A nossa forma errada de orar.
Artigo de Andrés Torres Queiruga
12 outubro 2023 – Humanistas Unisinos Instituto (IHU)
(Texto editado para português de Portugal)
“Costumam ser sérias, comprometidas, até mesmo belas. Lembro-me das orações nos funerais ingleses, com orações precisas em forma e tom. Também habitualmente nas orações do Papa. Em particular, chamaram a minha atenção as preces proclamadas na sua recente celebração em Marselha, após ter falado aos líderes religiosos”, escreve Andrés Torres Queiruga.
As nossas orações refletem e educam a imagem de Deus que carregamos e anunciamos ao mundo: lex orandi lex credendi, lex credendi lex orandi. Na cultura atual, inúmeras pessoas não foram educadas com as fórmulas tradicionais. Muitas crianças e muitos jovens nunca as ouviram. Hoje, quando são ouvidas, quando são lidas de forma literal, só são entendidas no seu significado objetivo, consultando o dicionário.
Penso nas grandes celebrações transmitidas pela televisão, que alcançam todo o mundo. Isso aconteceu, por exemplo, nos funerais da rainha Isabel na Inglaterra (não se trata apenas dos católicos, mas de todos os cristãos). Acontece nas grandes celebrações no Vaticano, até mesmo em visitas especialmente importantes do Papa Francisco.
Costumam ser sérias, comprometidas, até mesmo belas. Lembro-me das orações nos funerais ingleses, com orações precisas em forma e tom. Isso ocorre, habitualmente, nas orações do Papa. Chamaram particularmente a minha atenção, as preces proclamadas numa recente celebração em Marselha por ocasião da visita do Papa Francisco e logo após uma reunião com os líderes religiosos.
Como sempre, o discurso papal, cheio de espírito evangélico, demonstra uma generosa preocupação com os grandes problemas e as dolorosas necessidades da humanidade. As suas palavras são um chamamento ardente que desperta os corações e convoca à solidariedade. O Papa proclama-as diante do Deus dos profetas, que, em Seu nome, instaram a preocupação com o órfão, a viúva, o escravo e o estrangeiro. Faz tais proclamações em nome do Jesus, que testemunhou com a Sua vida e consagrou com a Sua morte a Sua dedicação total ao esforço de aliviar o sofrimento do mundo, deixando como Sua missão crucial a urgência de trabalhar em prol de todos os humilhados e ofendidos.
Feita a proclamação, quando os fiéis são convidados por vários participantes a verem-se como convocados em nome de Deus e a dirigirem-se a Ele, tudo se inverte. As palavras quebram a lógica íntima e a atitude de adoração e acolhimento da celebração. O esperado era que a comunidade fosse convidada a abrir-se ao chamamento divino, a deixar-se comover e fortalecer a fé e a confiança na Sua ajuda, a preparar-se para colaborar, na medida do possível, com a Sua obra salvadora.
Mas nesse momento a esperança dá uma guinada. Em vez de se abrir para Deus e tomar consciência da Sua mensagem, que nos convoca a colaborar em prol das necessidades humanas, as orações apelam a lembrá-Lo delas. Em vez de decidir ouvir o Seu chamamento, a abrir a nossa sensibilidade e tentar segui-Lo, a prece tenta convencê-Lo a Ele, para que ouça e decida ter piedade por nós.
Consequentemente, o que, seguindo o teor das palavras, deveria resultar numa saída da celebração com o ânimo despertado, com a confiança filial e a determinação de colaborar com Deus para aliviar o sofrimento que obscurece o mundo e aflige os seres humanos, os Seus filhos e os nossos irmãos, tudo deixamos para Ele, com palavras que buscam despertar Sua compaixão e mover Sua decisão. E, mesmo sem que percebamos, enviamos uma mensagem tranquilizadora ao nosso inconsciente pessoal que, contra a nossa própria intenção, desativa a nossa vontade e acalma a nossa inquietação.
E, no quadro do ambiente cultural em que nos inserimos, também, inadvertidamente, enviamos uma mensagem subliminar de que o Deus a quem suplicamos para eliminar os males é Ele o responsável ela sua existência e pela falta de resolução: o mal torna-se, assim, para muitos, a “rocha do ateísmo“. Ler na imprensa, especialmente as grandes catástrofes, deveria tornar-se uma sólida lição teológica. Mas…
Repito que tudo isto acontece sem que nos apercebamos e sem a intenção de fazê-lo. Porque de forma alguma se trata de julgar intenções ou ignorar a boa vontade real de quem ora assim: todos, e é claro que não me estou a excluir, já fizemos isso muitas vezes sem perceber a terrível contradição. Hoje, porém, o declínio da oração e o amplo tsunami da descrença que arrasa a fé nessa imagem de Deus, deve alertar-nos tanto para a sensibilidade dos crentes como também para a responsabilidade dos teólogos e até do magistério da igreja. Estamos diante de um desafio enorme, que, por essa mesma razão, é (será) uma grande oportunidade. Não é fácil aproveitá-la, pois trata-se de uma luta contra hábitos milenares e inércias profundamente incorporadas. Mas é urgente tomar consciência. Pelo menos, para decidir iniciar a mudança.
Pessoalmente, tenho-me esforçado há já algum tempo, para esclarecer teologicamente essa deficiência objetiva na nossa prática de oração. A necessidade de corrigi-la parece-me inegável. Até mesmo evidente. Por isso, com preocupação, quase mesmo como um apelo eclesial, vos convido a, em vez de nos envolvermos em discussões sutis, e de forma simples e fraternal, tomemos uma posição pessoal diante do problema. Proponho-vos que leiamos juntos, com essa intenção e esse espírito, o exemplo real da “oração dos fiéis” que foi feito na celebração mencionada em Marselha.
É um bom exemplo, porque está profundamente impregnado com as palavras do Papa Francisco sobre a tragédia das pessoas que morrem afogadas no Mediterrâneo, palavras que são profundas e emocionantes. As petições são excelentes na sua formulação e calorosas na sua comunhão com o sofrimento. E seria indigno abrigar qualquer dúvida sobre a generosa, sincera e evangélica intenção do ambiente. Mas esse mesmo ambiente ajuda a perceber com mais evidência o desajuste entre o que as orações dizem nas suas palavras e essa intenção. Não é essa a intenção que elas expressam no seu significado objetivo e, permitam-me usar uma palavra mais erudita, na sua terrível eficácia pragmática. Ou seja, no impacto que têm na consciência dos crentes e na perceção da imagem de Deus pelos não crentes. Leiam-nas com muita atenção:
- Hoje, milhões de pessoas, têm de percorrer as estradas e os mares do mundo devido à guerra, à pobreza e às perseguições políticas ou religiosas. Ó Deus, nós te suplicamos. (Todos repetiram o refrão). — Pai de todos os povos, ouve a nossa oração.
- Ilumina o caminho deles, guia-os incessantemente, para que ninguém se perca, para que encontrem portas e corações abertos para recebê-los, uma terra onde descansar, um futuro para eles e para os seus filhos. Ó Deus, nós te suplicamos. —Pai de todos os povos, ouve a nossa oração.
- Afasta deles a tentação da violência e do desespero, para que encontrem em Ti, Senhor, a fonte de esperança nas dificuldades que possam enfrentar. —Pai de todos os povos, ouve a nossa oração.
- Aos responsáveis pelo acolhimento, concede-lhes um coração humilde para que ouçam esses homens e essas mulheres exilados e aprendam a conhecê-los e a compreendê-los. Ó Deus, pedimos-Te isso. — Pai de todos os povos, ouve a nossa oração.
- Aos responsáveis por recebê-los, ensina-os a servir sem nunca julgar, faz deles instrumentos da Tua paz. Por eles, Senhor, nós te suplicamos. — Pai de todos os povos, ouve a nossa oração.
Valeria a pena revisitar toda a celebração para perceber o contraste que existe em toda a sua vivacidade. Permitam-me reforçar isso, lembrando as palavras em que todo esse duro desajuste se repete com terrível eficácia na maioria das nossas celebrações dominicais: “Senhor, ouve-nos e tem piedade“.
Enquanto o hábito e a repetição impedem que alguém perceba, geralmente não se dá atenção à enormidade teológica que é expressa dessa forma. No entanto, desde o momento em que alguém dá conta do que está a ser proclamado, não deveria ser difícil escapar ao desassombro. Repito: não me excluo desse fenómeno em que, sem perceber e com toda boa intenção, participei por muitos anos. Mas também confesso que, uma vez que agora percebo, o teor objetivo dessas palavras, causa-me uma sensação que não consigo evitar que soe como algo blasfemo.
Está em jogo a responsabilidade teológica e pastoral. E, acima de tudo, está o respeito adorador diante da grandeza divina e o temor de prejudicar a ternura infinita de Seu amor. O Sínodo, com a mobilização de todo o corpo da igreja, oferece-nos uma oportunidade propícia para semear a semente de um processo de atualização interna como comunidade de oração e externa como hospital de campanha. Se não temesse cair na tentação de ser excessivamente solene, terminaria dizendo, como confissão e quase como desculpa: “Eu disse e salvei minha alma”.