[Margem 8]

Nem amnistia nem multas de trânsito

Rui Santiago | 6 Ago 2023

Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação

As palavras que usamos contam. E há um sonho de esperança inesgotável que a palavra “amnistia” não é capaz de contar. Por sorte, temos uma outra: jubileu. Ou redenção, se me der para puxar a brasa redentorista à minha sardinha.

Amnistia vem do grego “esquecer” (como amnésia); “não lembrar”, literalmente. Nas últimas semanas foi uma palavra muito lida e ouvida no contexto da vinda do Papa. Sem entrar nas contingências das propostas concretas que estiveram em cima da mesa desta vez, quero trazer a pergunta “Porque se associa a vinda do Papa a Portugal com uma amnistia concedida a quem está nas nossas prisões?”

Sobrevoemos apenas a grande história bíblica e o sonho experimentado de liberdade que lhe dá origem. Toda a mundividência hebraica nasce da “saída dos nossos pais do Egipto, quando Deus nos foi buscar”. Tudo começa a ser interpretado, para trás e para a frente, à luz dessa Páscoa imensa, desde os mitos da origem às grandes profecias da criação culminada.

Mas a liberdade inaugurada no êxodo tinha de ser treinada, praticada, vigiada e, ciclicamente, renovada. Havia três ritos fundamentais, marcando os ritmos de uma libertação nunca concluída: de sete em sete dias, de sete em sete anos, depois de um tempo de sete vezes sete anos (o quinquagésimo ano). Estes três ritos, escritos em poucas linhas, chamam-se “sábado”, “ano sabático” e “jubileu”.

O sábado tem a função de verificar semanalmente a liberdade: quando não puderes descansar, deixaste de ser livre. Quando não permitires descanso aos que estão contigo, deixaste de ser da liberdade. Adorar Deus no Sábado: santificar o descanso é declarar santa a liberdade. O rito semanal é uma verificação prudente e sempre necessária da liberdade que não podemos dar por garantida em nenhum momento. Como um dom, precisa de cuidado. Como uma beleza, precisa de curadoria.

O descanso sabático (lembro-me tão bem de o meu avô ter ainda esse cuidado do pousio das terras) é um rito de liberdade e acção de graças pelo qual se explora um terreno apenas durante seis anos, e se deixa descansar no sétimo. Nesse ano, não se semeia nem se colhe o que o terreno continuar a dar espontaneamente. Para quê? Para não acontecer a ilusão da posse e, sobretudo, para que os mais pobres tenham sempre onde ir buscar alimento. O “proprietário” não pode colher, mas também não pode impedir que os pobres colham. Com as terras em pousio, os pobres teriam sempre a mesa posta em Israel, de bens variados, assim como os animais selvagens. É claro que os hebreus dessa época sabiam, como nós sabemos, que o pousio da terra tem também a ver com o descanso necessário para a terra se regenerar mineral e nutricionalmente, mas é tão mais poético – e, por isso, sério – colocar a justificação no ponto certo: liberdade e solidariedade.

O jubileu, esse sim é um dos sonhos programáticos mais ousados da história da escritura. Por isso, desde sempre fizemos e fazemos de conta que não está lá. Ou, no máximo, fazemos de conta que é uma fábula do tempo em que os animais falavam ou uma utopia para quando voltarem a falar. No fundo, consiste nisto: perdão das dívidas! Todas! De todos! A acção do perdão das dívidas provoca o efeito imediato da liberdade de todos os que estão prisioneiros e também o retorno às famílias originais daquelas propriedades que foram sendo confiscadas durante os quarenta e nove anos anteriores. Exige-se um reset na partilha de terras entre as doze tribos de Israel e entre as diversas famílias e clãs. Nunca ninguém levou isto verdadeiramente a sério, apesar de ser um mandato meridionalmente expresso na Torah.

Era uma vez um galileu, de Nazaré, que levou isto muito, muito a sério. A ponto de o tornar programa de vida. Sim, o grande sonho de Deus foi por ele transformado em programa de vida concreto. Quando iniciou esta paixão-missão, foi à sinagoga da sua terra para declarar a inauguração do ano do jubileu, o tempo da graça. Pegou no rolo de Isaías e procurou até encontrar, e leu até lá chegar: “ungiu-me, enviou-me, para libertar os prisioneiros, descerrar os cativos, abrir os olhos aos cegos, anunciar a boa notícia aos pobres, mandar em liberdade os oprimidos, e proclamar o Ano da Graça do Senhor!” Sabemos o resto, não sabemos? Jesus parou aqui, exactamente aqui, fez o silêncio que ratifica a solenidade da palavra seguinte, e pousou-a: “É hoje. Começa. Agora. Hoje mesmo cumpre-se esta escritura que acabais de ouvir”.

Quando rezava, era isto que rezava, o perdão das dívidas: “…perdoa as nossas dívidas como nós perdoamos a quem nos deve…” Foi o evangelista Lucas, não hebreu, que traduziu dívidas por ofensas, e nós fomos todos atrás dele.

Porque está o Novo Testamento inteiro cheio de anjos por toda a parte tocando trombetas e cornetas? Porque esse é o grande sinal do jubileu: “Quando chegar o décimo dia do sétimo mês, depois de teres contado sete semanas de anos, vais fazer ressoar fortemente a trombeta. Esse é o dia do grande Perdão, e o som da trombeta há-de fazer-se ouvir na vossa terra inteira!” (Lv 25, 8-9) Lemos em todo o Novo Testamento, continuamente as cornetas soam e as trombetas ressoam, desde o nascimento de Jesus contado por Lucas às visões imensas do Apocalipse, desde a kerigmática pregação de Pedro em Jerusalém às coloridas cartas de Paulo. O ressoar do jubileu é permanente, o trombetear do tempo da Graça é inextinguível. E também vemos na arquitectura das nossas igrejas durante séculos, nas cornijas exteriores ou nos barrocos interiores, esculpidos e pintados, em afrescos de Botticelli ou em taipais pintados à minhota: anjos com trombetas e cornetas, sempre a alardear o mesmo e único anúncio bíblico!

O Papa Francisco vem a Portugal como alguém que traz a boa notícia, e esta é sempre a mesma: “a gloriosa liberdade dos filhos de Deus”! Todos, todos, todos, TODOS! A amnistia de que ouvimos falar não é uma benesse governativa pela visita de um chefe de Estado, mas um gostinho de Jubileu, um anúncio do sonho de Deus para o mundo, um aperitivo do Banquete da igualdade, uma alvorada ensaiada de Dia do Grande Perdão, uma Parábola de Reino de Deus, uma concretização do Pai Nosso… Diz como quiseres, chama-lhe como quiseres, usa a imagem que mais gostares. Mas não deixes de saborear a visão que está dentro de um sinal destes, não deixes que a conversa fique no nível das multas de trânsito.

Temos sorte com o Papa Francisco, que nos gestos que tem tido e nas palavras inspiradas que tem oferecido, está a manifestar fielmente o sentido desse sinal da amnistia que prenuncia o Jubileu: o Perdão incondicional, a Liberdade inegociável, a Graça que, afinal, é tudo.

Nota: estes estonteantes mandamentos estão espalhados por toda a bíblia, mas o que aqui está dito do jubileu está bem visível no capítulo 25 do livro do Levítico. Sobre o Sábado: no capítulo 5 do livro do Deuteronómio, os versos 12 a 16. Sobre o Descanso Sabático: no capítulo 23 do livro do Êxodo, os versos 9 a 13.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

Margem 8]

Agora, não sei o que fazer com esta teologia

Rui Santiago | 28 Jun 2023

Foi nesta ida à iconografia do Baptismo que ouvi pela primeira vez a expressão “Sepulcro Líquido”. As águas eram como um sepulcro líquido representando a morte do Senhor Jesus, uma premissa da sua Descida aos Infernos.” Ícone: Descida aos infernos

Foi há muitos anos, como quem recebe um dom, que encontrei na iconografia bizantina um manancial de sugestões teológicas. O caso começou com um ícone da Descida aos Infernos, uma linguagem poderosa da Ressurreição enquanto invasão de Vida pelo território da morte adentro e, assim sendo, linguagem explosiva da Ressurreição enquanto comunhão de Vida que a ninguém deixa de fora. Quanto mais profunda é a descida, mais alta a comunhão. Uma regra de três simples, Pai, Filho e Espírito.

“Tens de ler este ícone em díptico com o do Baptismo do Senhor”, foi a instrução seguinte, como se estivessem a guiar-me pelo roteiro das descidas. E tinha, era facto. No ícone do Baptismo do Senhor, o Jordão é uma correnteza escura na fenda irreparável de uma montanha aberta em duas, fenda que vem da voz-luz-mão-espírito que preside à história: “Meu filho, meu tão amado.” No centro, Jesus, com a enunciadora nudez adâmica, com água até ao pescoço. A cena é toda trinitária, mas o grafismo ainda não é tridimensional: na bidimensionalidade destes ícones, a água é transcrita quase como um véu na vertical, cobrindo o corpo de Jesus.

Foi nesta ida à iconografia do Baptismo que ouvi pela primeira vez a expressão “Sepulcro Líquido”. As águas eram como um sepulcro líquido representando a morte do Senhor Jesus, uma premissa da sua Descida aos Infernos. Então, acenderam-se outras coisas que andava a aprender, como a polissemia bíblica da palavra “mar”, “águas” e “abismo das águas”. Na cultura hebraica, estas águas-mar-abismo representam a morte. Aprendi depois que em quase todas as mitologias daquele médio-oriente era assim, como todas as linguagens culturais que tinham as atenções viradas para o Mediterrâneo. Mas não só, porque depois vieram as andanças missionárias e o encontro com linguagens africanas, por exemplo, em que “mar” e “morte” são a mesma palavra, como é o caso do kimbundo de Angola, com a palavra kalunga.

O filão acrescentava-se e enriquecia-se. A patrística trouxe o encontro enamorado com as linguagens mistagógicas, e foram Tertuliano e Ambrósio de Milão quem me mostrou ter usado a imagem do “Sepulcro Líquido” pela primeira vez, séculos antes da iconografia. Servia-lhes para animarem os catecúmenos e os neófitos (recém-nascidos) a viverem o seu baptismo como Hora Pascal, mistério de renovação vital: descendo às águas baptismais, morremos na morte do Senhor, para com ele nos levantarmos-erguermos-nascermos para uma Vida Nova. Desceis ao sepulcro líquido – por aqui ensinavam – para de lá vos levantardes para a graça de uma vida nova, renascidos das águas, como das águas nascestes a primeira vez…

Agora, não sei o que fazer com esta teologia. Por causa do que está a acontecer neste Mediterrâneo real que não aparece nos manuais de dogmática mas nos directos das televisões. O “Sepulcro Líquido” não é hoje uma metáfora. Horrorosamente, já não é hoje uma notícia. É um apontamento, um separador. Foi há uns dias. Passou. Vale só para dois dias, quanto acontece uma desgraça maior. Depois, há coisas mais importantes, claro. Distraímo-nos tão depressa quanto nos escandalizamos, esquecemos tão rapidamente quanto demoramos a escolher um emoji triste.

Nem sei bem que palavras pôr aqui, agora. Peço desculpa. Devia chegar aqui e ter alguma carta a tirar da manga, mas não tenho. Devia haver uma punch-line qualquer. Pelo menos, ficava o texto composto, e eu a salvo desta confrangedora inconsequência. E até a expressão “a salvo” ganha cores novas nesta gramática da actualidade, a cor laranja forte que boia esperando que alguma mão ainda se consiga agarrar. Sei apenas que todo este imaginário da “teologia das águas” e do “sepulcro líquido” se revolve dentro da minha cabeça como um imenso ser vivo inquieto. Este imaginário teológico e poético, tornou-se escândalo trágico e perverso.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico e foi eleito na última semana como vogal da direcção da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP).  

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[Margem 8]

“’tis but a scratch”

Rui Santiago | 30 Abr 2023

Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação.

O tema podia ser o da pastoral dos sacramentos, da catequese da infância e adolescência, dos grupos de jovens, da formação nos seminários, do processo de indicação das lideranças, das nomeações dos bispos, da comunicação para “dentro” e para “fora”, das bizantinices litúrgicas, da desadequação das linguagens, da insensibilidade no modo de gerir a problemática dos abusos, da organização interna, da burocratização das paróquias, etc.

O tema podia ser um pormenor ou um sistema, um método que simplesmente já não funciona ou uma organização que desgraçadamente se estragou, mas há uma postura eclesial que se repete demasiado: reconhecer muito debilmente que aquilo que fazemos não está bem, mas resistir fortemente em mudar seja o que for.

Sinto que muitas vezes temos uma atitude de faz-de-conta: faz-de-conta que não somos irrelevantes, faz-de-conta que ainda estamos convencidos que isto assim funciona, faz-de-conta que acreditamos que acreditam em nós, faz-de-conta que está tudo bem, faz-de-conta que não demos conta.

Entre tanto que tem acontecido, andava a caminhar pensando nestas coisas, e nas atitudes e nos discursos em que se manifestam, quando o Cavaleiro Negro me veio oferecer uma imagem que me faltava. Não, não foi uma figura do apocalipse — sossegue quem não se lembra do Black Knight do filme Monty Python and the Holy Grail — mas uma das figuras mais memoráveis do grupo de John Cleese, Graham Chapman, Michael Palin e companhia.

O Rei Artur percorria uma floresta e encontrou uma ponte guardada por um Cavaleiro Negro que lhe vedou vassalagem e passagem. As espadas desembainharam-se e o Rei Artur cortou o braço esquerdo ao Cavaleiro Negro: “Pronto, arreda-te agora e deixa-me passar, valoroso adversário!” “Não, ’tis but a scratch, é só um arranhão”, disse ele. “Um arranhão?! Ficaste sem braço!” “Não é nada”, disse o outro, e continuou.

O Rei Artur cortou-lhe então o braço direito e, quando pensava terminada a luta, veio o Cavaleiro Negro com um pontapé. Disse-lhe o quase gentil Rei Artur: “Caro Cavaleiro, és de facto muito bravo, mas esta luta já terminou. Ganhei.” E o Cavaleiro Negro respondeu “Estás com medo, não é? Medricas!”

Rei Artur: “Olha que eu corto-te uma perna!” E cortou… O Cavaleiro Negro, saltitando ao pé coxinho, dava cabeçadas ao Rei Artur, que lhe cortou a outra perna. E a cena termina com um ridículo tronco humano empinado no chão, sem braços nem pernas, a gritar “Anda cá! Anda cá! Eu sou invencível! Invencível!” enquanto o Rei Artur e o seu escudeiro se afastam dizendo: “Tu és maluco”.

E o outro continua, ali pousado e desmembrado na caruma: “O Cavaleiro Negro sempre triunfa. Pronto, vamos considerar que desta vez foi um empate…”

As duas figuras seguem a sua vidinha e o Cavaleiro Negro lá rabeia: “Com que então vais embora, seu medricas? Vem cá que te arranco uma perna à dentada.”

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico e foi eleito na última semana como vogal da direcção da Conferência dos Institutos Religiosos de Portugal (CIRP).  

[Margem 8]

Quase reprovei a latim

Rui Santiago | 3 Abr 2023

Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação.

Foi mesmo por pouco e ainda há quem lembre momentos tão hilariantes como aquele em que respondi ao professor que me perguntava, apontando o quadro, “O que está mal nesta frase?”, com um titubeante “Acho que deve ser os acentos, que faltam…” A sala deu uma gargalhada, o professor descompôs-se de riso também, e eu era o único que estava sem entender porquê. Afinal, para meu espanto, o latim não tinha acentos. Onde já se viu?

Mas o que mais gravei foi um exercício de tradução que me saiu tão bem e fluido. O texto, em latim clássico, era de um daqueles luminares que se usam nessas coisas, algum primo do Cícero ou cunhado do Séneca que não recordo. Li o título do texto, passei-lhe os olhos, e peguei no meu dicionário como se fosse uma lâmina para entrar a desbravar mato. Lembro-me que a primeira palavra apresentava vários significados. “Vida” era o primeiro deles, mas apareciam também “ajuntamento, tenda, convívio”, coisas destas. A outra palavra do título, pesquisada nas folhas fininhas do meu dicionário latim-português, apresentava traduções como “alegria, teatro, festa, palco, representação, mímica”, por aqui.

E eu apresentei-me nesse dia às artes de acomodar tradução e escrita criativa. Escrevi, seguríssimo, no topo da minha folha de exame da faculdade, a tradução do título: “Acampar é Divertido”. Que feliz! Que feliz eu estava, finalmente um quase-latinista. Fui texto adentro, cada frase me entusiasmava mais. Sempre que aparecia aquela palavrinha primeira do título (e era muitas vezes), eu traduzia por “acampar”, “acampamento” ou alguma declinação disso. Da mesma maneira, sempre que aparecia no texto a segunda palavrinha, lá me espraiava em “divertido”, “alegre”, “jubiloso”, “exultante”…

Terminei a minha tradução como quem acrescenta um canto a’Os Lusíadas. O melhor, por sinal. Entreguei a folha de exame com a luminosidade e pose de quem chega à ponta de uma passerelle.

Quando chegou a correcção, uma banhada. Então não é que o tal primo do Catulo ou lá quem era, em vez de ter escrito um texto ameno e bem humorado com o título “Acampar é Divertido”, tinha em vez disso escrito um texto contundente e polémico com o título “A Vida é um Palco”?! Não só o título era esse, como todo o desenvolvimento que lhe segue é sobre a farsa do quotidiano, as charadas, os papéis que desempenhamos de acordo com as necessidades e apertos, as máscaras que vamos trocando. Eu juro que não vi nada disto, e fiquei quase ofendido com a desfeita que o texto me fez, não me avisando enquanto eu placidamente o traduzia como se fosse um elogio ao escutismo do séc. I no Império Romano.

O problema foi o ponto-de-partida, claro. Peguei mal no princípio, ao traduzir o título, e depois isso serviu-me de chave-de-leitura para tudo. É claro que há outras explicações mais profundas (e certas), mas para os meus pobres conhecimentos de latim na altura, essa explicação é a mais honesta.

Lembrei-me disto nestes dias em que andamos a pensar sobre o que vivemos no pós-relatório da Comissão Independente para o Estudo sobre Abusos Sexuais. Sinto que aqui por dentro da Igreja – em que me situo, claro – os pontos de partida estão quase sempre errados. E os pontos de partida, como no meu exame de latim, vão ser a chave-de-leitura para traduzirmos coisas mais sérias: no caso, para traduzirmos a verdade e a conversão em idioma de realidade. Se o ponto de partida é a sacralização da estrutura ou da condição de privilégio, a chave-de-leitura vai ser a auto-protecção. Se o ponto de partida é a arrogância moral e o auto-convencimento de impunidade, a chave-de-leitura vai ser a desculpabilização e a tentativa de descredibilizar a Comissão. Se o ponto de partida é dar aos jornalistas o que eles querem para que nos deixem em paz, a chave-de-leitura vai ignorar realmente as vítimas e o que elas precisam para que, talvez, possam ter mais paz.

Há duas semanas dei por mim num estranho início de conversa sobre estas coisas por causa de um artigo de opinião. Alguém tinha escrito um texto sobre a conferência de imprensa dos bispos, com o título a letras gordas: “Deceção”. Uma pessoa ao meu lado, numa comunidade religiosa, estava a ler e quis comentar comigo. Estendeu-me a página do jornal, para eu olhar, e diz: “Não posso com isto, a sério. Não há maneira de me dizerem que isto faz sentido.” E eu comecei também a comentar o que tinha achado da conferência de imprensa, para ser logo interrompido: “Não é isso, é o acordo ortográfico. Não é deceção, mas decepção!” E por aí ficámos, eu não tinha mais nada a dizer.

Quando não é o que está realmente no centro da questão aquilo que mais nos perturba, estamos condenados à irrelevância. Talvez, para uma qualquer coisa pascal, seja a morte necessária. E merecida.

 

[Margem 8]

O Simão e a oração-menina que lhe apareceu

Rui Santiago | 4 Fev 2023

Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação.

O Simão ainda tem o tamanho de menino que consegue caminhar por baixo da mesa de jantar. Inclina um bocadinho a cabeça, risonho, e passa de um lado ao outro com as suas aventuras. Tem os olhos que são todo um convite para o mundo. A vida é atraída por aqueles olhos e vai por ali adentro em torrente, com o entusiasmo de um ribeiro. Acende-se naquele rosto com uma exuberância que parece ouvir-se, se estivermos atentos. E é preciso estarmos atentos, porque a boca dele é calada e os gestos são gentis.

Há pouco tempo, veio dar-me um abraço quando a celebração da comunidade estava quase a começar. “Posso ir contigo?” E num pequeno diálogo percebemos, eu e os pais, que ele queria acompanhar-me durante a celebração. “Claro que sim, vens comigo e podes ir ter com os pais quando quiseres.” A mãe a dizer coisas de mãe, “ó Simão, olha que não te podes portar mal”, “ó Rui, olha que ele lá no altar depois começa-te a fazer perguntas e não te deixa celebrar”, mas o que ali ocupava o espaço inteiro era aquela cabecita levantada para mim com dois olhos que encadeavam. A comunidade começou a cantar, era hora do louvor desse Domingo. Entrámos eu e o Simão, que caminhava ao meu lado. A comunidade sorria surpreendida, feliz e vaidosa, à medida que o iam vendo. Ele, suavíssimo. Concentrado. O cosmos inteiro parado por causa da solenidade que ele colocava em cada passo, em cada esgar para ver o que eu fazia e fazer também.

Aproximei-me da Mesa da nossa Eucaristia. É uma Mesa grande e maciça, no centro. Atrás dela, comigo, o Simão não era visto pelas pessoas que estavam à frente, apenas pelas que estavam dos lados. Inclinei-me para beijar a Mesa. Ele não. Deu um passo em frente e beijou aquela Mesa, como se fosse uma pessoa, a face de um amigo, um rosto. Fiquei profundamente comovido.

Durante as orações, quando eu abria os braços, ele abria-os também. Em nenhum momento ele estava a brincar, não havia nada nele que aparentasse mímica. Ele abria os braços por perceber que assim era o certo, e enquanto eu rezava em voz alta ele fechava os olhos muito compenetrado para me acompanhar. Ele era a alma que eu tantas vezes precisava, ele era a autenticidade e a entrega daquilo de que eu estava a ser expressão. As pessoas continuavam em profundo sorriso, que não desarmava. Porque havia uma candura a tomar conta de nós, porque nesse dia uma unção nos visitava naquele nico de gente. Os que estavam de frente para a Mesa, contaram depois, não o viam a ele mas viam apenas as mãozitas a aparecerem quando ele me acompanhava em oração levantando-as.

Quando nos sentámos para a liturgia da Palavra, ele permaneceu ao meu lado. Começa a primeira leitura, e ele olhava ao redor. Depois do salmo, durante a segunda leitura, os pés começaram a pedalar no ar, porque aqueles bancos não são para quem é tão pequeno. As leituras estavam claramente a demorar demasiado e ele sentia que devia fazer ali qualquer coisa. Tocou-me de mansinho no braço, eu inclinei-me para o lado e apontei-lhe o ouvido. Ele segredou: “Posso rezar?” “Rezar como, Simão?” “Baixinho, só eu. É que não estou a ouvir…” “Podes, Simão. Reza à vontade por nós todos, está bem?” Iluminou-se! Um sorriso de quem recebe missão secreta e sabe exactamente como a vai executar. A segunda leitura continuava. Os pés também continuaram o pêndulo calmo. Mas ele fechou os olhos, inclinou-se um pouco para diante como se precisasse de um espaço côncavo, um corpo capaz de eco. Pousou as mãos e apareceu aquela oração-menina que tinha nascido dentro dele e estava com tanta vontade de sair. Muito baixinho, um rumor que apenas eu ouvia por estar sentado ao lado: “Pai nosso, só sei isto… Pai nosso, só sei isto… Pai nosso, só sei isto…”

Quando a comunidade se levantou em Alelu’Ya para aclamar o Evangelho, eu tinha sido transportado para outro lugar, uma terra santa que o Simão tinha inventado com aquela oração-menina que lhe apareceu. Quando eu for crescido vou querer rezar assim. Ele levantou-se também, muito certo do que tinha acabado de fazer, olhámos um para o outro e ele piscou-me o olho, com aquele amadorismo de quem ainda precisa de movimentar quase o rosto inteiro para isso. Era como se dissesse “está feito!” ou o ámen que faltava.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

[Margem 8]

Quando a “realidade” é um pormenor ou um exagero

Rui Santiago | 2 Nov 2022

Ilustração © Aquarela original de Susana Braguês para esta publicação

Esta foi a história de quando comprámos a primeira casa na Bielorrússia. Os Missionários Redentoristas escolheram uma área ainda não residencial, onde iam chegando muitos deslocados. À frente da casa, uma estrada de terra. Lama, na maior parte do ano. Por facilidade e iniciativa, um companheiro redentorista foi em nome de toda a gente da rua até ao gabinete de urbanismo da câmara lá do sítio. Os pedidos eram dois, e simples: “Por favor, tragam as tubagens do gás natural até aquela zona para podermos ter aquecimento nas casas, e ponham alcatrão na nossa rua.” Sem o aquecimento não se pode viver naquela região…

Uns rublos depois – uns dias depois, queria eu dizer – apareceu por lá uma maquinaria pesada, um daqueles rolos a alisar a terra. E adeusinho. Passou uma semana e mais outra sem que o alcatrão chegasse. Voltou lá ao gabinete o meu confrade. “Sim, sim, já está alcatroada. Olhe aqui.” E foi-lhe mostrado um mapa todo apresentável em que se via o milagre. Os da nossa rua juravam que não, mas mudou coisa nenhuma. Voltaram para casa, entre a perplexidade e a fúria.

“Olhemos por outro lado: até pode ser melhor assim – disse o meu companheiro numa reunião com a gente do lugar – porque ainda não canalizaram o gás para aqui, e é bom que o façam antes do alcatrão”. Lá voltaram: “Podem então canalizar o gás para tratarmos do aquecimento nas casas?” A resposta foi surpreendentemente favorável e clara. Mas cara… Pediam o equivalente a quase 7.000 euros para isso. A justificação? “Porque teremos que levantar o alcatrão todo para fazer passar os tubos do gás, e depois voltar a pôr alcatrão.” “Mas não tem alcatrão!” “Tem tem, olhe aqui”, e lá vinha o indesmentível mapa, até com o brasão da cidade no cantinho.

Aqui entre nós: os Redentoristas professam um quarto voto no dia da sua consagração. Esse voto é o da “Perseverança”. É por isso que consegue ser bicho teimoso. O meu confrade levantou os colarinhos do carisma, arregaçou as mangas do quarto voto, e não largou enquanto não marcou uma vistoria com uma equipa técnica, não só de responsáveis do urbanismo mas também da peritagem do gás natural. Iriam ver in loco a situação.

No dia marcado, lá estavam todos, com os seus capacetes de plástico amarelo e coletes. Os dois Redentoristas a recebê-los, juntamente com os vizinhos que apareceram. “Como podem ver, a rua está ainda em terra batida, por isso pedimos que nos tragam o gás natural e depois nos ponham aqui um tapete de alcatrão”. As duas equipas de peritos, cada um mais calmo e solícito que o outro, olharam para a rua, abriram um mapa bem grande em cima do capô de um carro, orientaram os dedos sapudos sobre o papel e confirmaram: “Olhe que não, veja aqui: está alcatroada pois. Já há dois meses.”

E no meio do silêncio incrédulo que se fez, ouviu-se a tal da Perseverança ao longe, assobiando enquanto dobrava a esquina e se ia embora dali, a ver se arranjava 17.000 rublos de alguma maneira.

Eu lembro-me tanto desta história quando em Igreja a gente se põe a falar de algumas coisas.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

[Margem 8]

De uma bomba saiu uma casa

Rui Santiago | 5 Out 2022

Ilustração © Susana Braguês, original da autora para este texto.

Valentín Cueto. Fica já o nome dele, à falta de melhor começo para uma história das que merece mais do que “era uma vez”. Astúrias, 1937. Franco recebeu uma ajuda preciosa de Hitler durante a Guerra Civil de Espanha: uma equipa da força aérea alemã especializada em bombardeio. Várias cidades foram massacradas, mas bombas caíram também em lugarejos e aldeias que ficavam entrecaminhos. Uma delas caiu em Ceceda, sitiozinho ali ao pé de quase lugar nenhum. Outras, bem perto. Cada um fazia contas aos danos, alguns faziam contas à vida enquanto outros contavam os mortos. Valentín olhava para o buraco, enorme, onde antes tinha um palheiro e um arremedo de vacaria. E não se mexeu. E não lhe mexeu, por muito tempo. Aquele oco seria um memorial do buraco que abrira nele. Caíra em cheio no seu terreno, explodira em cheio no centro da vida.

E, lentamente, houve um atrevimento de imaginação a tomar conta dele, uma fantasia medrava como um pé de qualquer coisa da qual havia de colher-se fruto. Visitava aquele lugar em que a bomba, como um soco caído do alto, tinha assim violentado a terra. Até ao dia em que ouviu o chão propor-lhe uma casa, feita que estava a fundação para colocar os alicerces. Valentín Cueto, não se esqueça o nome, porque são estes homens que trazem saúde ao mundo. Valentín pôs os alicerces no buraco que o tinha sido de uma bomba, mas agora albergaria uma casa. E ele havia de mudar-se para ali, havia de morar naquela casa como quem pega na família e a traz para o território do riso e da esperança. Enquanto a fundava, ela desenhava-se sozinha do lado de dentro dos seus olhos. Levantou-a ele, pedaço a pedaço, inventou-a ele de dentro daquela cova como quem desenterra um tesouro ou ressuscita um amigo. Levou anos, muitos anos, os documentos da casa dizem que era já 1950 quando recebeu número e tudo.

Conheço esta casa há alguns anos, vivi nela horas inesquecíveis, sei o nome de dezenas de pessoas que nela saborearam a mais profunda comunhão e descanso. Sei de quem tenha voltado da morte à vida por ali, naqueles corredores de tábuas que rangem no segundo andar, ou diante daquele janelão no sótão a dar para a montanha. Sei a que sabem as torradas feitas na lareira e só nunca soube por onde raio naquele verão entravam tantas moscas. E também não sabia esta história. Conhecia a Elena, a filha do Valentín, e gostava tanto dela. Soube há pouco que existia uma casa que tinha saído de uma bomba, e que eu estava naqueles dias a viver dentro dela. E sei que podia daqui espiritualizar tantas coisas, e sei também que é tão fácil romantizar tudo isto, mas tenho tanto tanto medo ao que é piroso. E tenho tanto tanto medo de estragar uma boa história com as minhas glosas. Esta é uma história invencível, que não me é permitido guardar. Tomou conta da minha imaginação assim que a recebi, e agora aparece-me para conversar comigo só porque lhe apetece, sempre que lhe apetece. Ofereço-a, porque também eu de graça a recebi.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

homens que são como a negação das estratégias

Rui Santiago | Dez 12, 2021

primeiro degrau

Gostava de poder perguntar ao Daniel o lado pelo qual ler este verso. Ouço-lhe o timbre da voz ao escrever esta frase. Perguntava-lhe se era a negação das estratégias que liberta os homens e os cola ao ritmo mineral e vegetal que há nas coisas, ou se era a negação das estratégias que fazem as coisas funcionar. Talvez ele próprio dissesse o princípio do poema de cor, como os tinha muitas vezes. Logo este que é o dos que abre biografias, “homens que são como lugares mal situados / homens que são como casas saqueadas”.

Sei que anda este verso e este poema a morder-me a bainha das calças há mais de um mês. Já tropecei nele várias vezes, em mudanças de passo, quando ultimamente se aflora a temática dos abusos de menores em contexto eclesial. O que se vai lendo e conhecendo aponta para homens que são como a negação das estratégias pelas quais estes problemas se podem resolver, procedimentos de homens que são como lugares mal situados no mapa-múndi de um problema sério. Antipoeticamente, aqueles que são como casas saqueadas são outros.

Quando se perde a noção adensa-se o abismo. É similar à perda da dor, que expõe o corpo ao perigo de sucumbir rapidamente por falta de alarme. A dor, esse mecanismo interno de aviso e protecção, corresponde à noção que é tão arriscado perder. Perder a noção é andar “a leste do paraíso”, esse território da fuga, do escondimento, do malogro, da culpa e… ainda assim, quem sabe, da ténue esperança firmada numa palavra inesperada.

segundo degrau

Génesis, capítulo quarto, versos nove a dezasseis. “Leste do paraíso” é o lugar de Caim depois de extinguir Abel. Assim conta o Livro: “Caim afastou-se da presença do Senhor e foi habitar a região de Nos, a oriente do Éden”. O destino da errância vem depois das perguntas que se sucedem como flechas: “Onde está o teu irmão?” e “O que fizeste?” São, talvez, as perguntas com maior prazo de validade na história do mundo.

O lugar de Caim, a leste do paraíso, é dito na boca dele como terra de expulsão e acusação. Isso verbaliza ele mesmo no rosto de Deus: “Expulsas-me, obrigas-me ao esconderijo, afugentas-me e abandonas-me, por ser tão grande a minha culpa.” E de tal modo violento é para o coração de Deus ouvir um filho a dirigir-se-lhe assim, que o Senhor reage com uma palavra que ainda nunca tinha dito: “Não!” Deus diz “não” (Gen 4, 14-15). E marcou-o com um sinal que o pusesse a salvo. Este inesperado “não” interrompe a cadeia da culpa e da desgraça, corta o ímpeto furioso da condenação. Com a terra ainda empapada do sangue de Abel, com o suor queimando na testa de Caim, Deus introduz uma palavra com futuro dentro, uma possibilidade. Há ainda uma via a percorrer a leste do paraíso, há ainda viabilidade no lado de fora.

terceiro degrau

No poema do Daniel há homens que são como danos irreparáveis, homens que são como sítios desviados, que são como caminhos barricados, homens encarcerados abrindo-se com facas. E cada uma destas imagens me atormenta como coisa a exigir iluminação e toque de mão humana. Vivemos uma hora de dolorosa conversão. As análises estão aí com suficiência e alarde, mas falta ainda a transparência da conversão, da humilhação de ser descoberto à humildade de mudar realmente. “Onde abundou o pecado, superabundou a graça”. Quem sabe? Se vivermos esta hora com desassombro e desapego, talvez aconteça que Deus nos apareça, sempre novo, a leste do paraíso, com uma inesperada palavra de futuro e um sinal de salvação. Mas esse sinal teremos de carregá-lo na testa, como Caim, porque há crimes que não se podem esconder.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

[D, de Daniel]

há uma voz que bebo

Rui Santiago | 27 Out 2021

Ilustração © Susana Braguês, cedida pela autora

primeiro degrau

Viajo para uma voz que escorre como um lado aberto, uma boca como uma abertura de lança, quer dizer, lugar directo ao coração, degrau onde ajoelhamos por ter chegado à nascente. Sou de um sítio em que a água era de colher: “Vai colher água à fraga”, foi um dos mandamentos aprendidos na infância. E eu fazia como vira fazer: a fraga era uma pedra grande mas humilde diante da qual o corpo se movia à oração. Uma outra pedra mínima, breve como a soleira de um lugar sagrado, tinha sido colocada diante para que pousássemos os joelhos enquanto nos servíamos daquela água. Aquele sítio era maravilhosamente musical. Guardo a música comigo. Se a soubesse escrever, seriam as notas na pauta como crianças no recreio.

Já eu andava na escola quando segui fascinado o roteiro dessa água. A fraga era no alto mais subido da aldeia, num segredo da floresta que eu achava pertencer apenas aos três ou quatro da minha família que faziam uso do mandamento. Seria uma pedra vegetal, já que dela a água se colhia. Mas tudo naquele lugar cheirava a pastoril também. A ordenha marcava os dias, princípio e fim, num ritual igualmente musical interpretado no fundo dos caldeiros. Até as fragas o sabiam certamente, como aquelas que davam água poupando-nos o esforço da ordenha, água esperando-nos num regaço de pedra e terra. Colhíamos a que precisávamos e sempre sobejava. Assim iniciava a descida num regato finíssimo que ia ganhando lanço no caminho até que lá no fundo fundinho, se encarreirava escondendo-se por um pouco para ir sair na fonte ao pé da capela do povo, mesmo no coração da aldeia. Aparecia soleníssima, toda crescida e contente, de um cano de ferro muito antigo encaixado no lugar da boca de uma carantonha de pedra muito feia. O cantar era todo diferente do pizzicatto jovial que eu conhecia da nascente. Na fonte, jorrando em bica, a água vinha mais operática, bojuda, de soprano perfil.

segundo degrau

Não tenho como saber quantas horas me demorou este rastreio. Sei ainda da luz a acertar-me nos olhos. E sei da água como um ser vivo ao qual colhia como às amoras e ao qual perseguia como às perdizes. Sei a confusão que me aconteceu quando me quiseram ensinar que os estados da água eram três, líquido, sólido e gasoso, porque para mim os três estados da água eram nascente, levada e fonte. Eram músicas diferentes que ela tinha em cada um, temperaturas diferentes, sabores diferentes e, sobretudo, maneiras de beber. Ela dava-se a servir de modo diverso em cada estado. Ajoelhava-me para a colher, na fraga. Deitava-me de peito no chão e mergulhava de borco nela, na levada. Juntava as mãos e bebia, na fonte.

Uma voz bebe-se pelos ouvidos e ouve-se com lábios sedentos. Há um Verbo que troca as voltas aos sentidos, e esse Verbo é aquela fraga a quem Moisés varejou um lado, o rochedo sobre o qual as parábolas constroem o Reino, a pedra angular jorrando sangue e água, o lado do Messias escorrendo leite e mel. E a voz bebida goteja uma promessa: multiplico-me no coração que escuta, tornar-me-ei uma torrente no centro do peito.

terceiro degrau

Por não ser dado a latins, desrespeito a leitura nos jornais paroquiais que falam em sede vacante. Acontece-me ler tudo em português e assustar-me com a notícia de que a sede não tem quem a ocupe. Anunciamos a água viva mas não desempenhamos a sede. Quero um cristianismo que não deixe vaga a sede, que habite o eixo desse lugar.

Preciso de comunidades em que a sede se faça salmo, a oração se desenlace como o fluxo da respiração, igrejas de pessoas em que o louvor encontre caminho como um regato e se robusteça como uma levada. Fazem-me falta os lugares em que possa encostar a mão à página e pressentir a humidade fria e manancial que guardo da parede daquela fraga da minha meninice. Quero abrir as escrituras como Moisés vareja a pedra, para beber a voz que se solta, o Verbo que absolve os nós, o Cordeiro que descodifica os selos. Tenho tanta vontade de um cristianismo em que a Palavra é lida como se folheia na ponta dos dedos o rosto e o corpo do amado, o arrepio da visão de quem está totalmente presente e não cessa de chegar. Porque é alguém que vem a partir da presença, não da ausência. Às vezes, dá-me tantas saudades da beleza e do assombro que esquecemos atrás de um cenário qualquer da nossa pantomima religiosa. Preciso de quem me conte a Palavra usando as palavras só ao alcance de quem gosta dela. Quero quem me abra as escrituras como as crianças metem as mãos na água. Quero inclinar o livro sobre as minhas mãos em concha, e beber.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.

[D, de Daniel]

homens que escavam dia após dia o pensamento

Rui Santiago | 4 Set 2021

Ilustração © Susana Braguês, cedida pela autora

primeiro degrau

Conheci um homem quando ele tinha decidido que chegara a hora de tornar-se Velho. Conheci-o quando eu tinha decidido que chegara a hora de tornar-me Cristão. Ele nos sessentas, eu nos vintes. Em dias parecidos a estes, aconteceu pela primeira vez o verso que lhe ouvi repetir tantas vezes mais, até fazer em mim morada: “Estou a pensar em Deus.” Aconteceu num banco de jardim virado para o Sado. “E agora?”, perguntei. “Estou a pensar em Deus.” Nele, era um dizer tão natural como “chega-me a água” ou “o vento está frio”. Continuo sem domesticar esta frase, permanece um dizer indomável dentro de mim, mas acompanha-me tão fiel e devotado como um cão na tangente do rebanho.

Há vinte anos, inquietava-me aquele “em Deus”. Como se pensa “em Deus”? Isso faz de Deus assunto ou lugar?

Hoje, surpreende-me o que na altura não me agarrava ainda os colarinhos: “Estou a pensar.” Por ingenuidade, estava convencido de que pensar era exercício natural como andar ou assobiar. Sei hoje que não. Pensar é coisa que anda ali entre a arte, a ciência e o namoro, convoca diversos nervos e moções: a imaginação, a sensibilidade, a memória, os sentidos, a história das relações, a curiosidade das culturas, a agilidade do espírito… e o império da vontade.

segundo degrau

Lembro-me da primeira vez que alguém me impôs necessidade de pensar. Uma carroça subindo a serra e um Velho sentado ao meu lado com as rédeas do burro na mão. Eu aprendia as primeiras letras. O Velho não reconheceria uma nem que fosse do tamanho de uma árvore. E começou um jogo suave, tão devagarento como o passo que levávamos, de perguntas a que eu reagia com resposta pronta. A cada resposta pronta, um som gutural de assentimento e a pausa suficiente para me dar tempo de ficar vaidoso por tão rápido e fácil acerto. Então, estando o menino de contas feitas com a sua própria inteligência, o Velho que só não sabia ler letras, deixava pingar outra pergunta que era um avesso da anterior, e esperava resposta. Uma e outra vez. Até eu me ver encurralado nas minhas respostas tão rápidas e tão à bulha umas com as outras, respostas que não se entendiam e se contradiziam. E o Velho repetia o ciclo (havia tanto tempo naquele tempo) introduzindo as suas minuciosas variações. Comecei a pensar. Tornou-se obrigatório. O primeiro exercício, tão exigente, era não reagir, parar antes de responder. Lembro-me do esforço físico de fechar a boca. Fechava os olhos e tapava com as mãos os ouvidos para me ajudar, como se a cabeça inteira fosse uma coisa a vazar. Forçar as palavras a ficarem dentro. A entenderem-se primeiro, dentro.

Experimentei realmente na tarimba do corpo o que depois aprendi na etimologia: pensar está associado ao exercício de pesar. Tomar o peso às coisas, dar peso às ideias, deixar ir o que não tem espessura nem massa, carregando o fardo de levar as coisas dentro até que elas se componham.

Hoje, agradeço a dupla valência daquela lição, porque o esforço de pensar me empurrou a refugiar-me no silêncio ali mesmo, um silêncio físico. Nunca se poderá agradecer como convém a dívida que nos deixa quem nos adestra para as coisas mais importantes.

terceiro degrau

É isto que me dá mais saudades no cristianismo que hoje temos. Alguns foram aos gregos para nos estragarem a arte de pensar, intelectualizando-a, colocando-a num reduto do corpo, às vezes contra o corpo, sempre sem ele… e cá estamos hoje, desajeitados para “Pensar [até] em Deus” com a imaginação e o desassombro, sem habilitações para um pensamento narrativo, sinalizador de kairos e atracção para uma metanoia sem afectação beata nem moralismo. Entregámos à burocracia o funcionamento das nossas comunidades grandes e ao amadorismo o funcionamento das nossas comunidades pequenas. O normal está entre o meio termo e as combinações intermináveis destas duas.

De vez em quando topamos com comunidades cristãs em que as pessoas são estimuladas ao exercício de pensar com tempo, pesar com vagar. Nesses casos, é quase palpável a desenvoltura do Verbo a fazer-se Carne e nem o Espírito consegue manter tão diáfano o anonimato que tanto preza nas suas acções.

E Velhos. Repito: é o que me dá mais saudades. É um constrangimento esta descoberta de que é possível ter muitos anos sem que a sabedoria floresça no corpo. Conheci homens e mulheres, Velhos, que me inspiraram a genuína vontade de querer ser Velho quando crescer. Esperava que fosse comum e, sobretudo, mais simples e natural. Fazem-nos falta referências sapienciais, vozes com peso para contarem histórias e conspirarem valores, memórias tão longas que identificam pelo tacto as raízes do futuro, Velhos que elogiem a lentidão e convoquem Deus para pertinho de nós. Dois espectáculos humanos me entristecem até ao oco: crianças mal amadas e velhos insensatos. Conheci um homem quando ele tinha decidido que chegara a hora de tornar-se Velho. Conheci-o quando eu tinha decidido que chegara a hora de tornar-me Cristão. Não podia supor, quando vim, que um homem assim fosse por aqui tão raro.

Rui Santiago é missionário redentorista e presbítero católico.