Chamados pelo nome – D. António Couto

Nota: reflexão feita via zoom, em 20.12.2023, para o mundo da pastoral juvenil em Portugal.

-A questão do Ocidente é a questão do outro: do outro enquanto tal, não do outro, pura parte do mundo.

-A Bíblia é a prioridade do outro sobre o «eu», sobre mim.

-No mundo hodierno reina o egoísmo alérgico, o individualismo e a egolatria. Don Juan morreu. O Tempo hoje é o de Narciso e Sísifo. Em cena está a geração mim.

-O consumismo impõe-se por toda a parte. Não o mero consumismo do shopping, mas o turbo-consumismo, que faz das pessoas também bens de consumo: compra e venda de relações humanas, intimidades, transformando tudo em relações rápidas e de bolso que buscam apenas a satisfação imediata. Nenhum compromisso em pôr no mundo uma nova geração.

  1. A tradição cultural do Ocidente assenta cada vez mais na absoluta primazia e autonomia do sujeito, do «eu», como única fonte de liberdade, como único produtor de sentido, como se o sentido fosse o quintal à volta da sua casa, a sua Sinngebung, reduzindo toda a espécie de heteronomia, isto é, tudo o que possa vir de fora do «eu» (Deus, transcendência, tradição, religião, culturas, família, escola, instituições) a pura fonte de escravidão e alienação. Um único pauzinho atrapalha este mecanismo: é o facto de este «eu» inchado e hipertrófico ter umbigo, e não ter podido escolher livremente a sua existência. Aqui não há autodeterminação e liberdade de escolha que lhe valha. Por enquanto, só para o género e thánatos, pelas mãos da eutanásia.

  1. Neste paradigma fechado sobre o «eu», do ego cogito, que julga que se põe no ser mediante o seu próprio pensamento, livre é o indivíduo que escuta exclusivamente a voz da própria razão, dando-se a sua própria lei moral, e submetendo-se a ela. Por ser ditada pela sua própria razão, a obediência à lei moral não contradiz a sacrossanta liberdade do «eu», enquanto que a obediência a uma vontade alheia, heterónoma, manteria o indivíduo num estado de menoridade, afetado na sua autonomia, privado de liberdade, na condição de escravo e de alienado.

  1. Neste quintal à volta do seu casulo, é o «eu» que está sempre no princípio dos seus atos, das suas escolhas, dos seus pensamentos, palavras e atos, e entende-se já que ser chamado por outro verdadeiramente tal não tem lugar nem pode ter lugar, dado que o «eu» perderia o seu primeiro lugar de excelência, e teria de ocupar o lugar subalterno de quem responde. De resto, nada é concebível fora deste «eu», que tudo engloba, senhor absoluto de tudo e de todos.

  1. Na verdade, se este «eu» abrir uma brecha para que o outro enquanto tal (que não é o outro, pura parte do mundo) possa entrar e chamar, precedendo o «eu», então abre-se um caminho novo, o da «difícil liberdade» ou «liberdade libertada» (Difficile liberté, de Emmanuel Levinas). E, para entrar no caminho desta «difícil liberdade» ou «liberdade libertada», é requerido que o «eu» aceda à sua condição de criatura, isto é, que renuncie a postar-se no princípio dos seus pensamentos, das suas palavras e dos seus atos, da sua absoluta liberdade de escolha, da sua autonomia inflamada e hipertrófica, sem nenhuma contaminação de heteronomia, e passe a responder a uma Palavra que o precede, institui e chama. Entenda-se: que o poria a responder, despertando a sua responsabilidade. Entenda-se mais e melhor: neste domínio, verdadeiramente a responsabilidadeprecede e institui a liberdade! O bom diaprecede o cogito.
  2. Fica aqui a descoberto a razão pela qual o veio fundamental do pensamento ocidental sempre rejeitou a ideia de Criação. Um pensamento que defende a autonomia radical do indivíduo sem a mínima contaminação de heteronomia não pode aceitar no seu seio a ideia de Criação, que supõe e requer a dependência das criaturas em relação ao Criador (Deus). Claro que a correta compreensão da Criação coloca as criaturas na dependência boa em relação ao Criador, bom e providente, que ama e chama, e partilha connosco o seu poder omnipotente, a sua ciência omnisciente, a sua presença omnipresente, a sua vida vivente. De onde: a Criação de Deus não supõe nem requer a subserviência e menoridade da criatura humana. Antes reclama dela uma atitude de suprema liberdade. Por isso, partilha com ela o seu poder omnipotente, a sua ciência omnisciente, a sua presença omnipresente, a sua vida vivente!

  1. É neste veio de sentido novo que se situa a inteira Escritura, que dá sempre a Deus o primeiro lugar. E, claro, só neste chão ou neste céu é possível falar de ser chamadoou de vocação! E também só desde aqui, desde esta encruzilhada feita de muito eu e hipertrofia do eue da completa ausência de Deus e da Escritura Santa, é possível compreender a atual míngua de vocações, isto é, de respondedores, como hoje se vê sob este céu fechado, em que o «eu» esconde e fecha Deus à chave! E, para cúmulo, ainda o responsabiliza por todo o mal que existe no mundo!

  1. E aqui não podemos fugir à Bíblia, que é o Livro que verdadeiramente fala de chamamento ou vocação, e resposta. Ser chamado significa ser apeado do 1.º lugar, e ser colocado no lugar de respondedor. Ser chamado pelo nome significa ainda que ninguém pode responder em vez de ti. A resposta que te é pedida cai apenas sobre ti, incumbe-te apenas a ti. Não é negociável nem substituível nem delegável: ninguém pode responder em vez de ti, que és chamado pelo nome!

  1. A temática é recorrente em Isaías. Vale a pena reter algumas frases-chave: «Fui Eu, o Senhor, que te chamei» (Isaías 42,6). «Chamei-te pelo teu nome: tu és meu!» (Isaías 43,1). «Desde o seio materno o Senhor me chamou, desde o ventre de minha mãe pronunciou o meu nome» (Isaías 49,1b). E finalmente, num belo jogo relacional novo: «Vê! Nas palmas das minhas mãos te tatuei» (Is 49,16).

  1. Os exemplos são a perder de vista, deixando marca nas principais figuras que atravessam a Escritura Santa. Retenhamos apenas a figura de Moisés, e vejamos a extraordinária forma como é chamado e sabe responder:

«3,1Moisés estava a apascentar o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã. Conduziu o rebanho para além do deserto, e chegou à montanha de Deus, ao Horeb. 2O anjo do SENHOR apareceu-lhe numa chama de fogo, do meio da sarça. Ele olhou e viu, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não era devorada. 3Moisés disse: “Vou DESVIAR-ME DO CAMINHO (sûr) para ver esta visão grande: POR QUE RAZÃO não arde a sarça?” 4O SENHOR viu que ele se DESVIAVA DO CAMINHO (sûr) para ver; e Deus chamou-o do meio da sarça, e disse: “Moisés! Moisés!” Ele disse: “Eis-me aqui!”» (Êxodo 3,1-4).

A história de Moisés é uma história como as outras, e não é uma história como as outras. Conduzindo o rebanho, VIU uma VISÃO grande, e, com o intuito de VER mais e melhor, saiu do seu caminho, deixou o seu rebanho. Chama-se a isto uma transgressão, que nós dizemos que é um comportamento próprio das crianças. Com uns grandes olhos desejosos de VER e habitado por um grande PORQUÊ, Moisés aparece, de facto, retratado como uma criança à medida do Evangelho (Marcos 10,13-16). Ouviu uma voz que o chamava, e respondeu de pronto: «Eis-me aqui!», passando de nominativo para acusativo. A história de Moisés não começa quando nasce, não descreve os seus projetos, não elenca os seus sucessos. A história de Moisés é a história de uma VISÃO que o provoca e da PALAVRA de Deus que o convoca, e que ele ousa VER e a que ousa RESPONDER. Tinha então 80 anos de idade (cf. Êxodo 7,7; Atos dos Apóstolos 7,30).

  1. O Deus bíblico manifesta-se sempre atento e compassivo para com o seu povo e comprometido na libertação de todas as escravidões. É quanto se pode ver neste texto paradigmático do Livro do Êxodo:

«3,7O SENHOR disse: “Eu bem VI a opressão do meu povo que está no Egito, e OUVI o seu grito diante dos seus opressores; CONHEÇO, na verdade, os seus sofrimentos. 8DESCI a fim de o libertar da mão dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel…” 10E agora VAI; Eu te envio ao Faraó, e FAZ SAIR do Egito o meu povo, os filhos de Israel» (Êxodo 3,7-8.10).

O Deus bíblico revela aqui a sua identidade, não afirmando-se e defendendo-se à volta do seu «eu», do seu «céu», resguardando-se dentro das portas douradas da sua eternidade, mas DESCENDO até à alteridade do outro, de quem «VÊ a opressão», «OUVE o grito», «CONHECE os sofrimentos», tem em vista uma solução ou resposta. É um Deus que sai de si, para nos servir de modelo e libertar a nossa liberdade.

Face ao grito de Israel, qual será a resposta de Deus? A resposta de Deus não será alguma coisa, porque Deus nunca responde alguma coisa. Deus responde sempre ALGUÉM! Será MOISÉS. Quando o seu povo grita, Deus responde sempre da mesma maneira. Responde com MOISÉS, com os PROFETAS, e, finalmente, com JESUS CRISTO.

  1. Mas também hoje, quando o seu povo grita, Deus continua a responder da mesma maneira, chamando os discípulos de Jesus Cristo e toda a sua Igreja para socorrer e libertar os seus filhos. É neste «ponto de vida» que se situam também os cristãos que devem sempre, como Moisés, saber desviar-se do seu caminho, para VER, OUVIR e RESPONDER melhor à Palavra que os convoca e os provoca. Os cristãos e os evangelizadores entraram num desafio assim há muitos anos. Muitos deram a vida por se terem desviado do caminho para VER, OUVIR e RESPONDER melhor. Que o Senhor da messe nos mantenha atentos, compassivos, comovidos, comprometidos e fiéis. Talvez possas ouvir hoje também o teu nome!

 

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