A SURPRESA DA EXORTAÇÃO DO PAPA FRANCISCO
SOBRE A IGREJA NA AMAZÓNIA:
UM TRATADO SOBRE INCULTURAÇÃO

Vasco Pinto de Magalhães SJ

Para nos situarmos, lembremos que neste mês de julho no dia 27, faz nove meses que se concluiu em Roma o Sínodo sobre a Amazónia e foi lançado o documento conclusivo ‘Amazónia: Novos caminhos para a Igreja e para uma Ecologia Integral’. Grande desafio que parece ter adormecido, quase logo! Em boa parte, compreende-se que a pandemia, que, entretanto, “abraçou” o nosso mundo, tenha feito secundarizar e até esquecer realidades tão importantes e ingentes como esta. Aliás, o Sínodo terminou, como é normal, entregando ao Papa as conclusões e esperando a sua reação oficial. Mas, no ar, ficou uma espécie de nuvem de expetativas para uns, e de receios para outros, em particular sobre reflexões e propostas mais acaloradas, tais como a da Ordenação sacerdotal de homens casados (sim ou não?) e o lugar da mulher nas comunidades, diaconisas (sim ou não?)! Sobre isso, correu logo muita tinta e fez, creio eu, quase esquecer o essencial e a enorme riqueza das partilhas e das propostas que foram surgindo durante aqueles 20 dias de Sínodo (6 a 27 de outubro de 2019)
    Compreender-se-á também que a reação do Papa Francisco tenha tardado. Um pouco mais de 3 meses depois, a 2 de fevereiro (2020), a Editora Vaticana lançou a esperada Exortação Apostólica Pós-Sinodal Querida Amazónia. É um texto curto, positivo e dinamizador e, como sempre, a surpreender pela clareza e novidade evangélica com que aborda as situações: em meu entender, é um texto obrigatório. Parece passar ao lado das tais questões mais polémicas, mas o que faz é deixar as bases e os critérios para que as tensões possam ser superadas e se faça o caminho necessário. Mais uma vez, seguindo os passos do Papa, podemos ver bem como os grandes desafios não se resolvem com soluções vindas de fora, de cima para baixo e/ ou por decreto, mas criando condições para o exercício do discernimento espiritual, dentro das próprias comunidades particulares e em comunhão eclesial.
    O Papa Francisco, começa por dizer: “preferi não citar o Documento (conclusivo do Sínodo), mas convidar a lê-lo integralmente”. E, então, o que faz é “partilhar com todas as pessoas de boa vontade” a sua meditação: “ouso humildemente formular quatro grandes Sonhos que a Amazónia me inspira”.
    Esses “Sonhos” constituem os quatro capítulos da Exortação. Assim: Um Sonho Social, Um Sonho Cultural, Um Sonho Ecológico e, por fim, Um Sonho Eclesial. É este quarto Sonho que pretendo desenvolver com mais atenção: porque sintetiza e concretiza os outros sonhos, vai partir da raiz espiritual daqueles homens e mulheres situados naquele contexto e a quem compete fazer o caminho. Para além disso, do meu ponto de vista, esse texto é um autêntico tratado sobre o segredo da Evangelização, que, para o Papa Francisco, reside numa verdadeira Inculturação.
Inculturação (e o consequente diálogo intercultural) é a palavra-chave, transversal aos quatro capítulos. Poderá dizer-se que Evangelizar é Encarnar-se; Encarnar é Inculturar-se; e a Inculturação é fruto do diálogo entre culturas.


OS “QUATRO SONHOS”

DO PAPA FRANCISCO

Que se entende aqui por Sonho? “Sonho”, aqui, indica uma experiência muito diferente daquelas que temos enquanto dormimos: pequenos “filmes”, imagens, sensações, etc., tantas vezes confusos…, experiências oníricas que podemos, ou não, repescar ao acordar e que podem ter interesse psicanalítico, clarificador, ou não, das tensões inconscientes. Mas, aqui estamos na ordem do consciente. Este “Sonho” vem do dar-se conta e sentir-se tocado por um ideal que reúne a mente e o coração e nos mostra um caminho, um “que fazer” por bem e para bem. Sonho, aqui, é sinónimo de Inspiração. Iluminações, desejos e projetos, tanto mais pacificadores e mobilizadores, quanto mais estivermos livres, por dentro e por fora, de pressões e condicionamentos. Quanto mais abertos ao Espírito e quanto mais tivermos motivações purificadas, mais esses sonhos se assemelham aos que a Bíblia descreve: na vida de Jacó, por exemplo, ou de José em relação a Maria. José queria ser justo e fazer a vontade de Deus, mesmo contra tudo o que pudesse parecer: “José, não tenhas medo de a receber!” … Vai mais longe…olha que há muita coisa que nos escapa! Ou, como no famoso discurso de Martin Luther King, manifestando um desejo e um projeto, o compromisso que ele entendia ser o caminho certo para o povo americano, superando o racismo: “I have a dream” (1963). Pois o Papa Francisco atreve-se a partilhar com todos nós os seus Quatro Sonhos: uma inspiração reconhecida na oração como vontade de Deus para a Amazónia, querida.


O PRIMEIRO SONHO É SOCIAL.

E DELE NASCE O SONHO CULTURAL

Tudo começa por uma consciencialização. Diz o Papa (n.15): “é preciso indignar-se, como se indignou Moisés… e Jesus, e o próprio Deus, perante a Injustiça”. “Não é salutar habituarmo-nos ao mal; faz-nos mal que nos anestesiem a consciência social, enquanto um rasto de delapidação, inclusive de morte, por toda essa região (…) coloca em perigo a vida de pessoas, em especial do habitat dos camponeses indígenas”. Não se pode calar o abuso, a exploração de pessoas, de grupos e da natureza por empresas, mercenários, e até países, pelo comércio em torno da madeira, da borracha e até da água que se privatiza, justificando a violência e a morte, obrigando a deixar tudo e procurar refúgio na periferia das cidades. É dos nossos dias essa exploração e colonização que não param, ainda que se disfarce. E a Igreja “chamada a ouvir o clamor dos povos… tem que exercer com transparência o seu papel profético”. E a voz do Papa continua: “Aos membros dos povos nativos, agradeço e digo que com a vossa vida, sois um grito lançado à consciência… Sois memória viva da missão que Deus confiou a todos: cuidar da Casa Comum.” (n.19)


O SONHO CULTURAL

“O objetivo é promover a Amazónia. Não é colonizá-la culturalmente, mas fazer de modo que ela própria aproveite o melhor de si mesma. Tal é o sentido da melhor obra educativa: cultivar sem desenraizar, fazer crescer sem enfraquecer a identidade, promover sem invadir.” (n.28)
     Foi a colonização sem critério nem horizonte que expulsou os habitantes dos seus lugares e os fez perder as suas raízes culturais para alongar a fila dos descartados e sem identidade nas cidades – que deveriam existir como lugares de encontro e enriquecimento mútuo entre diferentes culturas. (n.30). O caminho é cuidar das raízes, recuperar a memória danificada: artística, literária, musical, cultural… Tudo isto, sem deixar de estar aberto ao enriquecimento que vem do Encontro intercultural, para lá das tentações individualistas, consumistas e discriminatórias dos mais frágeis … (n.36). Ora “se as culturas ancestrais dos povos nativos nasceram e se desenvolveram em estreito contacto com o ambiente natural circundante, dificilmente podem ficar ilesas quando se deteriora este ambiente.” (n.40)


UM SONHO ECOLÓGICO,

JÁ PEDIDO PELO SONHO SOCIAL

Já dizia Bento XVI: “ao lado da ecologia da natureza, existe uma ecologia que podemos designar de humana, a qual, por sua vez, requer uma ecologia social. Tudo está interligado. E vale, especialmente, para um território como a Amazónia.” (n.41). E mais ainda: “o equilíbrio da terra (toda) depende também da saúde da Amazónia.” (n.48)
     O Papa Francisco reforça: este é o grito da Amazónia! E remete-nos para voltarmos à leitura da Encíclica Laudato Si onde já tinha escrito (n.34): “este grito chega a todos porque a conquista e a exploração dos recursos (…) hoje chega a ameaçar a própria capacidade acolhedora do ambiente: o ambiente como “recurso” corre o perigo de ameaçar o ambiente como “casa””. E o conhecimento aprofundado da realidade, conhecimento científico e social, despolitizado e livre de interesses económicos e ganâncias sem escrúpulos, tem de fazer parte do caminho.
     Neste Sonho, a Educação e hábitos ecológicos, bem como A Profecia da contemplação (dois subtítulos deste capítulo), são palavras-chave.
     Não há outro modo de abarcar a realidade com justiça para todos, senão vencendo a tentação das culturas de morte que, mais ou menos disfarçadamente, sempre nos rondam. Educar o olhar profético que contempla a realidade no seu conjunto global, inter-relacional e dinâmico, discernindo onde nos pode levar cada proposta de intervenção (ou não) na realidade, faz e fará a diferença.


O SONHO ECLESIAL

Este é o capítulo maior (n. 61 a 110), o mais original e mais dirigido a poder levar por diante as intenções do Sínodo. Até talvez se possa começar a leitura da Exortação por este texto que, já o disse, considero um verdadeiro Tratado sobre Inculturação. E é fácil dar-se conta da importância e da transversalidade desta temática, num mundo que, bem e mal, se “globaliza” por entre roturas!
     Resumindo bastante a reflexão do Papa: depois de um “pressuposto”, podemos considerar três dimensões desse Sonho eclesial, evangelizador: Primeiro, há de ser um processo de “inculturação”. Em segundo lugar, manter um claro horizonte, o de uma “santidade de rosto amazónico”. E, por fim, a convicção ousada de que há uma via de superação de conflitos, por “transbordamento” (um neologismo introduzido pelo Papa Francisco).
     Vale a pena desenvolver um pouco mais cada um destes passos.
     O pressuposto (n.61 ss): “A Igreja é chamada a caminhar com os povos da Amazónia.” (…) E, “se quiser desenvolver uma Igreja com rosto amazónico, precisa de crescer numa cultura do encontro rumo a uma «harmonia pluriforme». Não pode renunciar à proposta de fé recebida do Evangelho. “Seria triste que esses povos recebessem de nós um código de doutrinas ou um imperativo moral, mas não o grande anúncio salvífico… Eles têm direito ao anúncio do Evangelho! (…) Sem esse anúncio apaixonado, cada estrutura eclesial transformar-se-ia em mais uma ONG”. Além disso e de modo inseparável, “o Anúncio que leva ao encontro pessoal com o Senhor, há de ter como reação fundamental a caridade fraterna que identifica os discípulos”.
     A inculturação (n.66 ss): A Igreja é enviada a encarnar em todas as situações, povos e culturas. E a lógica cristológica, à maneira de Jesus, é a inculturação. Antes de mais nada, fique claro que este modo é um processo que corrige a possível tentação de uma Evangelização colonizadora. Se, por um lado, não esquece que há um Anúncio a fazer, por outro lado “nada despreza do bem que já existe nas culturas (amazónicas, neste caso), mas recebe-o e leva-o à plenitude, à luz de Evangelho. E também não despreza a riqueza de sabedoria cristã…”, tal como não ignora a sua história, nem a sua “Tradição autêntica, que não é um depósito estático, nem uma peça de museu, mas a raiz de uma árvore que cresce.” Aliás, o Papa Francisco, na sua Exortação A Alegria do Evangelho, já tinha dito que a inculturação “baseia-se na convicção de que «a graça supõe a cultura, e o dom de Deus encarna-se na cultura de quem o recebe». Ora, isto implica um duplo movimento: por um lado, uma dinâmica de fecundação (…) E, por outro, uma comunidade que acolhe o anúncio de salvação: o Espírito Santo fecunda a sua cultura com a força transformadora do Evangelho.”
     É preciso levar muito a sério esta dinâmica. Como a história da Igreja mostra, o Cristianismo não é monocultural e monocórdico. Há o risco de o evangelizador pensar que deve não só comunicar o Evangelho, mas também a cultura em que cresceu. Aliás, os povos amazónicos podem ajudar-nos descobrir o que é uma sobriedade feliz, e ensinar-nos a ser felizes com pouco…. “A inculturação eleva e dá plenitude. Por um lado, devemos apreciar a espiritualidade da interconexão e interdependência de todo o criado, da gratuidade e da sacra admiração da natureza. Por outro lado, trata-se de conseguir que esta relação com Deus, presente no cosmos, se torne cada vez mais uma relação pessoal com um Tu, que sustenta a própria realidade e lhe quer dar um sentido, um Tu que nos conhece e ama.”
     Uma santidade amazónica (n. 77 ss): este é o horizonte da presença, do diálogo, do amadurecimento e discernimento dessa dinâmica de fecundação pela inculturação. Daí sai e sairá a Igreja inculturada, de rosto amazónico, que não copia modelos de outros lugares. E é chamada a interpelar a Igreja universal, com o seu modo próprio. Diz o Papa, “não nos apressemos a qualificar como superstição ou paganismo certas expressões religiosas que nascem, espontaneamente, da vida do povo”.
Lembremos a parábola do trigo e do joio. “É possível receber de alguma forma, um símbolo, um mito, uma festa sem os classificar necessariamente de idolatria ou paganismo (…) um verdadeiro missionário descobrirá as aspirações legítimas que passam através de manifestações religiosas, imperfeitas, parciais, etc., para lhes responder a partir de uma espiritualidade inculturada”. É a partir daqui que o Papa Francisco lança os grandes desafios de uma inculturação bem discernida. E, sem medo, aponta caminhos e critérios para uma Inculturação litúrgica, incluindo a própria Eucaristia, o Domingo, os Sacramentos, os Ministérios e, em particular, o próprio Sacerdote, que sendo sinal de «Cristo cabeça» que é fonte da graça, derrama essa mesma graça, antes de tudo, quando celebra a Eucaristia. E é isso que o configura e distingue e não, como “alguns pensam, o poder, o facto de ser a máxima autoridade da comunidade”. O Papa aponta também caminhos: aos Leigos nessas circunstâncias concretas, às Comunidades, às Pessoas Consagradas e às Mulheres, sublinhando “a força e o dom”, bem como o serviço imprescindível que tem mantido a fé e feito crescer as comunidades, ao longo de decénios, alertando para não se cair na tentação de as clericalizar.
Valerá a pena meditar e confrontar este prato forte do Sonho Eclesial que, aqui, numa visão de conjunto, fica apenas apontado. E passemos, então, à conclusão mais original da Exortação: o desafio de ampliar horizontes pelo “transbordamento”.
     O Transbordamento (n. 104 ss): como vimos, na construção de uma igreja amazónica ficam muitos fios por atar, processos por concluir, discernimentos a aprofundar… e assim deve ser, no tal processo de inculturação em curso. Não se trata de fechar questões; pelo contrário, abrir caminhos. O Papa fala de “Ampliar horizontes para além dos conflitos”. Diz ele que “não se trata de relativizar problemas, nem fugir deles ou deixar as coisas como estão. As verdadeiras soluções nunca se alcançam amortecendo a audácia, nem se subtraindo às exigências concretas, nem buscando culpas externas”. Há uma saída! “A via de saída encontra-se por “transbordamento”. E explica: “transcendendo a dialética que limita a visão para poder assim reconhecer um dom maior que Deus está a oferecer.” As tentações, muitas vezes com aparência de bem, são as de seguir o caminho já feito e seguro ou ir pela força dos votos e desistindo da escolha. Ora “a verdadeira resposta aos desafios da evangelização é provável que esteja na superação das propostas, procurando outros caminhos melhores, talvez ainda não imaginados. O conflito supera-se num nível superior, onde cada uma das partes, sem deixar de ser fiel a si mesma, se integra com a outra numa nova realidade”.
     O Sínodo não concluiu, nem podia concluir, sobre todos os projetos e propostas levados à discussão. O Papa fez também o seu trabalho de organizar, resumir e lançar as bases para um discernimento inculturado na Igreja amazónica. Agora, em comunhão e fidelidade criativa, com o Espírito Santo, a Comunidade inculturada e integrada dará os próximos passos.
     Ao meditar Querida Amazónia fica na mente e no coração a pergunta e a óbvia resposta: Não deverá esta exortação, apelo que impele, ser tomada como paradigma atualizado, no modo e na linguagem, na mais saudável tradição, da Evangelização/ Encarnação que pode fecundar a criação, em qualquer região e todas as culturas!?

in BROTÉRIA 191 (2020) pags.71–77