A paz é muito mais do que a ausência de guerra. A palavra bíblica shalom indica uma condição de plenitude de vida que a violência destrói e aniquila pela raiz. Igualmente radical é a reflexão que o Papa Francisco nos oferece nestas páginas, nas quais defende a necessidade da fraternidade e denuncia o absurdo da guerra.
Páginas imbuídas da dor das vítimas na Ucrânia, dos rostos daqueles que sofreram no conflito no Iraque, dos eventos históricos de Hiroxima, e até da herança, infelizmente inédita, dos dois conflitos mundiais do século XX.
Francisco não poupa ninguém e menciona a ganância dos poderes nas relações internacionais dominadas pela força militar, na ostentação dos arsenais bélicos as motivações profundas daqueles que estão por trás dos conflitos que tingem o planeta de sangue.
Confrontos que semeiam a morte, a destruição e o rancor, que por sua vez provocam mais morte e mais destruição, numa espiral que apenas a conversão dos corações pode pôr fim.
Para conhecer o livro.
Contra a Guerra – a Coragem de construir a paz é o título do livro que nesta terça-feira, 5 de julho, será posto à venda, reunindo textos do Papa Francisco acerca das questões da guerra e da paz. O livro, editado pelas Publicações Dom Quixote, inclui uma introdução do próprio Papa, escrita expressamente para esta edição a 29 de março, um mês depois de iniciada a guerra da Rússia contra a Ucrânia.
A obra inclui também um posfácio de Andrea Tornielli, no qual este jornalista e responsável da comunicação do Vaticano faz um útil historial das intervenções dos papas no último século, acerca do tema.
Na introdução, o Papa sublinha várias das ideias que tem defendido ao longo dos anos e repete o apelo feito na encíclica Fratelli Tutti: a criação de um fundo mundial “destinado a eliminar finalmente a fome e a favorecer o desenvolvimento dos países mais pobres, usando “o dinheiro que se emprega em armas e noutras despesas militares”.
Introdução escrita pelo Papa Francisco especialmente para esta reunião de textos.
Há um ano, na minha peregrinação ao Iraque martirizado, pude tocar com a mão o desastre causado pela guerra, pela violência fratricida, pelo terrorismo, vi os escombros das casas e as feridas dos corações, mas também sementes de esperança de um renascimento. Nunca teria imaginado então assistir à eclosão um ano depois de um conflito na Europa.
Desde o princípio do meu serviço como bispo de Roma que tenho falado da Terceira Guerra Mundial, dizendo que já estamos a vivê-la, embora por enquanto em peças soltas. Essas peças têm-se tornado cada vez maiores, juntando-se umas às outras… Quantas guerras estão em curso neste momento no mundo, causando dores imensas, vítimas inocentes, especialmente crianças. Guerras que provocam a fuga de milhões de pessoas, obrigadas a deixarem a sua terra, as suas cidades destruídas para salvarem a vida. São as muitas guerras esquecidas, que, de quando em quando, reaparecem diante dos nossos olhos desatentos. Estas guerras pareciam-nos «distantes». Até que, agora, quase de improviso, a guerra estalou ao nosso lado. A Ucrânia foi agredida e invadida. E nesse conflito quantos civis inocentes são atingidos, quantas mulheres, quantas crianças, quantos velhos, obrigados a viver em refúgios escavados nas entranhas da Terra para fugirem às bombas, com famílias que se dividem porque os maridos, os pais, os avós ficam a combater, enquanto as mulheres, as mães e as avós procuram refúgio após longas viagens de esperança e atravessam a fronteira à procura de acolhimento junto de outros países que as recebem de bom coração.
Perante as imagens dilacerantes que vemos todos os dias, perante o clamor das crianças e das mulheres, não podemos senão gritar: «Parem!». A guerra não é solução, a guerra é uma loucura, a guerra é um monstro, a guerra é um cancro que se autoalimenta consumindo tudo! Além do mais, a guerra é um sacrilégio, que destrói o que há de mais precioso à face da nossa Terra, a vida humana, a inocência dos mais pequenos, a beleza da criação. Sim, a guerra é um sacrilégio! Não posso não recordar a súplica com a qual, em 1962, São João XXIII pediu aos poderosos do seu tempo que suspendessem uma escalada bélica que teria podido arrastar o mundo para o abismo do conflito nuclear. Não posso esquecer a força com a qual São Paulo VI, intervindo em 1965 na Assembleia Geral das Nações Unidas, disse: «A guerra nunca mais! A guerra nunca mais!» Ou ainda, os muitos apelos à paz de São João Paulo II, que, em 1991, definiu a guerra como «uma aventura sem regresso».
Aquela a que estamos a assistir é a enésima barbárie e nós, infelizmente, temos a memória curta. Sim, porque se tivéssemos memória, lembrar-nos-íamos do que nos contaram os nossos avós e os nossos pais, e dar-nos-íamos conta de que precisamos tanto de paz como os nossos pulmões precisam de oxigénio. A guerra perverte tudo, é pura loucura, o seu único fim é a destruição e esta desenvolve-se e cresce através da própria destruição e se tivéssemos memória, não gastaríamos dezenas, centenas de biliões em rearmamento, para nos dotarmos de armas cada vez mais sofisticadas, para fazer crescer o mercado e o tráfico de armamento que acaba por matar crianças, mulheres, velhos: 1981 biliões de dólares por ano, segundo as contas de um importante centro de estudos de Estocolmo. O que representa um dramático crescimento de 2,6 por cento em pleno segundo ano de pandemia, quando, pelo contrário, todos os nossos esforços deveriam ter-se concentrado na saúde global e em salvar do vírus vidas humanas. Se tivéssemos memória, saberíamos que a guerra, antes de chegar à frente de batalha, se para nos corações. O ódio, antes que seja tarde de mais, deve extirpar-se dos corações. E para o fazer, é preciso diálogo, negociações, ouvir, capacidade e criatividade diplomática, políticas de longo alcance capazes de construir um novo sistema de convivência que já não seja baseado nas armas, na potência das armas, na dissuasão. Todas as guerras representam não apenas uma derrota da política, mas também uma vergonhosa rendição perante as forças do mal.
Em novembro de 2019, em Hiroxima, cidade símbolo da Segunda Guerra Mundial cujos habitantes foram trucidados, juntamente com os de Nagasaki, por duas bombas atómicas, reiterei que o uso da energia atómica para fins militares é, hoje mais do que nunca, um crime, não só contra o homem e a sua dignidade, como contra qualquer possibilidade de futuro na nossa casa comum. O uso da energia nuclear para fins militares é imoral, como do mesmo modo é imoral a posse de armas atómicas.
Quem poderia imaginar que, menos de três anos depois, o espetro de uma guerra nuclear teria mostrado o seu rosto na Europa? Assim, passo a passo, caminhamos para a catástrofe. Pedaço a pedaço, o mundo arrisca-se a tornar-se teatro de uma única Terceira Guerra Mundial. Encaminhamo-nos para ela como se fosse inelutável.
Devemos, em vez disso, repetir com vigor: não, não é inelutável! Não, a guerra não é inelutável! Quando nos deixamos devorar pelo monstro que a guerra representa, quando permitimos a tal monstro levantar a cabeça e guiar os nossos atos, perdem todos, destruímos as criaturas de Deus, cometemos um sacrilégio e preparamos um futuro de morte para os nossos filhos e para os nossos netos.
A cupidez, a intolerância, a ambição de poder, a violência, são motivos que impelem a decisão bélica e estes motivos são muitas vezes justificados por uma ideologia bélica que esquece a incomensurável dignidade da vida humana, de qualquer vida humana, e o respeito e o cuidado que lhe devemos.
Perante as imagens de morte que nos chegam da Ucrânia, é difícil ter esperança. E, no entanto, há sinais de esperança. Há milhões de pessoas que não aspiram à guerra, que não justificam a guerra, mas pedem, sim, paz. Há milhões de jovens que nos pedem que façamos tudo, o possível e o impossível, para parar a guerra, para parar as guerras. É pensando antes de mais neles, nos jovens e nas crianças, que devemos repetir: guerra nunca mais. E empenharmo-nos juntos em construir um mundo que seja mais pacífico, porque mais justo, onde o que triunfe seja a paz, e não a loucura da guerra; a justiça, e não a injustiça da guerra; o perdão recíproco, e não o ódio que divide e que faz ver no outro, no que é diferente de nós, um inimigo. Tenho gosto de citar aqui um pastor de almas italiano, o venerável sacerdote Tonino Bello, bispo de Molfetta-Ruvo-Giovinazzo-Terlizzi, da Apúlia, incansável profeta de paz, que gostava de repetir: os conflitos e todas as guerras «encontram as suas raízes na dissolução dos rostos». Quando obnubilamos o rosto do outro, podemos então fazer crepitar o ruído das armas. Quando temos diante dos olhos o rosto, bem como a dor, do outro, deixa de nos ser permitido desfigurar a sua dignidade com a violência.
Na encíclica Fratelli tutti, propus que se usasse o dinheiro que se emprega em armas e noutras despesas militares para constituir um fundo mundial destinado a eliminar finalmente a fome e a favorecer o desenvolvimento dos países mais pobres, de modo que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganosas e não sejam obrigados a abandonar a sua terra em busca de uma vida mais digna.
Renovo esta proposta também hoje, sobretudo hoje. Porque a guerra deve cessar, porque as guerras devem cessar e só cessarão se nós deixarmos de as «alimentar».
Vaticano, 29 de março de 2022
ISBN 9789722075220
Edição/Reimpressão 07-2022
Editor: Dom Quixote
Idioma: Português
Dimensões: 137 x 211 x 13 mm
Encadernação: Capa mole
Páginas: 134
Preço: € 14.90