Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

20 abril 2024 – Diário de Notícias

Declaração sobre a dignidade humana. 1

No passado dia 8, o Vaticano publicou, com a aprovação do Papa Francisco, a Declaração Dignitas infinita (Dignidade infinita), um documento elaborado ao longo de 8 anos pelo Dicastério da Doutrina da Fé, presidido desde 2023 pelo teólogo argentino cardeal Victor Manuel Fernández. Nela, que lembra que este ano se celebram os 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde a palavra dignidade aparece cinco vezes e é declarada como “intrínseca a todos os membros da família humana” e que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, tudo gira, como diz o título – Dignidade infinita – à volta da dignidade humana, “uma questão central no pensamento cristão”, como sublinhou o prefeito do Dicastério. De facto, o que é o Evangelho senão uma notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai e Mãe, tendo todos os homens e mulheres a dignidade soberana de filhos de Deus?

Esta dignidade é “ontológica”, portanto, inerente ao ser humano de modo intrínseco e inalienável em qualquer circunstância, pertence-lhe pelo simples facto de existir. É concedida por Deus que, como diz o livro do Génesis, “criou o Homem à sua imagem e semelhança”, imagem indelével. “A Igreja, à luz da Revelação, reafirma e confirma absolutamente a dignidade ontológica da pessoa humana, criada à imagem e semelhança de Deus e salva em Jesus Cristo”, “dignidade inalienável que corresponde à natureza humana, para lá de qualquer mudança cultural”, “um dom recebido”, presente “numa criança não-nascida, numa pessoa inconsciente, num ancião em agonia”. “A Igreja proclama a igual dignidade de todos os seres humanos, independentemente da sua condição de vida ou das suas qualidades.” Jesus identificou-se com os últimos e ao ressuscitar revelou-nos que “o aspecto mais sublime da dignidade do Homem consiste na sua vocação à comunhão com Deus.”

Também pela razão o ser humano conclui pela sua dignidade inviolável: quando, por exemplo, reflecte sobre a liberdade – auto-possui-se, é senhor de si, um animal que tem linguagem (zôon lógon échon) e, por isso, animal político (zôon politikón), como bem viu Aristóteles: capaz de distinguir o bem e o mal, o conveniente e o inconveniente, o justo e o injusto, – e sobre si mesmo: auto-consciente, consciente de que é consciente, afirmando-se como um eu único e perguntando ao infinito pelo Infinito, Deus…

Mas, na Declaração insiste-se na fundamentação na fé. E só posso estar de acordo com o teólogo José L. González Faus, quando escreve que, embora melhorável – ao longo da exposição também levantarei interrogações a confirmá-lo -, o documento “constitui uma fundamentação de e um apelo a essa tarefa hoje tão urgente e comum a crentes e não-crentes: a fé na absoluta dignidade do ser humano e o imperativo categórico de trabalhar pelo respeito dessa dignidade como a tarefa mais importante no mundo de hoje”, contribuindo, assim, para “um mundo menos cruel e menos triste”.

Desgraçadamente, como sublinhou o cardeal prefeito do Dicastério, “a dignidade humana não é algo que a Igreja tenha reconhecido sempre com a mesma clareza: houve um crescimento na compreensão. Acrescenta-se, aprofunda-se a compreensão, notamos que no interior da própria Bíblia há uma explicação crescente.” E lembrou, como exemplo, que, se em 1452 o Papa Nicolau V numa carta aos reis de Portugal tinha justificado e até ordenado a escravatura – cito parte da Bula, que constitui, no meu entender, uma das maiores vergonhas da Igreja: “Nós… concedemos faculdade plena e livre para invadir, conquistar, combater, vencer e submeter quaisquer sarracenos e pagãos e outros inimigos de Cristo, em qualquer parte que estiverem, e os reinos, ducados principados, domínios, possessões… e reduzir a escravidão perpétua as pessoas dos mesmos…” -, Paulo III, em 1537, lançou a excomunhão sobre quem a defendia, pois tratava-se “de humanos”.

Para sublinhar que nunca se perde a dignidade intrínseca, o documento apresenta a dignidade segundo quatro dimensões: precisamente a dignidade ontológica; a dignidade moral, que se refere à liberdade e ao seu exercício; a dignidade social, que se refere às condições de vida; a dignidade existencial, em conexão com o modo como nos apercebemos da própria dignidade: “Hoje fala-se cada vez mais de uma vida ‘digna’ e de uma vida ‘indigna’; referimo-nos a situações propriamente existenciais, por exemplo, o caso de uma pessoa que, embora nada de essencial para viver lhe falte, tem, por diversas razões, dificuldades para viver na paz, na alegria e na esperança.”

Referindo-se a esta “distinção entre a dignidade ontológica que nunca se perde e outra social, moral e existencial que podem crescer ou diminuir com as circunstâncias da vida”, o cardeal esclarece: “Posso ter uma vida indigna, mas nunca perco a inalienável dignidade humana. Os outros podem fazer com que eu leve uma vida indigna, mas nunca me tiram a dignidade por ser humano: a dignidade é a mesma para alguém nascido na Itália ou na Etiópia, em Israel ou em Gaza. É exactamente a dignidade inalienável. Não há nenhuma circunstância que faça com que uma pessoa tenha menos valor, a sua dignidade permanece inviolável em qualquer contexto, situação, cultura.”

Este esclarecimento é importante, para não dizer decisivo, pois chave essencial de leitura da Declaração é ver a dignidade, sempre, “para lá de toda a circunstância”.

(Continua)

 

 

Anselmo Borges

Padre e professor de Filosofia

27 abril 2024 – Diário de Notícias

Declaração sobre a dignidade humana. 2

Como vimos, segundo Dignitas infinita (Dignidade infinita), Declaração aprovada pelo Papa Francisco, a dignidade humana é “ontológica”, inalienável.

Infelizmente, essa dignidade nem sempre é respeitada. E o documento dá exemplos de “violações graves”: “Tudo o que atenta contra a própria vida, como todo o tipo de homicídio, o genocídio, o aborto, a eutanásia e o próprio suicídio deliberado”, tudo o que atenta contra a integridade da pessoa, como as mutilações, as torturas infligidas ao corpo e ao espírito, as coações psicológicas, as condições de vida infra-humana, as detenções arbitrárias, a deportação, a escravatura, a prostituição, “as condições laborais ignominiosas, nas quais os trabalhadores são tratados como meros instrumentos de lucro, e não como pessoas livres e responsáveis.”, a pena de morte – aqui, não posso deixar de lamentar que até muito recentemente o Catecismo da Igreja Católica a defendeu.

O documento, embora reconhecendo que há uma aspiração crescente para erradicar o racismo, a marginalização das mulheres, a xenofobia…, quer concretizar as violações. Assim, em síntese e com algumas observações pessoais:

O drama da pobreza. É preciso reconhecer que se trata de “um dos fenómenos que mais contribuem para negar a dignidade de tantos seres humanos”, “constituindo mesmo uma das maiores injustiças do mundo contemporâneo”.

A guerra. Com a sua loucura de destruição e dor, a guerra “atenta contra a dignidade a curto e a longo prazo”. Ela é sempre uma “derrota da humanidade”. E cada vez mais nos apercebemos de que está em curso “a terceira guerra mundial em etapas” e que podemos pôr fim à sobrevivência da humanidade e da casa comum.

A emigração. Os emigrantes “estão entre as primeiras vítimas das múltiplas formas de pobreza”.

O tráfico de pessoas. “Uma vergonha para as nossas sociedades que se consideram civilizadas”, “um crime contra a Humanidade”, que desumaniza quem o leva a cabo.

Os abusos sexuais. É imperioso compreender que “todo o abuso sexual deixa profundas cicatrizes no coração de quem o sofre”, causa “sofrimentos que podem ficar para a vida inteira e aos quais nenhum arrependimento pode pôr remédio”.

Aqui, faço notar que só posso sintonizar com a medida de compensação financeira tomada pela Conferência Episcopal em relação a casos de pedofilia na Igreja.

A violência contra as mulheres. Desgraçadamente, trata-se de “um escândalo global”. Impõe-se acabar com a discriminação: “É urgente alcançar em todas as partes a efectiva igualdade dos direitos da pessoa”, incluindo a igualdade de salário para trabalho igual. Evidentemente, “nunca se condenará de forma suficiente o fenómeno do feminicídio”.

Aqui, tenho de perguntar: quando começará a Igreja a respeitar a igualdade de direitos da mulher no seu seio?

O aborto. Para a Igreja, “a dignidade de todo o ser humano tem um carácter intrínseco e vale desde o momento da sua concepção até à sua morte natural”. Lamenta a difusão de uma terminologia ambígua – para aborto, “interrupção da gravidez”, que “tende a esconder a sua verdadeira natureza e a atenuar a sua gravidade na opinião pública”.

Aqui, sublinho que há situações-limite e dramas brutais a não ignorar (em Portugal, o aborto é legal até às dez semanas), mas quero manifestar a minha oposição à inclusão do aborto como um direito na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.

A maternidade de substituição. “Ofende gravemente a dignidade da mulher e da criança, e baseia-se na exploração da situação de necessidade material da mãe. Um filho é sempre um dom e nunca objecto de um contrato.”

Pessoalmente, pergunto: que dizer na situação de uma mulher que quer muito ter um filho, não tem útero e uma familiar lhe empresta generosamente o seu?

Eutanásia e suicídio assistido. O documento sublinha a importância dos “cuidados paliativos apropriados e evitando qualquer encarniçamento terapêutico ou intervenção desproporcionada”, mas é claro: “Não há condições na ausência das quais a vida humana deixa de ser digna e possa, portanto, suprimir-se” e acrescenta: “Ajudar o suicida a tirar a vida é uma ofensa objectiva contra a dignidade da pessoa que o pede.”

Neste contexto, denuncia “o descarte das pessoas com deficiência”.

A violência digital. Sublinha os benefícios das tecnologias digitais, ao mesmo tempo que chama a atenção para os seus imensos perigos: risco de dependência, notícias falsas, atentados à boa reputação, o cyberbullying, difusão da pornografia, exploração para fins sexuais ou jogos de azar. O ambiente digital pode tornar-se “um território de solidão, manipulação, exploração e violência, chegando até ao caso extremo de dark web”.

Mudança de sexo. A Declaração pronuncia-se claramente contra a criminalização dos homossexuais: “Deve-se denunciar como contrário à dignidade humana o facto de, em certos lugares, muitas pessoas serem encarceradas, torturadas e mesmo privadas do bem da vida unicamente por causa da sua orientação sexual”, como acontece em África, por vezes com apoio dos bispos.

Quanto à mudança de sexo, é necessário estar atento ao texto. De facto, vê nela uma ameaça à dignidade humana, mas não sem sublinhar: “como regra geral”, deixando, portanto, espaço para casos particulares, o que, como nota o jornal La Croix, constitui “uma marca do Papa, que recebe regularmente grupos de pessoas transgénero.