A data da Páscoa – 5 reflexões – Voz Portucalense
A data da Páscoa (1)
6 fevereiro, 2025 Eclesial, Liturgia – Voz Portucalense
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
No passado dia 25 de janeiro, na celebração de Vésperas que encerrou a Semana de oração pela unidade dos cristãos, o Papa Francisco voltou a manifestar a disponibilidade da Igreja Católica para convergir com as outras Igrejas e comunidades cristãs numa data comum para a celebração da Páscoa: «De modo providencial, este ano, precisamente durante o aniversário ecuménico [do Concílio de Niceia], a Páscoa será celebrada no mesmo dia tanto no calendário gregoriano como no juliano. Renovo o meu apelo para que esta coincidência sirva de estímulo a todos os cristãos para darem resolutamente um passo rumo à unidade, em torno duma data comum, uma data para a Páscoa (cf. Bula Spes non confundit, 17); e a Igreja Católica está disposta a aceitar a data que todos quiserem estipular: uma data da unidade». Desde 2015, pelo menos, aquando do encontro mundial do clero, que o Papa Francisco vem reafirmando esta disponibilidade. E na Bula de promulgação do Jubileu em curso, a propósito da efeméride dos 1700 anos do primeiro concílio ecuménico, em Niceia, o Papa reforçara este desígnio. Em algumas ocasiões, em tom de gracejo, o Santo padre tem alertado para o escândalo, imaginando o diálogo de dois cristãos de diferentes Igrejas: «o meu Cristo já ressuscitou; quando ressuscita o teu?»
A disponibilidade para encontrar uma solução de unidade já tinha sido declarada da forma o mais solene possível pelo II Concílio do Vaticano, no Apêndice à Constituição sobre a Sagrada Liturgia, em 4 de dezembro de 1963: «O Sagrado Concílio não se opõe à fixação da festa da Páscoa num domingo certo do Calendário Gregoriano, desde que sejam da mesma opinião aqueles a quem interessa, sobretudo os irmãos separados da comunhão com a Sé Apostólica». Recordemos, a propósito, que desde o início do século XX se vêm desenvolvendo esforços, no âmbito ecuménico, para superar as divergências atuais.
Digamos que o problema da fixação da data da Páscoa vem do início da história da Igreja. O Evangelista São João situa a morte de Jesus na tarde do dia em que se imolavam no templo de Jerusalém os cordeiros para a ceia pascal judaica. Jesus é o verdadeiro cordeiro pascal, a quem nenhum osso foi quebrado, cujo sangue nos liberta de uma opressão bem mais radical do que a sofrida pelo povo de Israel no Egito. Segundo o calendário judaico, esse dia foi o 14º do mês de Nisan, o mês lunar com que começava o ano (março-abril). Consequentemente, ligados a essa tradição joanina, os cristãos da província romana da Ásia (na atual Turquia) celebravam a Páscoa do verdadeiro Cordeiro sempre no dia 14 desse mês (lua cheia), fosse qual fosse o dia da semana em que ocorresse. E passavam esse dia em jejum – mesmo num domingo! – que apenas cessava com a Eucaristia, o banquete pascal dos cristãos, nas horas da madrugada do dia 15. Eram os «quartodecimanos».
Os cristãos de outras regiões – Roma, Egito, Palestina… – tinham relutância em aceitar essa prática. Para eles, o domingo nunca podia ser dia de jejum nem a Páscoa, culminando na vitória de Cristo Ressuscitado sobre a morte, se poderia celebrar noutro dia da semana que não fosse o domingo. O historiador Eusébio de Cesareia (265-339) dá-nos conta dessas divergências. Já no séc. II, São Policarpo de Esmirna (69-155) e o Papa Santo Aniceto (154-166) não conseguem pôr-se de acordo sobre essa divergência, mantendo, contudo, a paz. A crise agudizou-se, depois, quase até à rotura. O Papa São Vítor (189-199), em confronto com Polícrates de Éfeso, chegou mesmo a ameaçar toda a província da Ásia com a excomunhão. Valeu então a mediação pacificadora de Santo Ireneu de Lião (130-202), com origens asiáticas, mas defensor da «páscoa dominical». Ireneu entendia que essa divergência, embora relevante, não era impedimento para a comunhão e a paz.
Gradualmente, a «páscoa dominical» foi-se generalizando, mas surgiu outra dificuldade: como determinar a lua cheia à qual se seguiria o domingo pascal dos cristãos? Os «protopasquitas» (Síria, confins orientais do Império Romano…) seguiam o calendário judaico, celebrando a Páscoa cristã em coincidência com a Páscoa judaica ou muito perto dela. Mas Alexandria (Egito), onde vigorava o calendário juliano, com fortes ligações a Roma, tinha as suas próprias competências astronómicas para a determinação da lua pascal. E nem sempre havia coincidência na data da Páscoa, sobretudo devido à inclusão periódica de um mês intercalar de 30 dias no calendário hebraico, para recuperar a diferença entre o ano lunar e o ano solar. Nesse calendário há «anos comuns» com apenas 353 dias em 12 meses e anos «longos» com 383 dias em 13 meses… Podia acontecer que durante o mesmo ano juliano houvesse duas páscoas no calendário hebraico e, consequentemente, também nas comunidades «protopasquitas». Essa divergência era preocupante e esteve na origem do decreto pascal do Concílio de Niceia.
Niceia e a data da Páscoa (2)
13 Fevereiro, 2025 Eclesial, Liturgia, Sociedade – Voz Portucalense
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
O grande promotor do Concílio de Niceia foi o imperador Constantino. Com o chamado édito de Milão (313), fora concedida aos cristãos liberdade de culto. Sucessivamente, Constantino eliminara o co-imperador concorrente, Licínio (324), e unificara o império romano sob a sua égide e com nova capital (Constantinopla, a nova Roma). Doravante, a grande preocupação política era a de preservar a unidade do império que, doravante, teria como cimento espiritual o cristianismo. Mas, no seio da própria Igreja havia múltiplas divisões, doutrinais e disciplinares. Pense-se no arianismo (e não só), então a alastrar, que punha em causa tanto a fé trinitária como a fé cristológica; no donatismo que contrapunha uma suposta igreja pura, de mártires e resistentes à perseguição (tão recente!), a uma igreja contaminada por «traidores» e coniventes com a apostasia; e multiplicavam-se questões disciplinares e de organização. Entre estas destacava-se a divergência entre as Igrejas quanto à data da celebração pascal.
Num período de intensa sinodalidade, Constantino convoca uma assembleia ecuménica, isto é, de bispos de toda a Igreja: e assim se reuniu em Niceia, no ano 325, o primeiro concílio «ecuménico». O fruto principal dos seus debates foi o símbolo da fé que, complementado em Constantinopla (381), se reza ainda hoje na Eucaristia dominical. Mas foi igualmente importante o seu decreto pascal, referido pelo próprio Constantino numa Carta às Igrejas: «Chegando à discussão sobre o dia santíssimo da Páscoa, decidiu-se, de comum acordo, que era bem que todos os cristãos de todas as regiões celebrassem a Páscoa no mesmo dia».
Foi adotada a regra já vigorava em Roma, Alexandria e na maioria das Igrejas: a Páscoa deveria ser celebrada unanimemente na mesma data: no domingo subsequente à primeira lua cheia do equinócio da Primavera que, nessa época, ocorria em 21 de março. São, pois, três as referências a coordenar: domingo, primavera e lua cheia. A celebração anual da Páscoa é um grande domingo, o principal de todo o ano, dia do Senhor porque dia da Eucaristia, Sacramento por excelência da Páscoa, experiência de ressurreição e encontro com o Ressuscitado. Esta festa da Ressurreição é a verdadeira Primavera do cosmos, vida que vence a morte, renovação de todas as coisas, maravilha de uma nova criação. E celebra-se quando a lua alcançou a sua plenitude, fazendo recuar a própria noite, como já se antecipava desde os tempos do êxodo da libertação do Egito na imolação do cordeiro cujo sangue prefigurava a eficácia redentora do Cordeiro de Deus que tira o pecado o mundo, vencendo toda a opressão.
A Páscoa da Igreja não é uma mera recordação aniversária do Calvário: é o grande Sacramento da Salvação e da Aliança. O domingo, o Sol da Primavera e a Lua no seu máximo esplendor entram na constituição do significante desse admirável Mistério ou Sacramento cujo significado e efeito é Salvação, Passagem da morte à vida. Sublinhe-se, portanto, que a celebração cristã da Páscoa, para além da sua dimensão histórico-salvífica (já presente na Páscoa judaica, memorial de um acontecimento histórico fundante da liberdade e identidade do Povo), tinha e tem uma dimensão antropológica e cósmica, que remontava a tradições pastoris (cordeiro) e agrárias (ázimos) originárias, jamais canceladas e sempre reassumidas na celebração anual judaica e cristã.
Para a determinação do dia dessa lua cheia da Primavera, da qual dependia a data da Páscoa cristã, as Igrejas deixam de depender do calendário hebraico. (Diga-se, entre parêntesis, que hoje nos parece quase chocante o anti-semitismo de Constantino, documentado na referida Carta às Igrejas). Habitualmente será Alexandria, em ligação com Roma, a fornecer essa informação. Embora a notícia do Decreto pascal refira que todos os orientais – até então em desacordo com a maioria – subscreveram a decisão, o Concílio de Niceia, cujas atas se perderam, não superou definitivamente as divergências que se mantiveram ao longo do séc. IV. Mas, doravante, foi essa a solução de unidade encontrada. Porque razão esta se veio a romper e deixou de ser habitual a celebração da Páscoa no mesmo dia por todos os cristãos? A resposta está ligada à necessidade de corrigir as deficiências do calendário juliano, assim chamado porque instaurado por Júlio César na sua qualidade de Pontifex Maximus da República Romana, no ano 46 a.C.
Data da Páscoa: reforma necessária (3)
19 fevereiro, 2025 Eclesial, Liturgia – Voz Portucalense
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
A reforma preconizada pelo Concílio de Niceia dependia do calendário juliano, em uso no Império Romano desde 46 a.C. E a sua concretização dependia ainda de «cômputos» complexos para determinar a data da ocorrência da lua cheia pascal (a que coincidia com o equinócio da Primavera, fixado então no dia 21 de março, ou imediatamente após).
Em relação à primeira dependência, não se levara em linha de conta a incorreção astronómica do calendário juliano que atribui ao ano solar a duração de 365 dias e 6 horas. Deste modo, os anos comuns têm 365 dias, sendo estabelecido em cada quatro anos um dia a mais, intercalado no 6º dia antes das calendas de março (24 de fevereiro). Da repetição desse dia deriva o nome de «bissexto» que se dá ao ano de 366 dias. Acontece, porém, que as «seis horas» eram um arredondamento que negligenciava, cerca de 11 minutos e 13-14 segundos. De facto, a duração do «ano trópico», medida no equinócio da Primavera, é de 365d, 5h, 48m, 46,98s. Os 11m e 13-14s que o calendário juliano conta a mais somam um dia de diferença em cada 128 anos. Consequentemente, o dia astronómico do início das estações foi-se lentamente atrasando no calendário. Beda (673-735), Roger Bacon (1220-1292), Dante Alighieri (1265-1321), e muitos outros deram-se conta desse desvio que se ia acentuando de século para século. No século XVI, o equinócio astronómico já ocorria a 11 de março, dez dias antes do artificial «equinócio eclesiástico» fixado no século IV em 21 de março… Por essa razão, também a data oficial da Páscoa se ia afastando da verdade cósmica, chegando, por vezes, a ocorrer já no mês de maio. A essa deficiência somava-se a imperfeição no cômputo eclesiástico relativo ao ciclo da lua pelo que, no século XVI, a fixação eclesiástica da lua nova e da lua cheia já se desviara mais de 4 dias em relação à verdade astronómica. Também, por esse motivo, a data da Páscoa por vezes tinha de transitar para o mês seguinte…
Era cada vez mais reclamada uma revisão do calendário. O Concílio de Constança (1414-1418) pôs seriamente a questão. Sisto IV, em 1476, propôs-se, em vão, rever o calendário recorrendo às maiores autoridades científicas da época. Outras tentativas foram feitas pelo V Concílio de Latrão (1516-1517) e pelo Papa Leão X (+1521). O próprio Nicolau Copérnico (1473-1543) se empenhou nessa questão. O Concílio de Trento debateu-se com o problema, mas transferiu para o Papa a responsabilidade de o solucionar, reforma que deveria acompanhar a revisão do Breviário e do Martirológio Romanos.
Coube ao papa Gregório XIII o ónus e o mérito da reforma do Calendário que, doravante, ostenta o seu nome. Soube rodear-se das competências científicas mais destacadas do seu tempo, tendo tido a ventura de se deparar com a proposta do astrónomo, matemático e médico Luigi Giglio e seu irmão António que, de forma simples, operava a correção do Calendário e prevenia futuros desvios. Nessa base procedeu a uma consulta alargada aos Estados e às Universidades, com resultados consensuais. Note-se que a grande motivação da reforma gregoriana do calendário foi a fidelidade aos critérios estabelecidos por Niceia para a data da celebração da Páscoa. A reforma foi promulgada em 24 de fevereiro de 1582, com a bula Inter Gravissimas.
Em que consistiu a reforma? Em primeiro lugar, para recolocar o equinócio no dia 21 de março (como na época do Concílio de Niceia), foi decidido retirar 10 dias ao calendário. Assim, onde a correção fosse imediatamente implementada (Estados Pontifícios e outros Estados Italianos, Espanha, Portugal e suas possessões, Polónia, Lituânia…) passar-se-ia diretamente do dia 4 ao dia 15 de outubro de 1582. E foi assim que, por surpreendente coincidência, Santa Teresa de Jesus (de Ávila) morreu em Alba de Tormes na noite de 4 para 15 de outubro! Para que, de futuro, não se viesse a repetir o problema, foi retocada a regra dos anos bissextos. Assim, os anos centenários deixariam de ser bissextos, a não ser que fossem múltiplos de 400. Desse modo, 1600 e 2000 foram anos bissextos, mas 1700, 1800 e 1900 não o foram pelo que a diferença entre os dois calendários é agora de 13 dias. Diga-se, a propósito, que a correção ainda não é perfeita, mas muito perto disso (subsiste uma diferença de 26 segundos que até ao ano 4909 completarão um dia de diferença!). Em relação ao cálculo da lua pascal também foram introduzidas correções no ciclo das epactas (os dias do mês lunar a 31 de dezembro do ano anterior), de modo a repor a verdade astronómica.
As virtudes da reforma foram-na impondo gradualmente e o calendário gregoriano foi adotado mesmo nos países de maioria não católica. Mas, como terá dito o protestante Kepler, há quem prefira estar em desacordo com o sol a concordar com o Papa… E é assim que, nos países em que predomina o cristianismo «ortodoxo», separado de Roma, apesar de vigorar o calendário gregoriano para efeitos civis, para efeitos litúrgicos conserva-se em uso o calendário juliano, não obstante as suas reconhecidas deficiências.
Páscoa: rumo a uma data comum? (4)
6 março, 2025 Diocese, Liturgia – Voz Portucalense
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
O papa Gregório XIII tinha tentado negociar um acordo sobre o calendário com Jeremias II, Patriarca de Constantinopla, argumentando com os decretos de Niceia e a necessidade de repor na sua verdade, como no séc. IV, a data do equinócio e do início das estações. Mas a proposta foi rejeitada por uma série de sínodos locais. Doravante, aplicando as mesmas regras a calendários diferentes, a data da Páscoa no Oriente Ortodoxo e no Ocidente cristão de tradição latina deixou de coincidir na maior parte dos anos. Em concreto, até ao ano 2100, a data da Páscoa só coincidirá 24 vezes (quando caia num domingo entre 4 e 25 de abril, subsequente à primeira lua cheia da primavera): 2025, 2028, 2031, 2034, 2037, 2038… Em 2024, a Páscoa ortodoxa ocorreu em 5 de maio: quarenta e seis dias após a data real do equinócio da primavera! E até ao ano 2100 (em que a divergência entre os dois calendários aumentará um dia), por mais 13 vezes a Páscoa ortodoxa ocorrerá no mês de maio (máximos: 7 de maio em 2051; 8 de maio em 2078…). Demasiado longe da data bíblica e nicena de uma solenidade primaveril!
Como é óbvio, muitos cristãos e hierarcas das Igrejas ortodoxas sentem como problema esse deslizar do calendário juliano em relação à verdade do início das estações. Tanto mais que, para efeitos civis, se generalizou a vigência do calendário gregoriano. Mas ainda não houve tempo nem caminho para na mente e nos corações dos membros dessas igrejas se superar o trauma da divisão que perdurou quase um milénio. O abraço de Paulo VI e Atenágoras, que em 7 de dezembro de 1965 suspenderam a excomunhão mútua que durava desde 1054, ainda não irmanou todos os seguidores das duas tradições cristãs. E se, na Igreja Católica, a decisão de um Papa pode dirimir a generalidade das questões, a estrutura sinodal das Igrejas Ortodoxas e a multiplicação de hierarquias paralelas de Igrejas «autocéfalas» não facilita a geração de consensos. A condição posta para qualquer eventual reforma nesta matéria (a aprovação por um concílio pan-ortodoxo) não parece viável no atual contexto. Há que ponderar o risco, não apenas hipotético, de qualquer reforma originar novas dissensões internas e cismas.
Registaram-se progressos no caminho ecuménico da aproximação das Igrejas tendo no horizonte o dia em que todos celebraremos na mesma data a solenidade mais importante da nossa fé. Entre a Igreja católica e as Igrejas e comunidades eclesiais “protestantes” não há dificuldades relevantes. Tem sido muito ventilada a hipótese de se celebrar a Páscoa sempre num domingo fixo de abril. A data mais consensual é a do segundo domingo, por ser o mais próximo do suposto aniversário da morte e ressurreição de Jesus (calculada em 7 de abril do ano 30). Apesar de esta possibilidade, preconizada por razões civis, políticas e económicas, abandonar um dos critérios de Niceia (o da lua cheia) e divergir também das raízes bíblicas veterotestamentárias da Páscoa, tanto o Conselho Mundial das Igrejas como a Igreja Católica já declararam estar recetivos a essa proposta desde que haja acordo entre todos aqueles a quem interessa. As dificuldades maiores, psicológicas e pastorais, vêm das Igrejas Ortodoxas.
Alguns passos têm sido dados. Nos anos 20 foi lançado o «calendário meleciano» (do nome do Patriarca de Constantinopla Melécio IV (1921-1923): as festas anuais fixas passaram a ser celebradas segundo o calendário gregoriano, mantendo-se o calendário juliano para a Páscoa e respetivo ciclo variável. Das várias iniciativas de diálogo e aproximação, merece destaque a declaração de Alepo (1997): “Towards a Common Date for Easter” – “Rumo a uma data comum para a Páscoa”. Na base da proposta concreta está a fé na ressurreição de Jesus Cristo como o artigo central da fé cristã em que todas as Igrejas convergem. Igualmente se pretende manter a regra do Concílio de Niceia: a Páscoa deve celebrar-se no primeiro domingo após a primeira lua-cheia da Primavera. Os cálculos astronómicos para a determinação desse dia devem ser independentes tanto do calendário juliano como do gregoriano, devendo aplicar-se os métodos científicos mais rigorosos tomando como ponto de referência o meridiano de Jerusalém. Esta declaração foi aprovada pela Comunhão Anglicana, pela Federação Luterana Mundial, por representantes oficiais da Igreja Católica e do Patriarcado ecuménico de Constantinopla. Mas as outras Igrejas ortodoxas não aderiram. Na verdade, esta iniciativa ecuménica, com a sua base científica autónoma, tem resultados muito próximos dos que dimanam do calendário gregoriano. E, quer no influente ambiente monástico do Monte Athos, quer em amplos setores do mundo eslavo, ainda não terá chegado o tempo para o que lhes parece ser uma cedência. Sobretudo, teme-se a consequência de novas fraturas e cismas.
Na proximidade da comemoração dos 1700 anos do Concílio de Niceia (325) têm-se intensificado os esforços de aproximação, nomeadamente pelo «Papa» copto-ortodoxo, Patriarca de Alexandria, Tawadros II e pelo Papa Francisco. Aguardemos pelos resultados.
Na atual situação da Rússia e de outras Igrejas ortodoxas do mundo greco-eslavo, atendendo ainda às dificuldades psicológicas e pastorais, não será fácil chegar a um acordo. De tal forma que até tem sido ventilada a possibilidade de, exclusivamente para a data da Páscoa e o ciclo do ano litúrgico dela dependente (Quaresma-Pentecostes) serem os ocidentais (católicos e protestantes) a prescindir do seu cômputo adotando a data resultante do desfasado calendário juliano. Seria o generalizar de uma prática já seguida em algumas regiões onde a Igreja católica é minoritária: abdicando do seu calendário, celebram a Páscoa no mesmo dia das Igrejas maioritárias da respetiva geografia. Será razoável uma tal proposta?
Data comum da Páscoa: balanço final (5)
14 março, 2025 Diocese, Liturgia – Voz Portucalense
Por Secretariado Diocesano da Liturgia
Recapitulando a exposição aqui feita, eis o quadro das possibilidades abertas:
- Aplicação generalizada a todas as Igrejas da reforma gregoriana, possivelmente aperfeiçoada: de muito difícil aceitação por parte da maioria das Igrejas ortodoxas.
- Proposta de um domingo fixo do mês de abril, preferentemente o segundo, por ser o mais próximo da data suposta da morte e ressurreição de Jesus Cristo (7 de abril do ano 30). Esta sugestão tem vantagens pragmáticas por trazer regularidade aos calendários escolares, sociais, económicos…. É uma hipótese viabilizada pela Igreja católica e muitas confissões cristãs do ocidente, na condição de ser também aceite pelas demais Igrejas cristãs. Mas tem sido liminarmenteexcluída pela maioria das Igrejas ortodoxas por se afastar dos critérios de Niceia numa das suas referências cósmicas essenciais: a lua cheia. A Páscoa não é um aniversário a mais, como acontece no calendário santoral fixo que recorda o dies natalis dos santos de que se faz memória. A Páscoa é um «mistério», um «sacramento» que tem na constituição do sinal sagrado (significante) referências cósmicas e histórico-salvíficas. Introduz no tempo dos homens uma novidade que quebra as rotinas e rompe até com a regularidade dos nossos calendários.
Esta proposta tem ainda o inconveniente de nos distanciar da tradição bíblica da Páscoa. Na época de Niceia, em que campeava o antissemitismo, pretendia desvincular-se a fixação da data pascal das autoridades religiosas do judaísmo. A divergência entre o calendário judaico e o juliano justificava a emancipação. As competências astronómicas de que o Patriarcado de Alexandria se podia assessorar dispensavam a anterior dependência. Mas a adoção da regra do plenilúnio significa que se deseja manter o enraizamento bíblico. Cristo morreu por ocasião de uma Páscoa judaica e, por isso, a solenidade da Páscoa do novo Cordeiro imolado e de pé mantém uma ligação umbilical com a Páscoa antiga. Os tempos atuais de diálogo inter-religioso, na sequência da declaração Nostra Aetate do II Concílio do Vaticano, parecem recomendar uma aproximação de preferência a um distanciamento.
- A proposta da Declaração de Alepo(1997), surgida em âmbito ecuménico: mantendo-se os critérios de Niceia, a fixação da data da Páscoa dependerá de cálculos científicos rigorosos para a determinação do equinócio e da coincidente ou subsequente lua cheia, medidos no meridiano de Jerusalém, a cidade onde Jesus Cristo por nós morreu e ressuscitou. Tenha-se em conta que nenhum dos dois calendários concorrentes (Juliano e Gregoriano) têm total rigor nesta matéria. Basta constatar que, no ano em curso, e até ao ano 2051, o equinócio da primavera será a 20 de março (e não 21, como no convencional equinócio eclesiástico; e no ano 2052 e 2056 será em 19 de março)… Em suma, a proposta de Alepo, sendo fiel aos critérios de Niceia, é “neutra” em relação às duas alternativas atuais. Talvez seja de procurar reunir o máximo de consenso possível em torno desta proposta e aguardar que, em anos futuros, tal consenso vá crescendo até se chegar um dia a uma relativa unanimidade.
- Por amor à unidade e até que se chegue a melhor consenso, a Igreja católica e demais Igrejas e comunidades cristãs não católicas do Ocidente poderão abdicar do calendário atualmente em uso para que todos passam a celebrar a Páscoa(e todo o ciclo litúrgico que da Páscoa depende, da Quaresma ao Pentecostes) segundo o calendário juliano. Tendo em conta as conhecidas imperfeições desse calendário, não parece que esta seja uma boa proposta. A senda da unidade deve convergir com a da verdade. Um eventual acordo no erro não se pode considerar avanço rumo à unidade ecuménica. Já parece mais aceitável que, para evitar ou atenuar o escândalo da divisão, as minorias se conformem ao calendário da maioria nas regiões onde coabitam cristãos de tradição diferente.
- Manter a situação atual. A história ensina que a diversidade de ritos é compatível com a unidade na fé e na caridade. É em prol desta que se deverá intensificar o diálogo ecuménico. O pormenor (ou «por-maior») da divergência na data da celebração pascal resolver-se-á depois. Uma carta de S.toIreneu de Lião ao Papa São Vítor refere um episódio significativo ocorrido em meados do séc. II: São Policarpo de Esmirna, herdeiro da tradição quartodecimana que remontava ao apóstolo São João, veio a Roma para debater esta divergência com o Papa S.to Aniceto que preconizava a Páscoa dominical, também em nome de uma tradição apostólica. Nem Policarpo convenceu Aniceto nem Aniceto convenceu Policarpo… Mas, mesmo assim, «Aniceto cedeu a Policarpo a honra de celebrar a Eucaristia na sua Igreja, separando-se em paz». Eram dois santos pastores da Igreja. A divergência incidia não só na data mas também no modo de celebrar a Páscoa e na sua compreensão: solenidade da imolação do definitivo Cordeiro pascal ou Festa da Ressurreição? Certamente que ambas as dimensões do mesmo mistério, embora com diversa acentuação. Mas tão sérias divergências não impediam a essencial comunhão na fé, na caridade e no vínculo sacramental da Eucaristia. Se esta comunhão essencial existir – e para ela se deve caminhar sem desfalecimento –, a divergência dos calendários será tolerável e, quiçá, superável.