Timothy Radcliffe, OP

Deus constrói a sua casa em lugares que o mundo despreza

Timothy Radcliffe, OP
In Vatican News
Tradução.: Rui Jorge Martins
Publicado em 03.10.2023

Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura

 

Chegamos a este Sínodo com esperanças contrastantes. Mas isso não deve ser um obstáculo insuperável. Estamos unidos na esperança pela Eucaristia, uma esperança que abraça e transcende tudo aquilo que desejamos.

Todavia há uma outra fonte de tensão. A nossa conceção da Igreja como casa é por vezes contrastante. Cada criatura viva precisa de uma casa para poder prosperar. Os peixes precisam de água e os pássaros de ninhos. Sem uma casa, não podemos viver. As diversas culturas têm conceções diferentes do que é a casa. O “Instrumentum Laboris” [Documento de Trabalho para o Sínodo] diz-nos que «a Ásia ofereceu a imagem da pessoa que descalça os sapatos para atravessar a soleira da porta, como sinal de humildade para estar preparada para encontrar o outro e Deus; a Oceânia propôs a imagem do barco; a África insistiu na imagem da Igreja como família de Deus, capaz de oferecer pertença e acolhimento a todos os seus membros, em toda a sua variedade» (B 1,2). Mas todas estas imagens mostram que precisamos de um lugar em que possamos ser aceites e ao mesmo tempo desafiados. Em casa somos afirmados por aquilo que somos e somos convidados a ser mais. A casa é o lugar em que somos conhecidos e amados, onde estamos em segurança, mas é também o lugar em que somos desafiados a empreender a aventura da fé.

Temos de renovar a Igreja entendida como casa comum se queremos falar a um mundo que sofre de uma crise devida à falta de casa. Estamos a consumir a nossa pequena casa planetária. Há mais de 350 milhões de migrantes em movimento, em fuga de guerras e violências. Milhares de pessoas morrem ao atravessar os mares para tentar encontrar uma casa. Nenhum de nós pode sentir-se completamente em casa se não estiver nela. Também nos países ricos, milhões de pessoas dormem na rua. Os jovens, muitas vezes, não podem permitir-se uma casa. Em todo o lado há uma terrível ausência de casa espiritual. O individualismo impulsionado, a desagregação da família, as desigualdades cada vez mais profundas fazem com que estejamos aflitos por um maremoto de solidões. Os suicídios estão a aumentar porque sem uma casa, física e espiritual, não se pode viver. Amar é voltar para casa de alguém.

O que nos ensina a cena da Transfiguração [de Jesus] em relação à nossa casa, seja na Igreja seja no nosso mundo deserdado? Jesus convida o seu círculo mais íntimo de amigos a separar-se dele e a desfrutar deste momento de intimidade. Também eles estarão com Ele no Getsémani. Este é o círculo mais íntimo daqueles com quem Jesus se sente mais à vontade. No cimo do monte concede-lhes a visão da sua glória. Pedro quer agarrar-se a este momento. «Rabi, é belo para nós estarmos aqui; façamos três tendas, uma para ti, uma para Moisés e uma para Elias». Chegou e quer que este momento íntimo dure.

Mas escutam a voz do Pai. «Escutai-o!». Têm de descer do monte e caminhar rumo a Jerusalém, sem saber o que os espera. Dispersar-se-ão e enviados aos confins da Terra para serem testemunhas da nossa morada definitiva, o Reino. Vemos, então, duas conceções de casa: o círculo restrito com Jesus no cimo do monte e o chamamento à nossa casa definitiva, o Reino, a que todos pertenceremos.

De maneira semelhante, diferentes conceções da Igreja como casa dividem-nos hoje. Para alguns, esta é definida pelas suas antigas tradições e devoções, pelas suas estruturas e pela sua linguagem herdadas, pela Igreja em que crescemos e que amamos. É uma Igreja que nos dá uma clara identidade cristã. Para outros, a Igreja atual não parece ser uma casa segura. É experimentada como exclusiva, marginalizando muitas pessoas, as mulheres, os divorciados, os recasados. Para alguns é excessivamente ocidental, excessivamente eurocêntrica. O “Instrumentum Laboris” cita também os homossexuais e as pessoas que vivem em casamentos poligâmicos. Desejam uma Igreja renovada em que possam sentir-se plenamente em casa, reconhecidos, afirmados e seguros.

Para alguns, a ideia de um acolhimento universal, em que todos sejam aceites independentemente de quem sejamos, é sentida como destrutiva da identidade da Igreja. Como numa canção inglesa do século XIX, «se todos são alguém, então ninguém é ninguém»; são pessoas para quem a identidade requer fronteiras. Para outros, pelo contrário, a abertura é o próprio coração da identidade da Igreja. O papa Francisco afirmou: «A Igreja é chamada a ser a casa do Pai, com as portas sempre escancaradas… onde há lugar para todos, para cada um com os seus problemas, para ir ao encontro de quem sente a necessidade de retomar o seu caminho de fé» (Evangelium gaudium, 47).

Esta tensão esteve sempre no centro da nossa fé, desde que Abraão deixou Ur. No Antigo Testamento há duas coisas em perene tensão entre elas: a ideia da eleição, do povo escolhido por Deus, do povo com quem Deus habita. Esta é uma identidade que é salvaguardada. Mas há também o universalismo, a abertura a todas as nações, uma identidade ainda a descobrir. A identidade cristã é ao mesmo tempo conhecida e desconhecida, dada e a procurar. S. João diz: «Caríssimos, a partir de agora somos filhos de Deus, mas aquilo que seremos não foi ainda revelado. Sabemos, no entanto, que quando Ele se manifestar, nós seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é» (1 João 3, 1-2). Sabemos que somos, e, todavia, não sabemos quem seremos.

Para alguns de nós, a identidade cristã é sobretudo dada, a Igreja que conhecemos e amamos. Para outros, a identidade cristã é sempre provisória, em caminho rumo ao Reino, no qual cairão todos os muros. Ambas são necessárias! Se sublinhamos apenas que a nossa identidade é dada – isto é o que significa ser católicos –, arriscamos tornarmo-nos uma seita. Se sublinhamos apenas a aventura rumo a uma identidade ainda por descobrir, arriscamos tornarmo-nos um vago movimento cristão. Mas a Igreja é sinal e sacramento da unidade de toda a humanidade em Cristo ao ser ambas as coisas. Habitamos a montanha e saboreamos já a glória. Mas caminhamos rumo a Jerusalém, o primeiro Sínodo da Igreja.

Como viver esta necessária tensão? Toda a teologia nasce da tensão que dobra o arco para lançar a flecha. Esta tensão está no centro do Evangelho de S. João. Deus faz a sua casa em nós: «Se alguém me ama, observará a minha palavra, e o meu Pai amá-lo-á, e nós viremos a ele e habitaremos junto a ele» (14, 23). Mas Jesus promete-nos também a nossa casa em Deus: «Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fosse, como teria dito Eu que vos vou preparar um lugar?» (14, 2).

Quando pensamos na Igreja como uma casa, alguns de nós pensamos sobretudo em Deus que vem a nossa casa, e outros em nós que vamos para casa em Deus. Ambas as coisas são verdadeiras. Devemos entrar em sintonia com quem pensa diversamente. Temos no coração o círculo restrito no cimo do monte, mas descemos e caminhamos rumo a Jerusalém, vagabundos e sem casa. «Escutai-o.»

Assim, em primeiro, Deus fa a sua casa connosco. O Verbo faz-se carne num judeu palestinense do primeiro século, que cresceu nos usos e costumes do seu povo. O Verbo faz-se carne em cada uma das nossas culturas. Nas pinturas italinas da Anunciação, vemos belas casas de mármore. com janelas abertas para oliveiras e jardins de rosas e lírios. Os pintores holandeses e flamengos mostram Maria com um forno quente, bem envolvida para manter o frio à distância. Qualquer que seja a vossa casa, Deus vem habitar nela. Durante trinta anos de silêncio, Deus habitou em Nazaré: um insignificante lugar secundário. Nataniel exclamou, desgostoso: «Poderá talvez sair alguma coisa de bom de Nazaré?» (João 1, 46). Filipe responde, simplesmente: «Vem e vê».

Todas as nossas casas são Nazaré, onde Deus habita. S. Charles de Foucauld afirmou: «Deixai que Nazaré seja o vosso modelo, em toda a sua simplicidade e abertura… A vida de Nazaré pode ser vivida em qualquer lugar. Vive-a onde é mais útil para o teu próximo». Onde quer que estejamos e o que quer que façamos, Deus vem encontrar-nos: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (3, 20).

Por isso, façamos tesouro dos lugares em que encontrámos o Emanuel. «Deus connosco.» Amemos as liturgias em que entrevimos a beleza divina, as igrejas da nossa infância, as devoções populares. Eu amo a grande abadia beneditina da minha escola, onde pela primeira vez percecionei as portas do Céu abertas. Cada um de nós tem o seu monte Tabor, no qual entreviu a glória. Precisamos disso. Neste sentido, quando as liturgias são mudadas ou as igrejas demolidas, as pessoas experimentam uma grande dor, como se a sua casa na Igreja tivesse sido destruída. Como Pedro, queremos permanecer.

Cada Igreja local é uma casa para Deus. A nossa Mãe Maria apareceu na Inglaterra em Walsingham, o grande santuário medieval, em Lourdes, em Guadalupe no México, em Czestochowa na Polónia, em La Vang no Vietname, em Donglu na China. Não há uma competição mariana. Em Inglaterra dizemos: «A boa notícia é que Deus te ama. A má notícia é que ama também todos os outros». Santo Agostinho dizia: «Deus ama cada um de nós como se houvesse apenas um». Na basílica de Nossa Senhora de África, na Argélia, há esta inscrição: «Priez pour nous et pour les musulmans», «Orai por nós e pelos muçulmanos».

Muitas vezes os sacerdotes encaram o caminho sinodal mais difícil de abraçar. Nós, sacerdotes, curamos destes lugares de culto e neles celebramos as liturgias. Os sacerdotes têm necessidade de um forte sentido de identidade, de um “esprit de corps”. Mas quem seremos nesta Igreja libertada do clericalismo? Como pode o clero abraçar uma identidade que não seja clerical? Este é um grande desafio para uma Igreja renovada. Acolhamos sem medo uma nova compreensão fraterna do sacerdócio ministerial! Talvez possamos descobrir como esta perda de identidade seja, na realidade, uma parte intrínseca da nossa identidade sacerdotal. É uma vocação que vai para além de toda a identidade, porque «aquilo que seremos ainda não foi revelado» (1 João 3, 2).

Deus constrói a sua casa em lugares que o mundo despreza. O nosso irmão dominicano Frei Betto descreve como Deus se tornou a sua casa numa prisão no Brasil. Alguns dominicanos foram aprisionados por causa da sua oposição à ditadura (1964-1985) Betto escreve: «O dia de Natal, festa do regresso de Deus a casa, a alegria é incontida. A noite de Natal na prisão… Agora todo o cárcere canta, como se o nosso canto, feliz e livre, tivesse de ressoar em todo o mundo. As mulheres cantam nas suas secções, e nós aplaudimos… Aqui todos sabem que é Natal, que alguém está a renascer. E com o nosso canto testemunhamos que também nós somos renascidos para lutar por um mundo sem lágrimas, ódio e opressão. É impressionante ver estes jovens de rostos comprimidos contra as grades e cantar o seu amor. Inesquecível. Não é um espetáculo para os nossos juízes, ou para o Ministério Público, ou para a polícia que nos prendeu. Encarariam como intolerável a beleza desta noite. Os torturadores temem um sorriso, ainda que frágil».

Assim entrevemos a beleza do Senhor no nosso monte Tabor, onde, como Pedro, queremos plantar as nossas tendas. Muito bem! Mas «escutai-o!». Desfrutamos desse momento e depois descemos da montanha e caminhamos rumo a Jerusalém. Devemos tornar-nos, em certo sentido, sem-abrigo. «As raposas têm tocas e as aves do céu têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça» (Lucas 9, 58). Caminhamos para Jerusalém, a cidade santa onde reside o nome de Deus. Mas ali Jesus morre fora dos muros para o bem de todos aqueles que vivem fora dos muros, como Deus se revelou ao seu povo no deserto fora do acampamento. James Alison escreve: «Deus está no meio de nós como um enxotado». «Por isso, também Jesus, para santificar o povo com o seu próprio sangue, padeceu fora das portas. Saíamos, então, ao seu encontro fora do acampamento, suportando a sua humilhação» (Hebreus 13, 12-13).

O arcebispo Carlos Aspiroz da Costa escrevia à Família Dominicana quando era Mestre: «Fora do campo, entre todos aqueles “outros” relegados para um lugar fora do campo, é onde encontramos Deus. A itinerância exige sair das instituições, das perceções e das crenças culturalmente condicionadas, porque é “fora do campo” que encontramos um Deus que não pode ser controlado. É “fora do campo” que encontramos o Outro que é diferente e descobrimos quem somos e o que devemos fazer». É saindo que chegaremos a uma casa na qual «não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus» (Gálatas 3, 28).

Nos anos 80, ao refletir na resposta da Igreja à SIDA, visitei um hospital de Londres. O médico disse-me que havia um jovem que procurava um sacerdote de nome Timothy. Pela providência de Deus, consegui ungi-lo pouco antes de morrer. Pediu para ser sepultado na catedral de Westminster, o centro do catolicismo na Inglaterra. Estava rodeado de pessoas comuns que vinham à quela missa ferial, além de doentes de SIDA, enfermeiros, médicos e amigos homossexuais. Aquele que tinha estado na periferia, por causa da sua doença, por causa da sua orientação sexual, e sobretudo porque tinha morrido, estava no centro. Estava rodeado por aqueles para os quais a Igreja era uma casa e por aqueles que normalmente nunca entrariam numa igreja.

A nossa vida nutre-se de tradições e devoções amadas. Se se perdem, ficamos magoados. Mas devemos também recordar todos aqueles que não se sentem ainda em casa na Igreja: as mulheres que se sentem não reconhecidas num patriarcado de velhos homens brancos como eu! Pessoas que sentem que a Igreja é excessivamente ocidental, excessivamente latina, excessivamente colonial. Devemos caminhar rumo a uma Igreja em que não continuem a estar às margens, mas no centro.

Quando Thomas Merton se torna católico descobre “Deus, esse centro que está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, enquanto me encontra». Renovar a Igreja, por isso, é como fazer pão. Juntamos as bordas da massa ao centro e alargamos o centro até às bordas, enchendo tudo de oxigénio. Faz-se o pão invertendo a distinção entre as bordas e o centro, fazendo o pão de Deus, cujo centro está em todo o lado e cuja circunferência não está em lado nenhum, assim nos encontrando.

Uma última brevíssima palavra. Muitas vezes, durante a preparação deste Sínodo, foi colocada a pergunta: «Como podemos estar em casa na Igreja com o horrível escândalo dos abusos sexuais?». Para muitos foi a gota que fez transbordar o copo. Fizeram as malas e foram-se embora. Coloquei esta pergunta numa reunião de responsáveis católicos na Austrália, onde a Igreja foi horrivelmente desfigurada por este escândalo. Como fizeram para permanecer? Como puderam estar ainda em casa?

Um deles citou Carlo Carretto (1910-1988), um Irmãozinho de Charles de Foucauld. As palavras de Carretto resumem a ambiguidade da Igreja, minha casa, mas não ainda casa minha, que revela e oculta Deus.

«Quanto devo criticar-te, minha Igreja, todavia quanto te amo. Fizeste-me sofrer mais do que qualquer outro, todavia a ti te devo mais do que a qualquer outro. Queria ver-te destruída, todavia preciso da tua presença. Escandalizaste-me muito, todavia só tu me fizeste compreender a tua santidade…. Inúmeras vezes tive vontade de bater na tua cara a porta da minha alma, todavia, a cada noite, rezei por poder morrer entre os teus braços seguros! Não, não posso libertar-me de ti, porque sou um todo contigo, ainda que não completamente. E depois, para onde iria? Construir uma outra igreja? Mas não poderei construir uma sem os mesmos defeitos, porque são os meus defeitos».

No final do Evangelho de Mateus, Jesus diz: «Eis que Eu estou convosco até ao fim dos tempos». Se o Senhor permanece, como poderemos ir embora? Deus pôs-se na nossa casa, com todos os nossos escandalosos limites, para sempre. Deus permanece na nossa Igreja, ainda que com toda a corrupção e os abusos. Por isso devemos permanecer. Mas Deus está connosco para nos conduzir nos espaços mais amplos do Reino. Precisamos da Igreja, da nossa casa atual com todas as suas fraquezas, mas também de respirar o oxigénio pleno de Espírito da nossa futura casa sem confins.