O Papa Francisco confessa-se (1)
Anselmo Borges – 07 novembro 2020 – Diário de Notícias
1.Francisco é o Papa que mais entrevistas deu. É claro que, ao conceder entrevistas a grandes meios de comunicação social mundiais, acaba por falar mais directa e espontaneamente de temas que nem sequer apareceriam se se mantivesse nos pronunciamentos formais de homilias e documentos oficiais. De facto, os jornalistas são curiosos e fazem perguntas que o grande público também gostaria de fazer.
Acaba de ser este o caso com uma longa entrevista dada ao director da agência italiana AdnKronos, Gian Marco Chiocci. Concedida na sequência e no contexto da destituição do cardeal Angelo Becciu, acusado de ter desviado fundos normalmente destinados aos pobres, para beneficiar a sua família, Francisco declara que a corrupção é “um mal antigo que se transmite e se transforma nos séculos”. Na Igreja, “a corrupção é uma história cíclica, repete-se, depois vem alguém que limpa e põe em ordem, mas depois recomeça-se, na expectativa que chegue outro para pôr fim a esta degeneração”. Numa Igreja para os pobres, mais missionária, não há lugar para quem enriquece e faz enriquecer o seu círculo, vestindo indignamente a batina. “A Igreja é e permanece forte, mas o tema da corrupção é um problema profundo, que se perde nos séculos. No início do meu pontificado fui ao encontro de Bento XVI. Ao passar-me a “pasta”, entregou-me uma caixa grande, dizendo: “Está tudo aí dentro, estão os procedimentos com as situações mais difíceis, eu cheguei até aqui, afastei estas pessoas, e agora… cabe a ti.” E eu não fiz mais do que recolher o testemunho do Papa Bento, continuei a sua obra.”
Neste contexto, e querendo desfazer dúvidas e insinuações, Francisco refere-se ao antecessor como “um pai e um irmão, escrevo-lhe por carta “filialmente e fraternalmente”. Vou ao seu encontro muitas vezes; se ultimamente o vejo menos é porque não quero cansá-lo. A relação é verdadeiramente boa, muito boa, concordamos sobre o que deve ser feito. Bento é um homem bom, é a santidade feita pessoa. Entre nós não há problemas, depois cada um pode dizer e pensar o que quiser. Pense nisto: até chegaram a dizer que tínhamos discutido, eu e Bento, sobre que túmulo cabia a mim e qual a ele.”
De volta à corrupção, refere o famoso bispo Santo Ambrósio: “A Igreja foi sempre uma casta meretrix, uma casta meretriz, uma pecadora. Melhor: uma parte dela, porque a grande maioria vai no sentido contrário, segue no caminho justo. Mas é inegável que personagens de vários géneros e importância, eclesiásticos e tantos leigos amigos fingidos da Igreja contribuíram para dissipar o património móvel e imóvel, não do Vaticano, mas dos fiéis.”
A situação quanto à opacidade da gestão das finanças do Vaticano, ao óbolo de São Pedro, à imprudência de certos investimentos, às actividades pouco caritativas de alguns pastores é mais grave do que suporia. Para “extirpar a erva daninha da corrupção não há estratégias particulares, o esquema é banal, simples, andar em frente e não parar, é preciso dar passos pequenos, mas concretos. Para chegar aos resultados de hoje partimos de uma reunião realizada há cinco anos sobre como actualizar o sistema judicial, depois com as primeiras investigações tive de remover posições e resistências, escavou-se nas finanças, tivemos novos directores no IOR (Instituto para as Obras de Religião, normalmente conhecido como Banco do Vaticano), numa palavra, tive de mudar muitas coisas, e muitas rapidamente vão mudar.”
E aparece a avó a dar bons conselhos: “Ela, que não era teóloga, dizia-nos sempre, quando éramos crianças: o diabo entra pelos bolsos. Tinha razão.”
E certamente não será inocentemente que Francisco venha lembrar a história da velhinha que encontrou numa imensa favela de Buenos Aires no dia em que João Paulo II morreu. Na missa, rezou pelo Papa defunto. “Terminada a celebração, aproximou-se uma mulher muito, muito pobre, queria saber como é que se elege o Papa, falei-lhe do fumo branco, dos cardeais, do conclave. Ela interrompeu-me e disse: ouça, Bergoglio, quando for Papa, lembre-se de que a primeira coisa que tem de fazer é comprar um cãozinho. Respondi-lhe que dificilmente seria eleito Papa, mas, mesmo assim, perguntei-lhe porque é que devia arranjar um cão. “Porque sempre que vá comer, respondeu, dê-lhe primeiro um bocadinho e, se ele continuar bem, então continue o senhor também a comer.”
O que é que levou Francisco a contar a história? É assim que está o Vaticano? Francisco imediatamente: “Tratava-se obviamente de um exagero. Mas exprimia a ideia que o Povo de Deus, os pobres entre os mais pobres no mundo, tinha da Casa do Senhor atravessada por feridas profundas, lutas intestinas, desfalques.” Terá sido só por simplicidade e porque gosta de estar com as pessoas que Francisco não quis ficar no Palácio Apostólico, preferindo vir para Santa Marta?
O Papa Francisco terá medo? A resposta desta vez é mais ponderada, confessa o jornalista, o silêncio parece nunca mais ter fim, parece que à espera de encontrar as palavras justas. “E porque havia de ter?”, pergunta. “Não temo consequências contra mim, não temo nada, ajo em nome e por conta de nosso Senhor. Sou um inconsciente? Falta-me um pouco de prudência? Não sei o que dizer, são o instinto e o Espírito Santo que me guiam, guia-me o amor do meu povo maravilhoso que segue Jesus Cristo. E depois rezo, rezo muito, todos nós neste momento tão difícil devemos rezar muito por tudo o que está a acontecer no mundo.”
O Papa Francisco confessa-se (2)
Anselmo Borges – 14 novembro 2020 – Diário de Notícias
Penso muitas vezes na solidão do Papa. Chega ao Vaticano, que não conhece por dentro, concretamente, a sua secular e gigantesca burocracia. Não tem mulher nem família com ele. E os amigos?! Sabe que os seus gestos, atitudes, discursos, homilias, tudo será escrutinado até ao mínimo pormenor. Vive e trabalha num palácio, os guardas fazem-lhe continência ao passar. Aquele palácio é testemunha de muitas histórias, ao longo do tempo, tantas vezes nada, mesmo nada, edificantes, pelo contrário, revelando o pior da natureza humana e do poder, sobretudo quando absoluto.
Dali também se transmitiu imensa esperança a milhões de pessoas em todo o mundo, e isso constitui mais uma preocupação: o que fizer vai influenciar um número incalculável de vidas. O Papa é um dos homens mais poderosos do mundo. No entanto, deve sentir-se tantas vezes só… Até sabe que, resignando, não é livre de escolher o lugar onde quer viver os últimos dias em tranquilidade. De facto, como ex-chefe de Estado, quem assume a responsabilidade da sua segurança?
Pensei nisso quando recentemente o ex-Papa Bento XVI esteve na Alemanha para se despedir do irmão em finais de vida e de como as ruas ficaram encerradas, com soldados a guardar os telhados. É sabido que Paulo VI pensou em resignar e não ficaria no Vaticano, mandou preparar quartos num convento… Francisco, quando resignar, não quereria ficar no Vaticano, complicando a vida do sucessor, mas…
O jornalista da Adnkronos também veio ao assunto. E Francisco, na sua sinceridade: “Se estou só? Pensei nisso. E cheguei à conclusão de que existem dois níveis de solidão. Alguém pode dizer: sinto-me só, porque quem devia colaborar não colabora, porque quem deveria sujar as mãos pelo próximo não o faz, porque não seguem a minha linha e por aí adiante, e esta é uma solidão digamos… funcional. Depois, há uma solidão substancial, que eu não sinto, porque encontrei tantíssima gente que corre riscos por mim, põe a sua vida em risco, que se bate com convicção, pois sabe que estamos no que está correcto e que o caminho empreendido, mesmo entre mil obstáculos e naturais resistências, é o correcto. Houve exemplos de maldades, de traições que ferem quem crê na Igreja. Essas pessoas não são certamente religiosas de clausura.”
Francisco não sabe se vencerá ou não a batalha. Mas com amorosa resolução diz-se seguro de uma coisa: “Sei que devo travá-la, fui chamado para a travar, depois será o Senhor a dizer se fiz bem ou se fiz mal. Sinceramente, não estou muito optimista [sorri], mas confio em Deus e nas pessoas fiéis a Deus. Lembro-me de que quando estava em Córdova rezava, confessava, escrevia; um dia vou à biblioteca procurar um livro e dou com seis ou sete volumes sobre a história dos Papas, e entre os meus antiquíssimos antecessores encontrei alguns exemplos não propriamente edificantes.”
Como reage às críticas que lhe chegam do interior da Igreja? E há tantas! Por causa das uniões civis dos homossexuais, da abertura à comunhão dos divorciados recasados, do acordo com a China… Francisco pensa durante uns segundos e responde: “Não diria a verdade e insultaria a sua inteligência se dissesse que elas te deixam bem. Não agradam a ninguém, especialmente quando são bofetadas na cara, quando fazem mal se são ditas de má-fé e com malvadez. Mas com a mesma convicção lhe digo que as críticas podem ser construtivas, e então assumo-as totalmente, porque a crítica leva-me a fazer um exame de consciência, a perguntar-me se errei, em quê e porquê errei, se fiz bem, se fiz mal, se podia fazer melhor. O Papa escuta todas as críticas e depois faz o discernimento, discernimento que é a linha condutora do meu percurso, sobre tudo, sobre todos. E aqui – continuou – seria importante uma comunicação honesta para descrever a verdade sobre o que está a acontecer no interior da Igreja. É verdade, portanto, que, se na crítica devo encontrar inspiração para fazer melhor, não me posso, por outro lado, deixar arrastar por tudo o que de pouco positivo escrevem sobre o Papa.”
O jornalista comenta que hoje o maior ataque dos inimigos figadais de Francisco é preparar um sucessor contrário. Eu, pessoalmente, penso que não é possível voltar atrás em relação a Francisco. Porque as pessoas gostaram do seu estilo, dos seus gestos, da sua proximidade às pessoas, da sua proximidade ao Evangelho… E que pensa Francisco sobre a sucessão? “Também eu penso naquele que virá depois de mim, sou o primeiro a falar disso. Recentemente, submeti-me a exames médicos de rotina. Os médicos disseram-me que um deles podia-se fazer a cada cinco anos ou anualmente; eles inclinavam-se para que fosse a cada cinco anos, eu disse: façamo-lo ano a ano, nunca se sabe.” Aqui, o jornalista observa: desta vez o sorriso foi mais generoso.
Seja como for, a pergunta é inevitável: e que futuro para a Igreja? Francisco conta uma história que lhe desagradou: “Soube de um bispo que afirmou que, com esta pandemia, as pessoas se “desabituaram” – foi esta a palavra – de ir à igreja, que não voltarão a ajoelhar-se diante de um crucifixo ou a receber a comunhão. Eu digo que se esta “gente”, como lhe chama o bispo, ia à igreja por hábito, então é melhor que fique em casa. É o Espírito Santo que chama a gente. Talvez após esta dura provação, com estas novas dificuldades, com o sofrimento que entra nas casas, os fiéis sejam mais verdadeiros, mais autênticos. Acredite em mim: vai ser assim.”