Editorial Brotéria – O Papa Francisco e os Jesuítas

«Todos! Todos! Todos!» – Da Declaração à prática, pela prática ao pensamento

 Editorial Brotéria

ESPECIAL JMJ

José Frazão Correia sj

14 outubro 2023

«Todos! Todos! Todos!» fica como um espinho de desassossego, de incompletude e de imaginação na carne viva da Igreja e de cada batizado – esperemos que também na carne da nossa sociedade.

«Todos! Todos! Todos!», como um mantra, foi sendo dito e repetido com entusiasmo ao longo da Jornada Mundial da Juventude, em Portugal. O eco ficou a ressoar. Logo no primeiro dia da sua visita, no Mosteiro dos Jerónimos, o Papa Francisco deu o mote. Usou a apalavra «todos» uma trintena de vezes. Aí, diante de membros do clero, de religiosos e de agentes pastorais, quis deixar claro que, «na barca da Igreja, deve haver lugar para todos: todos os batizados são chamados a subir para ela e a lançar as redes, empenhando-se pessoalmente no anúncio do Evangelho». E frisou: «não vos esqueçais desta palavra: todos, todos, todos». Um pouco mais à frente na mesma homilia, evocando o mandato de Jesus aos seus discípulos, repetiu: «“Saiam pelas periferias e tragam todos, todos, todos, todos: sãos, doentes, crianças e adultos, bons e pecadores. Todos”. Que a Igreja não seja uma alfândega para selecionar quem entra e quem não entra. Todos, cada um com a sua vida às costas, com os seus pecados, assim como é diante de Deus, como é diante da vida… Todos. Todos. Não levantemos alfândegas na Igreja. Todos.». Na cerimónia de acolhimento, no Parque Eduardo VII, Francisco retomou o refrão. «Amigos – disse – quero ser claro convosco, que sois alérgicos à falsidade e às palavras vazias: na Igreja há espaço para todos. Para todos. Na Igreja ninguém é de sobra. Nenhum está a mais. Há espaço para todos. Assim como somos. Todos. Jesus di-lo claramente […]. Na Igreja há lugar para todos». E para que a expressão não ficasse só sua, fez repetir «todos, todos, todos», uma e outra vez, até que ficasse aprendida, como lição a reter. «Todos, todos, todos. É esta a Igreja, a Mãe de todos. Há lugar para todos. O Senhor não apontou o dedo, mas abre os braços». Em Fátima, no Santuário, rodeado de pessoas portadores de deficiência, ouviu-se de novo: «A Capelinha onde nos encontramos constitui uma bela imagem de Igreja: acolhedora, sem portas. A Igreja não tem portas, para que todos possam entrar». Também na conversa que teve com os jesuítas portugueses, que reproduzimos neste número da Brotéria, à pergunta que lhe foi feita sobre o lugar efetivo que podem ter na Igreja batizados que se identificam como homossexuais, sobre as atitudes pastorais mais adequadas no seu acompanhamento e sobre o bem que se possa reconhecer em relações que estabeleçam entre si, Francisco respondeu: «Penso que o apelo dirigido a “todos” não tem discussão. Jesus é muito claro: todos. Os convidados não quiseram vir à festa. Por isso ele disse para irmos às encruzilhadas e chamar todos, todos, todos. E para que fique claro, Jesus diz: “são e doentes”, “justos e pecadores”, todos, todos, todos. Por outras palavras, a porta está aberta a todos, todos têm o seu espaço na Igreja. Como é que cada um o vive? Ajudemos as pessoas a viver de forma a poderem ocupar esse lugar com maturidade, e isto aplica-se a todo o tipo de pessoas». Depois, referindo-se, por sua iniciativa, a pessoas transgénero, evocando encontros ocorridos em Roma, durante os quais tomara consciência de como «se sentem rejeitadas» e de como é particularmente dura essa experiência de rejeição, refirmou que «todos são convidados!»

Também na conversa que teve com os jesuítas portugueses, que reproduzimos neste número da Brotéria, à pergunta que lhe foi feita sobre o lugar efetivo que podem ter na Igreja batizados que se identificam como homossexuais, sobre as atitudes pastorais mais adequadas no seu acompanhamento e sobre o bem que se possa reconhecer em relações que estabeleçam entre si, Francisco respondeu: «Penso que o apelo dirigido a “todos” não tem discussão. Jesus é muito claro: todos.

«Todos, todos, todos», soa bem. A expressão é poderosa do ponto de vista comunicativo e contagiante, ainda mais quando repetida em uníssono por multidões de pessoas, na maioria jovens. A exigência, porém, é enorme e tem riscos. Desde logo, porque a hospitalidade implica exposição sem garantias: «hóspede» e «hostil» estão no mesmo campo semântico, mas estão também no mesmo campo existencial e social. O drama das pessoas refugiadas que procuram a Europa, as atuais políticas europeias de acolhimento e o medo alimentado por grupos sociais e forças políticas são um claro testemunho. A exigência é grande para a sociedade, desde logo, porque é sempre precisa mais coragem para acolher do que para excluir. Depois, porque, com a promoção e a tutela da liberdade e da igualdade, não pode deixar de promover e de cuidar da fraternidade. Aquelas sem esta não têm alicerces suficientemente fortes para garantir o que prometem e para resistir às investidas do individualismo e dos muitos interesses de fação. Para a Igreja, essa exigência talvez seja ainda maior. Desde logo, porque, em muitos casos, sobretudo em áreas específicas da realidade humana, lhe faltará hábito, quer em atitudes individuais e em imaginários coletivos, quer em práticas pastorais, quer em pensamento teológico-moral e em leis canónicas. «Todos», com a força acrescida de ser repetido por três vezes, «todos, todos, todos», expande a imaginação e força o universo dos possíveis. Para que não fique declaração bem-intencionada e inconsequente, não pode pactuar com passividade e omissões que, no fundo, a contradigam: “sim, todos, mas este e aquele e aqueloutro, obviamente, que, aqui, não”. Exige, antes, atos concretos de hospitalidade – Elmar Salmann, teólogo beneditino alemão, identifica-a como forma de «fraqueza fecunda»; pede pensamento crítico que a suporte teologicamente e normatividade canónica coerente que a reconheça do ponto de vista público e organizacional. De facto, «todos, todos, todos» implica muito em palavras e em atos e exclui omissões.

«Todos», com a força acrescida de ser repetido por três vezes, «todos, todos, todos», expande a imaginação e força o universo dos possíveis.

Logo na viagem de regresso a Roma, o Papa Francisco foi confrontado com a exigência do discurso que havia repetido e feito repetir. Anita Hirschbeck, da Katholische Nachrichten Agentur, colocou assim a questão: «disse-nos que na Igreja há lugar para “todos, todos, todos”. A Igreja está aberta a todos, mas, ao mesmo tempo, nem todos têm os mesmos direitos e oportunidades, no sentido que, por exemplo, mulheres e homossexuais não podem receber [todos] os Sacramentos», para concluir, com a pergunta direta: «Santo Padre, como explica esta incoerência entre “Igreja aberta” e “Igreja não igual para todos”?» Francisco, que no final agradeceu à jornalista «a coragem de fazer esta pergunta», começou por responder que aquilo que lhe estava a perguntar dizia respeito a «dois pontos de vista diversos: a Igreja está aberta para todos e, depois, há legislações que regulam a vida dentro da Igreja e, quem está dentro, atém-se à legislação». Acrescentou, depois, que «cada um encontra Deus na sua própria estrada, dentro da Igreja […]. Venham todos e, depois cada qual, na oração, em conversa íntima com Deus, no diálogo pastoral com os agentes de pastoral, procura o modo de avançar […]. A Igreja é mãe, acolhe todos, e cada um percorre a sua estrada dentro da Igreja, sem fazer publicidade». A pergunta da jornalista alemã e a resposta dada pelo Papa mostram bem como a Igreja não consegue evitar a acusação de contradição entre a declaração de querer acolher e incluir a todos, sem exceções, e aquilo que, aos olhos de muitos, são formas reais de exclusão. A declaração de abertura a todos também não consegue fugir à desconfiança irónica de que, na Igreja, não haja efetiva igualdade entre todos, desde logo entre ministros ordenados e leigos, entre homens e mulheres.

A declaração de abertura a todos também não consegue fugir à desconfiança irónica de que, na Igreja, não haja efetiva igualdade entre todos, desde logo entre ministros ordenados e leigos, entre homens e mulheres.

Comentando a presença do Papa entre nós e referindo-se explicitamente à pergunta de Anita Hirschbeck, pareceu-me particularmente acertada a análise que Miguel Poiares Maduro publicou na sua coluna no jornal Expresso, no dia 11 de agosto passado, com o título “Moral, mas não moralista”. Afirma não ver contradição nas palavras no Papa, mas, sim, o desenho de «um método», o estabelecimento de «um desafio». «O Papa – diz o colunista – está consciente das tensões entre as afirmações universais, inerentes às suas alegorias e frases, e a realidade social e da igreja». Vê nela a intenção de «promover um diálogo entre tensões», sem ter a pretensão de «revolucionar tudo». Na resposta dada à jornalista alemã, ao identificar questões disciplinares e não dogmáticas, o Papa estará a assumir que «a legislação muda de acordo com os tempos», deixando, por isso, «a porta aberta à mudança». Segundo Poiares Maduro, significativo é já, por exemplo, o facto de, pela primeira vez, haver 20% de mulheres a participar no próximo Sínodo e de terem direito de voto. Ainda segundo o colunista, a resposta do Papa entende frisar «que o importante é a igreja estar aberta a todas as pessoas sem lhes impor condições nem um caminho, mas sim permitindo-lhe encontrar o seu próprio caminho dentro da igreja, por si mesmos e em diálogo pastoral». «Para alguns é pouco», conclui. «Para outros é demais». Fica, porém, aberto o caminho mais necessário e promissor da reflexão e do diálogo moral como método, tanto na Igreja como na sociedade. No que diz respeito à Igreja, é desta forma que o Papa entende reconciliar a sua preservação «como um espaço profundamente moral, com a necessidade da sua adequação temporal e social», para que continue a «ser moralmente relevante, justa e eficaz».

«O Papa – diz o colunista – está consciente das tensões entre as afirmações universais, inerentes às suas alegorias e frases, e a realidade social e da igreja». Vê nela a intenção de «promover um diálogo entre tensões», sem ter a pretensão de «revolucionar tudo».

Partilho o essencial desta análise, feita a partir de um ponto de observação exterior à Igreja, o que é sempre importante para a própria Igreja. Podemos refazê-la a um dos princípios enunciados pelo Papa Francisco, logo em 2013, no início do seu pontificado, no seu texto programático Evangelii gaudium (EG): «a realidade é mais importante do que a ideia»; «a realidade simplesmente é, a ideia elabora-se» (vejam-se os nn. 231-232). A realidade apresenta-se e impõe-se como é. A nós, cabe-nos elaborá-la, aplicar sobre ela a inteligência. As elaborações concetuais que possamos e que devamos elaborar e as categorias com que o possamos fazer – a realidade precisa de ser iluminada pelo raciocínio e pela inteligência evangélica – não visam substituir a realidade, definindo princípios abstratos, declinando-os de forma simplesmente dedutiva e corrigindo a realidade se ela não corresponder ao princípio. Procurarão, sim, colhê-la, compreendê-la e dirigi-la, fazendo-a progredir num processo de crescimento. Neste quadro, o Papa Francisco, ao repetir e ao fazer repetir «todos, todos, todos», começa por reavivar algo que está no coração do Evangelho: a hospitalidade sem exceções (curiosamente, trata-se de uma sensibilidade e um modo de ser muito caros à cultura juvenil atual, particularmente sensível à igualdade, ao acolhimento de todos e de todas as diferenças, à inclusão). Como o Papa afirma, também em EG, n. 35, se a Igreja assume como missão existir «em saída» para levar a todos o Evangelho de Jesus e implicar-se na construção do Reino de Deus, não deve estar «obcecada pela transmissão desarticulada de uma imensidade de doutrinas», que tenta «impor à força de insistir». Pelo contrário, o anúncio deve concentrar-se «no essencial, no que é mais belo, mais importante, mais atraente e, ao mesmo tempo, mais necessário». Desse modo, «a mensagem acaba simplificada, sem com isso perder profundidade e verdade» e torna-se «mais convincente e radiante». Hospitalidade diz e realiza este mais belo, mais importante, mais atraente e mais necessário do Evangelho. Em segundo lugar, com tal expressão, Francisco aponta uma prática, um modo de proceder: comecemos por acolher a todos, de facto e sem “mas”, e, a partir desse acolhimento efetivo, impliquemo-nos com retidão numa reflexão moral que não seja moralista; procuremos em conjunto, de forma sinodal, a verdade, sem ceder à ideologia ou ao fanatismo, e impliquemo-nos na realização da justiça, sem praticar, à partida, qualquer forma de exclusão e de descarte. É quase certo, importa reconhecê-lo, que o empenho em compreender a realidade e o confronto com outros da compreensão que se alcance dela irá esbarrar na pluralidade de interpretações e na consequente diversidade de aplicações práticas. O real experimenta-se sempre de modo parcial e, por isso, tendencialmente fragmentário, conflitual, muitas vezes. Tendo isso presente, importa cultivar o sentido da unidade profunda da realidade (este é outro dos princípios enunciados em EG, nos nn. 226-230: «a unidade prevalece sobre o conflito»). A gestão de tais conflitos hermenêuticos deverá, por isso, ter presente o critério espiritual de que o que gera divisão, que não é sinónimo de existência de diferenças de entendimento ou de necessidade de intenso debate, não vem do Espírito Santo. Em segundo lugar, os tempos longos de decantação e de maturação devem ser suportados e guiados pacientemente pela caridade, que deve atender com especial cuidado aos desfavorecidos e aos que não têm voz.

Neste quadro, o Papa Francisco, ao repetir e ao fazer repetir «todos, todos, todos», começa por reavivar algo que está no coração do Evangelho: a hospitalidade sem exceções (curiosamente, trata-se de uma sensibilidade e um modo de ser muito caros à cultura juvenil atual, particularmente sensível à igualdade, ao acolhimento de todos e de todas as diferenças, à inclusão).

Voltando ao acolhimento de todos e à igualdade entre todos, na Igreja de hoje, poderemos ainda não ver claro, por exemplo, como celebrar a Eucaristia como lugar de efetivo acolhimento e de público reconhecimento de «todos, todos, todos». No campo específico e complexo da sexualidade, poder-se-á entender que os documentos magisteriais estão longe de assumir e de estabelecer um diálogo aberto de dever e haver com fenómenos novos, com novas experiências do humano e outras fontes de conhecimento, indo mais além de conceções demasiado essencialistas, abstratas e estáticas do humano e de princípios rígidos, simplesmente dedutivos. No que diz respeito à relação que se cultiva com a tradição e com os respetivos condicionalismos históricos e culturais, podemos ainda viver enredados numa certa confusão, tomando como antigas invenções que são muito recentes, tendo em conta a já longa história da Igreja, e considerando novidades perigosas coisas que, na realidade, são formas tradicionais de sabedoria antiga, para parafrasear o teólogo italiano Andrea Grillo. Vale para a compreensão do poder na Igreja e a vocação ao ministério ordenado, como para compreender o poder sacerdotal ou hierarquizações como a de género – sobre estes temas, vejam-se os exemplos muitos elucidativos recolhidos da tradição pelo dominicano francês Hervé Legrand, em Uma Igreja transformada pelo povo. Tudo isto poderá ser verdade e deixar no ar a suspeita da falta de coerência na Igreja entre a declaração de uma abertura e acolhimento de todos e a realidade efetiva de que não acolhe nem cultiva a igualdade entre todos: nem na pastoral, nem na liturgia, nem na teologia, nem na lei canónica. Porém, expondo-se à prática efetiva da hospitalidade e assumindo a abertura e os riscos que lhe são inerentes, o pensamento também haverá de se deslocar e de chegar a gerar novas categorias, a promover novas articulações teológicas, a conduzir a outras disposições disciplinares. O acompanhamento pastoral de pessoas homossexuais, por exemplo, o seu acolhimento efetivo nas comunidades e a sua participação nas práticas litúrgicas, precisamente porque gera encontros reais e proximidade afetiva a pessoas com rosto, com nome e biografia, fará inevitavelmente com que o assunto deixe de ser tratado como se de meras abstrações ou de simples modas culturais se tratasse. Certamente que a saída da idealização e o contacto com pessoas concretas e com relações reais, sem renunciar ao dever de juízo crítico que decorre do Evangelho, levará a reconhecer bem e a assumir o dever de o salvaguardar. Por uma questão de coerência, para que não se faça uma coisa e se pense uma outra, a prática da hospitalidade irá necessariamente deslocando o pensamento e a disciplina. O envolvimento crescente de mulheres em estruturas eclesiais e a assimilação da inexistência de qualquer hierarquia entre sexos ou de qualquer impedimento natural para que as mulheres sejam sujeito de autoridade pública, em algum momento irá deslocar o pensamento teológico no que diz respeito ao ministério ordenado. Se, na Igreja, estamos habituados a pensar que dizer e explicar é suficiente para alterar a realidade, o Papa Francisco aponta para o contacto com a realidade, tal como é, com a sua riqueza, complexidade e ambiguidades, apelando a que se comece pela prática, não pela ideia. Se pensarmos na encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Fratelli tutti, é também este o método que emprega: tomando como matéria e apelo ético o estado de coisas atual, mais do que teorizar, apela a que se pratique. A abordagem que faz da fraternidade é seguramente mais existencial e concreta do que abstrata e idealista. Como forma de realização do Evangelho e da humanidade comum que partilhamos, esse contacto tangível e, necessariamente, dinâmico e surpreendente com a realidade e com as pessoas, sobretudo com as que sofrem algum tipo de indigência, de marginalidade ou de exclusão, em algum momento gerará outras elaborações ao nível do pensamento e conduzirá a mudanças disciplinares consequentes.

Se pensarmos na encíclica sobre a fraternidade e a amizade social, Fratelli tutti, é também este o método que emprega: tomando como matéria e apelo ético o estado de coisas atual, mais do que teorizar, apela a que se pratique. A abordagem que faz da fraternidade é seguramente mais existencial e concreta do que abstrata e idealista.

Para inspirar e orientar tal processo prático, que deverá ser também teológico e disciplinar, tão exigente quanto entusiasmante para a Igreja de hoje, o Papa voltou a recordar, em Lisboa, três adjetivos. Fê-lo, de forma explícita, no encontro com jovens universitários, na Universidade Católica. Inquietude ou desassossego, incompletude, imaginação: «não nos alarmemos se nos encontramos intimamente sedentos, inquietos, incompletos, desejosos de sentido e de futuro, com saudade de futuro». Em 2017, num discurso aos membros da revista italiana La Civiltà Cattolica, enunciou e comentou estes mesmos qualificativos, para que fossem cultivados de modo a enformarem tanto a vida de cada dia como a pastoral da Igreja ou o pensamento teológico. Começou pelo desassossego. Sem ele «somos estéreis», disse então aos jesuítas dessa comunidade dedicada ao estudo e à escrita. Para habitar «pontes e fronteiras», há que ter «uma mente e um coração desassossegados». Pode acontecer que se confunda erradamente «a segurança da doutrina com a suspeita pela busca», mas «os valores e as tradições cristãs não são peças raras para fechar nos cofres de um museu». É a «certeza da fé» que deve ser o «motor da busca». A propósito de incompletude, recordou como «Deus é o Deus semper maior, o Deus que nos surpreende sempre». Por isso, cabe cultivar «um pensamento incompleto, ou seja, aberto e não fechado nem rígido». A fé verdadeira abre o pensamento. «Fazei-vos guiar pelo espírito profético do Evangelho para ter uma visão original, vital, dinâmica, não óbvia», exortou. «E isto sobretudo hoje num mundo tão complexo e cheio de desafios no qual parecem triunfar a “cultura do naufrágio” — alimentada de messianismo profano, de mediocridade relativista, de suspeita e rigidez — e a “cultura da caixa de lixo”, onde se deita fora qualquer coisa que não funciona como se pretende ou que se considera inútil». A terceira palavra, a imaginação. «O pensamento rígido não é divino, porque Jesus assumiu a nossa carne, que não é rígida a não ser no momento da morte […]. Quem tem imaginação não se endurece, tem o sentido do humorismo, goza sempre da doçura da misericórdia e da liberdade interior. É capaz de abrir visões amplas até em espaços restritos».

Para inspirar e orientar tal processo prático, que deverá ser também teológico e disciplinar, tão exigente quanto entusiasmante para a Igreja de hoje, o Papa voltou a recordar, em Lisboa, três adjetivos. Fê-lo, de forma explícita, no encontro com jovens universitários, na Universidade Católica. Inquietude ou desassossego, incompletude, imaginação: «não nos alarmemos se nos encontramos intimamente sedentos, inquietos, incompletos, desejosos de sentido e de futuro, com saudade de futuro».

«Todos! Todos! Todos!» fica como um espinho de desassossego, de incompletude e de imaginação na carne viva da Igreja e de cada batizado – esperemos que também na carne da nossa sociedade. Terá a sua fecundidade própria, contrariando a tendência e a tentação de musealizar a tradição no passado e de fossilizar o humano em essências abstratas e atemporais, de cair na autorreferencialidade e na autossuficiência, de renunciar ao sonho de um mundo diferente e de uma Igreja renovada, à esperança no futuro. A hospitalidade atua a identidade cristã, ou seja, um modo particular de ser, de fazer e de pensar, à imitação de Jesus de Nazaré que vive descentrado para encontrar e para se deixar encontrar, para dar e para aprender com quem quer que encontre ou seja encontrado no caminho – trata-se de um «estilo» entendido como «modo distintivo de habitar o mundo», segundo o pensamento do teólogo Christoph Theobald. É nos encontros de Jesus, tantas vezes inesperados e surpreendentes, com pessoas concretas e com vidas reais, que a fé se acende, antes de mais, como confiança elementar na vida. A graça-que-salva-a-vida acontece entre pessoas. É a santidade comunicativa de Jesus, a sua hospitalidade aberta e os encontros sem descriminações ou preconceitos, sem segundos fins ou manipulações que gera que acendem a capacidade de ver, de ouvir e de tocar o invisível, o inaudito, o inalcançável de Deus no que é visto, no que é escutado, no que é tocado.

É nos encontros de Jesus, tantas vezes inesperados e surpreendentes, com pessoas concretas e com vidas reais, que a fé se acende, antes de mais, como confiança elementar na vida. A graça-que-salva-a-vida acontece entre pessoas.

A relação que se cultiva a partir de Deus entre todos tidos como irmãs e irmãos, mesmo quando não são como nós (o estrangeiro) e chegam a ser contra nós (o inimigo), e com o resto da criação, é princípio e fundamento. Tanto o início do livro do Génesis como o incipit do Evangelho de S. João nos confirmam que no princípio está o Verbo, a Palavra, ou seja, a Relação. Se está na origem, estará sempre, e vem ao nosso encontro como plenitude a partir do destino que nos espera. O livro do Apocalipse imagina-o como refeição à mesa e cidade bem edificada.