Entrevista a Cristina Inogés Sanz – O Sínodo e as mulheres

Cristina Inogés Sanz, uma das primeiras mulheres a votar num Sínodo dos Bispos. “Não há razões teológicas que impeçam” ordenação de mulheres

08 out. 2023 – Entrevista ao Observador

Pela primeira vez, leigos, incluindo mulheres, votam no Sínodo dos Bispos. A teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz, uma delas, antecipa ao Observador o que espera da reunião magna da Igreja Católica.

Começa esta quarta-feira no Vaticano a 16.ª Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos — o organismo composto por bispos de todo o mundo que se reúne periodicamente para auxiliar o Papa no governo da Igreja Católica a nível global. Mas este será um sínodo diferente. Em entrevista ao Observador, a teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz, uma das intelectuais envolvidas na preparação da reunião magna da Igreja global, não hesita em classificá-lo como “o acontecimento eclesial mais importante desde o Concílio Vaticano II”. Pela primeira vez na história do Sínodo dos Bispos, o direito de voto foi alargado aos leigos — e, de modo mais notável, às mulheres. Inogés Sanz será uma das 54 mulheres a entrar para a história como tendo votado na assembleia geral de um Sínodo dos Bispos — que se debruça, precisamente, sobre o próprio conceito de “sinodalidade”.

Com origem nas palavras gregas “syn” (juntos) e “hodos” (caminho), a palavra “sínodo” é um conceito clássico da Igreja Católica que se pode traduzir como “caminhar juntos” — e a “sinodalidade” é considerada essencial na própria natureza da Igreja Católica. A Igreja é um conjunto de pessoas que fazem caminho em conjunto, explica a teóloga na entrevista ao Observador.

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O Sínodo dos Bispos, como organismo formal, foi criado pelo Papa Paulo VI depois do Concílio Vaticano II, com o objetivo de prolongar no tempo o espírito daquela década de 1960 e de recuperar o modo de proceder da Igreja dos primeiros séculos: as decisões tomadas em conjunto, por uma comunidade que caminha em conjunto. Ao longo dos últimos quase 60 anos, já houve 15 assembleias gerais ordinárias, três assembleias extraordinárias e onze assembleias especiais, todas elas sobre temas diferentes, incluindo a família, a evangelização, os jovens ou até a Amazónia. Mas todas elas tiveram um aspeto comum: consistiram, na prática, numa reunião de bispos em Roma.

Este sínodo, porém, é diferente: o tema que está em cima da mesa desta vez é a própria sinodalidade. Por isso, também o modelo é diferente. Em bom rigor, o Sínodo sobre a Sinodalidade começou em 2021 e, desde então, tem vindo a realizar-se em diferentes fases, a nível paroquial, diocesano, nacional, continental e universal — com a organização do evento a promover os debates nos vários níveis, para que fossem os próprios fiéis a diagnosticar os principais problemas da Igreja atual. Os contributos recolhidos ao longo dos últimos dois anos vão agora estar em cima da mesa numa assembleia geral na qual não vão participar apenas bispos, mas também vários leigos escolhidos pelo Papa Francisco. É o caso da teóloga Cristina Inogés Sanz, que fez parte da comissão metodológica que preparou o sínodo e que agora, por convite direto do Papa Francisco, vai poder discutir e votar, de igual para igual, com os bispos de todo o mundo — Portugal será representado pelo presidente e pelo vice-presidente da Conferência Episcopal, os bispos José Ornelas e Virgílio Antunes.

Numa entrevista ao Observador, Cristina Inogés Sanz, formada em Teologia pela Faculdade Protestante de Madrid e autora de vários livros de teologia, detalha por que razão considera este o mais importante acontecimento da Igreja Católica desde o Concílio Vaticano II, recorda o seu trabalho na preparação do sínodo e explica como os grandes temas da Igreja contemporânea — o lugar do laicado, o papel das mulheres ou a relação da Igreja com o mundo moderno — vão estar em cima da mesa durante o sínodo. A teóloga reconhece que sente uma “grande responsabilidade” por ser uma das primeiras mulheres da história a votar num Sínodo dos Bispos e diz que as mulheres devem poder aceder à ordenação sacerdotal, mas deixa um alerta: isso só faz sentido quando o próprio modelo do sacerdócio atual, já esgotado, mudar radicalmente.

Cristina Inogés Sanz considera também que já existem “mais cristãos fora da Igreja a tornar realidade o Reino de Deus na sociedade do que dentro” — e diz que a Igreja tem de saber sair das quatro paredes em que ainda se procura fechar, para aprender a dialogar com o mundo. Mais: no entender da teóloga, são precisas mais mulheres como formadoras dos seminários, para que os padres não continuem a ser formados num ambiente “de onde toda a questão afetivo-sexual desapareceu”, que os torna incapazes de “enfrentar as próprias crises” e de entender as crises dos outros, desprovendo-os de “inteligência emocional”. Em outubro do próximo ano, quando estiver concluída a última reunião deste sínodo, não haverá uma reforma radical da Igreja, avisa Cristina Inogés Sanz. Pelo contrário: o próprio modelo deste sínodo (que implica que as decisões sejam tomadas com a participação de todos e não apenas pelos clérigos) deverá ser a grande revolução que cada diocese e paróquia do mundo precisará de implementar no futuro.

“Há vozes que nunca foram escutadas ao longo dos dois mil anos de história da Igreja”

Talvez faça sentido começar pelo mais básico: o que é o Sínodo dos Bispos?
Um sínodo é, ou foi, até agora, uma reunião de bispos em que se tratavam temas decididos previamente para ajudar o Papa no governo da Igreja. Digo que foi até agora uma reunião de bispos porque, neste sínodo, isto mudou. Pela primeira vez, 25% dos participantes — é muito, é um quarto — não vão ser bispos. Provavelmente, porque estamos a encaminhar-nos, devagar mas de modo constante, para aquilo que um sínodo devia ser: um sínodo do povo de Deus, e não apenas dos bispos.

Um “caminhar juntos”, é daí que vem a palavra.

Sim. É a imagem de caminhar juntos — e caminhar em conjunto todo o povo de Deus, não apenas uma parte do povo de Deus.

Desde os anos 60, do Concílio Vaticano II, tem havido vários sínodos, todos eles dedicados a temas diferentes. Os bispos reúnem-se um mês em Roma, fazem um documento e depois o Papa faz uma exortação apostólica. Mas, como estava a dizer, este sínodo vai ser diferente — ou já está a ser diferente. Em que medida? Além do facto de 25% não serem bispos.

Desde o primeiro momento, foi um sínodo absolutamente distinto, porque todo o povo de Deus estava convidado a participar. Ou seja, não foi algo que se decidiu ao longo do tempo ou que se mudou. Desde o princípio, convidou-se e deu-se todas as facilidades possíveis para que todo o povo de Deus participasse. Isto é algo que nunca tinha acontecido na história dos sínodos. Isto já lhe dá um carácter de novidade, de grande novidade. Mas também lhe deu um carácter de um certo risco — ou, pelo menos, foi isso que algumas pessoas viram —, ao dar a palavra a todo o povo de Deus. Mas, realmente, é assim que tem de ser. Ou seja, se na Igreja entendemos que a Igreja somos todos os batizados, a voz de todos tem de chegar. E há vozes que nunca foram escutadas ao longo dos dois mil anos de história da Igreja. Falou-se por eles, disseram-se realmente coisas importantes, mas nunca se deixou que essas pessoas explicassem, falassem, se dessem a conhecer.

Quer dar alguns exemplos concretos?

Por exemplo, aos pobres, a Igreja falou sempre. Mas nunca ouviu os pobres. A Igreja disse grandes coisas e a Doutrina Social da Igreja é riquíssima. Costumo dizer que, se muitos partidos políticos a conhecessem, ficariam assombrados com o conteúdo revolucionário que a Doutrina Social da Igreja tem. Mas, agora, temos outro tipo de pessoas: por exemplo, os migrantes. É muito raro o país europeu que não tem migrantes. E também não os ouvimos. Falamos sobre eles, mas não falamos com eles nem deixamos que a sua voz nos chegue. E as mulheres…

Antes de falar dessa questão, a que gostaria de voltar mais à frente, tinha outra pergunta: qual é o objetivo principal do Sínodo? Fazer um diagnóstico, um raio-x do que é a Igreja contemporânea? Produzir resultados concretos — ou o próprio modelo é já uma mudança da forma de estar da Igreja?

O próprio modelo. Há muitas pessoas que, mesmo depois de dois anos, ainda dizem: “Quando chegar o sínodo.” Não: o sínodo já está em marcha. O Sínodo da Sinodalidade está a permitir-nos, com a estrutura deste sínodo, estar já em movimento sinodal. Não é tanto mudar por mudar, mas creio que o objetivo principal do sínodo — mesmo que pareça uma coisa estranha no século XXI — é escutar-nos e conhecer-nos. Na Igreja, que tem o simbolismo maravilhoso de uma barca, vivemos como se fôssemos um submarino. Cada um estava num compartimento estanque, com a porta fechada. Os cardeais, os bispos, os sacerdotes, os diáconos, a vida religiosa, os leigos… Não havia uma fluidez na comunicação e não nos conhecemos. Realmente, não nos conhecemos. Por isso, o primeiro objetivo deste sínodo é pôr-nos a caminhar juntos, que é uma metáfora. É o significado de “sínodo”, mas creio que vai muito mais além: porque não é caminhar juntos, mas caminhar juntos para nos escutarmos e nos conhecermos. Esse é o objetivo primordial.

Além disso, espera também que o sínodo produza — talvez na forma de um documento do Papa — uma reforma de grande escala na Igreja? Creio que já a ouvi dizer ou escrever que este é o acontecimento eclesial mais importante desde o Concílio Vaticano II. Como é que isso se traduzirá?

Isso é certo. É o acontecimento eclesial mais importante desde o Concílio Vaticano II, porque na verdade é viver outra fase de aplicação do Vaticano II. O Vaticano II está, praticamente, sem se desenvolver. Este sínodo, o que está a fazer é recuperar em grande parte a eclesiologia do Vaticano II para permitir-nos pô-lo em funcionamento. As grandes mudanças, não sei exatamente. Sei apenas dizer que em outubro de 2024 não vamos ter uma Igreja sinodal. Estaremos a fazer uma Igreja sinodal. As grandes mudanças de que a Igreja necessita não podem acontecer da noite para o dia. É um processo em que tudo está, de alguma forma, entrelaçado — e, algumas vezes, enredado. Desenredar um novelo leva o seu tempo, se não, podemos romper o fio. São questões que estão todas demasiado entrelaçadas. Por exemplo, há questões que as pessoas acreditam que se o Papa confirmar com um decreto ficam solucionadas. Mas até chegar a isso é preciso um processo, desde educar a própria comunidade para que veja que as mudanças não pressupõem a rutura de nada, até mudar de cima a baixo a formação dos seminários, até se pensar de que modelo do ministério sacerdotal a Igreja e a sociedade precisam. São mudanças em cadeia, mas que não se podem fazer todas do dia para a noite. O que acontece é que a sabedoria do laicado, da ampla base do povo de Deus, intui que é preciso mudar. Por isso, surgiu o mesmo praticamente em todas as partes do mundo em que se trabalhou o sínodo. Mas as pessoas olham para o final do processo: não têm ferramentas para ver que passos é preciso ir dando no processo para que o processo seja seguro, para que a mudança seja segura. Isso é o que vai custar mais.

Diria, por exemplo, que se os próximos sínodos tiverem este modelo, se nas paróquias, dioceses e movimentos, esta forma de tomar decisões em conjunto — com os leigos, além do clero — passar a ser um modelo mais comum nas várias instâncias da Igreja, já é uma vitória deste sínodo?

A partir de agora, o laicado tem de tomar consciência de que descobriu várias coisas durante o processo sinodal que está em curso. Descobriu que sabe pensar, que tem boas ideias, que sabe expressar essas ideias e que ganhamos muito em escutar-nos uns aos outros. A partir de agora, o que é preciso fazer é pegar nas sínteses de cada diocese e começar a pô-las em funcionamento. Haverá dioceses que poderão ir mais rápidas, outras mais lentas. Mas temos de entender que é de extrema importância colocar em funcionamento as sínteses das dioceses, porque este sínodo — e Francisco, em geral, no seu pontificado — deu aos bispos, em cada diocese, muita autonomia. Neste momento, os bispos têm mais autonomia do que alguma vez na história. Por isso, neste momento, não há uma medida comum para todas as dioceses do mundo. Podem ir, cada uma, à sua velocidade. Mas é necessário descobrir que a síntese diocesana é aquilo que há que pôr em marcha — porque esse é, na realidade, o grande triunfo do sínodo. Não é o documento final.

A professora Cristina faz parte da comissão metodológica do sínodo…

…bem, agora na verdade as comissões já acabaram a sua missão. Neste momento, sou membro da assembleia, com direito a voto, por decisão de Francisco.

Que trabalho desenvolveu na comissão? E como surgiu o convite?

A essa pergunta, na verdade, ainda não sei responder! Não sei porque me escolheram para estar na comissão metodológica. Digo-o de verdade. Se no final do sínodo me inteirar, di-lo-ei, mas neste momento não sei.

Mas quem a contactou para fazer parte?

Chegou-me um e-mail do Secretariado do Sínodo, que simplesmente dizia: “Por favor leia o anexo desta mensagem e diga-nos que o recebeu.” Inicialmente, pensei que era uma brincadeira de alguém. Não estava à espera! E muito menos ao abrir o documento e ver o convite. Mas assim foi. Não sei, ainda, quem pensou no meu nome. A comissão metodológica foi a primeira a começar a trabalhar, em maio de 2021, para elaborar o primeiro documento, que se usou na fase diocesana. Foi complicado, no início, porque não tínhamos referências. Nos outros sínodos, não sabíamos como tinha funcionado, se havia comissões. Era como ter uma tela em branca e as tintas para a pintar, mas não sabíamos. Foi muito enriquecedor: na comissão onde eu estava, e praticamente em todas, havia pessoas dos cinco continentes. Isso permitiu-me abrir muito a mente. Pensamos que conhecemos muitas pessoas, que estamos muito bem relacionados e comunicados — mas, realmente, eu não sabia o que se passava na Igreja na Austrália, por exemplo. Não conhecia as peculiaridades da Igreja em Singapura. Essas questões foram muito interessantes, porque tínhamos de fazer um documento que servisse para todo o mundo. Não havia “versão ocidental”, “versão do sul”… Era um documento para todo o mundo. Isso permitiu, embora a princípio tenha sido um pouco complicado, fazer um documento amplo e com uma visão muito global.

E depois foi acompanhando as várias fases com a comissão?

Na comissão estivemos a trabalhar praticamente até 15 dias antes, quando fechámos o documento, para dar tempo para traduzir e rever. Mais tarde, quando já se tinha recolhido toda a informação da fase diocesana, a partir da informação recolhida, começámos a elaborar o documento da fase continental.

“Chegámos a um limite. A Igreja já não pode continuar a ser como é”

Gostava agora de entrar nos temas do sínodo. Entre 2021 e 2022, durante a fase diocesana e nacional, houve grupos de discussão nas paróquias e nas dioceses, os leigos puderam debater o que pensam sobre a Igreja e cada país fez o seu documento. Aqui em Portugal, o documento da Conferência Episcopal foi até muito criticado por alguns setores. Nesse documento, surgiram algumas questões: o facto de a Igreja negligenciar os jovens, ser pouco inclusiva, discriminar quem não vive de acordo com a moral católica, ser demasiado hierárquica, pouco disponível para escutar, incapaz de discutir abertamente o celibato e a ordenação das mulheres, ter processos de escolha das lideranças pouco transparentes e pouco inclusivos e não se adaptar aos tempos modernos. É um documento longo, com muitos dos problemas que a sociedade contemporânea aponta à Igreja. Foram estes também os problemas identificados no resto do mundo?

Sim. Foi muito surpreendente. Pensávamos, por exemplo, que na Indonésia haveria aldeias, pequenos núcleos de habitantes, em que se a pessoa mais velha dissesse que não se participava, não haveria participação. Assumíamos que era uma condicionante cultural. Achávamos que em África seria muito difícil a participação das mulheres devido à realidade cultural dos países. Descobrimos, curiosamente, que tínhamos preconceitos e rapidamente percebemos que não era assim. É certo, por exemplo, que em África a participação das mulheres foi mais alta nos núcleos onde havia missões que protegiam as mulheres. Contudo, a participação das mulheres em África foi muito forte. Praticamente em todo o mundo, a maioria dos participantes do sínodo foram mulheres. Mas é certo que os temas foram praticamente iguais. Podia variar um pouco a ordem — uns temas apareciam antes, outros depois —, mas eram praticamente os mesmos. Por isso, estamos plenamente convencidos de que é um sínodo onde o Espírito Santo está a falar constantemente.

Além disso, está a marcar linhas e como que a abrir — não vou dizer portas, porque é nossa responsabilidade abri-las —, mas está a empurrar um pouco a porta. Para que as pessoas estejam presentes. Por exemplo, as comunidades LGBTI: todos pensávamos que não iam participar. Mas participaram diretamente. Eu colaboro muito com a pastoral LGBTI no meu país, e também em Portugal, com o Movimento Sopro. Sobretudo no meu país, quando começou o sínodo, recebi muitos e-mails a perguntar-me se eu poderia fazer chegar as suas participações à Secretaria do Sínodo. Perguntei diretamente à Secretaria e disseram-me: têm de participar eles próprios, porque é a melhor maneira de se fazerem visíveis. Para que não tenham dúvidas, que participem pelas três vias: enviem à sua diocese, à conferência episcopal e à Secretaria do Sínodo, porque por algum sítio vão entrar. E de facto entraram — porque é algo que está recolhido no documento continental e no Instrumentum Laboris do próximo mês.

Portanto, na assembleia geral que vai ter lugar agora em outubro, estes serão os grandes temas? Estes temas que achamos, às vezes, que são tabu na Igreja?

É possível que sejam grandes temas, mas é preciso entender que não estão enumerados como temas. Por exemplo, toda esta realidade da inclusão, das mulheres, dos pobres, dos migrantes, tudo isso faz parte do que é, na realidade, a comunhão eclesial. Ou seja, não vamos abordá-los como o problema das comunidades LGBTI — falaremos delas, mas têm de fazer parte da essência. E a essência está na comunhão. Ou a realidade dos abusos: é um problema que afeta a comunhão da Igreja. Precisamos de abordá-lo a partir do aspeto da comunhão.

A questão dos abusos marcou a Igreja nos últimos anos. O Papa Francisco não tem hesitado em apontar as culpas ao problema do clericalismo. Este sínodo, chamando os leigos para a discussão, é também uma forma de contribuir para erradicar este problema que conduz ao abuso?

Quando falamos de abusos, vem-nos à cabeça aquilo que vemos constantemente, que são os abusos sexuais. Mas o problema dos abusos tem uma raiz que é o abuso de poder. E o abuso de poder nasce com o clericalismo. Ou seja, há que explicar um pouco a história. Porquê um Sínodo da Sinodalidade? Realmente, não estamos a inventar nada. Estamos a recuperar uma parte da Igreja que se encontra na Igreja do primeiro século. A Igreja nasceu sinodal e laical. O laical perdeu-se muito rápido, no final do século I e durante o século II, quando se sacralizou a figura do bispo e do presbítero. Aí, o laicado ficou de fora. Mas a Igreja foi sinodal até à Idade Média, até cerca do século XII. Quando se perde essa sinodalidade, aparece o clericalismo. E hoje sofremos as consequências desse clericalismo, que nasceu nesse momento. Uma parte dessas consequências é ter-se dotado a figura do clero de uma sacralidade inexistente, pelo que se sentiram com poder suficiente para manipular consciências, manipular espiritualmente, e para aquilo a que chegámos agora. O sínodo é uma forma de afrontar o clericalismo, mas é preciso cuidado: o clericalismo também existe entre os leigos.

O Papa Francisco tem dito, até, que é pior ainda nos leigos do que no clero. Mas podemos dizer que este sínodo sobre a sinodalidade surge também como resposta a uma Igreja crescentemente centrada no poder do clero?

Surge porque, digamos, chegámos a um limite. A Igreja já não pode continuar a ser como é, porque já não tem lugar na sociedade mostrando-se como foi até agora — reconhecendo que a Igreja fez muitas coisas boas e faz muitas coisas boas. Mas também fez coisas que não estão bem e que é preciso modificar. Não é adaptar-se ao mundo, não é renunciar a nada: é, simplesmente, ter a inteligência de saber estar no momento em que se está. Esse é um processo que, noutros momentos da história, a Igreja também viveu. A mudança do Renascimento: quando a Igreja se enfrenta, porque não o quis ouvir antes, com a realidade da Reforma de Lutero, a mudança que a Igreja faz aí é uma mudança total, praticamente. Mas isto aconteceu no século XVI. Estamos no século XXI. É preciso mudanças, porque a sociedade não é a mesma nem a própria Igreja está no mundo em que estava no século XVI.

Para fechar o capítulo da questão dos abusos: sei que acompanhou a realidade em Portugal nos últimos dois, três anos. Como é que interpretou o modo como os bispos portugueses lidaram com as consequências do relatório publicado em fevereiro?

Não há muita diferença entre os bispos do mundo no momento de reagir às investigações. É um padrão fixo que, mesmo que passem muitos anos entre a investigação num país e noutro, no final a forma de comportamento é sempre a mesma. Não consigo compreender totalmente porquê. Entendo que os primeiros países, as primeiras conferências episcopais — Irlanda, Estados Unidos, com o caso de Boston, que foi paradigmático —, não tenham sabido como reagir perante aquilo. Mas quando se começou a ver que não era algo só da Irlanda ou só de Boston, que era preciso pensar que aquilo se passava em todo o mundo, fizemos o mesmo que tínhamos feito na Reforma: não prestar atenção aos sinais que chegavam e esperar que em cada país estalasse o escândalo dos abusos. Na verdade, os bispos portugueses não reagiram de maneira diferente dos bispos de outros países, ou como vão reagir os espanhóis quando tivermos o relatório. É um comportamento muito parecido em todos os lugares. E quando parece que se avança um passo, chegam notícias como as do caso Rupnik, e a pouca credibilidade que tínhamos conseguido sofre um retrocesso tremendo.

Estava a falar concretamente daquelas declarações dos bispos portugueses depois do relatório, que foram algo hesitantes, apontando a falta de elementos para investigar. Sente que há uma certa relutância em aceitar o resultado destas investigações?

Os bispos, muitas vezes — e quero acreditar que o fazem inconscientemente —, mais do que proteger as vítimas, do que pôr-se abertamente ao serviço das vítimas, do que tentar na medida do possível reparar as vítimas, parece que se protegem das vítimas. Ou seja, é como se sentissem atacados pelas vítimas. Mas as vítimas não atacam a Igreja nem desacreditam a Igreja: a Igreja desacredita-se sozinha com a reação que tem quando as vítimas falam ou quando se descobrem novos casos. Segui através da televisão a conferência de imprensa onde se apresentaram os casos e impactou-me muito, e imagino que a toda a gente, porque foi a primeira vez que se escutou a voz das vítimas. Pela primeira vez, teve-se a consciência de que eram pessoas e não números ou percentagens. Isso muda muito a maneira de perceber. Para mim, foi precisamente por isso que foi mais incompreensível talvez a reação dos bispos de Portugal. Tinha de ter tocado muito mais a fibra do coração. Não colocarem-se na defensiva, mas sentirem-se muito tocados pela dor que as vítimas expressaram. Mas repito: o comportamento é muito parecido a todos.

“Não vivamos o voto das mulheres com excessiva euforia, a história da Igreja diz-nos que o pêndulo vai de um lado para o outro”

Um dos problemas apontados no relatório português do sínodo — e que imagino que surja noutros — tem a ver com a formação dos agentes pastorais, sobretudo dos padres. Há uma frase no relatório que diz que os sacerdotes apresentam “uma formação insuficiente para lidar com os problemas humanos da vida contemporânea”. Por exemplo, com as pessoas LGBTI, que já mencionou. Este parece ser um problema vital, a ideia de que a Igreja Católica de hoje parece não ter propostas e respostas para o mundo contemporâneo. Como é que espera que estas questões sejam abordadas na assembleia do sínodo?

É um dos temas mais importantes. Na verdade, tudo está relacionado. As casas constroem-se com cimento e, neste caso, o cimento é a formação dos seminaristas, a formação dos seminários. Voltamos ao mesmo tema. Há muitas pessoas que, quando se fala dos seminários conciliares, pensam que é do Concílio Vaticano II. Não! É do Concílio de Trento. Isso já cria uma marca. Em Portugal há uma exceção maravilhosa, que conheço, que é o seminário de Braga, onde há mulheres entre os formadores. Não é o habitual. Não sei se em Portugal há mais, mas em Espanha não. Um jovem entra num ambiente onde é formado sem um olho e sem um ouvido, porque não pode ver através da visão de uma mulher nem pode escutar a voz e a reflexão de uma mulher — e isso já condiciona muito a sua formação para o mundo em que vai desenvolver-se. Que, queira ou não, é um mundo tremendamente feminino, porque 80% da Igreja neste momento é formada por mulheres. Isto por um lado. E, por outro, forma-se numa realidade de onde toda a questão afetivo-sexual desapareceu. Não existe.

Portanto, não sabem nem como enfrentar as próprias crises, que qualquer ser humano vai viver na vida, porque lhes falta vocabulário para expressar o que acontece com eles, e não estão formados para entender que essas coisas podem acontecer com os outros. São formados muito mais a partir de uma moral estrita do que de uma antropologia onde caberia a explicação de tudo isso. Naturalmente, não têm as ferramentas mínimas em inteligência emocional — que é o que lhes permitiria entender-se a si próprios e entender os outros. Introduzir isto num ambiente em que, apesar de 25% não serem bispos, 75% são bispos — que sabem muito claramente o que querem nos seus seminários, e a quem só preocupa o número — vai ser complicado. Mas creio que, falando com serenidade, é possível expor a realidade.

A professora Cristina será uma das leigas a ter direito de voto. Portanto, vai fazer história: vai participar no primeiro sínodo em que os leigos têm direito de voto e o primeiro em que as mulheres têm direito de voto. Sente que é um primeiro passo para as mulheres terem mais peso nos lugares de decisão dentro da Igreja? Ou teme que se fique por aqui?

Neste momento, sinto uma grande responsabilidade, o que já é muito. Precisamente porque creio que estaremos muito sob o foco, pelo facto de haver 54 mulheres, pela primeira vez, a votar no Sínodo dos Bispos. Sinto essa responsabilidade. Muitas pessoas dizem-me: “Sim, chegaram aí, mas chegaram porque alguém vos levou.” Neste caso, Francisco. É verdade, mas também é verdade que a estrutura atual da Igreja teria impedido o acesso por vias mais naturais ou normais. Por isso, tento fazer uma leitura pela positiva, pensando que Francisco tem a convicção — mas também a sensibilidade e a coragem, porque o ambiente em que ele vive não é fácil nem cómodo — de destrancar a porta, pela parte que lhe toca. Abrir essa porta é um gesto que indica humildade, reconhecendo que existe essa porta e abrindo-a. Porque houve muitas mulheres que, ao longo da história, tentaram abrir essa porta e algumas delas perderam a vida a tentá-lo. Podia ter sido de outra maneira? Sim. Mas chegámos através dessa porta que foi aberta a partir do lado onde estava a chave. E há que agradecer o gesto. Agora, estou consciente de que é um momento histórico, de que está a acontecer uma mudança. Mas não vivamos isto com excessiva euforia, porque a história da Igreja diz-nos que o pêndulo vai de um lado para o outro. Há que estar preparado. Estamos no processo.

Esta questão leva a uma subsequente: na sua opinião, o caminho deve passar por admitir a ordenação de mulheres, no clero? Noutras igrejas, como a anglicana, parece funcionar. É algo que gostaria de ver acontecer?

Eu sou partidária do sacerdócio feminino. Não há razões teológicas que o impeçam. A partir do batismo, todos somos Cristos, portanto não há diferença alguma entre um homem e uma mulher para serem sacerdotes. Mas eu estudei numa faculdade protestante, onde vi a realidade das mulheres pastoras nessas igrejas. Não é que a Igreja não esteja preparada — o laicado, as comunidades não teriam qualquer problema. Mas creio que, para que as mulheres acedam, em condições mínimas de segurança — refiro-me sobretudo à segurança psicológica —, o ministério sacerdotal tem de mudar muito em relação ao que é atualmente. Ou seja, estamos a formar seminaristas num modelo ministerial que está esgotado, que não serve, mas continuamos a formá-los, porque não queremos enfrentar a realidade de que é necessário mudar. Pensamos que estamos numa crise, que vai passar e que tudo voltará a uma certa normalidade. Não, não vamos voltar a uma certa normalidade conhecida. O modelo ministerial tem de mudar. Que sentido tem, enquanto este modelo ministerial não muda, ordenar mulheres que a única coisa que vão fazer é aumentar a agonia de uma forma de Igreja que já deu de si tudo o que podia dar? O que é mais importante neste momento é que se reconheça o diaconado feminino.

Há muitas mulheres que são diáconos — diáconos sem papel, não têm um documento que as acredita, mas são diáconos. E, curiosamente, são diáconos num grau muito mais real no que o diaconado implica do que o diaconado permanente dos homens, que normalmente se centra em estar à volta do altar. Uma parte muito pequena do trabalho do diácono está no altar, mas o resto está longe do altar. Os homens que são ordenados no diaconado permanente, pelo menos no meu país, são uma espécie de acólitos mais importantes da paróquia, da catedral, do que seja. Mas esse não é o único trabalho. Por isso, creio que, neste momento, seria mais importante centrar a figura das mulheres, reconhecendo que implica realmente o diaconado, que é o que elas fazem — antes de querermos passar diretamente ao sacerdócio feminino, sobretudo sem modificar um modelo de ministério sacerdotal esgotado.

Mas que modificações considera que são necessárias no ministério sacerdotal?

O ministério sacerdotal que vivemos é um modelo que foi dando resposta a pequenas necessidades. Neste momento, o ministério sacerdotal já não é um ministério para viver nas paredes das igrejas. Neste momento, embora muitas pessoas não acreditem, há mais cristãos fora da Igreja a tornar realidade o Reino de Deus na sociedade do que dentro. Muitos mais. Pelas razões que sejam, decidiram não abandonar a Igreja, mas viver de outra maneira o seu cristianismo. Os sacerdotes continuam num modelo em que eles são quem representa o único modelo de ser. Um modelo muito sacralizado. Sacerdotes que não têm muitos conhecimentos em matérias que, digamos, ultrapassam a teologia — e das quais a teologia tem de aprender. Sacerdotes que vivem o seu sacerdócio como pessoas com uma sacralidade desmesurada, como se fossem os únicos garantes: que se não for em torno deles, a comunidade não existe. Este modelo não tem validade hoje.

Para quê ordenar as mulheres num modelo que, hoje, não serve? Era preciso, primeiro, assegurar a realidade das mulheres diáconos — que já não só apenas diáconos naqueles a que chamávamos países de missão, mas sim nos nossos próprios países. Creio que isso é muito mais importante do que dar esse passo, que também não resolveria o problema. Há cinco anos, escrevi um livro que se chama Não Quero Ser Sacerdote, em que explico porque é que eu não quero ser — porque não tenho essa vocação —, mas que apoio as mulheres que querem sê-lo. Para minha surpresa, muitas teólogas espanholas e hispano-americanas escreveram-me a dizer que também não queriam ser sacerdotes neste modelo de Igreja. Portanto, é preciso mudar o modelo de Igreja — porque, provavelmente, não será assim tão necessária essa figura. Antes, para chegar a certos lugares de governo da Igreja, era necessário ser ordenado. Mas Francisco, na Praedicate Evangelium, rompeu com isso. Já não é necessário o sacramento da Ordem para o governo da Igreja. Por isso, já nem toda a gente tem de ser ordenada para chegar a certos lugares. É preciso mudar o modelo.

Há quem argumente contra a ordenação de mulheres como forma de resolver a questão da igualdade entre homens e mulheres porque diz que isso significaria apenas mais uma forma de clericalismo, mas incluindo as mulheres no clero. A falta de igualdade entre homens e mulheres na Igreja era também um aspeto apontado no relatório do sínodo. Parece-lhe que a melhor forma de resolver esse problema passa, primeiro, pelo combate ao clericalismo? Por permitir que os leigos tenham a dizer na Igreja?

Sim. Sobretudo porque se, atualmente, as mulheres pudessem aceder ao sacerdócio, ao ministério, por muito boas intenções que tivessem, o clericalismo é tão forte que se sobreporia. Em vez de uma solução, o problema tornar-se-ia muito mais forte — mesmo que não o quiséssemos.

O Papa já por duas vezes criou comissões para estudar o diaconado feminino. Acredita que vai ver um passo nesse sentido ainda no seu tempo de vida?

A primeira comissão acabou num empate, por isso não serviu. A segunda não se reúne. Creio que é preciso romper com uma ideia que temos na cabeça. O trabalho dessas comissões era o de analisar profundamente como era o diaconado feminino na origem da Igreja, para saber se havia fórmulas. Mas creio que isso é um erro, porque a Igreja do século XXI não é a Igreja do século I. Mesmo havendo um modelo, não há razões para o reproduzir. É outro tipo de diaconado que hoje faz falta. Se não há uma fórmula, se não se encontra uma fórmula na origem, não há problema. Há que procurar modelos que sejam necessários hoje, que sirvam hoje. E não recuperar modelos que, noutro tempo, possam ter funcionado — mas que hoje não.

“Há um setor da Igreja que vive à imagem da Igreja da Cristandade”

Têm-se sentido na Igreja Católica algumas ondas de choque entre sensibilidades mais progressistas e mais conservadoras, à falta de melhor

termo. Nestes temas de que estamos a falar, elas parece que se notam de modo especial — há quem resista à ideia de que há um problema com os abusos sexuais e, de modo mais abrangente, quem veja formas de diálogo com o mundo contemporâneo como obras do demónio. Acha que estas tensões também se vão verificar na assembleia do sínodo? Já leu o elenco de participantes

Creio que o Papa Francisco, uma vez mais, deu provas da sua perspicácia, da sua visão. Na lista dos participantes que ele escolheu, há de tudo. Absolutamente todas as formas de pensar, todas as formas de entender a Igreja, todas as maneiras de abordar as questões. Creio que isso vai ser uma riqueza, se realmente formos capazes de nos libertar dos nossos preconceitos iniciais. Queiramos ou não, vamos olhar-nos à lupa. Há muitas pessoas que conhecemos por entrevistas, por títulos de jornal, mas não falámos com elas — e isso muda. O cara-a-cara muda. Então, creio que isso vai ser, evidentemente, uma riqueza. Vai ser uma riqueza que não vai ser fácil chegar a descobrir. Por exemplo, há pessoas que veem o mundo, neste momento, como um ataque constante à Igreja, ao Catolicismo, ao Cristianismo em geral. E usam sempre o mesmo argumento, que já serve neste momento como escudo: que a Agenda 2030 [da ONU] ataca diretamente a Igreja, ou o Cristianismo. Primeiro, vamos ver o que diz a Agenda 2030, vamos ler a Agenda 2030. A Agenda 2030 tem questões que são muito discutíveis e que podem ser vistas a partir de perspetivas muito diferentes. Mas também é verdade que tem questões em que, se a Igreja se soubesse pôr em diálogo — não duas ou três pessoas, que possam estar muito capacitadas para o diálogo, mas se estivéssemos todos formados para saber dialogar —, poderíamos mostrar que a Igreja, o Cristianismo, já se ocupa desses temas desde que o mundo é mundo e desde que o Cristianismo apareceu.

Mas é preciso estar conscientes de uma realidade: quer gostemos, quer não gostemos, o cenário onde vamos ter de viver como cristãos e como cristãos católicos foi desenhado pela Agenda 2030. Por isso, temos de aprender a viver aí. E é aí que temos de mostrar ao mundo que não somos nem reprimidos nem repressores. Que não somos atacantes por sistema, mas estamos abertos ao diálogo e a construir uma sociedade melhor. Portanto, estou certa de que isto vai surgir na assembleia de alguma forma — e levará às suas tensões. Porque também é certo que nem todos os cristãos do mundo vivem nas mesmas condições. Isso é evidente. Mas também é verdade que isso tem de nos fazer entender as possibilidades que podemos ter se deixarmos de lado os preconceitos e as questões que acreditamos, a priori, serem inamovíveis e intocáveis. Francisco tem repetido que a tradição não é algo fixo, mas que a tradição se move com a vida. É necessário começar a distinguir que uma coisa é o cimento da tradição e outra as formas com as quais mostrámos essa tradição e que agora estão antiquadas. Mas isso não significa que o núcleo, o cimento, mude. Só as formas.

Ainda há pouco tempo o Papa Francisco disse isso no encontro com os jesuítas em Lisboa — a ideia de que a doutrina muda. Isso parece ser uma mensagem muito clara para alguns setores da Igreja que idealizam, de certa forma, o passado. Idealizam uma Igreja do passado. Preocupa-a esta tensão, esta polarização entre setores mais radicais, quase ideológicos, e uma maioria que talvez fique indiferente a grande parte das discussões?
É certo que há um setor da Igreja que vive à imagem da Igreja da Cristandade. Ou seja, as grandes maiorias, os grandes eventos…

O império cristão…

O perigo está, sobretudo, em viver certas questões como se fossem um evento. O evento dura o que duram os fogos de artifício — ou seja, nada. O evento acaba. Os processos é que vão marcando. Para muitas pessoas que têm essa mentalidade do evento, dos tempos passados — e o que vou dizer não o digo como crítica ou de forma negativa —, têm uma visão muito religiosa do Cristianismo e da Igreja. Portanto, tudo tem normas, tudo tem leis. Se estamos dentro da norma e da lei, está tudo bem. Mas se questionamos algo, rompe-se alguma coisa debaixo dos pés. E há outras pessoas para quem a lei tem a sua importância, mas há uma lei muito mais acima da lei criada por nós, que é o Evangelho. O Evangelho é dinamismo, é vida, é mudança e é transformação. Isso, para algumas pessoas que têm a chave religiosa muito enraizada, pode causar um certo medo, que é muito humano. Não o critico, porque é muito humano. Mas é certo que entre essas pessoas de mente muito religiosa e outras de mente mais de Evangelho, por assim dizer, neste momento, o que há é uma indiferença absoluta. E isso, queiramos ou não, afeta as duas visões. Porque, no fundo, custa-nos muito aceitar que já não temos nenhum peso na sociedade, que não somos relevantes, que continuamos muitas vezes a dedicar muito dinheiro a ter uma presença que não se compra — e, se tivéssemos a convicção do testemunho, o testemunho é grátis. O testemunho muda.

A propósito dessa questão das regras e leis, li um artigo seu no Sete Margens em que perguntava no título: onde estão as associações pró-vida na questão dos abusos. Isso parece uma crítica a uma certa forma de estar dos movimentos que ficam obcecados com a questão do aborto.

Centrava o artigo, sobretudo, na questão dos abusos — e do abandono que, em princípio, as vítimas vivem. Penso sempre que este tipo de movimentos, que são muito respeitáveis, se ocupam muito do princípio da vida e do final da vida, mas quanto ao que acontece entre esses dois momentos, é como se ninguém se quisesse meter. É como se tudo fosse branco ou preto. O aborto em si é mau — sejamos crentes ou não. É mau, tem muitas consequências para a mulher, físicas e psicológicas. Isso é claro, sejamos crentes ou não. A eutanásia, como forma de nos desfazermos de um problema que, aparentemente, não tem solução, é certo que é mau. Mas nem tudo é branco nem tudo é preto. Muitas vezes, é preciso ver as circunstâncias das pessoas. Não para considerar bom o aborto ou a eutanásia. Quero dizer que é preciso compreender o contexto em que acontecem essas realidades. Mas, sobretudo, o que eu perguntava no artigo era: o que acontece se ninguém se preocupa com o que se passa entre o nascimento e a morte?

As migrações, a pobreza…

Na verdade, podemos aplicar isto a tudo.

Uma última pergunta: a Jornada Mundial da Juventude, pelo menos em Portugal, foi interpretada como um grande evento impulsionador de um novo ânimo para a Igreja. A dificuldade em fazer caminho com os jovens é uma preocupação apontada no relatório do sínodo — e imagino que seja um tema na assembleia. Que lições é que a Igreja pode tirar de um acontecimento como a JMJ?

No princípio do sínodo, houve um problema. No Sínodo dos Jovens [de 2018], uma das conclusões era a de que os jovens queriam uma Igreja mais participativa. Chegamos a este sínodo, que deu a possibilidade [de participação] a toda a gente e não apareceram os jovens. Não havia jovens. Em Espanha, detetou-se isso e houve um grupo de pessoas, que trabalham num programa que se chama “iMisión”, uma missão digital, que pediu permissão à Secretaria do Sínodo para adaptar o material à internet, para o mundo digital em que eles trabalhavam. Aí surgiu a surpresa: participaram mais de 200 mil jovens. Onde estão os jovens? Onde vivem os jovens? No mundo digital. Então, vamos procurá-los ao mundo digital.

A JMJ está muito bem, mas, por exemplo, agora que estão a recomeçar as aulas, sobretudo no hemisfério norte, vemos muitas vezes que surgem perguntas: o que fazer para atrair os jovens? Quando vejo essas perguntas, assalta-me uma dúvida: onde está a “juventude do Papa”? Se não estão agora, estavam há um mês. Onde estão agora? Estes eventos são importantes, não digo que não o sejam. Mas, se não há uma continuidade depois, volta a ser um evento que dura o que dura o fogo-de-artifício. Já não é apenas que se possam questionar muitas realidades, mas, por exemplo, ninguém parece pensar que, para muitos jovens de determinados países, é impossível conseguir um visto de saída. É algo que condiciona a presença de jovens de determinados países. Por exemplo, isso mesmo o fez notar, quando acabou a JMJ, o arcebispo de Rabat, em Marrocos, que disse: “Eu não fui, porque os meus jovens não puderam ir. Eu tinha facilidade para sair, mas os meus jovens não podiam sair, por isso eu não fui.” E isto acontece em muitos outros países em que, por exemplo, são precisos vistos para entrar na Europa ou nos Estados Unidos, onde seja. Estas realidades marcam. A JMJ é muito boa se não se ficar por um evento. E, sobretudo, ainda que pareça apenas uma questão de imagem, se a JMJ é o encontro mundial dos jovens, nas grandes celebrações não podem estar os bispos a ocupar os primeiros lugares. Os bispos têm de estar com os seus jovens. Não digo que um bispo de 73 anos durma num saco-cama. Não peço isso. Mas peço que, durante a celebração, esteja com os seus jovens — e não que esteja à frente, com regalias. Temos de nos acostumar. No final, parece que é um encontro estranho para ser sobre jovens.

Entrevista a Cristina Inogés Sanz – O Sínodo e as mulheres (PDF)