Entrevista da Teóloga Cristina Inogés Sanz
Teóloga do Sínodo católico fala ao 7M
Cristina Inogés Sanz:
É preciso ser criativo para alargar o lugar da mulher na Igreja
António Marujo | 11 Fev 2023 – 7MARGENS
“O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos” como foram os primeiros cristãos na adaptação que fizeram do credo, para serem ouvidos pelos gregos e romanos. A ideia é de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do sínodo da Igreja Católica, que está a decorrer até 2024. “E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real”, defende, nesta entrevista ao 7MARGENS.
De passagem por Portugal, Cristina Inogés Sanz, conhecida de quem lê este jornal também pelas crónicas da sua autoria que publicamos regularmente, participou como convidada, em Novembro, no Congresso sobre os seminários católicos, em Braga.
Formada na Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a revista espanhola Vida Nueva, além de autora de vários livros, que inclui os recentes Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas, e La Sinfonía Femenina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação do monge místico do século XX com as mulheres.
Nesta entrevista, cuja segunda parte será publicada neste sábado, 11, Cristina Inogés defende que os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Os abusos sexuais, a relação de Merton com as mulheres e o futuro próximo do Papa Francisco e do Sínodo são os temas da segunda parte da conversa. Nesta primeira, a teóloga fala também da intervenção política dos cristãos, da questão LGBTI e do lugar das mulheres. E, sobre este último tema e apesar de gostar muito do Papa, diz que lhe diria algumas coisas, se tivesse oportunidade.
7MARGENS – Escrevia numa crónica sobre o Sínodo católico que estamos num momento em que as mudanças se podem tornar evidentes. Que mudanças?
CRISTINA INOGÉS SANZ – O laicado tomou consciência de que há um antes e um depois deste sínodo, seja ele mais lento ou mais rápido, tomou consciência de que sabe pensar, tem voz para expressar o pensamento e o que diz é importante.
Isso já é uma grande mudança e um grande avanço. A palavra única do laicado era “ámen”. Ao que vinha de cima, o laicado dizia “ámen”, era a sua única forma de expressão.
7M – Mesmo se falamos 60 anos depois do Concílio Vaticano II…
Sim, inclusive agora a sua palavra é “ámen”. É verdade que sobretudo a fase diocesana do Sínodo [da Igreja Católica] criou essa consciência de que sabemos pensar, sabemos expressar o pensamento e que o que dizemos é importante.
Estamos conscientes de que em Outubro de 2024 não teremos uma Igreja sinodal, isso é impossível. Mas já teremos um pouco a consciência de que isso se poderá alcançar e de que há um antes e um depois deste Sínodo, isso é uma grande evidência.
7M – Será essa a evidência destas mudanças?
De momento, sim. Quem tenha lido o documento da fase continental, verá que saltaram as mesmas questões em todo o mundo; questões que muitas vezes pensamos que são de índole cultural, de uma parte do mundo, porque temos uma forma de vida determinada; mas de facto destacaram-se em todo o mundo. Isso realmente é um primeiro indício de que o Espírito voa com liberdade e que essa liberdade se manifesta numa ampla base do povo de Deus. Se o povo de Deus somos todos, há uma base ampla que é o laicado e que descobriu que as coisas importantes que tem para dizer coincidem em todo o mundo. Ou seja, há uma forma de pensamento que necessita de mudar – sem se impor – e expressar-se dessa maneira.
7M – Falamos de questões como o papel dos leigos, o papel da mulher na Igreja…
O lugar da mulher…
7M – Registo a correcção. Falamos ainda das questões morais, da administração económica, das questões LGBT, dos abusos sexuais… A partir deste quadro, como olha para o momento presente da Igreja?
O meu olhar parte de uma Europa que viveu o que viveu, vive o que vive e agora está a pagar as consequências de uma forma de vida muito concreta. Mas o curioso é que as mesmas inquietudes vêm de todo o mundo, o que nos deve levar a pensar que para lá de uma visão europeia, ocidental, há, no interior das pessoas, uma reflexão que leva a ver que as coisas não são o que têm de ser.
Essas reflexões plasmaram-se em todos os pontos falados. É muito interessante que num lugar de África, como o Lesoto, tenha aparecido como um clamor, dentro da própria Igreja, [a pergunta]: o que fazemos com as pessoas LGBTI, que de repente se manifestaram enquanto tal na nossa comunidade e que não sabemos como acolhê-las? Isso mostra que há um grau de reflexão, que não há uma recusa frontal porque se reconhece que não se sabe como acolher essas pessoas; portanto, pede-se ajuda sobre o que fazer com essas pessoas, que não se quer que se vão embora e que não querem abandonar a comunidade.
7M – De que modo isso a surpreendeu?
Isto pode levar-nos a reflectir porque não fizemos, por exemplo na Europa, esta reflexão. Continuamos a colocar palas perante a realidade LGBTI, [não conseguindo] que [essas pessoas] tenham uma vida normal na Igreja, como qualquer outra. Parece que as questões LGBTI são apenas relativas aos leigos, mas há pessoas LGBTI na vida religiosa, na vida sacerdotal, entre os cardeais, terá havido entre os papas mesmo que não nos tenhamos sabido, e terá havido santos, que não sabemos que eram LGBTI. Mas é uma realidade que está aí.
Só a forma como no Lesoto se colocou a questão, sem qualquer recusa, desafia-nos a nós, que cremos que conquistámos tudo o que era conquistável como direito. Na verdade, sofremos um retrocesso, porque há muita homofobia, muito latente, sobretudo na Igreja. Alguém [que queira ser] padre porque se confessa homossexual, tem uma de duas hipóteses: se confessa, é mandado embora; se mente, vai viver toda a sua vida reprimido e com medo de que alguém descubra e o possa chantagear. Isso já não se deveria admitir hoje.
7M – Algum tema mais?…
Claro: há ainda a transparência em todas as questões económicas ou a realidade da mulher na Igreja – somos 80 por cento da Igreja neste momento, de uma Igreja que não nos aceita plenamente. Mesmo em culturas em que a submissão da mulher não se questiona por ser algo tão cultural que nem se põe em causa, também apareceu o tema.
Essa realidade está aí e há que afrontá-la, simplesmente. O facto de se terem equacionado estas questões a nível mundial abre uma possibilidade de que tal realidade exista e não se possa ocultar nem negar. Já é muito importante reconhecer e falar sobre isso.
7M – Em várias sínteses, referia-se a gestão económica, dizendo que os leigos têm mais vocação para a fazer. A partir do documento da fase continental ou de outras sínteses que conhece, como olhar para o lugar dos leigos: ele não existe, apesar da doutrina do Concílio Vaticano II?
O facto de os leigos não encontrarem o seu lugar é porque não os deixam encontrar o seu lugar. É uma evidência que o clero não se prepara para a realidade da gestão económica, para viver tudo o que implica a responsabilidade de gerir os bens da paróquia, porque nem tudo é viver dos sacramentos e com os sacramentos; se não se conta com os leigos e se em muitas paróquias, por exemplo, não há um conselho económico, isso é uma das formas mais primárias e evidentes de abuso de poder. Onde acontece não haver controlo, pode suceder tudo.
Mas deve considerar-se, além disso, que o laicado tem um sacerdócio baptismal com o qual há que contar. E disso não se fala. Estamos pensando que soluções podemos procurar porque há falta de vocações e, [quando] chega a semana do seminário ou coisas do género, parece que os leigos só servimos para dar dinheiro. Em vez de fazer novenas para pedir vocações, vamos fazer novenas para ver o que nos diz o Espírito com a falta de vocações.
7M – E que diz?…
Temos sempre a mentalidade de vir o Espírito resolver-nos o problema. Não: o Espírito está a dar-nos muitas pistas sobre o que se passa. Vamos ver o que podemos fazer com a falta de vocações, que nos está a dizer, porventura, que repensemos a estrutura eclesial – digo eclesial, não eclesiástica, é preciso dar a volta completa – no sentido do sacerdócio baptismal, que pode ser vivido pelo conjunto do laicado, homens e mulheres. Mas há que lhes dar o seu espaço, uma formação adequada – que não tem de ser uma formação igual à do clero, porque então geraríamos muitíssimos mais problemas – e, sobretudo, fazer entender que o compromisso de fé de um leigo não está ligado à agenda do pároco, nem tem de passar pela paróquia. Tem de passar pelo compromisso de fé no mundo.
Neste momento, há muitíssimos cristãos com um compromisso sólido com a questão social e com a questão política, que estão fazendo um grande trabalho fora da estrutura eclesial. Sempre pensámos que colaborar com a Igreja era ser catequista, dedicar tempo à paróquia. Não, é colaborar com o Evangelho, primeiro.
7M – Mas tão pouco se debate, no interior da comunidade cristã, esse compromisso na política, nos sindicatos, nas associações…
Sim. Tenho alguns amigos – uns mais próximos, outros menos – num amplo espectro da política, não só na grande política de partidos, mas também em associações de vizinhos (que não deixam de ser política). É curioso que todos os que são crentes coincidem no mesmo: a Igreja anima muito a que nos comprometamos, que estejamos presentes. Mas quanto se dá esse passo e se entra na política, a comunidade desaparece. Porque não quer comprometer-se em apoiar, no caso de se passar algo. Que vínculo existe se não há apoio da comunidade?
7M – No Novo Testamento, São Paulo cita várias mulheres que deixara como líderes de comunidades. Devemos começar por ir às fontes, e à Bíblia em concreto, para buscar uma inspiração, para encontrar um lugar para as mulheres na Igreja?
As cartas de Paulo colocam-nos perante os problemas experimentados pelas comunidades, todos eles diferentes. Em Paulo há um paradoxo importante: ele refere claramente algumas mulheres que acolhiam nas suas casas, e que portanto eram líderes das comunidades que acolhiam. Mas ele apaga de cena uma personagem vital no Evangelho, à qual Jesus Cristo, real e directamente a ela, lhe concede o sacerdócio supremo, que é o anúncio da ressurreição: Maria Madalena.
Que ele nunca tinha ouvido falar de Maria Madalena é muito difícil de acreditar, porque deve ter sido um acontecimento tão importante que seria recordado durante muito tempo.
7M – Mas as fontes são importantes?…
As fontes bíblicas são apenas isso, uma fonte. O que tememos é, desde a fonte, situar hoje o cristianismo.
Estamos no século XXI, não somos os primeiros. Muitas realidades mudaram, mas nós temos medo. Agarramo-nos à religião, à norma, não à crença.
Deveríamos ser mais criativos porque a criatividade pastoral é um grande aliado. Porque é que temos duas versões do credo? Quando o cristianismo e a Igreja quiseram expandir-se, tiveram de passar pela Grécia e Roma e não negaram o que veio antes, mas adaptaram uma versão para que gregos e romanos a pudessem compreender. E o credo “longo” apareceu. Tratava-se de uma questão de adaptação à realidade.
O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos como eles foram na adaptação do credo. E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real.
7M – Que síntese podemos então fazer, entre a inspiração bíblica e a actualidade sinodal?
A Igreja nasce laical e sinodal. A dimensão sinodal durou mais tempo, mas a laical perdeu-se muito cedo. E porque falo de “lugar”? Se falamos de “papel”, ele é outorgado sempre por alguém que crê poder ter poder sobre outrem, que se atribui esse poder. Neste caso, é o clero.
O lugar é dado pelo baptismo. Negar o lugar a uma pessoa baptizada é manipular a realidade da comunidade e privar a comunidade do amor, do contributo, da reflexão, ajuda, conselho dessa pessoa.
Através dos séculos e neste momento, as mulheres – apesar das diferenças que permanecem – já temos um estatuto bastante igual, mas na Igreja continuamos na Idade Média. E oxalá vivêssemos, as mulheres, na Idade Média, em que as mulheres eram muito mais livres na Igreja que neste momento, para poder trabalhar e colaborar nas tarefas de evangelização.
7M – Mas quando se fala deste tema, muitos dizem que essa é a tradição e que Jesus não teve mulheres como apóstolas. Como levar as pessoas a perceber, com o exemplo de Maria Madalena e das mulheres referidas por Paulo, que esse lugar vem desde o início e desde Jesus?
Há uma personagem, que é curioso como é “esquecida”: é a samaritana que se encontra com Jesus. Muitas vezes ficamos pelos maridos que ela tinha tido, isso é o que convém. Na segunda parte do encontro, Jesus diz-lhe para ir e contar [o que ouviu] à sua aldeia. Ela podia ter chegado ao seu povo e ter contado, fazendo-se ela o centro. Mas não, ela conta às pessoas o que Jesus lhe disse, retira-se do centro, dizendo aos outros: ide e vede, ide e falai com ele. Não é preciso que ela acompanhe permanentemente a Jesus, porque ele confia-lhe um ministério, que é o de ir contar [o que ouviu]. Ela afasta-se, não é o centro.
A Igreja, como se converteu em meta e perdeu a sua condição de caminho – que é o que sempre devia ser e que devia recuperar – manipula a história.
Deus criou-nos homem e mulher. No Evangelho de João está claríssimo que o Verbo se fez carne e que na carne de Jesus está assumida toda a carne humana, de todas as condições – homem, mulher, LGBTI, raças, tudo… Se não assumimos isso, não assumiremos nada e haverá sempre diferenças. Se cremos que Jesus, porque era homem, só escolhia homens – que ainda por cima não ordenou nenhum – e que os doze são a base do que vão a ser os seus continuadores e que só podem ser homens, aquela afirmação não é verdadeira.
7M – Estudou as beguinas medievais. Esse exemplo pode ser uma inspiração?
Estamos a viver um momento muito parecido não apenas com o das beguinas, mas de todos os movimentos depois chamados de pré-reformadores, que vão desde finais do século XII ao início do século XVI. Eles vão fazendo tentativa e erro: a Igreja persegue-os mas os que nascem a seguir tomam o que fizeram os anteriores e acrescentam novas questões básicas, como a aceitação das mulheres, a participação do laicado na celebração e na evangelização, com homens e mulheres em plano igual e, sobretudo, recuperar a centralidade da Palavra. Isto, que era próprio de todos os movimentos medievais, será recuperado por Lutero, que “inventa” poucas coisas na Reforma, se quisermos ser um pouco desapaixonados.
7M – E para hoje?…
Estes movimentos – e as beguinas em concreto – são muito válidos hoje, inclusive para a vida religiosa, que está buscando novas formas e novas maneiras de estar na sociedade. Sobretudo algumas mulheres que mostraram, naquela época, que não precisavam de depender de um homem – e não estamos a falar de um qualquer feminismo, estamos a falar de mulheres que se podiam manter, que demonstraram que evangelizavam sem mover-se no mundo eclesiástico, que tinham uma sólida preparação (e mesmo as que não a tinham, não eram rejeitadas, todas tinham o seu lugar dentro do movimento).
Essas mulheres têm de nos ensinar a profundidade da relação com Deus e – para lá de serem as mães de várias línguas europeias nascentes naquela época, assim consideradas pela ONU – são as predecessoras do que hoje conhecemos como pastoral da saúde, pastoral penitenciária, pastoral de educação. Geravam, à sua volta, espaços de acolhimento, de acompanhamento, de cuidado, de cura e eram muito aceites nas cidades. [Elas protagonizavam] movimentos urbanos, não eram como os monges e as monjas que se afastavam, estavam no centro das cidades, faziam um grande serviço à sociedade…
7M – E aos mais frágeis…
E aos mais frágeis, sempre. E tudo isso era valorizado. Essas mulheres podem ajudar-nos muito e se saíssem das típicas notas de rodapé dos manuais de história da Igreja onde normalmente se fala de um movimento ético feminino medieval, ajudaria a recuperar também um pouco de objectividade na história.
7M – Como leu a declaração recente do Papa sobre as mulheres, tendo em conta que, antes, ele dissera que era preciso encontrar um lugar para as mulheres, incluindo nos lugares de responsabilidade na Igreja?
Ele também já tinha dito que a questão da ordenação de mulheres está encerrada e isso não é verdade: por muito que seja magistério de João Paulo II, há muitíssimos exemplos na história em que um Papa disse coisas que depois outros desdisseram. Quando a questão se abrir – porque assim acontecerá –abrir-se-á tarde, mal e por necessidade, porque não somos capazes de ir valorizando e ir formando opinião.
Por outro lado, sublinhe-se o facto de [o Papa] ter criado uma segunda comissão para o estudo do diaconato feminino. O cristianismo de hoje não tem nada a ver com a Igreja e o cristianismo do primeiro século. Não temos de [fazer igual às] mulheres que viviam o diaconato no princípio do cristianismo, temos de ver como o vamos viver hoje. Vejamos o exemplo das mulheres da Amazónia e de muitas outras zonas, onde as mulheres realmente são diáconos “sem papéis”: exercem como tal, mas canonicamente não o são, porque não têm a nomeação canónica.
7M – O Papa pode mudar alguma coisa nesta matéria?
Eu quero muito ao Papa Francisco, gosto muito dos movimentos que ele faz para colocar o Evangelho no centro e para fazer certas mudanças. Mas também é certo que em algumas questões gosta muito de criar uma certa expectativa que depois não se cumpre. Por exemplo: nomeou mulheres para certas áreas importantes no Vaticano, como os Museus Vaticanos, que são dos mais importantes do mundo. No circuito dos grandes museus, causou assombro que tenha sido nomeada uma mulher, quando nunca houve nenhuma directora do Prado ou outros museus.
Isto é assim, mas também é verdade que lugares como esse são administrativos, não têm a força de um lugar deliberativo. Na hora da verdade, continua-se a não contar com a participação das mulheres. Eu gosto muito do Papa, mas se tivesse oportunidade dir-lhe-ia: uma coisa são os lugares de responsabilidade, mas o governo da Igreja continua nas mãos dos cardeais…
Segunda parte da entrevista ao 7Margens
Cristina Inogés Sanz: O abuso de poder é a raiz de todos os outros, incluindo o abuso sexual
António Marujo | 11 Fev 2023 – 7MARGENS
O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos, diz a teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz em entrevista ao 7MARGENS. Nesta segunda parte da entrevista cuja publicação iniciámos ontem, aborda-se ainda a questão da formação afetiva do clero e da relação com as mulheres, do acolhimento e integração de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, do Sínodo católico e do que se pode esperar do Papa Francisco, depois da morte do seu antecessor.
Formada na Faculdade Protestante de Madrid, investigadora nos departamentos de Teologia Fundamental e História da Iglesia, Cristina Inogés é também diplomada em Gestão Cultural, Museus e Património e teve a seu cargo a meditação de abertura do Sínodo 2021-24, com a presença do Papa. Com vários livros publicados, colabora com diversos meios de comunicação e trabalha na pastoral de acompanhamento e formação de comunidades católicas de pessoas LGBTI.
7MARGENS – A propósito dos leigos, já falou da questão do abuso do poder. Essa é a chave para entender também a questão dos abusos?
CRISTINA INOGÉS SANZ – Dos abusos sexuais, abusos espirituais, de consciência, laborais… O abuso de poder é a raiz e o tronco a partir do qual saem os ramos de todos os outros que conhecemos. Eles irão aparecer um de cada vez, mas começam a surgir.
Há muitos abusos na vida religiosa feminina, que por exemplo no caso de [Marko Ivan] Rupnik se comprovou que eram abusos sexuais sobre toda uma comunidade. Mas é verdade que o clericalismo – essa forma tão bruta de exercer o poder – contagiou também a estrutura da vida religiosa. E no caso das mulheres, houve muito abuso de poder por parte da hierarquia feminina das congregações.
Isso deveria fazer-nos pensar que formação se dá, que formação têm os formadores, em que consiste a actualização e que formação permanente tem o clero. Falamos da formação como se fosse algo que acaba no seminário. Não, tem de haver formação permanente, que deve reflectir sobre documentos do Papa ou do Vaticano, mas que seja também sobre questões que é preciso reactualizar constantemente. E isso não se tem muito em conta.
O abuso de poder é o núcleo, o centro em que se deve insistir, para ir pouco a pouco tratando os outros abusos.
7M – Em Braga, no congresso sobre os seminários, em Novembro, falava da alfabetização emocional. Qual é o “desastre anunciado” a que se referia a propósito da formação nos seminários? É todo o modelo que está em causa?
Antes, havia escolas para meninos e escolas para meninas. Agora, há muitos anos que as escolas são mistas. Mas quando chegam ao seminário, venham de uma formação mista ou separada, [os seminaristas] entram num mundo onde não há presença feminina, perdem um ouvido e perdem um olho: não ouvem as mulheres e não vêem as mulheres. Entram num mundo em que mais de metade da humanidade não existe. Sei de seminários no meu país em que a formação dos seminaristas inclui falar-lhes contra as mulheres, contra os padres secularizados e contra o mundo LGBTI. Isso não é formar, isto é deformar, e é um abuso de consciência porque se está modificando a consciência dessa pessoa, a quem se estão a criar preconceitos. E espiritualmente está a provocar-se um dano tremendo, porque se está a condicionar a sua forma de pensar.
Essas pessoas, que já estão meio isoladas do mundo, não têm uma formação psico-afectivo-sexual e uma formação para a inteligência emocional. Todas as pessoas do mundo – padres e monjas incluídos –, pela condição humana, teremos de enfrentar uma crise, estejamos solteiros ou casados, sejamos padres ou monjas. Se não estivermos preparados para o afrontar e não soubermos contar o que se passa, não conseguimos pedir ajuda e começam os desastres: vidas duplas, ocultação, mentiras. E isso vai criando uma angústia tremenda na pessoa.
Se a pessoa for formada para ter confiança no seu formador e para que saiba dizer o que lhe acontecer, poderá pedir ajuda. Mas o formador tem de saber detectar que num momento concreto está a acontecer alguma coisa. Na inteligência emocional aprende-se a expressar o que se passa consigo mesmo, e também a detectar o que se passa com o outro. Mas se a formação não for feita, a pessoa cairá num abismo e ou abandona ou tem uma vida dupla ou simplesmente vive com uma angústia tremenda e um sentimento de culpabilidade.
7M – Trata esse tema no seu livro La Sinfonía Feminina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação desse monge cisterciense com a mãe e várias mulheres que passaram pela sua vida, incluindo uma de quem se enamorou…
Sim, conto a história de Merton e M., que muita gente lê como um horror de Merton, pelo facto de ele ter namorado com uma enfermeira, mas que na realidade lhe serviu para fazer uma inflexão, reorganizar a sua vida afectiva (que não a tinha organizada) e a partir daí decidir continuar a ser monge.
7M – E estamos a falar de um mestre espiritual e da mística…
O mestre espiritual por excelência do século XX. Esse é um caso em que vemos que a experiência de se ter enamorado de uma mulher não lhe tirou a sua vocação de monge nem de padre, mas levou-o a reflectir e reorganizar o seu mundo afectivo interior, que não tinha organizado – desde pequeno, com a morte da sua mãe, ele vivia um caos emocional. Ele reorganiza esse caos e o seu mundo afectivo e a partir daí toma a decisão de permanecer monge.
Quando se diz isto em alguns sítios, perguntam porque é que importa a vida sexual do clero. A mim, não me importa nada. Mas importa-me muito que o clero sofra por isso. E quando se procura dar uma solução, como se entra num mundo que é só deles, tomam-no como uma ingerência. E não é verdade.
7M – Fala-se do acolhimento de pessoas LGBTI nas comunidades cristãs, mas não há uma pedagogia para que as comunidades acolham as pessoas dessa condição. E sabemos que em muitos lugares de África, apesar do exemplo que já deu do Lesoto, esse acolhimento é ainda mais difícil. Como desbloquear esta situação?
- – E não falemos da Ásia ou de países de maioria muçulmana… Há muitos sítios onde isso é de facto um tabu. É preciso entender e [para os cristãos] Deus fez-se carne e assumiu toda a condição humana. Se falamos de uma Igreja inclusiva, não se podem criar grupos à parte: um homossexual, uma lésbica, um trans, um que não é, ninguém escolheu ser assim. Nascemos assim e é uma questão tão natural como ser ruivos, morenos, de olhos verdes, altos ou baixos.
Tão pouco posso julgar alguém que diz que é homossexual e abordar tudo sempre desde o campo da moral. Se continuamos a tratar a questão LGBTI a partir da moral, nunca chegaremos a lado nenhum. Temos de começar a abordá-lo desde o campo da antropologia. Só a partir daí começaremos a encaixar as peças de modo que nos permita perceber que será um avanço não ter posições tão díspares e tão polarizadas. A questão LGBTI tem de ser tratada de uma maneira absolutamente normal.
7M – Também na Igreja?
As pessoas que estamos vinculadas à pastoral LGBTI somos como freelance; como não há uma pastoral aprovada pelas conferências episcopais, não há nada que sustente isso. Às vezes, alguns padres perguntam-me: “Porque te meteste nesse mundo?” “Porque vocês não entram.” Se não entram, nem sequer para conhecer e só julgam, o avanço nunca se pode dar. Não se pode passar a vida a julgar como as pessoas vivem a sua sexualidade. A Igreja não pode estar sempre a meter-se nas camas das pessoas, a vigiar e controlar a sua vida sexual.
O quarto é um âmbito privadíssimo e não temos de entrar aí. E a Igreja tem de reconhecer que há muitíssima gente LGBTI [dentro da comunidade cristã], não é algo que esteja apenas fora [dela]…
7M – Incluindo na hierarquia?
Incluindo na hierarquia, claro. O próprio Papa já admitiu que no Vaticano há um lobby gay. E também entre os santos os terá havido, mas isso era algo que não se perguntava nas causas de canonização.
Desconhecemos a história da homossexualidade porque, se soubéssemos algo dela, veríamos como houve épocas muito diferentes nas quais não se criaram problemas. Quando Oscar Wilde saiu da prisão em Inglaterra, onde tinha estado por ser homossexual, foi viver para França [em 1897, vindo a morrer em Paris] porque, ali, a Igreja Católica protegia os homossexuais. Então, o que se passou? A história da homossexualidade é muito explicada por James Allison. A nossa visão muda muito quando se conhecem certos detalhes.
7M – Regressando especificamente ao Sínodo: o que teremos diante de nós, nos próximos tempos?
Estamos na fase continental, que termina em Março, e a partir daí começaremos a elaborar o primeiro Instrumentum Laboris [instrumento de trabalho] para a assembleia de Outubro deste ano.
Há uma questão que é mais importante que esta fase continental: que cada pessoa tenha a síntese da sua diocese na sua mesa de trabalho ou de cabeceira. Porque a mudança tem de vir pelo mais próximo. Todas as pessoas que participaram na fase diocesana têm de ter muito presente o que saiu na síntese, para ver se isso vai sendo aplicado na sua diocese. A mudança não vai chegar por uma mudança geral de cima para baixo na vida da Igreja, ele vai ter de chegar da realidade mais próxima. Por isso, se saiu A, B e C, há que estar vigilantes para que A, B e C se cumpra, porque foi aprovado numa assembleia diocesana. Porque se isso não for cumprido, porque o bispo ou o clero dizem que não, isso é abuso de poder, isso é denunciável. Isso é o que as pessoas têm de entender.
7M – O que se passa é que parece que o Sínodo terminou: aprovaram-se as sínteses e agora pouco mais se fala mais do assunto.
Claro. Mas nesta fase continental os grupos também podiam participar. Consta-me que houve dioceses no meu país em que os bispos proibiram de participar na fase continental. E foram eles que responderam ao questionário que se fazia aos leigos. Isso é abuso de poder, absoluta e claramente. Isso é que deve ser evitado. E as pessoas devem estar conscientes de que sabem pensar, articular o pensamento e que é muito importante tudo o que pensaram.
7M – O que espera do Papa? Agora que morreu Ratzinger, Francisco está mais livre para fazer reformas ou mais condicionado?
Fácil não vai ser. Vimos isso com a reacção do secretário de Bento XVI, que é outra forma de ver como a oposição a Francisco que está dentro do próprio Vaticano está a lançar as peças. Bento não condicionava Francisco, que tomou decisões e redigiu documentos sem estar condicionado. Mas é certo que Bento era uma figura cujos “acólitos” se mantinham com alguma cautela [enquanto estava vivo].
Mas antes de estar enterrado, literalmente, antes de abrir a capela ardente, o seu secretário lançou a artilharia. Temos de estar atentos para ver como esta oposição férrea que há no Vaticano irá lançar as peças. Não creio que fiquem muito calados. Mas também é certo que Francisco tem recursos suficientes para afrontar a situação.
7M – Mas não sente que o Papa está mais frágil, animicamente?
Uma pessoa com 86 anos não é um jovem e tudo vai deixando marcas. Mas também é verdade – vê-se nas entrevistas, no que escreve, no que diz – que continua a ser a pessoa livre que chegou ao papado. Tem limitações, mas creio que ainda nos pode surpreender. Não sei dizer em quê, mas creio que ainda tem capacidade para nos surpreender com alguma coisa.
7M – E nessa surpresa pode estar a sua renúncia?
- – Ele disse há pouco que havia assinado um documento a prever alguma incapacidade. Ele pode renunciar – talvez não antes que acabe o Sínodo [Outubro 2024]. Mas também seria o mais normal do mundo que nos habituássemos a que uma pessoa, numa determinada idade, renunciasse ao poder que tem. Se um presidente de uma empresa se demite… Mas demite-se e vai-se embora, não fica no escritório do lado. Também seria muito interessante criar um estatuto, [evitando] a precariedade com que se viveu o papado emérito de Bento. Se o Papa é o bispo de Roma, passa a ser o bispo emérito de Roma e não há nenhum problema. Isso seria o mais normal.
Sínodo 2021-2024 – Entrevista teóloga Cristina Inogés Sanz (PDF)