Bento XVI. Uma vida (1)
Anselmo Borges – 08 agosto 2020 – Diário de Notícias
Encontrei uma vez em Roma Bento XVI, ainda não era Papa. A impressão com que fiquei: um homem afável e tímido. No encontro rápido, falou-me da importância decisiva da pastoral da inteligência.
Nos últimos dois meses, foi para mim um prazer intelectual imenso poder ler a sua biografia – são 1150 páginas -, escrita por Peter Seewald: Benedikt XVI. Ein Leben (Bento XVI. Uma vida). Pude acompanhar 90 anos de história, a brutalidade esmagadora da Segunda Guerra Mundial, os filósofos e teólogos que também estudei, a reconstrução da Alemanha e da Europa, os debates teológicos que levaram ao Concílio Vaticano II, a primavera do Concílio e o inverno que se seguiu, Maio de 68, o cardeal Ratzinger como Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, Bento XVI como Papa e a sua renúncia, o Papa Francisco… Em três crónicas simples – previno que a obra não é fácil -, tentarei apresentar rapidamente alguns flashes desta biografia.
Uma família modesta: o pai era polícia e a mãe cozinheira. Três filhos: Maria, nascida em 1921, Georg, em 1924, Joseph em 1927, às 04.15 de Sábado Santo. No mesmo dia, às 08.30 já estava na igreja para ser baptizado com a nova água pascal, acabada de benzer, e ao som do canto do Glória: “Cristo ressuscitou.” Ratzinger viu sempre neste acontecimento um símbolo decisivo, que o acompanhou durante a vida toda: Sábado Santo a falar da “situação da história humana, da situação do nosso século, mas também da minha vida. Aí estão, por um lado, a escuridão, a incerteza, a interrogação, os perigos, as ameaças, mas também, por outro, a certeza de que há luz, de que vale a pena viver e avançar. Neste sentido, esse dia a que Cristo preside – misteriosamente oculto e simultaneamente presente – tornou-se um programa para a minha vida”. Foi neste sentido que G. Steiner também escreveu que é em Sábado que vivemos: entre os horrores de Sexta-Feira Santa e a esperança do Domingo de Páscoa.
Depois, Hitler. Aos 16 anos, Joseph foi chamado para o exército hitleriano, de que desertou aos 18. No caminho do regresso percebe-se mais intensamente a desolação causada pela guerra. “Quando de repente me apresentei vivo diante dele”, o pai nem queria acreditar. E a mãe prepara-lhe de comer. Há pouco, mas a mãe tem salada fresca, um ovo das suas galinhas e um bocado de pão: “Na minha vida nunca mais tive uma refeição tão preciosa como esta refeição simples que a mãe preparou com os frutos da sua horta.”
O terror do nazismo influenciou a sua decisão para toda a vida, como ele próprio sintetizou: “Na fé dos meus pais tive a confirmação do catolicismo como um bastião da verdade e da justiça contra aquele reino do ateísmo e da mentira, que o nacional-socialismo encarnou.” O jovem de 18 anos está agora preparado para a entrega radical da sua existência a uma vida para Deus, pois a decisão fundamental veio com o fim da guerra: “Agora, já não tinha nenhuma dúvida quanto à finalidade e objectivos da minha vida, sabia qual era o meu lugar.”
Regressou, pois, ao seminário, com o irmão Georg, que comentou que a guerra tinha tornado o irmão “realmente adulto”. A mãe, que se sentiu contente e orgulhosa pelos filhos, não deixou de avisá-los: “Se não for a vossa vocação, é melhor vir embora.”
Ratzinger acompanhava as aulas com entusiasmo e diligência. Sente que é necessário um novo começo para a Igreja: “Acreditávamos conduzir a Igreja para um novo futuro.” E vão ficando as influências filosóficas e teológicas que lhe marcarão a vida, concretamente o pensamento dialógico e sobretudo Santo Agostinho: “Sinto-o como um amigo, um contemporâneo que fala para mim”, confessa.
Entretanto, esclarece que “durante os seis anos de estudante de Teologia teve dúvidas quanto à vocação e que o assaltaram muitos problemas e perguntas bem humanos: o celibato é realmente para mim? Ser padre é realmente para mim? Estarei preparado para isso para a vida toda? É realmente a minha vocação?” O que é facto é que, já próximo das chamadas “ordens menores”, com a tonsura, caiu enamorado. O biógrafo volta aos últimos encontros com Bento XVI, já retirado, para esclarecer melhor: – “Falou nas suas memórias de um “tempo de grandes decisões dolorosas”. Em que consistiu exactamente este sofrimento?” O Papa emérito respondeu, sorrindo com satisfação, que se trata de algo demasiado pessoal, sobre isso não pode dizer nada. – “Enamorou-se de uma rapariga?” – “Talvez.” – “Claro que sim.” – “Poder-se-ia interpretar dessa maneira.” – “Quanto tempo durou este tempo doloroso? Algumas semanas? Uns meses?” – “Mais, mais tempo.” Para quem conhece Ratzinger, comenta o biógrafo, percebe que se trata de uma confissão. Sabe que lhe é exigido um sacrifício, uma renúncia, mas “não se decide contra a amiga, decide-se por algo: seguir uma missão. A luta interior durou muitos meses. Até à ordenação de diácono no Outono de 1950, quando deu “o seu Sim convicto””. Quem era a rapariga? Ainda vive? De qualquer forma, o biógrafo escreve que, sendo o amor um dos seus temas centrais como teólogo e Papa, lhe perguntou se o vivenciou pessoalmente com sentimentos profundos ou se isso foi só um tema filosófico. A resposta do Papa emérito: “Não, não. Quem o não experienciou não pode falar sobre ele. Eu senti-o primeiro em casa, com o pai, a mãe, os irmãos. E não quereria entrar em pormenores privados, mas fui tocado por ele em diversas formas e dimensões. Percebi cada vez mais que ser amado e dar amor aos outros é fundamental para se poder viver.”
(Continua)
Bento XVI. Uma vida (2)
Anselmo Borges – 15 agosto 2020 – Diário de Notícias
Estudante de Teologia, J. Ratzinger destacou-se entre todos e viveu esses anos mergulhado na grande ebulição teológica que se seguiu à Guerra, preparando um novo futuro para a Igreja. A orientação era o diálogo entre a fé e a razão, a racionalidade e a beleza, o diálogo ecuménico, a “Teologia Nova”…, seguindo a verdade, porque “a renúncia à verdade não resolve nada, pelo contrário, leva à ditadura do arbitrário”.
Foi ordenado padre com o irmão a 29 de Junho de 1951. Tornou-se capelão, ouvindo confissões aos Sábados durante quatro horas e aos Domingos celebrando duas missas e duas ou três pregações. Doutorou-se em Julho de 1953 com uma dissertação sobre “Povo e Casa de Deus na Doutrina de Agostinho sobre a Igreja”. Ficou uma palavra marcante de Santo Agostinho, ao definir a Igreja como “Povo de Deus espalhado pela Terra”.
Para poder realizar o seu sonho de fazer carreira como professor de Teologia, preparou uma tese de habilitação (Habilitationsschrift) sobre a revelação: Offenbarung und Heilsgeschichte nach der Lehre des heiligen Bonaventura (Revelação e história da salvação segundo a doutrina de São Boaventura). Os dois exemplares exigidos foram entregues na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Munique no Outono de 1955. Aí, começou um drama de abismo. Michael Schmaus comunicou de modo seco, “sem qualquer emoção”, que tinha de rejeitar a tese. Foi tal o choque que da noite para o dia o cabelo de Ratzinger ficou grisalho. Teria de deixar a universidade e, pensando sobretudo nos pais, “seria uma catástrofe, se tivesse de deixá-los na valeta”. Razões para a rejeição, por parte de Schmaus e outros professores: Ratzinger sabe “ligar fórmulas floridas, mas onde está o cerne da questão?”, “evita definições precisas”, é “demasiado emocional”; mais: foi considerado “quase perigoso”, “um modernista”, “progressista”, acabando numa “ “compreensão subjectivista da revelação”…
No meio da tempestade, o seu orientador de tese, Gottlieb Söhngen, conseguiu que o trabalho não fosse rejeitado, mas devolvido para melhoria. “Joseph, que quer Schmaus?”, brincam os colegas, gozando. Resposta: “Ser importante.” Naquelas semanas dramáticas, não se zangou com Deus, mas “pediu-lhe suplicantemente auxílio”. E pôs-se ao trabalho, passando a tese de 700 para 180 páginas. No dia 21 de Fevereiro de 1957, depois do debate no Grande Auditório da Universidade Ludwig-Maximilian de Munique, ouviu a palavra salvadora: “Aprovado.” O que é facto é que tanto a sua dissertação de doutoramento sobre a Igreja “Povo de Deus” como a tese de habilitação sobre a revelação encontrarão forte eco nos documentos do Concílio Vaticano II. Entretanto, “era muito estimado entre os estudantes, como uma “voz da linha da frente”, pois o que fazia era quase uma revelação”.
O Papa João XXIII foi eleito no ano seguinte, 28 de Outubro de 1958, e, em Janeiro de 1959, teve a ideia de convocar um concílio ecuménico, dando cumprimento a uma necessidade que já vinha do tempo de Pio XII. Desta vez, não era para condenar heresias, “não se tratava de resolver nenhum problema determinado”, mas do todo. “O cristianismo, que tinha construído e formado o mundo ocidental, parecia perder cada vez mais a sua força formativa, parecia cansado”, sublinhou Ratzinger. Ele tinha, portanto, de “erguer-se no Hoje, outra vez, para poder tornar-se de novo formativo para o Amanhã”. Ratzinger ousa olhar para o futuro e torna-se, em pouco tempo, “um autêntico fã” de João XXIII: “ele fascinou-me desde o início, também por causa do seu modo não convencional, por ser tão directo, tão simples, tão humano”.
Entretanto, vai-se procedendo à formação das comissões preparatórias do Concílio. O cardeal J. Frings, de Colónia, era membro da comissão central. Ora, pasme-se, ele que se tinha comprometido com um discurso em Génova, foi ter com Ratzinger, já professor da Universidade de Bona: “Senhor professor, pode prepará-lo?” O discurso foi feito e publicado e, numa audiência, diz João XXIII a Frings, abraçando-o: “Eminência, tenho de agradecer-lhe. Li esta noite o seu discurso. Que feliz coincidência do pensamento! Disse tudo o que eu penso e queria dizer, mas que eu não saberia dizer.” Frings: “Santo Padre, não fui eu que o fiz, mas um jovem professor.” João XXIII: “A minha última encíclica também não fui eu que a escrevi, mas um perito.” O biógrafo, Peter Seewald, confronta então o discurso de abertura do Concílio, a 11 de Outubro de 1962, de João XXIII, e o discurso de Frings, isto é, de Ratzinger, para mostrar as coincidências.
No seu texto, Ratzinger apresenta as exigências do Concílio face às mudanças sociais do mundo, que vê marcado por três grandes movimentos: a globalização, a tecnicização e a crença na ciência. Uma das causas principais do ateísmo moderno está na “autodivinização da humanidade”. Mas a ciência não pode dar resposta à “necessidade da luta ética”, pois não toma a sério o homem enquanto ser moral, com liberdade e consciência. Missão do Concílio tem, portanto, de ser, em diálogo com a modernidade, formular a fé cristã como uma alternativa autêntica, vivível e digna de ser vivida. A Igreja como Povo de povos tem de ter em conta a pluralidade de formas da vida humana. Num mundo global, o catolicismo tem de ser verdadeiramente católico, plural, concretamente a liturgia “tem de ser tanto um espelho da unidade da Igreja como uma expressão adaptada das particularidades dos respectivos povos.”
(Continua)
Bento XVI. Uma vida (3)
Anselmo Borges – 22 agosto 2020 – Diário de Notícias
No dia 11 de outubro de 1962, foi a inauguração solene do Concílio Vaticano II, o maior acontecimento em número de participantes na história da Igreja e de consequências mais significativas também – o general De Gaulle considerou-o o maior acontecimento do século XX. De 133 países seguiram para Roma 2540 padres conciliares; o seu número ascendia a 2908, mas muitos não puderam comparecer. Pela primeira vez, houve mulheres convidadas e também observadores protestantes e ortodoxos.
Nos concílios anteriores, a finalidade era um tema concreto e para condenar heresias. Neste, tratava-se do aggiornamento (actualização e abertura) da Igreja, não para condenar, mas para ir ao encontro do mundo moderno, estabelecendo pontes. Como disse João XXIII, para quem o Concílio devia ser um “novo Pentecostes”, a Igreja “julga satisfazer melhor as necessidades de hoje mostrando a validade da sua doutrina do que renovando condenações”. Nos documentos conciliares, afirma-se que a Igreja é Povo de Deus, a hierarquia vem depois; afirma-se a colegialidade episcopal, promove-se o apostolado dos leigos; a revelação não é uma herança enregelada, mas viva e dinâmica; reformou-se a liturgia e introduziu-se o vernáculo; renovou-se a formação do clero; afirmou-se a liberdade religiosa; aprofundou-se o ecumenismo e o diálogo inter-religioso; a Igreja é um serviço a toda a humanidade… Pergunto a mim mesmo muitas vezes o que seria hoje a Igreja sem o Concílio.
A festa da abertura terminou com um acontecimento “inesquecível”, segundo Ratzinger. Ao anoitecer, uma multidão de meio milhão de pessoas com tochas na mão concentrou-se na Praça de São Pedro e, com o luar, formou uma cruz imensa. João XXIII veio à janela, acenando: “Quando voltardes para casa, dai aos vossos filhos um beijo de boa noite e dizei: é um beijo de boa noite do Papa. Que saibam que o Papa, sobretudo nas horas mais tristes e duras, está junto dos seus filhos. Ele é um irmão que, por vontade de Nosso Senhor, se tornou pai.”
Os trabalhos conciliares começaram, e estava tudo preparado pela Cúria para que se mudasse alguma coisa ficando tudo na mesma. À frente, o cardeal Ottaviani, o chefe da então Inquisição, que disse: “Eu peço a Deus para morrer antes de o Concílio terminar, assim posso morrer católico.” Mas um conjunto de cardeais da Europa Central e do norte exigiu mudanças, liberdade para discutir livremente, e começou a revolução conciliar que “mudou a Igreja para sempre”, escreve Peter Seewald, que acrescenta: “O cardeal Frings, de Colónia, e o seu conselheiro Ratzinger viraram o Concílio.” A revista Der Spiegel escreveu então que Frings, que era um conservador, tinha dado o tom no discurso de Génova. “Nele, pela primeira vez na sua vida, disse que a Igreja tinha de rever formas tradicionais, como o índex (dos livros proibidos), e a sua respectiva praxis, pois as pessoas são tremendamente críticas e hostis contra todos os sinais totalitários de comportamento. Exigiu também que se tinha de dar suma importância à ideia de tolerância, de atenção à liberdade dos outros. E sublinhou ainda o tema que no Concílio afirmou como central: a Igreja precisa de uma intensificação do poder episcopal.” O que a revista não sabia é que o texto completo do discurso provinha de Ratzinger.
Frings tornou-se “um herói” e Ratzinger, “o mais jovem perito da maior e mais importante assembleia eclesial de todos os tempos”, “uma estrela”. O Concílio terminou em 1965 e Ratzinger, com 38 anos, encontra-se no cume da carreira, “tinha atingido tudo o que um professor pode querer: notoriedade, reconhecimento, influência”. Em 1966, ascende à Universidade de Tubinga, “o Olimpo da teologia alemã”, onde reencontra o seu colega e amigo Hans Küng. Mas pouco depois deixa Tubinga, que troca por Regensburg (Ratisbona). Que se passou? Este é o tema da próxima crónica.
De qualquer forma, em 1970, apontando para a Igreja do ano 2000, ainda se pronunciou de modo aberto sobre temas complexos, em relação aos quais voltaria atrás mais tarde. A “Igreja tornar-se-á pequena. Com o número dos seus membros, perderá muitos dos seus privilégios… Conhecerá também certamente novas formas do ministério e ordenará como padres cristãos que deram provas, que têm a sua profissão… Juntamente com estes é indispensável o padre oficial como até agora. O futuro da Igreja não virá daqueles que só têm receitas… O processo será longo e difícil…, mas de uma Igreja interiorizada e simples sairá uma grande força. Porque as pessoas num mundo totalmente planificado sentir-se-ão indizivelmente sós. Com o desaparecimento de Deus, experimentarão a sua total e terrível pobreza. E descobrirão então a pequena comunidade dos crentes como algo completamente novo. Como uma esperança, como uma resposta pela qual secretamente sempre suspiraram, como pátria que lhes dá vida e esperança para lá da morte”.
Também o celibato foi um tema debatido: “Por um lado, a defesa do celibato, mas, por outro, deixar a questão em aberto.” Quanto era para ele importante o tema da ordenação dos chamados viri probati (homens de fé provada, casados ou não), mostra-se numa carta de 1971: “Ouço dizer que os bispos alemães se terão pronunciado contra; infelizmente, pois parecia-me ser o caminho para, com sentido e sem quebra da tradição, criar novas possibilidades.” Em 1972, Ratzinger manifestou-se também aberto a novas soluções para a possibilidade da comunhão para divorciados recasados.
(Continua)
Bento XVI. Uma vida (4)
Anselmo Borges – 29 agosto 2020 – Diário de Notícias
Uma advertência. Tinha anunciado que faria três crónicas com a síntese da biografia do Papa Bento XVI, de Peter Seewald. No entanto, tratando-se de 1150 páginas, vejo-me forçado a mais duas.
Como ficou dito, Ratzinger ascendeu à Universidade de Tubinga em 1966. Os dois eminentes teólogos – ele e Hans Küng – entendiam-se bem. “No fundo, coincido com o colega Ratzinger”, diz Küng nas aulas. Do mesmo modo, Ratzinger: “Concordo com Küng.” Os dois tinham aliás um público igualmente grande: 400 ouvintes. (Aqui, uma nota interessante: na Alemanha, não se pergunta “Que professores tiveste?”, mas “Que professores ouviste?”.)
Mas estava em marcha a tremenda revolução dos anos 1960 (lembrar 1968), em várias frentes. Foi a revolução política, social, de costumes, sexual, e que atingiu, naturalmente, a Igreja. Diria mais tarde Ratzinger: não se imaginaria que o Concílio, “em vez do esperado salto em frente, introduziria também um processo de decadência. Os padres conciliares queriam adaptar a fé, mas apresentando-a em toda a sua força”, porém, em vez disso, surgiu a impressão de que “a reforma significava apenas deitar fora um peso morto, facilitar de tal modo que a reforma propriamente dita não consistia numa radicalização da fé, mas numa espécie de diluição da fé”.
Ratzinger foi ficando profundamente assustado com o que estava a acontecer, quando tudo parecia posto em causa, com movimentos extremistas, que criavam enormes tensões entre uma criatividade autêntica e a perda da identidade na Igreja. Havia padres que até se orgulhavam de retirar a cruz dos altares. No campus da universidade, eram distribuídos panfletos a denunciar a cruz como símbolo de uma glorificação do sadomasoquismo. A teóloga católica G. Hasenhütl exigia uma “radical abertura ao mundo”, cujo ponto culminante só podia ser “uma Papisa negra, grávida”. Ratzinger podia observar “a destruição da teologia, que, através da sua politização no sentido do messianismo marxista, estava a acontecer”. Evidentemente, os cristãos não podem ficar indiferentes perante a pobreza e a injustiça, mas o Evangelho não é favorável a uma instrumentalização da Igreja e da fé para fins políticos, observava. E constatava que o comunismo era responsável por cem milhões de mortos e que não tinha havido um único governo comunista que não tivesse perseguido o cristianismo e as outras religiões. Face à revolução sexual, Paulo VI publicou a Humanae vitae, proibindo a pílula e, perante a crise da Igreja, chegou a falar no “fumo de Satanás” que tinha entrado no templo de Deus.
Ratzinger já não aguentava. Em 1969, depois de Bona, de Münster, de Tubinga, segue para Regensburg/Ratisbona, que deveria ser, como disse, “decididamente a sua última peregrinação”. Ele, que ganhou o Concílio, não queria perder o pós-Concílio. Construiu uma casa, na universidade tinha uma multidão de ouvintes, era internacionalmente convidado. Mas o facto é que em 1977 era nomeado arcebispo de Munique e, poucas semanas depois, feito cardeal pelo Papa Paulo VI. Seewald perguntou-lhe se este foi “o fim da sua felicidade pessoal e de todos os seus sonhos”, tendo ele melancolicamente respondido: “Sim.”
Ratzinger não saiu zangado de Tubinga, nem sequer com o colega Hans Küng: “Tinha com Küng uma relação muito positiva e despedi-me dele em paz.” Küng concordava: “Os três anos em Tubinga decorreram sem sombras para o nosso trabalho comum. Convivi com ele verdadeiramente muito bem.”
De qualquer modo, Ratzinger tomava uma nova orientação, que o correspondente do Die Welt, R. Lambrecht, em 1981, descreveu assim: “Ratzinger, outrora um pensador progressista, não mudou o seu carácter, mas corrigiu o seu rumo, quando viu que havia desenvolvimentos que poderiam levar à dissolução. Como arcebispo e cardeal não se tornou príncipe da Igreja. Toma a sua exigência no pensamento e na acção como um serviço.”
Foi neste contexto que Küng diria mais tarde: “Ratzinger rejeitou completamente aquele caos de 1968, e creio que foi esse o ponto decisivo da sua mudança rumo a uma orientação conservadora.” Aqui, o biógrafo recusa, caracterizando esta afirmação como uma “lenda”. Mais: para exaltar Ratzinger, tenta diminuir Küng, o que, no meu entender, não precisava nem devia fazer. Seja como for, em dezembro de 1979, Hans Küng é o primeiro grande teólogo a ser condenado, tendo-lhe sido retirada a missio canonica, isto é, já não podia ser considerado teólogo católico nem ensinar como tal. A causa próxima foi a publicação de Unfehlbar? (Infalível?), que punha em questão a infalibilidade do Papa. Ratzinger não contribuiu para a condenação pela Congregação da Doutrina da Fé, mas também não se lhe opôs. Comentou: Küng tem evidentemente o direito de manifestar a sua opinião livre, a Igreja por sua vez tem o direito de “não o considerar como intérprete da sua fé, e daí tirar as consequências”.
Küng deixa uma poderosa, consistente e vastíssima obra filosófico-teológica, para o aprofundamento da fé cristã e o diálogo ecuménico, inter-religioso e com as ciências e para um ethos (atitude ética) global. Já Papa, Ratzinger recebeu-o no Vaticano e, depois da resignação, escreveu-lhe, confessando: “A minha última e única tarefa é ajudar Francisco.”
Küng sempre se considerou católico. A última vez que o encontrei foi em Barcelona em 2004 por ocasião do encontro do Parlamento das Religiões do Mundo. E confessou-me a sua alegria por ir celebrar os seus 50 anos de padre.
(Continua)
Bento XVI. Uma vida (5)
Anselmo Borges – 05 setembro 2020 – Diário de Notícias
1.Em 1981, Ratzinger partiu para Roma, nomeado pelo papa João Paulo II prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga Inquisição. “Ninguém o advertiu desta missão impopular?” Resposta: “Eu não precisava de advertência nenhuma. Era para mim claro que me lançava às urtigas. Mas tinha de assumi-la.” Foi como “colaborador da verdade”.
1.1. Em Abril de 2005, faleceu João Paulo II, que, com cinco milhões de participantes, teve o maior cortejo fúnebre da história. Com tristeza, Ratzinger presidiu às exéquias. 3500 jornalistas marcaram presença, mais de mil milhões de pessoas seguiram o acontecimento ao vivo nas televisões, havendo quem fale em dois mil milhões, com as televisões de todos os países, exceptuando a China, a transmitir imagens do acontecimento.
Mas, paradoxalmente, “a influência da Igreja na era Wojtyla retrocedeu”. O pontificado de João Paulo II deixava uma Igreja com muitas feridas. Por exemplo, no seu pontificado, com o apoio de Ratzinger, foram condenados mais de cem teólogos. Houve ambiguidade quanto aos abusos sexuais do clero; o próprio Ratzinger enviou em 2001 uma carta a todos os bispos sobre estes delitos, dizendo que todos os casos ficavam sob “segredo pontifício”. Com as imensas viagens papais, a vigilância sobre a Cúria afrouxou…
1.2. Ratzinger, agora, o que queria era “ir para a reforma e escrever livros”. Mas, no dia 19 desse mês de Abril, o novo papa, com o nome de Bento XVI, compareceu na varanda de São Pedro apresentando-se como “um simples trabalhador na vinha do Senhor”. Para ele, era “um dever” aceitar. “Rezai por mim, para que diante dos lobos não fuja temeroso.” Küng falou de “uma tremenda desilusão”.
1.3. Ratzinger, “o primeiro papa do terceiro milénio”, era, “do ponto de vista formal, o papa mais poderoso de sempre. Nunca a Igreja Católica estivera tão espalhada pelo mundo”. Mas os problemas eram imensos. E os lobos não largavam a vinha do Senhor. No dia 11 de Fevereiro de 2013, após segredo total, Bento XVI, para espanto dos cardeais reunidos, declara a sua renúncia ao pontificado, com efeito a partir do dia 28. Que já não tinha “forças nem físicas nem espirituais”. “O Senhor chama-me para subir o monte.” O seu sucessor, Francisco, foi eleito no dia 13 de Março seguinte.
Com a resignação de Bento XVI, deu-se, como diz Seewald, “o início de uma nova era”.
2. Concordo com ele. Por isso, deixo agora Ratzinger, para, no contexto do percurso tão exaltante como dramático do indevidamente chamado papa emérito – nada justifica teologicamente essa designação: ao resignar, o papa torna-se bispo emérito de Roma -, reflectir principalmente sobre a urgência de uma organização diferente para a Igreja, pois é isso que a renúncia de Ratzinger acaba por exigir.
Há um paradoxo na Igreja, como explicitou o sociólogo Olivier Robineau: “A Igreja Católica é uma junção paradoxal de dois elementos opostos por natureza: uma convicção – o descentramento segundo o amor – e um chefe supremo dirigindo uma instituição hierárquica e centralizada segundo um direito unificador, o direito canónico. De um lado, a crença no invisível Deus-Amor; do outro, um aparelho político e jurídico à procura de visibilidade. O Deus do descentramento dos corações que caminha ao lado de uma máquina dogmática centralizadora. A antropologia católica tenta associar os extremos: a graça abundante e o cálculo estratégico. Isso dá lugar tanto a São Francisco de Assis como a Torquemada.”
A mensagem da Igreja é clara e decisiva para a humanidade inteira, e vem de Jesus: Deus é amor, Pai/Mãe que ama a todos e o seu interesse é tão-só a realização plena e a felicidade de todos, não abandonando ninguém, nem mesmo na morte. Há na história da humanidade notícia melhor, mais felicitante? Ela está na base da tomada de consciência da dignidade inviolável da pessoa humana, da liberdade, da fraternidade, da igualdade radical de todos, dos direitos humanos.
Evidentemente, a mensagem é o núcleo. Mas é igualmente evidente que, onde há muita gente, muitos e muitas e espalhados por toda a Terra, se impõe um mínimo de organização, que tem de ser meio e não fim, ao serviço da mensagem. Não foi, como se lê no Evangelho segundo São Mateus, o que Jesus disse a Pedro, o primeiro papa, louvando-o, porque proclamou que Ele é o Messias, mas chamando-o de Satanás, porque pensou que a salvação vinha mediante o poder? Que diria Jesus hoje do Vaticano, das suas intrigas, escândalos, ostentação? Não é da Cúria que se queixa o sucessor de Ratzinger, Francisco?
Afinal, quem decide na Igreja? Muito poucos, homens celibatários e de idade avançada, numa Igreja piramidal, centralizada, clerical, misógina, europeísta, sem separação de poderes. Francisco quer uma Igreja sinodal, com a participação de todos. Numa obra importante, Quem Manda na Igreja, o sociólogo católico Javier Elzo apresenta outro modelo para a Igreja do século XXI: “Uma Igreja em rede, à maneira de um gigantesco arquipélago que cubra a face da Terra, com diferentes nós em diferentes partes do mundo, inter-relacionados e todos ligados a um nó central, que não centralizador, que, na actualidade, está no Vaticano. Aí ou noutras partes do planeta, todos os anos se reuniria uma representação universal de bispos, padres, religiosas e religiosos, leigos (homens e mulheres), todos sob a presidência do papa, para debater a situação da Igreja no mundo e adoptar as decisões pertinentes” e iluminar os gigantescos problemas da humanidade.
FIM