A PAZ – Uma preocupação desde sempre!

Em louvor da paz: Sermão de Santo Agostinho (354 – 430)

 

Louvor da paz. Como lidar com os inimigos da paz.

  1. Agora é o tempo de vos exortar a amar a paz com toda a força que o Senhor vos dá, e a rezar ao Senhor pela paz. Que a paz seja nossa amada, nossa amiga; que vivamos com ela nos nossos corações em união pura; possamos com ela saborear um sono cheio de esperança, uma comunhão sem amargura. Sejamos verdadeiros amigos da paz. Que ela nos abrace com sua doçura…. Aqueles que amam a paz devem ser elogiados. Aqueles que odeiam a paz não devem ser provocados com censuras: é melhor começar a acalmá-los com ensinamentos e com a estratégia do silêncio. Aqueles que amam verdadeiramente a paz também amam os inimigos da paz. Tomemos um exemplo: vós que amais esta luz visível, não vos zangueis com os cegos, mas tendes respeito por eles. Percebe-se o bem que se desfruta, o bem que lhes falta, e vê-se que merecem respeito. De facto, não os devemos condenar; pelo contrário, se tivéssemos a possibilidade de os curar, pela arte médica ou por um medicamento eficaz, apressar-nos-íamos a fazer algo para os curar.

Portanto, se amas a paz, quem quer que sejas, tem compaixão por aqueles que não amam o que tu amas, por aqueles que não possuem o que possuis. O objeto do vosso amor é de tal natureza que não traz inveja daqueles que partilham convosco a mesma posse. Aquele que possui a mesma paz que tu possuis não diminui a sua posse. Se desejas um determinado bem terreno, é difícil não provocar alguma inveja àqueles que o possuem mais do que tu. Mais ainda, se por acaso te ocorrer partilhar a tua propriedade com um amigo para alcançares uma reputação de homem bom ou para manifestares o amor fraterno nas suas necessidades atuais, se por isso desejas partilhar com um amigo os teus bens, seja uma quinta, uma casa, ou algo do género, deves precisamente partilhá-lo com ele, deves desfrutá-lo em comunhão com ele. Se quiseres receber em tua casa mais uma terceira ou uma quarta pessoa, deves ter em atenção quantos cabem na casa e concluir: um quinto já não cabe, um sexto não pode viver connosco, não cabem. E se vier um sétimo, dirás: ‘Como pode uma propriedade tão pequena sustentar mais gente?”. Pela própria limitação dos bens, e não por tua vontade, és obrigado a excluir os demais. Em contrapartida, se amas, guardas e possuis a paz, podes convidar tantos quantos quiseres a partilhar deste bem. De facto, os seus limites alargam-se quanto mais cresce o número daqueles que a possuem. Uma casa terrena não pode abrigar mais do que um certo número de habitantes, mas, quanto à paz esta cresce em proporção ao número de pessoas que a desfrutam.

Amar a paz é possuí-la

  1. Que coisa boa é amar! Amar já é possuir. E quem não gostaria de ver crescer o que ele ama? Se quiseres ter apenas alguns poucos partícipes da paz, terás uma paz muito limitada. Mas se quiseres ver esta sua posse crescer, aumente o número de possuidores. Como é verdade que amar a paz é possuir um bem e que amá-la já é possuí-la! Não há palavras adequadas para exaltar a paz, não há sentimentos adequados para meditar sobre esta coisa extraordinária que é amar e possuir a paz… A compra deste tesouro não requer qualquer preço. Não é necessário ir em busca de um fiador para o alcançar. Aí está onde tu estás: basta que ames a paz, e ela está contigo. A paz é um bem do coração e é comunicada aos amigos, mas não como o pão. Se quiserem dar pão, quanto mais pessoas o partirem, menos têm para dar. A paz, em contrapartida, é semelhante ao pão do milagre que cresceu nas mãos dos discípulos ao partirem-no e distribuírem-no.

Comunicar a paz com paz aos irmãos separados

  1. Cultivai a paz entre vós. Se quiseres atrair outros para a paz, deves tê-la em primeiro lugar; sê tu, antes de mais, inabalável na paz. A fim de acender outros nela, vós próprios deveis ter uma luz dentro de vós mesmos. O belicoso rejeita a paz como um olho doente rejeita a luz. Mas porque o olho doente não tolera a luz, não significa que essa luz é uma coisa má. O olho doente afasta a luz, apesar de ter sido criado para a luz. Que aqueles que amam a paz e desejam possuí-la façam com que os possuidores da paz se multipliquem, para que este bem cresça. Ajudemos os doentes da vista para que venham a ver: por todos os meios, por todos os esforços, sem poupar energias; ainda que resistam ao tratamento, ficarão felizes quando tiverem recuperado a visão! Ainda que a pessoa doente fique irritada consigo, não te canses de o ajudar e de estar perto dele.

Tu, amigo da paz, reflete, e saboreia, primeiro, o encantamento da tua amada. Ergue-te em amor, para que possas atrair outros para o mesmo amor, para que eles possam ver o que vês, amar o que amas, possuir o que possuis. É como se a paz, a vossa amada, vos falasse e dissesse: “Amai-me e ter-me-eis sempre. Convence todos aqueles que puderes a amar-me com um amor casto, integral e permanente; cativa todos os que puderes. Encontrar-me-ão, possuir-me-ão, encontrarão em mim a sua alegria”.

Foi decretado que os cristãos devem viver em paz… Longe de nós a discórdia, que é como a escuridão para aquele que não consegue ver. Mas a paz há de chegar…

Remédio da oração

  1. Foi decretado que os cristãos devem viver em paz… Longe de nós a discórdia, que é como a escuridão para aquele que não consegue ver. Mas a paz há de chegar… Coisas infames podem ter sido ditas e feitas [pelo adversário], mas agora calemos: não por consentimento – é claro – mas por indulgência. Se agora não promovermos a contenda, estamos a prestar um serviço à paz. Tentemos compreender o momento: sejamos prudentes. Pense em todos inimigos da paz e comunhão. Tu conhece-los e Deus não? No entanto, Ele faz o sol nascer sobre os bons e os maus, e faz chover sobre os justos e os injustos. Assim, mostra Deus a paciência e atrasa a manifestação do seu poder. Por isso, também tu deves avaliar o tempo em vez de excitar os olhos inchados e inflamados do belicoso: apenas aumentarias o seu desconforto.

És um amigo da paz? Fica interiormente sereno com a tua amada. Mas não digas: “Então não há nada a fazer!”. É claro que há muito a fazer: eliminar as disputas. Deita mão da oração; em vez de repelires o insulto com insulto, reza por aquele que o faz. Gostarias de retorquir, de falar como ele, contra ele. Em vez disso, fala a Deus sobre ele. Vê que não é exatamente o silêncio que te estou a impor, mas a escolheres um interlocutor diferente, com quem se pode falar em silêncio: com os lábios fechados, mas com um grito no coração…

Jejum, paz, hospitalidade

  1. Deves dizer estas coisas, com fervor, mas suavemente, que as tuas palavras sejam apaixonadas pelo fervor da caridade, não pela exaltação da discórdia. Rezemos ao Senhor em jejuns solenes por esta causa santa…

O que devemos então fazer pelos nossos irmãos? O que podemos fazer? Rezar ao nosso Médico, jejuando, de facto, com humildade de coração, como um ato piedoso de louvor, com respeito pelos nossos irmãos e irmãs. Com o Senhor, oração fervorosa, com os irmãos, caridade. As esmolas também devem ser aumentadas para que as orações possam ser mais facilmente respondidas. Devemos também praticar a hospitalidade: este é o momento certo, visto que dela muitos agora necessitam; é a ocasião certa, a circunstância certa. Porquê desperdiça-la? Faz um inventário do que tens nos armários da tua casa e decide o que podes doar ao céu, isto é, para os necessitados: esse é o único tesouro que te deixará sem cuidados. Coloca então os teus bens no alto, e confia-os não ao teu gestor, mas ao teu Senhor, e não precisarás de temer que o ladrão os roube, ou o inimigo na guerra os saque. Faz com que os teus bens lhe sejam devolvidos. De facto, ser-te-á devolvido numa medida maior do que aquela que usaste.

Santo Agostinho – “Sermão 357”
Tradução: Isidro Lamelas
Imagem: Sagittarius_13/Bigstock.com
Publicado em 17.03.2022

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura