Normalidade, por Tolentino Mendonça

 José Tolentino de Mendonça – imissio – 17 maio 2020

O estado de exceção que estamos a viver faz-nos ansiar pela normalidade, absolutamente necessária para o relançamento da vida. Mas de que falamos quando falamos de normalidade? De um modo apressado, seríamos tentados a identificá-la com o regresso exato à vida que tínhamos anteriormente. A mesma vida, com a sua paisagem, os seus ritmos, rotinas, enquadramentos e motivações. Essa é uma ideia que nos devolve segurança: pensar que estes tempos estranhos assim como chegaram vão partir, como se de uma anomalia de circunstância se tratassem, e que nós e o mundo nos reencontraremos na mesma posição de há uns meses. Em grande medida será assim. Mas também é verdade que não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes. Mesmo tornando ao quadro habitual da nossa vida, é importante que nos perguntemos “o que é que no mundo e em nós se modificou” e “o que é que aprendemos com isso”. Não desperdicemos, portanto, a oportunidade que representa, pelo menos, fazer-se perguntas. Isso o escritor João Guimarães Rosa sublinhava: “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”

A normalidade não é um conhecido lugar a que se volta, mas uma construção onde somos chamados a empenhar-nos

 Nem tudo permanece o mesmo quanto à nossa perceção do mundo e à garantia dos nossos estilos de vida. Globalizámos a economia e a comunicação sem prestar atenção às forças e às fraquezas do globo terrestre, descurando assim equilíbrios que precisamos de salvaguardar. Acostumámo-nos a uma visão utilitarista da realidade, pensada como um mecanismo que nunca dorme, assegurado a 100% para uma produção e um consumo ilimitados. Queremos sempre mais, sempre mais depressa, sem aceitar falhas. Vivemos acima das nossas posses como se os recursos — a começar por aqueles naturais — fossem inesgotáveis. Pensámos o espaço físico como um vasto open spaceonde tudo pode acontecer de forma contígua. Ora, a pandemia devolve-nos a consciência do limite, ao mesmo tempo que nos obriga a refletir sobre as formas de habitar o mundo a que podemos voltar e aquelas modalidades que teremos de superar. A presente pandemia começou por ser enfrentada como um assunto sanitário, mas evidentemente reclama que a interpretemos de um ponto de vista mais alargado, como uma encruzilhada civilizacional.

A normalidade não é um conhecido lugar a que se volta, mas uma construção onde somos chamados a empenhar-nos. Teremos certamente para lá chegar de reaprender a conjugar transformação e preservação. Porque este momento, a par da criatividade, também nos pede uma capacidade de perseverar, lutando para que o nosso património humano mais fundamental não seja omitido, porque somos seres de relação e não podemos viver sem comunidades. Uma das mais belas imagens destes dias é a de um avô de Michigan, nos Estados Unidos, que caminhou quilómetros a pé para ver, através da janela, uma neta que acabara de nascer. Na fotografia que circulou internacionalmente, está de um lado o jovem pai com a criança ao colo, e, do outro lado da vidraça, o sorriso indestrutível de um homem avançado em anos que, naquele momento, se sentirá a criatura mais feliz sobre a terra. A nova distância interpessoal não se pode tornar simplesmente um condicionamento (psicológico e social) que nos condene à solidão. A pandemia tem forçado a muitos “lutos relacionais”: desde a suspensão das práticas comunitárias ao reforçado isolamento dos idosos; desde a abolição do simples aperto de mão à situação daqueles pais que, reentrando em casa vindos do trabalho, hesitam em abraçar os próprios filhos. Mas é verdade também que se têm encontrado formas de comunicação e de presença que, não sendo substitutivas das anteriores, têm garantido o exercício comum da nossa humanidade. Este, a pandemia não deve poder suprimir.


Karol Wojtyla, por Tolentino Mendonça

José Tolentino de Mendonça – imissio – 24 maio 2020  

Há cem anos, a 18 de maio de 1920, nascia Karol Wojtyla. Com o nome de João Paulo II, ele viria a guiar a Igreja Católica ao longo de mais de duas décadas e meia (de 1978 a 2005), num pontificado a diversos títulos marcante. As primeiríssimas palavras que proferiu após a eleição, “Não tenhais medo. Abri, ou melhor, escancarai as portas a Cristo”, constituem o seu programa. Na proposta, que implementou com admirável energia e clareza, Jesus deveria entrar em todas as dimensões da vida humana, para animá-la e fortalecê-la. É isso que deixa expresso na primeira das 14 encíclicas que marcarão doutrinalmente o exercício do seu papado: “A tarefa fundamental da Igreja de todos os tempos e, de modo particular, do nosso, é a de dirigir o olhar do homem e de endereçar a consciência e experiência de toda a humanidade para o mistério de Cristo… Simultaneamente, toca-se também a esfera mais profunda do homem, a esfera — queremos dizer — dos corações humanos, das consciências humanas e das vicissitudes humanas” (“Redemptor Hominis”, 10). Wojtyla soube ser assim mestre da fé e mestre da humanidade.

Foi o primeiro Papa não italiano desde o século XVI e também o primeiro eslavo na história da Igreja a ocupar o sólio de Pedro, facto cheio de significado, pois representou uma abertura — e não só simbólica — ao oriente. Muitas vezes João Paulo II se referiu aos “dois pulmões”, ocidental e oriental, que fazem respirar o catolicismo, mas que redimensionam igualmente a visão tradicional da Europa, interpretada por ele como uma realidade que parte do Atlântico até aos Urais. Não admira que a grande viragem de 1989 tenha tido nele um dos seus protagonistas centrais. Na verdade, ele compreendeu, muito antes de outros, que a época do mundo dividido em blocos estava a terminar. O processo de interconexão a nível mundial pedia novas formas de pensamento e de presença. À globalização do mundo deveria corresponder, por exemplo, um estilo de papado global. E João Paulo II, não se poupou. O número de quilómetros que percorreu de avião é eloquente, 1.163.885, correspondente a 104 viagens apostólicas e 129 países visitados.

Um dos tópicos fortes do seu pontificado foi exatamente o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Será o primeiro Papa a visitar uma sinagoga e uma mesquita

Ele trabalhará intensamente para reabilitar o papel da religião num mundo secularizado. Um dos tópicos fortes do seu pontificado foi exatamente o ecumenismo e o diálogo inter-religioso. Será o primeiro Papa a visitar uma sinagoga (Roma, 1986) e uma mesquita (Damasco, 2001). Empenhou-se pessoalmente no Encontro de Assis, que reuniu os principais representantes religiosos de todas as tradições. Insistiu na associação entre prática religiosa e cultura da paz, afirmando que é uma blasfémia legitimar a guerra em nome de Deus.

Mas para João Paulo II era também claro que as próprias religiões precisam de reganhar uma credibilidade espiritual. Por isso, permite-se repensar criticamente o passado da Igreja e, num exercício de purificação da memória, pedir perdão pelo recurso histórico à violência. Na sua entourage alguns temem que este processo enfraqueça a instituição eclesial. Mas Wojtyla avança. A sua capacidade mobilizadora é irradiante. No célebre discurso feito nas Jornadas Mundiais da Juventude, em Compostela, ele diz aos milhares de jovens que o escutam: “Chegou a hora de empreender uma nova evangelização e vós não podeis faltar a esta chamada urgente”. Esta categoria da “nova evangelização” surge do seu diagnóstico de que atualmente “a fé cristã, mesmo sobrevivendo em algumas manifestações tradicionais e ritualistas, tende a desaparecer nos momentos mais significativos da existência” (“Christifideles laici”, n. 34). Por isso, João Paulo II a assumirá como desafio central do seu pontificado.


A solidão não se mede aos palmos, por Tolentino Mendonça

José Tolentino de Mendonça – imissio – 15 junho 2020

Por vezes, dentro de uma casa, a solidão mais invisível é a dos jovens. A solidão não se mede aos palmos — isto deve ser explicado a quem pensa que ela está confinada ao mundo dos adultos. É certo que, a partir de certa idade, e de uma sucessão de acontecimentos desamparados com os quais se colide, surge esse coágulo da alma, que luta para se tornar fixo. Não admira que os adultos farejem mais recorrentemente a solidão uns nos outros, lhe reconheçam os códigos, despistem os seus ziguezagues… Mas, por serem adultos, podem também fazer uso de mais recursos internos, de forças que possuam já ou que procurem, para fazer-lhe frente. A vulnerabilidade dos (mais) velhos é ainda outro discurso, porque aí a solidão, não raro, é um eufemismo para ocultar a palavra abandono. E, sobre isso, as nossas sociedades precisariam de refletir melhor. Mas a solidão dos (mais) novos é, porventura, aquela mais submersa, mais enigmática e confusa para os próprios sujeitos, aquela sobre a qual falamos menos. Possivelmente só daqui a muitos anos, por exemplo, vamos perceber como é que a geração das crianças e adolescentes de hoje viveu esta experiência da pandemia, que medos e incertezas se alojaram neles pela primeira vez ou que perguntas sem resposta se fizeram. Só mais adiante compreenderemos o que representou para eles o fecho abrupto das escolas, a distância dos amigos e coetâneos ou este regresso a uma intensidade da família nuclear, que antes talvez não haviam tido. Contou-me uma amiga que um dos filhos à mesa, tentando interpretar a situação extraordinária que a família está a viver, disse: “Acho que estamos aqui a construir memórias.” Todos olharam para ele, espantados com a grandeza inesperada da definição na boca de um fedelho, mas seguramente aquelas palavras corresponderam dentro dele a emoções, a um esforço concreto de aproximação a uma realidade complexa, a um apaziguamento que encontrou quando foi capaz de justificar a estranheza com uma missão que unia — e unirá depois ainda — toda a sua família, pois as memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro.

Nós adultos esquecemo-nos depressa de como as vidas são fragilmente construídas sobre certezas cuja evidência depende da confiança, e que esta é um tão longo e feliz e sofrido caminho

Muitas vezes, quem os vê armados de tecnologia, estirados pela casa, aparentemente fechados nos seus interesses, com a cabeça noutro lado, a responder com monossílabos a frases inteiras não imagina que esse é o modo possível de se protegerem de um mundo que sentem em derrapagem. Que quando vagueiam numa passividade onde só vemos desnorte e indolência eles estejam engolidos, com uma dolorosa reverberação que não captamos, pelo indizível espavento de se terem olhado ao espelho, e de se interrogarem como serão ao acordar no dia seguinte, e no mês seguinte. E que quando parecem implicativos e agressivos estão, a bem dizer, apenas assustados. Nós adultos esquecemo-nos depressa de como as vidas são fragilmente construídas sobre certezas cuja evidência depende da confiança, e que esta é um tão longo e feliz e sofrido caminho.

Ganharíamos tanto se em vez da pressa dos juízos nos déssemos ao trabalho de sintonizar com a solidão dos outros, aprendendo assim a reconciliar-nos com a nossa. A solidão é uma das primeiríssimas experiências de humanidade que fizemos. Lembro aquilo que escreveu a pedopsiquiatra Françoise Dolto: “A solidão dos bebés existe. Eles têm necessidade de que lhes falem, de que lhes cantem, mesmo se ao longe. Ouvem uma voz, não estão completamente sozinhos. O ser humano precisa de companhia. O espaço de um ser humano, desde o nascimento, precisa de ser povoado pela presença psíquica de outro ser para o qual ele existe.”