Carta do Papa Francisco aos presbíteros da Diocese de Roma

Carta do Papa Francisco aos presbíteros da Diocese de Roma

05 de agosto de 2023

 

Caros irmãos sacerdotes,

 

Gostaria de vos estender a mão com um pensamento de acompanhamento e amizade, que espero vos sustente no desempenho do vosso ministério, com a sua carga de alegrias e trabalhos, esperanças e desilusões. Precisamos trocar olhares cheios de cuidado e compaixão, aprendendo com Jesus que olhou assim para os apóstolos, não exigindo deles um cronograma ditado pelo critério da eficiência, mas oferecendo cuidado e refrescamento. Assim, quando os apóstolos regressaram da sua missão, entusiasmados, mas cansados, o Mestre disse-lhes: «Afastai-vos sozinhos para um lugar solitário, e descansai um pouco» (Mc 6, 31).

Penso em vós, neste momento em que pode haver, juntamente com as atividades estivais, também um pouco de descanso depois dos trabalhos pastorais dos últimos meses. E, antes de mais, gostaria de reiterar os meus agradecimentos: “Obrigado pelo vosso testemunho e pelo vosso serviço. Obrigado pelo bem oculto que fazeis e pelo perdão e consolação que concedeis em nome de Deus. … Obrigado pelo vosso ministério, que muitas vezes é realizado com grande esforço, com pouco reconhecimento e nem sempre é compreendido” (Homilia para a Missa Crismal, 6 de abril de 2023).

Além disso, o nosso ministério sacerdotal não se mede pelos êxitos pastorais (o próprio Senhor os teve cada vez menos com o passar do tempo!). O centro da nossa vida não é sequer o frenesim da atividade, mas a permanência no Senhor para dar fruto (cf. Jo 15). Ele é o nosso refrigério (cf. Mt 11, 28-29). E a ternura que nos conforta brota da sua misericórdia, do acolhimento do “magis” da sua graça, que nos permite ir em frente no nosso trabalho apostólico, suportar os insucessos e as contrariedades, alegrar-nos com simplicidade de coração, ser mansos e pacientes, recomeçar e recomeçar sempre, ir ao encontro dos outros. De facto, os nossos necessários “momentos de recarga” acontecem não só quando descansamos física e espiritualmente, mas também quando nos abrimos ao encontro fraterno entre nós: a fraternidade conforta, oferece espaços de liberdade interior e impede-nos de nos sentirmos sós perante os desafios do ministério.

É com este espírito que vos escrevo. Sinto que estou a caminho convosco e gostaria de vos fazer sentir que estou próximo de vós nas alegrias e nas tristezas, nos projetos e nas dificuldades, nas amarguras e nas consolações pastorais. Sobretudo, partilho convosco o desejo de comunhão, afetiva e efetiva, enquanto ofereço a minha oração quotidiana para que esta nossa Mãe Igreja de Roma, chamada a presidir na caridade, cultive o precioso dom da comunhão antes de mais em si mesma, fazendo-o germinar nas várias realidades e sensibilidades de que é composta. Que a Igreja de Roma seja para todos um exemplo de compaixão e de esperança, com os seus pastores sempre, verdadeiramente sempre, prontos e dispostos a estender o perdão de Deus, como canais de misericórdia que saciam a sede da humanidade atual.

E agora, queridos irmãos, pergunto-me: neste nosso tempo, o que é que o Senhor nos pede, para onde nos conduz o Espírito que nos ungiu e nos enviou como apóstolos do Evangelho? Na oração, vem-me à mente isto: que Deus nos pede para irmos até ao fim na luta contra a mundanidade espiritual. O Padre Henri de Lubac, em algumas páginas de um texto que vos convido a ler, definia a mundanidade espiritual como “o maior perigo para a Igreja – para nós, que somos a Igreja -, a tentação mais pérfida, aquela que ressurge sempre, insidiosamente, quando as outras foram vencidas” E acrescenta palavras que me parecem acertadas: “Se esta mundanidade espiritual invadisse a Igreja e trabalhasse para a corromper, minando o seu próprio princípio, seria infinitamente mais funesta do que qualquer mundanidade simplesmente moral” (Meditação sobre a Igreja, Milão 1965, 470).

São coisas que já recordei noutras ocasiões, mas gostaria de as reiterar, considerando-as prioritárias: a mundanidade espiritual, de facto, é perigosa porque é um modo de vida que reduz a espiritualidade a uma aparência: leva-nos a ser “comerciantes do espírito”, homens revestidos de formas sagradas que, na realidade, continuam a pensar e a agir segundo as modas do mundo. Isto acontece quando nos deixamos fascinar pelas seduções do efémero, pela mediocridade e pelo hábito, pelas tentações do poder e da influência social. E, ainda, pela vanglória e pelo narcisismo, pela intransigência doutrinal e pelo esteticismo litúrgico, formas e modos como o mundanismo “se esconde por detrás da aparência de piedade e até de amor à Igreja”, mas na realidade “consiste em procurar, não a glória do Senhor, mas a glória humana e o bem-estar pessoal” (Evangelii gaudium, 93). Como não reconhecer em tudo isto a versão atualizada daquele formalismo hipócrita que Jesus via em certas autoridades religiosas da época e que, no decurso da sua vida pública, o fez sofrer talvez mais do que qualquer outra coisa?

O mundanismo espiritual é uma tentação “suave” e, por isso, ainda mais insidiosa. De facto, ele infiltra-se, sabendo esconder-se por detrás das boas aparências, mesmo no seio de motivações “religiosas”. E, mesmo que a reconheçamos e a expulsemos de nós, mais cedo ou mais tarde ela volta a apresentar-se, disfarçada de outra forma. Como diz Jesus no Evangelho: “Quando o espírito imundo sai de um homem, ele passa por lugares sem água à procura de repouso; e não o encontrando, diz: ‘Vou voltar para a minha casa de onde vim’. E quando chega, encontra-a varrida e em ordem. Então vai e traz outros sete espíritos mais maus do que ele, e eles entram e habitam ali; e o último estado daquele homem torna-se pior do que o primeiro” (Lc 11, 24-26). Precisamos de uma vigilância interior, para salvaguardar a nossa mente e o nosso coração, para alimentar em nós a chama purificadora do Espírito, porque as tentações mundanas voltam e “batem” educadamente: “são ‘demónios elegantes’: entram suavemente, sem que nos apercebamos deles” (Discurso à Cúria Romana, 22 de dezembro de 2022).

No entanto, gostaria de me deter num aspeto deste mundanismo. Quando entra no coração dos pastores, assume uma forma específica, a do clericalismo. Perdoem-me a repetição, mas, como padres, penso que me compreendem, porque também vocês partilham aquilo em que acreditam de uma forma sincera, de acordo com esse bom traço tipicamente romano (românico!), segundo o qual a sinceridade dos lábios vem do coração e tem o sabor do coração! E eu, como ancião e de coração, quero dizer-vos que me preocupa quando caímos em formas de clericalismo; quando, talvez sem nos darmos conta, deixamos ver que somos superiores, privilegiados, colocados “acima” e, portanto, separados do resto do povo santo de Deus. Como um bom sacerdote me escreveu um dia, “o clericalismo é um sintoma de uma vida sacerdotal e laical tentada a viver o papel e não a verdadeira ligação com Deus e com os irmãos”. Em suma, denota uma doença que nos faz perder a memória do Batismo que recebemos, deixando em segundo plano a nossa pertença ao mesmo Povo Santo e levando-nos a viver a autoridade nas várias formas de poder, sem nos apercebermos da duplicidade, sem humildade, mas com atitudes de desapego e soberba.

Para nos libertarmos desta tentação, é bom ouvirmos o que o profeta Ezequiel diz aos pastores: “Comeis a gordura, vestis-vos de lã, matais os animais gordos, mas não apascentais as ovelhas. Não fortalecestes as fracas, não curastes as doentes, não enfaixastes as aleijadas, não trouxestes de volta as desgarradas, não procurastes as perdidas, e as governastes com força e dureza” (34,3-4). A Palavra fala de “gordura” e de “lã”, daquilo que alimenta e aquece; o risco que a Palavra nos coloca é, portanto, o de nos alimentarmos a nós próprios e aos nossos interesses, de nos proporcionarmos uma vida confortável.

É certo que, como afirma Santo Agostinho, o pastor deve também viver graças ao apoio oferecido pelo leite do seu rebanho; mas como comenta o bispo de Hipona: “Tirem do leite das suas ovelhas, recebam o necessário para as suas necessidades, mas não negligenciem a fraqueza das ovelhas. Que não procurem nenhum benefício para si próprios, para que não pareça que estão a pregar o Evangelho por causa das suas próprias necessidades e privações; antes, que forneçam a luz da verdadeira palavra para o esclarecimento dos homens” (Sermão sobre os pastores, 46.5). Do mesmo modo, Agostinho fala da lã, associando-a às honras: a lã, que cobre a ovelha, pode fazer-nos pensar em tudo aquilo com que nos podemos adornar exteriormente, procurando o louvor dos homens, o prestígio, a fama, a riqueza. O grande pai latino escreve: “Quem dá lã dá honra. São precisamente estas duas coisas que os pastores, que se apascentam a si próprios e não às ovelhas, procuram no povo: o benefício da satisfação das suas necessidades e o favor da honra e do louvor” (ibid., 46.6). Quando nos preocupamos apenas com o leite, pensamos no nosso ganho pessoal; quando procuramos obsessivamente a lã, pensamos em cultivar a nossa imagem e aumentar o nosso sucesso. E assim perdemos o espírito sacerdotal, o zelo pelo serviço, o desejo de cuidar do povo, e acabamos por raciocinar segundo a loucura do mundo:

“O que é que isso tem a ver comigo? Que cada um faça o que quiser; o meu sustento está seguro, e a minha honra também. Tenho leite e lã suficientes, cada um que faça o que quiser” (ibid., 46.7).

A preocupação centra-se, portanto, no “eu”: o próprio sustento, as próprias necessidades, os elogios recebidos para si mesmo em vez de para a glória de Deus. Isto acontece na vida de quem resvala para o clericalismo: perde o espírito de louvor porque perdeu o sentido da graça, a admiração pela gratuidade com que Deus o ama, aquela simplicidade confiante do coração que nos faz estender as mãos para o Senhor, esperando d’Ele o alimento no momento oportuno (cf. Sal 104, 27), conscientes de que sem Ele nada podemos fazer (cf. Jo 15, 5). Só quando vivemos nesta gratuidade, podemos viver o ministério e as relações pastorais em espírito de serviço, segundo as palavras de Jesus: “Recebestes sem pagar, dai sem pagar” (Mt 10,8).

É preciso olhar precisamente para Jesus, para a compaixão com que Ele vê a nossa humanidade ferida, para a gratuidade com que Ele ofereceu a sua vida por nós na cruz. Eis o antídoto quotidiano contra o mundanismo e o clericalismo: olhar para Jesus crucificado, fixar todos os dias o olhar n’Aquele que Se esvaziou a Si mesmo e Se humilhou até à morte (cf. Fil 2, 7-8). Ele aceitou a humilhação para nos levantar das nossas quedas e para nos libertar do poder do mal. Assim, olhando para as feridas de Jesus, olhando para Ele humilhado, aprendemos que somos chamados a oferecer-nos, a fazer-nos pão partido para os famintos, a partilhar o caminho com os cansados e oprimidos. É este o espírito sacerdotal: fazermo-nos servos do Povo de Deus e não senhores, lavar os pés dos nossos irmãos e não os pisar.

Permaneçamos, pois, vigilantes contra o clericalismo. Que o Apóstolo Pedro, que, como nos recorda a tradição, até no momento da morte se humilhou de cabeça para baixo para ser igual ao seu Senhor, nos ajude a afastarmo-nos dele. Que o apóstolo Paulo, que, por causa de Cristo Senhor, considerava como lixo todas as conquistas da vida e do mundo (cf. Fil 3, 8), nos preserve dele.

O clericalismo, como sabemos, pode afetar todos, mesmo os leigos e os agentes pastorais: de facto, pode-se assumir um “espírito clerical” no exercício dos ministérios e dos carismas, vivendo a própria vocação de modo elitista, envolto no próprio grupo e erguendo muros contra o exterior, desenvolvendo vínculos possessivos em relação aos papéis na comunidade, cultivando atitudes arrogantes e jactanciosas em relação aos outros. E os sintomas são, de facto, a perda do espírito de louvor e de gratuidade alegre, enquanto o diabo se insinua, alimentando a queixa, o negativismo e a insatisfação crónica com o que está mal, a ironia tornando-se cinismo. Mas, assim, deixamo-nos absorver pelo clima de crítica e de raiva que respiramos à nossa volta, em vez de sermos aqueles que, com simplicidade e mansidão evangélicas, com bondade e respeito, ajudam os nossos irmãos e irmãs a sair das areias movediças da impaciência.

Em tudo isto, nas nossas fragilidades e insuficiências, bem como na crise de fé atual, não desanimemos! De Lubac concluiu afirmando que a Igreja, “ainda hoje, apesar de todas as nossas obscuridades […] é, como a Virgem, o Sacramento de Jesus Cristo. Nenhuma infidelidade nossa pode impedi-la de ser ‘a Igreja de Deus’, ‘a serva do Senhor'” (Meditação sobre a Igreja, cit., 472).

Irmãos, esta é a esperança que sustenta os nossos passos, alivia os nossos fardos e dá um novo impulso ao nosso ministério. Arregacemos as mangas e dobremos os joelhos (vós que podeis!): rezemos ao Espírito uns pelos outros, peçamos-lhe que nos ajude a não cair, tanto na nossa vida pessoal como na ação pastoral, naquela aparência religiosa cheia de muitas coisas, mas vazia de Deus, para não sermos funcionários do sagrado, mas anunciadores apaixonados do Evangelho, não “clérigos de Estado”, mas pastores do povo. Precisamos de uma conversão pessoal e pastoral. Não se trata, como dizia o Padre Congar, de recuperar as boas práticas ou de reformar as cerimónias exteriores, mas sim de voltar às fontes do Evangelho, de descobrir novas energias para superar os hábitos, de injetar um novo espírito nas velhas instituições eclesiais, para não acabarmos por ser uma Igreja “rica na sua autoridade e segurança, mas pouco apostólica e mediocremente evangélica” (Vera e falsa riforma della Chiesa, Milão 1972, 146).

Obrigado pelo acolhimento que dareis a estas minhas palavras, meditando-as na oração e diante de Jesus na adoração quotidiana; posso dizer-vos que elas me vieram do meu coração e do afeto que vos tenho. Avancemos com entusiasmo e coragem: trabalhemos juntos, entre sacerdotes e com os nossos irmãos leigos, iniciando formas e caminhos sinodais, que nos ajudem a despojar-nos das nossas certezas mundanas e “clericais” para procurar humildemente caminhos pastorais inspirados pelo Espírito, para que a consolação do Senhor chegue verdadeiramente a todos. Diante da imagem da Salus Populi Romani rezei por vós. Pedi a Nossa Senhora que vos guarde e proteja, que seque as vossas lágrimas secretamente derramadas, que reacenda em vós a alegria do ministério e que vos torne todos os dias pastores apaixonados por Jesus, prontos a dar a vida sem medida por amor a Ele. Obrigado pelo que fazeis e pelo que sois. Abençoo-vos e acompanho-vos na oração. E, por favor, não vos esqueçais de rezar por mim.

Fraternalmente,

Lisboa, 5 de agosto de 2023, Memória da Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior.

FRANCISCO

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