Francisco: Peço-vos em nome de Deus
Anselmo Borges
19 agosto 2023 e 26 agosto 2023 – Diário de Notícias
Na sequência da Jornada Mundial da Juventude, ficam aí algumas reflexões a partir de um livro de Francisco, Os ruego en nombre de Dios. Por un futuro de esperanza (Peço-vos em Nome de Deus. Por um futuro de esperança). Soube que, entretanto, foi traduzido para português, na Editorial Presença: O Que Vos Peço, em Nome de Deus. São dez pedidos.
Francisco, antes de referir esses pedidos, começa por apresentar a sua relação pessoal com Deus: “Uma relação como a de qualquer homem, muito humana”, acrescentando: “Uma relação com Deus é boa quando avança de acordo com a idade, quando não se fica na infância e é aberta.” Confessa que nem sempre entende e há momentos de obscuridade: “Por vezes estou calado e deixo que Ele fale, que se faça sentir. É uma relação de convivência. Por vezes não o compreendo, tem os seus modos de proceder.” Mas o que sente é amor por Deus, acrescentando: “Não podes amar a Deus, se não te sentes amado.”
Para compreender os pedidos, adverte que é necessário entender que “mais do que numa época de mudanças encontramo-nos numa mudança de época.” E cita Bertrand Russell: “Entender o mundo actual como é e não como desejaríamos que fosse é o início da sabedoria.”
Vêm então os pedidos. “Peço-vos que me acompanheis a fazer juntos estes dez pedidos em nome de Deus.”
- Em nome de Deus peço que se erradique na Igreja a cultura dos abusos.
Já aqui escrevi que, para mim, a Inquisição e a pedofilia por parte do clero são a pior catástrofe da Igreja. Francisco lembra que um caso é por si “uma monstruosidade”. Escreve: “As consequências dos abusos sexuais cometidos contra menores e adultos vulneráveis duram anos nas vítimas. Refiro-me a este crime como um homicídio psicológico, porque podem ter consequências irreparáveis na sua saúde mental”, causando “danos físicos, psicológicos e espirituais.”
Não há qualquer desculpa no facto de, desgraçadamente, os abusos serem um fenómeno historicamente presente em todas as culturas e sociedades e até o maior número acontecer nas famílias; de facto, “cometido por membros da Igreja não é só um crime atroz, é uma ofensa a Deus”.
“Uma das nossas maiores faltas, talvez a mais grave, foi não tomar em conta os relatos e denúncias das vítimas.” Trata-se não só de um pecado, mas de um crime, que se tem o dever de denunciar, colaborando com as autoridades civis. “Neste sentido, acrescenta, já em 2016 estabelecemos que a negligência em casos de abusos é causa para a destituição de bispos.”
Na recente visita a Portugal, Francisco recebeu 13 vítimas, ouviu-as, abraçou-as uma a uma, vergando-se à sua dor. O preceito inquestionável é: “Tolerância zero”, sem esquecer, evidentemente, “o princípio de in dubio pro reo, que não pode ser deixado de lado nem sequer para este tipo de delitos atrozes.”
- Em nome de Deus peço que protejamos a casa comum.
Penso que, face às catástrofes, incêndios, tempestades, com mortes e consequências desastrosas que se sucedem, até os mais céticos começam a tomar consciência de que são inegáveis as mudanças climáticas inauditas e a destruição massiva dos ecossistemas, colocando o planeta sob ameaça.
O Papa Francisco tem bem consciência disso, de tal maneira que, se não fosse por muitos outros – tantos, tantos – motivos, ficaria na História pela publicação da sua Encíclica Laudato Sí, onde surge de modo claro o conceito de “ecologia integral”. “O nosso planeta está em perigo. Nos últimos decénios vivemos sob um sistema voraz, que não só empurrou para as margens do descarte milhões de seres humanos, mas também expôs a limites nunca vistos a nossa casa comum, a Mãe Terra.”
É preciso pôr termo a um paradigma socioeconómico baseado na ganância, na avidez, no lucro sem limites para alguns, descartando a outra maior parte e agredindo o ambiente, que está a chegar a limites irreparáveis.
É preciso pôr termo a um paradigma socioeconómico baseado na ganância, na avidez, no lucro sem limites para alguns, descartando a outra maior parte e agredindo o ambiente, que está a chegar a limites irreparáveis. Viemos da natureza, que existiu durante a maior parte do tempo sem nós e que, se não mudarmos de rumo, pode acabar connosco, É preciso tomar consciência de que contra este modelo de depredação, “não há planeta B”.
Francisco é consequente, advertindo: “Mas também devemos prestar atenção a posições que defendem a natureza e, ao mesmo tempo, promovem o aborto ou a pena de morte.”
- Em nome de Deus peço uma comunicação que combata as fake newse evite os discursos de ódio.
“Estamos todos obrigados a realizar uma cultura que combata as denominadas fake news ou notícias falsas, que evite os discursos de ódio e se desenvolva num quadro tecnológico que defenda os mais desprotegidos.”
Nunca houve tantas formas de comunicação e informação. As novas tecnologias permitem-no, mas, como tudo o que é humano, é necessário tomar consciência das suas vantagens e aproveitá-las ao mesmo tempo que se impõe perceber os seus perigos e ameaças e evitá-los. Aí estão os discursos de ódio, a calúnia e difamações, os aproveitamentos para enganos de pederastia, o linchamento mediático de pessoas e do seu bom nome, alienação com o uso obsessivo das redes sociais e a ilusão dos likes…
Nunca estivemos tão conectados e cada vez são mais as solidões. É urgente perceber que a comunicação virtual não pode substituir as relações e encontros presenciais. Francisco: “Que proteção podemos assegurar às crianças e aos jovens para que este novo mundo não atente contra o seu crescimento são e a sua vivência tranquila da meninice?”
- Em nome de Deus peço uma política que trabalhe para o bem comum.
Penso que a Política, com maiúscula, como diz Francisco, constitui um dos serviços mais prestimosos e também mais exigentes, que quase requer a santidade. Por isso, quando vejo tantos, tantos, tantos… na corrida para um lugar na política, prestando-se até a comportamentos por vezes ridículos, se me perguntam se eu acredito que a maior parte o faz para prestar esse serviço ao bem comum, respondo sinceramente: não. Há outros motivos; disse-o quem sabe, Henry Kissinger: “O poder é o maior afrodisíaco”.
Francisco escreve que acredita numa política que “nunca perde de vista o bem comum, o seu verdadeiro e primordial objetivo”, mas que também sabe que para alguns “a política se escreve com minúscula e se transformou numa má palavra”: “Pensa-se nas vantagens”, no “quanto me dá”, e aí está “um dos males que mais a danificam – a corrupção”. “Não é ilegal que um ser humano se sinta atraído pelo dinheiro, as viagens em primeira classe, as mansões, mas convoco a que na Política se envolvam só os que podem viver com sobriedade e austeridade no seu dia a dia.”
- Em nome de Deus peço que se acabe com a loucura da guerra.
Cita Virgílio que há mais de dois mil anos escreveu que “na guerra não há salvação”, para acrescentar: “A guerra é o sinal mais claro da inumanidade”, “um flagelo, que nunca pode resolver os problemas entre as nações, uma matança inútil, com a qual tudo se pode perder e que, em última análise, é sempre uma derrota da humanidade.” Pensa que “a sua persistência entre nós é o verdadeiro fracasso da política.” A guerra na Ucrânia mostra-nos “a crueldade do horror bélico.” A guerra “nunca será uma solução; é também uma resposta ineficaz, nunca resolve os problemas que pretende superar. Vemos que o Iémen, a Líbia ou a Síria, só para citar alguns exemplos contemporâneos, estão melhor do que antes dos conflitos?”
E o escândalo dos gastos mundiais com o armamento, “um dos maiores escândalos morais da atualidade”? “Com a guerra há milhões que perdem tudo, mas há muitos que ganham milhões.” Não podemos continuar “condenados ao medo da destruição atómica; ter armas nucleares e atómicas é imoral.” É “necessário repensar a ONU e especialmente o Conselho de Segurança para que estas instituições dêem resposta à nova realidade existente e sejam fruto de um consenso o mais amplo possível.”
- Em nome de Deus peço que se abram as portas aos migrantes e refugiados.
Francisco lembra que a sua primeira saída de Roma, como Papa, foi a Lampedusa e diz aos migrantes e refugiados: “Nunca vos esqueci”. O pedido que faz está nestes quatro verbos: “Acolher, proteger, promover e integrar” – abrir a porta “dentro das possibilidades de cada país”. É realista e previne contra “as redes de traficantes” e a quem é acolhido pede-se “a aceitação indispensável das normas do país que recebe, bem como o respeito pelos princípios de identidade deste”.
- Em nome de Deus peço que se promova e anime a participação das mulheres na sociedade.
Essencial: “As mulheres têm a mesma dignidade que os homens. Em cada um dos cinco continentes. Em cada um dos países. A comunidade internacional não pode continuar a olhar com passividade para as consequências dramáticas de modelos de relação baseados na discriminação e na submissão, que estão na base de que milhares de mulheres e meninas sejam todos os anos submetidas a casamentos forçados, escravidão doméstica e outros ataques à sua dignidade. Outro drama extenso é a mutilação genital feminina. São cerca de três milhões as jovens que a cada ano sofrem esta intervenção”, acrescentando que “é importante que nos impliquemos todos na abertura de espaços às mulheres, se quisermos um futuro fecundo e criativo.”
Aqui, Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar: para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja?
- Em nome de Deus peço que se permita e fomente o crescimento dos países pobres.
Clama contra o escândalo: “As dez pessoas mais ricas do mundo duplicaram as suas fortunas durante a pandemia. O 1% mais rico da população mundial concentra 32% da riqueza do planeta… enquanto a metade mais pobre do mundo, no seu conjunto, não chega aos 2% da riqueza, segundo os dados da Oxfam e do World Inequality Report 2022. Os ricos são cada vez mais ricos; os pobres cada vez mais pobres. Este sistema mata, exclui e concentra.” Este é um sistema doente: “Calcula-se que um terço dos alimentos produzidos é desperdiçado”, “quase seis milhões de crianças morrem anualmente devido à extrema pobreza.”
Francisco que me desculpe, mas é preciso perguntar: para quando o fim da discriminação das mulheres católicas na Igreja?
- Em nome de Deus peço que se universalize o acesso à saúde.
Cita G. K. Chesterton: “A coisa mais poética, mais poética que as flores, mais poética que as estrelas, a coisa mais poética do mundo é não estar doente.” Infelizmente, conclui com Romano Guardini: “O homem moderno não está preparado para usar o poder com acerto”, pois “o imenso crescimento tecnológico não foi acompanhado por um desenvolvimento do ser humano em responsabilidade, valores, consciência”.
- Em nome de Deus peço que o seu Nome não seja utilizado para fomentar guerras.
Eu, em relação a um Deus que leve à guerra digo: em relação a esse Deus é obrigatório ser ateu.
Nota: Texto editado