, para nós, um caminho de conversão, de mudança, de nascimento para uma vida nova? Ao longo deste caminho em direção à Páscoa transformamos a arrogância em humildade, a atitude de superioridade em respeito pelo outro, o orgulho em simplicidade, a soberba em delicadeza?
  • Este hino constitui uma excelente chave de leitura para interpretar, sentir e viver, na “Semana Maior” em que estamos a entrar, os acontecimentos centrais da nossa fé. Ao “som” deste belíssimo hino podemos compreender o caminho de Jesus, o significado das suas opções, o sentido da sua vida, da sua paixão, morte e ressurreição. Iremos procurar, nesta semana, acompanhar os passos de Jesus? E, ao revivermos o seu amor e a sua entrega, renovaremos a nossa adesão a Ele e ao caminho que Ele propõe? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 14, 1 – 15,47

N   Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Ázimos
e os príncipes dos sacerdotes e os escribas
procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à traição
para Lhe darem a morte.
Mas diziam:

R  «Durante a festa, não,
para que não haja algum tumulto entre o povo».

N   Jesus encontrava-Se em Betânia,
em casa de Simão o Leproso,
e, estando à mesa,
veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro
com perfume de nardo puro de alto preço.
Partiu o vaso de alabastro
e derramou-o sobre a cabeça de Jesus.
Alguns indignaram-se e diziam entre si:

R   «Para que foi esse desperdício de perfume?
Podia vender-se por mais de duzentos denários
e dar o dinheiro aos pobres».

N   E censuravam a mulher com aspereza.
Mas Jesus disse:

J    «Deixai-a. Porque estais a importuná-la?
Ela fez uma boa ação para comigo.
Na verdade, sempre tereis os pobres convosco
e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes bem;
Mas a Mim, nem sempre Me tereis.
Ela fez o que estava ao seu alcance:
ungiu de antemão o meu corpo para a sepultura.
Em verdade vos digo:
Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro,
dir-se-á também em sua memória, o que ela fez».

N   Então, Judas Iscariotes, um dos Doze,
foi ter com os príncipes dos sacerdotes
para lhes entregar Jesus.
Quando o ouviram, alegraram-se
e prometeram dar-lhe dinheiro.
E ele procurava uma oportunidade para entregar Jesus.
No primeiro dia dos Ázimos,
em que se imolava o cordeiro pascal,
os discípulos perguntaram a Jesus:

R    «Onde queres que façamos os preparativos
para comer a Páscoa?»

N   Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes:

J     «Ide à cidade.
Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água.
Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa:
‘O Mestre pergunta: Onde está a sala,
em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?’
Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior,
alcatifada e pronta.
Preparai-nos lá o que é preciso».

N   Os discípulos partiram e foram à cidade.
Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito
e prepararam a Páscoa.
Ao cair da tarde, chegou Jesus com os Doze.
Enquanto estavam à mesa e comiam,
Jesus disse:

J     «Em verdade vos digo:
Um de vós, que está comigo à mesa, há de entregar-Me».

N   Eles começaram a entristecer-se e a dizer um após outro:

R    «Serei eu?»

N   Jesus respondeu-lhes:

J     «É um dos Doze, que mete comigo a mão no prato.
O Filho do homem vai partir,
como está escrito a seu respeito,
mas ai daquele por quem o Filho do homem vai ser traído!
Teria sido melhor para esse homem não ter nascido».

N   Enquanto comiam, Jesus tomou o pão,
recitou a bênção e partiu-o,
deu-o aos discípulos e disse:

J     «Tomai: isto é o meu Corpo».

N   Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho.
E todos beberam dele.
Disse Jesus:

J     «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança,
derramado pela multidão dos homens.
Em verdade vos digo:
Não voltarei a beber do fruto da videira,
até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus».

N   Cantaram os salmos e saíram para o Monte das Oliveiras.
Disse-lhes Jesus:

J     «Todos vós Me abandonareis, como está escrito:
‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’.
Mas depois de ressuscitar,
Irei à vossa frente para a Galileia».

N   Disse-Lhe Pedro:

R    «Embora todos te abandonem, eu não».

N   Jesus respondeu-lhe:

J     «Em verdade te digo:
Hoje, esta mesma noite, antes do galo cantar duas vezes,
três vezes Me negarás».

N   Mas Pedro continuava a insistir:

R    «Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei».

N   E todos afirmaram o mesmo.
Entretanto, chegaram a uma propriedade chamada Getsémani
e Jesus disse aos seus discípulos:

J     «Ficai aqui, enquanto Eu vou orar».

N   Tomou consigo Pedro, Tiago e João
e começou a sentir pavor e angústia.
Disse-lhes então:

J     «A minha alma está numa tristeza de morte.
Ficai aqui e vigiai».

N   Adiantando-Se um pouco, caiu por terra
e orou para que, se fosse possível,
se afastasse d’Ele aquela hora.
Jesus dizia:

J     «Abba, Pai, tudo Te é possível:
afasta de Mim este cálice.
Contudo, não se faça o que Eu quero,
mas o que Tu queres».

N   Depois, foi ter com os discípulos, encontrando-os dormindo
e disse a Pedro:

J     «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora?
Vigiai e orai, para não entrardes em tentação.
O espírito está pronto, mas a carne é fraca».

N   Afastou-Se de novo e orou, dizendo as mesmas palavras.
Voltou novamente e encontrou-os dormindo,
porque tinham os olhos pesados
e não sabiam que responder.
Jesus voltou pela terceira vez e disse-lhes:

J     «Dormi agora e descansai…
Chegou a hora:
o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores.
Levantai-vos. Vamos.
Já se aproxima aquele que Me vai entregar».

N   Ainda Jesus estava a falar,
quando apareceu Judas, um dos Doze,
e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus,
enviada pelos príncipes dos sacerdotes,
pelos escribas e os anciãos.
O traidor tinha-lhes dado este sinal:
«Aquele que eu beijar, é esse mesmo.
Prendei-O e levai-O bem seguro».
Logo que chegou, aproximou-se de Jesus e beijou-O, dizendo:

R    «Mestre».

N   Então deitaram-Lhe as mãos e prenderam-n’O.
Um dos presentes puxou da espada
e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha.
Jesus tomou a palavra e disse-lhes:

J     «Vós saístes com espadas e varapaus para Me prender,
como se fosse um salteador.
Todos os dias Eu estava no meio de vós,
a ensinar no templo,
e não Me prendestes!
Mas é para se cumprirem as Escrituras».

N   Então os discípulos deixaram-n’O e fugiram todos.
Seguiu-O um jovem, envolto apenas num lençol.
Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.

N   Levaram então Jesus à presença do sumo sacerdote,
onde se reuniram todos os príncipes dos sacerdotes,
os anciãos e os escribas.
Pedro, que O seguira de longe,
até ao interior do palácio do sumo sacerdote,
estava sentado com os guardas, a aquecer-se ao lume.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes e todo o Sinédrio
procuravam um testemunho contra Jesus
para Lhe dar a morte,
mas não o encontravam.
Muitos testemunhavam falsamente contra Ele,
mas os seus depoimentos não eram concordes.
Levantaram-se então alguns,
para proferir contra Ele este falso testemunho:

R    «Ouvimo-l’O dizer:
‘Destruirei este templo feito pelos homens
e em três dias construirei outro
que não será feito pelos homens’».

N   Mas nem assim o depoimento deles era concorde.
Então o sumo sacerdote levantou-se no meio de todos
e perguntou a Jesus:

R    «Não respondes nada ao que eles depõem contra Ti?»

N   Mas Jesus continuava calado e nada respondeu.
O sumo sacerdote voltou a interrogá-l’O:

R    «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?»

N   Jesus respondeu:

J     «Eu Sou. E vós vereis o Filho do homem
sentado à direita do Todo-poderoso
vir sobre as nuvens do céu».

N   O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse:

R    «Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Ouvistes a blasfémia. Que vos parece?»

N   Todos sentenciaram que Jesus era réu de morte.
Depois, alguns começaram a cuspir-Lhe,
a tapar-Lhe o rosto com um véu
e a dar-Lhe punhadas, dizendo:

R    «Adivinha».

N   E os guardas davam-Lhe bofetadas.

N   Pedro estava em baixo, no pátio,
quando chegou uma das criadas do sumo sacerdote.
Ao vê-lo a aquecer-se, olhou-o de frente e disse-lhe:

R    «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno».

N   Mas ele negou:

R    «Não sei nem entendo o que dizes».

N   Depois saiu para o vestíbulo e o galo cantou.

A    criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos presentes:

R    «Este é um deles».

N   Mas ele negou segunda vez.
Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro:

R    «Na verdade, tu és deles, pois também és galileu».

N   Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar:

R    «Não conheço esse homem de quem falais».

N   E logo o galo cantou pela segunda vez.
Então Pedro lembrou-se do que Jesus lhe tinha dito:
«Antes do galo cantar duas vezes,
três vezes Me negarás».
E desatou a chorar.

N   Logo de manhã,
os príncipes dos sacerdotes reuniram-se em conselho,
com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
Depois de terem manietado Jesus,
foram entregá-l’O a Pilatos.
Pilatos perguntou-Lhe:

R    «Tu és o Rei dos judeus?»

N   Jesus respondeu:

J     «É como dizes».

N   E os príncipes dos sacerdotes
faziam muitas acusações contra Ele.
Pilatos interrogou-O de novo:

R    «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam».

N   Mas Jesus nada respondeu,
de modo que Pilatos estava admirado.

N   Pela festa da Páscoa,
Pilatos costumava soltar-lhes um preso à sua escolha.
Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurretos,
que numa revolta tinham cometido um assassínio.
A multidão, subindo,
começou a pedir o que era costume conceder-lhes.
Pilatos respondeu:

R    «Quereis que vos solte o Rei dos judeus?»

N   Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes
O tinham entregado por inveja.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes incitaram a multidão
a pedir que lhes soltasse antes Barrabás.
Pilatos, tomando de novo a palavra, perguntou-lhes:

R    «Então, que hei de fazer d’Aquele
que chamais o Rei dos judeus?»

N   Eles gritaram de novo:

R    «Crucifica-O!».

N   Pilatos insistiu:

R    «Que mal fez Ele?»

N   Mas eles gritaram ainda mais:

R    «Crucifica-O!».

N   Então Pilatos, querendo contentar a multidão,
soltou-lhes Barrabás
e, depois de ter mandado açoitar Jesus,
entregou-O para ser crucificado.
Os soldados levaram-n’O para dentro do palácio,
que era o pretório,
e convocaram toda a coorte.
Revestiram-n’O com um mando de púrpura
e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos
que haviam tecido.
Depois começaram a saudá-l’O:

R    «Salvé, Rei dos judeus!»

N   Batiam-lhe na cabeça com uma cana, cuspiam-Lhe
e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele.
Depois de O terem escarnecido,
tiraram-Lhe o manto de púrpura
e vestiram-Lhe as suas roupas.
Em seguida levaram-n’O dali para O crucificarem.

N   Requisitaram, para Lhe levar a cruz,
um homem que passava, vindo do campo,
Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo.
E levaram Jesus ao lugar do Gólgota,
quer dizer, lugar do Calvário.
Queriam dar-Lhe vinho misturado com mirra,
mas Ele não o quis beber.
Depois crucificaram-n’O.
E repartiram entre si as suas vestes,
tirando-as à sorte, para verem o que levaria cada um.
Eram nove horas da manhã quando O crucificaram.
O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito:
«Rei dos Judeus».
Crucificaram com Ele dois salteadores,
um à direita e outro à esquerda.
Os que passavam insultavam-n’O
e abanavam a cabeça, dizendo:

R    «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias,
salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz».

N   Os príncipes dos sacerdotes e os escribas
troçavam uns com os outros, dizendo:

R    «Salvou os outros e não pode salvar-se a Si mesmo!
Esse Messias, o Rei de Israel, desça agora da cruz,
para nós vermos e acreditarmos».

N   Até os que estavam crucificados com ele o injuriavam.
Quando chegou o meio-dia,
as trevas envolveram toda a terra até às três horas da tarde.
E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte:

J     «Eloí, Eloí, lamá sabachtháni?»

N   que quer dizer:
«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?»

N   Alguns dos presentes, ouvindo isto, disseram:

R    «Está a chamar por Elias».

N   Alguém correu a embeber uma esponja em vinagre
e, pondo-a na ponta duma cana, deu-Lhe a beber e disse:

R    «Deixa ver se Elias vem tirá-l’O dali».

N   Então Jesus, soltando um grande brado, expirou.

N   O véu do templo rasgou-se em duas partes de alto a baixo.
O centurião que estava em frente de Jesus,
ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou:

R    «Na verdade, este homem era Filho de Deus».

N   Estavam também ali umas mulheres a observar de longe,
entre elas Maria Madalena,
Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé,
que acompanhavam e serviam Jesus,
quando estava na Galileia,
e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém.
Ao cair da tarde
– visto ser a Preparação, isto é, a véspera do sábado –
José de Arimateia, ilustre membro do Sinédrio,
que também esperava o reino de Deus,
foi corajosamente à presença de Pilatos
e pediu-lhe o corpo de Jesus.
Pilatos ficou admirado de Ele já estar morto
e, mandando chamar o centurião,
ordenou que o corpo fosse entregue e José.
José comprou um lençol,
desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol;
depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha
e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro.
Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José,
observavam onde Jesus tinha sido depositado.

CONTEXTO

Ao iniciarmos a Semana Santa, a Semana Maior, a liturgia convida-nos a escutar o impressionante relato da Paixão e Morte de Jesus. O relato, inegavelmente fundamentado em acontecimentos concretos, não é uma simples reportagem jornalística da condenação à morte de um inocente; mas é, sobretudo, uma catequese destinada a apresentar Jesus como o Filho de Deus que aceita cumprir o projeto do Pai, mesmo quando esse projeto passa por um destino de cruz. Marcos pretende que os crentes a quem a catequese se destina concluam, como o centurião romano que está junto da cruz e que vê como Jesus cumpriu o plano do Pai até à última gota de sangue: “na verdade, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Fica assim demonstrada a tese que Marcos, desde o início do Evangelho (cf. Mc 1,1), se propôs apresentar: Jesus, o Messias que anunciou o Reino de Deus e que os homens mataram na cruz, é o Filho de Deus.

Betânia (onde Jesus foi ungido com perfume por uma mulher e de onde saiu para se dirigir a Jerusalém), o Cenáculo (o edifício com “uma grande sala no andar de cima, mobilada e pronta”, onde Jesus fez com os discípulos aquela inolvidável ceia de despedida), o Getsémani (o nome significa “lagar de azeite” e designava o jardim cheio de oliveiras para onde Jesus, após a última ceia, se retirou para rezar, e onde foi preso pelos guardas do Templo), o palácio do sumo-sacerdote Caifás (onde Jesus foi julgado, condenado pelo Sinédrio e ficou preso o resto da noite antes de ser levado diante das autoridades romanas), o pretório romano da Torre Antónia (onde estava a guarnição romana que vigiava o Templo, onde Jesus, na manhã de sexta-feira, foi torturado e coroado de espinhos e onde o governador Pilatos confirmou a sua condenação à morte), as ruas da cidade de Jerusalém (por onde Jesus passou, carregando com a trave transversal da cruz, segundo o ritual próprio das crucifixões), o Gólgota o (“lugar do crânio”, a pequena colina, fora da cidade onde Jesus, por volta das 9 horas de sexta-feira, foi crucificado), e o túmulo novo (situado num jardim ao lado do Gólgota, onde o corpo morto de Jesus foi depositado antes do pôr do sol de sexta-feira) são os cenários onde se desenrola a ação que o Evangelho deste dia nos apresenta.

Em que data e em que contexto ocorreram os acontecimentos narrados no relato da paixão de Jesus? Todos os evangelistas concordam que Jesus celebrou uma ceia depois do pôr do sol de uma quinta-feira (quando, segundo o calendário religioso judaico já era sexta-feira) e que morreu na cruz por volta das três horas da tarde dessa sexta-feira. Para Marcos, Mateus e Lucas, contudo, essa sexta-feira era o dia da celebração da festa judaica da Páscoa. Assim, a última ceia de Jesus com os discípulos teria sido uma Ceia Pascal. João, no entanto, considera que a sexta-feira (dia em que Jesus morreu) não foi dia de Páscoa, mas sim o dia da preparação da Páscoa (o dia de Páscoa, nesse ano, começou na sexta-feira ao pôr do sol, quando Jesus já tinha morrido na cruz). Nesse caso, a última ceia de Jesus com os discípulos não teria sido uma Ceia Pascal, mas sim uma ceia de despedida. É difícil aceitar o calendário dos sinóticos, pois não parece provável que, em pleno dia de Páscoa, os judeus desenvolvessem o processo contra Jesus, o levassem pelas ruas de Jerusalém até ao Gólgota e o crucificassem. Sendo assim, Jesus teria sido crucificado na véspera da celebração da Páscoa judaica. Estaríamos, muito provavelmente, na primavera do ano 30. Jesus teria, então, 35-37 anos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Celebrar a paixão e a morte de Jesus é abismar-se na contemplação de um Deus a quem o amor tornou frágil… Por amor, Ele veio ao nosso encontro, assumiu os nossos limites e fragilidades, experimentou a fome, o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das tentações, experimentou a angústia e o pavor diante da morte; e, estendido no chão, esmagado contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a amar, até ao último suspiro, até à última gota de sangue. Esta é a mais espantosa história de amor que é possível contar; ela é a boa notícia que enche de alegria o coração dos crentes. É esse amor ilimitado e inacreditável que vemos quando olhamos para a cruz de Jesus? E o amor de Jesus, expresso na cruz, torna-se lição que nós acolhemos e que transformamos em gestos concretos de dom e de serviço aos que “viajam” connosco?
  • Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude que Ele assumiu e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de direitos e de dignidade. Olhar a cruz de Jesus significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor… Viver deste modo pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne os dinamismos da ressurreição. A contemplação da cruz de Jesus leva-nos ao compromisso com a transformação do mundo? A contemplação da cruz de Jesus faz com que nos sintamos solidários com todos os nossos irmãos que todos os dias são crucificados e injustiçados? A contemplação da cruz de Jesus dá-nos a coragem para lutarmos contra tudo aquilo que gera sofrimento e morte, mesmo que isso implique correr riscos, ser incompreendido e condenado?
  • Um dos elementos mais destacados no relato marciano da paixão é a forma como Jesus Se comporta ao longo de todo o processo que conduz à sua morte… Ele nunca Se descontrola, nunca recua, nunca resiste, mas mantém-Se sempre sereno e digno, enfrentando o seu destino de cruz. Tal não significa que Jesus seja um herói inconsciente a quem o sofrimento e a morte não assustam, ou que Ele Se coloque na pele de um fraco que desistiu de lutar e que aceita passivamente aquilo que os outros Lhe impõem… A atitude de Jesus é a atitude de quem sabe que o Pai Lhe confiou uma missão e está decidido a cumprir essa missão, custe o que custar. Temos a mesma disponibilidade de Jesus para escutar os desafios de Deus e a mesma determinação que Jesus tinha para concretizar esses desafios no mundo?
  • A “angústia” e o “pavor” de Jesus diante da morte tornam-n’O muito “humano”, muito próximo das nossas debilidades e fragilidades. Dessa forma, é mais fácil identificarmo-nos com Ele, confiar n’Ele, segui-l’O no seu caminho do amor e da entrega. A humanidade de Jesus mostra-nos, também, que o caminho da obediência ao Pai não é um caminho impossível, reservado a super-heróis ou a deuses, mas é um caminho de homens frágeis, chamados por Deus a percorrerem, com esforço, o caminho que conduz à vida definitiva. Quais são as fragilidades que sentimos e que são obstáculo no nosso seguimento de Jesus? Deixamos que as limitações – reais ou imaginárias – que sentimos sejam decisivas quando chega a hora de optarmos?
  • A solidão de Jesus diante do sofrimento e da morte anuncia já a solidão do discípulo que percorre o caminho da cruz. Quando o discípulo procura cumprir o projeto de Deus, recusa os valores do mundo, enfrenta as forças da opressão e da morte, recebe a indiferença e o desprezo do mundo e tem de percorrer o seu caminho na mais dramática solidão. O discípulo tem de saber, no entanto, que o caminho da cruz, apesar de difícil, doloroso e solitário, não é um caminho de fracasso e de morte, mas é um caminho de libertação e de vida plena. Estamos conscientes de que, quanto mais somos fiéis a Jesus e ao seu projeto, mais teremos de remar contra a corrente e de experimentar a solidão, o abandono e até a incompreensão dos que nos rodeiam? Estamos determinados, apesar disso, a seguir o caminho que Jesus nos aponta?
  • A figura do jovem que, no jardim das Oliveiras, deixou o lençol que o cobria nas mãos dos soldados e fugiu pode ser figura do discípulo que, amedrontado e desiludido, abandonou Jesus. Já alguma vez virámos as costas a Jesus e ao seu projeto, seduzidos por outras propostas? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação. Requer uma leitura pausada e atenta que exprima toda a densidade e intensidade dramática do texto. A última frase exige uma especial atenção para que se possa transmitir a confiança e esperança que o auxílio de Deus oferece.

A segunda leitura é um hino litúrgico e poético e apresenta duas partes distintas: uma primeira mais dramática e uma segunda mais jubilosa e marcada pela exaltação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ter presente todos estes elementos. A narrativa evangélica da Paixão do Senhor, na ausência de diáconos, pode ser lida por mais dois leitores, reservando a parte de Cristo ao sacerdote. Tendo em conta os diversos diálogos e a dimensão do texto, aqueles que participam na leitura devem fazer uma acurada preparação das diversas intervenções ao longo do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UM REI NOVO NOS NOSSOS CAMINHOS

Domingo de Ramos: Is 50,4-7, Sl 22; Fl 2,6-11; Mc 14,1-15,47

Batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lucas 12,49‑50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós, porque única Fonte da Vida Eterna verdadeiramente Dada (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). De facto, não se alcança através da nossa planificação. As coisas supremas não são planificáveis. Já estão prontas para receber. A missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, batizados na sua Morte (Romanos 6,3), e, com Ele, fomos  com‑sepultadoscom‑ressuscitadoscom‑vivificados e com‑sentados na G1ória! (Efésios 2,5‑6; Colossenses 2,12‑13: tudo ver­bos cunhados por Paulo e postos em aoristo histórico!). For­mamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Efésios 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Efésios 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portan­to, a esposa bela, a nova Jerusalém (Apocalipse 19,7‑9; 21,2.9-27) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Apocalipse 22,17).

O tom deste Domingo de Ramos é dado pela página preciosa de Marcos 11,1-10, que nos mostra o Rei messiânico a tomar posse da sua Cidade, a «Cidade do Grande Rei» (Salmo 45,5; 47,2-3; Tobias 13,11; Mateus 5,35), a Esposa bela que nascerá do seu Sangue: Esposa cúmplice da Morte do Esposo, e beneficiária da Morte do Esposo! Esposa, portanto, e no entanto! Que ao encontro do Esposo desce em vestido de noiva, não de viúva! (Apocalipse 21,2). O Rei messiânico toma posse da sua Cidade, a Filha de Sião, a Esposa; vem montado sobre o jumento da paz, e não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9. De notar que Zacarias escreveu esta página deslumbrante de um Rei diferente, pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente espetáculo do grande Alexandre Magno, porventura o maior imperador que algum dia o mundo conheceu, quando este, em finais do século IV a. C., descia a costa palestinense a caminho do Egito, com todo o seu arsenal de riqueza e de prepotência militar! Estendem-se as capas e ramos de árvores no caminho: assim se procedia quando era ungido o rei e como tal aclamado, como se pode ver no caso de Jeú (cf. 2 Reis 9,13). A multidão canta «Hossana» [= «Salva, por favor!»] (Salmo 118,5), saudando o Rei-que-Vem, «Aquele-que-Vem» (título divino) (Salmo 118,26), com o Reino de David, o novo David!

Dado o insólito da situação, não é possível não reparar que Jesus não entra em Jerusalém como Peregrino ou Mestre ou Taumaturgo. Mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias 9,9. Por isso, nesta última etapa do seu caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até à Cidade de Jerusalém, Jesus não vai a pé, como sempre andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando se tratava de atravessar o mar da Galileia. Agora, neste último troço da sua viagem, Jesus faz questão de o percorrer, não a pé, mas montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Marcos 11,2): o Rei é o primeiro em tudo! E toda a temática relativa ao jumento montado por Jesus torna-se tão evidente, que não pode passar despercebida a ninguém. Basta reparar na distribuição dos dez versículos desta passagem (Marcos 11,1-10): sete ocupam-se com a meticulosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta!

Ainda hoje, no domingo de Ramos, não obstante o ambiente abertamente hostil aos cristãos que se respira, se faz, desde Betfagé, uma pequena aldeia hoje totalmente muçulmana com um pequeno santuário à guarda dos Franciscanos, uma impressionante procissão e manifestação de fé que, descendo o Monte das Oliveiras, termina na Igreja de Santa Ana, junto da porta de Santo Estêvão (ou dos Leões).

O Evangelho que enche este Domingo de Ramos na Paixão do Senhor é o imenso e impressionante relato da Paixão de Marcos 14,1-15,47 (note-se que o texto soma 119 dos 677 versículos que contabiliza o inteiro Evangelho de Marcos), que marca o ritmo da «Semana Santa», que as Igrejas do Oriente chamam «Semana Grande», e que o antigo rito da Igreja de Milão conhecia por «Semana Autêntica». Somos nós, portanto, carregando os nossos ódios, raivas, mentiras, invejas e violências, seguindo a par e passo o Rei manso e obediente que a nós e por nós se entrega por amor, absorvendo, absolvendo e dissolvendo assim o nosso lado sombrio e pecaminoso. Momentos decisivos em que a Esposa bela, por graça tornada bela, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Marcos 14,3-9), a Ceia Primeira (e não última!) (Marcos 14,12-31), o abismo do Getsémani (Marcos 14,32-42), a prisão (Marcos 14,43-52): todos o abandonam (Marcos 14,50); Jesus fica sozinho, verdadeiro «Resto de Israel», os processos e a condenação (Jesus afirma‑se como «o Bendito», «o Filho de Deus», «o Messias», «o Rei»), a en­trega à morte de cruz por Pilatos (Marcos 15,15), mas, na verda­de, por Deus (1 Coríntios 11,23: paredídeto: passivo divino!), a coroa de espinhos, a Cruz santa e gloriosa, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais cruci­ficados: «salva‑te a ti mesmo», «desce da cruz» (Marcos 15,29‑32), a oração do Salmo 22 (todo): começa «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», e termina «esta é a obra do Senhor!», a ago­nia e a Morte precedida do grande grito (Marcos 15,33 e 37), que indica a Vitória de Deus, enfim, a sepultura. Proclamação da máxima Obra de Deus no mundo, a indizível Economia divina na vida terrena do Filho de Deus! A proclamação deve seguir‑se com a conversão do coração, e, sobretudo, com o louvor no coração.

Quem atravessa com extremosa atenção este imenso texto, há de por força reparar no silêncio prolongado de Jesus perante testemunhas e acusações falsas. Este silêncio aparece condensado e referido em dois momentos, que são também os únicos em que Jesus quebra o silêncio para responder a duas perguntas. Primeira anotação: «Levantando-se então o sumo-sacerdote no meio deles, interrogou Jesus, dizendo: “Nada respondes a estes que testemunham contra ti?”. Ele, porém, ficou calado, e nada respondeu. O sumo-sacerdote interrogou-o de novo: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito?”. Então Jesus disse: “Eu sou!”» (Marcos 14,60-62). Segunda anotação: «Pilatos interrogou-o: “Tu és o Rei dos judeus?”. Ele então respondeu e disse-lhe: “Tu o dizes!”. E acusavam-no os sumo-sacerdotes de muitas maneiras. Então Pilatos interrogou-o novamente e disse-lhe: “Não respondes nada? Vês de quantas coisas te acusam!”. Jesus, porém, nada mais respondeu» (Marcos 15,2-5). Vê-se bem que Jesus apenas quebra o silêncio por duas vezes, para responder a duas perguntas sobre a sua identidade.

Vendo bem, somos todos levados a percorrer e a reviver as últimas decisivas vinte e quatro horas de Jesus, sensivelmente desde as 15h00 de Quinta-Feira Santa até perto das 18h00 de Sexta-Feira Santa:

15h00 = Preparação da Ceia

                               18h00 = Ceia Primeira!

                               21h00 = Getsémani

                               24h00 = Prisão de Jesus

                               03h00 = Pedro nega e o galo canta

                               06h00 = Jesus diante de Pilatos

                               09h00 = Crucifixão de Jesus

                               12h00 = as trevas em vez da Luz!

                               15h00 = Morte de Jesus

                               18h00 = Sepultamento de Jesus

Note-se que, na cronologia dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), esta Quinta-Feira é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal logo após o pôr-do-sol (no calendário religioso hebraico já é Sexta-Feira, dado que o dia começa com o pôr-do-sol). Como se vê, esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os seus Discípulos uma Ceia Pascal. Também de acordo com esta cronologia, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em Sexta-Feira, Dia da Páscoa dos judeus, o que seria muito estranho! O Evangelho de S. João apresenta outra cronologia, hoje defendida pela maioria dos estudiosos, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em Quinta-Feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em Sexta-Feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que João coloca no Sábado, e não na Sexta-Feira. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende também esta cronologia joanina. De resto, as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinóticos: por isso, a nossa Eucaristia é com pão Ázimo, derivado do ritual da Ceia da Páscoa dos judeus. Por seu lado, as Igrejas do Oriente seguem a cronologia joanina, sendo a sua Eucaristia com pão comum, dado não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

O Antigo Testamento serve-nos hoje o chamado «terceiro canto do Servo» (Isaías 50,4-7). Gerado na dor de Israel como verdadeiro filho do milagre (Isaías 49,21), ergue-se esta singular figura de «Servo» (‘ebed), totalmente nas mãos de Deus, desde a sua predestinação desde o seio materno (Isaías 49,1 e 5), passando pela sua entrega à morte (Isaías 53,12), até à sua exaltação e glorificação (Isaías 52,13), de tal modo que Deus o pode chamar «meu Servo» (‘abdî). Na lição de hoje, o «Servo» é um Discípulo a quem Deus abre os ouvidos até ao coração, para ouvir bem a música de Deus, e poder levar uma palavra de consolo aos dela necessitados. «Tornando o seu rosto duro como uma pedra» (Isaías 50,7), apresenta-se como um Servo, não insensível e indiferente, mas decidido a levar até ao fim a missão que lhe é confiada. A mesma expressão será dita acerca de Jesus em Lucas 9,51, quando toma a decisão inabalável de se dirigir para Jerusalém. O Novo Testamento passa por aqui!

Em claro paralelismo com o «Servo», cantado por Isaías, aí está Jesus apresentado por Paulo aos Filipenses (2,6-11). Mas aqui, o «Servo» tem um Rosto e um Nome: Jesus recebeu, na sua Humanidade, o Nome divino (ver também Hebreus 1,1-4), Nome incomparável (Filipenses 2,9). Por isso, agora, todos os seres criados adoram o Nome-Jesus (Filipenses 2,10), e «toda a língua», isto é, todo o ser humano racional, professa: «Senhor é Jesus Cristo!». Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Filipenses 2,11). É quanto Deus operou na Cruz e semeou no nosso coração.

Voltamos à música do Salmo 22, uma oração que nasce na Paixão e termina na Páscoa! É belo tomarmos consciência de que Jesus nos pediu estas palavras emprestadas, para no-las devolver a transbordar de sentido. Já se sabe que aquele «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», que Jesus reza na Cruz, e que são as primeiras palavras do Salmo, implica, segundo a praxe judaica, a recitação do Salmo inteiro, que tem uma primeira parte de fortíssima lamentação (v. 2-22), passando logo para uma segunda parte que expressa consolação por ver Deus ao nosso lado, tão próximo de nós (v. 23-27), e terminando em verdadeira exultação (v. 28-32). O grande pregador francês Jacques Bossuet (1627-1704) declarava bem-aventurados aqueles que, recitando este Salmo, se encontram com Jesus, tão santamente tristes e tão divinamente felizes!

Senhor Jesus,
Senhor dos Passos
Serenos e seguros no caminho da vida e da Paixão,
Da ressurreição.
Senhor Jesus,
Senhor dos Passos
Sossegados e firmes,
Resolutos,
Até à porta do meu coração.
Senhor Jesus,
Senhor dos Passos,
Dos meus e dos teus,
Finalmente harmonizados,
Finalmente lado a lado:
Os meus, imprecisos, indecisos,
Atravessados pelo teu Perdão;
Os teus, sossegados e firmes,
Sincronizados pelo pulsar do meu coração.
Sim,
Eu sei que foi por mim que desceste a este chão
Pesado, íngreme, irregular,
De longilíneas lajes em que é fácil escorregar.
Mas os teus braços sempre abertos ajudam-me a levantar.
Senhor Jesus,
Deixa-me chegar um pouco mais junto de ti,
Chega-te tu também mais junto de mim.
Segura-me.
Dá-me a tua mão firme, nodosa e corajosa.
Agarro-me.
Sinto sulcos gravados nessa mão.
Sigo-os com o dedo devagar.
Percebo que são as letras do meu nome.
Foi então por mim que desceste a este chão.
O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
Senhora das Dores, Maria, minha Mãe,
Que seguiste até ao fim os passos do teu Filho,
Acompanha e protege os meus passos também.
Obrigado, Senhor Jesus,
Meu Senhor, meu Irmão e companheiro.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 (Is 50, 4-7)
  2. Leitura II do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 (Filip 2, 6-11)
  3. Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024

 

Viver a Palavra

A fama de Jesus estendia-se ao longe e ao largo e a notícia dos milagres, sinais e prodígios que realizava difundia-se por toda a região. Jesus não era mais um profeta que falava das coisas de Deus, mas na Sua pregação palavras e gestos, intimamente ligados entre si, falavam de Deus e irrompiam no tempo e na história revestidos de uma novidade que a todos desconcertava. Deste modo, não nos surpreende que as multidões acorram a Jesus e que de toda a parte surjam homens e mulheres que querem ver com os seus próprios olhos tudo quanto se diz deste Jesus de Nazaré.

O Evangelho que escutamos neste quinto Domingo da Quaresma apresenta «alguns gregos» que tendo vindo a Jerusalém se aproximam de Filipe para lhe fazer um pedido: «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Analisando o grego em que este texto foi escrito, encontramos o verbo ideîn (ver) que é muito mais que um ver físico e curioso, mas a procura da verdadeira identidade de Jesus. Estes homens não querem apenas ver Jesus, mas sobretudo ver quem é Jesus. Este conhecimento está para lá de uma visão exterior ou de uma análise comportamental, porque implica uma relação de intimidade que permite ir para lá do que vêem os olhos e do que ouvem os ouvidos, para entrar no conhecimento íntimo e pessoal Daquele que veio para revelar o rosto misericordioso do Pai.

É curioso o modo como o desejo daqueles gregos chega a Jesus: vão ter com Filipe, Filipe vai ter com André e os dois juntos vão ter com Jesus. É a dinâmica eclesial do encontro com Jesus Cristo. Os discípulos que seguem e acompanham Jesus são interpelados por aqueles que O procuram e estes, por sua vez, procuram que aconteça o verdadeiro encontro com Jesus. Filipe poderia fazer uma breve apresentação de Jesus, falar-lhes daquilo que o Mestre diz e faz, comunicando a mensagem que Ele veio trazer. Contudo, Filipe opera de modo diverso. Em primeiro lugar, não age sozinho, pois a resposta à pergunta e ao pedido «quem é Jesus?» não se responde isoladamente, cada um por si, mas em comunhão e comunidade. Filipe e André, que levam a Jesus os pedidos daqueles homens, são figura da Igreja, chamada a viver e a caminhar na unidade e na comunhão, levando a Jesus os pedidos e intenções da humanidade inteira e fazendo presente no tempo e na história o rosto misericordioso de Jesus Cristo que revela o amor e a ternura do Pai.

Jesus poderia limitar-se a uma apresentação sumária da sua biografia ou a um belo discurso sobre a sua missão. Contudo, Jesus escolhe fazer a revelação da Sua mais plena e verdadeira identidade: o grão de trigo lançado à terra e o crucificado elevado da terra que atrairá todos a si. Jesus não pretende um conhecimento fugaz que faz acumular conhecimentos e informações, mas uma relação íntima e pessoal que transforma a vida e ensina um novo modo de relação dos homens e mulheres entre si e deles todos juntos com Deus.

Tantos séculos depois continuamos a dizer como os gregos «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Queremos conhecer a Sua verdadeira identidade e entrar em relação com Ele. Conhecer alguém apenas por aquilo que dizem dela, ainda que possa ser um bom ponto de partida, é sempre insuficiente, pois conhecer implica relação, proximidade e encontro.

Encontramos a verdadeira identidade de Jesus numa vida feita grão de trigo lançada à terra que germina, cresce e dá fruto, pois a vida, quanto mais se dá, mais se recebe e quanto mais se entrega aos outros, mais se torna nossa e de Deus: a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. in Voz Portucalense

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O Evangelho proposto para este Domingo apresenta o desejo de alguns gregos de ver Jesus. São muitos os homens e mulheres e hoje que querem ver Jesus, ainda que o modo de expressar esse desejo se manifeste nas suas mais diversas formas. A Semana Santa e o Tríduo Pascal que vamos viver são um lugar privilegiado para o encontro com Jesus. Percorrer os passos de Jesus desde a Sua entrada triunfal em Jerusalém até à Sua paixão, morte e ressurreição permite ver Jesus que por amor oferece a sua vida para nossa salvação. Como agentes evangelizadores, somos chamados a convidar quantos querem e precisam ver Jesus a participar nas celebrações da Semana Santa. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jeremias 31, 31-34

Dias virão, diz o Senhor,
em que estabelecerei com a casa de Israel e com a casa de Judá
uma aliança nova.
Não será como a aliança que firmei com os seus pais,
no dia em que os tomei pela mão
para os tirar da terra do Egipto,
aliança que eles violaram,
embora Eu exercesse o meu domínio sobre eles, diz o Senhor.
Esta é a aliança que estabelecerei com a casa de Israel,
naqueles dias, diz o senhor:
Hei-de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma
e gravá-la-ei no seu coração.
Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo.
Não terão já de se instruir uns aos outros,
nem de dizer cada um a seu irmão:
«Aprendei a conhecer o Senhor».
Todos eles Me conhecerão,
desde o maior ao mais pequeno, diz o Senhor.
Porque vou perdoar os seus pecados
e não mais recordarei as suas faltas.

CONTEXTO

Jeremias exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C. até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o reino de Judá e, sobretudo, a cidade de Jerusalém.

A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei leva a cabo, a partir de 632 a.C., uma reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. Jeremias empenha-se nesta reforma. A sua mensagem, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à Aliança.

No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios. Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de Jeremias abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.). É um tempo de desgraça e de pecado para Judá. Nesta fase, o profeta aparece a criticar as injustiças sociais e a infidelidade religiosa (a aliança política que Joaquim faz, por esta altura, com os egípcios significa que Judá confia mais num exército estrangeiro do que em Javé). Convencido de que Judá ultrapassou todas as marcas, Jeremias anuncia a iminência de uma invasão babilónica que irá castigar os pecados do Povo. As previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado. Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Jeremias não está de acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Deus; mas nem o rei nem os notáveis prestam atenção à opinião do profeta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

É impossível dizer com segurança em qual destes períodos de atividade do profeta encaixa o texto que a primeira leitura deste domingo nos apresenta. Para alguns, tratar-se de um oráculo da primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias), dirigido aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio. Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e começa a refletir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Detenhamo-nos na palavra “Aliança”. Ela serviu aos teólogos de Israel para expressar o compromisso de Deus com o seu Povo, a sua decisão de descer ao encontro do seu Povo, de o acompanhar em cada passo da história e de lhe oferecer a Vida e a salvação. Esse Deus que faz “Aliança” com os homens é o Deus da comunhão e da relação, que olha para nós com amor, que nos convida a fazer parte da sua família e que nunca desiste de nós. É verdade: não andamos à deriva e sem rumo por caminhos sombrios, não somos criaturas sem valor perdidas num universo cujos contornos nos escapam, não somos seres “descartáveis” que podem ser deixados para trás e triturados pela história; somos criaturas que Deus conhece pessoalmente, por quem Deus se interessa infinitamente, que Deus acompanha e cuida com ternura de pai e de mãe. Que impacto tem esta “boa notícia” na nossa vida?
  • O profeta Jeremias revela que Deus, fiel ao seu amor e à sua decisão de nos levar ao encontro da Vida plena, se dispõe a gravar as suas propostas diretamente nos nossos corações. Ali, na raiz do nosso ser, as indicações de Deus tocarão os nossos sentimentos, as nossas decisões e as nossas ações, fazendo com que a nossa vida seja um reflexo da vida e dos valores de Deus. Conduzidos pelo Espírito de Deus age em nós, seremos dotados da capacidade de escolher o Bem, a Verdade, a Justiça, o Amor. Esta iniciativa de Deus refletirá, uma vez mais, o apreço que Ele tem por nós. Da nossa parte, estamos disponíveis para acolher o dom de Deus, para abraçar os seus desafios, para nos deixarmos transformar pelo seu Espírito? Estamos dispostos, neste tempo de Quaresma, a dar mais tempo ao encontro com Deus, ao diálogo com Deus, à escuta de Deus, ao acolhimento das suas propostas?
  • Essa Nova Aliança que Jeremias anunciou começa a concretizar-se em Jesus. Com a sua vida, com os seus gestos, com as suas palavras, com o seu amor, Ele veio inscrever nos nossos corações as propostas de Deus; e deixou-nos o seu Espírito, aquele “alento de Vida” que nos transforma, que nos renova e que nos capacita para viver segundo Deus. Somos verdadeiramente discípulos que seguem Jesus, que se deixam tocar pela sua Palavra e que aceitam o seu convite para integrar a comunidade da Nova Aliança? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 50 (51)

Refrão: Dai-me, Senhor, um coração puro.

Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade,
pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados.
Lavai-me de toda a iniquidade
e purificai-me de todas as faltas.

Criai em mim, ó Deus, um coração puro
e fazei nascer dentro de mim um espírito firme.
Não queirais repelir-me da vossa presença
e não retireis de mim o vosso espírito de santidade.

Dai-me de novo a alegria da vossa salvação
e sustentai-me com espírito generoso.
Ensinarei aos pecadores os vossos caminhos
e os transviados hão-de voltar para Vós.

LEITURA II – Hebreus 5, 7-9

Nos dias da sua vida mortal,
Cristo dirigiu preces e súplicas,
com grandes clamores e lágrimas,
Àquele que O podia livrar da morte
e foi atendido por causa da sua piedade.
Apesar de ser Filho,
aprendeu a obediência no sofrimento
e, tendo atingido a sua plenitude,
tornou-Se para todos os que Lhe obedecem
causa de salvação eterna.

CONTEXTO

A Carta aos Hebreus é um escrito (alguns preferem dizer “um sermão”) de autor anónimo e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus” provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um património comum, assumido por todos os cristãos, quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo. Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… São, também, cristãos que facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o fervor inicial e que cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para isso, ele expõe o mistério de Cristo (apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança) e recorda a fé tradicional da Igreja.

O texto que nos é hoje proposto como segunda leitura deste quinto domingo da Quaresma é parte de uma longa reflexão (cf. Heb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a perícope de Heb 5,1-10 desenvolve o tema do sacerdócio de Cristo por comparação com o sumo-sacerdote do Antigo Testamento, apresentando uma série de aspetos semelhantes e opostos. Começa por apontar três aspetos que definem a missão do sumo-sacerdote: o sumo-sacerdote é um homem que, pela sua fragilidade, é capaz de entender as fragilidades (pecado) dos seus irmãos (vers. 2); o sumo-sacerdote tem como missão oferecer sacrifícios a Deus, a fim de refazer a comunhão entre Deus e o homem (vers. 3); o sumo-sacerdote desempenha esta missão por escolha de Deus, tal como aconteceu com o sacerdote Aarão (vers. 4).

Ora, estes três elementos também estão bem patentes no sumo-sacerdócio de Cristo.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus desceu até nós, “vestiu” a nossa humanidade, conheceu as nossas fragilidades, partilhou as nossas dores, medos e incertezas, experimentou as dificuldades do caminho que temos de fazer todos os dias. Tornou-se, verdadeiramente, nosso irmão. Pôde, assim, compreender as fraquezas dos homens e propor-lhes uma forma de as superar. Com a sua própria vida, com a sua entrega completa nas mãos do Pai, com o seu testemunho de uma vida dada por amor até ao extremo, Ele mostrou-nos como derrotar tudo aquilo que nos impede de aceder à Vida plena, à Vida verdadeira. Dispomo-nos a seguir Jesus nesse caminho, sem hesitações nem desculpas, confiando completamente n’Ele?
  • A oração, o diálogo com o Pai, é uma dimensão sempre presente na vida de Jesus. Os Evangelhos contam que, após jornadas intensas de anúncio do Reino, Ele retirava-se para lugares isolados para falar com o Pai. Era nesse diálogo que Ele discernia a vontade de Deus e encontrava a força para concretizar os planos do Pai. Foi também no diálogo sempre renovado com o Pai que Ele aprendeu a fazer de toda a sua vida um dom, uma entrega ao Pai e aos homens. Na nossa vida, temos espaço para dialogar com o Pai, para perceber os seus projetos para nós e para o mundo, para escutar os desafios que Deus nos faz? A nossa vida cumpre-se na indiferença para com Deus e para com os seus projetos, ou numa procura sincera e empenhada da vontade de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 12, 20-33

Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
Veio então uma voz do céu que dizia:
«Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O».
A multidão que estava presente e ouvira
dizia ter sido um trovão.
Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou».
Disse Jesus:
«Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir;
foi por vossa causa.
Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado.
Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo.
E quando Eu for elevado da terra,
atrairei todos a Mim».
Falava deste modo,
para indicar de que morte ia morrer.

CONTEXTO

O evangelho que a liturgia do 5.º Domingo da Quaresma nos propõe situa-nos em Jerusalém, talvez no próprio dia da entrada solene de Jesus na cidade santa (cf. Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de entronização e aclamando-o como aquele “que vem em nome do Senhor, o rei de Israel” (Jo 12,12-13). No entanto, no horizonte próximo paira a sombra da cruz: aproxima-se a “hora” há muito anunciada e esperada (cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20), a “hora” do dom da vida até ao extremo, a “hora” da passagem deste mundo para o Pai, a “hora” da glorificação de Jesus.

O evangelista João coloca em cena “alguns gregos” que “tinham subido a Jerusalém para adorar” e que queriam ver Jesus. “Gregos” significa, provavelmente, “não judeus”. Podem ser prosélitos (estrangeiros convertidos ao judaísmo) ou simples simpatizantes do judaísmo. Esses “gregos” dirigem-se a Filipe. Filipe, por sua vez, vai apresentar a questão a André. Os dois tinham nomes gregos e os dois eram naturais de Betsaida (que significa “casa da pesca”), uma povoação situada na tetrarquia de Herodes Filipe, já fora do território judeu propriamente dito, a nordeste do Mar da Galileia. Filipe e André decidem levar a Jesus a pretensão dos “gregos”. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A primeira leitura deste domingo dá conta da preocupação de Deus em oferecer aos homens uma nova Aliança, capaz de fazer nascer um Homem Novo. Como é que chegamos a essa realidade do Homem Novo, de coração transformado, isto é, com um coração que sente, que decide e que age segundo os esquemas e a lógica de Deus? O Evangelho responde: é olhando para Jesus, identificando-nos com Ele, aprendendo com Ele a pôr a nossa vida ao serviço do projeto de Deus, seguindo-O no caminho da cruz. Jesus é o modelo, a referência, o exemplo para quem quer aceitar o desafio de Deus e viver na comunidade da nova Aliança. Estamos verdadeiramente decididos a conhecer Jesus, a abraçar as suas propostas, a caminhar atrás d’Ele, como discípulos, no caminho do amor, do serviço, do dom da vida?
  • O caminho que Jesus nos aponta – o caminho da obediência a Deus, do amor até ao extremo, da entrega total da própria vida ao serviço de Deus e dos irmãos – parece, em pleno séc. XXI, um caminho pouco atraente, pouco lógico, pouco moderno, desligado da realidade do mundo, que nos coloca à margem dos valores e realizações que marcam a história do nosso tempo. Sentimo-nos com coragem para remar contra a maré e para dar testemunho – com as nossas palavras, com os nossos gestos, com a nossa vida – do caminho de Jesus? Somos capazes de afirmar, mesmo que nos ridicularizem, persigam e condenem, a nossa profunda convicção de que a proposta de Jesus faz sentido e pode fazer nascer um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais são, mais feliz?
  • Jesus rejeita absolutamente o caminho da autossuficiência, do fechamento em si próprio, do egoísmo estéril, dos valores efémeros. Ele sabe bem que, na lógica de Deus, esse caminho é um caminho que produz vidas vazias e sem sentido, sofrimento e frustração, desilusão e desânimo. Quem vive exclusivamente para si próprio, quem se preocupa apenas em defender os seus interesses e perspetivas, quem se apega excessivamente a uma realização pessoal cumprida em circuitos fechados, “compra” uma existência infecunda e que não vale a pena ser vivida. Perde a oportunidade de chegar ao Homem Novo, à realização plena, à vida verdadeira, à ressurreição, à salvação. Nesta “janela de conversão” que é o tempo quaresmal, que temos de mudar na nossa vida, nos nossos valores, nos nossos comportamentos, na nossa história, para estarmos plenamente alinhados com as propostas de Jesus?
  • Filipe e André, homens nascidos na “casa da pesca” e chamados por Jesus a serem “pescadores de homens”, servem de intermediários entre Jesus e os “gregos” que o querem conhecer. É através da comunidade dos discípulos que os homens “veem Jesus”, descobrem o seu projeto, encontram esse caminho de amor e de doação que conduz à vida nova do Homem Novo, à salvação. Isto recorda-nos a nossa responsabilidade de testemunhas de Jesus e da sua salvação no meio dos homens do nosso tempo… Aqueles irmãos que se cruzam connosco nos caminhos da vida descobrem no nosso testemunho o rosto de Jesus? Todos aqueles que vêm ao encontro de Jesus à procura da vida plena encontram na forma como nos doamos, como servimos e como amamos a proposta libertadora que, através de nós, Jesus quer passar a todos os homens? Somos realmente a ponte entre Jesus e aqueles que O querem “conhecer”? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação, contudo, deve ler-se com um tom alegre e feliz como quem anuncia uma bela e boa notícia.

A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a sua preparação. Apesar de breve, apresenta dois parágrafos com diversas orações, pelo que é essencial uma preparação das pausas e respirações do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O MUNDO VEIO ATRÁS DELE!

Domingo V da Quaresma: Jeremias 31,31-34; Salmo 51; Hebreus 5,7-9; João 12,20-33

A «caminhada» quaresmal aproxima‑se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa, onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus por nós. Nesta altura do percurso (supõe‑se que encetámos uma subida «espiritual»: entenda‑se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa Luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo para nós (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escru­tínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Batismal.

O Evangelho deste Domingo V da Quaresma (João 12,20-33) apresenta-nos o último discurso e a última aparição de Jesus em público, aos olhos da «multi­dão» (João 12,29 e 34), antes da narrativa da Ceia e da Paixão. Pouco depois, o evangelista diz‑nos que «Jesus se retirou e se escondeu deles» (João 12,36). A nós, porém, foi‑nos dado conhecer o Mistério deste escondimento, que o não é senão para se vir a manifestar (leia­‑se de novo inteligentemente o lógion de Jesus no Evange­lho de Marcos: «nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,22), e que esclarece o Mistério da Luz-que-vem (!), que é Ele, no versículo anterior). Em boa verdade, este Jesus que agora se esconde da multidão manifestar-se-á definitivamente, aos olhos de todos (também aos nossos!), na Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a esta geração (Mateus 12,39‑40; 1 Coríntios 1,20‑24): «olharão para aquele que trespassaram» (João 19,37).

É neste contexto que «uns gregos» (João 12,20) querem ver (ideîn) Jesus (João 12,21). São gregos de nascimento (hellênes), mas já não são pagãos. São «prosélitos» ou «tementes a Deus», que receberam o dom do «temor de Deus» (cf. At 10,2.22.35; 13,16.26), e se converteram dos ídolos ao Deus único, aderindo ao monoteísmo de Israel e à prática dos mandamentos. Tão-pouco são os chamados «helenistas» (hellênistai), hebreus na diáspora, que falavam a língua grega e tinham aderido à cultura grega. Note-se, desde já, o verdadeiro alcance deste desejo de ver, formulado com o verbo ideîn. De ideîn deriva, em português, ideia e identidade. A formulação deste ver com o verbo ideîn implica, portanto, que aqueles gregos não são movidos por mera curiosidade, não pretendem ver apenas Jesus por fora, isto é, ver o aspeto ou o rosto de Jesus. Eles pretendem ver a identidade de Jesus, ou seja, pretendem ver quem é Jesus. Ora, ver quem é Jesus não se resolve em cinco minutos, num simples relance de olhos. Implica uma longa e intensa convivência com Jesus.

Comunicam este seu desejo a Filipe, o qual, por sua vez, o comunica a André. Filipe e André são conterrâneos, naturais de Betsaida Julia (João 1,44), situada nos confins da Galileia e no limiar do mundo helénico, e são os dois únicos Apóstolos com nome claramente grego. Contam-se também entre os primeiros discípulos que, querendo saber quem era Jesus, se dirigiram a Ele, e que logo comunicaram a sua experiência a outros, e os conduziram a Jesus (cf. João 1,35-46). Pelos vistos, não se cansaram nem esqueceram esse jeito de fazer, e é assim que os vemos no episódio de hoje a desempenhar com diligência o seu papel de fazer de ponte entre a humanidade e Jesus. Os dois levam a mensagem a Je­sus (João 12,22). E Jesus marca a hora da entrevista: desde agora e pa­ra sempre. É este o sentido do a hora veio (João 12,23). Veio (elêluthen: perf2 de érchomai) e fica para sempre: assim o indica o perfeito usado no texto grego. Esta hora que veio é a hora da morte, ressurreição, glorificação (um único acontecimento), é a hora da Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a «judeus» e a «gregos», portanto, a todos. A entrevista começou e não termina mais, pois o futuro anunciado do discípulo é o presente do Mestre, a Glória celestial em que está: «onde eu estou (eimí), aí estará (éstai) também o meu servo» (João 12,26).

Para o leitor atento do IV Evangelho, esta hora (hôra) de Jesus de há muito era esperada, dado que, em episódios sucessivos, Jesus e o narrador vão orientando para ela o olhar dos seus discípulos. Acontece logo nas bodas de Caná, quando Jesus diz: «ainda não chegou a minha hora» (João 2,4). E, em Jerusalém, no decurso da Festa das Tendas, o narrador informa-nos por duas vezes que os judeus bem queriam prendê-lo, mas não o fazem «porque ainda não tinha chegado a sua hora» (João 7,30; 8,20). Sempre durante a Festa das Tendas, o próprio Jesus enche esta hora com conteúdo novo e significativo, quando diz: «O meu tempo (kairós) ainda não chegou» (João 7,6). Kairós não é o mero tempo cronológico, mas o tempo grávido da Palavra de Deus, verdadeira enchente da Palavra de Deus a que temos de responder, e não podemos não responder, dado que a Palavra de Deus se apodera de nós até transbordar. Sem Deus e a sua Palavra primeira e criadora, que está antes das coisas e do homem, antes de nós, que faz acontecer as coisas e o homem, não há kairós nem chrónosChrónos é o segmento de tempo que nos é dado viver. Kairós é este segmento de tempo com relevo, o tempo grávido de amor novo e pleno, que exige a nossa resposta.

Aí está a inaudita história nova do grão de trigo: «Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz (phérô) muito fruto» (João 12,24). É fácil ver neste único grão de trigo, e neste grão de trigo único, e na sua história de produção nova e incalculável, o próprio Jesus. Sim, esta é a sua história, mas vê-se também, olhando em contraluz o grão de trigo e o seu percurso, a inteira história humana, em que do abaixamento, do sangue inocente, da humildade e da humilhação, brota sempre vida nova. Paradoxal: a morte a produzir fruto abundante! A morte a produzir a vida! O v. 25, logo a seguir, esclarece e amplia este paradoxo, com Jesus a dizer bem alto: «quem se agarra à sua vida, perde-a». Portanto, é forçoso que o discípulo de Jesus olhe para o chão, e aprenda a lição do grão de trigo semeado. Mas é igualmente necessário, e em simultâneo, olhar para o céu, para o alto, para o cume, para a Cruz, para poder ser, por graça, arrastado por Jesus (v. 32). Só assim se pode perceber e receber a vida eterna (zôê aiônios, e não bíos) (v. 25), a vida divina. Fora deste paradigma, nada. Apenas agarrar-se a esta vida (bíos) e «receber glória uns dos outros» (João 5,44).

Aquele «veio a hora» enche o tempo, leva-o e eleva-o à sua plenitude, e vê-se toda a latitude aberta diante dos nossos olhos atónitos. É a hora da Cruz Gloriosa, avenida para sempre aberta entre Deus e o nosso mundo. Graça a transbordar. Tempo novo. É importante acentuar que são «uns gregos», também os gregos, que querem ver Jesus (João 12,20-21). Cenário grandioso, muito para além do imaginado, mas que mostra bem a largueza da ambiência desta hora e da audiência que segue Jesus para escutar esta cena altíssima da Revelação de Jesus acerca da chegada da sua hora, que é a Cruz Gloriosa. Jesus terminará a suprema Revelação desta hora, dizendo: «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkôtodos a mim» (João 12,32). E os próprios fariseus tinham confessado imediatamente antes do início do nosso texto: «O mundo (ho kósmos) veio atrás dele (opísô autoû)!» (João 12,19).

Para fazer acorde musical com o imenso texto do Evangelho de hoje, aí está a escolha perfeita: a «aliança nova» de Jeremias 31,31-34. É a aliança nova prometida para os últimos tempos, e realizada neste Jesus que Deus ressus­citou, o qual «recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou» (Atos 2,32‑33). Este Jesus é, portanto, a úni­ca Fonte do Espírito Santo para nós, a Vida nova de Deus derramada nos nossos corações (Romanos 2,29; 5,5; 7,6; 8,14‑27; 2 Coríntios 3,6; Gálatas 3,14; 4,6; Efésios 1,13…), com o dom do Jubileu divino do perdão dos pe­cados (João 20,19‑23). Deus «peca» sempre por excesso: é anu­lada até a «memória divina dos pecados»! Deus tinha antes escrito no nosso coração os nossos pecados (Jeremias 17,1). Eis que apaga agora essa escrita, para escrever no nosso coração o perdão, não apenas repetido ou indefinido, mas infinito, sem causa nem motivo nem suporte, que é a chave que abre todas as avenidas do humano coração (Jeremias 31,33-34).

Outra música igualmente intensa vem hoje da Carta aos Hebreus 5,7-9, para ajudar a compor a linha melódica que Deus toca diante de nós e dentro de nós, nas cordas mais sensíveis do nosso coração. É um dos passos mais densos do Novo Testamento. O próprio Cristo, sendo embora o Filho de Deus, Deus Ele mes­mo, enquanto Homem verdadeiro, treme perante a Morte. Porém, no momento central da sua vida (central para ele e para nós), ele aceita a morte, submetendo a sua vontade humana à sua – e do Pai e do Espírito Santo – Vontade divina (conferir a Oração do Getsémani e do «Pai Nosso»). On­de toda a Humanidade, desde Adam, fracassou, ele venceu, ofe­recendo a Deus incondicionalmente a sua liberdade e a nós a graça do amor e do perdão. Por isso, o Pai pode levá‑lo à perfeição, verbo teleióô, que não in­dica perfeição moral (!), mas «ser feito sacerdote, perfei­to no serviço sacerdotal», por nossa causa. Perante tanta e quase insuportável riqueza, não nos resta senão cair de joe­lhos e adorar em silêncio «no Espírito e na Verdade».

Cantamos hoje o Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear a música que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Enxerto aqui as palavras preciosas que constituem a introdução: «Faz-me graça, ó Deus, segundo o Teu amor! Segundo a multidão das Tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões! Lava-me e relava-me da minha iniquidade, e do meu pecado purifica-me!» (Salmo 51,3-4). Quem é Deus? Graça, amor, misericórdias. Quem sou eu? Transgressões, iniquidade, pecado. Quem sairá vencedor desta luta: serei eu ou será Deus? Claro que é Deus. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, de seu nome: «Um homem disse a Rabiʽa: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabiʽa: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar”» (I detti di Rabiʽa, XII, 2).

Ainda agora abri a página em branco do deve-e-haver
Desta última etapa da Quaresma.
Não sei ainda os registos que nela se farão,
Mas já sei que, ao terminar o dia,
A página agora aberta transbordará de perdão e de alegria.
 

É essa a lição que se recebe do grande Salmo deste dia:
«Faz-me graça, ó Deus, segundo o teu amor,
Segundo a multidão das tuas misericórdias!
Apaga as minhas transgressões,
Lava-me e relava-me da minha iniquidade,
E do meu pecado purifica-me!».
 

Graça, amor, misericórdias:
É a tua bondade aqui três vezes dita.
Transgressõesiniquidadepecado:
É a minha maldade aqui também três vezes repetida.
 

Tu e eu sempre frente-a-frente,
Sempre lado-a-lado:
Teu é o amor, meu é o pecado.
Mas vê-se bem que esta luta tem um vencedor antecipado:
Sim, o teu amor acaba sempre por vencer o meu pecado!
 

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 (Jer 31, 31-34)
  2. Leitura II do Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 (Heb 5, 7-9)
  3. Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024

 IV Domingo da Quaresma designado como Domingo Laetare (Domingo da Alegria)

 

Viver a Palavra

Continuamos a contar os 40 dias da Quaresma desde a Quarta-Feira de Cinzas até à Páscoa. Mas ao Domingo não é Quaresma. É Páscoa.

«O que é a Quaresma?». Esta é uma pergunta frequente que os catequistas gostam de dirigir aos seus catequizandos. Com a exceção de um ou outro comentário mais destabilizador afirmando ser um conhecido jogador de futebol, a resposta das crianças, adolescentes ou jovens é unânime: «a Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa». Na verdade, a Quaresma é o tempo que nos conduz à celebração da Páscoa da Ressurreição e, por isso, tempo de preparação para a celebração da mais importante solenidade do calendário litúrgico. Contudo, é tempo de preparação para a verdadeira Páscoa, aquela que nos liberta do pecado e da morte e nos faz entrar na vida nova e ressuscitada que Jesus nos oferece.

Deste modo, a Quaresma é tempo de conversão e penitência e abre o nosso coração para a alegria nova da renovação de vida e transformação do coração. A Quaresma é o tempo feliz de experimentar o amor superabundante de Deus que envia o Seu Filho não para condenar o mundo, mas para o redimir, salvar e levar à sua plena realização.

Muitas vezes a Quaresma parece um «puxar a fita atrás» e percorrer o caminho da condenação, paixão e crucifixão de Jesus até à ressurreição. Contudo, a Quaresma não é um recuar no tempo para reviver o sofrimento e entrega de Jesus. A Quaresma que atravessamos para chegar à celebração da Páscoa faz-se sempre depois da Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele ressuscitou e está vivo e, por isso, vivemos a Quaresma como tempo alegre e feliz da presença do Ressuscitado que nos convida à conversão.

Neste itinerário de penitência e renovação de vida, emerge o IV Domingo da Quaresma, Domingo Laetare, que sublinha a alegria que a conversão oferece à vida e com as palavras de Isaías cantamos na antífona de entrada: «Alegra-te, Jerusalém; rejubilai, todos os seus amigos. Exultai de alegria, todos vós que participastes no seu luto e podereis beber e saciar-vos na abundância das suas consolações».

A Liturgia da Palavra deste Domingo sublinha a estreita relação entre alegria e amor, recordando que a verdadeira alegria nasce da certeza de que Deus nos ama e nos chama a participar da Sua vida divina entrando neste dinamismo de amor. Como recorda o Segundo Livro das Crónicas, Deus envia sem cessar os Seus mensageiros para recordar o amor de Deus que converte e quer salvar o homem e a mulher do seu mau caminho. Este amor revelado de modo pleno e definitivo em Jesus Cristo, como nos recorda S. Paulo, «restituiu-nos à vida com Cristo».

Nas noites escuras da nossa existência, onde o medo e a vergonha tantas vezes nos invadem como aconteceu com Nicodemos, podemos sentir a voz de Jesus que dissipa o medo e afasta o temor: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». O mundo e a criação, cada homem e cada mulher são desmedidamente amados por Deus, ao ponto de Ele lhe enviar o Seu único Filho para o redimir e salvar.

Esta graça que Deus nos concede, fazendo de cada um de nós filhos muito amados de Deus, desafia-nos a entrar neste dinamismo de amor, fazendo de cada um de nós verdadeiros instrumentos e sinais de que o mundo não é para ser julgado e condenado, mas amado, salvo e redimido e, por isso, como afirmou o Padre Virginio Rotondi: «o mundo amado apaixonadamente por Deus não pode deixar de ser amado por nós». in Voz Portucalense (adaptado)

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O IV Domingo da Quaresma é designado como Domingo Laetare (Domingo da Alegria). Esta designação é retirada da primeira palavra da antífona de entrada da missa: «Laetare, Ierusalem, et conventum facite omnes qui diligites eam». (Alegra-te Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais). Este Domingo deve recordar os fiéis que o tempo da Quaresma é «tempo de cantar a alegria do perdão» (Ir. Roger). Deste modo, a celebração eucarística deste Domingo é a oportunidade de uma reflexão sobre a alegria cristã e que está tão ligada ao magistério do Papa Francisco (Evangelii GaudiumAmoris LaetitiaGaudete et Exsultate), onde podemos encontrar belíssimos textos e contributos sobre a alegria do Evangelho, a alegria do amor que se vive na família ou a alegria de percorrer a estrada da santidade. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 2 Crónicas 36,14-16.19-23

Naqueles dias,
todos os príncipes dos sacerdotes e o povo
multiplicaram as suas infidelidades,
imitando os costumes abomináveis das nações pagãs,
e profanaram o templo
que o Senhor tinha consagrado para Si em Jerusalém.
O Senhor, Deus de seus pais,
desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros,
pois queria poupar o povo e a sua própria morada.
Mas eles escarneciam dos mensageiros de Deus,
desprezavam as suas palavras e riam-se dos profetas,
a tal ponto que deixou de haver remédio,
perante a indignação do Senhor contra o seu povo.
Os caldeus incendiaram o templo de Deus,
demoliram as muralhas de Jerusalém.
Lançaram fogo aos seus palácios
e destruíram todos os objetos preciosos.
O rei dos caldeus deportou para Babilónia
todos os que tinham escapado ao fio da espada;
e foram escravos deles e de seus filhos,
até que se estabeleceu o reino dos persas.
Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pela boca de Jeremias:
«Enquanto o país não descontou os seus sábados,
esteve num sábado contínuo,
durante todo o tempo da sua desolação,
até que se completaram setenta anos».
No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia,
para se cumprir a palavra do Senhor,
pronunciada pela boca de Jeremias,
o Senhor inspirou Ciro, rei da Pérsia,
que mandou publicar, em todo o seu reino,
de viva voz e por escrito,
a seguinte proclamação:
«Assim fala Ciro, rei da Pérsia:
O Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da terra
e Ele próprio me confiou o encargo
de Lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá.
Quem de entre vós fizer parte do seu povo ponha-se a caminho
e que Deus esteja com ele».

CONTEXTO

O Livro das Crónicas (dividido em duas partes) é uma obra de um autor anónimo, que se propõe contar a história de Israel, desde a criação do mundo, até à época do Exílio. O livro faz parte de um bloco com alguma unidade (em conjunto com os livros de Esdras e de Neemias) que se costuma designar como “Obra do Cronista”.

O autor privilegia, na sua obra, a história do reino do Sul (Judá), dando um especial destaque ao rei David e seus descendentes. Também dá algum relevo à tribo de Levi, pelo facto de esta tribo estar ligada às questões de âmbito litúrgico. Em contrapartida, ignora deliberadamente a história do reino do Norte (Israel).

Os estudiosos não estão de acordo no que diz respeito à datação da obra do Cronista. No entanto, muitos falam de um processo de redação em várias etapas: por volta de 515 a.C. teria aparecido uma primeira edição da obra, com a finalidade de legitimar o culto no “segundo Templo” (isto é, no Templo reconstruído pelos judeus regressados do Exílio na Babilónia); entre 400 e 375 a.C., teria aparecido uma segunda edição, destinada a sublinhar a autoridade de Esdras como legislador e intérprete da Tora; entre 350 e 300 a.C., teria aparecido uma terceira edição, destinada a animar e a fortalecer e a consolidar a comunidade judaica frente à hostilidade dos vizinhos, particularmente dos samaritanos. O objetivo fundamental do autor parece ser o de propor a fidelidade a Deus e à Aliança. Essa fidelidade deve manifestar-se, segundo o Cronista, no cumprimento da Lei e no ritual do culto do Templo de Jerusalém.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste quarto domingo da Quaresma aparece na parte final do segundo volume do Livro das Crónicas. Neste texto, o Cronista refere dois factos históricos separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor (586 a.C.) e a autorização dada pelo rei persa Ciro para o regresso dos exilados a Jerusalém, após a queda da Babilónia (538 a.C.). Pelo meio, o Povo de Deus conheceu a dramática experiência do Exílio na Babilónia.

Contudo, o autor está muito mais interessado em dar-nos uma interpretação teológica dos factos do que em oferecer-nos uma descrição pormenorizada dos acontecimentos históricos. Não é um historiador ou um analista político a falar, mas sim um crente preocupado em ler a história à luz da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Embora usando elementos teológicos e formas de expressão típicas da sua época, o Cronista recorda-nos algo que é indesmentível: quando a pessoa prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de autossuficiência, está a construir um futuro sem horizontes e sem esperança. Na verdade, a nossa experiência de todos os dias mostra como a indiferença da pessoa face a Deus e às suas propostas gera violência, opressão, exploração, exclusão, solidão, sofrimento. Então, a culpa de muitos dos males que nos afligem não é de Deus, mas sim das opções erradas que fazemos. Estamos conscientes disto? Estamos disponíveis, neste tempo de Quaresma, para fazer um caminho de “conversão” que nos leve de regresso a Deus, dispostos a escutá-l’O e a acolher as indicações que Ele nunca desiste de nos dar?
  • A perspetiva de que a libertação do cativeiro é comandada por Deus e de que Deus oferece ao seu Povo a oportunidade de um novo começo aponta no sentido da esperança. Deus nunca desiste dos seus filhos. Ele abomina o pecado que destrói o nosso mundo e as nossas vidas, mas continua a amar-nos, apesar das nossas opções erradas. Dá-nos a possibilidade, continuamente renovada, de recomeçar, de refazer tudo, de reconstruir as nossas vidas. A certeza do amor de Deus deve iluminar cada instante da nossa vida nesta terra; e deve também ser um incentivo a abraçarmos uma vida nova: mais livre, mais fraterna, mais solidária, mais humana. Confiamos no amor de Deus? Estamos dispostos a aceitar, neste caminho que estamos a percorrer em direção à Páscoa, as oportunidades de renovação que esse amor nos oferece? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 136 (137)

Refrão:  Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua.

Sobre os rios de Babilónia nos sentámos a chorar,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros das suas margens,
dependurámos nossas harpas.

Aqueles que nos levaram cativos
queriam ouvir os nossos cânticos
e os nossos opressores uma canção de alegria:
«Cantai-nos um cântico de Sião».

Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor
em terra estrangeira?
Se eu me esquecer de ti, Jerusalém,
esquecida fique a minha mão direita.

Apegue-se-me a língua ao paladar,
se não me lembrar de ti,
se não fizer de Jerusalém
a maior das minhas alegrias.

LEITURA II – Efésios 2, 4-10

Irmãos:
Deus, que é rico em misericórdia,
pela grande caridade com que nos amou,
a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados,
restituiu-nos à vida em Cristo
– é pela graça que fostes salvos –
e com Ele nos ressuscitou
e nos fez sentar nos Céus com Cristo Jesus,
para mostrar aos séculos futuros
a abundante riqueza da sua graça
e da sua bondade para connosco, em Cristo Jesus.
De facto, é pela graça que fostes salvos, por meio da fé.
A salvação não vem de vós: é dom de Deus.
Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar.
Na verdade, nós somos obra sua, criados em Cristo Jesus,
em vista das boas obras que Deus de antemão preparou,
como caminho que devemos seguir.

CONTEXTO

A cidade de Éfeso estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. Era uma cidade grande e próspera, capital da Província Romana da Ásia. O seu porto de mar ligava o interior da Ásia Menor com todas as cidades do Mediterrâneo.

Quando Paulo chegou a Éfeso (cf. At 19,1), durante a sua terceira viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Paulo procurou instruí-los e dar-lhes uma adequada formação cristã. De acordo com o Livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano” (At 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23). Ainda de acordo com o autor dos Atos, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso.

Curiosamente, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.

Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60. Trata-se de um texto com uma grande riqueza temática, de uma reflexão amadurecida e completa onde o autor apresenta uma espécie de síntese da teologia paulina.

O texto que a liturgia deste quarto domingo da Quaresma nos propõe como segunda leitura integra a parte dogmática da carta (cf. Ef 1,3-3,21). Propõe uma reflexão sobre o papel de Cristo na salvação do homem. O autor começa por constatar a situação de pecado em que o homem vive e da qual, por si só, não pode sair (cf. Ef 2,1-3). O homem estará, portanto, condenado à escravidão do pecado e à morte?in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A vida do ser humano sobre a terra está marcada pela debilidade, pela finitude, pelas limitações inerentes à nossa condição humana. A doença, o sofrimento, o egoísmo, o pecado são realidades que acompanham a nossa existência, que nos mantêm prisioneiros e que nos roubam a esperança. Parece que, por nós próprios, nunca conseguiremos superar os nossos limites e alcançar essa realidade de vida plena, de felicidade total com que permanentemente sonhamos. Por isso, certos filósofos contemporâneos referem-se à futilidade da existência, à náusea que acompanha a vida da pessoa, à inutilidade da busca da felicidade, ao fracasso que é a vida condenada à morte… Este quadro seria desesperante se não existisse o amor de Deus. É precisamente isso que o autor da Carta aos Efésios nos recorda: Deus ama-nos com um amor total, incondicional, desmedido; e é esse amor que nos levanta da nossa condição, que nos faz vencer os nossos limites, que nos oferece esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim a que aspiramos. Não somos pobres criaturas derrotadas, condenadas ao fracasso, limitadas por um horizonte sem sentido, mas somos filhos amados a quem Deus oferece a vida plena, a salvação. Nós, crentes, que conhecemos e confiamos no amor de Deus, somos capazes de oferecer aos nossos irmãos – cansados, desiludidos e magoados pelas feridas da vida – um testemunho de esperança?
  • Segundo o autor da Carta aos Efésios, Deus introduziu na nossa realidade humana dinamismos de superação e de vida nova que apontam para o Homem Novo, livre das limitações, da debilidade e da fragilidade. Aqueles homens e mulheres que acolheram o dom de Deus são chamados a dar testemunho de um mundo novo, livre do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. Por isso, os crentes têm de anunciar e de construir um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano. Eles são testemunhas, nesta terra, de uma realidade nova de felicidade sem fim e de vida eterna. Nós, discípulos de Jesus, procuramos ser arautos desse mundo novo?
  • A vida nova de Deus manifesta-se nas nossas palavras, nos nossos gestos de partilha e de serviço, nas nossas atitudes de tolerância e de perdão, na nossa solidariedade com os irmãos esquecidos e abandonados, nos nossos esforços para construir pontes de entendimento e de diálogo… Convém, no entanto, não esquecer este facto essencial: é Deus que, através de nós, age no mundo e na vida dos homens. O mérito das coisas boas que fazemos não é nosso, mas sim de Deus. Temos consciência de que somos apenas os instrumentos frágeis através dos quais Deus manifesta ao mundo e aos homens a sua misericórdia e o seu amor? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 3, 14-21

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n’Ele a vida eterna.
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.

CONTEXTO

Jesus tinha ido a Jerusalém para a celebração da Páscoa (cf. Jo 2,13). Foi lá que se encontrou e conversou com um fariseu chamado Nicodemos, que era “uma autoridade entre os judeus” (Jo 3,1).

Dizer que Nicodemos era fariseu é dizer que ele era um homem da Lei. Os fariseus distinguiam-se pela sua adesão e fidelidade à Lei de Moisés. Os membros deste partido tinham grande influência entre o povo pela sua fama de observância e de prática religiosa. Mas João diz-nos também que Nicodemos era uma autoridade entre os judeus. Isso significa, provavelmente, que era membro do Sinédrio, um representante do judaísmo oficial. O encontro de Nicodemos com Jesus dá-se “de noite”. A indicação pode significar que ele não queria ser visto com Jesus para não prejudicar a sua posição, ou pode ter a ver com o hábito que os fariseus tinham de estudar a Lei à noite. Também pode significar que, nessa altura, Nicodemos ainda está às escuras, pois ainda não foi iluminado pela luz de Jesus. É bem possível que Nicodemos fizesse parte de um grupo, dentro do judaísmo erudito, que se interessava por Jesus e que queria compreendê-lo. Nicodemos aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,50-52). Também estará presente na altura em que Jesus foi descido da cruz e colocado no túmulo (cf. Jo 19,39).

A conversa daquela noite entre Jesus e Nicodemos apresenta três momentos significativos. No primeiro (cf. Jo 3,1-3), Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, graças às obras poderosas que Ele faz; mas Jesus acrescenta que isso não é suficiente, pois o essencial é reconhecê-l’O como o enviado do Pai, como aquele que veio do alto para revelar Deus. No segundo (cf. Jo 3,4-8), Jesus explica a Nicodemos que, para entender a proposta que Ele traz, é preciso “nascer de Deus”; e explica-lhe que esse novo nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”. No terceiro (cf. Jo 3,9-21), Jesus descreve a Nicodemos o projeto de salvação de Deus: é uma iniciativa do Pai, tornada presente no mundo e na vida dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. O extrato da conversa que escutamos neste quarto domingo da Quaresma pertence a esta terceira parte. É um texto carregado de densidade teológica. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • João é o evangelista abismado na contemplação do amor de um Deus que não hesitou em enviar ao mundo o seu Filho, o seu único Filho, para apresentar aos homens uma proposta de felicidade plena, de vida definitiva. O Evangelho deste domingo convida-nos a contemplar, com João, esta incrível história de amor e a espantar-nos com o peso que nós – seres limitados e finitos, pequenos grãos de pó na imensidão das galáxias – adquirimos nos esquemas, nos projetos e no coração de Deus. Temos consciência desse amor, estamos gratos por esse amor, aceitamos que esse amor nos indique o caminho que devemos percorrer e a forma como devemos viver?
  • O amor de Deus traduz-se na oferta ao homem de Vida plena e definitiva. É uma oferta gratuita, incondicional, absoluta, válida para sempre e que não discrimina ninguém. Aos homens – dotados de liberdade e de capacidade de opção – compete decidir se aceitam ou se rejeitam o dom de Deus. Às vezes, os homens acusam Deus pelas guerras, pelas injustiças, pelas arbitrariedades que trazem sofrimento e morte que pintam as paredes do mundo com a cor do desespero… O texto, contudo, é claro: Deus ama a pessoa e oferece-lhe a vida. O sofrimento e a morte não vêm de Deus, mas são o resultado das escolhas erradas feitas pelo ser humano que se obstina na autossuficiência e que prescinde dos dons de Deus. Temos consciência de que alguns dos males do nosso mundo poderão resultar do nosso egoísmo, do nosso orgulho, do nosso comodismo, dos nossos preconceitos, da nossa recusa em ouvir Deus e em seguir caminhos que Ele nos aponta? O que é que precisamos de mudar, nas nossas vidas, para sermos sinais e arautos do amor de Deus?
  • O evangelista João define claramente o caminho que todo o homem deve seguir para chegar à vida eterna: trata-se de “acreditar” em Jesus. “Acreditar” em Jesus não é uma mera adesão intelectual ou teórica a certas verdades da fé; mas é escutar Jesus, acolher a sua mensagem e os seus valores, segui-l’O no caminho do amor e da entrega ao Pai e aos irmãos. “Acreditar” significa olhar para aquele homem levantado na cruz e aprender com Ele o amor até ao extremo, o amor que ultrapassa todo o egoísmo e é dom total. Jesus é para nós essa referência fundamental, que procuramos seguir a cada instante e que nos aponta o caminho? Estamos dispostos a confiar incondicionalmente n’Ele, mesmo quando as suas indicações parecem estar contra a cultura ambiente, os ditames da moda, as doutrinas vigentes, ou as regras do socialmente correto?
  • Alguns cristãos vivem obcecados e assustados com esse momento final em que Deus vai julgar a pessoa, depois de pesar na balança as suas ações boas e as suas ações más… João garante-nos que Deus não é um contabilista, a somar os débitos e os créditos da pessoa para lhes pagar em conformidade… O cristão não vive no medo, pois ele sabe que Deus é esse Pai cheio de amor que oferece a todos os seus filhos a vida eterna. Não é Deus que nos condena; somos nós que escolhemos entre a vida eterna que Deus nos oferece ou a eterna infelicidade. Vivemos no medo de Deus, ou temos consciência de que somos nós que, com liberdade, fazemos as nossas opções? E, quando optamos, sabemos o que estamos a construir e para onde caminhamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura exige uma acurada preparação quer pela extensão do texto, quer por algum vocabulário menos usual. Além disso, é necessário ter em atenção as frases longas com diversas orações.

Este mesmo cuidado deve ser tido em conta na preparação da segunda leitura, onde é necessário preparar bem as pausas e respirações para uma proclamação mais eficaz do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A LUZ VEIO AO MUNDO

Domingo IV da Quaresma: 2 Crónicas 36,14-16.19-23; Salmo 137; Efésios 2,4-10; João 3,14-21

Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, bati­zados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batis­mal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, n.º 109), que têm neste IV Domingo da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «cha­mada» para a Liberdade.

O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (João 3,14-21) mostra-nos a toda a luz o «Filho do Homem», que deve (deîser levantado [= crucificado/exaltado/glorificado] como o verda­deiro «Servo do Senhor» (Isaías 52,13), logo identificado com Cristo Jesus (Filipenses 2,9), o Filho Unigénito de Deus, «a Luz que veio ao mundo» (João 3,19; 12,46), para dar a Vida ao mun­do (João 1,4; 3,15‑16). Veio (elêlythen: perf2 de érchomai) ao mundo e permanece acesa no mundo, como indica o perfeito usado no texto grego. Marcos recorre à crueza da linguagem para nos fazer compreender melhor o Mistério desta Luz-que-vem: «Vem a Luz (!) para ser colocada debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não, antes, para ser colo­cada sobre o candelabro? Na verdade, nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,21‑22). Tendo vindo na humildade da condição humana, esta Luz foi entronizada na Cruz onde arde para sempre: suprema manifestação do infinito, insondável, impenetrável, incompreensível, indi­zível amor de Deus: «Deus amou (êgápêsen: aoristo históri­co!) tanto o mundo»! (João 3,16). Assim manifestada na Cruz Gloriosa, esta Luz dá a Vida verdadeira a quem para ela olhar como a imagem da cobra levantada no deserto (Números 21,8‑9). «Hão‑de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (João 12,32). «Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou”» (título divino) (João 8,28).

Quanto à força daquele arrasto operado por Jesus, continua Jesus a ensinar-nos, em outra lição, que também pode ser levado a cabo pelo Pai: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (hélkô)» (João 6,44). Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento, nomeadamente Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere textualmente, pondo Deus a falar: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; hélkô LXX) com carinho (hesed TM; oiktírêmôn LXX)». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então, se Deus nos der a graça e o dom do entendimento, que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho! Tomar consciência desta realidade: estupendo programa quaresmal!

Para ter a Vida verdadeira, é necessário ver [= acre­ditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Atos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (cf. João 3,5), claríssima alusão ao batismo, a grande iluminação que abre os nossos olhos para o divi­no (Hebreus 6,4‑5: texto espantoso!) e nos faz «filhos da luz», operadores das «obras da luz», que não têm parte com as «obras das trevas» (Efésios 5,8‑14).

            Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós, a imagem do pecado que está em nós; 2) ali passa também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça, única maneira de a absorver, dissolver e absolver. A cura não é mágica. Exibida a imagem da cobra escondida que há em nós e que de nós se alimenta como um parasita ou um ídolo – de facto, alimenta-se de nós, vive à nossa custa: leia-se, com o dom do entendimento, Génesis 3,14, em que se lê que a cobra se alimenta de pó [ՙaphar], sendo que só o homem é modelado do «pó da terra» (Génesis 2,7) –, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali posto bem diante dos nossos olhos: é o amor subversivo!

A grande «teologia da história» expressa no 2 Livro das Crónicas 36,14-23 deixa bem claro que, abandonando a Palavra de Deus, que é a nossa luz (Salmo 119,105) e a nossa vida (Deuteronómio 32,47), caímos inevitavelmente nas trevas e na morte de um «exílio» qualquer. Porém, o caminho é reversível: aproximando‑nos de Deus e da sua Palavra, podemos recuperar de novo a luz e a vida. É, na verdade, «a tua Palavra, Senhor, que tudo cura» (Sabedoria 16,12).

O extrato da Carta de S. Paulo aos Efésios (2,4-10) acentua hoje o nosso movimento da morte para a vida em Cristo Je­sus: movimento batismal (da morte para a vida) e fórmula batismal («em Cristo Jesus»). Nisto se manifestou «o gran­de amor com que Deus nos amou» (êgápêsen: de novo o inaudi­to aoristo histórico!) (Efésios 2,4). Mas há muito mais «coisas» inauditas de que Paulo tem de se socorrer, inovando até o vocabulário grego (!), num esforço supremo para tentar tra­duzir este indizível «grande amor» de Deus por nós: com Cristo nos com-vivificou (Efésios 2,5), nos com‑ressuscitou e nos com­‑sentou nos Céus (Efésios 2,6). Tudo aoristos históricos!!! Com­preenda‑se, portanto, o incompreensível: tudo isto  nos aconteceu! Somos, de facto, obra de Deus! (Efésios 2,10). Demos Graças a Deus!

A grande e sentida súplica que atravessa o Salmo 137 atravessa também as nossas mãos, língua, céu da boca, voz, mente, alegria, lágrimas. Não é possível cantar na Babilónia. Os Cânticos de Sião não são folclore, mas oração a ferver saída das entranhas! Não se dão naquele «lá» (sham) estrangeiro e inóspito da Babilónia. A pátria da música e da alegria é o «lá» (sham) de Jerusalém, cidade-mãe, que faz de Deus-Pai, Casa materna e paterna, onde reina a liberdade e a fraternidade, e não a escravidão e a tirania. No decurso da segunda guerra mundial, o poeta italiano Salvatore Quasimodo glosou assim este imenso Salmo: «E como podíamos nós cantar/ com o pé estrangeiro sobre o coração,/ entre os mortos abandonados nas praças,/ sobre a erva dura do gelo,/ com o lamento de cordeiro das crianças,/ com o urlo negro da mãe/ que ia ao encontro do filho/ crucificado sobre o poste do telégrafo?/ Nos ramos dos salgueiros, por voto,/ também as nossa harpas estavam dependuradas:/ oscilavam leves sob o vento triste».

Mas nós, que atravessamos a Quaresma, sabemos bem que todo o gelo glaciar é derretido pelo sopro do amor que até nós vem daquele que está naquela Cruz erguido!

Irei, Senhor,
Em procissão de amor,
Beijar a tua Cruz.
 

E quando eu olhar para ti,
Para o teu rosto ferido e desfigurado,
Para as tuas muitas chagas a sangrar,
Dá-me a graça de aí ver bem o meu pecado.
 

E quando Tu, Senhor, olhares para mim,
Com esse meigo olhar de serena compaixão,
Dá-me a graça de aí ver o teu perdão nunca poupado,
E de sair com o coração transfigurado.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 (2 Cr 36, 14-16.19-23)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 (Ef 2, 4-10)
  3. Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024

Viver a Palavra

Quem é este Jesus de que nos fala o Evangelho? Onde está o Jesus manso e humilde, doce e compassivo a que nos habituamos? Tendo subido a Jerusalém, na proximidade da Páscoa judaica, Jesus entrou no templo e indignou-se com tudo aquilo que viu: «os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas».

Acredito que algumas pessoas, se tivessem oportunidade, retirariam esta passagem dos Evangelhos. Nela encontramos um Jesus frontal, bem diferente do Jesus que proclamou sobre o monte «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» ou se dirigia aos mais pequenos, dizendo «Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino do Céu». Porventura, outros aproveitam esta passagem para justificar os seus atos mais violentos. Contudo, qualquer uma das atitudes será sempre abusiva e desproporcionada.

O mercado de ovelhas e bois, bem como os cambistas facilitava a vida daqueles que vinham ao tempo apresentar as suas ofertas. Não era prático, sobretudo para os que vinham de mais longe, trazer as ovelhas, as pombas, os cordeiros ou os bois que desejavam oferecer a Deus. Um outro problema era a questão da moeda: as pessoas traziam consigo as suas moedas locais e no templo a moeda que se usava era o siglo. Deste modo, a presença dos cambistas facilitava a vida daqueles que desejavam deixar a sua oferta no templo.

Em primeiro lugar, importa pensar que quer na nossa vida pessoal, quer na vida comunitária devemos ter cuidado com a absolutização do critério do mais prático. Se absolutizamos o pragmatismo, pode haver muitas coisas importantes que se perdem e outras que se pervertem. A vida cristã implica abraçar o caminho exigente da relação íntima e pessoal com o Deus revelado em Jesus Cristo. Evidentemente que não estou a afirmar a necessidade de optar sempre pelo caminho mais difícil ou por aquilo que é mais exigente por capricho ou masoquismo, pois, em diversas circunstâncias da nossa história, a vida é já suficientemente difícil e exigente pelas dificuldades e sofrimentos do caminho.

Jesus é frontal, mas não é violento. Jesus toma um chicote de cordas, mas não bate em ninguém nem em nenhum animal. Deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas, mas não feriu ninguém. Jesus assumiu, neste acontecimento, um gesto profético na linha do profetismo de Israel. Um gesto profético é uma ação simbólica que transmite uma mensagem clara que atinge o coração de cada homem e cada mulher.

Esta frontalidade de Jesus, num gesto profético tão radical e ousado, convida-nos a viver também esta frontalidade na nossa vida: frontais connosco mesmos na luta contra o pecado; frontais com situações à nossa volta que estão erradas e não devemos pactuar; frontais com aqueles que se cruzam connosco, abraçando com ternura a dureza das relações humanas. Seguir Jesus, implica seguir a radicalidade e a verdade que o Evangelho reclama das nossas vidas.

«Não façais da casa de meu Pai casa de comércio!». Como é urgente e necessário fazer ecoar estas palavras de Jesus. Quantas vezes a nossa relação com Deus e os irmãos se faz na lógica comercial dos ganhos a obter e dos bens a alcançar. A relação com Deus e os outros será tanto mais verdadeira quanto mais se contruir na lógica da gratuidade que rasga novos horizontes de esperança e transforma o coração de cada homem e de cada mulher num lugar de bondade, ternura e misericórdia. in Voz Portucalense

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O dia 8 de março é dedicado pela sociedade civil à celebração do Dia Internacional da Mulher. Enquanto comunidade eclesial que habita o tempo e a história e procura iluminar os diversos âmbitos da vida humana, a Igreja não deve ficar à margem da comemoração deste dia. Cada comunidade pode pensar um modo criativo de assinalar este dia. A mulher assume um papel fundamental na sociedade e na vida da Igreja e este dia pode ser a ocasião para o reconhecer e valorizar. Contudo, como recorda o Papa Francisco na sua exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazónia, é necessário pensar o lugar da mulher na Igreja sem o reduzir ao funcionalismo, mas no horizonte da corresponsabilidade eclesial onde cada um tem lugar na edificação da comunidade e na ação evangelizadora da Igreja. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Êxodo 20,1-17

Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras:
«Eu sou o senhor teu Deus,
que te tirei da terra do Egipto, dessa casa da escravidão.
Não terás outros deuses perante Mim.
Não farás para ti qualquer imagem esculpida,
nem figura do que já existe lá no alto dos céus
ou cá em baixo na terra ou nas águas debaixo da terra.
Não adorarás outros deuses nem lhes prestarás culto.
Eu, o senhor teu Deus, sou um Deus cioso:
castigo a ofensa dos pais nos filhos
até à terceira e quarta geração daqueles que Me ofendem;
mas uso de misericórdia até à milésima geração
para com aqueles que Me amam
e guardam os meus mandamentos.
Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus,
porque o Senhor não deixa sem castigo
aquele que invoca o seu nome em vão.
Lembrar-te-ás do dia de sábado, para o santificares.
Durante seis dias trabalharás
e levarás a cabo todas as tuas tarefas.
Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus.
Não farás nenhum trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu servo nem a tua serva,
nem os teus animais domésticos,
nem o estrangeiro que vive na tua cidade.
Porque em seis dias
o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm;
mas no sétimo dia descansou.
Por isso, o Senhor abençoou e consagrou o dia de sábado.
Honra pai e mãe,
a fim de prolongares os teus dias
na terra que o Senhor teu Deus te vai dar.
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não furtarás.
Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo;
não desejarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi ou o seu jumento,
nem coisa alguma que lhe pertença».

CONTEXTO

O texto que hoje nos é proposto como primeira leitura faz parte de um conjunto de tradições sobre uma Aliança entre Deus e os hebreus libertados da escravidão do Egito (cf. Ex 19-40). De acordo com o livro do Êxodo, essa Aliança teria sido celebrada num monte, algures no deserto do Sinai, o mesmo monte onde Javé se tinha revelado a Moisés.

No texto bíblico não há indicações geográficas suficientes para conseguirmos identificar o “monte da Aliança”. Em si, o nome “Sinai” designa uma enorme península de forma triangular, com mais ou menos 420 quilómetros de extensão norte/sul, estendendo-se entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A norte, junto do Mediterrâneo, o Sinai apresenta uma faixa arenosa de cerca de 25 quilómetros de largura; mas à medida que se desce para sul, o território torna-se mais acidentado, com montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura. A península inteira é um deserto árido; não há, praticamente, vegetação (exceto em alguns pequenos oásis) e as comunicações são difíceis. Nesta enorme extensão de areia e rochas, é difícil situar o “monte da Aliança”. Contudo, uma tradição cristã tardia (séc. IV) identifica o “monte” com o Jebel Musa (o “monte de Moisés”), um monte com 2244 metros de altitude, situado a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da Aliança” com este lugar levante problemas, o Jebel Musa é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.

A Aliança entre Javé e Israel, celebrada no Sinai, vai ser apresentada pelos catequistas de Israel através de uma estrutura literária que é muito semelhante aos formulários jurídicos conhecidos no mundo antigo para apresentar os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um “senhor” e o seu “vassalo”. Nesses formulários, depois de recordar ao “vassalo” a sua ação, a sua generosidade, os seus benefícios, o “senhor” apresentava as “cláusulas da Aliança” – isto é, a lista das obrigações que o “vassalo” assumia para com o seu “senhor” (obrigações que o “vassalo” devia cumprir fielmente).

De entre as “cláusulas da Aliança” do Sinai, sobressai um bloco especial, onde são apresentadas as dez obrigações fundamentais que Israel vai assumir diante do seu Deus: os “dez mandamentos” ou as “dez palavras”. É esse texto que a primeira leitura deste domingo nos apresenta. Aí está, verdadeiramente, o coração da Aliança; aí se define o caminho que Israel deve percorrer para ser o Povo de Deus.

A lista dos “dez mandamentos” é uma lista irregular, com mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não matarás”; não roubarás”) e outros mais desenvolvidos, contendo um comentário explicativo (cf. Ex 20,4.17), uma motivação (cf. Ex 20,7) ou uma promessa (cf. Ex 20,12). Por vezes Deus fala em primeira pessoa (cf. Ex 20,2.5-6); noutras, fala-se de Deus em terceira pessoa (cf. Ex 20,7.11.12). Dois mandamentos são formulados positivamente (cf. Ex 20,8: “lembra-te”; Ex 20,12: “honra”); todos os outros são formulados negativamente (“não matarás”; “não roubarás”). Estas irregularidades significam que o “decálogo” sofreu, através dos séculos, por motivos pastorais e catequéticos, retoques, acrescentos, comentários, modificações.

É bastante provável que Moisés tenha uma certa relação com estas leis que estão no centro da Aliança entre Deus e o seu Povo; mas o texto, na sua forma atual, não vem de Moisés. É, certamente, um texto muito trabalhado, que sofreu muitas elaborações ao longo dos séculos. Ainda que esta lista de preceitos possa lembrar algumas listas de proibições encontradas na Babilónia e no Egipto, ocupa um lugar à parte no conjunto dos formulários legais dos povos do Crescente Fértil: é um núcleo legal sóbrio e equilibrado, despojado de tudo aquilo que nos outros povos é magia, superstição ou “tabu”.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Os mandamentos do Decálogo que se referem à relação do homem com Deus sublinham a centralidade que Deus deve assumir no coração e na vida dos seus filhos. No entanto, nem sempre Deus tem lugar determinante na vida dos homens e mulheres do nosso tempo… Para muitos dos nossos contemporâneos, Deus é uma realidade que os deixa indiferentes. Não aquece nem arrefece; não conta para nada. O que os move é o dinheiro, o poder, os afetos humanos, a realização profissional, o reconhecimento social, os projetos pessoais, as ideologias, os valores da moda, as coisas materiais que tornam a vida mais cómoda e mais fácil. Esta opção, no entanto, mais cedo ou mais tarde, vai trazer vazio, insatisfação, frustração e desencanto. Não podemos sufocar indefinidamente essa sede de infinito que está viva no mais profundo do nosso ser. Por outro lado, quando optamos por prescindir de Deus e escolher caminhos de autossuficiência, acabamos facilmente por privilegiar soluções egoístas, que geram sofrimento e infelicidade para nós e para aqueles que caminham ao nosso lado… Neste tempo de Quaresma, interroguemo-nos: que lugar ocupa Deus na nossa vida? Há na nossa vida “deuses” que ocuparam o lugar de Deus e que condicionam as nossas tomadas de posição e as nossas opções?
  • Os mandamentos do Decálogo que se referem à forma de tratarmos os nossos irmãos convidam-nos a banir das nossas relações qualquer tipo de violência, de egoísmo, de agressividade, de cobiça, de intolerância, de escravidão, de indiferença. Dizem-nos que tudo aquilo que atenta contra a vida, a dignidade e os direitos daqueles que caminham ao nosso lado subverte o projeto de Deus para o mundo e para os homens. Contudo, todos os dias vemos multiplicarem-se no nosso mundo as situações de injustiça, de violência e de maldade que mergulham milhões de homens e mulheres numa noite sem saída e sem esperança. O que podemos fazer para que os valores de Deus prevaleçam sobre a maldade dos homens? O que é que, nos nossos gestos, nas nossas atitudes, nos nossos valores, é gerador de injustiça, de sofrimento, de exploração, de escravidão, de morte, para nós e para todos aqueles que nos rodeiam?
  • Há quem considere os “mandamentos” propostas de uma moral obsoleta e antiquada, fórmulas inventadas pela religião e destinadas a impor aos crentes comportamentos religiosamente corretos, ou até mesmo diretrizes para limitar a nossa liberdade e autonomia… No entanto, para aqueles que têm Deus como referência, os “mandamentos” são indicações de Deus para sermos mais felizes e para construirmos um mundo mais humano, mais fraterno, mais solidário. Não são uma prisão, mas uma porta para a verdadeira liberdade. Como é que eu vejo e acolho essas indicações de Deus? Levo-as a sério e aceito que elas definam as fronteiras do meu caminho? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)

Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.

 

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.

Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração
os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.

O temor do senhor é puro
e permanece para sempre;
os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.

São mais preciosos que o ouro,
o ouro mais fino;
são mais doces que o mel,
o puro mel dos favos.

LEITURA II – 1 Coríntios 1,22-25

Irmãos:
Os judeus pedem milagres
e os gregos procuram a sabedoria.
Quanto a nós, pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios;
mas para aqueles que são chamados,
tanto judeus como gregos,
Cristo é poder e sabedoria de Deus.
Pois o que é loucura de Deus
é mais sábio do que os homens
e o que é fraqueza de Deus
é mais forte do que os homens.

CONTEXTO

No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca de 18 meses (anos 50-52). Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. De uma forma geral, a comunidade era viva, fervorosa e empenhada; no entanto, não era imune aos valores da cultura ambiente, que nem sempre coincidiam com os valores de evangelho de Jesus.

Em Corinto, cidade cosmopolita e com pretensões culturais, estavam representadas todas as escolas filosóficas da Grécia antiga. Cada uma delas contava com os seus mestres e os seus fiéis adeptos. As rivalidades entre mestres e escolas traduziam-se, frequentemente, em conflitos e divisões que, extravasando para as ruas da cidade, punham em causa a coesão e a paz social. Ora, os cristãos de Corinto transplantaram para a vida da comunidade cristã esses modelos. Viam determinadas figuras proeminentes do cristianismo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude da sabedoria e da realização humana. É de crer que os adeptos desses vários mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a excelência e a superior sabedoria da sua figura de referência. Paulo soube isto no decurso da sua terceira viagem missionária, quando estava em Éfeso (por volta do ano 56). Tomou então a decisão de escrever aos coríntios avisando-os de que isto era bastante grave, pois punha em causa a unidade da fé. A reflexão de Paulo sobre esta questão aparece em 1 Co 1,10-4,21.

Na sua reflexão, Paulo vai demonstrar aos coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a experiência cristã não é a busca de uma filosofia coerente, brilhante, elegante, que conduza à sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Quem procura na mensagem cristã um sistema lógico, coerente, inquestionável à luz da lógica humana, é porque não percebeu nada do Evangelho e do dinamismo da salvação. O texto da segunda leitura deste terceiro domingo da Quaresma deve ser enquadrado neste cenário. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Andamos há dois mil anos a olhar para a cruz e a meditar naquilo a que Paulo chamou “a loucura de Deus”. No entanto, ainda não interiorizamos plenamente a lógica de Deus. Ainda achamos que a nossa plena realização passa pela acumulação de bens materiais, pelos triunfos humanos, pelas conquistas da ciência ou da técnica, pela força das ideologias, pelas palavras sedutoras dos nossos líderes, pelos aplausos daqueles que viajam connosco…. Usamos a cruz como enfeite ou como distintivo de um grupo religioso, mas esquecemo-nos do crucificado e de tudo aquilo que Ele nos disse ao entregar a vida até à morte, por amor. Talvez esta Quaresma seja uma oportunidade para nos aproximarmos de Jesus, para irmos com Ele, para aprendermos com Ele que só o amor salva; talvez este caminho de Quaresma que estamos a percorrer nos ajude a libertar do orgulho, da vaidade, da autossuficiência, dos valores estéreis, para acolhermos a sabedoria de Deus e para fazermos da nossa vida um dom de amor a Deus e aos nossos irmãos, particularmente aos mais frágeis e esquecidos… Estamos conscientes que é na sabedoria de Deus, expressa no amor e na entrega do Crucificado, que está a nossa realização plena, a nossa salvação?
  • Segundo Paulo, a força e a sabedoria de Deus manifestam-se na fragilidade, na pequenez, na pobreza, na humildade, na vida entregue por amor… Sendo assim, não nos parecem ridículas, descabidas e pretensiosas as nossas poses de importância, de autoridade, de protagonismo, de êxito humano, que tantas vezes magoam e humilham os irmãos e irmãs com quem nos cruzamos?
  • Paulo, enquanto testemunha de Jesus, recusa-se a “dourar a pílula” e a suavizar as exigências do Evangelho. Ele prega “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Nós, discípulos de Jesus, que temos a responsabilidade de anunciar o Evangelho, fazemo-lo com verdade e radicalidade, renunciando à tentação de suavizar a Palavra, de a tornar menos radical e interpelativa? Às vezes o invólucro “brilhante” com que envolvemos a Palavra pode torná-la mais atrativa, mas também menos questionante e, portanto, menos transformadora. in Dehonianos.

EVANGELHO – João 2, 13-25

Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém.
Encontrou no templo
os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas
e os cambistas sentados às bancas.
Fez então um chicote de cordas
e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas
e derrubou-lhes as mesas;
e disse aos que vendiam pombas:
«Tirai tudo isto daqui;
não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito:
«Devora-me o zelo pela tua casa».
Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe:
«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»
Jesus respondeu-lhes:
«Destruí este templo e em três dias o levantarei».
Disseram os judeus:
«Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo
e Tu vais levantá-lo em três dias?»
Jesus, porém, falava do templo do seu corpo.
Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos,
os discípulos lembraram-se do que tinha dito
e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera.
Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa,
muitos, ao verem os milagres que fazia,
acreditaram no seu nome.
Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos
e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém:
Ele bem sabia o que há no homem.

CONTEXTO

O evangelho deste terceiro domingo da Quaresma integra a secção introdutória do Evangelho de João (cf. Jo 1,19-3,36). É nessa secção que João nos apresenta Jesus e as grandes linhas programáticas do seu ministério.

O episódio decorre no Templo de Jerusalém. Trata-se do majestoso Templo construído pelo rei Herodes para “comprar” a benevolência dos judeus. A construção do Templo herodiano iniciou-se em 19 a.C. e ficou essencialmente pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido concluídos em 63 d.C.). No ano 27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).

João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a festa principal do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria à volta de 55.000 habitantes, chegava a albergar cerca de 125.000 peregrinos nesta altura. No Templo sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros, destinados à celebração pascal.

Neste ambiente, o comércio relacionado com o Templo sofria um enorme incremento. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais à volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças revertia para o sumo-sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam, diretamente, à família do sumo-sacerdote. Vendiam-se os animais para os sacrifícios e vários outros produtos destinados à liturgia do Templo. Havia também as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois não era permitido que moedas com a efígie de imperadores pagãos conspurcassem o tesouro do Templo). Este comércio constituía uma mais-valia para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.

Vai ser neste contexto que Jesus vai realizar o seu gesto profético. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Como é que podemos encontrar Deus e chegar até Ele? Como podemos perceber as propostas de Deus e descobrir os seus caminhos? O Evangelho deste domingo responde: é olhando para Jesus. Nas palavras e nos gestos de Jesus, Deus revela-Se aos homens e manifesta-lhes o seu amor, faz-Se companheiro de caminhada dos homens e aponta-lhes caminhos de salvação. Neste tempo de Quaresma – tempo de conversão, de renovação, de caminhada em direção ao Homem Novo – somos convidados a olhar para Jesus, a aproximar-nos dele, a ir atrás dele, a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar. É isso que acontece connosco?
  • Jesus é, agora, o Novo Templo onde Deus reside e onde os homens podem encontrar Deus e a sua proposta de salvação. E os cristãos, membros do Corpo de Cristo, são pedras vivas desse Templo. Esta realidade supõe, para os discípulos de Jesus, uma grande responsabilidade… Os homens do nosso tempo têm de ver no rosto dos cristãos o rosto bondoso e terno de Deus; têm de experimentar, nos gestos de partilha, de solidariedade, de serviço, de perdão dos cristãos, a vida nova de Deus; têm de encontrar, na preocupação dos cristãos com a justiça e com a paz, o anúncio desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os homens. Talvez o facto de Deus parecer tão ausente da vida, das preocupações e dos valores dos homens do nosso tempo tenha a ver com a tibieza do nosso testemunho. O nosso testemunho pessoal é um sinal de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado? A vida das nossas comunidades dá testemunho da Vida de Deus? A Igreja – comunidade dos discípulos de Jesus – é essa “casa de Deus” de portas sempre abertas onde qualquer pessoa, sem distinção de raça, de estatuto social, de estado civil, de opção sexual, pode encontrar a proposta de libertação e de salvação que Deus oferece a todos?
  • Qual é o verdadeiro culto que Deus espera? Evidentemente, não são os ritos solenes e pomposos, mas vazios, estéreis e balofos. O culto que Deus aprecia é uma vida vivida na escuta das suas propostas e traduzida em gestos concretos de doação, de entrega, de serviço simples e humilde aos irmãos. Quando somos capazes de sair do nosso comodismo e da nossa autossuficiência para ir ao encontro do pobre, do marginalizado, do estrangeiro, do doente, estamos a dar a resposta “litúrgica” adequada ao amor e à generosidade de Deus para connosco.
  • Ao gesto profético de Jesus, os líderes judaicos respondem com incompreensão e arrogância. Consideram-se os donos da verdade e os únicos intérpretes autênticos da vontade divina. Instalados nas suas certezas e preconceitos, nem sequer admitem que a denúncia que Jesus faz esteja correta. A sua autossuficiência impede-os de ver para além dos seus projetos pessoais e de descobrir os projetos de Deus. Trata-se de uma atitude que, mais uma vez, nos questiona… Estamos conscientes de que, quando nos barricamos atrás de certezas absolutas e de atitudes intransigentes, podemos estar a fechar o nosso coração aos desafios e à novidade de Deus?
  • Como aqueles vendedores e cambistas que transformaram o Templo de Deus numa casa de comércio, também nós podemos, quase sem nos darmos conta, estar a converter toda a nossa vida num negócio, onde tudo é pesado em favor do nosso interesse e do nosso ganho. Até a nossa relação com Deus pode tornar-se uma troca comercial, em que cumprimos os ritos para termos Deus a nosso favor, “pagamos missas” ou “promessas” para obter algum benefício, evitamos o pecado para que Deus não tenha razões para nos condenar… O gesto profético de Jesus no Templo de Jerusalém denuncia o sem sentido de uma vida vivida em registo de ganância e de lucro egoísta; lembra-nos que Deus é amor, amor que não se compra nem vende e que é puro dom; lembra-nos a importância dos gestos gratuitos de amor, da partilha solidária, da fraternidade desinteressada, do dom sem recompensa; lembra-nos que devemos dar testemunho, com a nossa vida, de um Deus que ama os seus filhos – todos – com um amor sem limites e “a fundo perdido”. Estou consciente de tudo isto? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em atenção a extensão do texto na proclamação da forma longa. Além disso, deve haver um especial cuidado nas diversas repetições no início de cada frase, sobretudo da conjunção coordenativa correlativa «nem» e do advérbio «não».

A segunda leitura, apesar da sua brevidade, reclama uma especial atenção com as frases mais longas e com diversas orações.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O NOVO SANTUÁRIO QUE É JESUS

Domingo III da Quaresma: Ex 20,1-17; Sl 19; 1 Cor 1,22-25; Jo 2,13-25

No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batis­mal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúme­nos: primeira «chamada» para a liberdade.

O texto do Evangelho deste Domingo III da Quaresma constitui uma importante passagem no tecido do IV Evangelho (João 2,13-25). Jesus apresenta-se como tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o PAI, nova paginação e compreensão das Escrituras. Da Páscoa dos judeus (A) à Páscoa de Jesus (A’), do Templo antigo (B) ao Santuário novo (B’), tendo no meio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos de Jesus (C), como podemos constatar no texto a seguir transcrito:

                               «2,13E estava próxima a Páscoa dos judeus, e JESUS subiu a Jerusalém. (A)

                                               14E ENCONTROU no TEMPLO (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. 15E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do TEMPLO (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, 16e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da CASA DO MEU PAI (oíkos toû patrós mou) CASA de COMÉRCIO (oíkos emporíou)”. (B)

                                               17Recordaram-se os discípulos d’ELE que está escrito: “O zelo da tua CASA (toû oíkou sou) me devorará”. (C)

                                               18Responderam então os judeus e disseram-LHE: “Que sinal nos mostras de que podes fazer estas coisas?” 19Respondeu JESUS e disse-lhes: “Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)”. 20Disseram então os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este SANTUÁRIO (naós), e tu em três dias o levantarás (egeírô)?” (B’)

                                               21Isto, porém, dizia do SANTUÁRIO do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). 22Quando, pois, foi ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se os discípulos d’ELE que tinha dito isto, e acreditaram na Escritura e na palavra que JESUS tinha dito» (João 2,13-22). (A’)

O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma FESTA é, na tradição bíblica, um ENCONTRO marcado (mô‘ed), plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro]. Um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros. Sendo um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a FESTA é de peregrinação, como é a PÁSCOA, aqui referida [as outras duas são as SEMANAS ou PENTECOSTES e as TENDAS], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que FESTA de peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar], e deriva de hûg, que significa “círculo”, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida.

ENCONTRO, filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por JESUS que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz CASA (oíkos) – com particular afeto, CASA DO MEU PAI –, sendo a CASA paterna o lugar do ENCONTRO e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56,7, JESUS fala do Templo usando a expressão forte «A MINHA CASA» (ho oîkós mou) (Mateus 21,13; Marcos 11,17; Lucas 19,46).

É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas CASAS. Do Templo para as CASAS (Atos 2,46). Não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão.

Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que JESUS ENCONTROU filhos e irmãos, mas que ENCONTROU vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14,21, que refere que «Não haverá mais vendedor na CASA de YHWH dos exércitos naquele dia». «A CASA DO MEU PAI», «A MINHA CASA», por um lado, e o MERCADO, por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço.

No texto que estamos cuidadosamente a ler, o Templo é dito com três vocábulos diferentes – hierónoíkos e naós – com significações diferentes: edifício de pedra, casa familiar, santuário (ou lugar da presença de Deus).

Quando, num dos típicos “mal-entendidos” do IV Evangelho, JESUS diz: «Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)» (João 2,19), os judeus não conseguem distinguir entre o naós pessoal que JESUS levantará em três dias e o hierón feito de pedra que demorou 46 anos a construir (João 2,20). Em claro contraponto, o narrador explica bem, num genitivo epexegético, que JESUS «dizia isto do SANTUÁRIO do seu corpo» (toû naoû toû sômatos autoû) (João 2,21). Entenda-se: do SANTUÁRIO que é o seu corpo. Com esta explicação do narrador, fica claro que é JESUS o «lugar» da adoração de Deus, a verdadeira «Casa de Deus» (cf. João 1,51), o SANTUÁRIO de Deus.

A anotação do narrador, em João 2,22, faz-nos ver ainda que foi também assim que entenderam os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus. Lição para os leitores: num tempo em que já não há Templo em Jerusalém, os leitores crentes do IV Evangelho experimentam a PRESENÇA de JESUS Ressuscitado como o seu verdadeiro «Templo».

O Livro do Êxodo (20,1-17) serve-nos hoje a Palavra de Deus que alimenta a vida nova dos seus filhos. O texto abre assim: «E falou Deus todas estas palavras dizen­do» (Êxodo 20,1). Estas palavras constituem o Decálogo, um con­junto de mandamentos que cobrem todo o âmbito da ação moral. É de privilegiar o nome “mandamento”, em detrimento da mais vulgar “lei”. É fácil perceber a razão: o mandamento supõe um rosto, neste caso o rosto de Deus, um Deus com rosto, que me chama e ama e ordena e suplica, e me institui; de modo diferente, a lei supõe um legislador sem rosto, que nada tem a ver com o Deus do Livro do Êxodo e da Escritura Santa. Saí­dos diretamente da boca de Deus, estas palavras constituem o alimento de que deve nutrir‑se o Povo santo de Deus do Antigo Testamento (Deuteronómio 8,3), mas também o Povo santo dos batizados (Mateus 4,4) que, à luz da Ressurreição, faz anamnese da vida his­tórica de Jesus e acredita na Palavra da Escritura [= Antigo Testamento] e do Evangelho. Palavra que há que guardar sábia e amorosa­mente, pois ela é a nossa vida (Deuteronómio 32,47).

E São Paulo continua esta lição sobre a nova Sabedoria (1 Coríntios 1,22-25). Enquanto os judeus pedem sinais (João 2,18;1 Coríntios 1,22) e os gregos procuram a sabedoria des­te mundo (1 Coríntios 1,22), os batizados, confirmados, chamados, continuam de olhos postos no único sinal da Cruz Gloriosa, sem dúvida a mais bela página que Deus escreveu na história dos homens, embora a letra seja ainda ilegível para muita gente!

O Salmo 19 é uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida nos seus mandamentos dados.

O caminho da Quaresma leva-nos à cripta,
Ao miolo,
Àquele lugar íntimo e íntegro, inteiro,
Onde eu sou verdadeiro,
Sem dolo
Nem tijolo
Nem roupeiro.
 

Chegar lá implica desfazer-se do barulho
E do entulho,
Arredar a caliça e o reboco,
Aprender com os pássaros do céu,
Com os lírios do campo,
Ir até ao fundo,
Até ao toco,
E deixar Deus a trabalhar no fundo desse poço,
Onde só Ele sabe semear semente santa,
Que depois há de florir e dar fruto
A seu tempo e a seu campo.
 

Que rebento pode brotar de um toco seco?
Que sucesso pode ter uma semente
Na aridez do deserto semeada?
É mesmo só com Deus essa empreitada.
E Jesus explica bem,
No meio do sermão da montanha,
Que são também assim
A esmola, a oração e o jejum,
Frutos que só Deus pode fazer brotar em mim.
 

A Quaresma é tempo de deixar de fazer tantas coisas
Por mim e ao meu jeito,
E para mim e em meu proveito,
Nas ruas,
Nas praças,
Nas igrejas,
Só para que as pessoas vejam e aplaudam.
 

A Quaresma é tempo de deixar Deus
Fazer nascer
Dentro de mim
Um jardim,
Uma maneira nova de viver.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 (Ex 20, 1-17)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 (1 Cor 1, 22-25)
  3. Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024

Viver a Palavra

Continuamos a caminhar com Jesus rumo à Páscoa. Depois de termos ido com Ele ao deserto, somos agora convidados a subir com Ele ao monte: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles». Com Jesus, somos conduzidos ao Pai que pela força do Espírito nos faz entrar nesta comunhão de amor que envolve as Pessoas da Trindade.

O cimo do monte, as vestes resplandecentes, Moisés e Elias, a nuvem que os cobre e a voz vinda do céu proporcionam a Pedro, Tiago e João uma verdadeira teofania que os faz ver cumpridas as promessas veterotestamentárias e lhes antecipa a glória do Ressuscitado. Hoje a humanidade também se sente envolvida por um tempo de incerteza e escuridão que clama pela luz do Ressuscitado e faz de nós testemunhas de que mesmo diante das trevas e inseguranças do nosso tempo, a luz de Jesus Cristo continua a brilhar.

Por isso, subamos ao monte com Jesus!

O monte é na longa tradição bíblica lugar de encontro com Deus, até porque subir a um lugar elevado faz-nos estar geograficamente mais próximos do Céu. Desde a antiguidade que os sítios geograficamente elevados eram assinalados como lugar de espiritualidade e encontro com o divino. Além disso, subir a um lugar elevado também permite olhar a planície e o vale de um modo novo e diferente. Deste modo, ao subirmos com Jesus ao monte, somos convidados a olhar a nossa vida, o mundo e os outros de um modo renovado. Olhar o tempo e a história com o olhar de Jesus permite-nos adquirir um novo horizonte de esperança, pois somos capazes de libertar o nosso olhar do imediatismo do nosso metro quadrado para uma visão maior e mais larga da história que tende e caminha para a plenitude da eternidade.

Contemplamos Moisés e Elias que atestam como Jesus é o enviado do Pai para cumprir as promessas da antiga aliança. Moisés e Elias ainda que entre sombras puderam ver a Deus: Moisés contemplou o Senhor revelado na saraça ardente (Ex 3,1-4,17) e Elias, escondido na caverna foi convidado a ver o Senhor passar na brisa suave (1 Rs 19,9-18). Junto de Jesus no monte, eles testemunham que o Transfigurado é a revelação plena e definitiva do Pai.

A nuvem que os envolve com a sua sombra faz ressoar uma voz vinda do céu: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». As nuvens que tantas vezes nos cobrem continuam a trazer dentro de si a certeza de que as dificuldades e as tribulações do tempo e da história não têm a última palavra, pois a única palavra plena e definitiva é a Palavra de Jesus que o Pai nos convida a escutar. É certo que a fragilidade da nossa existência e a contingência do tempo que atravessamos nos abala e nos faz tantas vezes vacilar. Por isso, nunca nos podemos cansar de escutar as palavras que S. Paulo dirigiu aos romanos e que hoje dirige a cada um de nós: «Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?».

Subamos com Jesus ao monte! Percorramos com esperança este tempo da Quaresma, e façamos dele um tempo de alegre conversão. Como os discípulos, ainda somos aprendizes sobre o que significa ressuscitar dos mortos, mas a luz resplandecente do Ressuscitado rasga para nós horizontes de esperança e conduz-nos à verdade plena e definitiva que só o Senhor Jesus nos pode revelar.in Voz Portucalense

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No dia 14 de fevereiro, com a celebração da Quarta-feira de Cinzas, demos início ao sagrado tempo da Quaresma. O Irmão Roger, fundador da comunidade de Taizé, recordava em cada ano aos seus irmãos que a Quaresma é «tempo de cantar a alegria do perdão». Esta consciência deve animar a vida das comunidades cristãs e ajudar a preparar os fiéis para viverem o tempo quaresmal como oportunidade de conversão e proposta alegre de renovação de vida. Os três exercícios espirituais próprios da Quaresma – oração, jejum e esmola – devem ser propostos em cada ano com renovada criatividade para levar a uma renovada prática. O Papa Francisco escreveu para esta Quaresma uma mensagem intitulada: «Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade». A meditação e aprofundamento desta mensagem é uma oportunidade para viver e celebrar melhor este tempo da Quaresma.in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 22,1-2.9a.10-13.15-18

Naqueles dias,
Deus quis pôr à prova Abraão e chamou-o:
«Abraão!»
Ele respondeu: «Aqui estou».
Deus disse: «Toma o teu filho,
o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac,
e vai à terra de Moriá,
onde o oferecerás em holocausto,
num dos montes que Eu te indicar.
Quando chegaram ao local designado por Deus,
Abraão levantou um altar e colocou a lenha sobre ele.
Depois, estendendo a mão, puxou do cutelo para degolar o filho.
Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe do alto do Céu:
«Abraão, Abraão!»
«Aqui estou, Senhor», respondeu ele.
O Anjo prosseguiu:
«Não levantes a mão contra o menino,
não lhe faças mal algum.
Agora sei que na verdade temes a Deus,
uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu único filho».
Abraão ergueu os olhos
e viu atrás de si um carneiro, preso pelos chifres num silvado.
Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em vez do filho.
O Anjo do Senhor chamou Abraão do Céu pela segunda vez
e disse-lhe:
«Por Mim próprio te juro – oráculo do Senhor –
já que assim procedeste
e não Me recusaste o teu filho, o teu único filho,
abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência
como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar,
e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas.
Porque obedeceste à minha voz,
na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».

CONTEXTO

A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o segundo milénio e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.

O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é aquilo a que os biblistas chamam uma “lenda cultual”. Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na zona. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição.

Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na zona. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

Numa terceira fase (talvez por volta do séc. VIII a.C.), os teólogos de Israel pegaram na antiga lenda cultual e utilizaram-na para ilustrar a catequese que queriam apresentar. Serviu para dizer que o crente ideal é aquele que, como Abraão, não hesita em acolher a vontade e os desafios de Deus.

Por fim, um redator posterior acrescentou ao texto outros elementos de carácter teológico. Foi ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O comportamento de Abraão nesta “crise” revela, antes de mais, o lugar absolutamente central que Deus ocupa na sua existência. Deus é, para Abraão, o valor máximo, a prioridade fundamental; por isso, Abraão mostra-se disposto a fazer a Deus um dom total de si próprio, da sua família, do seu futuro, dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus projetos, dos seus interesses. Para Abraão, nada mais conta quando estão em jogo os planos de Deus… Na vida do homem do séc. XXI, contudo, nem sempre Deus ocupa o lugar que Lhe é devido. Com frequência, o dinheiro, o poder, a carreira profissional, o reconhecimento social, o sucesso, a influência dos líderes de opinião, ocupam o lugar de Deus e determinam as nossas opções, os nossos interesses, os valores que priorizamos. À luz da figura de Abraão, procuramos, nesta Quaresma, rever as nossas prioridades e a dar a Deus, no cenário da nossa vida, o lugar que Ele merece?
  • Na sua relação com Deus, o crente Abraão manifesta uma vasta gama de “qualidades” – a reverência, o respeito, a humildade, a disponibilidade, a obediência, a confiança, o amor, a fé – que o definem como o crente “ideal”, o modelo para os crentes de todas as épocas. Neste tempo de preparação para a Páscoa (para a Vida nova), são estas “qualidades” que nos são propostas, também. Estamos disponíveis para concretizar um processo de conversão que nos torne cada vez mais atentos e disponíveis para acolher e para viver na fidelidade aos planos de Deus?
  • O crente Abraão ensina-nos, ainda, a confiar em Deus, mesmo quando tudo parece cair à nossa volta e quando os caminhos de Deus se revelam estranhos e incompreensíveis. Quando os nossos projetos se desmoronam, quando as nuvens negras da guerra, da violência, da opressão, se acastelam no horizonte da nossa existência, quando o sofrimento nos leva ao desespero, é preciso continuar a caminhar serenamente, confiando nesse Deus que é a nossa esperança e que tem um projeto de Vida plena para nós e para o mundo. Deus é, para nós, esse rochedo firme que nos suporta nas crises e vicissitudes com que a vida, tantas vezes, nos surpreende?
  • Quando os catequistas de Israel põem Deus a dizer que a obediência de Abraão é fonte de vida para ele, para a sua família e para “todas as nações da terra”, estão a afirmar a validade do caminho que Abraão escolheu. Fazemos de Deus o centro da própria existência e renunciamos aos próprios critérios e interesses para cumprir os planos de Deus, não como uma escravidão que coarta a liberdade do homem, mas como uma opção que nos abre novas e que nos proporciona o acesso à Vida plena e verdadeira? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)

Refrão 1:  Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

Confiei no Senhor, mesmo quando disse:
«Sou um homem de todo infeliz».
É preciosa aos olhos do Senhor
a morte dos seus fiéis.

Senhor, sou vosso servo, filho da vossa serva:
quebrastes as minhas cadeias.
Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor,
invocando, Senhor, o vosso nome.

Cumprirei as minhas promessas ao Senhor
na presença de todo o povo,
nos átrios da casa do Senhor,
dentro dos teus muros, Jerusalém.

LEITURA II – Romanos 8,31b-34

Irmãos:
Se Deus está por nós, quem estará contra nós?
Deus, que não poupou o seu próprio Filho,
mas O entregou à morte por todos nós,
como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?
Quem acusará os eleitos de Deus?
Deus, que os justifica?
E quem os condenará?
Cristo Jesus, que morreu, e mais ainda, que ressuscitou
e que está à direita de Deus e intercede por nós?

CONTEXTO

Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rm 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente. Dirigindo-se por carta aos cristãos de Roma, Paulo aproveita para estabelecer laços com eles e para lhes apresentar os principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade, um problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.

Na primeira parte da Carta (cf. Rm 1,18-11,36), Paulo vai fazer notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Embora o pecado seja uma realidade universal, que afeta todos os homens (cf. Rm 1,18-3,20), a “justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção (cf. Rm 3,1-5,11); e é em Jesus Cristo que essa vida se comunica e que transforma o homem (cf. Rm 5,12-8,39). Batizados em Cristo, os cristãos morrem para o pecado e nascem para uma vida nova. Passam a ser conduzidos pelo Espírito e tornam-se filhos de Deus; libertados do pecado e da morte, produzem frutos de santificação e caminham para a Vida eterna.

É depois de desenvolver esta reflexão que Paulo entende celebrar o amor salvador de Deus com um hino (cf. Rm 8,31-39): é nesse amor que os filhos e filhas de Deus podem fundamentar a sua esperança no triunfo final.

A segunda leitura deste dia é parte desse hino (Rm 8,31b-34).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Para Paulo, há uma constatação incrível, que não cessa de o espantar: Deus ama-nos com um amor profundo, total, radical, que nada nem ninguém consegue apagar ou eliminar. Esse amor veio ao nosso encontro em Jesus Cristo, atingiu a nossa existência e transformou-a, capacitando-nos para caminharmos ao encontro da vida eterna. Ora, antes de mais, é esta descoberta que Paulo nos convida a fazer… Nos momentos de crise, de desilusão, de perseguição, de orfandade, quando parece que todo o mundo está contra nós e que não entende a nossa luta e o nosso compromisso, a Palavra de Deus grita: “não tenhais medo; Deus ama-vos”. Esta certeza reside no nosso coração e anima todos os nossos passos?
  • Descobrir o amor de Deus por nós dá-nos a coragem necessária para enfrentar a vida com serenidade, com tranquilidade e com o coração cheio de paz. O crente é aquele homem ou mulher que não tem medo de nada porque está consciente de que Deus o ama e que lhe oferece, aconteça o que acontecer, a vida em plenitude. Procuramos entregar a nossa vida como dom, correr riscos na luta pela paz e pela justiça, enfrentar os poderes da opressão e da morte, porque confiamos no Deus que nos ama e nos salva? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 9,2-10

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

CONTEXTO

Marcos situa o episódio da transfiguração num momento charneira da atividade de Jesus. Estamos na fase final da etapa da Galileia, antes de Jesus se dirigir para Jerusalém. É um momento decisivo para o projeto do Reino.

Depois do êxito inicial da sua pregação, Jesus vinha sentindo cada vez mais resistência, por parte dos líderes religiosos locais, ao seu anúncio. Pouco antes do episódio da transfiguração, os fariseus e alguns doutores da Lei tinham criticado a liberdade de Jesus face às tradições religiosas judaicas; e, em resposta, Jesus tinha-os acusado de se preocuparem com ritos externos e de não terem em conta o essencial (cf. Mc 7,1-23). Depois, os fariseus tinham exigido que Jesus lhes desse um sinal de que atuava em nome de Deus; e Jesus tinha recusado (cf. Mc 8,11-13). Parecia cada vez mais claro que o judaísmo oficial nunca iria aceitar Jesus e o seu projeto.

Para os discípulos de Jesus, isto levantava questões inquietantes… Eles viam Jesus como “o Messias” que Israel esperava ansiosamente (cf. Mc 8,29-30); mas as autoridades judaicas estavam contra Ele e não lhe davam crédito. Teriam os discípulos feito um erro de cálculo quando acreditaram em Jesus e se dispuseram a andar com Ele?

As coisas ficaram ainda mais complicadas quando Jesus comunicou aos discípulos a sua decisão de se dirigir para Jerusalém e os avisou de que lá iria sofrer muito e ser morto pelas autoridades (Ele tinha acrescentado que iria ressuscitar depois de três dias; mas, nessa altura, os discípulos não sabiam bem o que é que isso queria dizer – cf. Mc 8,31). Pedro atreveu-se a contestar a decisão de Jesus; e Jesus convidou-o a pôr-se no seu lugar de discípulo e a não ser obstáculo ao projeto de Deus (cf. Mc 8,32-33). Mais ainda: antes de começar a caminhar para Jerusalém, Jesus convidou os discípulos a renegar-se a si mesmos, a “tomar a cruz” e a segui-l’O no caminho do dom da vida até à morte (cf. Mc 8,34-38). Valeria a pena seguir um Mestre que só tinha a cruz para oferecer?

Face a este estado de coisas, Jesus achou que tinha chegado a hora de revitalizar o ânimo dos discípulos. Chamou, então, Pedro, Tiago e João – o “núcleo duro” daquele grupo – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Nesse dia e nesse monte eles iriam ser confrontados com o princípio e o fundamento do caminho proposto por Jesus.

O texto não identifica o “monte elevado” para onde Jesus, Pedro, Tiago e João se dirigiram. Contudo, a tradição fala do Monte Tabor, uma montanha com 588 metros de altura, situada no meio da planície de Jezreel, coberta de carvalhos, pinheiros, ciprestes, aroeiras e plantas silvestres. O Tabor tinha sido, nos tempos antigos, um lugar sagrado para os povos cananeus.

            Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, a voz que vem do céu e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato exato de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a confirmar a verdade da proposta de Jesus.in Dehonianos

Transfiguração (Ícone)

Transfiguração – Teofania da divindade de Cristo e da Santíssima Trindade

Segundo os relatos neotestamentários (Mt 17,1-9; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36; e 2 Pe 1,16-19), as personagens deste ícone aparecem já no mosaico que ornamenta o quarto de esfera da abside da basílica justiniana do monte Sinai (ano 565-566), reproduzido na revista Bíblica, nº 375, p. 45/93.

O nosso ícone (cerca de 1403) é atribuído ao célebre iconógrafo bizantino, ativo na Rússia, Teófano ou Teófanes o grego – Theophánēs, em grego; Feofán, em russo –, ou a um dos seus alunos. Esta pintura sobre madeira foi realizada para a catedral da Transfiguração do Nosso Salvador, em Pereslávlh-Zalésskiy (principado de Moscovo); trazida para Moscovo em 1923, encontra-se desde 1930 na Galeria do Estado Tretiakóv, em Moscovo (Rússia).

A composição é formada por três zonas horizontais de altura desigual. A mais alta é a superior, onde se representa Jesus transfigurado, ladeado por dois personagens ligeiramente inclinados para Ele: Moisés à sua esquerda e Elias à sua direita; os quais foram transportados por anjos sobre nuvens (segundo uma antiga tradição mantida sobretudo em ambiente eslavo), como se figura, nos cantos superiores, dentro de dois ‘quadrinhos’ redondos em forma precisamente de nuvem.

            Jesus, ao centro da zona superior, todo Ele é luz (cf. Jo 1, 4), iluminando todo o ícone. Por trás dele, veem-se dois círculos luminosos sobrepostos, que representam os céus, o de fora semeado de pequenas estrelas. O interior do círculo mais pequeno é escuro, e representa a «luz inacessível», em que Deus habita (cf. prefácio da Oração Eucarística IV). Nos ícones russos desta época é habitual figurar um triângulo em forma de ponta lança, cuja base é substituída por outras três pontas do mesmo formato, simbolizando a Santíssima Trindade, dirigindo-se as três pontas da base em direção a cada um dos três apóstolos escolhidos.

No nosso ícone, aparece a duplicação deste género de triângulo (um para cima e outro para baixo), que se interpenetram, formando uma estrela de seis pontas (cf. Ap 22,16), tendo três pontas dirigidas para o alto, para os seres angélicos e celestes, e três pontas dirigidas para baixo, para o mundo e os seres terrestres; sobrepondo Jesus o losango central de interceção dos dois triângulos, significando as suas duas naturezas, divina e humana.

            Moisés, à nossa direita, é figurado como jovem (cf. Dt 34, 7) e sustenta nas mãos o códice da Lei (Torah), cujas pontas inferiores se sobrepõem aos dois círculos luminosos. O círculo interior está descentrado em relação ao exterior, tendo o centro na mão esquerda de Jesus, a qual sustenta um rolo – Jesus vem dar pleno cumprimento à lei antiga, levando-a à perfeição (cf. Mt 5,17).

O profeta Elias, com longos cabelos e barbas, cruza os braços, formado um T (cf. Mt 5, 18: ῖ = iota e til), designando com a mão direita o Salvador. Aliás, a Festa da transfiguração (a 6 de agosto) foi colocada 40 dias antes da Festa da Exaltação da Santa Cruz (a 14 de setembro), que fora instituída antes.

Na zona inferior, um pouco mais pequena em altura, estão figurados os três apóstolos que tiveram a visão; da esquerda para a direita: Pedro, João e Tiago. Três raios azuis partem de Cristo em direção a estes, indicando que a transfiguração (em grego, metamórphosis) não foi tanto de Cristo como dos olhos dos apóstolos (ver, a este propósito, o meu artigo “Metamorfose do olhar”, na revista Brotéria, vol. 142, pp.413-424).

Os discípulos caem por terra. Despertando, Pedro, ajoelhado, dirige a Jesus o seu discurso errado, pois não se devem fazer tendas distintas – a Lei, os Profetas e o Evangelho –, mas, porque todas fazem par-te da Revelação divina consignada na mesma Sagrada Escritura, são guardadas na mesma tenda, que é a Igreja de Deus [cf. Orígenes].

Na zona intermédia, de altura mais pequena, vê-se, dentro de ‘quadrinhos’ em forma de grutas, Jesus seguido pelos três apóstolos escolhidos, a subir e a descer o monte, respetivamente à nossa esquerda e à nossa direita. «Contemplar e transmitir as coisas contempladas» (S. Tomás de Aquino) é o ideal do Pregador. A oração está na base do anúncio integral do Evangelho, com a vida, as palavras e ações poderosas (cf. Mt 5,16; Mc 9,29).

Pela graça todos nós podemos ser divinizados, ou seja, metamorfoseados na imagem de Cristo, pela ação do Espírito Santo (cf. 2 Cor 3,18).

frei António-José d’Almeida, OP / Convento de Cristo Rei, Porto
in 
revista Bíblica 377 (julho-agosto 2018), pp. 40-41.

INTERPELAÇÕES

  • Neste segundo domingo da Quaresma façamos, também nós, a experiência de subir com Jesus ao monte… Enquanto subimos, podemos conversar com Ele e, com toda a sinceridade, dizer-Lhe as nossas dúvidas e inquietações. Podemos dizer-Lhe que, por vezes, nos sentimos perdidos e desanimados diante da forma como o nosso mundo se constrói; podemos dizer-lhe que o caminho que Ele aponta é duro e exigente e que não sabemos se teremos a coragem de o percorrer até ao fim; podemos até dizer-lhe, talvez com alguma vergonha, que às vezes duvidamos dele e corremos atrás de outras apostas, mais cómodas, mais atraentes e menos arriscadas… E, depois de lhe dizermos isso tudo, deixemos que Jesus nos fale, nos explique o seu projeto, nos renove o seu desafio… E vamos, também, prestar atenção à voz de Deus que nos garante: “olhem que esse Jesus que Eu enviei ao vosso encontro é o meu Filho amado, aquele a quem Eu entreguei o projeto de um mundo mais humano e mais fraterno… Confirmo a verdade do caminho que Ele vos propõe. Escutai-O, ide com Ele, acolhei as suas propostas e indicações, mesmo que tenhais de remar contra a maré. O caminho que Ele vos aponta pode passar pela cruz, mas conduz à Vida verdadeira, à ressurreição”. É com estas atitudes que somos seguidores de Jesus Cristo?
  • “Este é o meu Filho amado. Escutai-o”. É verdade: precisamos de escutar Jesus mais e melhor. Quando o “escutamos” – quer dizer, quando ouvimos o que Ele nos diz, quando acolhemos no coração as suas indicações e quando procuramos concretizá-las na vida – começamos a ver tudo com uma luz mais clara. Começamos a perceber qual é a maneira mais humana de enfrentar os problemas da vida e os males do nosso mundo; damos conta dos grandes erros que os seres humanos podem cometer e descobrimos as soluções que Deus nos aponta… Escutar Jesus pode curar-nos das nossas cegueiras seculares, dos preconceitos que nos impedem de acolher a novidade de Deus, dos medos que nos paralisam; escutar Jesus pode libertar-nos de desalentos e cobardias, e abrir o nosso coração à esperança. A escuta de Jesus está no centro da nossa experiência de fé? Nas nossas comunidades cristãs damos espaço suficiente à escuta de Jesus?
  • O tempo de Quaresma é um tempo favorável de conversão, de transformação, de renovação. Traz-nos um convite a questionarmos a nossa forma de encarar a vida, os valores que priorizamos, as opções que vamos fazendo, as nossas certezas e apostas, os nossos interesses e projetos… O que é que eu, pessoalmente, necessito de mudar, na minha forma de pensar e de agir, a fim de me tornar um discípulo coerente e comprometido, que segue Jesus no caminho do amor levado até às últimas consequências, até ao dom total de si próprio?
  • É verdade que, para muitos dos nossos contemporâneos, o caminho proposto por Jesus não parece muito entusiasmante… Não assegura bem-estar, nem bens materiais, nem triunfos, nem reconhecimento, nem fama, nem poder, nem tranquilidade, nem qualquer outro valor que muitos dos homens e mulheres do nosso tempo consideram fundamentais para que as suas vidas tenham algum sentido. Contudo, nós, discípulos de Jesus, acreditamos que só o amor – o amor vivido como serviço, como dom de si próprio, ao estilo de Jesus – dá sentido à vida; acreditamos que a construção de um mundo novo – mais humano, mais são, mais verdadeiro – depende de acolhermos e vivermos as propostas de Jesus. O que poderemos fazer para contagiar os nossos irmãos e irmãs com o nosso entusiasmo por Jesus e pelo seu projeto de um mundo novo?
  • Pedro, Tiago e João, testemunhas da transfiguração de Jesus, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e de enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Propõem fazer três tendas e ficar no cimo daquele monte, onde tudo parece tão fácil e tão indolor. Representam aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga-nos a “regressar ao mundo” para testemunhar aos homens, mesmo contra a corrente, que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. Assumimos a nossa ligação a Deus, não como uma droga que nos adormece, mas como compromisso com Deus que se concretiza no esforço de construirmos um mundo mais justo, mais humano, mais cheio de amor? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura deve ter-se em conta as várias intervenções em discurso direto que dominam todo o texto. Os diversos diálogos devem ser bem articulados para uma melhor compreensão do texto.

A segunda leitura, apesar da sua brevidade, exige uma acurada preparação uma vez que é composta apenas por frases interrogativas. Deve evitar-se dar a entoação interrogativa unicamente no final das frases, aproveitando as partículas interrogativas e as formas verbais.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A SOLENE EXPOSIÇÃO DO FILHO

Batizado com o Espírito Santo (Marcos 1,9-10), chamado pelo Pai «o Filho meu», «o Amado» (Marcos 1,11), tentado durante quarenta dias no nosso deserto, mas superando a prova, dominando pela doçura os animais e a nossa selvagem animalidade, Jesus, totalmente vinculado ao Pai, pois d’Ele é o Filho, o Amado, vincula-se também à nossa humana condição e vincula-nos a Si («Vamos» [ágômen]: o mesmo dizer vinculativo em Marcos 1,38, na hora da Missão, e Marcos 14,42, na hora da Paixão), refazendo os nossos caminhos há muito por nós abandonados. O seu caminho filial batismal é agora também o nosso caminho.

O Evangelho de Marcos refere, de facto, que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Marcos 1,37), e nos levou consigo, na hora da Missão, a Anunciar o Evangelho de Deus pelos caminhos da Galileia (Marcos 1,38), prolepse fantástica da inteira vida cristã, discipular e apostólica: com Jesus nos caminhos da sua Missão, que passam também pelo caminho da sua Paixão (Marcos 14,42). A locução «no caminho» (en tê hodô), usada sobretudo na importante secção do seguimento de Jesus «no caminho» (Marcos 8,27-10,52), fazendo-se aí ouvir por cinco vezes (Marcos 8,27; 9,33.34; 10,32.52), ajuda-nos a compreender ainda melhor que o discípulo de Jesus deve aprender a «dizer vigorosamente não» (apernéomai) a si mesmo (Marcos 8,34), expressão fortíssima empregada no texto grego de Isaías para dizer «desfazer-se dos seus ídolos de ouro e prata» (Isaías 31,7), para fazer completamente seu o mesmo caminho de Jesus.

É assim que chegamos ao Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Marcos 9,2-10), em que nos é mostrada, no meio do caminho de Jesus, a cena extraordinária da Transfiguração de Jesus. A iniciativa começa por ser de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tigo e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto, mas passa logo para Deus com o passivo divino ou teológico «foi transfigurado» (metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Marcos 9,2). É a segunda vez que Jesus toma consigo apenas Pedro, Tiago e João (a primeira foi aquando da ressuscitação da filha de Jairo: 5,35-43). O facto de os levar para um monte alto, significa que o que se vai passar cai fora da agitação da vida quotidiana; a transfiguração de Jesus não se realiza na praça pública ou perante uma grande multidão. Não é narrada a figura de Jesus transfigurado. Apenas se fala das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Marcos 9,3). Fala-se também da «aparição» de Elias com Moisés (Marcos 9,4). A «aparição» de Moisés e Elias faz-nos compreender que Jesus não surge de improviso, mas se insere numa longa história que retrata a solicitude de Deus com o seu povo. «Aparição»: literalmente «fez-se ver» (ôpthê: aoristo passivo de horáô) «a eles» (autoîs). Trata-se de um passivo intransitivo, isto é, são Moisés e Elias que se fazem ver a eles, isto é, a Pedro, Tiago e João, e não são estes que veem Moisés e Elias. De per si, os nossos olhos não têm capacidade de ver tanto. Por isso também aquele «a eles» é gramaticalmente chamado um dativo do beneficiário. Eles beneficiam desta visão. É também desta maneira que são apresentadas as aparições de Deus no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.

Em Marcos 9,5, Pedro reage a tanto ver. Mas o seu dizer não se ajusta ao contexto, é manifestamente desapropriado. Tendas terrenas não podem abrigar seres celestes. Por isso, certeiramente nos diz o narrador que «não sabia o que dizia» (Marcos 9,6).

E eis o clímax do relato, com a introdução de dois elementos divinos: a nuvem e a voz, símbolos respetivamente da presença velada de Deus e da sua transcendência (Êxodo 24,16). Da nuvem uma voz, a voz de Deus, o único que sabe dizer bem o que se passa: «Este é o Filho meu, o Amado» (Marcos 9,8). Notem-se duas pequenas diferenças em relação ao cenário do Batismo. Aí, a voz de Deus provém do céu (não da nuvem), e dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: «Tu és o Filho meu, o Amado» (Marcos 1,11). Aqui, a voz provém da nuvem, e dirige-se a nós, em 3.ª pessoa. É, portanto, a apresentação que Deus nos faz do Seu próprio Filho. Tanto que, acrescenta logo o imperativo: «Escutai-O» (Marcos 9,8). Com este divino dizer, o Pai vincula a Si o Seu Filho do modo mais profundo: Deus não se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos a nós também ao Seu Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar todos os dias, a Pessoa a quem devemos prestar atenção todos os dias. Note-se que o Filho é, antes de mais, aquele que recebe a vida, e só depois aquele que tem uma missão para cumprir. Está aqui o escândalo da revelação: Deus não se qualifica apenas como Criador e Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe, para a dar!

Eis-nos, portanto, outra vez a sós com Jesus (Marcos 9,8), que põe a Transfiguração em linha com a Ressurreição, abrindo-nos já proleticamente os caminhos da Missão depois da Ressurreição. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem dada por Jesus ao descer do monte de «A ninguém narrarem (diêgéomai) o que viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos» (Marcos 9,9).

Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical pausa e bemol. Na verdade, não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor e independentemente da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar, porque nós falamos sempre antes do tempo! Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos conduzirem, entregando-vos, não vos preocupeis com o que ides falar (laléô); mas o que vos for dado (dothê: conj. aor. pass. de dídômi) nessa hora, isso falai (laléô); na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas o ESPÍRITO SANTO» (Marcos 13,11). Falar, com o verbo laléô, é linguagem de revelação e ultrapassa os níveis da nossa competência!

A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Marcos 9,2), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e as suas vestes tornaram-se resplandecentes, grandemente brancas» (Marcos 9,2-3). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).

A Lição do Livro do Génesis 22,1-18 apresenta-nos a figura de Abraão, também ele vencedor da prova da sempre idolátrica posse que se apega a nós e a que nós nos apegamos. Na verdade, há ainda uma última posse de que Abraão tem de ser libertado: em relação a Abraão, o narrador insiste em chamar a Isaac «seu» filho (Génesis 22,3.6.9.10.13), e o próprio Abraão diz para Isaac «meu» filho (Génesis 22,7 e 8). Um refrão os reúne por duas vezes: «E iam os dois juntos» (Génesis 22,6 e 8). Ora, Isaac é o filho da promessa, é um dom, e um dom não é para se reter ou possuir. Segundo o dizer autorizado do anjo do Senhor que se faz ouvir dos céus por duas vezes, Abraão passa a prova exatamente porque «não retiveste o teu filho, o teu único, longe de mim» (Génesis 22,12 e 16). Abraão não o reteve. Deu-o. Desapossou-se dele. Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua paternidade, «fazendo subir em holocausto», não um cordeiro (seh) (Génesis 22,7-8), mas um carneiro (ʼayil) (Gn 22,13). Neste episódio imenso, intenso e nebuloso, nós podemos, todavia, compreender que, em vez de sacrificar Isaac, Abraão deverá sacrificar a sua vontade de o possuir como propriedade: é esta vontade que é mortal. Procedendo assim, Abraão é o anti-Adam. É preciso testemunhas desta libertação imensa, incrível, dramática, divina. São os dois jovens depositários do dizer de Abraão: «Vamos lá acima adorar, e voltaremos para vós» (Génesis 22,5. Importante dizer, dado que, após a ação de adoração lá em cima, o narrador dirá: «Voltou Abraão para os jovens» (Génesis 22,19). Depositários de um dizer que afirmava o regresso de Abraão e Isaac, as duas testemunhas podem constatar agora, não o regresso dos dois, mas somente de Abraão. Lição de insuperável liberdade.

Outro imenso texto de São Paulo atravessa este Domingo II da Quaresma: Romanos 8,31‑34. «Deus entregou o seu Filho por nós» (Romanos 8,32). Eis o Desígnio (Mistério) de Deus anunciado no Antigo Testamento, realizado em Cristo, batizado para a Morte, confirmado para a Morte, entregue por Deus à Morte. Nesta Morte Gloriosa fomos nós batizados e confirmados com o Espírito Santo e com o fogo, e foi‑nos dado a conhecer esse Desígnio (Mistério conhecido!) (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑l0; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). Desígnio (Mistério)de Deus anunciado, realizado, e dado a conhecer. A nossa missão filial batismal é proclamá‑lo e testemunhá‑lo como o Apóstolo o proclama e testemunha.

O Salmo 116 é o quarto canto do chamado «Hallel Pascal», que reúne os Salmos 113-118. O Salmo 116 enche de música e de cor a Ceia Pascal hebraica. Na verdade, neste Salmo, canta-se a liberdade e a alegria confiante de vermos a nossa vida segura nas mãos de Deus, que nos retira do esquecimento do túmulo, e reacende a chama que se extingue. Entre os admiradores deste Salmo conta-se, com algum espanto nosso, o filósofo francês Voltaire (1694-1778), que privilegiava o v. 12: «Como restituirei (heshîb) ao Senhor por todos os seus benefícios (gemûlôt) que me deu?». O Salmo fornece logo a seguir a resposta: «O cálice da salvação erguerei,/ e o Nome do Senhor invocarei./ Os meus votos ao Senhor cumprirei,/ diante de todo o seu povo» (vv. 13-14). Este cálice erguido e partilhado assinala, no ritual (seder) da Ceia Pascal hebraica, o momento em que ia passando entre os comensais a terceira taça de vinho, a da Ação de Graças. De resto, o orante sabe bem que não pode «restituir» a Deus. Por isso, no Saltério, o sujeito do verbo «restituir» (heshîb: hiphil de shûb) é, por norma, Deus (21 sobre 28 vezes). Mas o orante pode sempre agradecer a Deus e anunciar a todos que Deus atua em favor do seu povo, ação de evangelização.

A Quaresma é uma estrada
Entrecortada
Por estações de serviço de paz e de perdão,
Uma avenida
Florida
De oração,
Uma praça
De graça
E contemplação.
 

A Quaresma é uma escada,
Que do céu desce,
Trazendo até nós a mão de Deus,
E ao céu se eleva,
Levando até Deus a nossa prece.
 

A Quaresma é um caminho
Direitinho
Ao coração.
É preciso limpá-lo
De todo o lixo acumulado.
É preciso entregá-lo a Deus,
Limpo e cultivado.
 

Senhor desta estrada deserta,
Que vai de Jerusalém a Gaza,
Mantém a minha alma sempre alerta,
Conduz nesta viagem os meus passos,
Pegada a pegada,
Até ao limiar da tua casa
Iluminada.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 (Gen 22, 1-2.9a.10-13.15-18)
  2. Leitura II do Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 (Rom 8, 31b-34)
  3. Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024

Viver a Palavra

«O Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto». No início deste tempo da Quaresma, o Evangelho convida-nos a contemplar Jesus que é impelido para o deserto, onde será tentado por Satanás. Jesus é o Homem Novo na plenitude do Espírito. Ungido pela força do Espírito de Deus vem para cumprir a vontade do Pai.

Batizados em Cristo, também nós somos enviados pela força do Espírito para percorrer os caminhos da missão. Parece sempre paradoxal e até estranho que o Espírito conduza Jesus ao deserto para ser tentado. Recordando o caminho percorrido pelo Povo de Israel a caminho da terra da promessa, percebemos como o deserto é lugar de tribulação e provação. Quantas vezes o Povo se afastou da Lei de Deus, se revoltou contra o Senhor e até adorou outras divindades. Contudo, também sabemos como foram tantas as manifestações da solicitude e do poder de Deus ao logo do caminho do deserto e como Deus, apesar da infidelidade do Povo, saciou a sua sede com a água que jorrou do rochedo, lhes fez chegar o maná e a carne para comer, lhes ofereceu a Lei, os acompanhou durante o dia numa coluna de nuvem e de noite numa coluna de fogo para os iluminar.

Deste modo, o deserto pode ser um lugar de perdição e afastamento de Deus, mas pode ser também uma oportunidade para um renovado encontro com o Senhor. As tentações são isto mesmo! São lugares de confronto com a nossa fragilidade e liberdade e o importante é fazer de cada tentação a oportunidade para renovar o nosso sim a Deus e à Sua vontade. Conduzido pelo Espírito ao deserto e sendo tentado por Satanás, Jesus mantém-se firme na fidelidade ao projeto do Pai. Cada batizado, diante de cada tentação, revestido da força do Espírito, é chamado a renovar a Sua opção por Deus e pelo Seu amor.

Porém, o deserto, tal como as tentações da nossa vida são um lugar provisório, por isso, depois da prisão de João, Jesus partiu para a Galileia e iniciou a Sua pregação, fazendo ecoar as Suas primeiras palavras: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

Sempre que escuto as palavras de Jesus «cumpriu-se o tempo», não consigo deixar de pensar como tantas vezes empregamos esta expressão para falar sobre o final do tempo da gravidez e o momento de uma mulher dar à luz. Efetivamente, o anúncio do Reino é anúncio alegre e jubiloso de uma vida nova que está a despontar. O Reino de Deus está próximo e já se pode saborear na presença terna e amorosa de Jesus Cristo. Por isso, é tempo de arrependimento e de conversão, tempo da alegre transformação do coração que torna a vida num lugar mais belo e o mundo num lugar mais feliz.

A conversão e o arrependimento só se podem conjugar com a plena e consciente adesão ao Evangelho. Aquele que se encontrou com Jesus e acolheu o Seu Evangelho como Palavra de Vida abraça uma nova forma de ser e de estar que se caracteriza por um modo novo de servir e amar. Assim, a conversão transforma-se num lugar feliz de aperfeiçoamento permanente, que nos permite reconhecer na nossa fragilidade e no nosso pecado uma oportunidade de crescimento e de renovação do coração e da vida. A vida de quantos entram neste dinamismo de conversão transforma-se num arco-íris luminoso que continua a irradiar no tempo e na história a certeza de que Deus não nos abandona. in Voz Portucalense

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O diretório litúrgico oferece duas indicações importantes para o primeiro Domingo da Quaresma: «No caso de não o ter recordado na Quarta-Feira de Cinzas, lembrar aos fiéis que, em união com a Paixão do Senhor e em espírito de penitência mais visível, nas sextas-feiras da Quaresma se deve escolher uma alimentação simples e pobre, que poderá concretizar-se na abstenção de carne» e «Lembrar-lhes também a finalidade das Renúncias Quaresmais deste ano, proposta pelo Bispo da Diocese». Deste modo, neste Domingo, deve recordar-se os fiéis da importância de fazer deste tempo da Quaresma um tempo diferente, marcando o tempo e o ritmo dos dias com o apelo à conversão que abre à renovação de vida. Além disso, deve comunicar-se a finalidade das renúncias quaresmais, recordando como penitência e caridade estão unidas. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 9,8-15

Deus disse a Noé e a seus filhos:
«Estabelecerei a minha aliança convosco,
com a vossa descendência
e com todos os seres vivos que vos acompanham:
as aves, os animais domésticos,
os animais selvagens que estão convosco,
todos quantos saíram da arca e agora vivem na terra.
Estabelecerei convosco a minha aliança:
de hoje em diante
nenhuma criatura será exterminada pelas águas do dilúvio
e nunca mais um dilúvio devastará a terra».
Deus disse ainda:
«Este é o sinal da aliança que estabeleço convosco
e com todos os animais que vivem entre vós,
por todas as gerações futuras:
farei aparecer o meu arco sobre as nuvens
e aparecer nas nuvens o arco,
recordarei a minha aliança convosco
e com todos os seres vivos
e nunca mais as águas formarão um dilúvio
para destruir todas as criaturas».

CONTEXTO

Os primeiros onze capítulos do Livro do Génesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. A intenção dos autores destes textos (os teólogos de Israel) nunca foi apresentar factos históricos concretos ocorridos na aurora da humanidade, mas sim expor as suas convicções e descobertas sobre Deus, sobre o mundo e sobre os seres humanos. Recorreram, para o efeito, a uma linguagem própria, comum aos povos da região do denominado “Crescente Fértil” (a zona geográfica que se estende desde a planície Mesopotâmia até ao Egipto, tornada fértil pelos rios Tigre e Eufrates a norte, e o Nilo a sul). É por isso que estes relatos bíblicos apresentam notáveis semelhanças literárias com certas lendas e mitos de outros povos da zona, nomeadamente os da Mesopotâmia.

O texto que a liturgia deste domingo da Quaresma nos apresenta como primeira leitura faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. Como terá aparecido esta história?

Alguns estudiosos consideram que o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito no livro do Génesis (e que é contado em moldes semelhantes em certos textos mesopotâmicos) se refira a uma das inúmeras inundações dos rios Tigre e Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C… É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, evidentemente, de um dilúvio que submergiu a terra inteira; mas a fantasia popular, a partir de uma das inúmeras inundações registadas na planície mesopotâmica, expandiu as dimensões do acontecimento e apresentou-o como um “castigo” que atingiu toda a humanidade.

Os catequistas de Israel quiseram dizer ao seu Povo que Deus não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, apresentando essa catástrofe como um castigo enviado por Deus para punir o pecado dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.

O texto que hoje nos é proposto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar. Por sua vez, Deus comprometeu-Se a não mais castigar os seres vivos de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família e entregou-lhes o cuidado da criação (cf. Gn 9,1-7). Noé e a sua família são a nova humanidade, nascida da água purificadora do dilúvio. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Todos os dias vemos a maldade que desfeia o mundo… E esta não é uma realidade só deste nosso tempo, mas é uma realidade de sempre. Deus fica indiferente diante do egoísmo, do ódio, da violência, da injustiça, do orgulho, da prepotência que destroem a vida dos seus filhos e que estragam esse mundo bom e belo que Ele nos encarregou de continuamente recriar? Deus finge que não vê tudo aquilo que atenta contra o seu projeto de um mundo onde os homens e as mulheres podem viver felizes e em paz? Há 2600 anos os catequistas de Israel, recorrendo a velhas, mas expressivas linguagens, quiseram dizer que o pecado é algo incompatível com Deus e com os projetos de Deus para o mundo e para o homem. Fizeram-no através da história de um dilúvio purificador, que limpou o mundo de toda a maldade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental. O pecado, nas suas mil e uma formas, destrói a vida e arruína a felicidade do homem; por isso, tem de ser combatido em cada passo. Estamos disponíveis para lutar contra tudo aquilo que, dentro ou fora de nós, potencia o domínio do pecado?
  • Deus odeia o pecado, mas não odeia os seus filhos pecadores. Conscientes disso, os catequistas de Israel falaram-nos de um Deus que vem ao encontro dos homens, abençoa-os e abraça-os, mesmo quando eles, no seu egoísmo e autossuficiência, teimam em trilhar caminhos de pecado e de infidelidade. Nesta Quaresma, procuramos fazer esta experiência de um Deus que nos ama apesar das nossas infidelidades e deixar que o amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova?
  • A lógica do amor de Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e violentos? Procuramos viver este tempo de Quaresma como tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à lógica do amor incondicional, à lógica de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

Refrão:  Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade
para os que são fiéis à vossa aliança.

Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.

Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.

O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer a sua aliança

LEITURA II – 1 Pedro 3,18-22

Caríssimos:
Cristo morreu uma só vez pelos pecados
– o Justo pelos injustos –
para vos conduzir a Deus.
Morreu segundo a carne,
mas voltou à vida pelo Espírito.
Foi por este Espírito que Ele foi pregar
aos espíritos que estavam na prisão da morte
e tinham sido outrora rebeldes,
quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência,
enquanto se construía a arca,
na qual poucas pessoas, oito apenas,
se salvaram através da água.
Esta água é figura do Batismo que agora vos salva,
que não é uma purificação da imundície corporal,
mas o compromisso para com Deus de uma boa consciência;
ele vos salva pela ressurreição de Jesus Cristo,
que subiu ao céu e está à direita de Deus,
tendo sob o seu domínio os Anjos,
as Dominações e as Potestades.

CONTEXTO

A Primeira Carta de Pedro é uma carta dirigida aos cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor (a carta cita explicitamente a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadócia – cf. 1 Pe 1,1). O seu autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro; no entanto, a análise literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor deste texto: em termos literários, a qualidade literária da carta não corresponde à maneira de escrever de um pescador pouco instruído, como seria o caso de Pedro; a teologia apresentada demonstra uma reflexão e uma catequese bem posteriores à época de Pedro; e o “ambiente” descrito na carta corresponde, claramente, à situação da comunidade cristã no final do séc. I, quando Pedro já tinha desaparecido (Pedro, muito provavelmente, foi morto em Roma durante a perseguição de Nero, por volta do ano 67). O autor da carta será, portanto, um cristão anónimo – provavelmente um responsável de alguma comunidade cristã –, culto e que conhece profundamente a situação das comunidades cristãs da Ásia Menor. Ele escreve em finais do séc. I (nunca antes dos anos 80), provavelmente a partir de uma comunidade cristã não identificada da Ásia Menor.

As comunidades a que esta carta se destina são comunidades rurais que vivem à margem das grandes cidades. A maioria dos seus membros são pastores ou camponeses que trabalham propriedades que não lhes pertencem; mas também há entre eles alguns pequenos proprietários de terras. Trata-se, em geral, de gente economicamente débil, vulnerável a um ambiente que começa a manifestar uma crescente hostilidade para com o cristianismo.

O autor da carta conhece as provações que estes cristãos sofrem todos os dias. Exorta-os, no entanto, a manterem-se fiéis à sua fé, apesar das dificuldades. Convida-os a olharem para Cristo, que passou pela experiência da paixão e da cruz, antes de chegar à ressurreição; e exorta-os a manterem a esperança, o amor, a solidariedade, vivendo com alegria, coerência e fidelidade a sua opção cristã.

O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícope (cf. 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor da carta explica qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com as provocações, as injustiças e a hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que mesmo no meio do sofrimento não se cansem de fazer o bem (cf. 1 Pe 3,13-17), o autor da carta apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão “ilógica”: esse foi o exemplo que Cristo deixou. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, “o justo”, depois de uma vida cumprida em modo de dom e entrega ao Pai e aos homens, foi preso, julgado, torturado, condenado e morto na cruz. Talvez aqueles que o viram atravessar as ruas de Jerusalém com a cruz às costas a caminho do calvário, tenham pensado que Ele tinha fracassado e que toda a sua luta tinha sido em vão. No entanto, Deus ressuscitou-O; e, ao ressuscitá-l’O, deu-lhe razão. Ao ressuscitar Jesus, Deus garantiu-nos que uma vida feita dom e serviço, mesmo que termine numa morte injusta, não é uma vida fracassada ou sem sentido. Empenhamo-nos na luta pela justiça, pela verdade e pela paz, quando somos confrontados com a incompreensão, a maledicência, a crítica, a provocação, talvez até o ódio de alguns dos nossos irmãos?
  • Diante dos ataques – às vezes incoerentes e irracionais – daqueles que não se reveem nos valores de Jesus, como reagimos? Com a mesma agressividade com que nos tratam? Com a mesma intolerância dos nossos adversários? Fechando janelas de diálogo e de entendimento com o mundo que nos rodeia e ao qual devemos anunciar o Evangelho?
  • Quando fomos batizados, escolhemos Jesus e fomos vivificados pelo Espírito. Assumimos a responsabilidade de caminhar com Jesus e de sermos semente de uma humanidade nova. Temos vivido com coerência esse compromisso? As nossas palavras e os nossos gestos são anúncio e testemunho, ao vivo e a cores, daquilo que aprendemos com Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,12-15

Naquele tempo,
o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
Jesus esteve no deserto quarenta dias
e era tentado por Satanás.
Vivia com os animais selvagens
e os Anjos serviam-n’O.
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo
e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

CONTEXTO

O Evangelho de Marcos começa com uma introdução (cf. Mc 1,2-13) destinada a apresentar Jesus. Essa introdução aparece em forma de tríptico. No primeiro quadro (cf. Mc 1,2-8), João Batista, “a voz que clama no deserto”, testemunha que Jesus é Aquele que vem “batizar no Espírito Santo” (cf. Mc 1,2-8); no segundo quadro (cf. Mc 1,9-11), é Deus que apresenta Jesus como o Seu “Filho amado”, sobre quem repousa o Espírito; no terceiro quadro, é Marcos, o nosso catequista, que nos fala de Jesus como o Messias que enfrenta e vence o mal, criando as condições para o nascimento de um mundo novo (cf. Mc 1,12-13).

A primeira parte do Evangelho deste primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos, precisamente, o terceiro destes quadros. Situa-nos num “deserto” não identificado, mas não longe do lugar onde Jesus foi batizado por João Batista. É o momento em que Jesus faz a sua opção fundamental.

Mas o texto evangélico deste dia tem uma segunda parte. Aí Marcos apresenta-nos um “sumário-anúncio” da pregação inaugural de Jesus sobre o “Reino” (cf. Mc 1,14-15). Agora já não estamos “no deserto”, mas sim na Galileia, região setentrional da Palestina, terra em permanente contato com o mundo pagão e, portanto, considerada à margem da história da salvação. Mas é precisamente aí que a proposta de Deus ecoa no mundo dos homens. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, ao longo do caminho que percorreu entre nós, foi confrontado com opções. Ele desceu ao terreno movediço onde a vida de cada dia acontece e teve de escolher entre viver na fidelidade aos projetos do Pai, ou frustrar os planos de Deus e enveredar por um caminho de egoísmo, de poder, de autossuficiência. Mas Jesus escolheu viver – de forma total, absoluta – na obediência às propostas do Pai. Nem o espectro da cruz lhe tirou o ânimo para percorrer o caminho que Deus lhe apontava. Nós, discípulos de Jesus, somos confrontados a todos os instantes com as mesmas opções. Qual tem sido a nossa resposta? Na hora crítica de optar, têm prevalecido os nossos interesses pessoais, o nosso desejo de uma vida cómoda e instalada, a nossa vontade de realização e de triunfos, os nossos medos paralisantes, ou a vontade de Deus a nosso respeito?
  • Ao dispor-se a cumprir integralmente o projeto de salvação que o Pai tinha para os homens, Jesus começou a construir um mundo novo, de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava “Reino de Deus”. Nós aderimos a esse projeto e comprometemo-nos com ele no dia em que escolhemos ser seguidores de Jesus. O nosso empenho na construção do “Reino de Deus” tem sido coerente e consequente? Mesmo contra a corrente, temos procurado ser profetas do amor, testemunhas da justiça, servidores da reconciliação, construtores da paz?
  • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. “Converter-se” é renunciar a caminhos de egoísmo e de autossuficiência e recentrar a própria vida em Deus, de forma que Deus e os seus projetos sejam sempre a nossa prioridade máxima. Implica, naturalmente, modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros; exige que sejamos capazes de renunciar ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência, ao comodismo e que voltemos a escutar Deus e as suas propostas. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em termos institucionais – para que aconteça, realmente, esse mundo novo tão esperado?
  • A construção do “Reino de Deus” exige, também, o “acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neotestamentária, a aceitação de certas verdades afirmadas pelo discurso teológico ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projeto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. Nós “acreditamos” em Jesus, incondicionalmente, e estamos dispostos a ir atrás dele no “caminho do discípulo”?
  • O chamamento a integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a uma elite privilegiada, a pessoas que têm uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem exceção. Todos os batizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Aceitamos que o “Reino” se torne o valor fundamental, a grande prioridade, o principal objetivo da nossa vida?
  • O “Reino” é uma realidade que Jesus começou e que já está, decisivamente, implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Sabemos olhar para o mundo com olhos de ver e conseguimos reconhecer, nos gestos de bondade e de amor que não cessam de acontecer, os sinais da presença do “Reino” na vida e na história dos homens? A presença do “Reino” neste mundo onde a nossa vida se cumpre é para nós fonte de alegria e de esperança? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, Deus dirige-se ao povo estabelecendo uma aliança. A proclamação desta leitura deve ser marcada pela alegria que nasce da certeza de que Deus não abandona o Seu povo. Além disso, deve ter-se em atenção as longas frases com diversas orações que requerem uma acurada preparação nas pausas e respirações.

O mesmo cuidado deve ser tido na segunda leitura, pois algumas das quebras do texto no lecionário não correspondem às pausas e respirações

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

DESERTO, LUGAR DE PROVA E DE GRAÇA

Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração / Confirmação no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.

O Evangelho deste Domingo I da Quaresma (Marcos 1,12-15) oferece-nos a figura de Jesus, acabado de apresentar pelo Pai como «o Filho meu, o amado, em quem está o meu comprazimento» (Marcos 1,11), como sintetizador perfeito da vida do povo de Israel e da nossa. Eis, portanto, Jesus impelido pelo Espírito no deserto, durante quarenta dias tentado por satanás, em harmonia com os animais selvagens, servido pelos anjos (Marcos 1,12-13). Excelente analepse em que o narrador faz Jesus descer ao chão de Israel, para assumir as suas fragilidades, elevando a dura realidade do pecado do povo no deserto, e do nosso pecado, a um registo de salvação. O deserto foi lugar de tentação e de queda para o povo de Israel durante quarenta anos, o tempo de uma geração, uma vida inteira, o tempo todo. Mas o deserto era também o lugar da graça, pois era Deus que no deserto conduzia o seu povo, como se recita no velho «credo» de Israel. Esquecendo a graça de Deus que nos conduz, facilmente nos atolamos na areia do deserto, e não se passa a prova. Eis, então, que Jesus desce a esse chão arenoso, ao nosso chão, experimenta a nossa condição. Atravessa e supera a prova, impelido pelo Espírito da graça. Novo aceno. O homem, eu e tu, nós, recebemos de Deus o mandato do domínio manso da terra e dos animais (Génesis 1,26 e 28). Sem sucesso. Mas também aqui, neste chão da criação, Jesus desce ao nosso nível, e salva o nosso fracasso, soberanamente convivendo com os animais selvagens. Mensagem de Paz e Harmonia. O texto de Marcos não perde tempo a descrever o conteúdo das tentações, nem a ação dos atores, como vemos em Mateus (4,1-11) e Lucas (4,1-13). Marcos apenas faz descer o Filho de Deus ao nosso chão arenoso e escorregadio, mostrando bem a sua comunhão connosco e o seu domínio manso, novo e seguro. Do mesmo modo que, pouco depois, estando nós atarefados e aflitos em pleno mar encapelado, filmará Jesus a dormir serenamente na nossa barca, à popa (lugar de comando), com a cabeça suavemente deitada numa almofada (Marcos 4,35-41).

Note-se também que o «deserto» bíblico, mencionado no texto, não se ajusta ao que dizem os dicionários ou enciclopédias. Até contradiz esses dizeres. Na verdade, não é um lugar geográfico, mas teológico, pois é apresentado com muita água (João 3,23), cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Mateus 11,7; Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39), cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19. É um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Mateus 3,1-3), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Mas é um lugar provisório, onde estamos de passagem, e não definitivo, para se habitar lá (à maneira dos Essénios). Sendo um lugar provisório e de passagem, aponta para o definitivo, que é a Terra Prometida, onde Deus fará habitar e descansar o seu povo fiel. Este deserto é uma metáfora da nossa vida, onde sabemos que estamos de passagem. O deserto é todo igual: não tem pontos de referência nem marcos de sinalização. Quer dizer que só podemos prosseguir rumo à Terra Prometida e à Vida verdadeira, se tivermos um bom guia. Aí está o deserto como lugar onde temos de saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler atentamente o mapa da sua Palavra. Agora temos a companhia do Filho, que veio em nosso auxílio.

Mas, atenção. Depois do pequeno, mas consolador filme a que acabámos de assistir, em que vimos Jesus a descer ao nosso chão, assumindo e salvando os nossos fracassos, preparemo-nos para ouvir pela primeira vez a sua voz. Sendo os seus primeiros dizeres, são, naturalmente, prolépticos e programáticos para o inteiro Evangelho de Marcos.

Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos, portanto, também os nossos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros, são constituídos mensageiros, isto é, são pessoas enviadas e estreitamente vinculadas a quem as envia, em nome de quem anunciam em voz alta e clara a mensagem de que são incumbidos. A clara vinculação a quem os envia e nos envia é mesmo mais importante do que a mensagem a transmitir. E é dito o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações de Jesus, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança, entenda-se, da Palavra amante de Deus que, entrando em nós, reclama a nossa resposta amante que transforma a nossa vida. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.

Após o drama do dilúvio (Génesis 9,8-15), Deus fala a Noé e aos seus filhos (Génesis 9,8), portanto, a toda a humanidade, anunciando que vai estabelecer a sua aliança de PAZ, não apenas com Noé e os seus filhos, mas também com todo o universo criado (Génesis 9,9-11), inclusive com os animais selvagens (Génesis 9,10): grandiosa abertura para o Evangelho de hoje. Com os animais selvagens, mas também com as aves e os animais domésticos. Sinal desta nova era de paz: Deus depõe o seu «arco-de-guerra» (arco-íris) nas nuvens (Génesis 9,12-17). O Desígnio de Deus anunciado será inexoravelmente cumprido. A paz para todos e para sempre, inaugurada em Cristo e sempre presente no seu programa filial batismal, tem de estar igualmente presente no programa filial batismal de cada batizado. O texto do Génesis que hoje cai nos nossos ouvidos contém por duas vezes «E Deus disse!». Conta-se que um discípulo de um rabino hassídico, sempre que ouvia o seu mestre ler na Bíblia «E Deus disse», ficava de tal modo entusiasmado, que saía da escola e dançava a gritar: «E Deus disse! E Deus disse!». Aí está um bom motivo para estarmos mais atentos à Bíblia, mas também a tantos homens e mulheres em cuja boca se vai ouvindo: «E Deus disse!». Mas compreendamos ainda que, na Bíblia, este «E Deus disse!» não é apenas coisa de Deus e dos homens. Também dos anjos, das aves, dos animais domésticos e selvagens, todos parceiros de Deus na sua aliança, como hoje ouvimos, mas também das plantas e das árvores (Deuteronómio 20,19), dos passarinhos nos seus ninhos (Deuteronómio 22,6-7), do cabrito no leite da sua mãe (Êxodo 23,10), e até da carismática burra de Balaão (Números 22,25.28).

«Na fé todos estes morreram, sem terem obtido a realização da promessa. Mas viram-na e acenaram-lhe de longe» (Hebreus 11,13). Belíssimo cenário de esperança! Todo o Antigo Testamento acena para Cristo, sua esperança, sua vida espiritual (zoê, e não bíos) (1 Pedro 3,18) e salvação (1 Pedro 3,20). E como Deus não desilude, Cristo acena agora a todo o Antigo Testamento, levando a salvação de Deus a todos os homens e a todos os lugares, iluminando também a até então impenetrável região da morte (1 Pedro 3,18-20). Verdadeiramente acreditar em Cristo é sermos seus contemporâneos e seus irmãos, «filhos no Filho», obra do Espírito em nós, que faz de nós filhos, e não netos, contemporâneos e irmãos do Ressuscitado, e não meros continuadores. Todos: os de ontem, os de hoje e os de amanhã, para que «sem nós» não se chegue à perfeição (Hebreus 11,40). Pedro dá testemunho desta força do Evangelho e da Ressurreição de Cristo que nos constitui em «nova criação» pelo Batismo (1 Pedro 3,21-22).

Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia – caminhos intransitivos, entenda-se –, que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo santuário da alma, aquilo que Ele deseja».

Ao entrarmos no tempo santo da Quaresma,
Devemos ter a coragem de atravessar a poeira dos caminhos
Intransitivos do nosso coração,
Isto é, de limpar as mentiras, ódios, raivas, violências, banalidades,
Que tantas vezes preenchem os nossos dias.
 

A Quaresma é tempo de nos expormos
Ao vendaval criador e purificador do Espírito,
Sem termos a pretensão de o querer transformar em ar condicionado.
 

Toma em tuas mãos, Senhor,
A nossa terra ardida.
Beija-a.
Sopra nela outra vez o teu alento,
A tua aragem,
E veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

António Couto

ANEXOS:

  1. Quarta-feira de Cinzas – Ano B – 14.02.2024 – Lecionário
  2. Leitura I do Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 (Gn 9, 8-15)
  3. Leitura II do Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 (1 Pe 3, 18-22)
  4. Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 – Lecionário
  5. Quarta-feira Cinzas e Domingo I da Quaresma – Ano B – 14.02 e 18.02.2024 – Oração Universal
  6. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  7. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  8. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024

XXXII DIA MUNDIAL DO DOENTE

Viver a Palavra   

            Ao ler os textos que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe, recordei-me de um episódio narrado pelo Padre Ermes Ronchi numa visita a um leprosário na Amazónia. Quando estavam na Eucaristia e cada um colocava as suas intenções, um dos leprosos pediu o seguinte: «peçamos ao Senhor que ajude o padre Ermes, porque na Europa é muito difícil manter a fé». O padre Ermes não conseguiu ficar indiferente àquele homem que ao invés de pedir por si próprio, pediu pela Europa e pela evangelização que ele era chamado a fazer. Curioso com a fé daquele homem, no final da Eucaristia foi falar com ele e perguntou-lhe: «quando te encontrares com o Senhor, vais perguntar-lhe por que razão eras leproso?» e eles respondeu-lhe: «não lhe vou perguntar nada, porque sempre confiei Nele».

Surpreendentemente, os tempos difíceis e exigentes de provação e doença são muitas vezes uma ocasião para renovar a confiança em Deus e encontrar um sentido para a vida. A doença que atingia aquele homem não era capaz de lhe retirar a sua fé nem fazer vacilar a confiança que depositava em Deus. Sabemos que este processo não é imediato e muitas vezes requer um caminho de aprofundamento e amadurecimento da fé.

O leproso que se abeira de Jesus no Evangelho deste Domingo acredita que Jesus o pode curar: «Se quiseres, podes curar-me». Contudo, aquele homem é ainda um aprendiz na arte de compreender a vontade de Deus e acredita que essa pode não ser a Sua vontade. Creio que muitas vezes também nós estamos ainda longe de compreender que a vontade de Deus a nosso respeito é algo de bom e de belo, que Deus nos ama e quer o nosso bem. Recordo que na minha infância me surpreendia ouvir, diante da morte de alguém que partia inesperadamente ou até vítima de uma catástrofe: «foi a vontade de Deus». A vontade de Deus não pode ser o bode expiatório para aquilo que não compreendemos e, na verdade, como afirma S. Paulo, a vontade de Deus é «que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade».

Jesus quer que aquele homem se cure e, mais do que isso, fá-lo voltar ao convívio social. Como escutamos na primeira leitura aquele que contraía a lepra devia afastar-se e ficar isolado de todos. Com Jesus aquele homem restabelece a saúde do corpo e integra-se de novo na vida social.

Se as marcas da lepra o faziam afastar-se de todos, a marca que Jesus deixou na vida daquele homem fazem-no partir para comunicar a todos o que Jesus lhe fez. O encontro com Jesus gera uma felicidade que é de tal modo transbordante que nos impele a partir para levar a todos a força transformadora do Seu amor.

Deste modo, a ação missionária da Igreja só será verdadeiramente frutuosa e fecunda quando estiver revestida desta alegria libertadora que Jesus oferece. Quando anunciamos Jesus não somos meramente portadores de uma doutrina ou moral, mas comunicamos a vida de Jesus, que está vivo e que se faz presente e atuante na história. Por isso, aquilo que temos para comunicar não é algo exterior a nós, mas a experiência alegre e libertadora que fizemos Dele: «todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros» (EG 121). in Voz Portucalense

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No dia 11 de fevereiro, memória de Nossa Senhora de Lourdes, celebra-se o Dia Mundial do Doente. Para este ano, o Santo Padre deixou-nos uma mensagem intitulada «‘Não é conveniente que o homem esteja só’. Cuidar do doente, cuidando das relações». Este dia é uma oportunidade para as comunidades para uma celebração ou algum momento de convívio com os doentes da comunidade, ou qualquer outro gesto de proximidade com quantos se encontram numa situação de fragilidade. Inspirados nas palavras do Papa Francisco será importante sensibilizar os fiéis para uma renovada cultura do cuidado: «o primeiro cuidado de que necessitamos na doença é uma proximidade cheia de compaixão e ternura. Por isso, cuidar do doente significa, antes de mais nada, cuidar das suas relações, de todas as suas relações: com Deus, com os outros – familiares, amigos, profissionais de saúde –, com a criação, consigo mesmo». in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Levítico 13,1-2.44-46

O Senhor falou a Moisés e a Aarão, dizendo:
«Quando um homem tiver na sua pele
algum tumor, impigem ou mancha esbranquiçada,
que possa transformar-se em chaga de lepra,
devem levá-lo ao sacerdote Aarão
ou a algum dos sacerdotes, seus filhos.
O leproso com a doença declarada
usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho,
cobrirá o rosto até ao bigode e gritará:
‘Impuro, impuro!’
Todo o tempo que lhe durar a lepra,
deve considerar-se impuro
e, sendo impuro, deverá morar à parte,
fora do acampamento».

CONTEXTO

O Livro do Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto (que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi). Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de discursos que Javé teria proferido diante de Moisés no Sinai e nos quais teria explicado ao Povo o que este deveria fazer para viver sempre em comunhão com Deus, no âmbito da Aliança.

Na realidade, o livro apresenta um conjunto de leis, de preceitos, de ritos de épocas e proveniências diversas, reunidos ao longo de vários séculos e reelaborados pelos teólogos da “escola sacerdotal” (uma “escola” que, sobretudo a partir da época do Exílio na Babilónia, se empenhou em coligir e ordenar diversos materiais da tradição religiosa de Israel, particularmente os que diziam respeito à área de intervenção da classe sacerdotal). A grande maioria dessas leis, ritos e preceitos dizem respeito à vida cultual e pretendem ensinar os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder, de forma adequada, ao amor e à solicitude do Deus da Aliança. Fundamentalmente, o Levítico preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do Livro do Levítico (cf. Lv 11-16), conhecida como “lei da pureza”. Aí, apresentam-se os vários géneros de “impureza” que impedem o homem de se aproximar do santuário, bem como os ritos destinados a “purificar” o homem.

A noção de “impureza” que aparece no Livro do Levítico está muito próxima da noção de “tabu” que os especialistas da história das religiões conhecem bem. Supõe-se que o homem deseja a sua vida balizada por regras bem definidas, que o protejam da angústia e do risco do desconhecido. Ora, nesta compreensão da existência, tudo o que é excecional, anormal, insólito, misterioso, é considerado como algo suscetível de libertar forças incontroláveis que o homem não domina e que podem destruir a harmonia e o equilíbrio pretendidos. Portanto, o mais seguro é erguer uma barreira que mantenha o homem afastado dessas realidades.

Desde tempos imemoriais, certos “tabus” interditavam aos israelitas o contacto com determinadas realidades (o sangue, um cadáver, certos tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com elas, ficava “impuro”. O contacto com a “impureza” não era pecado; mas o homem devia “limpar” a “impureza” contraída, logo que possível, a fim de reencontrar o equilíbrio e a harmonia. Só depois de purificado (isto é, de eliminado o estado de indignidade em que se encontrava), podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão com Ele.

O caso mais grave de “impureza” era causado por uma doença – a lepra. É a essa realidade que o texto se refere. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A legislação levítica sobre os leprosos e a forma de lidar com eles mostra como o medo ou a repulsa podem gerar mecanismos de indiferença e de afastamento face a irmãos que, em contexto de doença e fragilidade, necessitam de amor e cuidado. Como lido com as pessoas doentes, idosas ou de qualquer outro modo feridas de fragilidade, que Deus colocou no meu caminho? Procuro que o amor que lhes devo fale mais alto do que o meu medo, a minha repugnância, o meu comodismo, o meu egoísmo, na hora de lhes prestar os cuidados de que necessitam?
  • A legislação religiosa de Israel determinou, em nome de Deus e da santidade de Deus, a exclusão e a marginalização de pessoas sem culpa especial. Marcou-as, cortou-lhes o acesso à comunidade, determinou que elas eram malditas à face de Deus, condenou-as à morte em vida. A nós, homens e mulheres do séc. XXI, formados na escola de Jesus, esse quadro deixa-nos inquietos. Mas talvez essa inquietação seja um bom ponto de partida para repensarmos algumas das nossas atitudes e comportamentos face aos nossos irmãos. Não será possível que os nossos preconceitos, a nossa preocupação com o legalismo, a nossa obsessão pelo politicamente correto estejam a criar marginalização e exclusão para alguns “diferentes” que se cruzam connosco? Não pode acontecer que, em nome de Deus, dos “sãos princípios”, da “verdadeira doutrina”, das exigências de radicalidade, estejamos a afastar as pessoas, a condená-las, a catalogá-las, a impedi-las de fazer uma verdadeira experiência de Deus e de comunidade?
  • Embora de forma indireta, o texto denuncia a atitude daqueles que, instalados nas suas certezas e seguranças, constroem um Deus à medida da pessoa e que atua segundo uma lógica humana, injusta, prepotente, criadora de exclusão e de marginalização. Não faz qualquer sentido criarmos um Deus que atue de acordo com os nossos esquemas mentais, com as nossas lógicas e preconceitos. Percebemos e acolhemos verdadeiramente a lógica de Deus na nossa vida in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)

Refrão:  Sois o meu refúgio, Senhor;
dai-me a alegria da vossa salvação.

Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa
e absolvido o pecado.
Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade
e em cujo espírito não há engano.

Confessei-vos o meu pecado
e não escondi a minha culpa.
Disse: Vou confessar ao Senhor a minha falta
e logo me perdoastes a culpa do pecado.

Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos,
fazei que à minha volta só haja hinos de vitória.
Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor,
exultai, vós todos os que sois retos de coração

LEITURA II – 1 Coríntios 10,31-11,1

Irmãos:
Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer coisa,
fazei tudo para glória de Deus.
Portai-vos de modo que não deis escândalo
nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus.
Fazei como eu, que em tudo procuro agradar a toda a gente,
não buscando o próprio interesse, mas o de todos,
para que possam salvar-se.
Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo.

CONTEXTO

A segunda leitura que a liturgia deste 6.º domingo comum nos propõe é a conclusão do ensinamento de Paulo sobre o consumo da carne dos animais sacrificados nos santuários religiosos de Corinto (cf. 1 Cor 8-10).

A propósito da segunda leitura do passado domingo, já vimos a definição da questão: uma parte da carne dos animais imolados em honra dos deuses, nos templos pagãos da cidade, era comercializada. Os cristãos, bem como os outros cidadãos de Corinto, compravam essa carne e usavam-na na alimentação do dia a dia. No entanto, alguns dos membros da comunidade cristã sentiam escrúpulos quanto a isto: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos?

Vimos também a resposta de Paulo: dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis na fé. Se houver o perigo de ofender os sentimentos de algum irmão, evite-se comer da carne sacrificada nos santuários pagãos, a fim de não faltar à caridade.

Na conclusão da sua reflexão sobre o tema, Paulo retoma e enuncia os elementos que apresentou anteriormente. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • “Fazei tudo para a glória de Deus” – pede Paulo aos cristãos de Corinto; mas logo acrescenta que a “glória de Deus” exige que façamos tudo para o bem dos filhos e filhas de Deus que caminham ao nosso lado. Santo Ireneu de Lião resumia admiravelmente tudo isto quando dizia: “a glória de Deus é o homem vivo”. Estou consciente de que a minha resposta de amor ao Deus que me ama passa pelo respeito, pelo cuidado, pelo amor aos meus irmãos, particularmente aos mais desgraçados? Estou convicto de que o meu melhor ato de culto é “pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, vestir os nus e não desprezar nenhum irmão” (Is 58,6-7)?
  • Paulo revela aos coríntios que aquele Jesus que lhe apareceu no caminho de Damasco é a sua referência suprema. A grande preocupação do apóstolo, na hora de decidir as suas prioridades, é imitar aquele que não viveu para si, mas fez da sua vida um dom de amor ao Pai e aos homens, até ao dom total da vida. Cristo é a minha referência? Na hora crítica das escolhas, para onde me inclino: para o exemplo de Cristo, ou para os meus interesses e projetos pessoais? Procuro ter sempre diante dos meus olhos aquilo que Jesus disse e fez, mesmo quando as suas propostas vão contra a corrente e são ridicularizadas pelos modernos “influencers”? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,40-45

Naquele tempo,
veio ter com Jesus um leproso.
Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
«Se quiseres, podes curar-me».
Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
«Quero: fica limpo».
No mesmo instante o deixou a lepra
e ele ficou limpo.
Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
«Não digas nada a ninguém,
mas vai mostrar-te ao sacerdote
e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
para lhes servir de testemunho».
Ele, porém, logo que partiu,
começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
em nenhuma cidade.
Ficava fora, em lugares desertos,
e vinham ter com Ele de toda a parte.

CONTEXTO

Jesus anda a percorrer as vilas e aldeias da Galileia, a propor o Reino de Deus (cf. Mc 1,39). No seu vaivém cruza-se com todo o tipo de pessoas e conhece todo o tipo de homens e mulheres com vidas fragilizadas. Muitos vivem marginalizados e esquecidos, pelas razões mais diversas. Para esses, o anúncio da proximidade do Reino de Deus é uma “Boa Notícia” que acende a esperança numa vida mais humana e mais feliz.

No episódio que o Evangelho deste domingo nos propõe, Jesus cruza-se com um leproso. Não se identifica o homem pelo nome, nem se diz o lugar onde se desenrola a cena. É como se aquele leproso sem nome e sem ligação geográfica fosse o protótipo de todos os marginalizados que Jesus encontrou ao percorrer os caminhos da Galileia.

Pela primeira leitura deste domingo, já conhecemos a situação social e religiosa dos leprosos. Para a ideologia oficial, o leproso era um pecador e um maldito, vítima de um particularmente doloroso castigo de Deus. A sua condição excluía-o da comunidade e impedia-o de frequentar a assembleia do Povo de Deus. Tinha que viver isolado, apresentar-se andrajoso e avisar, aos gritos, o seu estado de impureza, a fim de que ninguém se aproximasse dele. Não tinha acesso ao Templo, nem sequer à cidade santa de Jerusalém, a fim de não conspurcar, com a sua impureza, o lugar sagrado. O leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição afastava-o, não só da comunidade dos homens, mas também do próprio Deus. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, profundamente comovido diante daquele leproso abandonado pela sociedade e pela religião, revela-nos que Deus tem um coração de mãe, um coração que transborda de amor pelos seus filhos magoados e esmagados pelos acidentes da vida. O amor maternal de Deus não exclui, não condena, não sente repulsa; o amor de Deus purifica, cura as feridas, humaniza, salva. O Deus que Jesus revela nas suas palavras e nos seus gestos, não é o Deus intolerante, severo, distante, incapaz de compreender os limites e as fragilidades dos seres humanos; é o Deus do amor nunca desmentido, do amor que ultrapassa todos os limites, do amor excessivo que tudo cura e tudo purifica. Qual é o Deus em que acreditamos: o Deus de Jesus que é amor e misericórdia, ou o Deus intransigente e severo que alguns teimam em propor?
  • A atitude de Jesus em relação ao leproso (bem como a outros excluídos da sociedade do seu tempo) é uma atitude de proximidade, de solidariedade, de aceitação, de acolhimento. Jesus não está preocupado com o que é política ou religiosamente correto, ou com a indignidade da pessoa, ou com o perigo que ela representa para uma certa ordem social… Ele apenas vê em cada pessoa um irmão que Deus ama e a quem é preciso estender a mão e amar, também. Como é que lidamos com os excluídos da sociedade ou da Igreja? Procuramos integrar e acolher os estrangeiros, os marginais, os pecadores, os “diferentes” ou, com a nossa intransigência, ajudamos a perpetuar os mecanismos de exclusão e de discriminação?
  • O gesto de Jesus de estender a mão e tocar o leproso é um gesto provocador, verdadeiramente profético, que denuncia uma Lei iníqua, geradora de discriminação, de exclusão e de sofrimento. Com a autoridade de Deus, Ele retira qualquer valor a essa Lei e garante que Deus não discrimina ninguém. Apesar de todos os nossos progressos civilizacionais, continuamos a ter leis (umas escritas nos nossos códigos legais civis ou religiosos, outras que não estão escritas mas que são consagradas pela moda, pelo politicamente correto ou até por uma ideia deturpada da santidade de Deus) que são geradoras de marginalização, de exclusão e de sofrimento. Como discípulos de Jesus, temos feito tudo o que está ao nosso alcance para construir, a nível da legislação e dos comportamentos, a civilização do amor e não a civilização do egoísmo, da exclusão, da condenação dos “diferentes”?
  • Mais uma vez, o Evangelho deste domingo propõe à nossa consideração a atitude dos líderes judaicos. Comodamente instalados no alto das suas certezas e preconceitos, eles perpetuam, em nome de Deus, um sistema religioso que gera sofrimento e miséria e não se deixam questionar nem desafiar pela novidade de Deus. Estão tão seguros e convictos das suas verdades particulares que fecham totalmente o coração a Jesus e não se reveem nas suas propostas. Estamos sempre em alerta para a necessidade de nos desinstalarmos e de abrirmos o coração aos desafios de Deus?
  • O leproso, apesar da proibição de Jesus, “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”. Marcos sugere, desta forma, que o encontro com Jesus transforma de tal forma a vida da pessoa que ela não pode calar a alegria pela novidade que Cristo introduziu na sua vida e tem de dar testemunho. Somos capazes de testemunhar, no meio dos nossos irmãos, a libertação que Cristo nos trouxe? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção as diversas frases em discurso direto, bem como as frases que as introduzem. Além disso, deve ter-se em conta a correta pronunciação das palavras menos usuais como: «esbranquiçada» e «andrajoso».

A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a preparação do texto. Deve ter-se em atenção o tom exortativo do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

IMITADORES DE CRISTO

O Evangelho de Marcos 1,40-45, que neste Domingo VI do Tempo Comum temos a graça de ver e de escutar, continua a mostrar que Jesus, que é «o Reino de Deus em pessoa» (autobasileía, como bem refere Orígenes [185-254], insigne mestre das escolas de Alexandria e de Cesareia Marítima), Aquele que se fez nosso próximo para sempre (Marcos 1,15), continua a passar pelos nossos caminhos, a cruzar-se com as nossas dores e a assumi-las sobre si, curando a nossa pele chagada e o nosso esclerosado coração. Sim, o Evangelho de hoje não é apenas para ouvir. É também para ver atenta e demoradamente, pois oferece aos nossos olhos, sobretudo ao olhar do coração, o cenário extraordinário de um leproso ajoelhado aos pés de Jesus, que provoca a comoção visceral de Jesus, entenda-se o amor maternal de Jesus, levando-o a estender a sua mão soberana sobre o leproso, como fez Deus em ação de condescendência e de libertação no Livro do Êxodo, e a tocar no leproso sem receio de qualquer contágio.

A cena evangélica é comovente e surpreendente, desarmante, como é sempre, para a pobre e aplanada esquadria do nosso olhar, para os nossos trejeitos e preconceitos, a notícia ousada, boa e feliz que se chama Evangelho. Contra todas as regras estabelecidas, que impunham aos leprosos o isolamento e a distância de Deus (não podiam frequentar o Templo ou a sinagoga) e dos homens (não podiam entrar nas povoações), a que se associava o facto de terem de andar com o rosto escondido por qualquer trapo de miséria, e ainda o grito de «impuro, impuro», que deviam trazer sempre nos lábios (Levítico 13,45), para que as pessoas ditas boas e saudáveis, ao ver um homem sem rosto e ao ouvir o seu grito, dele se pudessem distanciar o mais possível, pondo-se a seguro do impuro. Deixando tudo isto na penumbra, eis hoje um leproso que ousa aproximar-se de Jesus e colocar-se de joelhos diante dele, implorando dele a cura (Marcos 1,40). É, nos Evangelhos, o único doente que se coloca de joelhos diante de Jesus, implorando a sua cura. O gesto é o seu verdadeiro pedido, que as palavras que diz apenas iluminam. Ele sabe que a sua cura só pode ser um dom de Deus.

Um leproso, diziam os rabinos, era como um morto em vida. Separado de Deus e da comunidade do louvor de Deus, isto é, da comunhão de vida com Deus, o leproso em tudo se assemelhava aos mortos, que também estavam separados de Deus e fora do louvor de Deus, que é a verdadeira nascente da vida (Salmo 6,6; 88,6; Isaías 38,18). Neste sentido, o Livro de Job define a lepra como o «primogénito entre os mortos» (Job 18,13). Tanto assim era que uma eventual cura da lepra suscitava então o mesmo efeito, o mesmo espanto, de uma ressuscitação da morte!

As vísceras maternais de Jesus comovem-se (splagchnízomai) quando vê o estado miserável deste seu filho (Marcos 1,41). O verbo splagchnízomai indica o desarranjo interior, nas vísceras (splágchna), e vísceras maternais (hebraico rahamîm). Por isso, Jesus não pode repelir o seu filho necessitado. Pelo contrário, estende a sua mão sobre ele, gesto de divina condescendência e soberania (Êxodo 3,20; 7,5; Salmo 138,7), e toca-lhe na pele chagada, e estabelece comunicação com ele, falando para ele (Marcos 1,41). Para Jesus, não há gente para acolher, e gente para evitar ou repelir. A todos acolhe, sobretudo aos piores e aos que estão em pior estado. Tocando-lhe, Jesus assume sobre si a lepra daquele pobre homem. É assim que o salva e nos salva. Jesus não passa por nós apenas à distância ou à tangente; desce ao nosso mundo, ao nosso fundo, e assume e paga a conta por inteiro. Nunca deixemos de cravar os olhos naquela Cruz, até percebermos bem que aquelas chagas são as nossas chagas, e que aquelas dores são as nossas dores, umas e outras assumidas, e, por isso, salvas, como lembram os antigos Padres da Igreja.

Com este seu comportamento de radical proximidade física e afetiva e salutar, Jesus diz-nos que nos devemos abeirar de todas as pessoas, nomeadamente dos doentes e marginalizados ou descartados, sempre incluindo e nunca excluindo, com uma atitude próxima, compassiva, calorosa e familiar, no polo oposto de qualquer comportamento indiferente, cético ou assético.

«Quero, fica limpo!», diz Jesus (Marcos 1,41), e nasce um homem novo, com o rosto destapado, por Deus descoberto, para ser visto e admirado, saído das mãos puras de Deus e da sua Palavra mansa e criadora (Génesis 1; João 15,3). Um grito se calou: «impuro, impuro!». Um novo grito nasceu: o do ANÚNCIO (kêrýssô) do Evangelho (Marcos 1,45). É o terceiro ANUNCIADOR, depois de João Batista (Marcos 1,4.7) e de Jesus (Marcos 1,14.38.39). Outros se seguirão (Marcos 3,14; 5,20; 6,12; 7,36; 16,15). Também nós. Sim, é aí que nos enxertamos nós também, porque também nós estamos depois do milagre em nós realizado. Por isso, temos, antes de mais, de entender que a mão estendida, soberana e carinhosa de Deus tocou em nós, e nos curou, e nos levantou, e rebentou os nossos odres velhos, ressequidos, carcomidos, e nos enviou com uma notícia ousada, boa e feliz, ardente, explosiva, comovente.

Atirai fora os odres, velhos e novos. Há muito que acabaram os almocreves! A notícia boa e feliz, isto é, o Evangelho, não se leva em vasilha nenhuma. Levai-o nas entranhas, nos pés, nas mãos, no rosto, no coração. Ah!, antes que me esqueça: atirai também fora o ouro, a prata, o cobre, a outra túnica, o bastão, as sandálias. E aproveitai para virar também os bolsos do avesso! Deve haver por lá algum cotão!

Quanto ao mais, aceitai a provocação de Paulo, na sua lição de hoje aos Coríntios (1 Cor 10,31-11,1). Sede imitadores (mimêtês) de Cristo (1 Coríntios 11,1); sede «mimos» (mîmos) de Cristo, fazei como Cristo fez e faz, como vistes hoje Cristo fazer!

O texto do Livro do Levítico 13,1-2.44-46, que serve de pano de fundo ao Evangelho de hoje, mostra-nos o caminho estreito e triste do leproso, que abre, todavia, para a larga e feliz avenida do Evangelho deste dia.

O Salmo 32 não é uma abstrata lição de moral, mas o testemunho autobiográfico de um convertido, que canta a felicidade do perdão. A liturgia cristã colocou este Salmo, desde o século VI, na lista dos sete «Salmos penitenciais» (juntamente com os salmos 6; 38; 51; 102; 103; 143). Logo no primeiro versículo, o Salmo diz admiravelmente: «Feliz aquele a quem foi retirada (nasaʼ) a culpa,/ coberto (kasah) o pecado» (Salmo 32,1). «Retirada a culpa» alude à imagem de um fardo, de um peso, de que somos aliviados, para podermos respirar de alívio. «Coberto o pecado»: Lutero, comentando a Carta aos Romanos 4,7, que cita o versículo do Salmo que estamos a apresentar, serviu-se deste verbo (kasah, cobrir) para argumentar que o pecado não é perdoado, mas apenas «coberto» pela justificação pela graça. Em boa verdade, o valor simbólico do «cobrir» bíblico traduz, sem qualquer dúvida, a anulação efetiva e eficaz do pecado por parte de Deus. Biblicamente falando, «cobrir» ou «perdoar» o pecado não significa simplesmente «esquecer» o pecado, passar por cima do pecado, mas, mais intensamente, «arrancar» o homem ao pecado, o que constitui um milagre só ao alcance do poder de Deus. Santo Agostinho tinha em grande apreço este Salmo. Afixou uma cópia na parede do seu quarto, diante do seu leito. E lia-a entre lágrimas, o que lhe trazia grande paz e conforto, sobretudo durante os últimos tempos da sua doença de que veio a falecer.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024 (Lev 13, 1-2.44-46)
  2. Leitura II do Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024 (1 Cor 10, 31-11,1)
  3. Domingo VI do TEMPO COMUM – ANO B – 11.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo VI do TEMPO COMUM – ANO B – 11.02.2024 – Oração Universal
  5. XXXII DIA MUNDIAL DO DOENTE – 11 fevereiro 2024
  6. Mensagem do Papa Francisco para o XXXII Dia Mundial do Doente – 11.02.2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024

29Saindo da sinagoga, foram para casa de Simão e André, com Tiago e João. 30A sogra de Simão estava de cama com febre, e logo lhe falaram dela. 31Aproximando-se, tomou-a pela mão e levantou-a. A febre deixou-a e ela começou a servi-los. Mc 1, 29-31

Viver a Palavra   

            O tempo é um dom precioso que Deus coloca em nossas mãos e geri-lo bem é um grande desafio para cada um de nós. Quantas vezes fazemos a experiência de chegar ao final do dia e sentir que devíamos ter aproveitado melhor o tempo, dedicado mais atenção a alguns aspetos que foram descurados e ter saboreado a oportunidade de mais um dia que o Senhor nos deu a viver.

            A nossa vida e o frenesim do nosso quotidiano muitas vezes envolvem-nos de tal maneira que nos impedem de viver e aproveitar convenientemente cada momento. Contudo, importa impor ritmos e tempos que nos ajudem a aproveitar e a saborear a beleza da vida. O tempo e a história são o lugar no qual se inscreve a nossa breve existência e, por isso, diante de nós coloca-se o desafio de viver o tempo aproveitando-o como oportunidade única de encontro e reencontro. Cada dia, cada semana, cada ano são uma nova oportunidade de ser mais, de ser melhor, de fazer diferente, saboreando aquilo que a vida nos oferece e transformando o lugar em que vivemos, trabalhamos ou nos divertimos naquilo que o Senhor sonhou para nós.

            No Evangelho deste Domingo acompanhamos uma jornada típica de Jesus. S. Marcos apresenta-nos o ritmo de um dia da vida de Jesus com as suas diversas ocupações, prioridades e encontros. Jesus, o Verbo Eterno, habita o nosso tempo e faz dele lugar da manifestação do amor do Pai. A consciência de que o Seu alimento é fazer a vontade Daquele que O enviou, imprime no Seu quotidiano um ritmo e uma marca diferente. Jesus não se deixa levar pelo ativismo das muitas coisas a fazer, nem se demora na análise e programação estéril das várias coisas a realizar. Jesus articula sabiamente contemplação e ação, proximidade e encontro, anúncio e missão. Faz e ensina a fazer, realiza com as Suas próprias mãos e convida a colaborar na Sua obra. Parte ao encontro de todos e acolhe os que Dele se aproximam, mas também tem necessidade de se recolher na intimidade com o Pai para renovar a consciência da missão e dar sentido aos passos percorridos.

            Jesus, procurado por todos, procura a intimidade com o Pai e ao romper da jornada retira-se para um lugar ermo para rezar. Como é inspirador e salutar começar a jornada, não com o corre-corre de quem vai atrasado e tem tantas coisas para fazer, mas com a serenidade do encontro com o Pai que dá sentido e plenitude aos nossos dias e aos nossos afazeres.

            Jesus cura aqueles de quem se aproxima, realiza milagres, oferece a saúde corporal e aponta caminhos de plenitude e totalidade. Não se deixa confinar e parte, fazendo-nos partir com Ele: «vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».

            Nos relatos das curas e milagres de Jesus há sempre um aspeto que me impressiona: a capacidade de Jesus de nos erguer da nossa situação de vítimas para nos tornar protagonistas. Nesta passagem vemos a sogra de Pedro, que uma vez restabelecida, levanta-se e começa a servi-los. Ser protagonista e construtor ativo da nova civilização do amor é o caminho que somos chamados a encetar, contudo, tantas vezes, a vitimização impede-nos de progredir, crescer e chegar mais alto. Por isso, como Paulo queremos assumir a urgência da evangelização e dizer com a nossa vida: «fiz-me tudo para todos, a fim de ganhar alguns a todo o custo. E tudo faço por causa do Evangelho, para me tornar participante dos seus bens».in Voz Portucalense

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            No dia 2 de fevereiro celebramos a Festa da Apresentação do Senhor e o Dia do Consagrado. Em Roma, este ano, o Santo Padre irá presidir à celebração da Santa Missa, enriquecida pela presença dos participantes do Encontro Internacional de consagradas e consagrados em preparação para o Jubileu de 2025. De 1 a 4 de fevereiro, cerca de trezentos representantes das diferentes formas de vida consagrada se reunirão em Roma para refletir sobre o tema «Peregrinos de esperança no caminho da paz». Este dia constitui-se como uma oportunidade privilegiada para recordar a importância dos consagrados na vida da Igreja mas também para apresentar a vida consagrada como proposta vocacional para quantos se interrogam acerca do projeto de Deus para as suas vidas.in Voz Portucalense

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           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Job 7,1-4.6-7

Job tomou a palavra, dizendo:
«Não vive o homem sobre a terra como um soldado?
Não são os seus dias como os de um mercenário?
Como o escravo que suspira pela sombra
e o trabalhador que espera pelo seu salário,
assim eu recebi em herança meses de desilusão
e couberam-me em sorte noites de amargura.
Se me deito, digo: ‘Quando é que me levanto?’
Se me levanto: ‘Quando chegará a noite?’
e agito-me angustiado até ao crepúsculo.
Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear
e desvanecem-se sem esperança.
– Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro
e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade». 

CONTEXTO

            O Livro de Job, uma das pérolas da literatura universal, apresenta uma reflexão sobre algumas das grandes questões que se colocam aos seres humanos: qual o sentido da vida? Qual a situação do homem diante de Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do ser humano? Qual o sentido do sofrimento?

            Job, a figura principal deste livro, é apresentado como um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa… Mas, repentinamente, viu-se privado de todos os seus bens, perdeu a família e foi atingido por uma grave doença.

            O drama de Job, apresentado em pormenor nos dois primeiros capítulos do livro, serve para introduzir uma reflexão sobre um dos grandes dogmas da fé israelita: o dogma da retribuição. Para a catequese tradicional de Israel, Javé recompensava os bons pelas suas boas obras e castigava os maus pelas injustiças e arbitrariedades que praticavam. A justiça de Deus era linear, lógica, imutável. De acordo com os teólogos de Israel, Javé é um Deus previsível, que Se limita a fazer a contabilidade das ações do homem e a pagar-lhe em consequência.

            No entanto, a vida nem sempre confirmava esta visão de Deus e da sua forma de atuar. Constatava-se, com frequência, que os maus possuíam bens em abundância e viviam vidas longas e felizes, enquanto os justos eram pobres e sofriam por causa da injustiça e da violência dos poderosos. Mais ainda: o dogma não respondia ao problema do sofrimento do inocente. Se um homem bom, piedoso, que teme o Senhor e que vive na observância dos mandamentos sofre, como explicar esse sofrimento?

            Job discorda da teologia tradicional e, a partir da sua própria experiência, denuncia uma fé instalada em preconceitos e em teorias que não têm nada a ver com a vida. Ele não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos de Israel, para quem Deus não passa de um comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria que recebe.

            Como não pode aceitar esse deus falso, Job parte em demanda do verdadeiro rosto de Deus. Numa busca apaixonada, emotiva, dramática, temperada pelo sofrimento, marcada pela rebeldia e, às vezes, pela revolta, Job chega ao “face a face” com Deus. Descobre um Deus omnipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa infinitamente as lógicas humanas; mas que ama, com amor de Pai, cada uma das suas criaturas. A Job nada resta senão reconhecer a sua pequenez e finitude, a sua incapacidade para compreender os projetos de Deus, a vacuidade da sua pretensão de julgar Deus e de entendê-l’O à luz da lógica dos homens. Job decide, finalmente, trilhar o único caminho que faz sentido: vai entregar-se totalmente nas mãos desse Deus incompreensível, mas cheio de amor, e vai confiar plenamente n’Ele.

            O texto que a liturgia deste dia nos propõe como primeira leitura integra o corpo central do livro (Jb 3,1 -31,40). Aí encontramos um diálogo entre Job (o crente inconformado, polémico, contestatário) e quatro “amigos” (os defensores da teologia tradicional). Nesse diálogo, Job vai desfazendo os argumentos da catequese oficial de Israel; e vai, também, derramando a sua insatisfação e revolta, num desafio a esse deus falso que os amigos lhe apresentam e que Job se recusa a aceitar. O primeiro dos “amigos” a falar é um tal Elifaz de Teman (Jb 4,1-5,27); Job responde-lhe com uma reflexão sobre o sentido da vida (Jb 6,1-7,21).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O sofrimento – sobretudo o sofrimento do inocente – é o drama mais inexplicável que atinge o homem ao longo da sua caminhada pela história. Que razões há para o sofrimento de uma criança ou de uma pessoa boa e justa? Porque é que algumas vidas estão marcadas por um sofrimento atroz e sem esperança? Como é que um Deus bom, cheio de amor, preocupado com a felicidade dos seus filhos, Se situa face ao drama do sofrimento humano? A única resposta honesta é admitir que não temos explicações definitivas para realidades que nos ultrapassam absolutamente. O “sábio” autor do livro de Job lembra-nos, a este propósito, a nossa pequenez, os nossos limites, a nossa finitude, a nossa incapacidade para entender os mistérios e os caminhos de Deus; mas deixa-nos também uma certeza fundamental: dê a vida as voltas que der, Deus ama-nos com amor de pai e de mãe e quer conduzir-nos ao encontro da vida verdadeira e definitiva, da felicidade sem fim… O nosso mundo está cheio de dramas que nos deixam sem palavras… Talvez nem sempre sejamos capazes de entender os caminhos de Deus; mas, mesmo quando as coisas não fazem sentido do ponto de vista da nossa lógica humana, resta-nos confiar no amor e na bondade do nosso Deus e entregarmo-nos confiadamente nas suas mãos. Como é que lidamos com as questões que nos ultrapassam e põem em causa a nossa visão do mundo e da vida? Somos capazes de confiar em Deus, a fundo perdido, mesmo quando não compreendemos a lógica das suas decisões?
  • Ao longo do livro de Job, multiplicam-se os desabafos magoados de um homem a quem o sofrimento tornou duro, exigente, amargo, agressivo, inconformado, revoltado até. No entanto, Deus nunca condena o seu amigo Job pela violência das suas críticas e das suas exigências… Deus sabe que as vicissitudes da vida podem levar o homem ao desespero; por isso, entende o seu drama e não leva demasiado a sério as suas expressões menos próprias e menos respeitosas. A atitude compreensiva e tolerante de Deus convida-nos a uma atitude semelhante face aos lamentos de revolta e de incompreensão vindos do coração daqueles irmãos que a vida maltratou… Que ressonância tem no nosso coração o lamento sentido dos nossos irmãos, mesmo quando esse lamento assume expressões mais contundentes e mais chocantes?
  • Job é, também, o crente honesto e livre, que não aceita certas imagens pré-fabricadas de Deus, apresentadas pelos profissionais do sagrado. Recusa-se a acreditar num Deus construído à imagem dos esquemas mentais do ser humano, que funciona de acordo com a lógica humana da recompensa e do castigo, que Se limita a fazer a contabilidade do bem e do mal do ser humano e a responder com a mesma lógica. Com coragem, correndo o risco de não ser compreendido, Job recusa esse Deus e parte à procura do verdadeiro rosto de Deus – esse rosto que não se descobre nos livros ou nas discussões teológicas abstratas, mas apenas no encontro “face a face”, na aventura da procura arriscada, na novidade infinita do mistério. Estamos dispostos, também nós, a percorrer esse caminho de descoberta e de encontro com Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)

Refrão:  Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.

Louvai o Senhor, porque é bom cantar,
é agradável e justo celebrar o seu louvor.
O Senhor edificou Jerusalém,
congregou os dispersos de Israel.

Sarou os corações dilacerados
e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas
e deu a cada uma o seu nome.

Grande é o nosso Deus e todo-poderoso,
é sem limites a sua sabedoria.
O Senhor conforta os humildes
e abate os ímpios até ao chão.

LEITURA II – 1 Coríntios 9,16-19.22-23

Irmãos:
Anunciar o Evangelho não é para mim um título de glória,
é uma obrigação que me foi imposta.
Ai de mim se não anunciar o Evangelho!
Se o fizesse por minha iniciativa,
teria direito a recompensa.
Mas, como não o faço por minha iniciativa,
desempenho apenas um cargo que me está confiado.
Em que consiste, então, a minha recompensa?
Em anunciar gratuitamente o Evangelho,
sem fazer valer os direitos que o Evangelho me confere.
Livre como sou em relação a todos,
de todos me fiz escravo,
para ganhar o maior número possível.
Com os fracos tornei-me fraco,
a fim de ganhar os fracos.
Fiz-me tudo para todos,
a fim de ganhar alguns a todo o custo.
E tudo faço por causa do Evangelho,
para me tornar participante dos seus bens.

CONTEXTO

            No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. Havia ainda sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos? E que fazer quando se recebia um convite para comer em casa de um amigo e eram servidas carnes que provinham dos templos pagãos?

            Paulo foi questionado pelos coríntios sobre estas questões; e respondeu-lhes em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta de Paulo aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não existem, comer dessa carne não tem qualquer problema; contudo, o mais importante é não escandalizar os mais débeis. Se houver esse perigo, evite-se comer a carne de animais imolados aos ídolos, a fim de não faltar à caridade.

            Contudo, Paulo vai mais além da questão concreta posta pelos coríntios e enuncia um princípio geral que vale para este caso e vale em qualquer outra situação: o que é fundamental não é o que eu tenho o direito de fazer (aqui, em concreto, comer da carne imolada aos ídolos), mas é que os meus comportamentos sejam guiados pelo amor. Ora, o amor pode, em certas circunstâncias, exigir que eu renuncie aos meus direitos e à minha liberdade, em benefício de um bem maior. Para ilustrar esta “doutrina”, Paulo dá o seu próprio exemplo: ele renunciou muitas vezes aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Em concreto, Paulo foi escolhido por Deus para ser apóstolo e, como apóstolo, podia reivindicar viver à custa do Evangelho… Mas nunca exigiu nada porque o que o preocupa, mais do que tudo, é o benefício das comunidades e dos irmãos (cf. 1 Cor 9,1-15). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Para Paulo, o valor realmente absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar é o amor. Só assim seremos dignos filhos desse Deus que, por amor, desceu ao encontro dos homens, partilhou as suas dores, enfrentou as forças do ódio e da injustiça, e até sofreu morte maldita numa colina fora da cidade santa de Jerusalém. No concreto do nosso dia a dia, é o amor – vivido ao jeito de Jesus, como renúncia ao egoísmo, como entrega total, como serviço simples e humilde – que conduz as nossas opções? E isso traduz-se no respeito pela vida, pela dignidade, pelos direitos dos nossos irmãos e irmãs?
  • A nossa sociedade é muito sensível aos direitos individuais e valoriza muito a liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma das dimensões mais significativas e mais positivas da cultura do nosso tempo… Contudo, a afirmação intransigente dos próprios direitos e da própria liberdade pode, por vezes, traduzir-se em prejuízo para os outros irmãos… Quando está em jogo o bem dos meus irmãos, onde começa e onde acaba a nossa liberdade?
  • A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz a atitude de quem descobriu Jesus Cristo e a sua proposta e sente a responsabilidade por passar essa proposta libertadora aos outros homens. Implica o dom de si, o esquecimento dos seus interesses e esquemas pessoais, para fazer da própria vida um dom a Cristo, ao Reino e aos outros irmãos. Que eco é que esta exigência encontra no nosso coração? O amor a Cristo e aos irmãos sobrepõe-se aos nossos esquemas e programas pessoais e obriga-nos a sentirmo-nos comprometidos com o Evangelho e com o testemunho do Reino?
  • O serviço do Evangelho e dos irmãos não pode ser, nunca, uma instalação numa vida fácil, descomprometida, cómoda, pouco exigente. Aquele que dedica a sua vida ao serviço do Reino não é um mero funcionário que resolve os problemas “burocráticos” que a “profissão” exige e que se retira comodamente para o seu mundo isolado, em paz com a sua consciência… Mas é alguém que põe o amor aos irmãos e à comunidade acima de tudo, que está sempre disponível para servir, que é capaz de renunciar até aos seus tempos de descanso para acompanhar os irmãos, para os escutar, para os acolher. Como discípulos de Jesus, o amor está sempre acima dos nossos próprios interesses e faz da nossa vida dom, serviço, entrega total? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,29-39

Naquele tempo,
Jesus saiu da sinagoga
e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama com febre
e logo Lhe falaram dela.
Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
Jesus curou muitas pessoas,
que eram atormentadas por várias doenças,
e expulsou muitos demónios.
Mas não deixava que os demónios falassem,
porque sabiam qual Ele era.
De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
Retirou-Se para um sítio ermo
e aí começou a orar.
Simão e os companheiros foram à procura d’Ele
e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
«Todos Te procuram».
Ele respondeu-lhes:
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
a fim de pregar aí também,
porque foi para isso que Eu vim».
E foi por toda a Galileia,
pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

CONTEXTO

            Estamos na primeira parte (cf. Mc 1,14-8,30) do Evangelho segundo Marcos. Nesta parte, Jesus é apresentado como o Messias que proclama o “Reino de Deus”.

            No texto do Evangelho que escutamos no passado domingo (Mc 1,21-28), Marcos tinha-nos levado até à sinagoga de Cafarnaum, num sábado de manhã, para testemunharmos como Jesus curou “um homem com um espírito impuro”, deixando as pessoas presentes a questionar-se sobre a origem da sua autoridade. Agora Marcos propõe-se descrever o seguimento desse dia (Mc 1,29-39). Convida-nos, antes de mais, a acompanhar Jesus até à casa de Pedro onde está preparada, para Ele, a refeição de sábado. A casa de Pedro ficava a uns 40 metros da sinagoga de Cafarnaum, segundo os dados arqueológicos. Mas, na “agenda” de Jesus para esse dia, ainda havia mais um “compromisso”: já ao anoitecer, Ele encontra-se com “a cidade inteira”, reunida “à porta” da “casa de Pedro”. Estes diversos quadros fazem parte do que se convencionou chamar “a jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-39): é a descrição de um dia típico de Jesus, no cumprimento da missão que o Pai lhe confiou. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A presença de Jesus na nossa história, as suas palavras e os seus gestos libertadores atestam, até ao infinito, a preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. É verdade: os dias de Jesus foram preenchidos, de fio a pavio, com a luta contra tudo aquilo que destrói e desumaniza os filhos e filhas de Deus. Deus sonhou, para nós, um mundo de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição e a exclusão, e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação do homem. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor. É essa a perspetiva que nós, discípulos de Jesus, temos de Deus e do seu projeto salvador?
  • O encontro com Jesus e com o “Reino” é sempre uma experiência libertadora. Pedro, André, Tiago e João fizeram essa experiência. Aceitar o convite de Jesus para O seguir e para se tornar “discípulo” significa a rutura com as cadeias de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de autossuficiência, de injustiça, de pecado que impedem a nossa felicidade e que geram sofrimento, opressão e morte nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos. Quem se encontra com Jesus, escuta e acolhe a sua mensagem, assume o compromisso de conduzir a sua vida pelos valores do Evangelho e passa a viver no amor, no perdão, na tolerância, no serviço aos irmãos. Na perspetiva da catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta, é um “levantar-se”, um ressuscitar para uma vida nova e eterna. Nós que nos encontramos com Jesus e decidimos segui-l’O, temos procurado viver e testemunhar os valores do Reino?
  • O exemplo da sogra de Pedro que, depois de ter sido curada da sua enfermidade, “começou a servir” os que estavam na casa, lembra-nos que do encontro libertador com Jesus deve resultar o compromisso com a libertação dos nossos irmãos. Quem encontra Jesus e aceita inserir-se na dinâmica do “Reino” compromete-se com a transformação do mundo: com generosidade, põe-se ao serviço dos irmãos frágeis, necessitados, abandonados, perseguidos e leva-lhes a ternura e a bondade de Deus em gestos concretos de amor e cuidado. Os nossos gestos são sinais da vida de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado?
  • Na multidão que se concentra à porta da “casa de Pedro”, podemos ver a imensa multidão de seres humanos que, à nossa volta, todos os dias grita a sua frustração pela guerra, pela violência, pela injustiça, pela miséria, pela exclusão, pela solidão, pela falta de amor… A Igreja de Jesus Cristo (a “casa de Pedro”) tem nas mãos a proposta libertadora que recebeu do próprio Jesus e que deve ser oferecida a todos estes irmãos que vivem prisioneiros de um sofrimento sem esperança. O que é que nós, discípulos de Jesus, temos feito no sentido de transformar as existências sofridas desses nossos irmãos e irmãs? Ao olhar para a Igreja de Jesus, os imigrantes clandestinos que chegam às nossas praias, os homens e as mulheres vítimas do preconceito e da condenação social ou religiosa encontram solidariedade, ajuda, fraternidade, preocupação real com os seus dramas e misérias, ou apenas discursos teológicos abstratos e virados para o céu? Os nossos irmãos idosos, doentes, esquecidos encontram nos nossos gestos o amor libertador de Jesus que dá esperança e que aponta no sentido de um mundo mais fraterno e mais humano, ou encontram egoísmo, indiferença, solidão, abandono?
  • O exemplo de Jesus mostra que o aparecimento do “Reino de Deus” está ligado a uma vida de comunhão e de diálogo com Deus. Rezar não é fugir do mundo ou alienar-se dos problemas do mundo e dos dramas dos homens… Mas é uma tomada de consciência dos projetos de Deus para o mundo e um ponto de partida para o compromisso com o “Reino”. Só na comunhão e no diálogo íntimo com Deus percebemos os seus projetos e recebemos a força de Deus para nos empenharmos na transformação do mundo. No meio da azáfama do dia a dia, conseguimos reservar momentos para o encontro e o diálogo com o Pai? Estamos conscientes da importância de escutar o Pai, de tentar entender e acolher os seus projetos para nós e para o mundo? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura apresenta a angústia e inquietação que invade o coração de Job. A proclamação deste texto deve ter em atenção as diversas interrogações presentes no texto, bem como a interpelação que Job dirige a cada um de nós.

            A segunda leitura apesar de não apresentar nenhuma dificuldade aparente exige um especial cuidado nas pausas e respirações para uma melhor articulação do texto. Além disso, este texto deve ser marcado por um tom de esperança e alegria, testemunhando a urgência e a necessidade de me envolver no anúncio do Evangelho.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

AINDA A «JORNADA DE CAFARNAUM», E JOB, O HOMEM QUE DÓI

            Aí está diante de nós o Evangelho do Domingo V do Tempo Comum, Marcos 1,29-39, no seguimento imediato da proclamação feita no Domingo passado (Marcos 1,21-28). De madrugada a madrugada. Depois de entrarem [Jesus e os seus discípulos; ninguém como Marcos vincula Jesus aos seus discípulos] em Cafarnaum, na manhã de sábado entra Jesus na sinagoga de Cafarnaum e ensinava (Marcos 1,21). Ei-los agora que saem [Jesus e os seus discípulos: verbo no plural] da sinagoga, e entram na casa de Simão e de André (Marcos 1,29). Trata-se de um «relato de começo». Saindo da casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro. A sogra de Simão está deitada com febre. Jesus segura-lhe (kratéô) na mão (Marcos 1,31), expressão lindíssima que indica no Antigo Testamento o gesto protetor com que Deus protege o orante (Salmo 73,23), Israel (Isaías 41,13), o seu servo (Isaías 42,6). E a sogra de Simão «levantou-se» (êgeírô), verbo da ressurreição, e pôs-se a servi-los (diêkónei: imperfeito de diakonéô) de forma continuada, como indica o uso do verbo no imperfeito. A sogra de Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, «servem» Jesus e os outros. Ela é bem a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à vida, gerada, protegida, guardada e edificada por Jesus no lugar seguro da casa de Pedro.

            À tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana [o dia muda com o pôr do sol], toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes. Note-se que os demónios continuam impedidos de falar, exatamente porque sabiam quem Ele era (Marcos 1,34). Pode parecer estranho este silenciamento de quem sabe! Mas é exatamente para ficar claro que acreditar em Jesus não é isolar uma definição exata de Jesus, mas aderir a Ele e à sua maneira de viver. E este afazer é trabalho nosso, não dos demónios.

            Na madrugada do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, de madrugada a madrugada, tendo-se levantado (anístêmi), outra prolepse da madrugada da Ressurreição que já se avista no horizonte, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), mas os discípulos correm logo a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter. Ninguém o quer perder (Marcos 1,36-37).

            Mas Jesus desconcerta os seus discípulos, e abre-lhes já os futuros caminhos da missão: «VAMOS, diz Jesus, a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Importante e intenso dizer. ANUNCIAR, verbo grego kêrýssô, é todo o afazer de Jesus, enche por completo o seu programa e o seu caminho. Ora, ANUNCIAR, kêrýssô, é dizer em voz alta a MENSAGEM que outro nos encarregou de transmitir. Aqui, o outro é Deus. Jesus é, então, o MENSAGEIRO de Deus. O ANUNCIADOR, o MENSAGEIRO, não fala em seu próprio nome, não emite opiniões. Fala em nome de Deus.

            Prossigamos. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos, apontando-lhes já o seu futuro trabalho de ANUNCIADORES do Evangelho pelo mundo inteiro. Mas é igualmente importante aquele TAMBÉM inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»]. É como uma ponte que une duas margens. Se, por um lado, proleticamente, aponta o futuro, por outro lado, analepticamente, classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira «jornada de Cafarnaum», em que o verbo ANUNCIAR (kêrýssô) nunca apareceu. Ficamos, portanto, a saber que a toada do ANÚNCO do Evangelho é ensinar, libertar, acolher, curar, recriar.

            Jesus, o Médico divino, curou a sogra de Pedro e muitos doentes. Eis o contraponto vindo hoje do Livro de Job (7,1-7), o homem que dói e grita por socorro. Em nome do homem, Job procura um sentido para a vida humana breve, frágil e nem sempre feliz e gratificante. Pede a graça de uma mão. Os amigos aparecem, mas, em vez de servirem de consolo, entretêm-se à procura de razões que expliquem a desgraça caída sobre Job. E assim, em vez de consolarem Job, atiram-no para a vala do lixo do pecado sem redenção e sem remédio. Já se vê que também só Deus poderá curar Job e todo o humano frágil e dorido que ele representa. É para ele também o salutar EVANGELHO de hoje. Para ele, e para nós. Bem vistas as coisas, todos somos eleitos de Deus. E o eleito é sempre alguém que abre livremente a mão para receber um dom.

            Por causa de Jesus e à maneira de Jesus, cai sobre Paulo também a graça e a missão de EVANGELIZAR (1 Coríntios 9,16-23). É neste caminho belo de EVANGELIZADOR que Paulo anda, mas não é por sua iniciativa ou gosto. É «uma necessidade (anagkê) que lhe é imposta desde fora (epíkeitai)» (1 Coríntios 9,16). Desde fora, isto é, desde Deus, contra quem não vale a pena lutar (Atos 26,14). Sim, a vida nova de Paulo assenta nessa derrota sofrida (katelêmphthen: aor. passivo de katalambánô) no caminho de Damasco (Filipenses 3,12), que lhe é imposta por Jesus, que desequilibra para a frente, e para sempre, a vida de Paulo (Filipenses 3,13-14). Sem esse desequilíbrio para a frente, para o Evangelho, para Cristo, a vida de Paulo começaria a arruinar-se, como indica a «fórmula de desgraça», introduzida por aquela interjeição «Ai» (hôy hebraico; ouaí grego), que fecha o v. 16. Esta inclinação para a frente traduz também a devotação de Paulo a todos (1 Coríntios 9,19-23), «tudo para todos» (1 Coríntios 9,22), «por causa do Evangelho» (1 Coríntios 9,23).

            O Salmo 147 mantém-nos atentos e fiéis cantores das obras boas de Deus, que opera sempre em nosso favor, debruçando-se sobre nós com amor providente, curando todas as nossas feridas, as do coração e as do nosso corpo chagado. Mas sobretudo porque nos põe a cantar, e cantar a Deus é bom e faz bem!

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 (Job 7, 1-4.6-7)
  2. Leitura II do Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 (1 Cor 9, 16-19.22-23)
  3. Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 – Oração Uniiversal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024

Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro, que começou a gritar: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno? Vieste para nos perder? Sei quem Tu és: o Santo de Deus». Jesus repreendeu-o, dizendo: «Cala-te e sai desse homem». O espírito impuro, agitando-o violentamente, soltou um forte grito e saiu dele. Mc 1, 23-26

Viver a Palavra   

            Precisamos de homens e mulheres cujas palavras não sejam somente lugares-comuns ou palavras estéreis e vazias que preencham apenas silêncios sem gerarem vida, nem oferecerem sentido. Atravessamos um tempo onde o nosso quotidiano é preenchido por tantas palavras desde as redes sociais aos mais tradicionais meios de comunicação como os jornais, a rádio ou a televisão. Contudo, parece que estas palavras apenas nos distraem do essencial e não são capazes de ir ao âmago das nossas inquietações e interrogações.

Acredito que esta perceção não seja apenas dos tempos hodiernos e que cada tempo e época da história sintam a necessidade de palavras revestidas de uma autoridade nova e diferente que ofereça sentido e rasgue novos horizontes de confiança e esperança. Seguramente, os contemporâneos de Jesus alimentavam também esta esperança e ao ouvirem, naquele Sábado, na sinagoga de Cafarnaum, as palavras de Jesus, não conseguiram esconder o entusiasmo e estupor.

Maravilhados, elogiavam a autoridade que brotava das palavras de Jesus e despontam em nós a curiosidade de conhecer sobre o que falava Jesus naquele dia. Sabemos apenas que a autoridade de Jesus não brotava meramente da eloquência das suas palavras, nem dos seus doutos conhecimentos acerca da Lei e dos Profetas, pois ela contrasta com a dos escribas que apesar de saberem muitas coisas e de serem especialistas nas coisas de Deus, «dizem, mas não fazem» (cf. Mt 23,3).

Em primeiro lugar, a autoridade de Jesus brota da coerência das Suas palavras. Em Jesus dizer e fazer são coincidentes e a palavra e a ação comunicam a mesma realidade, revelando o amor do Pai: «esta ‘economia’ da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido» (DV 2). É esta coerência que espanta quantos escutam Jesus, pois a Sua vida constrói-se em consonância com aquilo que as Suas palavras anunciam.

Contudo, esta autoridade manifesta-se também na relevância que a Sua mensagem representa para a nossa vida. Jesus incarnou, percorreu os caminhos da Judeia e da Galileia partilhando das alegrias e esperanças, angústias e sofrimentos dos homens e mulheres do Seu tempo. Jesus não é indiferente às dores e desesperanças dos que se cruzam consigo, mas toca as chagas dos que Dele se aproximam e transforma a dor e o sofrimento em cura e vida. Não se limita a um olhar compadecido e a palavras mais ou menos consoladoras, mas toca as feridas, cura-as e oferece um sentido novo.

Aquele homem absolutamente perturbado que aparece possuído por um espírito impuro grita: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?». Na verdade, Jesus é o «Santo de Deus» e, por isso, tem tudo que ver connosco. A grande novidade da revelação evangélica é a certeza de que Jesus tem tudo que ver com a nossa existência e que a nossa vida é preciosa aos olhos de Deus, de tal modo, que Ele enviou o Seu Filho ao mundo, para que morrendo na cruz nos libertasse do pecado e da morte.

Por isso, vivemos alimentados por uma renovada esperança e mesmo atravessando momentos difíceis e exigentes, como a pandemia que estamos a viver, queremos acolher no coração e na vida as palavras de S. Paulo: «não queria que andásseis preocupados». O amor de Jesus e a Sua presença viva e ressuscitada são garante de esperança e fonte da nossa confiança. in Voz Portucalense

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Continuamos até 25 de janeiro o Oitavário de Orações pela Unidade dos Cristãos. Em cada ano o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Comissão Fé e Constituição do Conselho Mundial de Igrejas propõe um conjunto de materiais para ajudar a viver esta semana de oração para que a unidade desejada por Cristo seja uma realizada e esteja presente no coração de todos os cristãos. O tema para este ano é retirado do Evangelho de Lucas: «Amarás ao Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10,27). Na internet podem ser encontrados os diferentes materiais e subsídios, que poderão ser utilizados litúrgico-pastoralmente ajudar os fiéis a viver melhor esta semana e a fazer da unidade dos cristãos não apenas um desejo, mas uma realidade (http://www.christianunity.va/). in Voz Portucalense (adaptado)

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 18,15-20

Moisés falou ao povo, dizendo:
«O Senhor teu Deus fará surgir
no meio de ti, de entre os teus irmãos,
um profeta como eu; a ele deveis escutar.
Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus
no Horeb, no dia da assembleia:
‘Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus,
nem verei este grande fogo, para não morrer’.
O Senhor disse-me:
‘Eles têm razão;
farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos,
um profeta como tu.
Porei as minhas palavras na sua boca
e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar.
Se alguém não escutar as minhas palavras
que esse profeta disser em meu nome,
Eu próprio lhe pedirei contas.
Mas se um profeta tiver a ousadia
de dizer em meu nome o que não lhe mandei,
ou de falar em nome de outros deuses,
tal profeta morrerá’».

CONTEXTO

O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém (cf. 2 Re 22,3-13) no 18.º ano do reinado de Josias (622 a.C.). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel, libertou-o da escravidão do Egito e fez com Ele uma aliança eterna, acompanhou-o na sua caminhada pelo deserto, deu-lhe a Terra Prometida… O Povo de Deus – esse povo com quem Deus se comprometeu – é o Povo eleito, a propriedade pessoal de Javé.

A finalidade fundamental dos catequistas deuteronomistas, ao formular esta teologia, é levar o Povo de Deus a um compromisso firme e exigente com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um convite firme ao Povo de Deus no sentido de abraçar a aliança com Javé e de viver na fidelidade aos compromissos assumidos.

Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes da entrada do Povo na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

O texto que a liturgia deste dia nos propõe apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt 16,18-18,22). Em concreto, o texto refere-se a uma dessas estruturas: o profetismo.

O fenómeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenómeno relativamente conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus, os movimentos proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de experiências proféticas obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento entre a verdadeira e a falsa profecia… O que é que carateriza o verdadeiro profeta? Quando é que um profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este problema devia pôr-se, particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab (874-853 a.C.) e de Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições sobre o profeta Elias (cf. 1 Re 17-2 Re 13,21) traçam esse quadro de confronto diário entre a verdadeira e a falsa profecia.

O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele apresenta, aqui, os critérios para que o Povo possa distinguir o verdadeiro e o falso profeta.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Moisés exerceu a sua missão profética no séc. XIII a.C.; mas os profetas não são figuras extintas de um passado que não volta. Deus, para se fazer presente na história dos homens, sempre chamou e enviou pessoas para serem sinais vivos da sua presença na vida do mundo. E isto continua a acontecer no nosso tempo e na nossa história. No momento do nosso Batismo fomos ungidos com o óleo do crisma, que nos constituiu profetas. Recebemos, nesse dia, a missão de sermos sinais vivos de Deus no meio dos nossos irmãos. Estou consciente deste compromisso? Tenho procurado ser um profeta de Deus no meio dos homens e mulheres que caminham comigo?
  • O profeta é a voz de Deus que ecoa no mundo dos homens. Ele tem a responsabilidade de dizer aos homens aquilo que Deus pretende transmitir-lhes. Por isso, o profeta deve viver em permanente escuta de Deus. Só assim saberá o que deve, em nome de Deus, dizer àqueles a quem é enviado. Procuro escutar Deus, dialogar com Ele, acolher as suas indicações, ler os seus sinais, antes de ir ao encontro dos meus irmãos para lhes testemunhar as indicações de Deus?
  • Consciente de que é um instrumento de Deus no meio da comunidade humana, o profeta deve levar muito a sério a missão que lhe foi confiada. A missão profética não é um passatempo ou um compromisso para as horas vagas; também não é algo que posso levar a sério ou deitar fora, conforme a minha disposição de momento. Trata-se de um compromisso que decorre da minha vocação batismal e que eu tenho de assumir com fidelidade absoluta e total empenho.
  • Se o profeta é designado para tornar presente no meio dos homens o projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício próprio. O profeta não deve ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar com eles, a fim de concretizar a sua sede de poder; não pode “vender a alma ao diabo” para daí tirar algum benefício; não deve utilizar o seu ministério para conseguir sucesso, para promover a sua imagem e obter os aplausos das multidões. A missão profética tem de estar sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da verdade de Deus, e não ao serviço de esquemas pessoais, interesseiros e egoístas. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 94 (95)

Refrão:  Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
não fecheis os vossos corações.

Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
aclamemos a Deus, nosso Salvador.
Vamos à sua presença e dêmos graças,
ao som de cânticos aclamemos o Senhor.

Vinde, prostremo-nos em terra,
adoremos o Senhor que nos criou;
pois Ele é o nosso Deus
e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.

Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
«Não endureçais os vossos corações,
como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
apesar de terem visto as minhas obras».

LEITURA II – 1 Coríntios 7,32-35

Irmãos:
Não queria que andásseis preocupados.
Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor,
com o modo de agradar ao Senhor.
Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo,
com a maneira de agradar à esposa,
e encontra-se dividido.
Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem
preocupam-se com os interesses do Senhor,
para serem santas de corpo e espírito.
Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo,
com a forma de agradar ao marido.
Digo isto no vosso próprio interesse
e não para vos armar uma cilada.
Tenho em vista o que mais convém
e vos pode unir ao Senhor sem desvios.

CONTEXTO

O texto da Carta aos Coríntios que nos é dado escutar neste 4.º domingo comum é a continuação de um outro – da mesma carta – que ouvimos no 3.º domingo comum. É o mesmo contexto e a mesma problemática.

Paulo havia sido questionado pelos cristãos de Corinto sobre o melhor estado de vida, do ponto de vista cristão: o do matrimónio ou o do celibato. Era uma questão pertinente, para uma comunidade que oscilava, nas questões relativas à vivência da sexualidade, entre uma moral laxista (típica de uma cidade portuária, onde chegavam marinheiros de todo o Mediterrâneo e onde pontificava Afrodite, a deusa grega do amor) e uma moral marcada por tendências filosóficas que propunham o desprezo pelas realidades materiais, nomeadamente o casamento.

Na sua resposta, Paulo explica que não tem “nenhum preceito do Senhor” sobre esta questão, e que tanto o casamento como o celibato são caminhos possíveis, perfeitamente aceitáveis, para o cristão. Mas lembra que “o tempo é breve” (o tempo entre a primeira vinda de Jesus e a sua segunda vinda); e, nesse cenário, o mais importante é que os crentes não absolutizem as realidades passageiras e vivam de olhos postos no encontro com o Senhor, que não tarda.

É neste enquadramento que Paulo apresenta o elogio da virgindade.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Por detrás das afirmações que Paulo faz neste texto está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras e efémeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida da pessoa. Esta reflexão convida-nos a repensar as nossas prioridades e a não ancorar a nossa vida em realidades transitórias.
  • Paulo vê na castidade por amor do Reino uma forma de vida que liberta o coração do homem para o serviço de Deus e dos irmãos. E na verdade, hoje como ontem, muitos homens e mulheres sentem-se chamados por Deus a viverem deste jeito para serem mais livres na sua doação e no seu serviço. Nem sempre o mundo os aprecia e entende. Muitas vezes são mesmo criticados e ridicularizados pela sua opção. Mas essas pessoas generosas, de coração livre, que colocaram o serviço de Deus e dos irmãos como prioridade absoluta, são um dom de Deus à Igreja e ao mundo. Estamos conscientes disso e agradecemos a Deus esse dom?
  • Os irmãos e as irmãs que optaram pela castidade para se entregarem ao serviço de Deus e dos irmãos devem viver a sua vocação sem amargura, sem frustração, sem tristeza. Eles não “perderam” irremediavelmente as coisas bonitas da vida; mas, de forma livre e consciente, escolheram um amor maior e mais universal. Essa escolha é fonte inesgotável de alegria e de paz. E eles devem dar testemunho, no meio do mundo, dessa alegria e dessa paz.in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,21-28

Jesus chegou a Cafarnaum
e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
e começou a ensinar,
todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade
e não como os escribas.
Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
que começou a gritar:
«Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?
Vieste para nos perder?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
Jesus repreendeu-o, dizendo:
«Cala-te e sai desse homem».
O espírito impuro, agitando-o violentamente,
soltou um forte grito e saiu dele.
Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
«Que vem a ser isto?
Uma nova doutrina, com tal autoridade,
que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
em toda a região da Galileia.

CONTEXTO

Na primeira parte do Evangelho que escreveu (cf. Mc 1,14-8,30), Marcos leva-nos numa viagem pela Galileia à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores de Marcos são convidados a acompanhar o dia a dia de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a notar os seus gestos libertadores, a aderir à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe atinge o seu momento culminante em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar a proposta de salvação que Deus Lhe confiou.

A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a “aldeia de Naum”), uma pequena cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galileia). A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Aquele homem “com um espírito impuro” que interpela Jesus na sinagoga de Cafarnaum representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, que são reféns do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do medo, da exploração, da exclusão, da injustiça, do ódio, da violência, do pecado; representa essa humanidade que percorre um caminho à margem de Deus e das suas propostas, que aposta em valores efémeros e escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou efémeras. Para todos nós que, de uma forma ou de outra, vivemos mergulhados nesta realidade desumanizadora, o relato de Marcos deixa uma Boa Notícia: Deus não Se conforma com o facto de os homens trilharem caminhos de morte, e virá sempre ter connosco para nos oferecer a liberdade e a salvação.
  • Para Marcos, a proposta de Deus chega torna-se realidade viva e atuante em Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um caminho novo de liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao orgulho e à autossuficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à injustiça, ao ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. Estou disponível para caminhar com Jesus, para acolher as suas propostas, para abraçar o seu projeto, para acolher a libertação que Ele me veio oferecer?
  • Os discípulos de Jesus são as testemunhas, aqui e agora, da sua proposta libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta de Jesus contra todos os “demónios” que introduzem no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo mais humano, mais livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte; mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo que desumaniza os filhos e filhas de Deus. Essa é também a minha luta?
  • O texto refere o incómodo do “homem com um espírito impuro”, diante da presença libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas e intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes, vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias, ficando à margem da história por medo ou comodismo; mas devem assumir corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na transformação das realidades políticas, económicas, sociais, laborais, familiares.
  • Aquele homem dominado “por um espírito impuro” não deve ter entrado pela primeira vez na sinagoga de Cafarnaum naquele sábado. Provavelmente participava habitualmente na liturgia sinagogal, escutava a Palavra de Deus que era lida e as explicações dos escribas. Mas só nesse dia se sentiu questionado e incomodado pela Palavra que escutou. Porquê? Porque Jesus proclamou e explicou a Palavra de uma forma nova, “com autoridade”, com aquela autoridade que lhe vinha da sua experiência de Deus? É possível. E a Palavra de Deus que ecoa todos os dias nas nossas celebrações comunitárias? Transmite uma experiência de Deus e faz-nos sentir a presença de Deus? Provoca alguma transformação no coração dos que a escutam? Interroga-nos, desafia-nos, provoca-nos, inquieta-nos ou deixa-nos impávidos, indiferentes e sempre adormecidos?
  • A luta contra os “demónios” que desfeiam o mundo e escravizam os homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos, divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice de Deus na construção de um mundo de homens livres.in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é composta pelas palavras que Moisés dirige ao povo. Contudo, é necessário ter em atenção que nas suas palavras Moisés evoca as palavras do povo a Deus no Horeb e as palavras que Deus lhe dirige. Estas intervenções devem ser tidas em conta na proclamação da leitura, para uma correta articulação do texto.

Na segunda leitura, é necessário ter em conta o tom exortativo do texto

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

EIS QUE FAÇO NOVAS TODAS AS COISAS!

«Eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21,5), diz Deus. De tal modo novas, diz Deus, que ninguém pode dizer: «Já o sabia» (Isaías 48,7).

É assim também o Evangelho deste Domingo IV do Tempo Comum (Marcos 1,21-28). Eis Jesus a entrar com os seus discípulos em Cafarnaum, na sinagoga deles, e ensinava e ordenava tudo de forma nova. Tão nova que inutilizava todas as comparações e catalogações (Marcos 1,22). Não era membro de nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional ou instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma autoridade. Nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o precedia. A sua autoridade começava ali, no próprio ato de dizer ou de fazer. E as pessoas de Cafarnaum foram tomadas de tanto espanto, que tiveram de constatar logo ali que saía dos seus lábios e das suas mãos um mundo novo, belo e bom, ordenado segundo as pautas da Criação (Marcos 1,22 e 27). Um vendaval manso de graça e de bondade encheu Cafarnaum, e transvazava como um perfume novo de amor e de louvor por toda a região da Galileia e da missão (Marcos 1,28). Saltava à vista que Cafarnaum não podia conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo.

As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que diziam os escribas, e como diziam os escribas. Não eram senão repetidores, talvez mesmo apenas repetentes de pesadas e cansadas doutrinas que se arrastavam na torrente de uma velha e gasta tradição. Os escribas diziam, diziam, diziam, recitavam o vazio (Salmo 2,1), compraziam-se na sua própria boca, nas suas próprias palavras (Salmo 49,14), e nada, nada, nada acontecia: nenhum calafrio na alma, nenhum rio nascia no deserto, ninguém estremecia ou renascia. Mas Jesus começou a falar, e as pessoas de Cafarnaum sentem um frémito, um estremecimento novo (Isaías 66,2 e 5), assalta-as uma comovida emoção, uma lágrima de alegria lhes acaricia o coração. Era como se acabassem de escutar aquela palavra única que há tanto tempo se procura, palavra criadora que nos vai direitinha ao coração, a ternura e a surpresa permanente de quem leva uma criança pela mão! Não deixa de espantar que o narrador nos diga que Jesus ensinava, e que nada nos diga acerca do conteúdo desse ensinamento. Reporta apenas a impressão que as palavras de Jesus suscitam nos ouvintes. Um tal modo de proceder serve para nos fazer entender, desde o princípio, que o que verdadeiramente interessa é a pessoa de Jesus, e não a sua doutrina.

As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que eram os exorcismos, e como se faziam os exorcismos. Estavam muito em voga naquele tempo. Eram longos, estranhos, complicados, cheios de fórmulas mágicas e ritos esotéricos. Mas Jesus diz uma palavra criadora: «Cala-te e sai desse homem», e tudo fica de imediato resolvido! (Marcos 1,25-26).

Abre-se um debate. O primeiro de muitos que o Evangelho de Marcos vai abrir. «O que é isto?» (Marcos 1,27), perguntam as pessoas de Cafarnaum, que nunca tinham visto tanto e tão novo e tão prodigioso ensinamento.

Mas é apenas o começo da jornada deste maravilhoso ANUNCIADOR do Evangelho de Deus (Marcos 1,14). Logo a abrir o seu Evangelho, Marcos ensina-nos que a jornada iniciada naquele primeiro sábado em Cafarnaum salta os clichés habituais, e vai de madrugada a madrugada, de modo a deixar já bem à vista aquela outra sempre primeira madrugada da Ressurreição! Jesus começa de manhã na sinagoga (Marcos 1,21); caminha depois 30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da febre para o serviço do Evangelho a sogra de Pedro (Marcos 1,29-31); à tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes (Marcos 1,32-34); de madrugada, muito cedo, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), e os discípulos correm a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter (Marcos 1,36-37). Ninguém o quer perder.

Desconcertante reviravolta. Jesus diz aos seus discípulos atónitos: «VAMOS a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Com este grávido dizer, Jesus deixa claro que ANUNCIAR o Evangelho enche por completo o seu programa e o seu caminho. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos para este trabalho de ANÚNCIO do Evangelho seja a quem for, seja onde for. Com aquele também inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»], Jesus classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira jornada de Cafarnaum: ensinar, libertar, acolher, curar, recriar: é esta a toada do ANÚNCIO do Evangelho.

ANUNCIAR (kêrýssô) é então o afazer de Jesus. E qual é a primeira nota que soa quando Jesus se diz com o verbo ANUNCIAR? É, sem dúvida, a sua completa vinculação ao Pai, de quem é o arauto, o mensageiro, o ANUNCIADOR. Pura transparência do Pai, de quem diz o que ouviu dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e faz o que viu fazer (João 5,19; 17,4). Recebendo todo o amor fontal do Pai, bebendo da torrente cristalina do amor fontal do Pai (Salmo 110,7; cf. 1 Reis 17,4), Jesus, o Filho, é pura transparência do Pai, e pode, com toda a verdade dizer a Filipe: Filipe, «quem me vê, vê o Pai» (João 14,9). É mesmo aqui que reside a sua verdadeira AUTORIDADE e a verdadeira NOVIDADE do seu MODO novo de dizer e de fazer, que se chama ANUNCIAR.

A primeira nota de todo o ANUNCIADOR ou Arauto ou Mensageiro não assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe confia a mensagem que deve anunciar. É em Seu nome que diz o que diz, que diz como diz. No Enviado é o Rosto do Enviante que se deve ver em contraluz ou filigrana pura. No Enviado ou Mensageiro ou Anunciador é verdadeiramente Deus que visita o seu povo.

Pertinho de Deus, cheio de Deus, Jesus leva Deus aos seus irmãos. É esta a Autoridade de Jesus. A lição do Livro do Deuteronómio de hoje (18,15-20) anuncia um profeta novo, como Moisés. É Jesus o profeta «como Moisés», mais do que Moisés, com a boca repleta das palavras de Deus (Deuteronómio 18,18). E não só a boca, mas também as mãos e o coração. Bem diferente dos escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde no deserto. Estes dispensam a Palavra de Deus. O que querem ter na boca é pão e carne. O que recolheu menos, no deserto, diz-nos o extraordinário relato do Livro dos Números 11,31-35, recolheu 4500 kg de carne de codorniz (Números 11,32). E começaram a meter a carne à boca com tamanha avidez, que morreram de náusea! Foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes, por mastigar (Números 11,33). Vê-se que é urgente libertar o coração, as mãos, a boca. Vive-se da Palavra. Morre-se de náusea.

Numa página sublime do Livro dos Números (17,17-26), Deus ordena a Moisés que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respetiva tribo. Por ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam ver que da vara de Aarão tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros (Números 17,23). Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira em flor e fruto, que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença, diante do Propiciatório (cf. Hebreus 9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado do povo chegue a Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia, / ardia/ na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Êxodo 25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser de madeira… de amendoeira.

Aí estão as coordenadas exatas do lugar do sacerdote e do bispo: entre Deus e o povo. Mais concretamente: pertinho de Deus, mas de um Deus que faz carícias ao seu povo, um Deus que ama e que perdoa; pertinho do povo, o suficiente para lhe entregar esta carícia de Deus.

Face a esta urgência, esta grandeza, esta beleza Primeira e Última, Novíssima, tudo o resto deve ser relativizado. Uma única grande devoção, dedicação, amor, deve nortear a nossa vida: a nossa total dedicação a Cristo, sem oscilação nem distração. Grande ensinamento de S. Paulo, hoje, na sua Primeira Carta aos Coríntios 7,32-35.

Sim, não nos é permitido adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos, infecundos, indiferentes, insensíveis, tipo «tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol), e para nós, cristãos, o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de graça e de bondade que um dia Jesus desencadeou em Cafarnaum.

Tu, Senhor, Tu passas, Tu amas, Tu falas,
E um caminho novo se abre a nossos pés,
Uma luz nova em nossos olhos arde,
Átrio de luminosidade,
Pão
De trigo e de liberdade,
Claridade que se ateia ao coração.
 

Lume novo, lareira acesa na cidade,
És Tu, Senhor, o clarão da tarde,
A notícia, a carícia, a ressurreição.
 

Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão,
Levanta-nos,
Não nos deixes presos no nevão
Do Montemuro ou de Cafarnaum.
 

É necessário que o zum-zum
Do Evangelho
Atravesse outras aldeias e cidades,
Corra de rua em rua,
De quelho em quelho,
Entre em cada coração
Novo ou velho,
E faça nascer uma teia de irmãos,
Que se dão as mãos.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 (Deut 18, 15-20)
  2. Leitura II do Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 (1 Cor 7, 32-35)
  3. Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 – Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024

Viver a Palavra    

Como é belo e reconfortante ver Jesus a percorrer os caminhos da Galileia. O Verbo faz-se carne e, revestido da nossa natureza, percorre os trilhos deste mundo, colocando-se no meio dos homens e mulheres, partilhando a sua humana condição, anunciando a proximidade do Reino e o convite a viver a radicalidade evangélica que abre a nossa vida à conversão.

Na perícope evangélica deste Domingo, escutamos as primeiras palavras que Jesus profere no Evangelho de Marcos: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Chegou o tempo da graça em que Deus visita o Seu Povo enviando o Seu Filho Jesus. Em Jesus Cristo, Deus faz-se próximo. Tão próximo que assume a nossa natureza humana e convida-nos a entrar nesta dinâmica de proximidade: aproxima-se de nós, para que aprendamos a viver a verdadeira proximidade que tem o nome de fraternidade.

Ao escutar as palavras de Jesus – «cumpriu-se o tempo» – recordo-me do modo como nos referimos tantas vezes ao nascimento de uma criança, quando se afirma que se cumpriu o tempo para uma mulher dar à luz. Efetivamente, é de vida nova que nos falam estas palavras! É a novidade do Reino a irromper no tempo e na história e a apontar o horizonte novo da vida eterna para onde todos somos chamados. O Reino de Deus está próximo e, no aqui e agora do tempo, somos chamados a viver a perene tensão entre o «já» e o «ainda não».

O Reino de Deus está próximo e reclama um coração livre e despojado para que possa acolher a novidade trazida por Jesus. O aqui e agora que nos é dado viver são o lugar e o tempo concreto onde somos chamados a construir a nova civilização do amor. Contudo, bem sabemos que não temos morada permanente sobre a terra e acreditamos que este Reino só se realizará em plenitude no Céu.

Nestas primeiras palavras de Jesus encontramos o movimento descendente e ascendente que caracterizam o dinamismo da salvação. Jesus que assume a nossa condição humana para nos elevar à participação da sua natureza divina. O Reino de Deus que vem até nós para que possamos pela conversão e adesão de coração ao Evangelho subir até Deus e entrar na comunhão plena com Ele.

Acreditar no Evangelho é muito mais do que reconhecer a veracidade das suas palavras e informações. Acreditar no Evangelho significa aderir com a vida àquilo que os nossos ouvidos escutam e transformar o coração para que a fé professada com os lábios se transforme em gestos concretos de amor e misericórdia.

Deste modo, acolher o Evangelho significa abrir espaço no coração para que a Boa Nova de Jesus tenha lugar na nossa vida. Muitas vezes, nas nossas meditações e pregações reclamamos a necessidade de nos libertarmos do nosso egoísmo, da nossa autossuficiência, da nossa maldade… Contudo, criar espaço para acolher a Boa Nova de Jesus significa também libertarmo-nos dos nossos projetos, das nossas expectativas, das nossas seguranças e disponibilizar a vida para o acontecer de Deus. Avançar sem medo de levar apenas como bastão de apoio a Palavra de Jesus e a certeza da Sua presença.

Simão, André, Tiago e João são referências fundamentais desta capacidade de deixar a normalidade da vida para abrir o coração à iniciativa de Jesus: «eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus». Deixar as redes que nos prendem pela segurança que nos oferecem para nos abrir à confiança que liberta e oferece vida nova e plena de sentido é o desafio que somos chamados a abraçar permanentemente para que a nossa vida se torne verdadeiramente cristã. in Voz Portucalense (adaptado)

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No dia 30 de setembro de 2019, o Papa Francisco instituiu o Domingo da Palavra de Deus pedindo que se celebre em cada ano no III Domingo do Tempo Comum. Deste modo, este Domingo é uma oportunidade para valorizar a importância da Palavra de Deus na vida da Igreja e na vida de cada batizado. A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos publicou, no dia de 17 de dezembro de 2020, uma nota sobre este Domingo. O texto encontra-se disponível na página oficial do Vaticano e nele podem encontrar-se orientações que ajudam as comunidades a valorizar e viver este Domingo. Como proposta sublinho o que vem indicado no n. 9: «na proximidade ou nos dias sucessivos ao Domingo da Palavra de Deus é conveniente promover encontros formativos para realçar o valor da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas; pode ser uma oportunidade para aprender mais sobre como a Igreja em oração lê a Sagrada Escritura».

Fica em anexo um documento atualizado para melhor viver este V DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS.

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jonas 3,1-5.10

A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas nos seguintes termos:
«Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive
e apregoa nela a mensagem que Eu te direi».
Jonas levantou-se e foi a Nínive,
conforme a palavra do Senhor.
Nínive era uma grande cidade aos olhos de Deus;
levava três dias a atravessar.
Jonas entrou na cidade, caminhou durante um dia
e começou a pregar nestes termos:
«Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída».
Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus,
proclamaram um jejum
e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno.
Quando Deus viu as suas obras
e como se convertiam do seu mau caminho,
desistiu do castigo com que os ameaçara
e não o executou.

CONTEXTO

O “Livro de Jonas” foi, muito provavelmente, escrito na segunda metade do séc. V a.C., entre 440 e 410 a.C. Conta-nos uma história bonita e edificante, mas que provavelmente não é real. Trata-se de um texto que poderíamos classificar no género “ficção didática”. Dito de outra forma: o Livro de Jonas não é uma coleção de oráculos proféticos proferidos por um homem chamado Jonas, nem sequer um relato de caráter histórico; mas é uma obra de ficção, escrita com a finalidade de ensinar e educar.

Estamos nos anos posteriores ao Exílio na Babilónia. A política dos líderes judaicos – especialmente Esdras e Neemias – favorecia o nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Por um lado, sublinhava-se o facto de Judá ser o Povo Eleito de Deus, o povo preferido de Deus, um povo diferente de todos os outros; por outro, considerava-se que todos os outros povos eram inimigos de Deus, odiados por Deus, que deviam ser inapelavelmente condenados e destruídos por Deus.

Reagindo contra a ideologia dominante, o autor do “Livro de Jonas” apresenta Javé como um Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de Nínive como a cidade destinatária da ação salvadora de Deus não é casual: Nínive, situada na margem oriental do rio Tigre, capital do império assírio a partir de Senaquerib, tinha ficado na consciência dos habitantes de Judá como símbolo do imperialismo e da mais cruel agressividade contra o Povo de Deus (cf. Is 10,5-15; Sof 2,13-15).

É precisamente esta cidade que Javé quer salvar. Por isso, chama Jonas e convida-o a ir a Nínive pregar a conversão. No entanto, Jonas, como os outros seus contemporâneos, não está interessado em que Javé perdoe aos opressores do Povo de Deus e recusa-se a cumprir o mandato divino. Em lugar de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente. Na sequência de uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde, o peixe vai depositá-lo em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Nesta catequese que nos é oferecida pelo autor do Livro de Jonas tomemos nota, antes de mais, daquilo que se sugere sobre Deus. Segundo o nosso catequista, Deus ama todos os homens e mulheres, sem exceção e de forma incondicional. Ele ama até os maus e os opressores; no seu coração de Pai, todos têm lugar. Esta lógica exclui, naturalmente, a eliminação do pecador: Deus não quer a morte de nenhum dos seus filhos; o que quer é que eles se convertam e percorram, de mãos dadas com Ele, o caminho que conduz à Vida plena, à felicidade sem fim. É este Deus que somos chamados a descobrir, a aceitar e a amar. O nosso caminho é mais leve e mais feliz quando sabemos que, seja qual for a amplitude dos nossos fracassos, o nosso Deus nunca nos descartará.
  • Nós temos, por vezes, alguma dificuldade em aceitar esta lógica de Deus. Em certas circunstâncias, preferíamos um Deus mais duro e exigente, que se impusesse decisivamente aos maus, que frustrasse os seus projetos de violência e de injustiça, que não desse qualquer hipótese àqueles que ameaçam o nosso bem-estar e a nossa segurança, que condenasse ostensivamente aqueles que não partilham a nossa visão da fé… A Palavra de Deus que hoje nos é servida apresenta-nos um Deus de coração misericordioso, que escancara as portas a todos e que ama até aqueles que consideramos maus. Deus deve converter-se à nossa lógica, ou seremos nós que devemos converter-nos à lógica de Deus? Diante desse Deus que nunca fecha a porta a ninguém, fará algum sentido olharmos para o mundo que está para além das portas das nossas igrejas como um mundo que nos ameaça e diante do qual temos de assumir uma atitude defensiva e condenatória?
  • O texto sugere também que aqueles que consideramos “maus” estão, por vezes, mais disponíveis para acolher os desafios de Deus e para escutar o seu chamamento, do que os “bons”. Muitas vezes, aqueles que têm comportamentos “certinhos”, religiosamente corretos, podem estar de tal forma instalados nas suas certezas, que já não tenham espaço para se deixarem questionar por Deus. Teremos disponibilidade para pôr em causa as nossas seguranças e as nossas certezas inabaláveis para nos deixarmos desafiar pela contínua novidade de Deus e pelo seu sempre renovado convite à conversão?
  • Há também neste texto uma severa denúncia do racismo, da exclusão, da marginalização, da xenofobia. A Palavra de Deus alerta-nos para a necessidade de ver em cada pessoa que caminha ao nosso lado um irmão, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua cultura, das suas diferenças, ou até da sua bondade ou maldade. Como vemos e como acolhemos os nossos irmãos imigrantes que a vida trouxe até nós e que colaboram connosco na construção do mundo: como inimigos, culpados por todos os males do universo, ou como irmãos por quem somos responsáveis e que Deus nos convida a acolher e a amar? Como nos situamos face aos nossos irmãos diferentes – pela raça, pela cultura, pelos valores, pelos hábitos de vida: como gente que nos incomoda e que temos de afastar para o mais longe possível, ou como irmãos que nos podem ajudar a questionar as nossas cómodas certezas, as nossas seguranças absolutas, os nossos preconceitos inabaláveis?
  • Jonas, o homem que Deus chamou, mas que procurou evitar comprometer-se na missão, convida-nos a reflectir sobre a resposta que temos dado ao chamamento de Deus. O nosso comodismo, o nosso bem-estar, os nossos medos, o nosso egoísmo, a nossa miopia, alguma vez nos impediram de acolher o chamamento de Deus e de abraçar a missão que Deus nos entregou? E temos consciência de que ignorar os desafios de Deus é, em boa parte, falhar o sentido da nossa vida? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

Refrão: Ensinai-me, Senhor, os vossos caminhos.

Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.

Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças, que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.

O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer os seus caminhos.

LEITURA II – 1 Coríntios 7,29-31

O que tenho a dizer-vos, irmãos,
é que o tempo é breve.
Doravante,
os que têm esposas procedam como se as não tivessem;
os que choram, como se não chorassem;
os que andam alegres, como se não andassem;
os que compram, como se não possuíssem;
os que utilizam este mundo, como se realmente não o utilizassem.
De facto, o cenário deste mundo é passageiro.

 CONTEXTO

As Cartas de Paulo aos Coríntios – e particularmente a primeira – refletem a realidade de uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com problemas e dificuldades muito particulares… As luzes e sombras da comunidade cristã de Corinto resultam, em parte, de ser uma comunidade que provém do mundo grego – isto é, de um mundo animado e estruturado por dinamismos muito próprios, com uma grande vitalidade, mas ao mesmo tempo com valores e dinâmicas que tornam difícil o acolhimento dos valores de Jesus. Na comunidade cristã de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em se inserir num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

Um dos sectores onde se nota particularmente o choque entre a fé cristã e a cultura helénica é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia balouçava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade (típico de certas escolas influenciadas pela filosofia platónica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal absoluto).

O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).

Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a seguir – o do matrimónio ou o do celibato. Paulo responde-lhes na primeira carta que lhes dirige (cf. 1 Cor 7). O texto da segunda leitura deste domingo é parte dessa resposta. Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper o vínculo” (1 Cor 7,25-28).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A todo o instante somos colocados diante de realidades diversas e contrastantes e temos de fazer as nossas escolhas. A mentalidade dominante, a moda, o politicamente correto, os nossos preconceitos e interesses egoístas interferem frequentemente com as nossas opções e impõem-nos valores que nem sempre são geradores de liberdade, de paz, de vida verdadeira. Mais grave, ainda: muitas vezes, endeusamos determinados valores efémeros e passageiros, que nos fazem perder de vista os valores autênticos, verdadeiros, definitivos. O texto sugere um princípio a ter em conta, a propósito desta questão: os valores deste mundo, por mais importantes e interessantes que sejam, não devem ser absolutizados. Não se trata de desprezar as coisas boas que o mundo coloca à nossa disposição; mas trata-se de não colocar nelas, de forma incondicional, a nossa esperança, a nossa segurança, o objetivo último da nossa vida. Como me situo face a isto? Até que ponto os valores efémeros a que dou importância me condicionam e me impedem de olhar para horizontes mais vastos e mais puros?
  • Na verdade, o cristão deve viver com a consciência de que “o tempo é breve”. Ele sabe que a sua vida não encontra sentido pleno e absoluto nesta terra e que a sua passagem por este mundo é uma peregrinação ao encontro dessa vida verdadeira e definitiva que só se encontra na comunhão plena com Deus. Para chegar a atingir esse objetivo último, o cristão deve converter-se a Cristo e segui-l’O no caminho do amor, da entrega, do serviço aos irmãos. Tudo aquilo que deixa um espaço maior para essa adesão a Cristo e ao seu caminho deve ser valorizado e potenciado. É aí que deve ser colocada a nossa aposta. in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,14-20

Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia,
viu Simão e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
Disse-lhes Jesus:
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
Um pouco mais adiante,
viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco a consertar as redes;
e chamou-os.
Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
e seguiram Jesus.

CONTEXTO

A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Neste texto, Marcos apresenta aos seus leitores os primeiros passos da ação do Messias libertador.

O lugar geográfico em que o texto nos situa é a Galileia: uma região situada a norte da Palestina, em permanente contacto com os territórios pagãos e, por isso, considerada pelas autoridades religiosas de Jerusalém uma terra de onde “não podia vir nada de bom”. Terra insignificante e sem especial relevo na história religiosa do Povo de Deus, a “Galileia dos gentios” parecia condenada a continuar uma região esquecida, marginalizada, por onde nunca passariam os caminhos de Deus e a proposta libertadora do Messias.

Uma referência ainda ao “mar”, chamado “da Galileia”, em cujas margens Jesus encontrou os seus primeiros discípulos: trata-se de um lago de água doce, com cerca de 21 km de comprimento e 11 de largura máxima, na época de Jesus rico em peixe e com as margens cobertas de vegetação abundante, incluindo vinhedos. Era também chamado “mar de Kineret”, ou “mar de Tiberíades”. Nas suas margens situavam-se diversas cidades referidas nos evangelhos: Magdala, Corozaim, Betsaida e Cafarnaum. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A nossa experiência de todos os dias mostra-nos a existência de sombras que desfeiam o mundo e que ameaçam a nossa existência tranquila. E nós, ameaçados por essas sombras, deixamos que a angústia, a desilusão e o desespero se apossem de nós. Para onde caminhamos? Para um beco sem saída? Para um qualquer final dramático e infeliz? Jesus veio dizer-nos que, no projeto de Deus, está um mundo diferente – um mundo de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava o “Reino de Deus”. E foi essa a realidade que Ele colocou no horizonte da história dos homens. Ora, esse Reino não morreu naquela cruz onde tentaram calar Jesus e o seu projeto. Reparemos nos sinais da presença do Reino de Deus na nossa história do séc. XXI. Por cada gesto de violência e de maldade que desfeia o nosso mundo, há mil outros gestos de amor, de partilha, de perdão, de cuidado que tornam o mundo mais bonito, mais humano e mais feliz. O Reino está a fazer-se, todos os dias. Somos testemunhas desse Reino? Somos arautos da esperança?
  • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade cada vez mais impactante, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. Converter-se implica alterar as nossas atitudes de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de comodismo e de voltar a escutar Deus e as suas propostas, para que aconteça, na nossa vida e à nossa volta, uma transformação radical – uma transformação no sentido do amor, da justiça e da paz. Pessoalmente, o que devo mudar na minha maneira de pensar e de agir para que o Reino de Deus seja uma realidade mais presente na minha vida e na vida dos que me rodeiam? E, no que diz respeito aos valores que a sociedade de que faço parte cultiva, quais favorecem e quais impedem a construção do Reino de Deus?
  • Para que o Reino aconteça é preciso também “acreditar” no Evangelho. Em concreto, isso significa aderir a Jesus, acolher o seu projeto, escutar as suas palavras, aprender com os seus gestos de amor, de serviço, de doação, de perdão. As palavras e os gestos de Jesus estão integrados na minha vida e transparecem na minha forma de tratar, de servir e de cuidar aqueles irmãos e irmãs que caminham ao meu lado? Os meus gestos e palavras dão testemunho desse mundo mais humano e mais fraterno que Jesus nos veio ensinar a construir?
  • Desde que começou a anunciar o Reino de Deus, Jesus rodeou-se de discípulos. Pedro, André, Tiago, João e alguns outros cruzaram-se com Jesus, ouviram o seu chamamento e foram com Ele. Eram homens simples, com defeitos e virtudes, como qualquer um de nós; mas tiveram a coragem de corresponder ao convite de Jesus e de embarcar com Ele na aventura de construir o Reino de Deus. A nós, Jesus lança todos os dias o mesmo convite. Estamos dispostos a fazer da construção do Reino a nossa prioridade? Estamos dispostos a ir atrás de Jesus, mesmo que isso implique deixarmos para trás certos projetos pessoais? Aquele compromisso que, no dia do nosso batismo, assumimos com Jesus, está a ser concretizado na nossa vida?
  • Jesus confia aos seus discípulos – quer àqueles que chamou nas margens do mar da Galileia, quer a nós – a missão de serem “pescadores de homens”. É uma missão que não passou de moda: hoje, como ontem, há muitos irmãos nossos que vivem mergulhados nas águas revoltas do egoísmo, da violência, da exploração, da solidão, da doença… E Jesus conta connosco para lhes dar a mão, para aliviar o seu sofrimento, para lhes levar esperança, para humanizar as suas vidas. Sentimos a responsabilidade desta missão? Sentimo-nos responsáveis por levar alívio e esperança a cada homem ou a cada mulher que sofre? Sabemos que também por aí passa a construção do Reino de Deus? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, devem ter em atenção as duas intervenções em discurso direto.

Na segunda leitura, devem ter cuidado na leitura da frase central do texto não apenas pela sua grande extensão, mas na dicotomia que descreve cada oração e que deve ser sublinhada na proclamação do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

QUANDO DEUS VEM, VÊ, FAZ E CHAMA…

Neste Domingo III do Tempo Comum é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1,14-20. Não é a primeira vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Marcos 1,9). Mas ainda não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão, portanto, dizeres importantes e programáticos.

Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Mas o verbo grego kêrýssô (anunciar), antes de nos fazer dizer ou escutar mensagens, implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro em relação a quem lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la. Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a sua primeira missão é testemunhar esta proximidade e compromisso. E percebe-se agora bem o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.

Vem logo, para não se afastar da fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» (Marcos 1,16-20). Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus viu Simão e André, Tiago e João, e chamou-os: «Vinde atrás de mim, e farei de vós…». É o ver e o fazer do Criador (Génesis 1). Está em cena um verdadeiro chamamento de Jesus. É dele toda a iniciativa. Não são os discípulos que se apresentam a Jesus, pedindo trabalho. E não é como colaboradores, com remuneração e férias asseguradas, que Jesus os assume. Jesus apenas vê e chama. Espanta aquele «imediatamente» deixaram… e foram «atrás de» Jesus. Sem reticências nem calculismos. E nem sequer sabem onde os conduzirá o caminho em que agora entram. Confiança total em Jesus.

Perante o que nos é dado ver, uma primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: Quem pode dar uma ordem assim absoluta? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal confiança?

Temos hoje a graça de ouvir um bocadinho da profecia de Jonas e dos trejeitos que o chamamento de Deus desencadeia na sua vida (Jonas 3,1-5.10). «Jonas, o hebreu» (Jonas 1,9), bem ouve o chamamento e a ordem de Deus para ir pregar contra Nínive, a cidade inimiga (Jonas 1,1-2). À primeira vista, devia Jonas levar por diante a sua missão com prazer, pois tratava-se de ir dizer à cidade inimiga que Deus tinha decretado o seu fim. Mas Jonas não quer ir, e não é por sentir piedade de Nínive. Bem pelo contrário. Jonas sabe que Deus é um Deus gracioso e misericordioso (hannûn werahûm), que se arrepende do mal (Jonas 4,2). E Jonas sabe também que, indo dizer a Nínive: «Ainda quarenta dias e Nínive será destruída» (Jonas 3,4), os habitantes de Nínive mudarão a sua vida, o que levará Deus a mudar também o seu plano e a não destruir a cidade. É porque sabe tudo isto e quer mesmo que Nínive seja castigada, que Jonas não quer ir lá pregar. Na verdade, apanha, no porto de Jafa, um navio que vai para Társis, para ocidente e não para oriente, para fugir de Deus e da missão que Deus lhe confiou (Jonas 1,3). Mas Deus é mais forte, e Jonas acaba, por vias travessas, por ir parar a Nínive. É a contragosto que prega. E quando verifica que os ninivitas se converteram, o que ele já sabia que iria acontecer, e que Deus também amava Nínive, Jonas foi tomado por grande desgosto (Jonas 4,1), e pede mesmo a Deus que lhe dê a morte (Jonas 4,3), pois a vida assim deixou de ter sentido.

Vendo melhor as coisas, «Jonas, o hebreu», está com certeza na viragem do século V para o século IV, época de Esdras, que manda dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados durante o Exílio ou após o regresso a Sião (Esdras 10; cf. Deuteronómio 7,3). Com esta medida, que deve ter tido um enorme impacto na consciência judaica, os conservadores como que cancelavam da sua história o catastrófico episódio do Exílio, lançando uma ponte que ligava a nova época judaica diretamente ao antes do Exílio. A personagem Jonas incarna bem este Israel particularista e míope, ao contrário do autor do Livro, que testemunha admiravelmente um universalismo salvífico próximo já do espírito do NT. Jonas representa o judaísmo fechado, que pensa que se salvará, fechando-se sobre si mesmo. Esta tentação também afeta a Igreja, e também a nós, de tempos a tempos. Às vezes só vemos inimigos ao redor, e amuralhamo-nos. Vistas as coisas do lado de um Deus que ama a todos, só nos é permitido abrir todas as portas e a todos escancarar o coração. Um coração inquinado asfixia e morre.

A lição do Apóstolo é hoje breve e intensa (1 Coríntios 7,29-31). São Paulo começa por dizer, em tradução literal: «O tempo (ho kairós) já está a enrolar as velas (synestalménos: perf. pass. de sy(v)-stéllô)» (1 Coríntios 7,29). Entenda-se: o tempo da oportunidade dada, da enchente da Palavra de Deus por nós já respondida ou ainda não, está a acabar; já está a enrolar as velas, como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra. E termina, afirmando: «Passa, na verdade, o esquema (tò schêma) deste mundo» (1 Coríntios 7,31). Bem entendido: «O (filme) que passa na tela é este mundo!». Se assim é, devemos aprender a saber relativizar a maneira como habitualmente nos agarramos às nossas ideias feitas e às coisas deste mundo, desde o casamento, aos bens possuídos, aos negócios, aos currículos, aos primeiros lugares. Grande lição de São Paulo em 1 Coríntios 7,29-31. A nossa vocação traduz-se na adesão ao Último, que reclama o desprendimento do penúltimo e um amor desmedido.

O Salmo 25, que hoje fica a ecoar no nosso pobre coração, mostra-nos um fino e delicado jogo de olhares entre o orante fiel e um Deus sensibilíssimo, que olha para nós sempre com ternura paternal, refúgio permanente para os pobres e pecadores. Deixo aqui a ressoar as palavras da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, que viveu em Bassorá, no Iraque, e que, para responder à pergunta: «Como chegaste a um grau tão elevado na vida espiritual?», respondeu: «Repetindo ininterruptamente: “Meu Deus, refugio-me em ti para me defender de tudo o que me distrai de ti, e de todo o obstáculo que se interpõe entre mim e ti”» (I detti di Rabiʽa, IV).

Jesus é Deus que desce ao nosso mundo,
Caminha pelas nossas estradas,
Percorre as nossas praias,
Visita as nossas casas,
Vem ter connosco aos nossos lugares de trabalho.

 Jesus é Deus que passa, ama e chama.
Mas não nos chama a responder a um inquérito,
A preencher uma ficha,
Responder a uma entrevista,
Fazer uma inscrição,
Pagar a matrícula,
Aprender uma doutrina.

 Não é como os escribas que Jesus ensina ou examina.
Nem sequer nos entrega um projeto de vida,
Uns apontamentos, um guião, caneta, tinta, mata-borrão.
Chama-nos apenas a segui-lo no caminho:
«Vinde atrás de Mim!»,
E partilha logo connosco a sua vida toda,
Como uma boda.

 Não nos põe primeiro a fazer um teste,
Não nos ama nem chama à condição,
Não tem lista de espera,
Não nos põe num estágio,
Num estado,
Num estrado,
Numa estante,
Mas num caminho!

 E um dia mais tarde,
Ouvi-lo-emos dizer ainda: «Ide!».
É sempre no caminho que nos deixa.
Nunca se desleixa,
Não apresenta queixa,
Não paga ao fim do mês,
Pede e dá tudo de uma vez.

 Vem, Senhor Jesus!
Vem e ama!
Vem e chama por mim outra vez!

 

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III do Tempo Comum – Ano B -21.01.2024 (Jonas 3, 1-5.10)
  2. Leitura II do Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 (1 Cor 7, 29-3)
  3. Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 – Lecionário
  4. Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 – Oração Universal
  5. Propostas do Dicastério para a Evangelização – Domingo da Palavra 2024 – português
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024

Viver a Palavra       

Concluído o tempo das Festas de Natal com a celebração da Festa da Epifania e celebrada a Festa do Batismo de Jesus entramos no Tempo Comum. A liturgia do 2.º Domingo do Tempo Comum convida-nos a descobrir que Deus conta connosco para concretizar, no mundo e na história, o seu projeto; e propõe-nos acolher, com disponibilidade e generosidade, os desafios de Deus.in Dehonianos (adaptado)

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 1 Samuel 3,3b-10.19

Naqueles dias,
Samuel dormia no templo do Senhor,
onde se encontrava a arca de Deus.
O Senhor chamou Samuel
e ele respondeu: «Aqui estou».
E, correndo para junto de Heli, disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Mas Heli respondeu:
«Eu não te chamei; torna a deitar-te».
E ele foi deitar-se.
O Senhor voltou a chamar Samuel.
Samuel levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Heli respondeu:
«Não te chamei, meu filho; torna a deitar-te».
Samuel ainda não conhecia o Senhor,
porque, até então,
nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor.
O Senhor chamou Samuel pela terceira vez.
Ele levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Então Heli compreendeu que era o Senhor
que chamava pelo jovem.
Disse Heli a Samuel:
«Vai deitar-te; e se te chamarem outra vez, responde:
‘Falai, Senhor, que o vosso servo escuta’».
Samuel voltou para o seu lugar e deitou-se.
O Senhor veio, aproximou-Se e chamou como das outras vezes:
«Samuel! Samuel!»
E Samuel respondeu:
«Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».
Samuel foi crescendo;
o Senhor estava com ele
e nenhuma das suas palavras deixou de cumprir-se.

CONTEXTO

O Livro de Samuel situa-nos no período histórico que vai de meados do séc. XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.). É durante esse arco temporal que diversas tribos da região – quer as que tinham regressado do Egito com Moisés, quer outras que há vários séculos habitavam a terra de Canaã – vão estreitar laços, de forma a constituírem uma unidade política. Nos últimos anos do séc. XI a.C., essas tribos vão unir-se à volta da realeza davídica.

Os primeiros capítulos do Livro de Samuel situam-nos ainda na fase pré-monárquica. Nessa fase observa-se, por um lado, um processo crescente de sedentarização, de consolidação e de unificação das tribos no território de Canaã, a partir de determinados elementos unificadores, como sejam os “juízes”, os pactos de defesa diante dos inimigos comuns, as federações de tribos vizinhas e os santuários que periodicamente acolhem a Arca da Aliança e assentam as bases da fé monoteísta; por outro lado, observa-se também a precariedade das coligações defensivas diante dos ataques inimigos, a escassa consciência unitária, o descrédito de alguns “juízes”, todo um conjunto de debilidades que geram instabilidade e incerteza… As instituições tribais revelam-se inadequadas para responder aos novos desafios, nomeadamente à pressão militar exercida pelos filisteus. O modelo monárquico dos povos vizinhos parece ser a solução ideal para abordar os novos desafios da história.

Samuel aparece nesse tempo de transição da vida tribal para a monarquia. Pertence à tribo de Efraim, uma tribo instalada no centro do país, na montanha de Efraim (onde, aliás, Samuel exerce o seu ministério). O Livro de Samuel apresenta-o como um “juiz” (narra-se o seu nascimento maravilhoso nos mesmos moldes que o nascimento de Sansão – 1 Sm 1; cf. Jz 13); mas logo se diz que ele foi educado no templo de Silo, onde estava depositada a Arca da Aliança (1 Sm 2,18-21) – o que pode significar que exercia igualmente funções litúrgicas. Mais tarde irá ser chamado, num período de desolação, a conduzir o Povo no combate contra os filisteus.

Samuel é, portanto, uma figura complexa e multifacetada, simultaneamente juiz, sacerdote e chefe dos exércitos. Faz a ponte entre uma época de confusão e de escassa consciência unitária, para uma época onde começa a estruturar-se uma organização mais centralizada.

O texto que a liturgia de hoje nos propõe como primeira leitura apresenta a vocação de Samuel. A cena coloca-nos no santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança. Samuel, consagrado a Deus por sua mãe, era servidor do santuário (cf. 1 Sm 1,11.22-28).

Mais do que um relato fidedigno de acontecimentos concretos, este texto deve ser visto como uma catequese sobre o chamamento de Deus e a resposta do homem, redigida de acordo com o esquema típico dos relatos de vocação.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A vocação é sempre uma iniciativa, misteriosa e gratuita, de Deus. O profeta deve ter plena consciência de que na origem da sua vocação está Deus e que a sua missão só se entende e só se realiza em referência a Deus. Um profeta não se torna profeta por iniciativa própria, para realizar sonhos pessoais, ou porque entende ter as “qualidades profissionais” requeridas para o cargo… O profeta torna-se profeta porque um dia escutou Deus a chamá-lo pelo nome e a confiar-lhe uma missão. Todos nós, chamados por Deus a uma missão no mundo, não podemos esquecer isto: a nossa missão vem de Deus e tem de se desenvolver em referência a Deus. Como profetas, não nos anunciamos a nós próprios, não vendemos os nossos sonhos, não impomos aos outros a nossa visão pessoal das coisas; mas anunciamos e testemunhamos Deus e os seus projetos no meio dos nossos irmãos.
  • O relato da vocação de Samuel situa-nos num quadro temporal próprio: de noite, quando já terminaram as tarefas do dia e quando o santuário de Silo está envolvido na tranquilidade, na calma e no silêncio… Provavelmente, o catequista autor deste texto não escolheu este enquadramento por acaso. Ele quis sugerir que é mais fácil detetar a presença de Deus e ouvir a sua voz nesse ambiente favorável de silêncio que favorece a escuta. Quando corremos de um lado para o outro, afadigados em mil e uma atividades, preocupados em responder às solicitações que nos chegam de todos os lados, dificilmente temos espaço e disponibilidade para ouvir a voz de Deus e para detetar esses sinais discretos através dos quais Ele nos indica os seus caminhos. O profeta necessita de tempo e de espaço para rezar, para falar com Deus, para interrogar o seu coração sobre o sentido do que está a fazer, para ouvir esse Deus que fala nas “pequenas coisas” a que nem sempre damos importância. Procuro reservar tempo para interiorizar a Palavra de Deus, para dialogar com Ele e para responder aos desafios que Ele me lança? Estou disponível para escutar o Espírito, como exige o modo sinodal de ser Igreja?
  • São muitas as “vozes” que ouvimos todos os dias, vendendo propostas de vida e de felicidade. Muitas vezes, essas “vozes” confundem-nos, alienam-nos e conduzem-nos por caminhos onde a felicidade não está. Como identificar a voz de Deus no meio das vozes que dia a dia escutamos e que nos sugerem uma colorida multiplicidade de caminhos e de propostas? Samuel não identificou a voz de Deus sozinho, mas recorreu à ajuda do sacerdote Heli… Na verdade, aqueles que partilham connosco a mesma fé e que percorrem o mesmo caminho podem ajudar-nos, com as suas palavras e com o seu testemunho, a identificar a voz de Deus. A nossa comunidade cristã desafia-nos, interpela-nos, questiona-nos, ajuda-nos a purificar as nossas opções e a perceber os caminhos que Deus nos propõe.
  • Depois de identificar essa “voz” misteriosa que se lhe dirigia, Samuel respondeu: “fala, Senhor; o teu servo escuta”. É a expressão de uma total disponibilidade, abertura e entrega face aos desafios e aos apelos de Deus. É evidente que, na figura de Samuel, o catequista bíblico propõe a atitude paradigmática que devem assumir todos aqueles a quem Deus chama. Como é que me situo face aos apelos e aos desafios de Deus? Com uma obstinada recusa, com um “sim” reticente, ou com total disponibilidade e entrega? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39 (40)

Refrão: Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade.

Esperei no Senhor com toda a confiança
e Ele atendeu-me.
Pôs em meus lábios um cântico novo,
um hino de louvor ao nosso Deus.

Não Vos agradaram sacrifícios nem oblações,
mas abristes-me os ouvidos;
não pedistes holocaustos nem expiações,
então clamei: «Aqui estou».

«De mim está escrito no livro da Lei
que faça a vossa vontade.
Assim o quero, ó meu Deus,
a vossa lei está no meu coração».

«Proclamei a justiça na grande assembleia,
não fechei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi a justiça no fundo do coração,
proclamei a vossa bondade e fidelidade».

LEITURA II – 1 Coríntios 6,13c-15a.17-20

Irmãos:
O corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor,
e o Senhor é para o corpo.
Deus, que ressuscitou o Senhor,
também nos ressuscitará a nós pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?
Aquele que se une ao Senhor
constitui com Ele um só Espírito.
Fugi da imoralidade.
Qualquer outro pecado que o homem cometa
é exterior ao seu corpo;
mas o que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo.
Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo,
que habita em vós e vos foi dado por Deus?
Não pertenceis a vós mesmos,
porque fostes resgatados por grande preço:
glorificai a Deus no vosso corpo.

CONTEXTO

No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca de 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. Ao sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os líderes da comunidade judaica e foi expulso da sinagoga.

Corinto, cidade nova e próspera, era a capital da Província romana da Acaia e a sede do procônsul romano. Servida por dois portos de mar, nela se cruzavam pessoas de todas as raças e religiões. Era a cidade do desregramento para os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo e que, após semanas de navegação, chegavam com vontade de se divertir. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.

Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maioria dos membros da comunidade era de origem grega, embora de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).

De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).

Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. No centro da cidade, o templo de Afrodite, a deusa grega do amor, atraía os peregrinos e favorecia os desregramentos e a libertinagem sexual. Os cristãos, naturalmente, viviam envolvidos por este mundo e acabavam por transportar para a comunidade alguns dos vícios da cultura ambiente. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

Em 1 Cor 6,12 aparece uma frase – possivelmente do próprio Paulo – que servia a alguns cristãos de Corinto para justificar os seus excessos: “Tudo me é permitido” … Paulo explica que “tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente; tudo me é permitido, mas eu não me farei escravo de nada”. Na sequência, Paulo recorda aos membros da comunidade as exigências da sua adesão a Cristo. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Somos todos chamados a integrar o “corpo” de Cristo. No dia do nosso Batismo respondemos positivamente ao convite que, nesse sentido, nos foi feito; e depois, ao longo do caminho, reiterámos vezes sem conta esse compromisso… Vivemos conscientes disso? Essa opção fundamental é uma realidade que temos sempre presente em todos os passos do nosso percurso de vida?
  • A adesão a Cristo implica assumirmos comportamentos coerentes com o que Jesus nos disse em palavras e em gestos; implica segui-l’O no caminho do amor incondicional, do serviço simples e gratuito, da doação total a Deus e aos nossos irmãos. Assim, nada do que é egoísmo, exploração, violência, prepotência, mentira, abuso dos direitos e dignidade do outro, procura desordenada do bem próprio à custa do outro, poderá entrar, como normalidade, na vida do discípulo de Jesus. O meu comportamento no contexto familiar, no espaço onde exerço a minha vida profissional, no meu círculo de relações é condizente com a minha qualidade de discípulo de Jesus?
  • A propósito, Paulo coloca o problema da vivência da sexualidade… Essa importante dimensão da nossa realização como pessoas não pode concretizar-se em ações egoístas, que nos escravizam a nós e que instrumentalizam os outros; mas tem de concretizar-se num quadro de amor verdadeiro, de relação, de entrega mútua, de compromisso, de respeito absoluto pelo outro e pela sua dignidade. Neste campo surgem, com alguma frequência, denúncias de comportamentos e atitudes, dentro e fora da Igreja, que afetam e magoam pessoas frágeis e indefesas. Devemos ter sempre isto bem claro: qualquer comportamento abusivo que desrespeite a dignidade e a autonomia dos outros irmãos e irmãs que se cruzam connosco constitui uma grave subversão dos valores de Jesus.
  • “Tudo me é permitido” – dizia-se no tempo de Paulo e repete-se hoje… Será a liberdade um valor absoluto? Para os discípulos de Jesus, a liberdade não pode traduzir-se em comportamentos e opções que neguem a nossa opção fundamental por Cristo. Há quem ache que só nos realizaremos plenamente se pudermos fazer tudo o que nos apetecer… Contudo, o cristão sabe que “nem tudo lhe convém”. Aliás, certas opções contrárias aos valores do Evangelho não conduzem à liberdade, mas à dependência e à escravidão.
  • Qual é o verdadeiro “culto” que Deus pede? Como é que traduzimos, em gestos concretos, a nossa adesão a Deus? Paulo sugere que o verdadeiro culto, o culto que Deus espera, é uma vida coerente com os compromissos que assumimos com Ele, traduzida em gestos concretos de amor, de entrega, de doação, de respeito pelo outro e pela sua dignidade. in Dehonianos.

EVANGELHO – João 1,35-42

Naquele tempo,
estava João Baptista com dois dos seus discípulos
e, vendo Jesus que passava, disse:
«Eis o Cordeiro de Deus».
Os dois discípulos ouviram-no dizer aquelas palavras
e seguiram Jesus.
Entretanto, Jesus voltou-Se;
e, ao ver que O seguiam, disse-lhes:
«Que procurais?»
Eles responderam:
«Rabi – que quer dizer ‘Mestre’ – onde moras?»
Disse-lhes Jesus: «Vinde ver».
Eles foram ver onde morava
e ficaram com Ele nesse dia.
Era por volta das quatro horas da tarde.
André, irmão de Simão Pedro,
foi um dos que ouviram João e seguiram Jesus.
Foi procurar primeiro seu irmão Simão e disse-lhe:
«Encontrámos o Messias» – que quer dizer ‘Cristo’ –;
e levou-o a Jesus.
Fitando os olhos nele, Jesus disse-lhe:
«Tu és Simão, filho de João.
Chamar-te-ás Cefas» – que quer dizer ‘Pedro’.

CONTEXTO

Este trecho integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Nessa secção, a principal preocupação do autor é apresentar a figura de Jesus.

João, o autor do Quarto Evangelho, convida-nos a participar numa montagem cénica. Diante dos nossos olhos, diversas personagens vão entrando no palco e apresentam-nos Jesus. As declarações que lhes são postas na boca não são palavras de circunstância, mas são afirmações categóricas, carregadas de significado teológico, que nos convidam a mergulhar no mistério de Jesus. O quadro final que resulta destas diversas intervenções apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer aparecer o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.

João Baptista tem um lugar especial neste contexto de apresentação de Jesus. O seu testemunho aparece no início e no fim da secção – cf. Jo 1,19-37; 3,22-36), como se ele tivesse mais a dizer do que qualquer outro. De facto, a catequese cristã sempre o viu como “o percursor do Messias”, aquele que Deus enviou para preparar os homens para acolherem Jesus.

O nosso texto põe ainda em cena três discípulos: André, um outro discípulo não identificado e Simão Pedro. Os dois primeiros são apresentados como discípulos de João e é por indicação de João que seguem Jesus. Trata-se de um quadro de vocação que difere substancialmente dos relatos de chamamento dos primeiros discípulos apresentados pelos sinópticos (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11). Em todo o caso, estamos diante de um modelo de chamamento e de seguimento de Jesus, mais do que uma reportagem sobre um acontecimento real. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Começamos há poucos dias um novo ano. Que programa temos para o caminho? O autor do Quarto Evangelho tem uma proposta irrecusável a fazer-nos para este ano… Convida-nos a redescobrir Jesus que passa, a ir atrás dele, a entrar na casa dele, a partilhar a sua vida e o seu projeto, a interiorizar as suas atitudes fundamentais… Se aceitarmos, espera-nos uma aventura inolvidável, uma experiência profundamente libertadora, um percurso que nos conduzirá a uma Vida de plena realização. Aceitamos o convite?
  • “Que procurais?” – pergunta Jesus àqueles dois discípulos que ousaram ir atrás dele… A todos nós que nos sentimos insatisfeitos, que não nos conformamos com a mediocridade, que temos sede de mais humanidade e de mais paz, que não estamos dispostos a passar o nosso tempo de vida comodamente refugiados na nossa estéril zona de conforto, que nos questionamos sobre a forma como o nosso mundo está a ser construído, Jesus pergunta também: “Que procurais?” Estamos conscientes de que Jesus é a fonte que pode saciar a nossa sede de Vida? E estamos disponíveis para dar testemunho de Jesus a todos os homens e mulheres que vivem perdidos no labirinto da vida e que não sabem como dar sentido à sua existência?
  • De acordo com esta bela página do Evangelho segundo João, a adesão a Jesus só pode ser radical e absoluta, sem meias tintas nem hesitações. Os dois primeiros discípulos não discutiram o “ordenado” que iam ganhar, se a aventura tinha futuro ou se estava condenada ao fracasso, se o abandono de um mestre para seguir outro representava uma promoção ou uma despromoção, se o que deixavam para trás era importante ou não era importante; simplesmente “seguiram Jesus”, sem garantias, sem condições, sem explicações supérfluas, sem “seguros de vida”, sem se preocuparem em salvaguardar o futuro se a aventura não desse certo. A aventura da vocação é sempre – e para nós também – um salto, decidido e sereno, para os braços de Deus.
  • André e o outro discípulo contaram com a ajuda de João Batista para encontrar Jesus e se decidirem a ir atrás dele. Este pormenor lembra-nos o papel dos irmãos da nossa comunidade na nossa caminhada de fé e na nossa descoberta de Jesus. A fé não é um caminho solitário, que cada um percorre isoladamente; mas é uma experiência comunitária, vivida no diálogo e na partilha com os irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado e com quem nos reunimos, ao menos no “dia do Senhor”, para rezar e celebrar. A comunidade cristã é o espaço habitual onde a minha fé se expressa, se concretiza, se confronta e se desenvolve?
  • O encontro com Jesus é um caminho que tem de me levar ao encontro dos irmãos e que deve tornar-se, em qualquer tempo e em qualquer circunstância, anúncio e testemunho. Quem experimenta a vida e a liberdade que Cristo oferece, não pode calar essa descoberta; mas deve sentir a necessidade de a partilhar com os outros, a fim de que também eles possam encontrar o verdadeiro sentido para a sua existência. “Encontrámos o Messias” deve ser o anúncio jubiloso de quem encontrou Jesus, fez com Ele uma verdadeira experiência de vida nova e anseia por levar os irmãos a uma descoberta semelhante.
  • João Baptista nunca procurou apontar os holofotes para a sua própria pessoa e criar um grupo de adeptos ou seguidores que satisfizessem a sua vaidade ou a sua ânsia de protagonismo… A sua preocupação foi apenas preparar o coração dos seus concidadãos para acolher Jesus. Depois, retirou-se discretamente para a sombra, deixando que os projetos de Deus seguissem o seu curso. João ensina-nos a nunca nos tornarmos protagonistas ou a atrair sobre nós as atenções; a sermos testemunhas de Jesus, não de nós próprios. in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

VINDE E VEDE!

O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,35-42) faz-nos ver no primeiro plano João Batista e Jesus. João Batista permanece lá «estacado» (eistêkei), em Bethabara [= «Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Batista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. João coloca-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué 3). É desse lugar de passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti). Perfil exato: Jesus a passar: Ele é o caminho (Jo 14,6); João não é o caminho: está parado. E logo João aponta Jesus como o Cordeiro de Deus. Aponta-o e apresenta-o a nós, e põe-nos em movimento atrás d’Ele. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, talya’. Mas talya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada, com uma pincelada de mestre, a identidade de Jesus: Cordeiro, Servo, Filho e Pão de Deus.

Seja qual for o perfil adotado, deparamo-nos sempre com a verdadeira identidade de Jesus, na sua verdade e simplicidade. O «Cordeiro» é manso e dócil, e Jesus não vem ter connosco com um fulgor que cega ou um poder que esmaga. Vem como quem ama e serve com radical humildade e mansidão. Entenda-se bem ainda que este Cordeiro é de Deus, pertence a Deus, é Deus o seu pastor (cf. Salmo 22).

E aí vamos nós a segui-l’O, agora no Caminho. Ele é o caminho. Sem caminho, temos de ficar parados. Jesus pergunta: «O que procurais?» (João 1,38). Jesus não faz uma afirmação, mas uma pergunta. Não começa uma aula, mas um colóquio vital. Reconhece neles e em nós homens à procura, que ainda não sabem dizer o que procuram, mas desejam saborear o pão que só Jesus pode dar na sua Casa. «Onde moras?», é, portanto, a questão que os move e nos move (João 1,38). E a resposta-convite de Jesus: «Vinde e vede» (João 1,39) aviva e sacia a nossa sede. Uma vez mais, Jesus não nos entrega um livro ou um guião com doutrinas e preceitos para nós estudarmos e sabermos, mas chama-nos a viver uma relação pessoal de comunhão com Ele. Assim, também eles, e nós com eles, não podemos manter-nos a uma distância de segurança, não comprometida, como meros turistas ou espectadores. A indicação da hora pelo narrador pode querer dizer-nos que, para aqueles dois, e para nós também, aquela hora foi e será sempre uma hora decisiva. Fomos e vimos quem era (ideîn) e morámos com Ele um dia (João 1,39), simbolismo para indicar de agora em diante, sempre. Percebemos logo que era aquela a nossa Casa. Por isso, André, um de nós, o Prôtóklêtos Andréas, o «primeiro chamado», como o qualifica ainda hoje a Tradição Oriental, foi logo procurar, encontrar (o uso do verbo grego eurískô supõe um encontro depois de uma busca; não um encontro por acaso) e chamar, «primeiro chamante», o seu irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (João 1,40-42). O resto é com Jesus. «Olhando-o por dentro (emblépô autô), Jesus disse: “Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro”» (João 1,42). Depois é Filipe que é chamado por Jesus, sem introdução ou explicação (João 1,43). E Filipe conduz a Jesus Natanael, também sem qualquer explicação ou demonstração convincente.

É importante precisar que a demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. Na verdade, a eficácia do testemunho acontece, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se ou a render-se perante as provas, mas quando o incita a fazer, por sua vez, a experiência, levando-o a implicar a própria vida. A experiência da testemunha é sempre mais forte e mais radical do que as provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a Natanael, mas face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (João 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente: «Vem e vê!» (João 1,46).

Mas voltemos ao chamamento decisivo, aquele que muda o nome, isto é, segundo a mentalidade bíblica, a pessoa e a sua vida. Diz Jesus: «Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro» (João 1,42). O termo hebraico normal para dizer «rocha», «rochedo», «pedra firme» é tsûr ou sela‘, que designa mesmo Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também conhece o termo keph, aramaico kêpha’, que designa a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos; kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, que diz também a cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça, para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas.

Nasce aqui, portanto, um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos, alimentados.

O contraponto musical vem hoje do Primeiro Livro de Samuel 3,3-19, com Deus a chamar uma e outra vez o jovem Samuel, que «ainda não conhecia o Senhor» (1 Samuel 3,7), e Eli, sacerdote do santuário de Silo, a fazer bem o papel de Guia Espiritual. Depois de discernir a Voz de Deus que chamava Samuel, é para Deus que Eli remete Samuel, com a indicação precisa: «Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1 Samuel 3,9). E o texto termina com o belo resumo do narrador: «E Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e nenhuma das suas palavras deixou cair por terra» (1 Samuel 3,19). Extraordinário programa de vida para a Igreja inteira e cada cristão em particular.

E São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios 6,13-20, traça em contraluz a radiografia da grande cidade de Corinto, capital da província romana da Acaia, com muitas divisões, distrações, idolatrias e imoralidades, coisas em tudo semelhantes ao que se vê hoje nas grandes metrópoles modernas. E aponta aos cristãos de Corinto e de hoje o caminho do Evangelho: o corpo que, no mundo bíblico, diz a pessoa toda, integral, é para o Senhor, e o Senhor é para o corpo.

A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com a docilidade e o rumo novo, para o Senhor, que devemos empreender. Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje: «Sacrifício e oblação não Te agradaram, mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo 40,7), expressão forte que a Carta aos Hebreus cita atualizando assim: «Sacrifício e oblação Tu não quiseste, mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5). Sim, dá para entender, que o corpo é para oferecer ao bom Deus, num culto novo de todos os dias (cf. Romanos 12,1). Mas, para que a melodia chegue ao coração, também é verdade, como diz o Salmo e nos lembra poeticamente Nelly Sachs, talvez seja necessário escavar bem os ouvidos. Nelly Sachs (1891-1970), de origem judaica, nascida em Berlim, refugiada em Estocolmo a partir de 1940, recebeu o prémio Nobel de literatura em 1966.

Deixamos aqui um extrato de um poema:

«Se os profetas irrompessem
pelas portas da noite
com as suas palavras abrindo feridas
nas rotinas do nosso quotidiano
(…)

Se os profetas irrompessem
pelas portas da noite
à procura de um ouvido como pátria

Ouvido humano
obstruído por mato e por silvas
será que saberias escutar?».

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024 (1 Sam 3, 3b-10.19)
  2. Leitura II do Domingo II do Tempo Comum- Ano B – 14.01.2024 (1 Cor 6, 13c-15a.17-20)
  3. Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024- Lecionário
  4. Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024- Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos
  1. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024

    Viver a Palavra       

                A liturgia deste dia celebra o Batismo de Jesus. Evoca o momento em que Jesus, ungido pelo Espírito Santo e apresentado aos homens como “Filho Amado” de Deus, abraçou a missão que o Pai lhe entregou: recriar o mundo, fazer nascer um Homem Novo. E propõe-nos, a todos nós que fomos batizados em Cristo, que tiremos desse facto as consequências que se impõem. in Dehonianos.

                                                  + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

             Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

            E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

    LEITURA I – Isaías 42,1-4.6-7

    Diz o Senhor:
    «Eis o meu servo, a quem Eu protejo,
    o meu eleito, enlevo da minha alma.
    Sobre ele fiz repousar o meu espírito,
    para que leve a justiça às nações.
    Não gritará, nem levantará a voz,
    nem se fará ouvir nas praças;
    não quebrará a cana fendida,
    nem apagará a torcida que ainda fumega:
    proclamará fielmente a justiça.
    Não desfalecerá nem desistirá,
    enquanto não estabelecer a justiça na terra,
    a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
    Fui Eu, o Senhor, que te chamei segundo a justiça;
    tomei-te pela mão, formei-te
    e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações,
    para abrires os olhos aos cegos,
    tirares do cárcere os prisioneiros
    e da prisão os que habitam nas trevas».

    Contexto:

                O texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). Este profeta anónimo cumpriu a sua missão profética na Babilónia, na fase final do Exílio (entre 550 e 539 a.C.). Tinham passado algumas dezenas de anos desde que Nabucodonosor havia destruído Jerusalém e arrastado para o cativeiro a maior parte dos habitantes de Judá. Os judeus cativos desesperam porque o tempo vai passando e a libertação (anunciada por Ezequiel, um outro profeta do tempo do Exílio) nunca mais acontece. Será que Deus se esqueceu das suas promessas?

    O Deutero-Isaías sente que Deus o envia a dizer aos seus concidadãos, exilados e desanimados, palavras de esperança. Cumprindo o mandato de Deus, o profeta fala da iminência da libertação, comparando-a ao antigo êxodo, quando Deus salvou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); e anuncia-lhes, também, a reconstrução de Jerusalém, a cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

    No meio desta proposta “consoladora” do Deutero-Isaías aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de um personagem misterioso e enigmático, que os biblistas designam como o “Servo de Javé”. Esse personagem será Jeremias, o profeta que tanto sofreu por causa da missão? Será o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho de Deus num cenário tão difícil? Será Ciro, rei dos persas, que alguns anos depois libertará os judeus exilados e autorizará o seu regresso a Jerusalém? Não sabemos ao certo. Mas esse “Servo de Javé” é apresentado como um predileto de Javé, chamado para o serviço de Deus, enviado por Deus aos homens de todo o mundo. A sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra. O sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo. Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.

    O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro cântico do “Servo” (cf. Is 42,1-9). in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • A história do “Servo de Javé”, que recebeu a plenitude do Espírito para ser “luz das nações”, abrir “os olhos aos cegos”, tirar “do cárcere os prisioneiros” e “da prisão os que habitam nas trevas”, lembra-nos, desde logo, que Deus age através de “profetas” a quem confia a transformação do mundo e a libertação dos homens. No dia em que fomos batizados, recebemos, também nós, o Espírito que nos capacitou para uma missão semelhante à desse “Servo”. Tenho consciência de que cada batizado é um instrumento de Deus na renovação e transformação do mundo? Estou disposto a corresponder ao chamamento de Deus e a assumir a minha responsabilidade profética? Os pobres, os oprimidos, os que “jazem nas trevas e nas sombras da morte”, os que não têm eira nem beira, nem voz nem vez, nem convite para se sentar à mesa da humanidade podem contar com a minha solidariedade ativa, com a minha ajuda fraterna, com o meu abraço, com a minha partilha generosa?
    • A missão profética só faz sentido à luz de Deus: é sempre Ele que toma a iniciativa, que escolhe, que chama, que envia e que capacita para a missão… Aquilo que fazemos, por mais válido que seja, não é obra nossa, mas sim de Deus; o nosso êxito na missão não resulta das nossas qualidades, mas da iniciativa de Deus que age em nós e através de nós. Somos apenas colaboradores de Deus, “humildes trabalhadores da vinha do Senhor”. É sempre Deus que projeta e que age, através da nossa fragilidade, para oferecer ao mundo a Vida e a salvação. Esquecer isto pode conduzir-nos à arrogância, à autossuficiência, à vaidade, ao convencimento; e, sempre que isso acontece, a nossa intervenção no mundo acaba por desvirtuar o projeto de Deus.
    • Atentemos ainda na forma de atuar do “Servo”: ele não se impõe pela força, pela violência, pelo dinheiro, ou pelos amigos poderosos; mas atua com suavidade, com mansidão, com humildade, no respeito pela liberdade dos irmãos e irmãs a quem é enviado… É esta lógica – a lógica de Deus – que eu utilizo no desempenho da missão profética que Deus me confiou? in Dehonianos.

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 28 (29)

    Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.

    LEITURA II – Atos 10,34-38

    Naqueles dias,
    Pedro tomou a palavra e disse:
    «Na verdade,
    eu reconheço que Deus não faz aceção de pessoas,
    mas, em qualquer nação,
    aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável.
    Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel,
    anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos.
    Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia,
    a começar pela Galileia,
    depois do batismo que João pregou:
    Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
    que passou fazendo o bem
    e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio,
    porque Deus estava com Ele».

    Contexto:

                Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram ou continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste mundo – a todos os homens.

    O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf. At 1-12), a reflexão centra-se na difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; na segunda (cf. At 13-28), conta-se a expansão do Evangelho fora da Palestina (sobretudo por ação de Paulo): no Mediterrâneo, na Ásia Menor, na Grécia, até atingir Roma, o coração do império.

    O texto de hoje está integrado na primeira parte dos “Atos”. Insere-se numa perícope que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cf. At 9,32-11,18) – isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia Marítima, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. At 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é a primeira pessoa completamente pagã (o etíope evangelizado e convertido por Filipe e de que se fala em At 8,26-40 era “prosélito” e por isso já estava ligado ao judaísmo) admitida na comunidade cristã por um dos Doze. Admite-se, assim, que o Evangelho de Jesus não deve ficar circunscrito às fronteiras étnicas judaicas, mas é uma Boa Notícia destinada a todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas.

    Cesareia Marítima, cidade reconstruída por Herodes, o Grande, ficava na costa palestina. Era a sede do poder romano, pois era aí que residiam os governadores romanos da Judeia (como Pôncio Pilatos, o governador que, pelo ano 30, autorizou a morte de Jesus). A cidade foi evangelizada pelo diácono Filipe (cf. At 8,40).in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • Jesus recebeu o Batismo e foi ungido com a força do Espírito; depois, “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio”. Em cada passo do caminho que percorreu, Ele distribuiu, em gestos concretos, bondade, misericórdia, perdão, solidariedade, amor… Nós, cristãos, que “acreditamos” em Jesus, que nos comprometemos com Ele e O seguimos, assumimos este “programa”? Nós, que fomos batizados e ungidos com a força do Espírito, testemunhamos também, em gestos concretos, a bondade, a misericórdia, o perdão e o amor de Deus pelos homens? Empenhamo-nos em libertar todos os que são oprimidos pelo demónio do egoísmo, da injustiça, da exploração, da exclusão, da solidão, da doença, do analfabetismo, do sofrimento?
    • “Reconheço que Deus não faz aceção de pessoas” – diz Pedro no seu discurso em casa de Cornélio. E nós, filhos desse Deus que ama a todos da mesma forma e que a todos oferece igualmente a salvação, aceitamos todos os irmãos da mesma forma, reconhecendo a igualdade fundamental de todos os homens em direitos e dignidade? Temos consciência de que a discriminação de pessoas por causa da cor da pele, da raça, do sexo, da orientação sexual ou do estatuto social é uma grave subversão da lógica de Deus?in Dehonianos.

    EVANGELHO – Marcos 1,7-11

    Naquele tempo,
    João começou a pregar, dizendo:
    «Vai chegar depois de mim
    quem é mais forte do que eu,
    diante do qual eu não sou digno de me inclinar
    para desatar as correias das suas sandálias.
    Eu batizo na água,
    mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo».
    Sucedeu que, naqueles dias,
    Jesus veio de Nazaré da Galileia
    e foi batizado por João no rio Jordão.
    Ao subir da água, viu os céus rasgarem-se
    e o Espírito, como uma pomba, descer sobre Ele.
    E dos céus ouviu-se uma voz:
    «Tu és o meu Filho muito amado,
    em Ti pus toda a minha complacência».

    Contexto:

                O Evangelho deste domingo refere o encontro entre Jesus e João Batista, nas margens do rio Jordão. Na circunstância, Jesus foi batizado por João.

    João foi o guia carismático de um movimento de cariz popular, que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. No final do ano 27 ou princípio do ano 28, a sua voz começou a ouvir-se lá para os lados do deserto de Judá, nas margens do rio Jordão, num lugar que a tradição identifica com o atual Qasr El Yahud, a cerca de 10 quilómetros do Mar Morto. A mensagem proposta por João estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água.

    O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água, sempre ligados a contextos de purificação ou de mudança de vida. Era, inclusive, um ritual usado na integração dos “prosélitos” (os pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus. A imersão na água sugeria a rutura com a vida passada e o ressurgir para uma vida nova, um novo nascimento, um novo começo. No que diz respeito ao Batismo proposto por João, estamos provavelmente diante de um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este “batismo”, renunciava ao pecado, convertia-se a uma vida nova e passava a integrar a comunidade que esperava o Messias.

    O texto que hoje nos é proposto faz parte de um tríptico (cf. Mc 1,2-8; 1,9-11; 1,12-13) onde Marcos define, logo no início do seu Evangelho, a identidade e a missão específica de Jesus: Ele é o Messias, o Filho de Deus enviado ao mundo para oferecer aos homens a salvação de Deus. Marcos irá, nos capítulos seguintes, desenvolver estas coordenadas.in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a frente com um Deus que aceitou identificar-Se com o homem, partilhar a sua humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e de vida plena. Eu, filho deste Deus, aceito ir ao encontro dos meus irmãos mais desfavorecidos e estender-lhes a mão? Partilho a sorte dos pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofro na alma as suas dores, aceito identificar-me com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena? Não tenho medo de me sujar ao lado dos pecadores, dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais dignidade e mais esperança?
    • Jesus, o Filho Amado de Deus, veio ao encontro dos homens, solidarizou-se com as suas dores e limitações e quebrou o muro que nos separava de Deus. Ao ser batizado no rio Jordão, foi ungido pelo Espírito de Deus e abraçou, sem reticências, a missão que o Pai lhe confiava: propor e construir o Reino de Deus. Todos nós que fomos batizados em Cristo recebemos o mesmo Espírito de Deus que Ele recebeu e entramos na comunidade do Reino. No dia do nosso batismo recebemos a missão de colaborar com Jesus na construção de um mundo mais fraterno e mais humano. Temos sido fiéis a essa missão? O nosso compromisso batismal é uma realidade que procuramos renovar a cada passo, ou é letra morta que não toca a forma como vivemos? Somos batizados “de assinatura” (porque o nosso nome aparece num qualquer livro de registos de Batismo), ou somos cristãos de facto, que procuram seguir Jesus em cada passo do caminho e colaborar com Ele no sentido de curar o mundo das suas feridas?
    • Jesus sempre levou muito a sério aquela declaração de Deus que se escutou junto do rio Jordão: “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha complacência”. Esse amor que o Pai lhe dedicava sempre sustentou as opções de Jesus e sempre iluminou o caminho que Ele ia percorrendo (mesmo quando no horizonte estava a cruz, o abandono dos amigos, o aparente fracasso da missão). Sustentado pelo amor de Deus, Jesus assumiu incondicionalmente o projeto do Pai de dar vida à humanidade. Obedeceu em tudo ao Pai, sem reticências de qualquer espécie. É esta mesma atitude de obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta que eu – filho amado de Deus – assumo na minha relação com o Pai? O projeto de Deus é, para mim, mais importante de que os meus projetos pessoais ou do que os desafios que o mundo me lança? Como Jesus, confio plenamente no Pai, nas suas propostas, no seu cuidado, no seu amor?
    • Depois de batizado e de ser ungido pelo Espírito, Jesus não se instalou numa crença religiosa de meias tintas ou de serviços mínimos. Animado pela força do Espírito, partiu para a Galileia a anunciar o Reino de Deus e a testemunhar – com palavras e com gestos – o projeto libertador do Pai. É dessa forma – coerente, comprometida, apaixonada – que eu procuro viver a missão que Deus me confiou no dia em que eu fui batizado? Os meus irmãos e irmãs maltratados pela vida e pelos homens podem contar com o meu empenho em levar-lhes a carícia do Deus que cura e que dá Vida? in Dehonianos

    Para os leitores:

    I Leitura (ver anexo)

    II Leitura: (ver anexo)

    Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

    FESTA DO BATISMO DO SENHOR

                Passado o Advento e as Festas Natalícias, estamos agora no umbral do chamado «Tempo Comum» do Ano Litúrgico que, ao contrário do que se possa pensar, não é um «Tempo secundário», mas fundamental na vida celebrativa da Igreja Una e Santa. Na verdade, ao longo deste «Tempo Comum», Domingo após Domingo, a Igreja Una e Santa, Batizada e Confirmada, Esposa Amada de Cristo, é chamada a contemplar de perto, episódio após episódio, toda a vida histórica do seu Senhor, desde o Batismo no Jordão até à Cruz e à Glória da Ressurreição.

                Esta apresentação só é possível porque, em cada um dos Anos Litúrgicos, é proclamado, Domingo após Domingo, praticamente em lição contínua, um Evangelho inteiro. Neste Ano B, é-nos dada a graça de ouvir o Evangelho segundo Marcos, por todos considerado o mais antigo dos Evangelhos, escrito, com certeza, durante a guerra judaica (66-70), mas antes da destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70. Em termos formais, é um Evangelho em que se sucedem os episódios, como num filme, sendo diminuta a parte discursiva. O leitor ou ouvinte vê passar diante de si uma série de episódios em rede, sendo constantemente convidado a implicar-se no que vê, perguntando, interpretando, fazendo seu o programa das personagens ou dele se distanciando, ou simplesmente manifestando o seu espanto e encanto.

                O Primeiro Domingo do «Tempo Comum» coloca então diante de nós o episódio do Batismo de Jesus no Jordão, que acontece logo a abrir o Evangelho segundo Marcos 1,7-11. O texto apresenta-se em duas vagas: Marcos 1,7-8, apontando para João Batista, e Marcos 1,9-11, apontando para Jesus.

                Deixamos aqui algumas anotações para facilitar a compreensão da figura de João Batista, apresentada na primeira vaga do texto: 1) João Batista surge em cena, em pleno deserto, sem qualquer apresentação prévia, sem pai nem mãe, como se tivesse chovido do céu (Marcos 1,4); 2) atravessa-o uma dupla tarefa: anunciar Aquele-que-Vem (érchetai), «O mais-forte-do-que eu» (ho ischyróterós mou) (Marcos 1,7), e, porque se trata de Alguém muito importante, advertir o povo de Israel que não basta ficar à espera dele, mas que é necessário preparar-se para a sua chegada (Marcos 1,2-5.7-8); 3) esta preparação requer quatro coisas: conversão, confissão dos pecados, obter o batismo e a remissão dos pecados (Marcos 1,4-5); 4) a missão de João Batista reveste-se de algumas particularidades: a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém saíam (ezeporeúeto: imperf. de ekporeúomai) ao encontro de João Batista (Marcos 1,5); 5) curiosamente não é João que vai ao encontro das pessoas, como tinham feito os profetas antes dele, e como fará também Jesus, que sai e percorre as cidades e aldeias ao encontro das pessoas; é este, de resto, o estilo dos Evangelizadores: ir ao encontro das pessoas, e não ficar à espera delas; 6) João parece um ponto fixo no deserto: é lá que vive, é lá que prega, e as pessoas vão lá escutá-lo; 7) é descrita a forma como anda vestido e o que come (Marcos 1,6), quer para mostrar a sua austeridade, quer para o vincular à figura de Elias (2 Reis 1,8); 8) contra o ritual habitual, não são as pessoas que tomam o banho lustral de purificação, mas é João que as batiza na água do Jordão; 9) Este gesto é tão insólito e característico de João, que lhe vale o título de Batista, não só no NT, mas também em Flávio Josefo.

                É dito ainda que João proclamava ou anunciava (ekêryssen: imperf. de kêrýssô) (Marcos 1,7). O verbo está no imperfeito, o que implica uma proclamação repetida e prolongada, mas o narrador não se alonga sobre o conteúdo da referida pregação. Também se diz, de forma quase telegráfica, que João batiza com água, e Aquele-que-Vem batizará com o Espírito Santo (Marcos 1,8), omitindo-se a menção do fogo e outros elementos de julgamento presentes em Mateus e Lucas. Marcos pretende apenas mostrar os dois batismos como preparação e cumprimento.

                E a anotação da incompetência (ikanós) de João para desatar a correia das sandálias d’Aquele-que-Vem (Marcos 1,7), o que significa? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no NT: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos 13,25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias noivo», o insigne exegeta hispano-germânico e grande amigo de Portugal, Luís Alonso Schoekel, levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. Explica ele: de acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse de»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. Em Deuteronómio 25,5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto, em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute, prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Marcos 1,7 e nos demais dizeres do NT que anotámos significa também que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência.

                A segunda vaga do relato (Marcos 1,9-11) assinala o ponto alto do texto. João tinha anunciado a Vinda de Alguém incomparavelmente superior a ele. As expetativas estão no auge. Quando virá e de onde virá? Primeira surpresa: eis que vem Jesus, diz o narrador, de Nazaré da Galileia, terra desconhecida do interior da província e do mundo rural, nunca referida no AT. Natanael tem razão quando pergunta: «De Nazaré poderá vir alguma coisa boa?» (João 1,46). Vem do povo, e vem com o povo, no meio do povo, solidário com o povo. Na verdade, nova surpresa, não começa logo a batizar, mas é batizado por João no rio Jordão (Marcos 1,9). Com o povo, no meio do povo, não ao lado do povo. Jesus vem, portanto, no meio do povo pecador que se submete a um batismo de conversão para a remissão dos pecados. Entenda-se bem que Jesus se submete ao mesmo batismo a que o povo se submete, não porém para a remissão dos próprios pecados, mas os dos outros. Grande gesto de solidariedade connosco, prolepse já da sua vida inteira e do batismo de sangue da Cruz (Marcos 10,38).

                Se este Jesus está no meio de nós, completamente solidário connosco, o texto mostra-o também completamente unido a Deus, a quem tem livre acesso. É para significar esta sua perfeita união com Deus, que os céus se abrem, cumprindo Isaías 63,19, e o Espírito desce, não «sobre ele», mas «para dentro dele» (eis autón) (Marcos 1,10), para permanecer nele de modo íntimo e estável. O Espírito não transforma Jesus, mas torna transparente a sua identidade. Esta nota da sua união com Deus sai logo reforçada pela voz que vem dos céus, portanto, autorizada e reveladora: «Tu és (Sý eî) o Filho Meu (ho hyiós mou), o Amado (ho agapêtós), em Ti (en soí) o meu Enlevo (eudokéô) (Marcos 1,11), deixando ver em filigrana a figura do Rei messiânico do Salmo 2,7 e do Servo do Senhor de Isaías 42,1. Mas é sobre Jesus que recai toda a atenção, pois desde que entra em cena, é ele o sujeito ou o destinatário de todas as ações: «vem de Nazaré», «é batizado por João», «sai da água», «vê os céus abrirem-se e o Espírito descer», «a voz que vem dos céus é dirigida a Ele e fala para Ele». Jesus, por seu lado, permanece em completo silêncio.

                Diante dos olhos atónitos de João, e também dos nossos, fica, portanto, Jesus que, connosco e no meio de nós, como um de nós, desce ao rio Jordão para ser connosco batizado. Extraordinária a epígrafe que Pedro, na lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos, põe sobre a vida de Jesus: «Passou fazendo o bem e curando todos» (Atos 10,38). Para nos curar, é preciso passar pelo meio de nós. O Jordão é o rio de Cristo e dos cristãos. Rasga, de alto-a-baixo, a terra de Israel, mas atravessa também as páginas dos dois Testamentos! Desce do sopé do Hermon e vai desaguar no Mar Morto, fazendo um percurso sinuoso de mais de 300 km (104 km em linha reta), e o seu nome ouve-se por 179 vezes nas páginas do Antigo Testamento e 15 vezes no Novo Testamento. As suas águas curam (2 Reis 5,14: Naamã) e dão acesso à vida nova: é atravessando-o que o Povo entra na Terra Prometida (Josué 3,14-4,24). É ainda belo ver que, depois de um percurso de mais de 300 km, o Jordão entra no Mar Morto, onde, através de uma intensa evaporação, parece subir ao céu, lembrando Elias que sobe ao céu desde o leito do Jordão (2 Reis 2,8-11). É lembrando estes cenários, sobretudo o do Batismo que também cura e dá acesso à vida nova, que muitas Igrejas Orientais chamam «Jordão» ao canal que conduz a água para a fonte batismal, que todos os anos é benzida precisamente neste Dia da Festa do Batismo do Senhor.

                Ilustra bem o episódio do Batismo de Jesus no Jordão o chamado «Primeiro Canto do Servo do Senhor» (Isaías 42,1-7), hoje também lido, que põe em cena Deus e o seu Servo. Deus chama este Servo «meu Servo», diz que o segura e sustenta e que lhe dá o seu Espírito, e confia-lhe uma missão em ordem à verdade e à justiça, à mansidão e ao ensino, à libertação e à iluminação, entenda-se, à vida em plenitude, de todas as nações. Verdadeiramente, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, leva pela mão e modela. Linguagem de criação, confidência e providência.

                Há ainda a registar uma expressão forte para dizer a missão de mansidão confiada por Deus a este seu Servo: «Não fará ouvir desde fora a sua voz» (Isaías 42,2). Ora, se não faz ouvir a sua voz desde fora, então é porque a faz ouvir desde dentro. O grande pensador do século XX, de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas, este texto em sentido messiânico, dizendo que «o Messias é o único Rei que não reina desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder, dinheiro, impostos, armas ou decretos. Se não reina desde fora, reina desde dentro, aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as pessoas. Está bom de ver que Jesus vai assumir a identidade deste Servo e vai cumprir por inteiro a sua missão.

                Para não esquecer: esta bela missão de Jesus, Batizado com o Espírito no Jordão e declarado o Filho Amado, deve ser a nossa bela missão de Batizados com o Espírito Santo e filhos amados de Deus. É ainda como filhos que devemos hoje entoar também as notas deste Gloria in excelsis Deo do Antigo Testamento, que é o belíssimo Salmo 29. A voz (qôl) que por sete vezes se ouve no Salmo bem pode ser a Voz do Pai que se dirige ao Filho no Batismo do Jordão e continua a ressoar na pregação Apostólica como se do setenário dos dons do Espírito Santo ou dos Sacramentos se tratasse. Escreveu São Gregório Magno: «A voz de Deus troa admiravelmente porque, como força escondida, penetra nos nossos corações».

    António Couto

    ANEXOS:

    1. Leitura I da Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024 (Is 42, 1-4.6-7)
    2. Leitura II da Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024 (Act 10, 34-38)
    3. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024- Lecionário
    4. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024- Oração Universal
    5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo da Sagrada Família de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023

Solenidade da Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024

Viver a Palavra       

De olhos postos no Presépio de Belém, contemplamos Maria, José e o Menino: a Sagrada Família de Nazaré. O mistério da incarnação – evento, princípio e critério da revelação de Deus – não é apenas uma circunstância a partir da qual Deus se revela, mas o modo que Deus escolheu para se manifestar e dar a conhecer.

«O Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós» (Jo 1,14). A incarnação é um acontecimento fundamental através do qual Deus feito homem se dá a conhecer. Este acontecimento que marca indelevelmente e definitivamente a história constitui também o princípio a partir do qual Deus se relaciona com os homens e mulheres: Deus salva o homem através do homem e assumindo a nossa humanidade «por meio de palavras e gestos intimamente unidos entre si» (DV 2) revela o amor misericordioso do Pai. Deste modo, o mistério da incarnação é também chamado a ser critério para a nossa ação pastoral. Contemplando o Verbo feito carne, queremos fazer presente o evangelho no mundo, habitando cada cultura e cada tempo, transformando cada realidade humana para que possa ser elevada à plenitude do amor divino.

Deus quis que Jesus nascesse numa família e que assumindo a nossa natureza humana revelasse o lugar fundamental que a família ocupa no tempo e na história como célula fundamental da sociedade, lugar de afeto e relação e primeiro âmbito de socialização. Deste modo, no Domingo dentro da Oitava do Natal, somos convidados a contemplar a família de Nazaré para encontrar nela uma escola da arte de ser família e do modo de ser Igreja: «Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus, é a escola em que se inicia o conhecimento do Evangelho» (Papa S. Paulo VI).

O evangelho deste Domingo situa-nos nos dias da purificação, em que, segundo a Lei de Moisés, o filho primogénito deve ser consagrado ao Senhor. Nas figuras de Simeão e Ana, que recebem Jesus no Templo, esta passagem evangélica apresenta-nos duas coordenadas fundamentais na arte de ser família cristã e também na arte de ser Igreja ao serviço do evangelho.

Simeão é descrito como «homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava nele». Este homem guiado e iluminado pelo Espírito que lhe tinha revelado que ele não morreria sem contemplar o Messias, acolhe Jesus em seus braços, bendizendo a Deus. Ele é figura da família e da Igreja chamada a viver guiada e iluminada pelo Espírito Santo e que dia após dia deve crescer na arte de acolher Jesus. A família, bem como a Igreja enquanto família das famílias cristãs, realizará plenamente a sua missão se for capaz de ser um lugar da presença de Jesus, um átrio de fraternidade e comunhão que vive alegre e jubilosamente a sua vocação.

Ana apresentada como uma mulher de «idade muito avançada» que «não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações», também está presente naquela ocasião e começou a louvar a Deus e a falar a todos daquele Menino e da esperança da libertação que Ele era portador. Deste modo, Ana é modelo para a família e para Igreja da arte de levar Jesus aos outros e proclamar a libertação que só a Sua presença no meio de nós pode oferecer.

Que cada família, iluminada e conduzida pelo Espírito Santo, saiba viver inspirada pelo exemplo da família de Nazaré e ao jeito de Simeão e Ana saibam reconhecer os sinais da presença de Jesus no tempo e na história e cresçam na arte de O levar aos irmãos, louvando, bendizendo e proclamando as maravilhas que só o Seu amor pode operar em nós. in Voz Portucalense.

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sir 3,3-7.14-17a

«Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados, e acumula um tesouro quem honra sua mãe».

Contexto:

O Livro de Ben Sirá (chamado, na sua versão grega, “Eclesiástico”) é um livro de carácter sapiencial que, como todos os livros sapienciais, tem por objetivo deixar aos aspirantes a “sábios” indicações práticas sobre a arte de bem viver e de ser feliz. O seu autor é um tal Jesus Ben Sirá, um “sábio” israelita que viveu na primeira metade do séc. II a.C.

A época de Jesus Ben Sirá é uma época conturbada para o Povo de Deus. Os selêucidas (uma família descendente de Seleuco Nicator, general de Alexandre Magno, que herdou parte do império de Alexandre, o Grande, quando este morreu, em 323 a.C.) dominavam a Palestina e procuravam impor aos judeus, mesmo pela força, a cultura helénica. Muitos judeus, seduzidos pelo brilho da cultura grega, abandonavam os valores tradicionais e a fé dos pais e assumiam comportamentos mais consentâneos com a “modernidade”. A identidade cultural e religiosa do Povo de Deus corria, assim, sérios riscos… Neste contexto, Jesus Ben Sirá, um “sábio” judeu apegado às tradições dos seus antepassados, escreve para preservar as raízes do seu Povo. No seu livro, apresenta uma síntese da religião tradicional e da “sabedoria” de Israel e procura demonstrar que é no respeito pela sua fé, pelos seus valores, pela sua identidade que os judeus podem descobrir o caminho seguro para serem um Povo livre e feliz. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Os nossos pais foram, em nosso favor, instrumentos do Deus criador. Através deles, Deus chamou-nos à vida. Sentimo-nos gratos aos nossos pais por eles terem aceitado colaborar com Deus, dando-nos vida e cuidando de nós ao longo do caminho que temos vindo a percorrer? Lembramo-nos de lhes demonstrar, com ternura e amor, a nossa gratidão?
  • Apesar da sensibilidade moderna aos direitos humanos e à dignidade das pessoas, a nossa civilização cria, com frequência, situações de abandono, de marginalização, de solidão, cujas vítimas são, muitas vezes, aqueles que já não têm uma vida considerada produtiva, ou aqueles a quem a idade ou a doença trouxeram limitações. No entanto, do ponto de vista de Deus, nenhum ser humano é “descartável”, ou estará alguma vez fora do prazo de validade. Não podemos admitir – com a nossa indiferença ou com o nosso silêncio cúmplice – que as pessoas em situação de fragilidade sejam abandonadas na berma da estrada, sempre que o mundo caminha a um ritmo que elas não podem acompanhar. Tenho consciência disto?
  • É verdade que a vida de hoje é muito exigente a nível profissional e que nem sempre é possível a um filho estar presente ao lado de um pai que precisa de cuidados continuados ou de acompanhamento especializado. No entanto, se alguma vez as circunstâncias impuserem a necessidade de afastamento de um pai idoso ou descapacitado do ambiente familiar, isso não pode significar abandono e condenação à solidão. Seremos sempre responsáveis por aqueles que cativamos, e ainda mais por aqueles que foram, para nós, instrumentos do Deus criador e fonte de vida.
  • O capital de maturidade e de sabedoria de vida que os mais idosos possuem é considerado por nós uma riqueza ou um desafio ridículo à nossa modernidade e às nossas certezas?
  • Face à invasão contínua de valores estranhos que, tantas vezes, põem em causa a nossa identidade cultural e religiosa (quando não a nossa humanidade), o que significam os valores que recebemos dos nossos pais? Avaliamos com maturidade a perenidade desses valores, ou estamos dispostos a renegá-los ao primeiro aceno dos “valores da moda”? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)

Refrão: Ditosos os que temem o Senhor, ditosos os que seguem os seus caminhos.

LEITURA II – Col 3,12-21

«Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro».

Contexto:

A Igreja de Colossos, destinatária desta carta, foi fundada por Epafras, um amigo de Paulo, pelos anos 56/57. Tanto quanto sabemos, Paulo nunca visitou a comunidade…

Hoje, não é claro para todos que Paulo tenha escrito esta carta (o vocabulário utilizado e o estilo do autor estão longe das cartas indiscutivelmente paulinas; também a teologia apresenta elementos novos, nunca usados nas outras cartas atribuídas a Paulo); por isso, é um pouco difícil definirmos o ambiente em que este texto apareceu…

Para os defensores da autoria paulina, contudo, a carta foi escrita quando Paulo estava prisioneiro, possivelmente em Roma (anos 61/63). Epafras teria visitado o apóstolo na prisão e deixado notícias alarmantes: os Colossenses corriam o risco de se afastar da verdade do Evangelho, por causa das doutrinas ensinadas por certos doutores de Colossos. Essas doutrinas misturavam práticas legalistas (o que parece indicar tendências judaizantes) com especulações acerca do culto dos anjos e do seu papel na salvação; exigiam um ascetismo rígido e o cumprimento de certos ritos de iniciação, destinados a comunicar aos crentes um conhecimento mais adequado dos mistérios ocultos e levá-los, através dos vários graus de iniciação, à vivência de uma vida religiosa mais autêntica.

Sem refutar essas doutrinas de modo direto, o autor da carta afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.

O texto que nos é hoje proposto pertence à segunda parte da carta. Depois de constatar a supremacia de Cristo na criação e na redenção (primeira parte), o autor avisa os Colossenses de que a união com Cristo traz consequências a nível de vivência prática (segunda parte): implica a renúncia ao “homem velho” do egoísmo e do pecado e o “revestir-se do Homem Novo” (Cl 3,9-11). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A nossa vida de todos os dias é, a cada instante, marcada por tensões, ansiedades, conflitos e problemas que mexem com o nosso equilíbrio e a nossa harmonia. Perdemos o controlo, tornamo-nos quezilentos e conflituosos, criticamos os outros com palavras que magoam, assumimos poses de arrogância e de superioridade, enchemos as redes sociais com comentários infelizes… Talvez nos faça bem cada dia, em jeito de exame de consciência, reservar um momento para olhar para Jesus e para confrontar os nossos gestos, as nossas palavras, as nossas escolhas com os gestos, as palavras e as suas opções. Esse “confronto” pode ajudar-nos a situar as perspetivas e a recentrar a nossa vida nesse viver “em Cristo” que é a vocação do cristão.
  • A nossa primeira responsabilidade vai, evidentemente, para aqueles que connosco partilham, de forma mais chegada, a vida do dia a dia (a nossa família). Esse amor, que deve revestir-nos sempre, traduz-se numa atenção contínua àquele que está ao nosso lado, às suas necessidades e preocupações, às suas alegrias e tristezas, aos seus sorrisos e às suas lágrimas? Traduz-se em gestos sentidos e partilhados de carinho e de ternura? Traduz-se num respeito absoluto pela liberdade e pelo espaço do outro, por deixar o outro crescer sem o sufocar? Traduz-se na vontade de servir o outro, sem nos servirmos dele?
  • A expressão “esposas, sede submissas aos vossos maridos” é, evidentemente, uma expressão anacrónica, que deve ser devidamente contextualizada no universo cultural e social do séc. I, mas que hoje não faz sentido. Para os que vivem “em Cristo”, o valor que preside às relações é o amor… E o amor não comporta submissão ou superioridade, mas igualdade fundamental em dignidade e direitos. O mesmo Paulo dirá, noutras circunstâncias, que para os que vivem “em Cristo” “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”, porque todos são um só em Cristo Jesus (Gl 3,28). É este o horizonte que deve estar sempre diante dos nossos olhos. in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 2,22-40

«Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, para O apresentarem ao Senhor».

«O Menino crescia, tornava-Se robusto e enchia-Se de sabedoria».

Contexto:

O interesse fundamental dos primeiros cristãos não se centrou na infância de Jesus, mas na sua mensagem e proposta; por isso, a catequese cristã dos primeiros tempos interessou-se, de forma especial, por conservar as memórias da vida pública e da paixão do Senhor.

Só num estádio posterior houve uma certa curiosidade acerca dos primeiros anos da vida de Jesus. Coligiram-se, então, algumas informações históricas sobre a infância de Jesus; e esse material foi, depois, amassado e trabalhado, de forma a transmitir aquilo que a catequese primitiva ensinava sobre Jesus e o seu mistério. O chamado “Evangelho da Infância” (de que faz parte o texto que nos é hoje proposto) assenta nessa base; parte de algumas indicações históricas e desenvolve uma reflexão teológica para explicar quem é Jesus. Nesta secção do Evangelho, Lucas está muito mais interessado em dizer quem é Jesus, do que em contar-nos factos memoráveis da sua infância.

Lucas propõe-nos, hoje, o quadro da apresentação de Jesus no Templo. Segundo a Lei de Moisés, todos os primogénitos (tanto dos homens como dos animais) pertenciam a Javé e deviam ser oferecidos a Javé (cf. Ex 13,1-2.11-16). O costume de oferecer aos deuses os primogénitos é um costume cananeu que, no entanto, Israel transformou no que dizia respeito aos primogénitos humanos: estes não deviam ser oferecidos em sacrifício, mas resgatados por um animal, que seria imolado ao Senhor.

De acordo com Lv 12,6-8, quarenta dias após o nascimento de uma criança, esta devia ser apresentada no Templo, onde a mãe oferecia um ritual de purificação. Nessa cerimónia, devia ser oferecido um cordeiro de um ano (para as famílias mais abastadas) ou então duas pombas ou duas rolas (para as famílias de menores recursos). É precisamente neste cenário que o Evangelho de hoje nos situa.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Lucas apresenta-nos uma família – a Sagrada Família – em que Deus é a referência fundamental. Por quatro vezes (vers. 22.23.24.27), Lucas refere, a propósito da família de Jesus, o cumprimento da Lei de Moisés, da Lei do Senhor ou da Palavra do Senhor. A família de Jesus, Maria e José é, portanto, uma família que escuta a Palavra de Deus e que constrói a sua existência ao ritmo da Palavra de Deus e dos desafios de Deus. Maria e José sabiam que uma família que escuta a Palavra de Deus e que procura responder aos desafios postos por essa Palavra é uma família com um projeto de vida com sentido; e sabiam que uma família que se deixa guiar pela Palavra de Deus é uma família que se constrói sobre a rocha firme dos valores eternos. Que importância é que Deus assume na vida das nossas famílias? Procuramos que cada membro das nossas famílias cresça numa progressiva sensibilidade à Palavra de Deus e aos desafios de Deus? Encontramos tempo para reunir a família à volta da Palavra de Deus e para partilhar, em família, a Palavra de Deus?
  • Quando numa família Deus “conta”, os valores de Deus passam a ser, para todos os membros daquela comunidade familiar, as marcas que definem o sentido da existência. O espaço familiar torna-se, então, a escola onde se aprende o amor, a solidariedade, a partilha, o serviço, o diálogo, o respeito, o cuidado, o perdão, a fraternidade universal, o cuidado da criação, a atenção aos mais frágeis, o sentido do compromisso, do sacrifício, da entrega e da doação… São esses valores – os valores de Deus – que procuramos cultivar na nossa comunidade familiar?
  • Segundo a Lei judaica, todo o primogénito devia ser consagrado e dedicado ao Senhor. Também Jesus é apresentado no Templo e consagrado ao Senhor. Nas nossas famílias cristãs há normalmente uma legítima preocupação com o proporcionar a cada criança condições ótimas de vida, de educação, de acesso à instrução e aos cuidados essenciais… Haverá sempre uma preocupação semelhante no que diz respeito à formação para a fé e em proporcionar aos filhos uma verdadeira educação para a vida cristã e para os valores de Jesus Cristo? Os pais cristãos preocupam-se sempre em proporcionar aos seus filhos um exemplo de coerência com os compromissos assumidos no dia do Batismo? Preocupam-se em ser os primeiros catequistas dos próprios filhos, transmitindo-lhes os valores do Evangelho? Preocupam-se em acompanhar e em potenciar a formação e a caminhada catequética dos próprios filhos, em inseri-los numa comunidade de fé, em integrá-los na família de Jesus, em consagrá-los ao serviço de Deus?
  • Simeão e Ana, os dois anciãos que acolhem Jesus no Templo de Jerusalém, não são pessoas desiludidas da vida, que vivem voltadas para o passado sonhando com um tempo ideal que já não volta; mas são pessoas voltadas para o futuro, atentas ao Deus libertador que vem ao seu encontro, que sabem ler os sinais de Deus naquele menino que chega e que testemunham diante dos seus conterrâneos a presença salvadora e redentora de Deus no meio do seu Povo. Os anciãos – quer pela sua maturidade, sabedoria e equilíbrio, quer pelo tempo de que normalmente dispõem – podem ser testemunhas privilegiadas dos valores de Deus, intérpretes dos sinais de Deus, profetas credíveis que obrigam o mundo a confrontar-se com os desafios de Deus. É preciso que não vivam voltados para o passado, refugiados numa realidade que aliena, transformados em “estátuas de sal”, mas que vivam de olhos postos no futuro, de espírito aberto e livre, pondo a sua sabedoria e experiência ao serviço da comunidade humana e cristã, ensinando os mais jovens a distinguir entre o que é eterno e importante e o que é passageiro e acessório. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é importante ter em conta as repetições que surgem no texto (Quem honra seu pai), bem como a forma exortativa marcada pela presença de verbos no modo imperativa.

Na segunda leitura, deve haver especial cuidado na proclamação das enumerações e ter sempre presente o tom exortativo que atravessa todo o texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

Sagrada Família de Jesus, Maria e José – 31.12.2023

COM O MENINO NOS BRAÇOS E NO CORAÇÃO

Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

O Evangelho que temos Hoje a graça de escutar vem de Lucas 2,22-40. Compõe a cena um velhinho chamado Simeão, nome que significa «Escutador», que vive atentamente à escuta, em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta frequência, alta definição, alto amor, e que o Evangelho apresenta como um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, esse velhinho que vivia à espera e à escuta, com carinhosa atenção e coração vigilante, veio ao Templo sob o impulso do Espírito (en tô pneúmati). Fica aqui declarada a qualidade da energia e da alegria que move o velho e querido Simeão: não é movido a carvão, nem a água, nem a vento, nem a petróleo e seus derivados, nem a eletricidade, nem sequer a energia nuclear. Simeão é movido pelo Espírito Santo. Maneira novíssima de viver, pausa e bemol na nossa impetuosidade, na nossa vontade de aparecer e de fazer, pausa e bemol nos nossos protagonismos e vontade de poder. Falamos quase sempre antes do tempo, e não chegamos a dar lugar à suave voz do Espírito. Na verdade, adverte-nos Jesus: «Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo» (Marcos 13,11; cf. Mateus 10,20; Lucas 12,12). Portanto, é urgente esperar! Regressemos, pois, à beleza de Simeão. Ao ver aquele Menino, recebeu-o carinhosamente nos braços. Por isso, os Padres gregos dão a Simeão o título belo de Theodóchos [= «recebedor de Deus»]. É então que Simeão entoa o canto feliz do entardecer da sua vida, um dos mais belos cantos que a Bíblia regista: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!» (Lucas 2,29-32).

E, na circunstância, também uma velhinha chegou carregada de Graça e de Esperança. Chamava-se Ana, que significa «Graça». É dita «Profetisa», isto é, que anda, também ela, sintonizada em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta definição, alto amor, com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. Diz ainda o texto que era filha de Fanuel, nome que significa «Rosto de Deus», e que era da tribo de Aser, que quer dizer «Felicidade». Tanta intimidade com Deus! Também esta velhinha, serena e feliz, com 84 anos, número perfeito de números perfeitos (7 x 12), teve a Graça de ver aquele Menino. E diz bem o texto do Evangelho que Ana «falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (Lucas 2,38). Outra vez a beleza inteira do díptico do Evangelho de Lucas: Simeão e Ana. Simeão esperava e Ana anunciava. Eis aqui presente, nestes dois maravilhosos velhinhos, a inteira Escritura dos dois Testamentos, e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, um nome passivo e recetivo, totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, «compondo» com emoção os acontecimentos de Deus no seu coração.

Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós que nos chamamos Simeão e Ana. Somos nós que recebemos esta Luz nos braços, e que ficamos a fazer parte da família da Felicidade e a viver pertinho de Deus, Rosto a Rosto com Deus, Escutadores atentos do bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, Recebedores de Deus, Anunciadores de Deus. Rezamos hoje para que, nesta sociedade de coisas e de números (cf. Isaías 5,8), os filhos e filhas de Deus vivam cada vez mais Rosto a Rosto com Deus, e deem testemunho no mundo deste Dom maravilhoso.

Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben Sira (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor, e seguem os seus caminhos», é a bela litania em que o refrão nos faz entrar.

Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. De resto, vê-se bem que andamos todos bem vestidos por fora, mas andamos muitas vezes nus por dentro! E é para aqui que aponta a exortação de S. Paulo. Nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos.

Neste Domingo da Festa da Sagrada Família é naturalmente a Família que está no centro da cena. Nos tempos conturbados que vivemos, atravessados por pandemias várias, é decisivo que a Família seja cada vez mais vista como esteio da sociedade, e, como tal, respeitada, protegida e promovida, e não vilipendiada, triste realidade a que vamos assistindo dia após dia

Santa Maria de um amor maior,

Do tamanho do Menino que levas ao colo,

Diante de ti me ajoelho e esmolo

A graça de um lar unido ao teu redor.

 

Protege, Senhora, as nossas famílias,

Todos os casais, os filhos e os pais,

E enche de alegria, mais e mais e mais,

Todos os seus dias, manhãs, tardes, noites e vigílias.

 

Vela, Senhora, por cada criança,

Por cada mãe, por cada pai, por cada irmão,

A todos os velhinhos, Senhora, dá a mão,

E deixa em cada rosto um afago de esperança.

 

António Couto

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 01.01.2024

Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2024, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.

A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre, com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, enquanto se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.

O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria GUARDAVA (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), COMPONDO-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, GUARDAVA todas estas Palavras que aconteceram, COMPONDO-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada e comovida. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a GUARDAR com enlevado carinho todas estas Palavras que acontecem, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo GUARDAR implica uma atenção extremada e carinhosa, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este GUARDAR atencioso e carinhoso não é, porém, o ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a COMPOR, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a simbolizar, a organizar, para melhor compreender e se fazer compreender. É como quem, com aquelas Palavras, COMPÕE um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria.

Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus e nos reconcilia, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Basta fazer bem as contas para nos apercebermos que celebramos hoje o 57.º Dia Mundial da Paz.

De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde. / O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável. / O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

Por isso, bem podemos hoje, com o Salmo 67, juntar as nossas vozes às vozes dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que a todos faz graça e misericórdia. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu Te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo 67 recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste bem que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

  1. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Ámen!

Que Deus nos abençoe e nos guarde,
Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,
Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,
Cheios de amor, de paz e de alegria,
Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,
E nos ponha no caminho de Maria.

 O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
fiat que disseste, Maria, é de quem se fia
Num amor maior do que um letreiro.
Vela por nós, Maria, em cada dia
Deste ano inteiro,
Para que levemos a cada enfermaria,
A cada periferia,
Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

Santa Maria da Paz,
Ensina-nos como se faz.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 (Sir 3, 3-7.14-17a)
  2. Leitura II da Festa da Sagrada Família de Jesus, Masria e José – Ano B – 31.12.2023 (Col 3, 12-21)
  3. Festa da Sagrada Familia de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 – Lecionário
  4. Festa da Sagrada Familia de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 – Oração Universal
  5. Festa de Santa Maria Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024 – Lecionário
  6. Festa de Santa Maria Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024 – Oração Universal
  7. Mensagem do Papa Francisco para o 57º Dia Mundial da Paz – 01.01.2024
  8. ANO B – O ano do evangelista Marcos

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