Em Vilar de Andorinho, celebrámos o V Domingo da Palavra de Deus

V Domingo da Palavra de Deus

Celebração na Paróquia do Divino Salvador de Vilar de Andorinho

Igreja Matriz – 21.01.2024 – 15h00

Coordenação e proposta de trabalho: Responsável dos Leitores da Paróquia – Maria Céu Castro

 

O Domingo da Palavra

Estamos nesta tarde para falar da Palavra.

Palavra escrita

Palavra dita

Palavra escutada

Palavra ditada

Palavra vida e Palavra vivida.

Sim, Palavra dita, escutada, ditada, vida e vivida por todos aqueles que a transmitem, tanto pela forma como a vivem e como -:<pela forma como a dizem.

O Papa Francisco não é um homem de meias palavras, mas de palavras inteiras e completas e, por tal motivo, instituiu o III Domingo do Tempo Comum com um dia dedicado à Palavra, à Palavra Revelada, à Palavra Verdade e da Verdade.

Assim, este é o Dia em que todos os leitores da Palavra são convidados a celebrar na Eucaristia, na oração e na intimidade do lar.

O lema proposto para este ano é tirado do Evangelho de João e diz:

Permanecei na minha palavra

Jo 8,31

Passemos, então, à apresentação e compreensão do lema feita por:

Rino Fisichella

Pró-Prefeito do Dicastério para a Evangelização

Secção para as Questões Fundamentais da Evangelização no Mundo

Apresentação

A expressão bíblica com que pretendemos celebrar este ano o Domingo da Palavra de Deus é tirada do Evangelho segundo João: «Permanecei na minha palavra» (Jo 8,31). Um dos factos mais empolgantes da história do povo de Israel é certamente o verificar como o veículo privilegiado com o qual Deus se dirige ao povo e a cada pessoa continuar a ser a “palavra”. Dizer que Deus usa a “Palavra” equivale a dizer que Deus fala, isto é, Deus sai do silêncio e no seu amor dirige-se à humanidade. O facto que Deus fala implica que pretende comunicar algo de íntimo e absolutamente necessário para o homem, sem o qual este nunca poderia chegar a um pleno conhecimento de si mesmo nem do mistério de Deus. O colóquio permanente entre Deus e o homem, que caracteriza a história bíblica, possui os traços da amizade. É um colóquio pessoal, que toca o homem no seu íntimo e o envolve numa relação de amor, alcançando cada um na sua história para estar próximo de cada pessoa.

O facto fundamental que atinge a história dando-lhe uma orientação diferente é este: em Jesus Cristo, Deus fala de maneira plena e definitiva à humanidade. Ele é a Palavra feita carne, a Palavra que desde sempre foi pronunciada e que agora se torna também visível. O que é dado a conhecer aos homens é a Palavra, o Logos, o Verbo, a vida eterna… termos que se referem à ideia central e fundadora: a pessoa de Jesus Cristo. Tornam-se então muito significativas estas palavras que Jesus dirige a todos nós, crentes nele, no Evangelho de João: «Permanecei na minha palavra» (Jo 8,31). É o convite a não nos dispersarmos, mas a “permanecermos n’Ele”, numa unidade profunda e radical, como a dos ramos à videira (cf. Jo 15, 1-7). No Quarto Evangelho, o verbo “permanecer” tem um valor paradigmático. Permanecer na Palavra de Deus é muito mais do que um encontro apressado ou mesmo fortuito. A Dei Verbum explica-o de modo admirável: «Na riqueza do seu amor fala aos homens como amigos e convive com eles» (Dei Verbum, 2). Deus não só fala com os homens, mas fica com eles durante muito tempo, como se fossem verdadeiros “amigos”, que se conhecem há muito tempo; Deus “convive” connosco, fica para partilhar alegrias e dores e para dar à vida um sentido de plenitude que não se pode encontrar noutro lugar. Na sua Palavra, Deus ilumina-nos com a «luz da vida» (Jo 8,12), como bem afirma o bispo Agostinho: «Se permanecerdes na minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, e podereis contemplar a verdade tal como ela é, não por meio de palavras sonantes, mas por meio da sua luz resplandecente, quando Deus nos saciar, como diz o salmo: A luz do teu rosto foi impressa em nós, Senhor (Sl 4,7)».

O Papa Francisco, na sua Carta Apostólica de conclusão do Jubileu da Misericórdia, encorajava que «cada comunidade pudesse, num domingo do Ano Litúrgico, renovar o compromisso em prol da difusão, conhecimento e aprofundamento da Sagrada Escritura: um domingo dedicado inteiramente à Palavra de Deus, para compreender a riqueza inesgotável que provém daquele diálogo constante de Deus com o seu povo» (Misericordia et misera, 7). Com a Carta Apostólica Aperuit illis, o Papa Francisco instituiu o Domingo da Palavra de Deus, fixando a sua celebração no III Domingo do Tempo Comum. Não é secundário que o Domingo da Palavra de Deus se insira num período em que a Igreja celebra o Dia do diálogo judaico-católico e a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, conferindo-lhe um grande valor ecuménico e de comunhão. De facto, a Sagrada Escritura é desde sempre uma ponte de diálogo e de contacto importante com as outras confissões cristãs e com as outras religiões. Além disso, os Evangelhos deste domingo, nos três ciclos litúrgicos, apresentam o início do ministério e da pregação de Jesus, o Verbo feito carne.

É uma iniciativa profundamente pastoral com a qual o Papa Francisco quer deixar claro

a importância que tem na vida quotidiana da Igreja e das nossas comunidades a referência à Palavra de Deus, uma Palavra que não está confinada num livro, mas que permanece sempre viva e se torna um sinal concreto e palpável. Cada realidade local poderá encontrar as formas mais adequadas e eficazes para viver este Domingo da melhor forma, fazendo «crescer no povo de Deus uma religiosa e assídua familiaridade com as sagradas Escrituras» (Aperuit illis, 15). Propomos este Subsídio pastoral como uma ajuda que queremos oferecer às comunidades paroquiais e àqueles que se reúnem para a celebração da Eucaristia dominical, para que este Domingo seja vivido intensamente.

O Domingo da Palavra de Deus permite uma vez mais que os cristãos reafirmem o convite persistente de Jesus a escutar e guardar a sua Palavra para oferecer ao mundo um testemunho de esperança que permita ultrapassar as dificuldades do momento presente. No caminho que o Papa Francisco convida toda a Igreja a percorrer em direção ao Jubileu de 2025, que tem como lema Peregrinos de esperança, o Domingo da Palavra de Deus torna-se uma etapa decisiva. A esperança que brota desta Palavra, de facto, provoca cada comunidade não só a proclamar a fé de sempre, mas sobretudo a comunicá-la com a convicção de que ela traz esperança a quem a escuta e a acolhe com um coração simples.

Propostas

EM COMUNIDADE

É bom recordar que a realização do programa não é o objetivo em si deste Domingo. O objetivo é, antes, encorajar o encontro contínuo, pessoal e comunitário, com a Palavra de Deus. Sabemos bem que escutar, partilhar, viver e anunciar a palavra de Deus não é tarefa de um único dia, mas de toda a nossa vida.

Formação de leitores

É fundamental que as comunidades eclesiais se empenhem na formação dos fiéis que exercem a missão de leitor nas Celebrações Litúrgicas, para que esses sejam verdadeiros proclamadores da Palavra com uma preparação adequada, como já é habitual para os acólitos ou ministros extraordinários da Comunhão. Como se lê na Exortação Apostólica Pós-Sinodal Verbum Domini (n° 58):

«É necessário que os leitores encarregados de tal serviço, ainda que não tenham recebido a instituição no mesmo, sejam verdadeiramente idóneos e preparados com empenho. Tal preparação deve ser não apenas bíblica e litúrgica, mas também técnica: A formação bíblica deve levar os leitores a saberem enquadrar as leituras no seu contexto e a identificarem o centro do anúncio revelado à luz da fé. A formação litúrgica deve comunicar aos leitores uma certa facilidade em perceber o sentido e a estrutura da liturgia da Palavra e os motivos da relação entre a liturgia da Palavra e a liturgia eucarística. A preparação técnica deve tornar os leitores cada vez mais idóneos na arte de lerem em público tanto com a simples voz natural, como com a ajuda dos instrumentos modernos de amplificação sonora».

Trazer a Palavra “no bolso”

Há uma história que me encantou quando a ouvi, por ser improvável e por ser bonita.

O Professor Universitário Frederico Lourenço, ateu confesso e tradutor da Bíblia dos LXX, afirmou que nunca vai de viagem sem o Novo Testamento.

E eu pergunto: Quantos de nós que nos afirmamos seguidores de Jesus fazemos isso?

É então, que aqueles que estão na génese do Domingo da Palavra, nos aconselham a:

 

Trazer a Palavra no telemóvel

Pode facilmente ter-se a Bíblia no telemóvel para a consultar em qualquer altura, existem diferentes aplicações e páginas de Internet em diferentes línguas, não só com a Bíblia, mas também com as leituras da Missa para cada dia, por exemplo a página Evangelizo, páginas onde se pode ler ou escutar a Palavra de Deus, páginas com comentários e reflexões sobre a mesma. Pode colocar-se um lembrete nas notificações para ter um momento todos os dias para encontrar a Palavra de Deus, de modo a que ela possa acompanhar-nos onde quer que vamos.

Aprofundar a Dei Verbum

Para aprofundar este precioso documento, a Constituição Conciliar sobre a Revelação Divina, sugere-se a leitura dos primeiros pequenos volumes da coleção Cadernos do Concílio, preparada pelo Dicastério para a Evangelização por ocasião do 60º aniversário do início do Concílio Vaticano II e como preparação para o Jubileu de 2025.

Apesar do lema proposto para este ano seja do evangelista João, eu proponho que conheçamos melhor o evangelista Marcos que nos acompanha durante este ano litúrgico.

  1. Quem foi Marcos?

            Marcos, judeu, foi discípulo de Paulo, que acompanhou na primeira viagem missionária, com quem             entra em rutura, voltando para Jerusalém e mais tarde de Pedro, de quem ouviu falar de Jesus.

            A tradição identifica-o com o João Marcos, companheiro de Paulo, que aparece nos Atos dos Após            tolos. Poderá, eventualmente, não ser o mesmo, mas conta a tradição que Pedro encontrou Marcos,             tornou-o seu companheiro, tanto de viagem como de interprete. Pedro tratava-o afetuosamente por             «o meu filho» e é para sua casa, isto é, para casa de Maria, mãe de João Marcos, que se dirige logo             após ter sido milagrosamente liberto da prisão por um Anjo durante aquela noite de Páscoa (At 12,8).

  1. Ao serviço de Pedro e através da sua pregação, vai escrevendo os sermões do Apóstolo dirigidos aos cristãos de Roma, compõe o Evangelho que leva o seu nome, e é o primeiro a ser escrito.
  2. Podemos, ainda, mencionar Papias, bispo de Hierápolis, que no século II nos informa que Marcos, que tinha sido intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, ainda que não em ordem, muitas das coisas ditas e feitas pelo Senhor, segundo as suas notas. Pois ele não ouviu o Senhor nem O seguiu, mas mais tarde seguiu Pedro, que compôs os seus ensinamentos de acordo com as necessidades, mas sem fazer uma composição ordenada dos ditos do Senhor. Marcos não cometeu nenhum erro em escrever algumas coisas, exatamente como ele as coligiu. Pois tinha apenas um desejo: não deixar nada de fora do que ouviu e não dizer nada de falso.[1]
  3. Acompanhou Pedro durante a sua prisão em Roma, escreveu as suas cartas e só o deixou depois do seu martírio. Marcos, discípulo e intérprete de Pedro, transmitiu-nos também por escrito o que tinha sido pregado por Pedro.

Escreveu o seu Evangelho entre os anos 66 e 70 da nossa era, em grego que era a língua erudita e mais falada na época. O tempo e o momento era difícil pois vivia-se o período da Guerra Judaica, mas antes da destruição de Jerusalém, no ano 70. O tempo é de perseguição.

Marcos tinha por objetivo mostrar o poder de Jesus Cristo, o Filho de Deus, que se manifesta na realização de muitos milagres.

As palavras do Evangelho de Marcos Ide por todo o mundo e proclamai a Boa Nova a todas as criaturas, explicou o Papa Francisco, indicam, claramente, o que Jesus quer dos seus discípulos.

Estrutura do Evangelho

É comum dizer-se que o episódio das perguntas de Jesus e das respostas dos discípulos e de Pedro acerca da identidade de Jesus «no caminho de Cesareia de Filipe (8, 27-30) constitui o centro do Evangelho de Marcos, mas, podemos encontrar neste Evangelho uma forma quiástica, isto é, os elementos estão dispostos de forma cruzada, a saber:

– Abre com um Prólogo (1,1-13) a que corresponde um Epílogo (16.1-8[9-20]); tem uma Primeira Parte, que podemos intitular «O começo do Evangelho na Galileia» (1,14-8,26) a que corresponde uma Terceira Parte que podemos intitular ‘Os últimos dias em Jerusalém (11,1-15,47). O coração deste Evangelho bate na sua Segunda Parte ou Parte central que podemos intitular «O seguimento de Jesus no caminho» (8,27-1052).

O centro deste Evangelho está, portanto, no episódio «no caminho» de Cesareia de Filipe, com a pergunta de Jesus aos discípulos: E vós quem dizeis que Eu sou? A pergunta não é neutra: «Quem sou Eu?», logo a resposta também não pode ser neutra, a resposta implica e acarreta uma decisão pessoal, um “dizer” pessoal, assumido, amadurecido, pensado, livre.

E neste momento eu vou ter a ousadia de colocar a questão de Jesus a cada um de nós: E NÓS, QUEM DIZEMOS QUE ELE É?

Será que respondemos de forma retórica e pré-definida?

Será uma resposta mecânica?

E nós?

O que somos?

Nós somos discípulos arautos da Boa Nova, da Boa Notícia!

Ouvimos no Evangelho do domingo passado que foram chamados dois discípulos, André e outro. Este outro não tem rosto nem nome. André chamou o seu irmão Pedro a quem Jesus batizou de Cefas, isto é, Pedra, e tudo aconteceu pelas quatro da tarde.

Esta é a hora do encontro, a hora do chamamento.

Mas… e o outro que foi chamado?

Não serás tu?

Não serei eu?

Não seremos nós?

Fixemo-nos agora numa passagem do Evangelho de Marcos que é tão querida na nossa paróquia Mc 9, 2-13

A Transfiguração de Jesus

 

Jesus subiu ao monte com três dos seus mais próximos: Pedro, Tiago e João. Eles viram e acreditaram.

Este episódio faz a ligação entre o Antigo e o Novo Testamentos. Façamos a leitura/leituras:

1 – Subir implica sempre esforço e cansaço, mesmo quando se passa a vida a caminhar de um lado para o outro, de um extremo para o outro!

É sempre mais fácil descer que subir…

2 – Eles subiram e viveram o inexplicável: Jesus transfigurou-se, isto é, ficou diferente. As roupas ficaram brancas, tão brancas como homem algum conseguiria branquear.

3 – Apareceram Moisés e Elias:

 – Moisés foi o homem que fez dos escravos do Egito um Povo, libertou-os do jugo do faraó e conduziu-os pelo deserto durante quarenta anos;

– Moisés foi o homem que conversava com Deus, mas nunca Lhe viu o rosto;

– Moisés foi o homem que recebeu as Tábuas da Lei, Lei que dura até aos dias de hoje, que o digam os nossos irmãos hebreus;

– Elias, o Profeta;

– Elias, tal como todos os profetas, era o arauto de Deus;

– Elias, lutou contra o deus Baal durante o reinado de Acab;

– Elias que foi levado para o céu num carro de fogo.

4 – Moisés representa a Lei.

Elias representa a Profecia.

E a transfiguração?

É o encontro entre a Lei e a Profecia antigas com a Nova Lei e a Nova Profecia inauguradas por Jesus.

Jesus é a Nova Aliança!

E a Nova Lei é a Lei do Amor!

Pedro, Tiago e João foram testemunhas e não perceberam e tiveram medo. O que era aquilo? O que estava a acontecer?

E Pedro, porque estava assustado, resolvia o problema com três tendas.

Para quê?

O medo era tanto!

E ouviu-se uma voz!

A voz saiu de uma nuvem!

Neste momento… os três caíram por terra. Não aguentaram o medo.

A voz, que falou da nuvem, foi a mesma voz que falou da sarça que ardia e não se consumia.

A voz era a voz do Pai que estava encantado com aquele Filho.

E acabou o encantamento!

E os três continuavam sem perceber!…

Chegou então a Hora de descer.

Queriam falar, mas o Mestre pediu silêncio!

Nada de revelações, nada de dizer o que vistes?

Mas…

O que é que eles viram e não perceberam?

É isso, tiveram uma imagem do Jesus glorioso, do Jesus ressuscitado.

Mas…

Ainda não estavam preparados.

Ainda não sabiam e não podiam acreditar o quanto o Mestre teria de sofrer, o cálice que havia de beber.

Jesus abriu-lhes a porta, mostrou-lhes que Ele era o Messias prometido, que era a promessa cumprida.

Vamos então esperar pelo terceiro dia, mas não esqueçamos que a hora do chamamento é pelas quatro da tarde e todos somos chamados!

  1. Lectio Divina (Leitura Orante da Bíblia)

Cada contacto crente com o texto da Sagrada Escritura é um encontro sempre desejado pela alma sedenta de Deus. Como uma flor que se abre ao sol, assim o coração humano se expõe ao sopro do divino Inspirador das palavras humanas assumidas e transformadas em palavras de Deus.

Uma abertura confiante: também eu posso agradar sempre a Deus!

O “toque” do Espírito é imediato no nosso texto, desde as primeiras palavras de Jesus. A alma é imediatamente arrebatada para as alturas da intimidade originária, da qual veio o Messias e onde se formaram as suas comunicações, destinadas a ressoar na história da humanidade. Esta lectio divina começa, de facto, com uma misteriosa promessa de compreensão exata da identidade de Cristo, da sua missão e das suas palavras, e do seu eterno posicionamento no “agrado do Pai”:

«“Quando tiverdes erguido ao alto o Filho do Homem, então ficareis a saber que Eu sou o que sou e que nada faço por mim mesmo, mas falo destas coisas tal como o Pai me ensinou. E aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só, porque faço sempre aquilo que lhe agrada”. Quando expunha estas coisas, muitos creram nele» (Jo 8,28-30).

Impressiona a perspetiva de uma misteriosa “elevação” que só mais tarde poderá ser identificada com a crucifixão. Este será o “lugar” espantoso de uma epifania do amor rejeitado, mas sempre fiel, como só pode ser aquele de “Aquele que é”. Já com estas primeiras palavras, o coração é imediatamente colocado no lugar nativo das próprias palavras de Cristo: essas são, sim, humanas, mas a sua origem é divina: «como o Pai me ensinou, assim eu falo».

A partir destas primeiras frases, intui-se a chave da união com Deus na concretude da vida: «fazer sempre aquilo que lhe agrada» (Jo 8,29). O agrado do Pai, o seu sorriso de bênção para com os seus filhos e filhas não é apenas um “OK” fiscal de um acerto de contas, mas é a própria felicidade de Deus que se derrama sobre as suas amadas criaturas, sobre as suas expetativas profundas, sobretudo quando estão expostas às “elevações existenciais”, com as feridas das várias crucifixões quotidianas.

Com a caneta na mão…

É oportuno registar o ambiente da cena, uma vez que a Bíblia se lê não só com os olhos, mas também com a caneta na mão (Carlo M. Martini). O oitavo capítulo do evangelho de João – com os seus 15 versículos (8,28-42) – insere o leitor no contexto de confronto e crescente tensão em que Jesus se encontra, empenhado no templo e arredores a levar a cumprimento a revelação da sua Pessoa diante daqueles que representam a parte melhor do povo eleito: os fariseus, os escribas e os Judeus.

Estes últimos, segundo o estilo joanino, são as mais altas autoridades de Israel. E é precisamente com estes Judeus, cada vez mais indispostos, que se intensifica de forma dramática o confronto. Jesus, que inicialmente se apresenta como “Eu sou”, será obrigado – apesar de uma adesão inicial de fé dos Judeus – a desvendar as intenções homicidas daqueles que se professam filhos de Abraão e filhos de Deus. As palavras de Jesus, interrompidas no versículo 42, seguem de facto com um dramatismo sem precedentes, que soa como um prelúdio da Páscoa, já próxima. Sente-se isto no inesperado “lamento” do Senhor que denuncia:

«Porque não entendeis a minha linguagem? Porque não podeis ouvir a minha palavra? Vós tendes por pai o diabo, e quereis realizar os desejos do vosso pai. Ele foi assassino desde o princípio, e não esteve pela verdade, porque nele não há verdade. Quando fala mentira, fala do que lhe é próprio, porque é mentiroso e pai da mentira» (Jo 8,43-44).

A Verdade de Deus – única fonte de uma liberdade feliz

“Então, Jesus pôs-se a dizer aos judeus que nele tinham acreditado: «Se permanecerdes fiéis à minha palavra, sereis verdadeiramente meus discípulos, conhecereis a verdade e a verdade vos tornará livres»” (Jo 8,31-32).

Jesus aqui fala àqueles que se tornaram seus discípulos. Propõe-lhes um caminho prolongado no tempo: é preciso permanecer na sua palavra, em sentido continuativo existencial.

A palavra de Cristo não é primariamente um objeto de estudo ou um tema de discussão reservado a especialistas (como os fariseus e os escribas). É um “permanecer” comparável ao contínuo “respirar” do oxigénio divino da palavra de Jesus, que coincide com uma intimidade crescente, segundo o modelo da intimidade entre o Pai e o Filho, que é assinalada nas palavras iniciais.

É neste “lugar” que se dá a assimilação existencial da Verdade. É nesta relação que se joga o “discipulado verdadeiro” que Jesus definirá como “amizade”. Só este modo de permanecer na sua palavra pode revelar o seu conteúdo, a sua mensagem e a sua energia vital: «Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu Pai» (Jo 15,15).

Deste modo, segundo João, graças a Jesus, chega-se ao conhecimento da Verdade, ou seja, ao conhecimento definitivo de Deus que manifesta à humanidade a sua origem e o seu destino final (a Trindade).

Jesus – Luz da Verdade que brilha nas trevas

O convite do Messias a permanecer na sua palavra começa a ressoar já no capítulo anterior.

Jesus subiu a Jerusalém para a Festa das Tendas e o seu ensinamento (7,1-24) suscita a discussão sobre a origem do Messias (7,25-30). Ele escolhe este momento para anunciar a sua partida iminente (7,31-36) que – embora dramática – coincidirá com a abertura das fontes eternas da água viva (7,37-39).

Contudo, esta promessa não acalma o confronto sobre a origem do Messias (7,40-53), baseado infelizmente num mero critério sociogeográfico. «Da Galileia não sairá nenhum profeta!», afirmam os opositores (7,50), talvez até maliciosamente na sua subtil alusão à incompreendida conceção de Jesus antes da formalização do matrimónio: «Nós não nascemos da prostituição. Temos um só Pai, que é Deus!» (8,41).

Mas João sabe-o desde o prólogo do seu evangelho: «A luz brilha nas trevas» (Jo 1,5). A Verdade de Deus brilhará nas trevas desta rejeição chocante, dando lugar a uma inesperada epifania desse Amor que coincide com o próprio Deus. Só Deus, no Messias crucificado, saberá de facto amar, atravessando também os espaços humanos da dor e do sem-sentido, abertos pelo pecado e pela rejeição.

Neste inferno humano, a Verdade brilhará ainda mais com a sua luz e a sua energia salvífica. É o esplendor da gratuidade própria do Dom que coincide com o próprio Deus. Como o Espírito Santo, depois da Páscoa de Jesus, este esplendor do dom gratuito será derramado sobre os discípulos durante o Pentecostes, assinalando um novo início da Vida sem ocaso.

Juntos no “hoje” na graça – libertados para nos realizarmos no dom

A lectio de Jo 8,28-42 abre aqui o olhar interior do coração ao mistério da salvação. A filiação original entre o Criador e Adão, na quietude do paraíso, foi obscurecida pela rebelião, causada pela inveja da antiga Serpente (cf. Sb 2, 24). Também assim foi obscurecida a paternidade de Deus. A visão de Deus, do mundo e do próprio homem revestiu-se de suspeição e traduziu-se numa hostilidade da criação, numa violência crescente na humanidade e num silêncio do Céu…

Só uma nova palavra criadora do Pai poderia devolver a vida a uma realidade marcada pela morte.

O Logos (Verbo) divino que não conhece treva alguma, o Filho amado, foi “pronunciado” e enviado na encarnação para refulgir na noite do mundo, manifestando a fidelidade do Criador à sua criatura amada.

Para que o homem pudesse compreender isto e renascer ainda mais belo do que a primeira criação, o Filho do Homem tinha de entrar na morte de todo o sentido e de toda a relação, continuando a amar mesmo descendo aos infernos da existência humana longe do coração do Pai. É aqui que reside a libertação do mal, que Jesus nos ensinou a pedir no final do “Pai Nosso”, mas ainda mais a libertação para “ser-em-dom” e assim encontrarmo-nos num “nós”, reflexo da Trindade.

Permanecer na Palavra – permanecer em Jesus

Jesus revelou-nos hoje esse “Lugar” de onde veio e para onde regressa, com a sua páscoa, juntamente connosco: «Aquele que me enviou está comigo. Ele não me deixou só, porque faço sempre aquilo que lhe agrada» (8,29). “Estar com Ele” para sempre – eis o destino da humanidade, que se torna novamente acessível a todos aqueles que permanecem na sua Palavra.

É a síntese de todo o Evangelho: permanecer na Palavra coincide com permanecer em Jesus, como ele permanece no Pai. É um “viver em Cristo”, seguindo-o de perto, em direção à nova criação, originada na cruz, participando na sua epifania do Amor que não tem fim.

No encontro com esta Verdade está a resposta à pergunta que está na base de toda a ação cristã: pode o homem exprimir plenamente a sua liberdade no dom gratuito de si? A resposta encontra-se nas palavras de Jesus na Última Ceia: «Quem ama a sua vida, perdê-la-á, e quem despreza a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna» (Jo 12,25).

Senhor, tu repetes a cada um de nós:

«Permanecei em mim e eu em vós» (Jo 15,4).

Pedimos-te a graça de confiar plenamente nas tuas palavras, que agora se tornaram a nossa vida.

Concede-nos que, oferecendo-nos constantemente pela vida do mundo, como tu fizeste, nos saibamos teus amigos.

Assim estaremos sempre envolvidos pela luz das tuas palavras e aquecidos pela sua graça,

permanentemente inseridos em ti,

que és a Palavra do Pai,

cheia do Espírito de Amor.

Amém.

[1] COUTO, António, Introdução ao Evangelho segundo Marcos, 2015

 

DOMINGO DA PALAVRA 2024 (PDF)