O Homem: questão para si mesmo. 16 reflexões pelo Padre Anselmo Borges

O Homem: questão para si mesmo.

16 reflexões pelo Padre Anselmo Borges

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

10 agosto 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 1.  O cérebro e o espírito

Já no livro Francisco. Desafios à Igreja e ao Mundo escrevi longas páginas reflectindo sobre o tema, concretamente sobre as questões do “Transhumanismo e pós-humanismo”, onde também citava Raymond Kurzweil para quem não se trataria apenas de “transhumanismo”, melhorando o Homem, enxertando-lhe componentes electrónicas: “O fim último é ser capaz de descarregar uma consciência humana num material informático. A Humanidade acederá assim à imortalidade.”

Volto à questão do Homem, que se torna cada vez mais actual com os avanços da Inteligência Artificial (IA), cujos benefícios serão cada vez mais inegáveis, concretamente nos domínios da saúde, mas que vai pôr dilemas éticos, já que haverá perigos gigantescos, como preveniu o Papa Francisco na recente Cimeira do G7 na Itália, apelando, por exemplo, à proibição da entrada em cenário de guerra de armas automáticas letais, sistemas que usam IA. No limite, a pergunta é: iremos ser substituídos por máquinas? O que é o Homem?

O enigma parece ser não tanto o espírito, mas a matéria. Embora o espírito seja enigmático na sua relação com a matéria – como é que, estando na raiz o espírito, há matéria? -, parece menos compreensível como é que da matéria resulta o espírito, como é que a matéria se abre em espírito. O dualismo antropológico é cada vez mais inadmissível; mas como entender a emergência do espírito a partir da matéria?

Não têm faltado afirmações reducionistas do Homem. “O Homem não passa de um objecto material e tem apenas propriedades físicas” (D. M. Armstrong, 1968). “Toda a conduta humana terá, um dia, uma explicação mecânica” (D. Mackay, 1980). “As máquinas inteligentes tomarão pouco a pouco o controlo de tudo, acabando por apoderar-se do mundo da política… Pensar é simplesmente um processo físico-químico (L. Ruiz de Gopegui, 1983). “O espírito é uma máquina” (M. Minsky, 1987).

Hoje, com as novas técnicas da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, consegue-se visualizar imagens das regiões do cérebro que entram em acção aquando das diferentes operações mentais. Assim, António Damásio escreveu que, embora avesso a previsões – aliás, com o tempo, parece-me cada vez mais prudente em relação à explicação científica da consciência -, lhe parece seguro poder afirmar que, até 2050, a acumulação do saber sobre os fenómenos biológicos em conexão com a mente consciente fará com que “desapareçam as tradicionais separações de corpo e alma, cérebro e espírito.”

Talvez haja quem receie que, mediante a compreensão da sua estrutura material, algo tão precioso e digno como o espírito humano se degrade ou desapareça. Mas António Damásio previne que “a explicação das origens e do funcionamento do espírito não acabará com ele.” O nosso assombro estender-se-á até essas incríveis microestruturas do organismo e às suas funções que permitem o aparecimento do espírito e da autoconsciência – não se esqueça de que o cérebro com os seus cem mil milhões de neurónios e um número incalculável de sinapses é a estrutura biológica mais complexa que conhecemos. O espírito sobreviverá à sua explicação biológico-neuronal, como a rosa continua a enfeitiçar-nos com o seu perfume, depois de analisada a sua estrutura molecular.

A questão da consciência continuará a fascinar-nos, apesar de todos os avanços da neurobiologia. A razão está em que o corpo e o cérebro são objectivamente acessíveis. A consciência, porém, é íntima e ineliminavelmente subjectiva: é sempre cada um, cada uma, a viver-se a si mesmo, a si mesma, subjectivamente, de modo único e intransferível, sendo dada, portanto, na experiência pessoal.

Demos um exemplo, apesar de tudo, menos exigente: um neurocientista que tivesse todos os conhecimentos sobre os mecanismos com que o cérebro processa a impressão da cor azul, sem a sua vivência real consciente, não saberia o que é o azul.

O problema permanecerá: como é que processos eléctricos e físico-químicos originam a experiência subjectiva. Há uma correlação entre o cérebro e a consciência, mas como é que a experiência de si na primeira pessoa surge de processos e factos da ordem da terceira pessoa?

Mediante as novas técnicas, percepcionamos a base neurobiológica do pensamento. Significa isso que temos, desse modo, acesso ao conteúdo do pensamento?

Reflectindo sobre esta problemática, o número de julho-Agosto de Philosophie Magazine pergunta: “Observamos no cérebro correntes eléctricas, fenómenos de activação, mas algum dia veremos nele o próprio pensamento?” Onde está a liberdade, no cérebro? Onde estão a autoconsciência e o eu, no cérebro?

Como sublinhou o célebre historiador Jean Delumeau, há realmente hoje correntes reducionistas, no sentido neuronal ou como se o Homem não passasse de um “mosaico de genes”. Mas não se esquece então que é o Homem que faz a ciência e lhe dá sentido?

“Se o Universo é o fruto do acaso, se o Homem não foi querido por um Ser que transcende a História, se a nossa liberdade é ilusória, nada tem sentido e, segundo a fórmula trágica de Léon-Paul Fargue, ‘a vida é o cabaret do nada’.” E continua: se, como pergunta Jean-François Lambert, o Homem é da mesma natureza que os outros seres, donde lhe vem o seu valor e dignidade? Onde se fundamentam os Direitos Humanos? Se se não é bom ou mau, “mas apenas bem ou mal programado”, ainda se poderá falar de liberdade e responsabilidade?

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

17 agosto 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 2.  O que sou? Quem sou?

O que é o Homem?

Ao longo dos séculos, foram-se sucedendo, numa lista quase interminável, as tentativas de resposta: animal que fala, animal político (Aristóteles); animal racional (os estóicos e a Escolástica); realidade sagrada (Séneca); um ser que pensa (Descartes); uma cana pensante (Pascal); um ser que trabalha (Marx); um animal capaz de prometer (Nietz- sche); um ser que cria (Bergson); um animal que ri, um animal que chora, um animal que sepulta os mortos…

Saído da gigantesca aventura cósmica com uns 14 000 milhões de anos, o Homem tem, segundo Edgar Morin, “a singularidade de ser cerebralmente sapiens-demens” (sapiente-demente), ter, portanto, com ele “ao mesmo tempo a racionalidade, o delírio, a hybris (a desmesura), a destrutividade”.

Também o filósofo André Comte-Sponville apresentou a sua “definição”, que julga suficiente: “É um ser humano qualquer ser nascido de dois seres humanos.” Mas será mesmo suficiente? O que dizer em relação aos primeiros seres humanos que, na história da evolução, não nasceram de outros humanos? Esta é uma questão assombrosa: sim, quem foram os primeiros e como é que foram tomando consciência de si? Nunca se saberá quem foi o primeiro que disse “eu”. E se amanhã se der a clonagem e a partenogénese?

Os grandes espíritos – Diderot, por exemplo – deram-se conta de que o que somos não pode ser encerrado numa definição. O Homem é o ser que leva consigo a questão do ser e do seu ser e que originária e constitutivamente pergunta: o que é o Homem? O que, antes de mais, une a Humanidade toda é precisamente esta pergunta: o que é o Homem, o que é ser ser humano?

Se o chimpanzé, por exemplo, também sente, recorda, procura, espera, joga, comunica, aprende e inventa, o que é que nos distingue? Parece estender-se cada vez mais a tentação de pensar que o Homem é um animal entre outros. Se diferença houvesse, não seria essencial e qualitativa, mas apenas de grau. Mas quem anda atento reconhecerá com certeza que a diferença entre o Homem e os outros animais não é apenas de grau, mas essencial e qualitativa. Pelo menos, é preciso manter a pergunta.

Também o Homem é corpo, mas um corpo que fala e que diz eu. Ora, um corpo que produz sons duplamente articulados, portanto, transportando sentido, é um corpo que transcende a animalidade.

O Homem é capaz de renunciar à satisfação imediata dos seus impulsos: é “o asceta da vida”, escreveu Max Scheler. Por isso, é capaz de jejuar e ergueu, por exemplo, um edifício jurídico-penal, para evitar a vingança cega, dirimir diferendos, não fazer Justiça pelas próprias mãos.

Quando vemos um animal sentado, de olhos fechados, com a cabeça entre as mãos, estamos em presença de um Homem que pensa e medita. Está ensimesmado, entrou dentro de si próprio, desceu à sua intimidade, submerso na sua subjectividade pessoal.

Afinal, há muito de idêntico em nós e no chimpanzé, “no mono e no Papa”, disse ironicamente o filósofo confessadamente ateu Michel Onfray. O professor de filosofia e o chimpanzé têm necessidades naturais comuns: comer, beber, dormir. A etologia mostra que há comportamentos naturais comuns aos animais e aos humanos. Veja-se, por exemplo, as relações de violência e de agressão e compare-se inclusivamente os rituais de cortejamento sexual. Mas é interessante constatar que já na resposta às necessidades naturais há uma diferença: os homens inventaram a cozinha e a gastronomia e também o erotismo.

  1. Onfray acrescenta: “O Homem e o animal separam-se radicalmente quando se trata de necessidades espirituais, as únicas que são próprias dos homens e das quais não se encontra nenhum vestígio – mínimo que seja – nos animais.” Há nos humanos uma série de actividades especificamente intelectuais, que os distinguem radicalmente dos monos: nestes, não encontramos filosofia, nem religião, nem arte…

A tentativa de compreendê-lo no quadro de um materialismo mecanicista ou do biologismo não dá conta do Homem. De facto, o animal é conduzido, em última análise, pelo instinto. Por isso, esfomeado, não se conterá perante a comida apropriada que lhe apareça. Face à fêmea no período do cio, não resistirá. O Homem, pelo contrário, é capaz de transcender a dinâmica biológica. Por motivos de ascese ou religiosos ou até pura e simplesmente para mostrar a si próprio que se não deixa arrastar pelo impulso, é capaz de conter-se, resistir, dizer não. Foi neste sentido que, repito, Max Scheler, um dos fundadores da Antropologia Filosófica, escreveu que o Homem é “o asceta da vida”, o único animal capaz de dizer não aos impulsos instintivos.

Esta é a base biológica da conduta moral, uma característica essencialmente específica humana. Uma vez que o Homem é capaz de ponderar, renunciar, abster-se, optar, dizer sim, dizer não aos impulsos, é livre e, por conseguinte, animal moral.

O Homem é corpo, mas um corpo que fala. Porque fala, é capaz de debater questões como a da diferença com os outros animais, defender pontos de vista, distinguir o bem e o mal, tomar posições sobre valores morais, políticos, religiosos, estéticos, filosóficos.

Então, o enigma é este: provimos da natureza, mas contrapomo-nos a ela, somos simultaneamente da natureza, na natureza e fora dela. Monos e humanos têm a mesma origem, mas os humanos têm originalidades únicas e irredutíveis.

O Homem é o ser da pergunta e a pergunta por si mesmo caracteriza-o: O que é o Homem? O que sou? Quem sou?

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

24 agosto 2024 – Diário de Notícias 

O Homem: questão para si mesmo. 3. O contributo da literatura

Enquanto regi a cadeira de Antropologia Filosófica na Faculdade de Letras, em Coimbra, esforcei-me sempre por aliciar os estudantes para a leitura da grande literatura mundial, concretamente das tragédias e dos romances, na convicção de que seria esse um dos lugares indispensáveis para poderem penetrar de modo substancial na urgência do conhecimento da realidade humana no seu enigma e mistério.

Foi, por isso, para mim, uma surpresa feliz entrar em contacto com algo totalmente inédito na história das publicações papais: a Carta do Papa Francisco sobre o papel da literatura na Educação, publicada com a data de 17 de Julho de 2024. Ela teria sido escrita pensando na formação dos futuros padres, mas, pensando bem, é para todos, reconhecendo “o valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal”.

Francisco tem consciência de que é necessário “ultrapassar a obsessão dos ecrãs, dedicando-se tempo à literatura, a momentos de leitura serena e livre, a falar de livros que, novos ou antigos, continuam a dizer-nos tanto”.

Pessoalmente, quero lembrar, entre outros, o neurocientista Michel Desmurget, autor de A Fábrica de Cretinos Digitais e, mais recentemente, de Ponham-nos a Ler! A leitura como antídoto para os cretinos digitais, que mostrou como a dependência dos ecrãs pura e simplesmente estupidifica: “Ler influencia positivamente todas as dimensões fundamentais da nossa humanidade.”

Concordando, Francisco lamenta que, “com poucas excepções, a atenção à literatura é considerada como algo não-essencial. A este respeito, gostaria de afirmar que tal perspetiva não é boa. Ela está na origem de uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros padres, que ficam assim privados de um acesso privilegiado, precisamente através da literatura, ao coração da cultura humana e, mais especificamente, ao coração do ser humano. De uma forma ou outra, a literatura tem a ver com o que cada um de nós deseja da vida, uma vez que entra numa relação íntima com a nossa existência concreta, com as suas tensões essenciais, com os seus desejos e os seus significados.”

Ele próprio foi professor de Literatura, sabendo, pois, do que que fala, e dá um exemplo: “Eu gosto muito dos artistas das tragédias, porque todos podemos sentir as suas obras como nossas, como a expressão dos nossos próprios dramas. No fundo, ao chorar o destino das personagens, estamos a chorar por nós mesmos: o nosso vazio, as nossas falhas, a nossa solidão.” Na verdade – e cita Karl Rahner -, a literatura inspira-se na quotidianidade vivida, suas paixões e acontecimentos reais, como “a acção, o trabalho, o amor, a morte e todas as pobres coisas que enchem a vida”.

É urgente ir ao encontro do Homem, não do Homem abstracto, mas de um ser humano concreto, do “mistério daquele ser concreto com as feridas, os desejos, as recordações e as esperanças da sua vida”. E para isso está também o recurso assíduo à literatura, que, entre tantas outras vantagens, “melhora a capacidade de concentração, reduz os níveis de deficit cognitivo e acalma o stress e a ansiedade. Mais ainda: prepara-nos para compreender e, assim, enfrentar as várias situações que podem surgir na vida. Ao ler, mergulhamos nas personagens, nas preocupações, nos dramas, nos perigos, nos medos de pessoas que acabaram por ultrapassar os desafios da vida, ou talvez, durante a leitura, demos às personagens conselhos que mais tarde nos servirão a nós mesmos.” E cita M. Proust: os romances desencadeiam “em nós, no espaço de uma hora, todas as alegrias e desgraças possíveis que, durante a vida, levaríamos anos inteiros a conhecer minimamente; e, dessas, as mais intensas nunca nos seriam reveladas, porque a lentidão com que ocorrem nos impede de as perceber”. E C. S. Lewis: “Ao ler as grandes obras da literatura, transformo-me em milhares de pessoas sem deixar, ao mesmo tempo, de permanecer eu mesmo”, e continua: “Neste ponto, como na religião, no amor, na ação moral e no conhecimento, ultrapasso-me a mim próprio e, no entanto, quando o faço, sou mais eu do que nunca.”

Para que serve a literatura? “Ela ajuda-nos a dizer a nossa presença no mundo, a “digeri-la” e a assimilá-la, captando o que vai para além da superfície da experiência; serve, portanto, para interpretar a vida, discernindo os seus significados e tensões fundamentais.” Mais: o seu olhar  “forma para o descentramento, para o sentido do limite, para a renúncia ao domínio cognitivo e crítico da experiência, ensinando-lhe uma pobreza que é fonte de extraordinária riqueza. Ao reconhecer a inutilidade e, talvez até, a impossibilidade de reduzir o mistério do mundo e do ser humano a uma polaridade antinómica de verdadeiro/falso ou de certo/errado, o leitor aceita o dever de julgar não como instrumento de domínio, mas como impulso para uma escuta incessante e como disponibilidade para se envolver nessa extraordinária riqueza da história que se deve à presença do Espírito, e também se dá como Graça, isto é, como acontecimento imprevisível e incompreensível que não depende da ação humana, mas redefine o humano enquanto esperança de salvação.”

E Francisco conclui luminosamente: “Não podemos renunciar à escuta das palavras que nos deixou o poeta Paul Celan: ‘Quem realmente aprende a ver aproxima-se do invisível’.” E eu lembrei-me de Paul Klee: “A arte não reproduz o visível, ela torna visível.”

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

31 agosto 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 4. Somos livres?

Esta é a pergunta decisiva. De facto, se não somos livres, o que se chama dignidade humana pode ser uma convenção, mas não tem fundamento real.

Mas quem nunca foi assaltado pela pergunta: a minha vida teria podido ser diferente? Para sabê-lo cientificamente, seria preciso o que não é de modo nenhum possível: repetir a vida exactamente nas mesmas circunstâncias. Só assim se verificaria se as “escolhas” se repetiam nos mesmos termos ou não.

Não há dúvida de que a liberdade humana é condicionada. Mas ela existe ou é uma ilusão? Não pretendem agora neurocientistas dizer que, mediante dados da tomografia de emissão de positrões e da ressonância magnética nuclear funcional, se mostra que afinal as nossas decisões são dirigidas por processos neuronais inconscientes?

De qualquer modo, já em 2004, destacados neurocientistas também tornaram público um Manifesto sobre o presente e o futuro da investigação do cérebro – cito Hans Küng, no seu Der Anfang aller Dinge (O princípio de todas as coisas) -, revelando-se prudentes no que toca às “grandes perguntas”: “Como surgem a consciência e a vivência do eu? Como se entrelaçam a acção racional e a acção emocional? Que valor se deve conceder à ideia de ‘livre arbítrio’? Colocar já hoje as grandes perguntas das neurociências é legítimo, mas pensar que terão resposta nos próximos dez anos é muito pouco realista.” É preciso continuar as investigações, no sentido de perceber o nexo entre a mente e o cérebro. “Mas nenhum progresso terminará num triunfo do reducionismo neuronal. Mesmo que alguma vez chegássemos a explicar a totalidade dos processos neuronais subjacentes à simpatia que o ser humano pode sentir pelos seus congéneres, ao seu enamoramento e à sua responsabilidade moral, a autonomia da ‘perspectiva interna’ permaneceria intacta. Pois também uma fuga de Bach não perde nada do seu fascínio, quando se compreende com exactidão como está construída.”

A liberdade não é desvinculável da experiência subjectiva, da “perspectiva interna”. Essa experiência é uma experiência transcendental, no sentido de que se afirma até na sua negação. De facto, se tudo se movesse no quadro do determinismo total, como surgiria o debate sobre a liberdade? Ele seria possível?

Essa experiência coloca-se concretamente no campo da moral e da responsabilidade. Neste contexto, há um célebre exercício mental de Kant na Crítica da Razão Prática, que já aqui citei e que é elucidativo e obriga a pensar.

Suponhamos que alguém, sob pena de morte imediata, se vê confrontado com a ordem de levantar um falso testemunho contra uma pessoa que sabe ser inocente. Nessas circunstâncias e por muito grande que seja o seu amor à vida, pensará que é possível resistir. “Talvez não se atreva a assegurar que assim faria, no caso de isso realmente acontecer; mas não terá outro remédio senão aceitar sem hesitações que tem essa possibilidade.” Existem as duas possibilidades: resistir ou não. “Julga, portanto, que é capaz de fazer algo, pois é consciente de que deve moralmente fazê-lo e, desse modo, descobre em si a liberdade que, sem a lei moral, lhe teria passado despercebida.”

O que confunde frequentemente o debate é a falta de esclarecimento quanto ao que é realmente a liberdade. Ela é a não submissão à necessidade coactiva, externa e interna, mas não pode, por outro lado, ser confundida com a arbitrariedade e a pura espontaneidade – não implica a espontaneidade a necessidade?

A liberdade radica na experiência originária do ser humano como dom para si mesmo.

Paradoxalmente, é na abertura a tudo, portanto, no horizonte da totalidade do ser, que ele vem a si mesmo como eu único e senhor de si. Então, agir livremente é a capacidade de erguer-se acima dos próprios interesses, para pôr-se no lugar do outro e agir racionalmente. Faço a experiência de que sou dado a mim próprio como senhor de mim; portanto, sou dono de mim (já ouvi uma criança de 6 anos dizer à mãe: “Tu não és a minha dona”) e, portanto, dono dos meus actos e, consequentemente responsável, respondo por eles e por mim.

É preciso distinguir entre causas e razões. Quando se age sob uma causalidade constringente, não há liberdade. Ser livre é propor-se ideais, deliberar e agir segundo razões e argumentos, impondo limites aos impulsos, inclinações e desejos, o que mostra que o Homempode ser senhor dos seus actos e, assim, responsável, pode e deve responder por eles.

Só existe liberdade, se há alguém capaz de autodeterminação. A determinação por um “eu”, segundo um juízo de valor, é que faz com que uma acção seja livre e não puro acaso ou enquadrada no determinismo das leis naturais.  Como diz P. Bieri – ver de novo citação em O princípio de todas as coisas -, “é inútil procurar na textura material de um quadro o representado ou a sua beleza; é igualmente inútil procurar na mecânica neurobiológica do cérebro a liberdade ou a sua ausência. Ali, não há nem liberdade, nem falta de liberdade. Do ponto de vista lógico, o cérebro não é o lugar adequado para esta ideia. A vontade é livre, se se submete ao nosso juízo sobre o que é adequado querer em cada momento. A vontade carece de liberdade, quando juízo e vontade seguem caminhos divergentes.”

Quando se pensa em profundidade e verdade, ser Homem é ser livre e, consequentemente, responsável: responder por si e pelos outros. O que quero fazer de mim? Para onde queremos ir verdadeiramente?

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

07 setembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo 5. No rosto, o olhar

Um rosto é um milagre. Há hoje, no mundo, oito mil milhões. Nenhum igual a outro: cada rosto é único. Um rosto é a visita do infinito e a sua manifestação viva no finito. Que é um rosto senão alguém que se mostra na sua aparição?

Esse rosto concentra-se no olhar. Sim, o olhar. Não é dos olhos que se trata. O mistério é o olhar. Um dia terão perguntado a Hegel o que se manifesta e vê num olhar. E ele: “O abismo do mundo.”

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Num olhar, o que há é alguém que vem à janela de si e nos visita. Também por isso, para tornar alguém anónimo, venda-se-lhe os olhos. Faz-se o mesmo a um condenado à morte, porque é intolerável o seu olhar. E, quando alguém morre, coloca-se-lhe um véu sobre o rosto: já está para Além…

Até para nós próprios, somos por vezes terrivelmente estranhos. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? “Quem é esse ou isso que me vê, desde o abismo?”

Essa estranheza assalta-nos até no olhar de um animal: um cão velho e abandonado que nos olha não nos deixa indiferentes. Mas é sobretudo o olhar de alguém que é perturbador. Ele há o olhar triste. O olhar meigo. O olhar arrogante. O olhar do terror. O olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceitação. O olhar do ódio e desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. Ah!, o olhar da despedida final para sempre! O olhar morto, que já não é olhar!

O olhar é a presença misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela. Já ao nível do tal cão velho e abandonado pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser cão? Mas é uma sensação de abismo, um belo dia, precisamente perante o olhar de alguém, ficarmos paralisados com a interrogação: o que é ser alguém outro? Porque a outra pessoa – o outro homem ou a outra mulher – não é simplesmente outro eu, mas um eu outro.

Explicitando: o que é e como é ser o Alberto ou a Eunice, viver-se a si mesmo por dentro como o Alberto ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar?

E como é que eu sei que há o outro, não enquanto outro eu – ainda no prolongamento de mim -, mas precisamente como um eu outro, sujeito inapreensível?

Sartre teorizou que esse saber é dado de modo indubitável no sentimento da vergonha. E dá o exemplo de alguém que, num hotel, está, concentrado, a espreitar pelo buraco da fechadura. Ouve passos no corredor. Então, no sentimento paralisante da vergonha, ao ficar objectivado pelo olhar do outro a quem os passos pertencem, sabe que há um sujeito que não é ele. Ele é objecto para esse sujeito que o vê: é visto.

Sem o outro não há eu, como diz o conceito de Ubuntu, próprio da cultura africana, que diz precisamente: “Eu sou eu através de ti”, e na solidariedade e colaboração, não na competição. Se a única ou a principal relação com o outro fosse a da vergonha, não se aguentava viver, porque “o inferno” seriam “os outros”.

Seria insuportável estar sob a vigia de um olhar omnipresente. Por isso, para Nietzsche, o olhar de Deus é intolerável. Em A Gaia Ciência, uma miúda pergunta à mãe: “É verdade que Deus está em toda a parte?”, respondendo ela própria: “Eu considero isso uma indecência.” Então, em Assim Falava Zaratustra, escreve: o Deus que objectiva o Homem “tinha de morrer, porque via com olhos que viam tudo. A sua piedade desconhecia o pudor: ele metia-se nos meus recantos mais sórdidos.”

Também Jean-Paul Sartre cortou relações com Deus, o Todo-Poderoso, por causa do seu olhar horrorosamente indiscreto. “Uma só vez tive a sensação de que Ele existia. Brincava com fósforos e queimava um pequeno tapete; estava eu a dissimular o meu crime quando, de súbito, Deus viu-me; eu rodopiava na casa de banho, horrivelmente visível, um alvo vivo. Salvou-me a indignação. Blasfemei, murmurei como o meu avô: ‘Maldito o nome de Deus, nome de Deus, nome de Deus.’ Nunca mais Ele me contemplou.”

É certo que só vimos a nós na correlação com o outro. Sem outros eus enquanto tus, não há eu. Mas, repito, será que a única ou mesmo a principal relação com o outro é a da vergonha? Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro, enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita do Deus infinitamente Outro.

Conta a Bíblia, no Livro do Êxodo, que Moisés quis ver Deus, e Deus respondeu: “Farei passar diante de ti toda a minha bondade… mas tu não poderás ver a minha face, pois o Homem não pode contemplar-me e continuar a viver.” O Senhor disse: “Está aqui um lugar próximo de mim; conservar-te-ás sobre o rochedo. Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado. Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás. Quanto à minha face, ela não pode ser vista.”

Segundo a fé cristã, o Deus invisível deixou-se ver no rosto e no olhar misericordioso de Jesus. Ele deixa-se ver no rosto de todos os homens, mulheres e crianças: “O que fizestes a um destes mais pequeninos – dar de comer, de beber, curar, visitar… – a mim o fizestes.”

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

14 setembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 6. A tensão de um corpo-pessoa

Raramente alguém disse de modo tão realista o ser humano na sua tensão como Vergílio Ferreira neste texto magnífico: “Um corpo e o que em obra superior ele produz. Como é fascinante pensá-lo. Um novelo de tripas, de sebo, de matéria viscosa e repelente, um incansável produtor de lixo. Uma podridão insofrida, impaciente de se manifestar, de rebentar o que a trava, sustida a custo a toda a hora para a decência do convívio, um equilíbrio difícil em dois pés precários, uma latrina ambulante, um saco de esterco. E simultaneamente, na visibilidade disso, a harmonia de uma face, a sua possível beleza e sobretudo o prodígio de uma palavra, uma ideia, um gesto, uma obra de arte. Construir o máximo da sublimidade sobre o mais baixo e vil e asqueroso. Um homem. Dá vontade de chorar. De alegria, de ternura, de compaixão. Dá vontade de enlouquecer.”

O Homem vive-se a si mesmo numa tensão insuperável.

Por um lado, o corpo é o seu peso, a sua limitação – parece que, se fôssemos espírito puro, poderíamos, por exemplo, estar em todo o lado. Com o tempo, o corpo decai, envelhece e, aparentemente, envilece-nos. Adoecemos e desmoronamo-nos. Depois, com a morte, o que resta do corpo é lixo biológico e coisa que apodrece. Referindo-se ao nascimento, Santo Agostinho, nada exaltado, tem estas palavras cruas: “Inter faeces  et urinam nascimur”, nascemos entre fezes e urina.

E, aqui, faço uma observação fundamental: ele usa a passiva para o nascimento: nascimur (somos nascidos). Em português, usamos a activa: nascemos, nasci, outras línguas usam a passiva: natus sumsoy nacidosuis nébin geborenam bornsono nato… De facto, alguém se lembra do seu nascimento e decidiu nascer? Foi muito, muito lentamente que fomos dando conta de nós até tomarmos consciência de nós como um “eu” – é isso: afirmamo-nos, assentes numa passividade originária.

Por outro lado, será sempre misterioso um corpo que fala: produz sons que encarnam e transmitem sentido. Um olhar é sempre a visita do in-finito. Um corpo humano canta, ora, sorri, produz obras de arte, que param o tempo e visibilizam a transcendência. De um bloco de mármore Miguel Ângelo arranca a Pietà; misturando tintas, Van Gogh põe à vista as Botas com atacadores e Leonardo, a Última Ceia. Com instrumentos de sopro, de percussão e de cordas e vozes, corpos executam música, a mais utópica das artes (E. Bloch), que nos leva lá para onde nunca estivemos, mas aonde queremos sempre voltar de novo.

Um corpo humano desabrocha como alguém perante outro alguém. Quando dois corpos humanos se abraçam são duas pessoas que dizem uma à outra quanto se querem bem. E mais uma vez Vergílio Ferreira, exprimindo a vivência do corpo pessoal e interpessoal: “Mónica, minha querida. Porque o teu corpo não é só o teu corpo. Não é isso, não é isso. É entrar em ti, e a tua pessoa estar lá.”

E o corpo humano é um corpo livre, que não se entende como se fosse uma máquina, nem na simples continuidade da explicação biológica. É um corpo capaz de dizer não ao que a biologia pede – é um asceta da vida, não fica submerso nas suas necessidades. Então, exprime liberdade. E a liberdade é o salto milagroso. Kant escreveu que é impossível compreender a produção de um ser dotado de liberdade por uma operação física, sendo mesmo difícil, se não impossível também, compreender como pode o próprio Deus criar seres livres.

Por isso, o materialismo mecânico ou biológico não dá conta do Homem. Mas quem defender uma concepção dualista de Homem – um composto de alma e corpo, matéria e espírito – terá de responder à pergunta daquela criança de uma estória ingénua: diante do cadáver da avó, o miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando que a avó tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o cemitério.

E continuou, angustiada: “Sabes, meu filho, quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o teu corpo fica no cemitério.” Aí, o miúdo observou, perplexo: “A minha alma vai ter com Deus e o meu corpo vai para o cemitério. E eu?”

Há o corpo fisiológico, anatómico – quando vou ao médico, espero que perceba de anatomia. Mas também há o corpo fora da anatomia – quando vou ao médico, espero que me trate como pessoa e não como simples corpo, à maneira de máquina desarranjada que ele, como técnico especializado, vai recompor. Tenho corpo, mas sou corpo. Eu sou um corpo que diz “eu” e, portanto, vivo-me a mim mesmo por dentro como corpo-sujeito, corpo-pessoa. E também os outros, todos os outros são corpo-pessoa, vivendo-se a si mesmos como sujeitos. O Homem transcende o simplesmente biológico. “Começou a ser Homem intentando criar beleza”, escreveu Pedro Laín Entralgo. E vive do gratuito: cria e contempla a beleza, é o ser “criativamente possuído pelo fascinante esplendor do inútil” (G. Steiner). Para sobreviver, não precisava de investigar na mecânica quântica… O que ganha no tempo dedicado aos mortos? No entanto, o tempo que gastamos inutilmente – inutilmente? – com os mortos!…

Ser Homem é viver esta tensão, numa arte quase impossível. Porque permanentemente espreita o perigo de coisificar o corpo ou de desprezá-lo, refugiando-se num idealismo angélico. Mas já Pascal preveniu: “O Homem não é anjo, nem é besta, e, desgraçadamente, quem quer fazer de anjo faz de besta.”

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

21 setembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 7. Sujeito irredutível

Já Freud falou das várias humilhações do Homem.

A primeira foi a cosmológica. O Homem pensava ocupar o centro do universo. O Sol girava à volta da Terra. Copérnico, porém, veio mostrar que afinal é a Terra que gira à volta do Sol. E hoje sabemos que o Sol é apenas uma estrela de entre trezentas ou quatrocentas mil milhões da nossa galáxia e, como a nossa galáxia, há centenas de milhares de milhões… Secundário

A segunda humilhação foi a biológica e vem fundamentalmente de Darwin. O Homem não foi directamente criado por Deus como coroa e senhor da criação, pois apareceu por evolução, em que também jogam forças do acaso… De qualquer  forma, mergulhamos as nossas raízes na animalidade.

Desde Karl Marx que sabemos mais explicitamente – e é a humilhação sociológica – que nenhum de nós fala a partir de um lugar neutro: nas nossas concepções de sociedade, de justiça, de religião, de direito…, somos condicionados pela sociedade e pelo lugar que nela ocupamos.

O próprio Freud contribuiu decisivamente para a humilhação psicológica: o poder da autoconsciência límpida e a arrogância do eu soberano foram abalados, já que há em nós as forças subterrâneas e nocturnas do inconsciente, que não controlamos: a razão não é plena e adequadamente transparente e não somos exactamente o que julgamos ser, pois há em nós também o que é e nos impulsiona sem nós: o “isso” em nós sem nós…

Mais recentemente, fomos confrontados com as humilhações estruturalista e informática. E, presentemente, está aí a revolução gigantesca da Inteligência Artificial, que leva alguns a perguntar se não iremos ser substituídos por máquinas…

Agora, quando se reflecte sobre o Homem, é pelo menos necessário perguntar, como escreveu Javier San Martín, até que ponto a subjectividade humana é um “sujeito-de” para lá de um “sujeito-a”…

Claro que a subjectividade é ineliminável. Mas aquele sujeito cartesiano auto-constituído pela reflexão e de modo soberano ficou abalado. Tomámos consciência de que a alteridade nos constitui. Para virmos a nós mesmos e à nossa identidade, temos de passar pelo outro – e este outro é o outro humano (por princípio, o primeiro outro que encontrámos foi a mãe), o outro que é a linguagem e a cultura, o outro que é cada um de nós para si mesmo enquanto um outro: as nossas obras, as nossas possibilidades, a nossa escuridão, as nossas esperanças…

De qualquer modo, a Humanidade sempre teve consciência de si, sabendo que mergulhava em abismos, onde mora o recôndito, o tenebroso e o incontrolável. A alma humana também é habitada por complexos, medos, conflitos, paradoxos, antagonismos, ambivalências, angústias, que, no fundo mais fundo, têm a sua génese na consciência da mortalidade.

Afinal, não é totalmente verdade o que dizemos: “querer é poder” – de facto, nem sempre queremos o que podemos e nem sempre podemos o que queremos -, e há aquele “isso” em nós, impenetrável, que nos impede a transparência total de nós mesmos.

Quando faltavam categorias filosóficas, científicas ou psicológicas, exprimiu-se essa outra dimensão temerosa de nós sem nós, utilizando, por exemplo, o imaginário dos monstros, com demónios, com híbridos, com figuras de seres humanos zoomorfos e de animais antropomorfos… Mesmo o Evangelho, quando se está atento, é também combate do tenebroso, demoníaco e diabólico, e promessa de reconciliação e de luz.

De qualquer modo, continuará o enigma humano de um corpo que diz eu. E, quando cada um o diz, fá-lo de modo único e intransferível. Pela sua própria natureza, ao mesmo tempo que é abertura à totalidade, cada eu é irredutível, em polaridade com tudo quanto existe. Como se não cansava de repetir o filósofo Julián Marías, “o filho que diz eu é irredutível ao seu pai, à sua mãe, a Deus e a toda a realidade, seja ela qual for”.

Assim, não é a mesma coisa perguntar: O que é o Homem? e: Quem é o Homem? De facto, o Homem não é um quê, uma coisa, pois é realidade essencialmente aberta, em processo de fazer-se, projectando-se a si próprio em permanência, de tal modo que se vive como paradoxo vivo de em-si-fora-de-si-para-lá-de-si e centro ex-cêntrico, u-tópico, em processo de transcendimento…

Porque nunca é dado, o Homem como pessoa não cabe na definição famosa de Boécio: “Substância ou coisa individual de natureza racional.” O Homem é um quem, alguém. Evidentemente, vai-se fazendo, e, na medida em que se faz, faz-se algo, mas, precisamente porque é alguém, nega e transcende sempre todos os algos e quês, recusando e superando toda a coisificação. O Homem é sempre mais do que consegue objectivar de si.

No meio de todas as humilhações, ao ser humano reflexivo impor-se-á sempre a subjectividade própria, pois a ciência objectiva só existe para e a partir do sujeito. O sujeito humano – sublinhe-se -, por mais que objective de si, deparará sempre com o inobjectivável, já que a condição de possibilidade de objectivar é ele mesmo enquanto sujeito irredutível. O Homem enquanto sujeito transcenderá, portanto, continuamente a explicação das ciências objectivantes.

Deste modo, como escreveu o filósofo José Gómez Caffarena, mantendo “a nossa condição irrenunciável de sujeitos – não só de conhecimento, mas também de acção, de decisão, de valoração moral, estética… -, renascerá sempre para nós, nessa perspectiva, a pergunta pelo sentido global da existência”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

28 setembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 8. Uma identidade em processo

Antropologia, o estudo do Homem, é uma tarefa sem fim. De facto, o ser humano não pode definir-se de uma vez por todas. Nem sequer há definição possível, pois ele é uma abertura ilimitada: por mais que diga de si, nunca se diz plena e adequadamente.

A pergunta pelo Homem convoca todas as disciplinas. Não é ele, de facto, como bem viram Aristóteles e São Tomás de Aquino, de algum modo todas as coisas? Quando questionamos: “O que é que eu sou? Quem sou eu?”, é necessário apelar para o concurso das ciências da natureza, da cosmologia, da física, da química, da paleontologia, da embriologia, da neurologia, da etologia, da medicina, da linguística, da sociologia, da sociobiologia, da história, das artes, da economia, das ciências políticas e jurídicas, da filosofia, da teologia…

O meu ilustre amigo, Juan Masiá, professor na Universidade Sophia, em Tóquio, apresentou a questão numa bela síntese. Pode-se tentar uma Antropologia Filosófica partindo de algumas afirmações de base. Assim:

Eu sou eu a partir da natureza, mas precisamente deste modo: provenho da natureza, mas transcendo a natureza: em mim, a natureza e a sua história sabem de si. Impõe-se, pois, o diálogo com as ciências da natureza e as filosofias personalistas.

Eu sou eu na minha circunstância (Ortega y Gasset). Portanto, eu sou no mundo, eu sou espácio-temporalmente, enquanto transcendo e tento sempre transcender o espaço e o tempo. Neste âmbito, são imprescindíveis os contributos das antropologias culturais, da sociologia, das psicologias evolutivas, da história, da linguística.

Eu sou eu a partir do meu corpo, mas de tal modo que nunca sei adequadamente quem sou. Como é que de um corpo acabado de nascer vai emergindo um eu, como é que o corpo se faz um sujeito que vai lentamente tomando consciência de si? Neste quadro, dialoga-se com as antropologias biológicas, com as fenomenologias existenciais.

Eu sou eu a partir de mim e perante a realidade. Eu sou eu, mas de tal modo que o segundo eu exprime a possibilidade que uma pessoa tem de auto-objectivar-se e reconhecer-se. O ser humano afirma-se a si mesmo na reflexão. E não é um mero animal de instintos, pois vive na realidade: é um animal de realidades, como sublinhava o filósofo Xavier Zubiri, distinguindo entre o imaginário, o que é objecto de desejo e o real. Apesar dos seus limites, encontraremos aqui concretamente as antropologias racionais e reflexivas.

Eu não sou eu de modo fixo, dado de uma vez para sempre, pois eu vou sendo eu, ao sair de mim. A partir do material genético que recebi dos meus pais e sempre condicionado por ele, eu, se fosse educado noutro lugar e em circunstâncias diferentes, noutro ambiente, se fosse encontrando outras pessoas ao longo da vida, seria o mesmo? A resposta é: sim e não, pois seria eu, mas de outro modo.

A identidade pessoal constrói-se e afirma-se na liberdade, mas a partir de uma herança tanto genética como cultural, e isto num processo histórico sempre aberto: cada um de nós é uma estrutura em permanente desestruturação para uma nova configuração: faço-me, desfaço-me, refaço-me… A pessoa não é encerrando-se em si mesma; pelo contrário, é saindo de si que vem a si e se encontra. O ser humano só é na relação, vivendo mesmo este paradoxo: só porque é abertura a tudo é que é intimidade pessoal e única, e experiencia-se enquanto liberdade, ainda que sempre liberdade em situação. Aqui, entram os contributos das psicologias evolutivas e sociais, das filosofias do conhecimento, do amor, da práxis, da história.

Eu não sei se sou eu. Serei eu? Acontece por vezes o ser humano olhar para o que fez e perguntar: fui eu que fiz isto? como foi possível?, aí não era eu. É, pois, inevitável o confronto com os desafios da psicanálise, dos estruturalismos, das neurociências, da sociobiologia.

Eu ainda não sou eu, mas vou-me tornando eu e sou mais do que eu, eu sou o que serei para lá de mim. O Homem é um ser temporal, vai-se fazendo historicamente. O ser humano é simultaneamente um ser que sabe da sua morte inexorável e que constitutivamente espera para lá da morte. Ele não é ainda, vai sendo e quer ser em plenitude: espera, assim, a sua realização para lá da história intramundana. A antropologia desemboca assim em perguntas pela ultimidade, que são questões da constituição metafísica do real e da conexão entre ética, esperança e religião.

Aqui chegados, é ainda necessário reconhecer que estas afirmações-perguntas formuladas na primeira pessoa do singular têm de apresentar-se no plural, pois o Homem só é real e autenticamente na relação, a identidade individual implica a identidade social e histórica e planetária e cósmica. Afinal, em cada ser humano está presente a realidade toda. Da identidade de cada ser humano faz parte a humanidade inteira – lá estão, de novo, Aristóteles e São Tomás: anima est quodammodo omnia (a alma, o ser humano, é de algum modo tudo).

Por todas estas razões, o Homem é sobretudo, para lá de tudo, o ser da pergunta, no sentido radical, dito no étimo da palavra – perguntar vem do latim: percontare, que contém contus, um pau comprido com o qual se remexe um tanque até ao fundo (o que há lá no mais fundo?). De pergunta em pergunta, o Homem vai até ao infinito e pergunta ao infinito pelo infinito, ou seja, por Deus, já que a pergunta pelo sentido global da existência é constitutiva e inevitável.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

05 outubro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 9. Para lá do dualismo e a esperança

Do pior que há são os repetidores, os que não ousam pensar o novo e o diferente, os que, no fundo, não passam de ruminantes na vida intelectual.

 Pedro Laín Entralgo, com quem tive o privilégio de falar várias vezes e que morreu em 2001, considerado um dos pensadores maiores da Espanha do século XX, cientista, filósofo, humanista cristão, não teve medo de pensar de modo novo, ir mais longe, confrontar-se com as dúvidas, questionar. Fê-lo concretamente no domínio da antropologia. Depois de rejeitar tanto o monismo materialista como o dualismo corpo-alma, para pensar o Homem na sua singularidade procurou um terceiro caminho, que deu lugar ao que chamou uma “antropologia integradora”, “cosmológica, dinâmica e evolutiva”, que viu a sua expressão brilhante, intensamente original e acessível no livro que escreveu aos 90 anos, dois anos antes da morte, síntese madura de uma extensa obra e aturada e longa reflexão, traduzido para português: O que é o Homem. Evolução e sentido da vida. Como crente sincero e intelectual honesto e exigente, quer, sem precisar de uma alma espiritual nem de uma intervenção divina especial, mostrar a compatibilidade entre as duas afirmações cristãs essenciais sobre o Homem – criado à imagem e semelhança de Deus e titular de uma vida que não morre com a morte – e a concepção actual das ciências: o Homem como resultado da evolução do cosmos.

Recusa o dualismo. De facto, se o Homem fosse um composto de corpo e alma, seria preciso perguntar, por exemplo, se os pais, que apenas teriam dado origem ao corpo – a alma viria “de fora” –, ainda são verdadeiramente pais dos seus filhos. Dada a realidade dos gémeos monozigóticos, que se formam pela divisão de um embrião, seria preciso perguntar se uma “alma” se divide em duas. Há ainda uma pergunta fundamental e decisiva: como é que um espírito finito pode agir sobre a matéria e vice-versa?

 A recusa do dualismo não significa, porém, queda no materialismo vulgar. De facto, o monismo materialista, concretamente tal como foi entendido no século XIX, não dá conta da dignidade humana. Quem reduz o espírito humano e o eu a processos físicos e químicos no cérebro terá de responder à seguinte pergunta: como é que processos objectivos na terceira pessoa se transformam numa experiência subjectiva de um eu pessoal que se vive interiormente como único, como pessoa e não como coisa? Se a vida espiritual se identificasse com processos físicos e químicos, então seriam eles a decidir as minhas acções, de tal modo que se deveria concluir que não sou responsável pelo que faço. Isto significa que, apesar do valor das investigações neurobiológicas e dos avanços progressivos neste domínio, não será exagerado afirmar que a autoconsciência e o eu manterão uma reserva de insondável e incompreensível para a ciência objectivante.

 Segundo Pedro Laín Entralgo, Deus cria através do dinamismo cósmico evolutivo. O dinamismo radical evolutivo em que o Cosmos consiste vai-se actualizando e configurando progressivamente em estruturas materiais cada vez mais complexas, de tal modo que surgem propriedades estruturais ou sistemáticas emergentes autenticamente novas, inéditas, que não eram previsíveis e que são irredutíveis. O Homem na sua singularidade é dinamismo cósmico humanamente estruturado, e nele o Todo do Cosmos enquanto natura naturans (natureza naturante) toma consciência de si, nada impedindo pensar que haja noutras paragens do Universo outros seres pensantes e conscientes e que o próprio homem actual possa ser o predecessor do Homo supersapiens.

 Característica constitutiva do ser humano no processo de realizar-se é a esperança. Segundo Laín Entralgo, a esperança tem dois modos complementares: a esperança do concreto (o hábito de confiar que os projectos parciais se irão realizando bem) e a esperança do fundamental (o hábito de confiar — a confiança não é certeza — que a realização da existência pessoal será exitosa). Por sua vez, esta esperança do fundamental, que é a “esperança genuína”, assume dois modos, que não se excluem: a esperança terrena e histórica e a esperança meta-terrena e trans-histórica. Esta é própria dos crentes numa religião que afirma confiadamente a vida em Deus. Aí encontrará finalmente, como viu Santo Agostinho, aquela plenitude por que aspira na tensão constitutiva entre a sua radical finitude — não esquecer a constatação que já aqui transcrevi: inter faeces et urinam nascimur: nascemos entre as fezes e a urina — e a ânsia de Infinito: “O nosso coração está inquieto enquanto não repousar em ti, ó Deus.”

 É claro que, na concepção do Homem segundo Laín, torna-se mais enigmática a imortalidade pessoal, pois a estrutura pessoal humana não pode sobreviver naturalmente à desagregação das subestruturas nela incorporadas. Por isso, alguns crêem que na morte o Homem se desfaz na aniquilação. A fé cristã, ao contrário — e Laín acreditava — , convida a esperar, num acto de confiança radical racional, que a morte é a passagem, por dom misterioso e gratuito de Deus, a um modo de existência absolutamente inimaginável e insondável, para lá do espaço e do tempo cósmicos. O grande filósofo jesuíta José Gómez Caffarena perguntava com honradez intelectual: “Em qualquer concepção, não terá que ser inimaginável e misteriosa a resposta com que o crente, na peculiar certeza da sua fé, se atreve a ir para lá do Cosmos?”

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

12 outubro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 10. Vida boa: bondade e inteligência entrecruzadas

O senhor Elliot fora operado a um tumor. Embora a operação tenha sido considerada um êxito, depois dela as pessoas começaram a dizer que o senhor Elliot já não era o mesmo – sofrera uma mudança de personalidade drástica. Outrora um advogado de sucesso, o senhor Elliot tornou-se incapaz de manter um emprego. A mulher deixou-o. Tendo desbaratado as suas poupanças, viu-se forçado a viver no quarto de hóspedes em casa de um irmão. Havia algo de estranho em todo este caso. De facto, intelectualmente continuava tão brilhante como antes, mas fazia um péssimo uso do seu tempo. As censuras não produziam o mínimo efeito. Foi despedido de uma série de empregos. Embora aturados testes intelectuais nada tivessem encontrado de errado com as suas faculdades mentais, mesmo assim foi procurar um neurologista. António Damásio, o neurologista que Elliot consultou, notou a falta de um elemento no reportório mental de Elliot: ainda que tudo estivesse certo com a sua lógica, memória, atenção e outras faculdades cognitivas, Elliot parecia não ter praticamente sentimentos em relação a tudo o que lhe acontecera.

Sobretudo era capaz de narrar os trágicos acontecimentos da sua vida de uma forma perfeitamente desapaixonada. Damásio ficou mais impressionado do que o próprio Elliot. A origem desta inconsciência emocional, concluiu Damásio, fora que a cirurgia da remoção do tumor cortara as ligações entre os centros inferiores do cérebro emocional e as capacidades de pensamento do neocórtex. O pensamento de Elliot tornara-se igual ao de um computador: totalmente desapaixonado.

Citei livremente Daniel Goleman em Inteligência Emocional. Afinal, o ser humano não é redutível à lógica.

No que se refere à moral, Max Horkheimer, um dos fundadores da Escola Crítica de Frankfurt, deixou escrito que não é possível fundamentar a moral de um modo exclusivamente lógico. Isso foi visto também por Herbert Marcuse. Já no hospital, confessou ao seu amigo Jürgen Habermas: “Vês? Agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos de valor mais elementares: na compaixão”.

Juntamente com Espinosa, terá sido Hegel que levou mais longe o racionalismo: “O que é racional é real; e o que é real é racional”, escreveu. Mas Ernst Bloch objectou que o processo do mundo não pode desenrolar-se a partir do logos puro. Na raiz do mundo tem de estar um intensivo da ordem do querer. Bloch, como também Nietzsche e Freud, foi beber a Schopenhauer. Este foi um filósofo que sublinhou do modo mais intenso que, na sua ultimidade, a realidade não é racional, pois há uma força que tem o predomínio sobre os planos e juízos da razão: a vontade.

Aí está um dos motivos fundamentais por que, na tentativa da explicação dos fenómenos humanos, a nível individual e social, temos sempre a sensação de que há uma falha no encadeamento das razões. No ser humano, há a pulsão e o lógico, o afecto e o pensamento, a emoção e o cálculo, o impulso e a razão. O próprio cérebro, que forma certamente um todo holístico, tem três níveis; Paul D. Mac Lean fala dos três cérebros integrados num, mas também em conflito: o paleocéfalo, o cérebro arcaico, reptiliano, o mesocéfalo, o cérebro da afectividade, e o córtex com o neo-córtex, em conexão com as capacidades lógicas. A luz racional é afinal apenas uma ponta num imenso oceano. Por isso, não só não conseguimos uma harmonia permanente como é necessário estar constantemente de sobreaviso contra a ameaça de descalabros e catástrofes mortais.

Por outro lado, porque o ser humano não é redutível à lógica computacional, é capaz de criações artísticas divinas, do amor gratuito, do luxo generoso, da música – a música, “arte ‘pura’ por excelência”, “a mais ‘mística’, a mais ‘espiritual’ das artes é talvez simplesmente a mais corporal”, como escreveu Pierre Bourdieu, e que não é preciso compreender para ficar emocionado e extasiado.  Perante uma orquestra, com instrumentos de sopro, de percussão, de corda…, assistimos a uma sinfonia que nos atira para um lugar onde nunca estivemos, mas onde quereríamos ficar sempre e um tempo sem tempo numa experiência de êxtase de eternidade…

Neste contexto, vem-me à memória uma história de há muitos anos. Naquela manhã, estacionei o carro. Um jovem encostou-se imediatamente para a moedinha da praxe. À noite, de regresso, saí do comboio e dirigi-me ao carro. O jovem da manhã apressou-se. Saudei-o:

– Como foi o dia, senhor João?
– Sabe o meu nome? Como é que sabe o meu nome?
– Foi o senhor que mo disse esta manhã.
– E não se esqueceu do meu nome? Ainda se lembra do meu nome?
– Como vê, senhor João.
– Nunca vou deixar que algum filho da p… lhe faça mal ao carro.

Aquele jovem já trôpego e caído teve um assomo de alegria e de quase redenção. Pela razão simples de ser tratado como gente, de alguém se lembrar dele e o tratar pelo nome.

Mas também, mais uma vez, concluí: Não basta a bondade, uma bondade cega, o sentimento em bruto. A bondade tem de ser inteligente. Viemos ao mundo por fazer e, livres, a única tarefa que temos é fazermo-nos: fazendo o que fazemos, uns com os outros, estamos a fazer-nos. E isso exige a bondade e a inteligência entrecruzadas. De facto, a bondade sem a inteligência não abre caminhos novos e pode até causar imensos estragos; a inteligência sem a bondade pode tornar-se cruel e fazer um sem-número de vítimas. Como está à vista.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

19 outubro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 11 – Máquinas com consciência?

O que diz alguém, quando diz “eu”? Afirma-se a si mesmo como sujeito, autor das suas acções conscientes, centro pessoal responsável por elas, alguém referido a si mesmo, na abertura e em contraposição a tudo.

Mas há observações perturbadoras. Por exemplo, pode acontecer que alguém adulto, ao olhar para si em miúdo, se veja de fora, apontando como que para um outro: aquele era eu, sou eu?

Há filósofos que se referem à ilusão do eu. Certas interpretações do budismo caminham nesta direcção. No quadro da impermanência e da interdependência de todas as coisas, fala-se da inexistência do eu, do não-eu. Matthieu Ricard, investigador em genética celular e monge budista, deu-me, há anos, num congresso no Porto, um exemplo: veja ali o Rio Douro. O que é o Rio Douro? Onde está o Rio Douro? Ele não existe como substância, pois não há senão uma corrente de água. Está a ver a consciência? O que é ela senão um fluxo permanente de pensamentos fugazes, de vivências? O eu não passa de um nome para designar um continuum, como nomeamos um rio.

Mas há a experiência vivida e inexpugnável do eu, ainda que numa identidade em transformação, que continuamente se faz, desfaz e refaz. O que se passa é que, não se tratando de uma realidade coisista, é inobjectivável e inapreensível.

É, e será sempre, enigmático como aparecem no mundo corpóreo o eu e a consciência. É claro que o eu não pode ser pensado à maneira de uma alma, um homunculus, um observador dentro do corpo – o fantasma dentro da máquina. Há, portanto, uma correlação entre a consciência e os processos cerebrais. Mas significa isto que essa correlação é de causalidade, de tal modo que haverá um dia uma explicação neuronal adequada para os estados espirituais? Ou, como já viu Leibniz e é acentuado pelo filósofo Th. Nagel, mesmo que, por exemplo, tivéssemos todos os conhecimentos científicos sobre os processos neuronais de um morcego, não saberíamos o que é o mundo a partir do seu ponto de vista? A questão é: como se passa de acontecimentos eléctricos e químicos no cérebro – processos neuronais da ordem da terceira pessoa – para a experiência subjectiva na primeira pessoa?

Apesar de se não afastar, por princípio, a possibilidade de se poder vir a dar essa compreensão, o filósofo Colin McGinn pensa que talvez nunca venhamos a entender como é que a consciência surge num mundo corporal, a partir de processos físicos. Também o neurocientista W. Prinz disse numa entrevista: “Os biólogos podem explicar como funcionam a química e a física do cérebro. Mas até agora ninguém sabe como se chega à experiência do eu, nem como é que o cérebro é capaz de gerar significados.”

E sou livre ou não? É claro que, como escreve o filósofo M. Pauen, se as nossas actividades espirituais se identificassem com processos cerebrais, segundo leis naturais, já se não poderia falar em liberdade – “as nossas acções seriam determinadas não por nós, mas por aquelas leis.”

Mas, afinal, quem age, quem é o autor das minhas acções: o meu cérebro ou eu? “Como não é a minha mão, mas eu, quem esbofeteia esta ou aquela pessoa, não é o meu cérebro, mas eu, quem decide. O facto de eu pensar com o cérebro não significa que seja o cérebro, e não eu, quem pensa”, escreveu o filósofo Th. Buchheim.

Neste domínio, nestes tempos de debates fundamentais à volta da Inteligência Artificial, a questão decisiva é se algum dia teremos uma explicação científica da consciência. Mais: se haverá máquinas com consciência.

O físico Carlos Fiolhais, apresentou recentemente num dos seus escritos semanais no Correio da Manhã, precisamente à volta da Inteligência Artificial.uma famosa aposta precisamente sobre a consciência: “Em 1994, em Tucson, nos Estados Unidos, realizou-se uma conferência intitulada ‘Em direcção a uma base científica da consciência’.” O neurocientista Christof Koch defendeu aí que a consciência tinha uma base física: dar-se-iam disparos síncronos de neurónios 40 vezes por segundo. O filósofo David Chalmers retorquiu, dizendo que era impossível descrever a consciência por um fenómeno físico. Chamou ao entendimento da consciência ‘o problema difícil’.”

Passados quatro anos, os dois reencontraram-se e, mantendo as suas posições, fizeram uma aposta: o primeiro apostou com o segundo uma caixa de garrafas de vinho que, nos próximos 25 anos, os cientistas iam descobrir um comportamento neuronal claramente responsável pela noção do “eu”.

Numa reunião da Associação para o Estudo Científico da Consciência realizada em Nova Iorque, em fins de junho passado, os dois voltaram a encontrar-se. O antigo modelo de Koch estava ultrapassado, havendo outros em contenda. Mas nenhum deles era claro, dando uma resposta inequívoca, disse Chalmers.

O neurologista teve de admitir: “É claro que as coisas não são claras.” E foi buscar uma caixa de garrafas de vinho português, no qual se destacava uma de Madeira antigo.

O perdedor, pretendendo desforrar-se, propôs que repetissem a aposta: “Apostou que daqui a mais 25 anos o assunto estará finalmente claro. Chalmers aceitou com um sorriso.”

E Carlos Fiolhais, com o seu humor: “Os cientistas gostam de fazer apostas. Mas é por saber que os cientistas perdem apostas que sigo um precioso conselho da minha avó: ‘Teima, teima, mas nunca apostes’.” E acrescenta: “Estou em crer que as máquinas só terão consciência no Dia de São Nunca.”

Tenho a mesma opinião.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

 

27 outubro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 12. Donde vem o “eu”

É soberanamente estranho e enigmático o significado de dizer “eu”. Só cada um, cada uma, o pode dizer de si mesmo, de si mesma, com sentido único e irrepetível. Ninguém pode dizer “eu” na vez de outro. Precisamente por isso, ninguém sabe o que é exactamente ser outro, outro eu, ninguém pode viver-se plenamente a partir de dentro de outro, ninguém pode conceber o mundo visto pelo outro, por outro eu. O outro – outro eu, mas sobretudo e sempre um eu outro – é irredutível.

É absolutamente fascinante perguntar-se a si próprio: como será o mundo a partir dali, daquele olhar, daquele olhar do outro – olhar não apenas externo, mas interior? Como é que ele, ela, me vê? O que se passará nele, nela, dentro dele, dela, quando me vê, quando me observa, quando pensa em mim, quando diz que me ama? Se nos fosse possível ir lá dentro!… O que é que aconteceu para que o bebé, que começa por parecer um “embrulhinho” (perdoe-se a expressão terna), inicie um processo de dizer-se, que vai do neutro – o menino, a menina, o Kico, a Rita… – até ao soberano eu, donde tudo parece partir para tudo dominar?

Mas não é apenas o eu do outro que é enigmático. O meu próprio eu é enigma para mim. Quando tentamos ver-nos a nós próprios à distância, em miúdos, quando andávamos na escola, por exemplo, ao dar connosco, sabemos que somos nós, mas ao mesmo tempo vemo-nos de fora: somos os mesmos, mas de outro modo.

Até no presente, por mais que objective de mim, há sempre um reduto último – parte da subjectividade – que resiste à objectivação, não havendo nunca coincidência entre o eu objectivo e o eu subjectivo. Vejo-me, sem ver-me adequadamente, de tal maneira que, na medida em que procuro mergulhar até à ultimidade de mim, é como se desaparecesse no nada.

Também por isso, David Hume negou a existência do eu: quando me vejo por dentro, o que encontro é apenas uma série de vivências, mas nunca o eu, que não passa precisamente de um feixe de vivências. Não perguntava Pascal em que parte do corpo é que se encontraria o eu? Aliás, já certas correntes do budismo se tinham referido ao eu como ilusão, e o exemplo que se dá é o de uma cebola a que se vai tirando as camadas sucessivas, sem que reste um núcleo duro: da desconstrução da unidade pessoal não permanece um sujeito.

Mas a interpretação também pode seguir outro caminho. Descendo até ao abismo de mim, aquele aparente nada com que deparo é o véu de mim enquanto inobjectivável, isto é, enquanto pessoa e não coisa. Precisamente aí – no eu irredutível – posso encontrar-me com o mistério do Deus criador.

É com esse milagre do eu enquanto pessoa, fim e não meio para nada, nem para ninguém, que se defrontam, por exemplo, os pais, no encontro com o filho, como escreveu o filósofo Julián Marías: “A realidade psicofísica do filho – corpo, funções biológicas, psiquismo, carácter, etc. – ‘deriva’ da dos pais, e neste sentido é ‘redutível’ a ela. Mas o filho que é e diz ‘eu’ é absolutamente irredutível ao eu do pai, bem como ao da mãe, igualmente irredutíveis, é claro, entre si. Não tem o menor sentido controlável dizer que ‘vem’ deles, pois eu não posso vir de outro eu, já que este é um ‘tu’ irredutível.

Neste sentido, a criação pessoal é evidente. Isto é, o aparecimento da pessoa – de uma pessoa -, enquanto tal, é o modelo daquilo que realmente entendemos por criação: a iluminação de uma realidade nova e intrinsecamente irredutível”.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

 

03 novembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 13. Nos cemitérios, o que há?

Apesar de a morte hoje se ter tornado tabu, muitos nestes dias passaram pelos cemitérios. E a pergunta é: que foram lá fazer? Quando alguém está concentrado num cemitério perante a campa de um familiar, de um amigo, está a olhar para onde? E o que é que vê realmente?

 Há talvez algumas imagens entrecortadas que lhe passam de modo fugaz pela mente. Mas, quando olha, verdadeiramente absorto, embora talvez com os olhos muito abertos para ver, o que realmente lhe aparece é simplesmente e só um abismo sem fundo e sem fim, um vazio ilimitadamente aberto…

Mas olhar e ver um abismo sem fundo e sem fim e um vazio ilimitadamente aberto, isto é, não ver nada, é o que propriamente se chama ver o Mistério.

 Quando se vai ao cemitério visitar a campa de um familiar, de um amigo, presta-se uma homenagem, faz-se uma romagem de saudade… É isso: de saudade, no sentido mais fundo da palavra, dito na própria etimologia – a saudade refere-se a uma ausência sem nome e sem fim, que nos faz sentir a solidão (solitate) que nos dói; se o étimo for salutem dare (saudar), então trata-se de uma saudação, com o desejo de que quem partiu esteja bem. Aí, no recolhimento mais intenso, pode erguer-se, sem palavras, uma súplica, um soluço, como forma de tentar balbuciar o Mistério indizível…

 A morte é o mistério pura e simplesmente… Perante ela e tudo o que se lhe refere, é como se caíssemos num precipício, onde se estilhaça a capacidade de pensar… Ninguém sabe o que é morrer. Que instante é esse o da morte, mediante o qual se deixa de pertencer ao mundo e ao tempo? Mesmo que assistamos à morte de alguém, é de fora que o fazemos… Ninguém sabe o que é estar morto. Diante do cadáver do pai, da mãe, do filho, do amigo, do marido, da mulher, não tem sentido dizer: o meu pai está aqui morto, a minha mãe está aqui morta, o meu amigo está aqui morto, o meu marido está aqui morto, a minha mulher está aqui morta… De facto, eles não estão ali… Também é por pura ilusão de linguagem que dizemos que levamos o pai, ou a mãe, ou o filho, ou o amigo, ou a mulher, ou o marido à sua última morada… Como não podemos dizer, quando vamos ao cemitério, que os vamos visitar… Nos cemitérios, com excepção dos vivos que lá vão, não há ninguém.

 Pergunta-se então: porque é que é um crime nefando em todas as culturas e sociedades a violação de um cemitério se lá não há ninguém? Afinal o que é que está nos cemitérios?

 Nos cemitérios, o que há é uma incontível e inapagável interrogação: o que é o Homem, o que é ser-se humano? O que há nos cemitérios é a afirmação de que, seja como for, a antropologia não é redutível a um simples capítulo da zoologia…

 Afinal, para onde foram os mortos? Não será que, como acontece nas guerras, andam perdidos, mas um dia havemos de encontrá-los e encontrar-nos? Para onde vão os mortos? Para o nada? Mas, como perguntava o filósofo Bernhard Welte, que nada é esse? O nada vazio e nulo ou o nada enquanto véu que oculta a realidade verdadeira, como quando entramos num espaço de breu e dizemos: aqui, não vejo nada, o que não significa que lá não haja nada, pois pode até acontecer que lá se encontre o tesouro maior?… Para onde vão os mortos? Para a noite total ou, pelo contrário, para a luz plena, de tal modo luz que para nós é noite, como quando, olhando para o sol de frente, ficamos cegos pelo excesso de luz? No final, está a esperança.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

 

10 novembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 14. A morte e o intolerável

Conta-se que um dia um padre entrou na igreja e viu Deus a rezar. Terrivelmente perplexo, perguntava a si mesmo a quem é que Deus poderia rezar. Aproximou-se, e constatou, com espanto, que, Deus rezava ao homem: “Homem, se existes, mostra-te, aparece!” Mas Deus, o criador, devia saber que o homem existe – como é que perguntava por ele?! De qualquer modo, daí para diante, o padre anunciava por toda a parte que Deus existe: ele próprio tinha-o visto a rezar ao homem, a perguntar por ele…

Nesta história – ingénua? -, está presente aquela urgência em que consiste a questão de Deus, que Eduardo Lourenço traduziu assim: “Deus? O problema é saber se nós existimos para Deus.”

Afinal, porque é que perguntaríamos por Deus, se ele não estivesse presente em nós? Como é que o procuraríamos, se, como explicitaram concretamente Santo Agostinho e Pascal, o não tivéssemos já encontrado?

Deus está presente, pelo menos como questão aberta, essencialmente na pergunta irrecusável pelo sentido último. A existência humana é uma caminhada de sentido em sentido: tem sentido crescer e aumentar os conhecimentos, tem sentido casar, formar família, ter filhos, educá-los, procurar uma realização profissional, tem sentido bater-se pela Justiça, festejar, fazer investigação para aprofundar a compreensão do mundo e transformá-lo, sacrificar-se pela edificação de uma sociedade mais justa e feliz… Mas se, no fim, pela morte, tudo desembocasse no nada, então, em última análise, tudo apareceria sem sentido, precisamente porque a vida é essa caminhada de sentido em sentido, à procura do Sentido último, e, no final, era o nada. Precisamente esse nada é intolerável.

O carácter insuportável desse nada, do acabar no nada, do nunca mais ser para todo o sempre, adquire intensidade dramaticamente maciça na morte do amigo. Por um lado, olha-se para aquele resto cadavérico e tem-se consciência de que o amigo está real e totalmente morto – é uma naturalidade evidente morrer e estar morto. Por outro, o amigo não é, não pode ser, aquele resto. Mas então onde está, para onde foi? Como é que partiu sem deixar endereço? E fica-se atordoado, é como se o mundo nos caísse em cima ou caíssemos nós num abismo – o pensamento desfaz-se de parede contra parede, a fonte das palavras fica absolutamente seca, e é um vazio sem fim…

A morte de alguém é sempre o fim de um mundo, a morte de um amigo é irreparável. Com a morte do amigo, a nossa própria morte faz a sua entrada no mais profundo de nós mesmos. Como escreveu Santo Agostinho: “Admirava-me de viverem os outros mortais, quando tinha morrido aquele que eu amava, como se ele não houvesse de morrer! E, sendo eu outro ele, mais me admirava de eu viver, estando ele morto.” E aí ergueu-se gigantesca, assombrosa e inevitável a pergunta essencial: “Factus eram ipse mihi magna quaestio – tinha-me tornado para mim próprio uma questão enorme.”

Decisivo é não abandonar a pergunta até ao fim e ao fundo. É que, como escreveu Theodor Adorno, fundador da Escola Crítica de Frankfurt, agnóstico: “O pensamento que não se decapita desemboca na Transcendência.” E como escreveu Max Horkheimer, outro fundador da Escola de Frankfurt, “é impossível salvar um sentido absoluto sem Deus” e, por isso, a religião está em conexão com “o anelo de que esta existência terrena não seja absoluta”, de que o sofrimento e a morte “não sejam o último.”

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

 

17 novembro 2024 – Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 15. Pensar significa transcender

Houve tempos em que o mês de novembro era dedicado aos mortos e à meditação sobre a morte. Isso hoje não acontece nem se permite que aconteça. Vivemos realmente em sociedades que fizeram da morte tabu, o último tabu. Na realidade, se tradicionalmente tabu era o sexo, hoje o sexo está às escâncaras por toda a parte. E vivemos em sociedades do ter, do consumir, da corrupção, do imediatismo, submersos a dedar na alienação das redes sociais, numa correria louca não se sabe para onde, enfim, no niilismo… E aí estão as depressões, os suicídios, o vazio ameaçador da falta de sentido…

Nunca fui de modo nenhum favorável ao pensamento mórbido da morte, que envenena a vida com o medo e o terror, usados também muitas vezes pela Igreja para aterrorizar as consciências e exercer o poder.

Quero um pensamento sadio da morte por causa da vida. Conscientes do limite, viver intensamente. Quando? Agora. E com dignidade e fazendo de nós e da sociedade o que verdadeiramente queremos. Com tempo e a tempo… Ai!, como o pensamento sadio da morte acabaria com tanta vaidade oca e toda a procissão de ilusões, boçalidades, malquerenças…

Aqui, na perplexidade, lembro sempre o filósofo ateu religioso, Ernst Bloch, o filósofo da esperança com quem tive o privilégio de conversar. O núcleo do seu pensamento encontra-se na obra O princípio esperança, com a enciclopédia de todas as esperanças. Para ele, “o importante é aprender a esperar”, mas sem ilusões. De facto, por mais longe que se vá na erradicação dos males que nos afligem, ficará sempre a morte.

Não acreditava em Deus, mas, “onde há esperança, há religião”. Na juventude, admitiu a reencarnação. Na maturidade, teorizou sobre “o núcleo do Humanum extraterritorial à morte”.

Lá está: “por dignidade pessoal nego-me a que o Homem acabe como o gado”; “a desesperança é em si, tanto em sentido temporal como objectivo, o insustentável, o insuportável em todos os sentidos” e “não me resigno a que a última melodia que escutarei sejam as pazadas de terra despejadas sobre os meus despojos”.

O teólogo J. Moltmann contou-me que, poucos dias antes da morte, lhe perguntou como reagia a este desafio, tendo ele respondido: “estou curioso” – note-se, porém, a força da palavra alemã “neugierig”, com o sentido de ansioso por novidades. Moltmann também escreveu que “na véspera de morrer, ao entardecer, ele escutou mais uma vez a sua música mais querida, a abertura de Fidelio, de Beethoven, com o sinal das trombetas para a libertação dos cativos no final”. Essa passagem, que associava à Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses, 13, 16: “quando for dado o sinal, à voz do arcanjo e ao som da trombeta de Deus, o mesmo Senhor descerá dos céus e os que morreram em

Cristo ressuscitarão primeiro”, sempre o comovera. É que, como escreveu, “em Beethoven, pré-anuncia-se a chegada de um Messias. Erguem-se desde as masmorras sons de liberdade e de recordação utópica. O grande momento chegou, a estrela da esperança cumprida no aqui e agora.” A mim também me confessou o que também escreveu: “o cristianismo venceu em grande parte graças à proclamação de Cristo: ‘Eu sou a Ressurreição e a Vida’”.

A última vez que fui a Tubinga, passei pelo cemitério para uma homenagem. O que estava escrito na lápide tumular: “Denken heisst Überschereiten” (Pensar significa transcender).

Aí está o que mais faz falta nas nossas sociedades: Pensar.

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

24 novembro 2024 -Diário de Notícias

O Homem: questão para si mesmo. 16. As vítimas inocentes

Quando olhamos para os horrores do mundo hoje, concretamente para a Ucrânia e o Médio Oriente, é o horror pura e simplesmente, pensando concretamente nas vítimas inocentes. Mas não foi sempre assim? Veja-se Auschwitz. A gente vai lá e fica estarrecido. Bento XVI foi lá também e deixou estas palavras: Há “um silêncio que é um grito interior para Deus: Por que te calaste? Por que quiseste tolerar tudo isto? Onde estava Deus nesses dias? Por que se calou?”

Ele deixou uma encíclica sobre a esperança – Spe salvi -, e nela debruça-se sobre uma pergunta decisiva, “a pergunta fundamental da Filosofia” (Max Horkheimer) : o que podem esperar as incontáveis vítimas inocentes da História? Quem lhes fará justiça? Elas clamam, um grito ensurdecedor percorre a História.

E ergue-se um ateísmo moral precisamente por causa das injustiças do mundo e da História . “Um mundo no qual há tanta injustiça, tanto sofrimento dos inocentes e tanto cinismo do poder, não pode ser obra de um Deus bom.” Quase se poderia dizer que se é ateu ad majorem Dei gloriam, para a maior glória de Deus, como se, perante o horror do mundo, a justificação de Deus fosse não existir. É-se ateu por causa de Deus.

Afastado Deus, deve ser o Homem a estabelecer a Justiça no mundo. Mas não será esta uma pretensão arrogante e intrinsecamente falsa? Quem não ouve o eco das palavras de Sófocles: Na terra “há muita coisa terrível, mas nada existe mais terrível do que o Homem”. Tem, pois, razão Bento XVI, ao acrescentar: “Um mundo que tem de criar a sua Justiça por si mesmo é um mundo sem esperança. Ninguém, nem nada responde pelo sofrimento dos séculos.”

Aqui, ele lembra a Escola de Frankfurt, nomeadamente Max Horkheimer e Theodor Adorno, que viveram filosoficamente a inconsolável “tristeza metafísica” da impossibilidade de fazer justiça às vítimas da História. De facto, mesmo supondo, no quadro do marxismo e da ideia do progresso moderno, que algum dia fosse possível erguer uma sociedade finalmente justa, transparente e reconciliada, ela não poderia ser feliz, já que ou essa sociedade se lembrava de todas as vítimas do passado, que não participam dela, e seria atravessada pela infelicidade, ou não se interessava por elas e então não era humana, porque insolidária.

Horkheimer e Adorno exprimiram uma filosofia em tenaz: por um lado, não podiam acreditar num Deus justo e bom; por outro, há uma verdade da religião, apesar de todas as suas traições no conluio com o poder e os vencedores: a religião “no bom sentido” é, segundo Horkheimer, “o anelo inesgotável, sustentado contra a realidade fáctica, de que esta mude, que acabe o desterro e chegue a justiça”.

Não se trata de um desejo egoísta, mas da esperança contrafáctica de que a realidade dominante da injustiça não tenha a última palavra. Daí, o “anelo do totalmente Outro”, o “anelo da justiça universal cumprida”, “a esperança de que a injustiça que atravessa a História não permaneça, não tenha a última palavra”. E Adorno também escreveu que, frente às aporias da razão, neste domínio, a única filosofia legítima seria “o intento de contemplar todas as coisas com aparecem à luz da redenção”.

Embora se não possa afirmar nada para lá da imanência, a pergunta pela esperança truncada das vítimas, que acusam o mundo da História dos vencedores, obriga a pensar para lá dos limites da imanência, colocando a pergunta pelo Absoluto enquanto pergunta pela Justiça universal.

 

 

Anselmo Borges (PDF)