DOENÇAS E DESASTRES NATURAIS:
CASTIGOS DE DEUS OU FENÓMENOS DA NATUREZA?

Luís Ferreira do Amaral SJ

CENTRO COMUNITÁRIO S. CIRILO – PORTO


AS DOENÇAS SÃO CRIAÇÃO DE DEUS?

     O mundo inteiro vive tempos conturbados, abalado por uma pandemia. Com um fenómeno destas dimensões (e mesmo não sendo algo de verdadeiramente novo) é natural que uma série de questões possa surgir, também a nível teológico.
     Uma ou outra vez se ouve dizer que a pandemia do coronavírus poderá ter sido enviada por Deus, como uma espécie de castigo ou punição. Poderá uma visão cristã afirmar ser Deus o criador das doenças e das pandemias? A ser verdade, isso poderá naturalmente chocar a nossa sensibilidade de hoje (e, como mais adiante veremos, por boas razões).
     Como em tantas outras ocasiões, para uma questão como esta não parece haver resposta simples e imediata, de sim ou não. O que não quer dizer que não possamos buscar caminhos de resposta, com vista a aprofundar o nosso modo de entender estas coisas. É isso que, nas linhas seguintes, iremos tentar fazer.

 

QUE NOS DIZ A BÍBLIA?
EVOLUÇÃO DA IMAGEM DE DEUS

Como bom princípio de reflexão teológica, talvez possamos começar pelas Sagradas Escrituras. Que nos diz a Bíblia a este respeito?
     Algumas passagens do Antigo Testamento – várias, aliás – descrevem episódios de doenças ou outras catástrofes (que hoje chamamos naturais) a atingirem populações inteiras, incluindo o povo de Israel. Entre as mais conhecidas, poderemos talvez recordar as pragas do Egito, que atingiram o povo que escravizava os israelitas (Êxodo 7–82). É também bem conhecido aquilo que é descrito como tendo acontecido às cidades de Sodoma e Gomorra, sobre as quais é dito que “o Senhor fez cair do céu uma chuva de enxofre e de fogo” (Génesis 89,24). A David, o profeta Gad diz para escolher entre fome, guerras ou peste, para o Senhor poder executar uma delas (2ª Samuel 24,82–83). Os exemplos são múltiplos.
     Estes desastres são muitas vezes entendidos como sendo castigos ou punições (extrínsecos) que Deus, como juiz, depois de ter observado ações reprováveis, envia contra os que as cometeram. Será então difícil não reconhecer a ligação explícita que os textos bíblicos repetidamente estabelecem entre estas calamidades e o poder de Deus, como sua origem.
Com alguma frequência podemos, pois, encontrar no Antigo Testamento passagens (algo incómodas para nós hoje) em que Deus aparece com um comportamento punitivo, esforçando-Se mesmo, por vezes, por conter a sua ira (numa visão que pode por vezes parecer até algo antropomórfica).
     Ao mesmo tempo, porém, não é menos verdade que, em várias outras ocasiões, o texto sagrado descreve o nosso Criador como um Deus paciente e tolerante, benevolente e misericordioso (“um Deus de perdão, clemente e compassivo, lento na ira e rico em misericórdia” – cfr. Neemias 9,87; Joel 2,83). Nas mesmas Sagradas Escrituras, nem todas as descrições de Deus parecem estar, portanto, em perfeita sintonia entre si. Estas discrepâncias, como mais adiante iremos ver, tornam-se mais flagrantes ainda se tivermos em conta o modo como Deus aparece descrito no Novo Testamento – desde logo a partir da palavra e do testemunho do próprio Jesus.
     Como explicar tais discrepâncias? Dificilmente estas poderão ser entendidas, se não assumirmos que, ao longo dos vários séculos, a imagem de Deus terá ido evoluindo. Não se trata de dizer que Deus foi mudando: trata-se, sim, de assumir que a imagem de Deus que o povo de Israel foi coletivamente concebendo é uma imagem que, ao longo do tempo, se foi transformando e purificando.
     Essa mesma evolução terá ido então ficando registada nos vários Livros Sagrados que ao longo de séculos foram sendo redigidos (até terem sido juntos e formarem aquilo a que hoje chamamos ‘Bíblia’).

 

SÓ EM JESUS CRISTO A IMAGEM PERFEITA
DE DEUS PODE SER ENCONTRADA

Como atrás referido, na nossa cultura, a imagem de um Deus que possa enviar para a Terra castigos em forma de calamidades parece muitas vezes chocar-nos hoje. Este próprio facto poderá também fazer-nos interrogar: porque é que hoje tal imagem nos chocará? Na verdade, durante séculos, muitas culturas e religiões cultivavam imagens de deuses que não só se preocupavam pouco com o destino dos habitantes da Terra, como por vezes eram eles próprios os criadores do seu sofrimento (inclusivamente para se divertirem). Durante muito tempo, visões religiosas como estas pareciam ser tidas como aceitáveis ou até normais.
     No que à revelação cristã diz respeito, um decisivo passo em frente tem lugar, evidentemente, com o surgimento da figura de Jesus Cristo (isto sem esquecer que é no seio de uma cultura judaica que Jesus nasce e cresce). De facto, a Bíblia não termina com o Antigo Testamento. Ainda que o Antigo Testamento anuncie e prepare o que vem a seguir, de um ponto de vista cristão, os textos bíblicos estariam obviamente incompletos se não incluíssem também o Novo Testamento. Mais do que isso, uma perspetiva cristã não pode deixar de reconhecer a primazia do Novo Testamento em relação ao Antigo. De facto, é no Novo que os cristãos encontram a chave de leitura mais adequada para ler o Antigo.1

1 Chave das «Escrituras»” ou “chave de interpretação” do Antigo Testamento são expressões que o Cardeal Joseph Ratzinger atribui à figura de Jesus Cristo. Ratzinger recorda que, já desde pelo menos os Padres da Igreja, os cristãos têm feito uma “interpretação cristológica do Antigo Testamento(prefácio do documento da Pont.Com.Bíblica Il Popolo Ebraico e le sue Sacre Scitture nella Bibbia Cristiana, Lib.Ed.Vaticana, Vaticano, 2008).

Na verdade, para um cristão, o culminar da Revelação Divina é alcançado apenas na pessoa de Jesus Cristo. Ainda que todos os seus precursores Lhe tenham de facto preparado o caminho, é apenas em Jesus Cristo que os cristãos encontram a imagem perfeita de Deus (tanto quanto, nos limites e possibilidades de seres humanos, O podemos contemplar). Um ponto de vista cristão reconhece, por conseguinte, a primazia de Jesus Cristo, o “Filho de Deus”, sobre todos os anteriores profetas – concretamente no que diz respeito à Revelação de Deus.2
     O próprio Jesus afirma explicitamente “quem Me vê, vê o Pai” (João 84,9). Se assim é, tornar-se-ia então difícil (para não dizer contraditório) pretender manter a imagem de um Deus justiceiro e castigador, já que não é claramente esse o testemunho que Jesus, com as suas palavras e com a sua vida, nos dá. De facto, em Jesus encontramos uma figura tolerante, misericordiosa, e que diz explicitamente que “não vem para condenar, mas sim para salvar” (João 3,87; João 82,47). Dificilmente uma visão cristã de Deus poderá, por isso, ser compatível com a imagem de um Deus que decide enviar sofrimento e morte (e, mais ainda, se o faz a um grande número de pessoas, indiscriminadamente). Tal comportamento não parece ser próprio de um “Pai” (a expressão que Jesus usa para se referir a Deus) e menos ainda de um Pai bom.
     Por boas razões então alguns dos textos do Antigo Testamento passaram mais tarde a tornar-se algo incómodos para nós. De facto, numa mentalidade durante séculos influenciada pela mensagem cristã, onde a “Boa Nova” de um Pai benigno e do Seu amor por nós é anunciada e celebrada, antigas perceções de Deus dificilmente poderiam subsistir.
     Assim sendo, aspetos ou imagens de Deus que possam revelar-se incompatíveis com a imagem que Jesus Cristo nos revela terão então provavelmente de ser entendidos como momentos transitórios de uma caminhada evolutiva no nosso modo de entender Deus (a qual terá por isso de incluir, necessariamente, imagens mais antigas e menos perfeitas de Deus).
     Entretanto, especificamente no que diz respeito a calamidades que possam surgir, é o próprio Jesus que nos convida a não tirarmos conclusões precipitadas. Assim, não será por alguma desgraça ter caído sobre algumas pessoas que podemos concluir que as mesmas pessoas terão necessariamente feito algo de mal (que justifique a sua desgraça). No evangelho segundo São Lucas, por exemplo, Jesus afirma claramente que as dezoito pessoas sobre as quais caiu uma torre (ou outras que Pilatos escolheu para serem executadas) “não eram mais culpadas” do que outras pessoas não atingidas por tais desgraças (Lucas 83,8–5).

2 O episódio da transfiguração de Jesus (no qual aparecem Moisés e Elias, duas das grandes figuras do Antigo Testamento) é um dos exemplos em que a primazia de Jesus em relação a todo o A.T. é posta em evidência (Mateus 87,8–9, Marcos 9,2–80, Lucas 9,28–36).

No episódio da cura do cego de nascença (João 9,8–3) os discípulos perguntam a Jesus quem teria pecado para aquele homem ter nascido assim (ou seja, para os discípulos, teria alegadamente de ter havido algum pecado como origem daquela cegueira). Ao responder, Jesus afirma claramente que “nem ele, nem os seus pais” tinham pecado. Jesus mostra assim, uma vez mais, que uma doença não tem necessariamente de ter sido originada por alguma culpa anterior.
     De resto, ainda no seio do Antigo Testamento, esta mesma questão é tomada pelo livro de Job como tema central. Ao longo de todo o livro, Job procura denunciar como falso o vínculo de causa-efeito que podemos insistir ter necessariamente de haver entre uma calamidade e eventuais culpas passadas.3

 

AUTONOMIA DA CRIAÇÃO.
EVOLUCIONISMO E CONTRIBUTO DAS
CIÊNCIAS EMPÍRICAS

Então se não é Deus que planeia ou deseja as calamidades, como podem estas surgir no nosso mundo? Mesmo sabendo que para a antiga questão do mal no mundo nunca é possível encontrarmos respostas totalmente satisfatórias, talvez tentar aprofundar alguns temas possa, ainda assim, ser de alguma ajuda.
     Comecemos por atender ao próprio conceito de ‘Criação’. Se acreditamos que Deus cria algo (algo diferente de Si Mesmo), então deixamos de poder identificar Deus com a sua Criação. De facto, ainda que criada por Deus, a Criação não é Deus – e menos ainda se a entendermos como dotada por Deus de alguma autonomia. Na verdade, uma perspetiva cristã atual vê, por um lado, o nosso Universo como (constantemente) trazido à existência pelo poder criador de Deus. Mas por outro lado, entende também esse mesmo Universo como dotado
de alguma capacidade para, ao longo do tempo, se ir como que criando ou moldando a si próprio.
     Graças às descrições científicas da história da evolução no nosso planeta a que hoje temos acesso, temos agora maior consciência do imenso potencial de vida que se encontra no universo: nos seus elementos mais básicos ou elementares.4 Ainda que o seu potencial esteja neles inscrito desde o início, trata-se, porém, de um potencial ainda não realizado.

3 No livro de Job, a causa última das desgraças é atribuída à figura de um ser diabólico. Recorde-se que o livro foi escrito muitos séculos antes do nascimento da ciência moderna (provavelmente no século VII a.C. – cfr. The New Jerome Biblical Commentary, Prentice Hall, Upper Saddle River, New Jersey, 8990, pag.467). “Que mal fiz eu a Deus?” parece, apesar de tudo, ser uma expressão ainda utilizada nos dias de hoje, quando desgraças ou dificuldades imprevistas nos surgem.

Para que esse potencial seja atualizado, torna-se necessário que combinações entre esses elementos possam ser feitas, ensaiando novos e variados tipos de relações. Através de combinações cada vez mais complexas, podem ir então surgindo estruturas orgânicas com padrões de comportamento cada vez mais ricos e surpreendentes.
     A partir do momento em que surgem no mundo estruturas capazes de se auto-replicarem, uma nova etapa se inicia. Daí em diante, num processo autopoiético (tal como notado por Darwin), as soluções que melhor se adaptam ao ambiente circundante conseguem ir prolongando a sua existência ao longo do tempo (enquanto outras, menos adaptadas, simplesmente não permanecem). De acordo com o que hoje sabemos, terá sido deste modo que, ao longo de um processo de evolução de muitos milhões de anos, formas cada vez mais complexas
de vida terão surgido no nosso planeta (desde os organismos unicelulares até ao próprio ser humano).5
     É de notar que, ao longo de todo este processo, mesmo que não intervenha para alterar o curso dos acontecimentos, a ação criadora de Deus é vista como não deixando nunca de estar presente: seja trazendo os elementos à existência, seja fazendo com que estes sejam o que são. Ou seja, fazendo com que cada um deles mantenha as suas propriedades e continue a reger-se de acordo com os seus específicos padrões de comportamento. Estas propriedades (que encerram já o potencial daquilo que poderá vir a surgir) encontramo-las, desde o início, inscritas nesses mesmos elementos: algo que, em si mesmo, pode ser entendido como sinal de uma intencionalidade – e por isso mesmo de um Alguém – por detrás.
     Por outro lado, para que a Criação tenha também a capacidade de evoluir e crescer, por assim dizer, “por si própria” (autonomamente), é então necessário que o Criador, que a traz e mantém na existência, Se faça também, de algum modo ausente, eclipsando-Se ou esvaziando-Se

4 O próprio surgimento do coronavírus pode ser visto como mais uma prova do potencial que os elementos químicos mais elementares têm para gerar formas de vida (mesmo sendo discutível se um vírus deve ser considerado um ser vivo ou não, podemos certamente afirmar que os vírus contêm elementos básicos de vida – e, como podemos verificar, têm infelizmente grande capacidade para interagir com formas existentes de vida).
5 O Catecismo da Igreja Católica afirma que “Deus quis livremente criar um mundo «em estado de caminho» para a perfeição última” (C.I.C., 380). Numa síntese extraordinária de ciência e teologia, o Padre Teilhard de Chardin propôs uma cosmovisão na qual tenta mostrar como, a partir dos elementos mais básicos, a vida pôde surgir no nosso universo. E como, a partir da vida biológica, o pensamento e a própria consciência humana se puderam depois desenvolver (cfr. sobretudo O Fenómeno Humano, Livraria Tavares Martins, Porto, 8965).

para lhe dar espaço.6 Este facto de, em pelo menos em algumas das suas dimensões, a Criação poder moldar-se a si mesma é algo que, da nossa parte, podemos por vezes experimentar como motivo de inquietação ou até de angústia – sobretudo se esquecemos que, enquanto contínuo Criador nosso, Deus não pode também deixar de “estar (ou ser) sempre connosco”.

 

COMO PODE UM VÍRUS SURGIR?
INTENCIONALIDADE E FINALIDADE:
CONCEITOS QUE TÊM APENAS SENTIDO POR REFERÊNCIA
A SERES PESSOAIS

Especificamente no que diz respeito a este coronavírus, sabemos que uma das possibilidades é que tenha sido originado por combinações e mutações de vírus previamente existentes em diversas espécies de animais selvagens. Tendo alguns desses animais sido postos em contacto uns com os outros durante um período de tempo suficiente, uma combinação de vírus poderá, por seleção natural, ter finalmente vindo a assumir uma forma eficaz para penetrar e multiplicar-se dentro do corpo humano. Daí até à propagação em larga escala, tratar-se-ia de uma questão de tempo apenas.
     Seja esta ou outra a explicação final, a busca de uma explicação para o surgimento do coronavírus (como de outros fenómenos naturais) pertencerá ao domínio das ciências empíricas. Em lugar de o encarar como alguma espécie de punição ou castigo de tipo moral ou jurídico-penal, este surto (tal como outros tipos de desastres naturais) pode ser visto então como simples resultado da ação de forças cegas da Natureza (ainda que eventualmente coadjuvadas por algum tipo de ação humana, mais ou menos consciente). E, portanto, como um evento não-intencional (inserido num projeto maior: o projeto da Criação – o qual, esse sim, podemos ver como envolvendo já uma intencionalidade por detrás).7

6 Um entendimento como o aqui proposto vê então Deus como Criador, mas à maneira de alguns movimentos criacionistas, defensores de um certo tipo de Intelligent Design (de acordo com o qual, cada uma das características dos seres vivos teria sido definida à partida, e em pormenor, pelo Criador). Na verdade, Deus pode ser entendido como Criador, sem ter necessariamente de ser visto como designer.
7 O modo como se leem os acontecimentos (e as intencionalidades que se deduz estarem, ou não, por detrás) dependerá em grande medida de quem faz essa interpretação. De facto, como mostra John Searle, características como “intencionalidade”, “finalidade”, “função” ou “posse” não são algo de intrínseco a eventos ou a objetos, mas são antes características que lhes são mentalmente atribuídas por seres pessoais (cfr. The Construction of Social Reality, Free Press, New York, 8997).

Do ponto de vista humano, as forças da Natureza podem por vezes ser vistas como duras ou até cruéis (algo que é compreensível, já que é assim que, enquanto seres humanos, por vezes as sentimos). No entanto é importante ter presente também que, ao contrário dos seres pessoais, as forças da Natureza, em si mesmas são “cegas”: não desenvolvem a sua ação de acordo com algum tipo de intencionalidade ou finalidade por si concebidas.
     Assim sendo, querer adjetivar essas forças da natureza com classificações morais seria como que “antropomorfizar” dinamismos ou forças impessoais que simplesmente fazem o que fazem de acordo com as leis que as regem: maquinalmente, sem mais. Do mesmo modo, também não parecem fazer muito sentido (pelo menos literalmente falando) afirmações do tipo “a Natureza vinga-se”; ou ver esta pandemia como “uma reação do planeta às múltiplas agressões que tem sofrido”, já que tal seria pretender atribuir uma motivação de finalidade ou intencionalidade à ação de realidades ou dinamismos que, de si, são impessoais.8
     Ao mesmo tempo é importante recordar que, se por um lado as forças da Natureza podem por vezes ser causadoras de desastres, é também graças esses mesmos dinamismos da Natureza que, num longo processo de evolução, puderam surgir as mais diversas e complexas formas de vida que encontramos hoje no planeta (incluindo nós próprios). Por isso, se é verdade que estas forças são “cegas” e não agem motivadas por uma intencionalidade própria, o mesmo não se poderá já dizer (pelo menos a partir de uma perspetiva crente) da sua razão de ser neste mundo: do propósito ou finalidade última da sua criação.
     Eventuais passos aleatórios ou dados em falso (ou que a nós possam aparecer como tal) poderão então ser vistos como parte do preço a pagar pela autonomia concedida à Criação (para que ela seja, e para que possa também criar-se a si própria). Desta forma se poderá compreender melhor a expressão escolhida por São Paulo, quando se refere às “dores de parto” que a Criação tem até o presente sofrido – estas ‘dores’ serão então parte necessária do processo de geração daquilo que está para vir (Romanos 8,22).9

8 Apenas de seres pessoais se pode dizer agirem motivados por aquilo que Aristóteles chamava uma “causa final”: apenas seres pessoais têm a capacidade de abstração que lhes permita conceber uma situação não-existente (desligada da situação concreta atual) à qual pretendam chegar. E dispondo também da capacidade de planear e escolher meios que permitam vir a alcançá-la.
9 É de notar que, na mesma passagem, S. Paulo aponta para o sentido de toda esta caminhada, acrescentando também estar convencido que os sofrimentos do tempo presente não têm comparação com a glória que há de revelar-se em nós” (Romanos 8,88). Entretanto, a mesma imagem de um nascimento terá já sido usada pelo próprio Jesus (cfr. João 86,28).

 

DA AUTONOMIA DA NATUREZA À LIBERDADE HUMANA:
UMA CRIAÇÃO QUE RECEBE PODER DO SEU CRIADOR.

Como vimos, para que a Criação seja, Deus deixa (pelo menos de alguma maneira) de ser: ao criar (ao criar algo diferente de Si), Deus deixa de ser tudo. E para que, no seio da Criação, o ser humano seja, Deus abdica mais ainda do seu poder. De facto, com o surgimento da liberdade humana, uma das suas criaturas torna-se, ela própria, também criadora (ou cocriadora) da realidade à “imagem e semelhança de Deus”.
     Ao contrário de outras forças ou dinamismos da Natureza, o agir humano é dotado (esse sim) de características de intencionalidade e finalidade, não podendo já ser considerado como um agir “cego”.
     Uma vez mais, podemos verificar então que nem todos os passos dados na Terra serão necessariamente, em si mesmos, queridos pelo Criador (até porque alguns deles não irão dar a lado nenhum). Ou seja, nem todos os acontecimentos particulares do mundo (originados pelas forças da Natureza ou por ação humana) serão intencionalmente desejados por Deus. Este ponto torna-se bem patente se atendermos àquilo que a teologia chama ‘pecado’ (que, por definição, é oposição à vontade de Deus). O facto de existir pecado no mundo parece, na verdade, servir bem de prova de que nem tudo o que acontece no mundo é querido por Deus.
     Como bem sabemos, a entrega que o nosso Criador nos faz pode ter resultados de criação e de vida, como também, infelizmente, de destruição e de morte.10 De um modo ou de outro, como já em seguida será referido, as consequências da entrega que Deus nos faz são posteriormente assumidas (e até sofridas) por Ele.

 

DEUS COMO ‘CAUSA ÚLTIMA’. ‘QUERER’ VS. ‘PERMITIR’.
UM DEUS QUE SOFRE CONNOSCO

Tendo em conta o que foi dito, poderemos então afirmar que doenças e epidemias não são criação de Deus? Bem, em bom rigor também não podemos fazer esta afirmação. Na verdade, sem o poder criador de Deus, aquilo a que chamamos doenças (tal como tudo o mais que existe no nosso mundo, e tal como a própria vida) não teriam existência. Porque nada acontece
que não seja, ultimamente, devido ao poder do Criador, “causa última”

10 Mesmo relativamente àquilo que consideramos serem desastres naturais, alguns deles, pelo menos, poderão estar também relacionados com o fator humano: seja por ação (intervenção nossa), seja por omissão (desastres que, podendo ter sido evitados por nós, com as potencialidades da nossa inteligência e da nossa ação, não o foram).

de tudo o que existe (incluindo também aquilo que é causado pelos seres criados, numa rede com incalculável número de relações causa-efeito).11
     Quando falamos de vontade de Deus, poderá, por isso, ser importante distinguirmos aquilo que Deus (positivamente) quer, daquilo que Deus permite – ou não impede – que aconteça (por respeito à autonomia confiada à Criação). De qualquer forma, tanto um caso como o outro não podem deixar de ser considerados como fazendo parte da sua Criação – e por isso, em certo sentido, também “vontade de Deus”.
     Assim, quando no Pai Nosso os cristãos rezam “seja feita a Vossa vontade”, nessa vontade estará incluída não apenas aquilo que Deus positivamente quer, mas também aquilo que Deus permite que aconteça (através da entrega que faz à sua Criação). Só deste modo parece ser aceitável que a crucifixão e morte de Jesus possam ser vistas como “vontade de Deus”: a crucifixão terá sido vontade de Deus, não no sentido de Deus a ter desejado (como poderia um Deus bom desejar o sofrimento e a morte do Seu Filho? Ou de alguém?) mas sim no sentido de Deus a ter permitido.
     A decisão de condenar Jesus à morte, sabemo-lo bem, foi uma decisão tomada no sinédrio e ratificada depois por Pilatos. Estando para ser condenado, Jesus diz a Pilatos: “nenhum poder terias, se do Alto não te fosse dado” (João 89,88). Naquele momento Pilatos tem, de facto, poder (que irá ser exercido contra o próprio Jesus). Verificamos assim que, paradoxalmente, até o próprio pecado – por definição ato de oposição à vontade criadora de Deus – não pode ser exercido senão através do poder de ação (que está nesse mesmo momento a ser) concedido pelo próprio Deus.12
     A imagem de Jesus na Cruz (ou a imagem de toda a Paixão de Jesus) pode então ser também vista como uma profunda revelação de Quem é afinal o nosso Deus: um Deus que sofre connosco. Mais: um Deus que, por amor, aceita sofrer em Si mesmo as consequências daquilo que os seres por Ele criados decidem fazer com o poder que Dele recebem.13

11 Nada existe que não deva a sua existência a Deus Criador” (Catecismo da Igreja Católica, 338). O próprio Jesus realça que tudo o que acontece, acontece porque Deus o quer, ou permite (cfr. por ex. Mateus 80,29–30: Não se vendem dois pássaros por uma pequena moeda? E nem um deles cairá por terra sem o consentimento do vosso Pai! Quanto a vós, até os cabelos da vossa cabeça estão todos contados”).
12 Do mesmo modo, também as consequências das nossas próprias decisões e ações acabam por vir posteriormente à existência através do ato criador de Deus, que mantém em vigor no nosso mundo as relações de causa-efeito (algo que poderá depois levar talvez alguém a encarar essas consequências como um “castigo”, vindo de Deus…).
13 A teologia deveria perguntar que tipo de mundo deveríamos esperar se a Divina Providência tomasse a forma de um amor humilde, auto-oblativo e sofredor”. “A cruz revela um Deus que cria o universo não tanto através da manifestação de um poder coercitivo, mas mais «retirando-Se» humildemente(cfr. John F. Haught, Cristianismo e Evolucionismo, Gradiva, Lisboa, 2009, pags.808, 875 e 208; ver também God After Darwin: A Feology of Evolution, Routledge, New York, 2088).

Portanto, e para concluir, se mais atrás foi dito que as pandemias não surgem por vontade de Deus (no sentido de ser algo desejado por Ele), não podemos agora deixar de reconhecer que essas mesmas pandemias (juntamente com o próprio pecado humano, tal como tudo o que existe no mundo), se existem, existem porque são permitidas – ou não são impedidas – por Deus (por coerência com a entrega de autonomia que Deus faz à sua Criação). E, nesse sentido, farão também parte da Sua vontade. Mais ainda: todas essas coisas não poderiam vir à existência senão através do poder criador de Deus (mesmo não sendo, em si mesmas, desejadas por Ele).

 

“TUDO SE PODE CONVERTER EM BEM”

Que dizer então: que Deus permite (ou que até colabora com) o mal? Como podemos aceitar que seja assim? E como podemos aceitar que as forças de destruição pareçam tantas vezes levar a melhor? Na verdade, de acordo com o que diz São Paulo (Romanos 8,28), para quem ama a Deus “tudo se pode converter em bem” (o que, surpreendentemente, inclui até mesmo o próprio pecado, tal como Santo Agostinho sublinhará mais tarde). De facto, a entrega que Jesus faz da sua vida não termina num sepulcro fechado, mas acaba por vir a abrir inúmeros caminhos de vida nova – quer para o próprio Jesus, quer para aqueles que O seguem. Ou seja, de alguma maneira, até por entre as forças de destruição e de morte é possível
vir também a desvelar vias de reconstrução e de vida (de uma nova vida). Tocamos aqui o núcleo central da revelação em Jesus: o mistério pascal.
     Se pudéssemos pôr um fim imediato a esta pandemia do coronavírus, certamente o faríamos. Mas não podendo – e tanta coisa há na vida que não podemos – somos então convidados a discernir e procurar o que de positivo, o que de construtivo poderemos eventualmente vir a retirar destas desafiantes circunstâncias (aceitando sofrer as tais
“dores de parto”, como anunciadoras de alguma vida nova que estará para nascer). Quando é assim, tudo passa então a ter o potencial para fazer sentido – até aquilo que inicialmente nos possa parecer aleatório, caótico, absurdo e sem sentido.
     Certamente que este não é um desafio fácil de abraçar (e sobretudo em momentos de grande dor). Mas está incluído no apelo de Jesus que vai à nossa frente e que diz: “quem quiser vir após Mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, e siga-Me” (Mateus 86,24). Na verdade, como o próprio Jesus acrescenta, os caminhos do crescimento e da vida seguem
muitas vezes percursos antes insuspeitados. E o caminho da entrega da própria vida a outros (seja por iniciativa nossa, seja pela aceitação da paixão, quando esta nos bate à porta) parece ser um dinamismo que tem a força para ir mesmo para além das mortes – pequenas ou grandes – que ao longo da vida temos de atravessar.
     Sabemos que, quando nos encontramos em sofrimento, questões teóricas (incluindo as teológicas) pouco poderão ajudar à nossa dor… Mas talvez possam dar, pelo menos, alguma ajuda ao nosso espírito, a não encarar as contrariedades da vida (tal como a doença ou o sofrimento) como algo de irremediavelmente absurdo e sem sentido (sem futuro). Por outro lado, pelo menos para uma perspetiva crente, o facto de sabermos que Deus está connosco também no sofrimento (o facto de sabermos que sofre connosco, que sofre por nós) é algo que está longe de se poder reduzir a uma questão meramente teórica.

 

UMA OPORTUNIDADE PARA REPENSARMOS
O QUE É VERDADEIRAMENTE
IMPORTANTE NA VIDA

Alguma coisa haverá então de positivo que possamos vir a encontrar nestes tempos de pandemia? Poderão estes tempos ser úteis para que possamos aprender algo? Poderão vir a contribuir também para algum tipo de transformação ou renovação?
     Uma das coisas que talvez possamos retirar destes tempos é o poder dar mais valor aos muitos dons que tantas vezes recebemos (e que, por vezes, podemos tomar como dado adquirido). Por exemplo, a liberdade de movimentos, o contacto e as relações sociais, a saúde. Uma maior tomada de consciência dos muitos dons que habitualmente recebemos talvez possa tornar o nosso coração mais agradecido – e mais compassivo e solidário com aqueles que os não têm (como os reclusos, os doentes, os que vivem em solidão).
     Pode ser que toda esta situação nos ajude também a estar mais em contacto com a nossa verdade, com a realidade daquilo que verdadeiramente somos (que inclui também a nossa vulnerabilidade: algo que podemos tender a esquecer). E nos ajude a recordar que, independentemente do país de origem, da raça, ideias, ou credo que se professe, em cada ser humano se encontra alguém semelhante a nós.
     Poderá também ser uma oportunidade para parar e repensar o nosso estilo de vida. E reavaliar, por exemplo, o impacto que a nossa ação tem no nosso planeta, ponderando se não será de abrandar um pouco o ritmo da nossa atividade, do nosso ritmo de consumo e descarte.14

14 Ao mesmo tempo que o trágico número de mortes devidas ao coronavírus se torna conhecido, tem também sido calculado o número de pessoas que, graças à redução da poluição destes tempos, não virão
a sofrer morte prematura. Defendendo um estilo de vida de maior sobriedade e convidando-nos a estarmos mais atentos “à beleza que existe no mundo”, o Papa Francisco afirma: “a espiritualidade cristã propõe uma forma alternativa de entender a qualidade de vida, encorajando um estilo de vida profético e contemplativo, capaz de gerar profunda alegria sem estar obcecado pelo consumo” (Laudato Si’, 2085, 97 e 222).

Desde o início desta pandemia (como de resto em outras alturas) tem sido muitas vezes revelada nos media a preocupação de que o crescimento do PIB possa vir a ser interrompido. Será mesmo esse um dos (aspetos) essenciais da nossa vida: um enriquecimento ininterrupto e constante? Em vez de nos preocuparmos tanto que o PIB continue sempre a crescer, não será importante focarmo-nos também na melhoria da situação daqueles que não têm o mínimo para viver de forma digna? É verdade que recessões dificilmente poderão ajudar alguém.
Por outro lado, um crescimento do PIB também não significa, por si só (automaticamente), uma melhoria das condições de vida dos que vivem com mais dificuldades. Contribuir para que todos possam trabalhar e viver com dignidade, dar oportunidades a quem não tem oportunidades: não poderão ser estes desígnios maiores e mais importantes para a nossa sociedade e para a nossa economia?

in BROTÉRIA 191 (2020) 58–70 -Julho 2020