O Papa com os bispos portugueses
A retórica inconsequente dos bispos católicos – uma leitura
António Marujo | 27 junho 2024 | 7Margens
Que encruzilhadas e horizontes se colocam hoje ao catolicismo português? Podemos olhar, por exemplo, para um documento da Igreja Católica em Portugal que refere a “complexa realidade social portuguesa”, a “inovação tecnológica, a internacionalização da economia, a integração europeia”, as “novas realidades culturais”, processos de mudança que “geram tensões” e agravam “desigualdades e injustiças”, com “efeitos graves em famílias, jovens, vários sectores profissionais, idosos e camadas sociais mais desfavorecidas. Finalmente, também “um estilo de vida marcado pelo hedonismo e pelo individualismo e um modelo económico e social excessivamente competitivo, reprodutor das desigualdades e que tende a menosprezar os valores da justiça e da solidariedade”.
Perante este diagnóstico, o que se propõem fazer os crentes? Vincar a importância da “dimensão comunitária”, pôr em prática as ideias do II Concílio do Vaticano (1962-65), encontrar a forma de presença dos cristãos nas realidades da política e da vida social.
Podemos recuar 36 anos, a Junho de 1988? Entre os dias 2 e 5, realizou-se em Fátima o Congresso Nacional de Leigos, que culminava um processo de três anos de debates, assembleias e congressos diocesanos. As citações são do texto de conclusão do Congresso, que procurava sintetizar os “sinais dos tempos no mundo” e “sinais dos tempos na Igreja”. O uso desses títulos são, porventura, a única expressão que dão ao texto um carácter datado: a expressão tinha sido recuperada pelo Papa João XXIII (1958-1963) e pelo Concílio e pretendia dizer que os católicos deveriam estar atentos à realidade e, em função dela, agir com propostas positivas de evangelização e humanização da vida e do mundo. Hoje, a expressão caiu em desuso ou, quando é utilizada, é de forma mecânica e nada convicta.
Vale a pena recuperar ainda algumas sugestões do texto, que pode ser consultado no livro com as actas do Congresso: nele se propõe um “plano global de formação permanente para todos os cristãos”; o estímulo ao “compromisso cristão” em todos os âmbitos da vida, “criando ou valorizando espaços eclesiais de diálogo e reflexão sobre as grandes questões que se põem na sociedade em que vivemos”; e também a “necessidade de cultivar uma espiritualidade ligada às realidades e situações do dia-a-dia, eliminando a separação entre a fé e a vida”.
Uma tese académica
Trinta e seis anos passaram. Mas estas longas citações estão plenas de actualidade, mas ficaram no papel. E servem para reflectir sobre o momento e várias incapacidades da Igreja Católica em Portugal – nomeadamente, das suas lideranças.
Há, desde há muito, uma retórica inconsequente do episcopado português, que não tem sido capaz de criar os dinamismos que os próprios bispos, ou instâncias por eles impulsionadas, sugerem ou propõem em múltiplas iniciativas.
O exemplo do Congresso de Leigos poderia ser desdobrado pelos congressos ou sínodos diocesanos, as ressuscitadas semanas sociais da década de 1990, o congresso da família de 2001, a dinâmica sobre “Repensar juntos a Pastoral da Igreja em Portugal” (lançada em 2010), e muitas, muitas outras iniciativas, decisões, propostas, planos. [Falando em planos: são normalmente muito pobres os programas diocesanos de pastoral, que se limitam quase só a uma listagem de iniciativas, com muito pouca ou nenhuma reflexão prévia sobre a realidade, os objectivos que se pretendem atingir e as formas de envolvimento de agentes de pastoral nos vários momentos da reflexão e da execução.]
Jorge Pires Ferreira, director do Correio do Vouga, jornal da diocese de Aveiro (e um dos raros leigos a dirigir um meio de comunicação católico) resumia esta situação há dias na Ecclesia:
“E vem aí mais um sínodo. E um jubileu. Depois de uma ‘visita ad limina apostolorum’. E de uma JMJ. E de vários sínodos. E de um Ano da Misericórdia. E o Ano da Fé. O Paulino. O da Eucaristia. O Ano Sacerdotal… O que ficou de ‘Promover a Renovação da Pastoral da Igreja em Portugal’, na sequência da ‘visita ad limina’ de 2007 (e depois ainda houve a de 2015)?
Mais, algumas propostas, com os seus ritmos, ritos e indulgências, parecem dirigir-se a um mundo que já não existe. Ou pelo menos não existe na nossa Europa. O mundo da cristandade. Mas ainda se vive nele por simulacro, por convenção, por tradição, por arrastamento. Por tudo menos por convicção.”
Seria um interessante tema para uma tese académica pegar em todas essas iniciativas que a dada altura mobilizaram a Igreja, muitas delas com documentos de conclusões e propostas, e ver o que se concretizou. A leitura do documento do Congresso dos Leigos não abre espaço ao optimismo.
Uma lista de enunciados
O exemplo mais recente destas inconsequências foi a recente visita ad limina, o encontro dos bispos portugueses com os responsáveis da Cúria Romana e com o Papa Francisco, no final de Maio, a que me referi nesta mesma coluna À Margem que na altura publiquei no 7MARGENS.
Durante a semana romana do episcopado, tivemos declarações sucessivas e enunciados genéricos sobre o que a Igreja deve fazer. Declarações e enunciados que repetem outras declarações e enunciados feitos nas últimas décadas, sem que se veja qualquer sequência no que se proclama.
Alguns exemplos, retirados do acompanhamento feito pela Ecclesia: o bispo do Porto, Manuel Linda afirmou que a pastoral do episcopado “tem de ser cada vez mais unitária”, quando se sabe que uma pecha da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) há décadas é precisamente a falta de unidade (não falo de unanimismo ou de falsa unidade, que são doentios). O que se passou com as decisões na sequência do Sínodo sobre a Família (2014-15), ou com as profundas divergências sobre o modo de enfrentar a tragédia dos abusos sexuais são os casos mais recentes.
O vice-presidente da CEP e bispo de Coimbra, Virgílio Antunes, disse que “o espírito e a verdadeira renovação nascem das ideias, nascem da reflexão, nascem da teologia, nascem da doutrina”, precisamente alguns dos factores em falta no catolicismo português. E referiu ainda que o tema da sinodalidade está na “centralidade da vida da Igreja”, também em Portugal, quando é notório que a maior parte do episcopado cumpre apenas os mínimos para, sem qualquer entusiasmo, acompanhar o processo, como ainda há dias aqui recordava Manuel Pinto.
Noutro âmbito, o presidente da Comissão Episcopal do Laicado e Família e bispo de Bragança, Nuno Almeida, defendeu ser “necessário” acelerar o caminho de dar “um maior protagonismo aos leigos na nossa Igreja”, outra conversa recorrente há pelo menos quatro ou cinco décadas. Onde está o “plano de formação permanente para todos” ou o estímulo ao “compromisso cristão” e à reflexão sobre as grandes questões da sociedade pedidos em 1988? Onde está a espiritualidade que ligue a fé e a vida? Mais protagonismo? Porque não começam os bispos por colocar leigos a dirigir instituições sociais, a tratar das contas das dioceses e das paróquias, a dirigir meios de comunicação católicos? Pelo contrário: a Rádio Renascença, pela terceira vez consecutiva, tem um padre como presidente do conselho de gerência; e muitas vezes os bispos (ou alguns párocos) chamam a si decisões, por vezes controversas e mal explicadas de gestão, compra ou venda de propriedades.
Liturgia, jovens, comunicação e bispos
O presidente da Comissão Episcopal de Liturgia e Espiritualidade e arcebispo de Braga, José Cordeiro, referiu também a sua satisfação com o “bom caminho” quanto ao trabalho de “reforma litúrgica”. Quando vemos liturgias cada vez mais frias, com cada vez menos jovens, menos participadas e rotineiras em tantos sítios, só se pode falar do com caminho da reforma dos livros litúrgicos. Isto apesar do recente Congresso Eucarístico Nacional, que pouco mobilizou as comunidades na base, ou apesar da Jornada Mundial da Juventude do ano passado, que não traduziu qualquer dinamismo de formação bíblica ou catequética dos jovens católicos que nela participaram, mantendo a adesão à fé apenas no nível da experiência emotiva – exactamente o que mais depressa se perde. Aliás, quase um ano depois, alguém ainda se recorda da JMJ para lá da bela experiência que ela constituiu? O plano de pastoral juvenil que os bispos prometiam para depois da Jornada (e que deveria ter sido lançado antes) está ainda à espera de ver a luz do dia. Em Roma, a CEP também prometia “protagonismo” aos jovens. Vamos colocar jovens a dirigir a pastoral juvenil (isso acontece em poucas dioceses)? E a organizar auscultações sobre o que deveria ser a Igreja na perspectiva dos mais novos? Talvez alguma mudança acontecesse.
O presidente da Comissão Episcopal da Cultura, Bens Culturais e Comunicações Sociais e bispo do Funchal (que nesta sexta-feira deverá ser nomeado para a diocese da Guarda) afirmou ainda que é preciso “mudar” a forma de a Igreja comunicar e antecipar respostas antes de os jornalistas fazerem perguntas. Conhecendo o que se passa há mais de 30 anos; sabendo que houve tentativas de mudança apenas quando os bispos Januário Ferreira e Carlos Azevedo foram porta-vozes da CEP; e sabendo que vários bispos não gostam de jornalistas e os olham com profunda desconfiança, percebe-se que esta é mais uma declaração inconsequente. Mas oxalá me engane, a partir de agora.
Uma última referência – o texto já vai longo, mas a lista poderia ser maior – para as nomeações de bispos, que o presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima, José Ornelas, sublinhou ser necessário que “seja realmente uma consulta ao Povo de Deus”.
As nomeações de bispos nos últimos anos em Portugal (mesmo se surgiram dois ou três nomes que auguram boas perspectivas) foram tudo menos resultado de participação e respeito pelas propostas e sugestões do clero local – muito menos das comunidades e do povo de Deus. A nomeação do novo bispo da Guarda, que deverá acontecer esta sexta-feira, 28, é apenas o último caso de uma longa lista que traduz a absoluta ausência de participação dos católicos, incluindo dos padres, que se sentem postos de lado.
O que faz falta
Significam estas referências e reflexões que é tudo mau na Igreja Católica em Portugal? Não, de todo. Esta leitura pretende chamar a atenção para um problema grave e crónico, e não generalizar, porque há muitas e boas excepções a tudo isto. Há imensas pessoas generosas e verdadeiramente comprometidas com a sua fé e com o autêntico serviço ao bem comum. Nem estão em causa, sequer, as pessoas concretas dos bispos citados, que em alguns casos têm manifestado uma preocupação sincera com o devir da comunidade dos crentes (e com os quais mantenho, também em alguns casos, uma relação cordial e de respeito mútuo).
Está em causa, sim, o que a CEP vem manifestando há muito: falta de horizonte pastoral, de ousadia, de dinamismo, de criatividade, de abertura à reflexão plural e não apenas às mesmas vozes de sempre, ausência de uma estratégia pensada para os problemas que a sociedade vive. Há católicos empenhados em questões sociais como os refugiados e as migrações, mas onde estão eles em outros temas como o clima ou a não-violência e a construção da paz? Onde estão eles nos sindicatos (sabendo que houve uma forte corrente católica na fundação da CGTP)? E onde estão os crentes nos partidos, quando para muitos membros da Igreja as opções de voto se reduzem hoje ao PSD-CDS, Iniciativa Liberal e Chega? E quando quase não se veem católicos que como tal se assumam publicamente – e, se são de esquerda, são quase sempre ostracizados e mal vistos? Enfim, onde está a formação para a doutrina social da Igreja, desaparecidas que estão pessoas como Acácio Catarino, Adriano Moreira, Alfredo Bruto da Costa, José Dias da Silva, Manuela Silva, Maria de Lourdes Pintasilgo e outras, que a reflectiram e promoveram?
Sabemos que os bispos (ainda) são os principais responsáveis pelas decisões, dinamismos e iniciativas lançados na Igreja. Sabemos também que há uma reduzida capacidade de mobilização das pessoas em Portugal, na Igreja e não só. Mas há uma tremenda incapacidade não só de ser consequente com os princípios proclamados como de chamar pessoas (mesmo pessoas de fora) para exercitar a criatividade e criar dinamismos. O Sínodo Diocesano de Lisboa (2014-2016) tinha como lema “o sonho missionário de chegar a todos”. Mas será que enunciados como esse são mesmo assumidos? O que se faz de criativo para, de facto, chegar a todos? A todas as pessoas, muitas delas baptizadas, que já não se consideram parte da Igreja Católica? O exemplo serve para dizer que o círculo não se alarga e não há capacidade de renovar linguagens e métodos.
Há perto de quatro anos, ouvi uma homilia no dia da festa litúrgica de Santo Agostinho. O padre perdeu-se na enunciação de generalidades sobre a fé do bispo de Hipona, numa linguagem oca para quem o ouvia. Nunca foi capaz de dizer a quem o escutava que lessem as Confissões, essa obra maior da mística, da espiritualidade e da teologia cristãs, onde tanto se aprende sobre a fé e a dúvida, sobre a aproximação e o afastamento, sobre cada pessoa pode viver no seu tempo e no seu lugar a experiência mais funda de Deus.
E é precisamente tudo isso que falta: Bíblia, Concílio, pensamento social, magistério dos papas, ousadia, criatividade, abertura ao diálogo e ao testemunho dos grandes santos e dos grandes místicos. Sem nada disto, o catolicismo português prosseguirá o seu caminho para a irrelevância que já começou a viver. Trabalhar para evitar isso será pedir muito?
A retórica inconsequente dos bispos católicos – uma leitura António Marujo – 7 Margens – 27.06.2024