“Francisco assumiu definitivamente o caminho do Evangelho”.
– Artigo de José Maria Castillo in Revista IHU On-Line – 16 março 2018
“O Papa poderia ter feito mais do que fez? Ninguém sabe. Nem certamente é possível saber. O que me parece indubitável é que o Papa Francisco deu uma nova guinada ao papado. Uma nova guinada que já não tem retorno. O hieratismo, a distância, a solenidade de tempos passados, toda a parafernália de sonhadores extraviados, por fim, desmoronou-se. Simplesmente porque tudo foi suplantado pelo Evangelho”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 15-03-2018
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Por ocasião do 5º aniversário da eleição do P. Jorge Mario Bergoglio para o papado, numerosos jornalistas e escritores expressaram seus pontos de vista sobre o Papa Francisco e sua forma de exercer o poder e autoridade na Igreja.
Como é lógico, no reduzido espaço de uma “entrada” no blog não é possível dizer tudo o que teria que explicar sobre um assunto como este, que resulta muito complexo e nada fácil de expor. Por isso, vou me limitar ao que me parece mais fundamental.
Se nos atermos ao que o Código de Direito Canônico nos diz, em seu cânon 331, sobre o poder do papa, se afirma que o Romano Pontífice tem “poder ordinário, que é supremo, pleno, imediato e universal na Igreja, e que pode sempre livremente exercer”.
Não estou falando da teoria do plenitudo potestatis, que os teólogos dos séculos XI ao XIII inventaram para justificar um poder absoluto do papa sobre o mundo inteiro. Não se considera esta vergonhosa história, quando se trata de avaliar o governo de um papa atual. O problema está em saber se um papa de hoje pode ou não modificar leis, tradições ou normas que se referem ao governo e à vida da Igreja em assuntos de importância. Por exemplo, um papa pode modificar a liturgia ou o Direito Canônico, em assuntos que não são “verdades de fé divina e católica” e que, portanto, não são “dogmas” imutáveis? Poderia um papa mudar tudo o que, no Direito Canônico, vai contra os Direitos Humanos? O que é mais importante para a Igreja? Ser fiel às tradições do passado, que não são verdades reveladas e de fé? Ou ser coerente para a solução de problemas do presente, que muita gente quer ver resolvidos para poder ter fé?
Exposta assim a questão, a resposta parece lógica e coerente. O papa não pode modificar o que pertence à fé da Igreja. Isso é evidente. No entanto, o que o papa pode, e sobretudo deve, é gerir o governo da Igreja de maneira que o importante e decisivo não seja ter uma Cúria Romana bem organizada, mas, ao contrário, apresentar ao mundo uma Igreja que seja vista pelas pessoas como uma instituição coerente, fiel ao Evangelho de Jesus, o Senhor, e como uma luz de esperança e salvação para tantas pessoas que sofrem mais do que se pode suportar.
É evidente que se o problema é apresentado nestes termos, a solução teria que ser clara e urgente: modificar tudo o que não diz respeito às verdades que são “dogmas de fé” e que, ao mesmo tempo, está reivindicando uma atualização, para que a Igreja não seja uma instituição antiquada e do passado, mas, sim, atual e que responda ao que as pessoas necessitam em nosso tempo. E o Papa não pode fazer isto? Não é isto o que o Vigário de Cristo na terra tem de fazer?
Muito bem, estando neste ponto, a resposta parece não deixar dúvida alguma. Um papa responsável, livre e coerente, teria de se colocar a trabalhar, com todos os especialistas que necessitar, para a devida resposta às perguntas que acabo de fazer.
No entanto, essa resposta, que parece tão clara e tão óbvia, na realidade não é. Nem é tão fácil e nítida. Porquê? Porque, em todo este assunto entram em jogo outros “dados” (ou caso se prefira, outros “componentes”), que são indispensáveis e dos quais um papa não pode prescindir, nem pode se retirar. Ao que me refiro?
Um papa não é, antes de tudo, um “Chefe de Estado”. Antes que isso – e prescindindo disso -, o papa é a “autoridade suprema de uma instituição religiosa”. É, portanto, o máximo responsável pela unidade de quantos livremente pertencem a essa instituição. Daí que o papa tem de cuidar e proteger não só da “ortodoxia da fé”, mas também (e ao mesmo tempo) da “união dos crentes”. Um problema, este último, sumamente delicado, complicado e extremamente difícil. Sobretudo, se levamos em conta que Jesus, que foi a origem da Igreja e é seu centro e sua razão de ser, manifestou como desejo último e supremo de sua vida que todos nós, que acreditamos nele, permaneçamos unidos (“Pai santo, guarda-os unidos… que todos sejam um”) (Jo 17, 11.21…).
De sobra, sabemos que a Igreja está fragmentada, dividida, quebrada. O Papa Francisco está fazendo esforços notáveis e até passando por humilhações muito duras, com o anseio de ir aproximando posturas, com o objetivo de reconstruir, na medida do possível, a unidade perdida de tantos milhões de pessoas que, por incontáveis problemas, se separou em seitas e credos distintos. De forma que a fé religiosa veio a ser o veículo da separação e até do ódio, ao invés de unir a todos nós que olhamos Jesus e seu Evangelho como fonte de esperança e salvação.
Sendo assim, meu ponto de vista é que o Papa Francisco assumiu o caminho mais razoável que um “papa responsável” pode e deve tomar neste momento. Francisco assumiu decididamente o caminho do Evangelho. O caminho dos marginalizados e dos excluídos, dos que sofrem e se veem desprezados. É assim que Francisco prega, mas, sobretudo, age e vive. Aproxima-se das pessoas em tudo o que lhe é possível. Retomando um tema do qual se falava nestes dias, Jesus não nomeou nenhuma mulher para que fosse “apóstolo”. Naquela sociedade, uma mulher não podia ser “testemunha oficial” de nada. Contudo, quero (e devo) destacar que as mulheres são o único coletivo de pessoas com o qual Jesus não teve o menor atrito ou dificuldade. Jesus censurou duramente os apóstolos por sua falta de fé e suas ambições de poder. Com as mulheres jamais, nenhuma dificuldade. Pelo contrário, sempre as defendeu, sempre se colocou ao seu lado. E defendeu sua igualdade de direitos em relação ao homem, como fica claro em Mt 19, 1-12; Mc 10, 1-12; cf. Dt 24, 1.
Ninguém imagina, nem sabe, como Francisco encontrou a Igreja quando foi eleito no conclave, há cinco anos. Eu posso assegurar que, poucos dias antes de se saber da notícia da renúncia de Bento XVI ao papado, uma personalidade muito importante em Roma me disse: “Reza pela Igreja, que está muito mal, que já não pode cair mais baixo”. Não me disse mais nada. Em poucos dias, ocorreu a mudança.
O Papa poderia ter feito mais do que fez? Ninguém sabe. Nem certamente é possível saber. O que me parece indubitável é que o Papa Francisco deu uma nova guinada ao papado. Uma nova guinada que já não tem retorno. O hieratismo, a distância, a solenidade de tempos passados, toda a parafernália de sonhadores extraviados, por fim, desmoronou-se. Simplesmente porque tudo foi suplantado pelo Evangelho.
José Maria Castillo Sánchez
Nascimento 16.08.1929 (90 anos)
Nacionalidade espanhola
Companhia de Jesus até 2007
Formação – Faculdade Teologia Granada – Espanha
Teólogo, ex-sacerdote, escritor e professor universitário