Rede Sinodal Portugal

Interpretar e pôr em prática o Documento do Sínodo

“No Coração da Esperança”, Episódio 1 – Tomáš Halík

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O teólogo Tomáš Halík esteve recentemente em Portugal para lançar o seu livro “O sonho de uma nova manhã – Cartas ao Papa”. Em entrevista à Rede Sinodal em Portugal o sacerdote checo considera que “há muito boas ideias” no Documento Final do Sínodo, assinalando a importância do caminho a percorrer para “pô-lo em prática”.

 

“O Sínodo deve libertar-nos deste clericalismo, de apenas ouvir e esperar”, afirma o padre Halik numa entrevista publicada no âmbito da iniciativa “No coração da esperança”, promovida pela Rede Sinodal em Portugal em parceria com os seguintes meios de comunicação social: Diário do Minho, Voz Portucalense, Correio do Vouga, Correio de Coimbra, A Guarda, 7Margens, Rede Mundial de Oração do Papa e Folha do Domingo.

P: Quanto ao Documento final do Sínodo muitos passaram do entusiasmo à desilusão. Qual é a sua leitura?

R: Admiro os autores deste documento, porque não foi fácil resumir tantas vozes. E logo de seguida. Esperava que o documento chegasse dois meses depois da última sessão, mas foi no último dia da sessão. Portanto, não é fácil juntar todas estas vozes muito diferentes num só documento. Por isso, admiro essas pessoas.

Mas há muitas políticas boas para o futuro. Por isso, não podemos esperar que o Sínodo tenha a solução para todos os problemas. Não é um concílio. Penso que foi mais como um retiro espiritual para inspirar as pessoas, para dar alguma inspiração para dar alguns impulsos e para apoiar a energia para ir mais longe. Há muito boas ideias no documento do Sínodo, mas agora o caminho é como interpretá-lo e como pô-lo em prática.

Por isso, mesmo que as pessoas digam, porque é que não temos todas as respostas do Papa e do Vaticano? E criticam o Papa e o Sínodo, mas isto é o clericalismo: a expectativa de que será decidido de alguma forma pelas estruturas. Não! Agora temos a responsabilidade de o fazer a partir das bases. O Sínodo deve libertar-nos deste clericalismo, de apenas ouvir e esperar. As pessoas, estão desiludidas, devido a expectativas demasiado irrealistas. Para ficarem satisfeitas, tem de haver um equilíbrio entre as expectativas e a realidade e, por isso, não devemos ter expectativas irrealistas, mas sim assumir a nossa própria responsabilidade.

P: Promover uma transformação das mentalidades foi o que o levou a escrever o seu novo livro. Considera que o Sínodo é o primeiro passo necessário na Igreja para essa renovação?

R: Antes de mais temos de ouvir e, depois deste silêncio, deste momento contemplativo, colocar para o exterior o que ouvimos, e também a voz do nosso subconsciente, do nosso coração, para juntar tudo e pensar sobre isso no Espírito. Por isso, penso que esta conversa no Espírito é tão importante que as reuniões sinodais são uma forma de oração, de oração contemplativa. Não se trata apenas de uma conferência científica. Esta é a minha sugestão para o Papa para a próxima reunião dos teólogos. Penso que o encontro ecuménico dos teólogos não deveria ser apenas um congresso científico, mas aplicar mais este método de sinodalidade, de ouvir, de refletir, de meditar, de rezar e depois juntar o fruto desta meditação.

P: Os participantes na iniciativa “Párocos pelo Sínodo” declararam que a principal resistência ao processo sinodal vem dos bispos e dos padres. Como será possível aplicar as conclusões do Sínodo sem correr o risco de fazer apenas uma transformação estética a uma Igreja clerical que continua a persistir?

R: Pergunta difícil, penso que mudar a mentalidade de algumas pessoas, especialmente, de alguns clérigos, seria uma maravilha, um milagre. Acreditamos em milagres, mas não os podemos manipular. Podemos rezar, podemos discutir sobre isso, mas não podemos manipular milagres. Por isso, para mudar a mente de algumas pessoas, seria realmente um milagre. Eu acredito em milagres, mas não podemos contar com isso.

“No Coração da Esperança”, Episódio 2 – João Duque

 

https://www.youtube.com/watch?v=K3gY_8nd4mU

Direito Canónico na aplicação do Sínodo

O pró-reitor da Universidade Católica Portuguesa e professor de Teologia considera que nesta fase de receção do Sínodo “o Direito Canónico pode ser libertador na medida em que institui estruturas que são exigidas aos líderes das comunidades”.

É o segundo episódio da iniciativa “No coração da esperança” produzida pela Rede Sinodal em Portugal. Desta vez, o entrevistado é o pró-reitor da Universidade Católica Portuguesa e professor de Teologia, João Duque.

P: Nesta fase da receção do Documento Final do Sínodo, como será a aplicação prática na vida das dioceses, paróquias, instituições e movimentos da Igreja?

 

R: “Neste documento há alguns aspetos que eu penso que inevitavelmente vão ter algumas alterações e que são aqueles aspetos que mexem sempre mais com estruturas, que na prática acaba por passar sempre um pouco pelo Direito Canónico.

O Direito Canónico pode ser um peso para a comunidade, enquanto é simplesmente um conjunto de normas, mas o Direito Canónico pode ser libertador na medida em que institui estruturas que são exigidas às comunidades, que são exigidas aos líderes das comunidades e que ficam instituídas mesmo juridicamente. Depois cumprem-se mais ou menos, de acordo com o que se cumpre mais ou menos do direito, pois já há lá muita coisa que não é cumprida, muitas vezes. Seja como for, as estruturas ficam constituídas.

Por exemplo, está-se a trabalhar nas estruturas paroquiais, que é sempre o nível de base. Estruturas paroquiais e estruturas diocesanas são sempre as mais significativas, sem dúvida, para a vida da Igreja Católica, pelo menos na forma como a temos organizada agora. Portanto, se houver transformações, diríamos obrigatórias, institucionalizadas na vida das paróquias, podem os líderes depois ligar mais ou ligar menos a esses órgãos, o certo é que têm que os ter, em princípio, e têm que os ouvir também. Em princípio. Muitos já os têm, felizmente. Em Portugal, menos um bocadinho. Noutros países há mais. Noutros, nalguns, ainda há menos do que em Portugal, diríamos.

Alguns párocos já têm o hábito de trabalhar, sem dúvida, muito com os paroquianos e, portanto, de escutar muitos fiéis. Não só escutar: trabalhar em conjunto, que é diferente de escutar apenas. Isso já existe, mas não existe em todos os casos. E, como nós sabemos, precisamente os casos mais delicados, que são aqueles que depois podem resultar em abuso de poder, em abuso de poder espiritual, que é um aspeto que certamente teremos que ter muito em atenção para além de outro tipo de abusos, são precisamente aqueles casos mais graves em que, diríamos, as coisas ficam entregues à boa vontade ou má vontade do líder. E isso não. Tem que haver de facto uma estrutura.

Se aí houver alterações significativas que, para além dos conselhos económicos, os conselhos pastorais, paroquiais, etc., sejam estruturas exigidas e estruturas a que o clero, que ainda são os líderes principais das comunidades e mesmo a formação do futuro clero, leve muito em conta e se habitue a trabalhar assim, haverá logo um impacto muito rápido e imediato nas comunidades, como eu digo.

Depois pode haver também, que é uma questão também estrutural, uma alteração significativa que pode levar a outras alterações, que é as decisões mais fortes, diríamos sobretudo disciplinares. Pensemos no caso da obrigatoriedade do celibato. Essa era uma alteração que, a acontecer, seria uma alteração muito significativa. Muito semelhante ou até mais significativa do que foi a alteração da liturgia no pós-Vaticano II. Sem dúvida.

E é uma decisão que me parece difícil de tomar para a Igreja latina total ou global, ou seja, em todos os continentes, ao mesmo tempo. Já houve várias tentativas de trabalhar o tema e ele nunca avançou, porque nunca se consegue consenso mínimo a nível global. Mas pode-se conseguir consenso a nível local, nomeadamente a nível dos continentes. Uma coisa é o continente africano, outra coisa é o continente latino-americano, outra coisa é o continente europeu, nomeadamente quanto a esta questão muito concreta em que cada continente tem a sua base cultural e os seus problemas diferentes.

Se houver autonomia para uma região, um conjunto de conferências episcopais, como o caso da CELAM na América Latina, poder tomar decisões a esse nível e não ficar tudo necessariamente dependente de Roma e da central, porque aí as decisões encravam e encravam porque é demasiado vasto e só isso. Não é propriamente má vontade do sistema romano, é porque é demasiado vasto. Eu penso que aí sim, poderá haver alterações muito significativas e muitas práticas, não só litúrgicas, mas práticas quotidianas, disciplinares, que possam vir a assumir configurações diferentes consoante as regiões e, depois, também consoante as práticas nessas regiões, as outras regiões eventualmente possam vir também a transformar-se. Não me admira nada que, por exemplo, na África, a obrigatoriedade do celibato fosse abolida primeiro porque tem bases culturais muito significativas relativamente a essa questão. E que a Europa, por exemplo, fosse a última. Não sei se a Europa cabe toda dentro de uma mesma região ou se há uma Europa do Leste, ou se há uma Europa do Ocidente. Nós não podemos impor mundividências, mesmo eclesiológicas, do Ocidente europeu ao Leste europeu, que têm uma história diferente. Mas o Leste europeu também não nos pode impor certas visões eclesiológicas. Portanto, podemos ter duas regiões na Europa. Os dois pulmões claramente teriam caminhos diversos.

Em que medida vai ser possível esta diversidade dentro da Igreja Católica Romana? Ou seja, não é uniforme. Ainda é bastante uniforme. Pode vir a deixar de ser uniforme assim. Pode ser um dos efeitos, a médio prazo, diríamos, destes documentos. Isto para falar só em efeitos mais pragmáticos, com consequências visíveis. O resto tem a ver com a mentalidade do próprio povo de Deus e com o seu envolvimento nas comunidades. Isso está em curso, como sabemos.”

 

P: Antes não havia meios para uma consulta tão vasta, nem para fazer conhecidas as decisões, ou dar voz a realidades tão diversas. Isso é um facilitador para as coisas serem diferentes?

 

R: “Indiscutivelmente. Aliás, um dos efeitos muito interessantes deste processo sinodal foi precisamente ficar claro – já suspeitávamos, mas ficou claro – que há diferenças significativas nas igrejas dentro da Igreja Católica.

O caso europeu é um caso muito típico. Penso que nos outros continentes até talvez as tensões não tenham sido eventualmente tão fortes. E daí, não sei. Não acompanhei tão de perto. O caso europeu é um caso muito claro até ao extremo de tensões, às vezes até certos dissensos, mesmo conflituosos, diríamos. Mas percebemos que, de facto, há regiões diferentes. De acordo com regiões, também há pessoas diferentes, e as pessoas diferentes existem em todas as regiões. Certamente, os cristãos de uma diocese portuguesa não vivem todos o cristianismo da mesma maneira e não vivem necessariamente de forma errada. Ou seja, são legítimas certas configurações variadas do cristianismo e até do catolicismo. Muito mais depois, na diferença das regiões. De facto, sobretudo esta questão do Leste europeu e de alguns países do Leste europeu, nas seções europeias do Sínodo, tornou-se muito evidente essa tensão.

Uma coisa é a Igreja na Alemanha, que já internamente tem diferenças, mas que, se pegarmos na Alemanha como um bloco e colocarmos em comparação com alguns países de Leste, evidentemente que são leituras do cristianismo muito diferentes, que se devem a muitos fatores, nomeadamente à história que o próprio país teve, até à história política que o próprio país teve e, depois, às contraposições que se fazem.

O Leste europeu certamente tem o fantasma do comunismo e, como tal, diríamos que todas as iniciativas que parecem tender um pouco mais para ideias de esquerda são logo qualificadas como comunistas e levantam esse fantasma. Claramente. E, portanto, diríamos, para o Leste europeu, atitudes da Igreja na América Latina são atitudes comunistas, evidentemente. Para a América Latina, atitudes dos países do Leste europeu são atitudes fascistas.

Este tipo de etiquetas são etiquetas que com facilidade se colocam. Mas é preciso perceber, de facto, os caminhos diferentes. E, se os caminhos são diferentes, nós temos que assumir essa pluralidade. Nós não temos, neste momento, estrutura que possibilite muito essa pluralidade, porque é tudo pretensamente igual. Sai tudo, em certa medida, de uma central e pretende a construção de um catolicismo absolutamente igual.

Nós estamos a ver, apenas do ponto de vista disciplinar e ritual, as tentativas de um rito da Amazónia e, no entanto, o processo, tal como está a continuar, ainda revela que ainda há uma mentalidade absolutamente central. Ou seja, a tentativa de elaborar um rito local a partir do local embate sempre com a ideia que ainda prevalece, de que Roma é que sabe como resolver a questão e, portanto, intromete-se diretamente para resolver a questão.

Roma tem que validar no final e pode sugerir correções e tudo isso. Somos uma única Igreja Católica, não vamos ficar fragmentos, não é? Isso sim. Mas Roma tem que assumir o papel que assumiu na história para trás. Não nos últimos dois séculos; antes. Que era a última palavra.

Os assuntos trabalham-se localmente, através de um certo grupo, e, no final, há uma validação da parte de Roma. E, quando não há um acordo suficiente local, Roma depois tem que decidir, de facto, dar a última palavra. Mas é a última, não é a primeira.

Depois, a partir do século XIX, nós constituímos um modelo em que Roma tem a primeira e última palavra e a do meio. Ou seja, na prática, elabora uma espécie de programa mundial para a Igreja Católica que sai de lá e tem que regressar lá. Esse tipo de modelo depois não funciona.”

“No coração da Esperança”, Episódio 3 – Sérgio Leal

https://www.youtube.com/watch?v=sh5IOHtge2A&t=6s

“Voltar às comissões sinodais diocesanas”

Desta vez, o convidado é o especialista em sinodalidade, Sérgio Leal, docente da Universidade Católica Portuguesa e pároco de Anta e Guetim na diocese do Porto. O sacerdote licenciou-se em 2018 na Universidade Lateranense sobre a sinodalidade como estilo pastoral, e concluiu doutoramento em 2024 na mesma universidade pontifícia com uma tese sobre o exercício do ministério pastoral numa Igreja sinodal.

1- Após três anos de um caminho sinodal que envolveu milhões de pessoas e de duas sessões do Sínodo dos bispos em Roma que leitura faz do Documento Final do Sínodo?

Em primeiro lugar, creio que devemos olhar para este documento como um trabalho que nasceu de um processo maturado de três anos e creio que é este respeito que devemos ter por este documento e a alegria de um documento que traz a reflexão de tantos homens e mulheres das mais diferentes geografias do planeta. Em fases distintas de um mesmo processo: desde uma escuta sinodal que começou nas igrejas particulares, desde as pequenas comunidades às maiores, à maturação deste processo nos encontros continentais até chegarmos às assembleias, às duas assembleias que aconteceram em Roma em Outubro de 2023 e de 2024.

E, portanto, este documento, em primeiro lugar, é um ponto de partida para uma terceira fase, que é fundamental que é a fase da aplicação. Isto é, um processo sinodal seria um processo estéril se ficasse apenas por um bom documento ou por um documento que aponte bons desafios, mas se eles não se tornarem operativos na sua aplicação.

Quando olhamos este documento, eu creio que ele parte de uma consciência fundamental que é renovar a nossa consciência sinodal, o nosso sermos Igreja. Daí que o primeiro e grande desafio que emerge da leitura deste documento é percebermo-nos chamados ao coração da sinodalidade, chamados à conversão. Uma conversão que, em primeiro lugar, é uma conversão pessoal, mas também uma conversão eclesial no sentido de valorizarmos essa primeira categoria fundamental que é a categoria do povo de Deus. De tornarmos operativo aquilo que dizia já o Concílio Vaticano, na Lumen Gentium, essa ‘revolução copernicana’ que apontava o Cardeal Suenens para a Lumen Gentium, dizer que antes de dizermos o que cada um faz na Igreja, tomamos consciência de que somos como batizados participantes de uma igreja que é mistério, mistério, porque nasce do Coração de Cristo e conta com cada homem e cada mulher para a sua construção e de uma igreja que é povo de Deus. E é esta consciência de sermos povo que a sinodalidade quer apontar. E toda a conversão sinodal e pastoral que é necessária tem de nascer destes elementos fundamentais: comunhão e unidade, unidade na missão, uma unidade e harmonia a partir da diversidade dos vários ministérios dons e carismas que encontramos na Igreja. E por isso, esse primeiro capítulo deste documento final aponta para aí para esse coração da sinodalidade, que é fundamental para depois levarmos a cabo todo um caminho de renovação e de conversão pastoral que coloca em marcha processos de renovação eclesial, que conjugue eu diria dois grandes pilares fundamentais ou duas grandes novidades às quais a Igreja tem que dar resposta: à novidade de cada tempo e de cada cultura, mas também à novidade do Evangelho que se apresenta para nós sempre como novo. E, portanto, haveremos de saber dar resposta à novidade do tempo em que vivemos, de olharmos para a cultura contemporânea, não como um inimigo do Evangelho, mas como um lugar oportuno para que esse Evangelho seja anunciado. E aqui abre-se também um caminho que é fundamental na sinodalidade, que é o diálogo e o encontro, promover uma cultura de diálogo, de encontro, de partilha e de discernimento conjunto. Não temos receitas prévias, temos um caminho a fazer e um processo de conversão pastoral a colocar em marcha.

 

2- Nesta fase de receção do Documento Final do Sínodo que ideias podemos lançar para a sua aplicação no concreto da vida das dioceses, paróquias, instituições e movimentos da Igreja?

No processo de aplicação deste documento final, eu creio que devemos ter em conta, em primeiro lugar, que é um processo, evitando duas tentações: a tentação do imediatismo de querermos já no imediato, um conjunto de transformações e de mudanças, até porque temos que ter algum cuidado com esta precipitação para a mudança. Quando é preciso mudar tudo é porque não temos nada de essencial e nós temos. Temos que fazer este processo de mudança a partir de uma fidelidade criativa ao Evangelho, uma fidelidade criativa à tradição eclesial. E, portanto, há que evitar esta tentação do imediatismo, mas também a tentação de prolongarmos indefinidamente este processo de aplicação. Que se abra um verdadeiro discernimento, que é pastoral e que é evangélico, um discernimento que implica oração, reflexão, mas também operatividade. Um discernimento, que implica decisões corajosas e ousadas para o nosso tempo. E, por isso, é necessário evitar esta tentação do imediatismo e é necessário fazermos deste processo de aplicação um processo também de discernimento, tal como ele aconteceu desde a escuta até à reflexão sinodal nas duas assembleias que aconteceram em Roma. Não podemos querer que um processo que demorou três anos agora seja aplicado em três meses. É necessário um processo de aplicação que há de ser descentralizado, como propõe o documento final.

E eu diria, porque já o disse antes, durante o processo sinodal, de que gostaria que este processo de aplicação tivesse a mesma amplitude que teve o processo de escuta. Agora já não para levantar e fazer um diagnóstico da realidade, mas aplicar, tornar operativo, tornar operativos todos estes desafios, mas optando pelo mesmo pela mesma metodologia. Portanto, voltar às comissões sinodais diocesanas, às comissões paroquiais. Isto é, voltar aqui, voltar à base, como temos dito, voltar às bases e a partir daí, gerar um processo de discernimento localizado onde a pergunta fundamental há de ser esta: o que é que o Espírito Santo nos está a pedir aqui agora. E este aqui agora evita-nos um saudosismo do passado, de um passado, porventura que nunca existiu. Por isso é que às vezes, existem tantos saudosos dele. Mas pensarmos e repensarmos a ação eclesial, à luz do aqui agora neste lugar concreto e neste tempo que o Senhor nos chama a viver. Os homens e mulheres de hoje não são menos capazes de Deus que os homens e mulheres do passado.

Depois este documento sinodal, este documento final, aponta-nos algumas coordenadas importantes, em primeiro lugar, do documento final, emergem em primeiro lugar, pontos de consenso e de comunhão. O processo sinodal não visa gerar decisões de maioria ou minoria, ainda que tenha havido uma votação para os seus diversos pontos, mas eles são sobretudo, é sobretudo um documento que nasce do consenso e comunhão gerada no caminho percorrido pela Igreja. Depois existem também questões a aprofundar e questões a aprofundar nos diferentes grupos de estudo que foram criados, mas também questões a aprofundar que aparecem neste documento, por exemplo, os ministérios que eu creio que é um caminho que a Igreja deveria nesta fase de aplicação, apontar e aprofundar, refletir. Até porque há de facto, aqui, neste âmbito concreto, a liberdade que em cada em cada região pastoral em cada conferência episcopal, a liberdade de se pensar em novos ministérios. É verdade, como diz o documento, nem todos os carismas têm que ser traduzidos em ministérios, nem todos os ministérios têm de ser instituídos. Mas um ministério instituído é um serviço confiado pela Igreja e que aponta também aquelas que são as prioridades da Igreja. Creio que seria importante nesta fase de aplicação, pensarmos quais são as nossas prioridades pastorais. O que é que é essencial apontar já em primeiro lugar? E a criação de ministérios instituídos para algumas prioridades pastorais, indicaria também de quanto é prioritário para a igreja estes caminhos. No documento fala-se do ministério de escuta e acompanhamento. Porque, na verdade, os ministérios instituídos até agora estiveram muitas vezes remetidos ao âmbito do ministério ordenado. E, por outro lado, estes ministérios também estiveram de algum modo confinados ao âmbito litúrgico do leitor e de acólito. Era importante que estes ministérios instituídos no repensar destes ministérios estivesse presente uma opção missionária, esta igreja em saída de que nos fala o Papa Francisco. A capacidade de sabermos articular este ad intra e ad extra da Igreja. Isto é, de nos repensarmos como Igreja e a nossa comunhão eclesial a partir da missão que temos diante de nós. Para que não fiquemos encerrados nos muros da nossa ação eclesial, mas capazes de um diálogo com a cultura contemporânea. E aí encontraremos um conjunto de desafios importantes, pois também a promoção dos diferentes órgãos de participação e de corresponsabilidade. A sinodalidade é muito mais que um somatório de estruturas de sinodalidade, mas ela pressupõe essas estruturas para que se torne operativa essa mesma sinodalidade. Desde a igreja local, desde a diocese até às paróquias, a promoção do Conselho Diocesano de Pastoral, o Conselho Paroquial de Pastoral, o Conselho para os Assuntos Económicos, numa diocese o Conselho presbiteral. Que os diferentes conselhos também possam trabalhar, não auto-referencialmente e autonomamente, mas que possam trabalhar de modo sinodal, ainda que cada um no seu âmbito, mas que possam trabalhar em conjunto e em comunhão, promovendo este repensar da ação da Igreja à luz dos desafios que o mundo contemporâneo coloca.

“No Coração da Esperança”, Episódio 4 – Sérgio Leal

 

https://www.youtube.com/watch?v=TMwyKpg2jQ0&t=2s

“Deixar para trás aquilo que já não serve”

É o quarto episódio da iniciativa “No coração da esperança” produzida pela Rede Sinodal em Portugal. A segunda parte da entrevista do padre Sérgio Leal, docente da Universidade Católica Portuguesa e pároco de Anta e Guetim na diocese do Porto

P- Na primeira entrevista desta iniciativa, Tomás Halik pediu um milagre para que padres e bispos não se limitem a fazer da aplicação do Documento Final do Sínodo uma simples mudança cosmética. Corremos esse risco?

R- “Se é de um milagre que precisamos, estamos no caminho certo. O nosso Deus é o Deus dos milagres e o Deus capaz de realizar maravilhas e tornar possíveis os impossíveis da nossa vida. Contudo, diria, que nós estamos a trabalhar, ao percorrer este caminho sinodal, estamos num processo de sonhar – para usar esta categoria que o Papa Francisco usa tantas vezes – de sonhar uma Igreja que ainda não existe, uma ação eclesial que tem que ser nova e renovada para o contexto social e cultural hodierno. Portanto, uma Igreja que se sabe sempre nascida do coração de Cristo e, por isso, chamada a tornar presente no mundo o Evangelho que é Jesus Cristo e de encontrar esta nova forma de ser Igreja, que é nova, no sentido de uma ação cada vez mais renovada e capaz de ser compreendida pelos homens e mulheres de hoje.

E se estamos a sonhar um modo novo de ser Igreja, então é preciso também sonhar um modo novo de ser presbítero, de ser diácono, de ser cristão leigo, de ser religioso, religiosa e até de ser bispo. E, portanto, este processo de discernimento precisa disto: perceber que estamos a voltar ao centro daquilo que é a Igreja, um povo que caminha na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo. Na Igreja caminha a imagem da Santíssima Trindade. E que, portanto, se há de refazer e construir sempre a partir daqui. A partir de Cristo, para melhor fazer presente no mundo o Evangelho que é o próprio Jesus Cristo. E neste exercício é absolutamente indispensável e necessário deixar para trás aquilo que já não serve para o tempo de hoje.

Eu costumo dizer sempre que, do ponto de vista da projeção pastoral, existem três questões fundamentais: O que manter? Aquilo que é essencial e não podemos deixar. O que é que temos que deixar? Porque já não serve para a resposta que somos chamados a dar hoje. E o que é que havemos de criar de modo novo para sermos melhor resposta, acolhendo quer o desafio de Cristo em primeiro lugar, que nos envia, e do mundo para o qual Ele nos envia.

E nesse sentido há aqui que repensar também uma nova forma de ser pastor, uma nova forma de ser bispo e de ser padre, que mantém aquilo que é imutável e essencial do ministério ordenado, como ministério de raiz trinitária, como ministério que não é de origem sinodal, porque nasce do mandato próprio de Cristo. “Ide por todo o mundo, fazei isto em memória de mim. Aqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados.” Um ministério que é estruturante para a vida eclesial.

O documento da Comissão Teológica Internacional dizia que a sinodalidade acontece no interior de uma Igreja hierarquicamente organizada. O Papa Francisco, no final deste processo sinodal, dizia que a sinodalidade oferece a chave interpretativa para compreender o ministério hierárquico. E aqui haveremos sempre de voltar à dinâmica evangelizadora de Jesus. Jesus, como um enviado do Pai, que tem como interlocutor as multidões. Uma multidão que não é uma massa anónima, abstrata, porque ele interpela de modo direto e particular. Diz à samaritana, “Dá-me de beber”. Ao Zaqueu, “Desce depressa, quero ficar em tua casa.” À mulher adultera, “Vai e não tornes a pecar”. Isto é, de um Jesus que é enviado do Pai, que tem como primeiro interlocutor as multidões, mas que depois se dirige a cada um em particular.

Mas de entre as multidões escolheu 12, a quem confiou um ministério muito particular. E, portanto, esta dinâmica evangelizadora deve estar presente neste configurar e reconfigurar da Igreja. De percebermos como a Igreja sem Jesus é uma ONG, como diz o Papa Francisco, tantas vezes. Uma Igreja sem as multidões seria uma elite de iluminados. Mas uma Igreja sem os 12 seria uma Igreja sem esse garante de catolicidade e de apostolicidade.

E é nesta comunhão e unidade na diversidade de dons, carismas e ministérios que haveremos de repensar também o ministério ordenado. Um ministério ao serviço da comunhão e da promoção dos diversos dons e carismas, de uma pastoral que não se repensa mais do ponto de vista clerico-cêntrico. Que diria que ainda é confortável, quer para os clérigos, quer tantas vezes para os leigos, que relegam as decisões unicamente para o pároco. Do pároco que chama a si todas as coisas. Mas aqui um repensar do ministério ordenado a partir de uma nova comunhão e diversidade, que implica também um renovar daquilo que o Concílio Vaticano II já apontava para repensar.

Por exemplo, o ministério do presbítero. Porque revalorizada a sua categoria de comunhão, a fraternidade presbiteral, o percebermos que o nosso ministério ordenado já não se pode configurar mais de modo autorreferencial, mas que tem que ser na comunhão do presbitério, na comunhão com o seu Bispo, de um bispo que vive em primeiro lugar a comunhão com o seu presbitério, para que esse presbitério possa ser o lugar da comunhão, e depois promotor da comunhão nas diferentes comunidades que lhes estão confiadas.

E é esta nova forma de ser pastor, que implica um renovar também dos itinerários formativos. Desde o itinerário formativo da formação inicial nos nossos seminários, à formação permanente que as dioceses oferecem, ao acompanhamento dos padres nos seus primeiros anos, mas não esquecendo que os padres com mais anos também precisam de acompanhamento e de proximidade.

E é esta Igreja sinodal próxima, de proximidade dos pastores com os fiéis, de proximidade do bispo com os seus presbíteros, dos presbíteros entre si, dos diáconos como colaboradores desta Igreja sinodal, que podemos repensar e operar esse milagre para usar as palavras do Tomáš Halík, para operar esse milagre que não pode de facto ser uma operação de cosmética, porque ficarmos pela superficialidade nos processos nunca nos permitirá enfrentar esses processos com verdade e com aquilo que eles necessitam de verdade para gerar uma nova consciência eclesial.”

Rede Sinodal Portugal