Cristina Inogés Sanz teóloga espanhola

Textos publicados em 7 Margens com edição mínima

Um sincero agradecimento a 7Margens por parte da página da paróquia de Vilar de Andorinho

 

[O flagelo que não acaba – X]
A teia de aranha

Cristina Inogés Sanz | 23 Jul 2023

“Cuidar das vítimas é fazer do Evangelho uma realidade. Elas sentem-se enredadas numa teia de aranha da qual não podem sair. Não importa se são crianças ou adultos porque, quando o abusador fixa os olhos numa vítima, é muito difícil que a solte”. Ilustração © Catarina Soares Barbosa

Ainda há pessoas a quem lhes custa acreditar que a realidade dos abusos seja verdadeira; outras gostariam que estas coisas não se tornassem públicas, porque o que não se sabe não existe e é melhor não saber; e outras negam absolutamente que isso aconteça e veem isto como um ataque à Igreja.
Cuidar das vítimas é fazer do Evangelho uma realidade. Elas sentem-se enredadas numa teia de aranha da qual não podem sair. Não importa se são crianças ou adultos porque, quando o abusador fixa os olhos numa vítima, é muito difícil que a solte. Por isso encontramos, sobretudo entre pessoas adultas, casos em que uma vítima foi como um cordeiro para o matadouro em ritmos de tempo que podem ser mensais e até semanais. Algumas pessoas acreditam que isso é impossível se a vítima não estiver de acordo com o agressor. Mas não, nem vai livremente, nem muito menos com prazer.

O que acontece é que a vítima caiu naquilo que em psiquiatria se chama de colonização emocional, descrita desta forma por Hugo Blaichmar: «A colonização emocional é o processo psicológico intersubjetivo pelo qual alguém passa a pensar, sentir e agir sob a influência de outro, o colonizador, que lhe impõe a sua subjetividade sem que o colonizado tenha disso consciência, vivendo assim o seu estado como se fosse de si próprio e não inoculado pelo outro.»

Ou seja, a vítima acaba pensando e sentindo como o seu colonizador e não pode fazer nada. Os vitimizadores fixam-se em pessoas que são psicologicamente débeis ou que estão a passar por um momento muito delicado em suas vidas. Não são tontos na hora de selecionar as suas vítimas. Nenhum escolhe uma que o possa afrontar.

A colonização emocional não começa de um dia para o outro. A base está numa realidade humana e nós somos seres relacionais. O vitimizador manipula esse ser relacional e apresenta-se – todos são narcisistas, entre outras características – como uma pessoa carismática que exerce uma liderança que transforma as pessoas que estão perto dele num “ego-sistema”, ou seja, essas pessoas seguem-no sem questionar, sem oposição, porque o veem idealizado, e porque psicologicamente ou pela situação por que estão a passar tornam-se extremamente fáceis de submeter e manipular. Colonizada a pessoa, manipulada a pessoa psicologicamente fragilizada, chegam o abuso de consciência, o abuso espiritual e o abuso sexual.

O abuso de consciência acaba por destruir o pouco que restava da pessoa. Viola-se o espaço sagrado do encontro dessa pessoa com Deus, que passa a ser ocupado pelo vitimizador, que se torna no deus dessa pessoa sem que ela tenha consciência disso. Chegados aqui, começam a surgir outros abusos e, se a pessoa tem um vislumbre de lucidez e pergunta algo ou manifesta alguma dúvida, põe-se em marcha o abuso espiritual.

O vitimizador exibe toda a força do mal, todo a sua ânsia de poder pervertido, todo o seu desejo de dominação com um argumento extremamente simples para a vítima: se te opões a isto ou questionas tudo o que estou a fazer por ti, estás a negar-te a tornar realidade a vontade de Deus. São capazes de dizer isto e deste modo o abuso espiritual é consumado. Daí se passa para o topo da pirâmide dos abusos: o sexual.

É muito duro. Aconteceu. Continua a acontecer. Manipulam a vítima até fazê-la acreditar, muitas vezes, que ter relações sexuais é um desejo da própria vítima que ele satisfaz por generosidade e para evitar-lhe sofrimento. Até aí são capazes de chegar e de ir tecendo de forma cada vez mais espessa a teia de aranha, a colonização emocional.

O dano causado às vítimas é imenso. Podem passar anos nessa situação até que o vitimizador as abandone ou até que a vítima tenha força suficiente, não para denunciar, mas simplesmente para contar a alguém o que lhe está a acontecer. Aqui pode começar outro calvário se não acreditarem nela, se a julgarem transtornada ou se a instituição – a Igreja – for considerada mais importante que a pessoa.

A colonização emocional é o primeiro passo que todos devem ser ensinados a detectar. Porque a luta contra qualquer caso de abuso cuja raiz é o abuso de poder começa por dar credibilidade às vítimas, dando formação suficiente para o prevenir e reconhecer, não negando a Igreja esta realidade, abordando-a nas homilias e sendo diligentes nos processos de denúncia.

Questiona-me profundamente como estas pessoas, tão humilhadas e revitimizadas, não abandonam a Igreja. É algo que nos deveria fazer pensar, reconsiderando a nossa atitude para com elas e rezar. Amém.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a Assembleia do Sínodo da Igreja Católica, com direito a voto, nomeada pelo Papa Francisco. O 7MARGENS reproduz este texto com autorização da autora e de Alfa Y Omegaonde foi inicialmente publicado, e a cuja directora, Cristina Sánchez Aguilar, agradecemos. 

Tradução de Júlio Martin.

 

[Olhar de teóloga]

Francisco na Disney: Outra forma de JMJ?

Cristina Inogés Sanz | 13 Jun 2023

Pormenor do cartaz do documentário Amen Francisco Responde, Disney+

Confusa e assustada com o selo que o Vaticano, com uma grande falta de sensibilidade, emitiu sobre a JMJ de Lisboa e que, felizmente, foi retirado, vejo que poderia ser necessária outra forma de JMJ. Com um pouco de imaginação e criatividade seria possível ir reformando uma estrutura que não mudou desde que foi criada em 1984. O mundo e os seus habitantes mudaram muito desde então. Os jovens especialmente.

O canal Disney+ transmitiu uma entrevista de Francisco com jovens, daqueles que normalmente vemos na rua, falando com toda a naturalidade e sem nenhum tipo de censura. Havia crentes e não crentes, uma vítima de abusos, um migrante, uma jovem pertencente a um movimento específico… Pode-se dizer que Francisco não tinha diante de si a habitual “juventude do Papa”, mas a real, a do dia-a-dia.

Gostei da entrevista, mas o que mais me fez pensar foi que depois de transmitida, o que os jovens que participaram nela mais valorizaram foi terem sido ouvidos, terem-se sentido ouvidos.

O que é que se passa na nossa Igreja para que, depois de se ter celebrado o Sínodo dos Jovens em 2018, não se sintam ouvidos? Deveria fazer-nos refletir e pensar em quanta voz terão os jovens que chegarem a Lisboa este verão para participar na JMJ.

E digo voz, como se isso fosse o máximo que se pudesse aspirar, quando os jovens, pela sua própria idade, deveriam ser contestatários, rebeldes, questionadores e pró-evangelho sem a mínima dúvida, tendo em conta o quão revolucionária é a mensagem de Jesus. Teremos a juventude adormecida?

Seria muito enriquecedor que os jovens tomassem a palavra durante toda a JMJ e fossem eles que realmente falassem. Inclusive que as homilias fossem dialogadas, que as catequeses se tornassem em momentos de escuta ativa que permitissem que os jovens se conhecessem verdadeiramente uns aos outros e, sobretudo, que fossem eles a apresentar os temas de reflexão e debate. Sim, de debate, quanto mais cedo os jovens aprenderem a iniciar um debate intraeclesial, melhor para todos.

O que é que da nossa Igreja interessa realmente aos jovens, se é que lhes interessa algo? Quais são os temas de que querem falar e dar a conhecer as suas opiniões?

É tão indubitável que a Igreja tem dificuldade em desprender-se do critério da cristandade, como é evidente que continua a gostar das grandes concentrações e, perante isto, não há possibilidade de oferecer outras alternativas?

Continuo com as perguntas porque me ajudam a pensar, e espero que nos ajudem a pensar juntos. Quantos jovens conhecem o bispo da sua diocese? Poderiam ser mais apropriados encontros de menor escala com os seus próprios bispos? Que conhecem da realidade da sua diocese? Porque o que fica depois de cada JMJ?

Não sei que orçamento terá tido a produtora da entrevista de Francisco com os jovens. Tenho a certeza que terá sido muito inferior ao da JMJ e, além disso, tratou diretamente com jovens com perguntas e interesses concretos.

Não digo que se tenha de acabar com os encontros da JMJ – embora outros tipos de encontros parecidos a este não tenham data marcada e acabarão por morrer sem que ninguém dê conta disso –, mas, pergunto-me se não seria melhor começar a pensar noutros formatos mais reais, mais apropriados aos tempos que vivemos onde se incluam os jovens que não são a juventude do Papa, mas a juventude que ninguém escuta.

Afinal, ser uma Igreja de portas abertas é um convite para sair e ser cristãos de uma maneira totalmente nova. Neste momento precisamos de menos pregadores e de mais líderes dispostos a ser irrelevantes e vulneráveis, diz Henry Nouwen.

Assim foi Jesus Cristo. E a sua mensagem continua a despertar receios em muitos. Bom sinal.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo da Igreja Católica. Tradução de Júlio Martin.

 

Cristina Inogés na Feira do Livro de Lisboa

As mulheres do monge Thomas Merton – incluindo M., o amor da sua vida

7Margens | 3 Jun 2023

Cristina Inogés Sanz. Foto © António Marujo/7Margens

Pode um monge ter muitas mulheres na sua vida? O livro A Sinfonia Feminina (Incompleta) de Thomas Merton, da autoria da teóloga espanhola Cristina Inogés Sanz, colaboradora do 7MARGENS, acaba de ser publicado pela Paulinas Editora e será neste domingo apresentado na Feira do Livro de Lisboa (Praça Amarela, 19h), com a presença da autora.

O livro, o primeiro de Cristina Inogés publicado em portuguêsfaz um percurso pela vida e pela espiritualidade de Thomas Merton e do modo como elas foram influenciadas pelas várias mulheres que cruzaram a vida daquele que é um dos maiores místicos do século XX. Um “buscador-trovador de Deus que vive uma profunda espiritualidade centrada no silêncio interior e na contemplação”, como a autora o define. E “que propõe ambas as práticas como lugar privilegiado para as experiências religiosas, incluindo com outras religiões, no diálogo buscado e sincero”.

A capa do livro, o primeiro de Cristina Inogés publicado em português

Entre as mulheres que o livro refere, e segundo o resumo feito por Cristina Inogés, estão desde logo a mãe de Thomas e as outras mulheres da sua família; as que ele “conheceu, no mais amplo sentido do termo, durante a sua tresloucada juventude”; a mãe do seu filho e as que viriam a integrar o seu círculo de amigos. Depois, houve ainda aquelas com quem ele se correspondia – com as quais trocava ideias, alargando os seus modos de ver ou aprofundando os seus. E, finalmente, M – como ele a chamava – “o amor da sua vida, sendo já monge”.

O tema das mulheres na vida de Merton, escreve ainda Cristina Inogés, tem sido obscurecido por outros temas da sua espiritualidade e produção literária e teológica. Parece um assunto difícil de se evitar, mas que se dispensa assim que surge uma oportunidade. No entanto, “a história da Igreja está pontilhada por casais que muito contribuíram para ela”. Tudo o que é preciso, acrescenta a autora, “é um olhar limpo e uma língua contida quando as circunstâncias são desconhecidas”.

A sessão de apresentação do livro contará com intervenções de Paulo Ramos, tradutor da obra, e do padre Alexandre Palma, professor na Faculdade de Teologia da Universidade Católica Portuguesa. Depois da sessão, a autora ficará disponível para uma sessão de autógrafos.

 

[O flagelo que não acaba (VIII)]

Sensibilidade e bom senso

Cristina Inogés Sanz | 5 Mai 2023

Eucaristia da jornada de oração pelas vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica, em Fátima, junto do mosaico da autoria do padre jesuíta esloveno Marko Ivan Rupnik, ele próprio acusado de abusos. Foto Agência Ecclesia/PR

Pessoas perfeitas? Felizmente elas não existem na vida porque isso nos faria deuses. Ninguém nasce sabendo tudo; porém, nascemos com a capacidade de aprender e aquilo que não podemos aprender ou que nos causa dúvidas podemos perguntar.

As dúvidas nem sempre são existenciais ou de tipo laboral, por assim dizer; muitas vezes são uma questão de saber se um fato e uma cor são adequados para um evento ou como nos dirigirmos a alguém ou onde ter um encontro ou uma comemoração. Questões aparentemente menores podem causar não grandes problemas, mas sim sentimentos de receio.

Há dias surpreendeu-me muito a celebração litúrgica em Fátima para pedir perdão às vítimas de abusos sexuais na Igreja. [ver 7MARGENS]

Fátima é grande e tem vários espaços para isso. O local escolhido tinha por detrás do altar um mosaico de Marko Rupnik (relembro que ainda não está afastado do ministério sacerdotal e ainda é jesuíta).

Haverá menos sensibilidade?

Os bispos não têm de saber de tudo porque são pessoas como as outras, mas, quem os assessora? Mais ainda, pedem assessoria? O senso comum costuma ser o menos comum de todos os sentidos e, algumas vezes, a sua ausência é clamorosa.

Pode ser que aqui, em Portugal, não haja vítimas de Rupnik (ou sim, mas ainda não se revelaram). De qualquer modo, a questão é que as vítimas de abusos sexuais voltaram a sentir-se desprezadas com esse gesto absurdo.

Por favor, um pouco de sensibilidade e bom senso. Não é assim tão difícil. Gestos deste tipo mostram falta de empatia, desprezo pelas vítimas, desconhecimento do mínimo necessário para gerar um clima de encontro e confiança. Alguém pensa em como é importante começar a trabalhar na construção da confiança? Vai ser muito difícil recuperá-la, mas, desde logo, gestos como este não ajudam nada.

No caso das vítimas de abuso – de qualquer tipo de abuso – a primeira coisa é reconhecer o delito porque, relembro, abusar e agredir sexualmente uma pessoa não é um erro, é um delito. Também é necessária muita humildade porque, se cada pessoa é um solo sagrado, as vítimas são particularmente terra sagrada violentada e violada. A comunicação é vital, é necessário abrir canais diretos onde uma voz acolha e gere escuta. O correio eletrónico funciona, mas para outras questões. É preciso ser sensível, paciente e estar disposto a escutar tudo aquilo que as vítimas sintam necessidade de dizer, mesmo que sejam expressões de ódio, porque precisam de romper o muro de silêncio em que têm vivido. E, sobretudo, que não intuam uma mentira porque, nesse caso, não haverá nada que fazer com a confiança.

Tudo isto, se possível, sem sinais, símbolos e imagens que evoquem algo ou alguém relacionado com os abusos, porque é muito doloroso que, enquanto algumas dioceses se perguntam o que fazer com as obras de Rupnik – a de Lourdes vai submeter uma consulta aos seus fiéis –

[ver 7MARGENS] as vítimas as continuem a ver numa celebração de pedido de perdão.

E, mais uma pequena questão: alguém fez uma leitura devido ao escasso número de fiéis presentes nessa celebração em Fátima?

Ânimo! Um pequeno esforço para pôr em prática um pouco de sensibilidade e bom senso.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.
 [O flagelo que não acaba – VII]

Falamos de abusos na vida religiosa?

Cristina Inogés Sanz | 19 Abr 2023

“O abuso de poder, e lembremo-nos que é a origem de todo tipo de abuso, está na vida religiosa.” Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens

Só porque algo não é falado não significa que não exista. A cultura da impunidade não só nasceu e se instalou nos seminários, como também estendeu os seus tentáculos à vida religiosa. Não deve surpreender-nos porque o abuso de poder impregnou todas e cada uma das estruturas da Igreja, e a vida religiosa é uma delas.

Antes de continuar creio ser necessário expor um fenómeno que, espero, a psicologia nos ajude a explicar. Para que nos possamos entender em linguagem comum, falarei de leigos e religiosos, sabendo que todo aquele que não é ordenado é leigo.

O fenómeno a que me refiro é este: entre os leigos, os homens denunciam mais abusos do que as mulheres; na vida religiosa, as religiosas denunciam mais abusos do que os religiosos. Destaco este facto porque vou referir-me mais aos abusos entre as religiosas, já que quase não há dados sobre o que acontece – porque acontece – entre os religiosos, sobretudo como abuso de poder e de consciência.

Na vida religiosa seguiu-se a mesma horrível estratégia de esconder a verdade, porque era mais importante a boa imagem da instituição do que a vida das mulheres. Porque, por estranho que pareça para alguns, as religiosas são mulheres.

O abuso de poder, e lembremo-nos que é a origem de todo tipo de abuso, está na vida religiosa. Há também, é claro, o abuso sexual por parte, na maioria das vezes, de capelães e/ou confessores – recordemos o caso Rupnik, por certo, ainda sacerdote e jesuíta – e, na maioria das vezes, com o conhecimento das prioresas, sobretudo na vida contemplativa, que não acreditam na vítima ou, pior ainda, acreditam que o agressor tem esse “direito”.

Que ninguém pense que estamos perante casos isolados de determinadas congregações. Estamos perante uma realidade a nível estrutural e mundial, onde a cultura também desempenha o seu papel e as mulheres, educadas na submissão, se encontram ainda em pior situação. Um exemplo? As religiosas africanas que têm quatro frentes abertas:

  1. Começarei com uma pergunta: será que as religiosas que vêm de África – e inclusivamente de outros continentes – para colmatar a falta de vocações nas nossas congregações ou ordens de vida contemplativa, são bem tratadas e têm todas as garantias como cidadãs e membros dessa congregação?
  2. As religiosas que chegam a Roma para estudar, enviadas pelas suas congregações, e que acabam – mais bem cedo que tarde – como empregadas domésticas sem ordenado, ou seja, exploradas, ao serviço de cardeais, com o conhecimento das superioras da sua congregação que continuam enviando outras religiosas nas mesmas condições e que acabarão da mesma forma.
  3. As religiosas abusadas por parte de um clero que vê o celibato como algo contrário à sua cultura e também abusadas por alguns bispos que, não entendendo também o celibato, acrescentam, ao abusar das mulheres, a segurança de saber que as religiosas não estão infectadas com SIDA.
  4. As duas versões de um mesmo drama. Por um lado, o das religiosas que engravidam e que lhes é oferecida a possibilidade de abortar – não há maior incoerência e desprezo do que obrigá-las a cometer um dos maiores pecados segundo a própria Doutrina da Igreja – e, se não aceitam essa opção, são expulsas da congregação, e que procurem encontrar uma vida em África com o estigma que carregam e, por outro lado, o drama das mulheres – não religiosas – que têm filhos de sacerdotes que não são reconhecidos por eles e que não têm maneira de sobreviver nem elas nem os seus filhos.

A este drama desumano e sangrento, acrescenta-se outro que também não é muito divulgado e que serve, mais uma vez, para demonstrar o “amor” à instituição que está acima das pessoas. Este outro drama é a quantidade de sacerdotes africanos que se suicidam após serem infectados com SIDA, por não serem capazes de suportar que se torne pública a sua doença. Não esqueçamos que em África não há recursos para pagar o tratamento e quase nem há hospitais onde se possa fazê-lo.

Sim, mas isso acontece em África, pensarão alguns. É verdade, mas, será que na Europa não se passa nada com as religiosas relativamente à realidade dos abusos? Especificando um pouco mais, em França, Espanha, Itália ou Portugal não há abusos na vida religiosa, sobretudo feminina, por parte de mulheres das suas próprias congregações ou ordens?

Desde há alguns anos que existe um abandono mais do que significativo de religiosas que deixam as suas congregações sem que haja uma crise vocacional ou de idade. A que se deve então este abandono constante? Conheço congregações que num ano perderam quinze dos seus membros. Mulheres com estudos universitários – muitas delas doutoradas – com uma personalidade marcante e uma vida dedicada a viver um carisma numa congregação que abusou delas, tentando subjugar, em muitas ocasiões, as suas consciências ou tratando-as de forma infantilizada, quando não humilhando-as em privado e publicamente diante de outras irmãs da congregação.

Conheço também o caso de uma mulher que abandonou a ordem de vida contemplativa, na qual ingressou com vinte anos. Deixou-a depois de viver nela outros vinte e cinco, e depois de ter passado por três mosteiros aos quais a priora do primeiro enviava informações viciadas sobre ela e, de cada vez, a mesma história se repetia. Era tratada quase como uma demente conflitiva. Quando não aguentou mais, abandonou a ordem com aquilo que tinha vestido. Literalmente. Durante uma semana dormiu na rua porque não tinha dinheiro nem sabia onde pedir ajuda aos serviços sociais da cidade onde estava. Ligou para o bispado expondo a sua situação e não foi ouvida. Acudiu ao vigário geral da sua diocese e não foi ouvida porque “já não era freira e ele não podia fazer nada”. Até hoje, sem nenhuma qualificação académica ou profissional, vive de trabalhos esporádicos – alguns com poucas garantias legais – enquanto espera que o seu processo seja visto em Roma.

Não há relação entre o tratamento que se recebe e o abandono da congregação ou ordem? O abandono, e mais ainda por estas razões, não é um mar de rosas. Porquê abandonar a forma de vida escolhida num determinado momento em vez de denunciar? E quem disse que não o fazem?

Algumas não denunciam pelo calvário que isso implica; outras, que o fazem, acabam por constatar que os seus processos se perdem ou dormem eternamente nalguma gaveta do dicastério correspondente… Haverá maior revitimização da vítima, sem falar no desprezo, do que verificar a impossibilidade de que se faça justiça?

Nada do que eu conto aqui é inventado. A realidade supera a ficção que qualquer escritor pudesse criar. Isto acontece, está a acontecer hoje em dia. Poderemos ficar indiferentes? Espero que cada mulher que possa ler este artigo, seja freira, religiosa ou leiga, faça uma análise profunda da sua vida e veja quantas formas de abuso de poder subtil e quase imperceptível enfrentou sem estar ciente disso. Há formas de abuso tão interiorizadas que quase parecem uma lisonja.

E vocês, religiosos ou monges que também possais ler este artigo, não tenhais medo nem vergonha em denunciar. Ninguém nasce vítima. Chega-se a vítima por causa do tratamento que se recebe de outro ser humano. Assim como uma ferida precisa de desinfetante para evitar a infeção, o abuso precisa de ser verbalizado para que não acabe por gangrenar o coração.

Praticamente todos os movimentos e congregações nascidas no final dos anos oitenta e início dos anos noventa foram intervencionadas, quando não mesmo proibidas pelos efeitos causados pelo personalismo exagerado dos seus fundadores ou fundadoras, e que derivaram em autênticos abusos de poder. Aviso aos navegantes, quais são as características que têm alguns fundadores de movimentos recém-criados?

A Universidade de Friburgo, na Suíça, elaborou há uns anos um dicionário de colofones, que são aquelas últimas linhas que todo o escriba acrescentava ao finalizar a sua obra, pedindo orações e algo mais. Se eram monjas, costumavam pedir material – pergaminho, pena e tinta – para continuarem a trabalhar; se eram monges, o habitual é ler que pediam donzelas. Não é necessário explicar para que é que as queriam… Afinal de contas, não há nada de novo debaixo do sol, diz Qoheleth 1,9

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Jorge Wemans e Júlio Martin.

[O flagelo que não acaba – VI]

Onde estão as associações pró-vida?

Cristina Inogés Sanz | 26 Mar 2023

Pode ser estranho perguntar onde estão as associações pró-vida na realidade dos abusos porque, estando tão preocupadas em defender a dignidade do início e do fim da vida, parece não se preocuparem muito com o que acontece entre esses dois pontos da existência de muitos seres humanos.

Quando se defende a vida defende-se na sua totalidade. Não há momentos mais importantes do que outros. Uma vida humana é igualmente importante em qualquer uma das suas fases, e tudo aquilo que afeta a dignidade de uma pessoa deve ser tido em conta.

Infelizmente é cada vez mais comum ver como a fé tem sido ideologizada em alguns setores da Igreja, e como essa ideologização faz com que a visão do que é, ou deveria ser, a coerência cristã seja mais fechada e excludente. Defender a dignidade das vítimas da Igreja – seja de que abuso for – não faz parte da defesa da vida? Assistimos a manifestações contra o aborto e a eutanásia em muitos países, mas não temos manifestações que reivindiquem algo em favor da dignidade das vítimas.

Disse num artigo anterior que estamos diante de um problema eclesial porque já todos conhecemos o alcance do mesmo, e não nos podemos justificar dizendo que não sabemos da sua existência. Como cristãos seguimos aquele que foi, que é a vítima por excelência; e sim, comemoramos a sua morte, embora gostemos mais daquela manifestação de poder que foi caminhar sobre a água, transformar a água em vinho, e curar os enfermos, em suma, o espectacular. Ou seja, embriaga-nos a teologia da glória, mas realmente é na teologia da cruz e do sofrimento que optamos pela fé e a definimos. E definimo-nos a nós próprios se quisermos fazê-lo.

Com a realidade das vítimas de abusos na Igreja, há quem caia na tirania do ativismo ideológico que os leva a buscar relevância e justificação no ambiente social – e pensando mais na opinião pública – porque já não suportam ser irrelevantes, em vez de envidar esforços de todo o tipo para encontrar soluções e, sobretudo, exigir justiça e tudo aquilo que for necessário para que as vítimas não vivam numa constante revitimização.

O ativismo ideológico não deixa de ser uma opção que, evidentemente, terá de ser respeitada mesmo que não se entenda, mas sabendo que isso somente não é a fé, nem a Igreja, nem claro, o cristianismo. No fundo do ativismo ideológico, ressoa uma pergunta tão bíblica quanto comovedora: “Será que eu sou o guarda do meu irmão?” (Gn 4:9).

As vítimas são terreno sagrado e um terreno que representa o silêncio de décadas – porque o luto que isso acarreta pode durar décadas até que seja completamente elaborado e permita falar – onde podemos tocar o abismo social que se cria, e que pode ser incrementado ao considerar que não temos nada a ver com isso. Esse terreno sagrado e silencioso não é um terreno estéril, murcho, sem vida. Pelo contrário, é terreno fértil porque abriga uma vida humana, dilacerada, mas ainda viva.

Esse evangelho “para a vida” que se defende a partir de opções de fé ideologizadas está seriamente comprometido na sua credibilidade, porque o verdadeiro evangelho para a vida defende-a durante toda a sua extensão. Não no vago: é a vida de muitos dos nossos irmãos a que foi violada. Literalmente.

E, se essa forma de fé ideologizada está tão preocupada pela dignificação do fim da vida, onde está a sua preocupação pelas vítimas que decidiram suicidar-se perante o sofrimento indizível de não serem acreditadas e, em muitos casos, acusadas de provocar esse abuso e essa agressão?

Ocorre-nos pensar que essas vítimas, além de terem sofrido abusos, agora a Igreja considera que atentaram contra Deus por tirarem a própria vida? Essa é a interpretação do suicídio (Código de Direito Canónico, 2281). No número 2283, faz-se alusão aos caminhos que só Deus sabe para lhes ter concedido a possibilidade de arrependimento… Pobres vítimas se, depois do horror vivido, e confrontadas com a realidade de não serem acreditadas, tiverem de esperar até que no último minuto Deus – quando deixaremos de invocá-lo para tranquilizar a nossa consciência! – lhes mostrará o caminho do arrependimento. Fico com a imagem do Deus cheio de misericórdia e amor que terá saído ao seu encontro e que as acolherá no seu seio cheio de carinho e compreensão.

Neste momento a diaconia na Igreja, aos pés da cruz, passa por inclinar-se perante as vítimas, pedir perdão cada vez que haja uma oportunidade, e estender as mãos abertas para que nelas depositem toda a sua dor. Porque a muitas pessoas preocupa-nos aquilo que acontece entre o nascimento de uma pessoa e o seu fim. Ou seja, preocupa-nos o evangelho da vida.

Temas: abusos sexuais associações pró-vida Cristina Inogés-Sanz Igreja Católica

 

4[O flagelo que não acaba (V)]

Abusos sexuais: Blasfémia!

Cristina Inogés Sanz | 9 Mar 2023

Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens

Ninguém pôde continuar como se nada tivesse acontecido, depois de ouvir o relatório devastador da Comissão Independente que ouviu as vítimas de abuso na Igreja.

Nem nesse dia nem nos seguintes. E espero que nunca nos habituemos a semelhante dor.

A realidade nauseabunda dos abusos, o flagelo que não acaba, não é um problema português, nem italiano, nem francês, nem espanhol. É um problema da Igreja, de toda ela e, portanto, de todos nós que nos consideramos Igreja. Porque, embora não gostemos de o reconhecer, a nossa Igreja está podre até à raiz.

Por isso, embora eu não seja portuguesa, atrevo-me a dedicar uma reflexão, no âmbito desta série de artigos que tenho estado a publicar neste jornal, para fazer uma proposta face ao que tem vindo a ser tornado público pela Comissão, e vendo que, periodicamente, os casos que aparecem crescem em obscenidade, surpreende-me que até agora, ninguém que eu me lembre, tenha qualificado os abusos sexuais na Igreja como uma blasfémia, porque atentam contra o que há de mais sagrado no mundo: a vida humana. Quem blasfema, amaldiçoa. E estamos a ver como uma série de pessoas repulsivas e sem alma amaldiçoaram a vida de inocentes. Fossem crianças ou adultos.

Agora já sabemos algo sobre o que aconteceu porque, pelo que parece, o que a Comissão descobriu é apenas a parte visível do iceberg. Sabemos que não podemos permanecer de braços cruzados e que devemos estar vigilantes para que se faça justiça às vítimas.

No entanto, podemos fazer muito mais se nos tornarmos justamente exigentes. No passado dia 15 de fevereiro, António Marujo e Manuel Pinto assinaram conjuntamente no 7MARGENS um artigo intitulado Não pode haver meio termo na resposta aos abusos: as 25 tarefas urgentes em que apresentavam treze tarefas a curto prazo, e outras doze a médio prazo. Quando o li pela segunda vez, deparei-me com uma das tarefas mais urgentes que tem de ser empreendida.

Esta tarefa, e aqui está a minha proposta, é que todo o candidato ao sacerdócio que queira ser ordenado deverá realizar previamente, sem nenhuma exceção, o curso de safeguarding, e, sem essa acreditação, a ordenação terá de esperar. Da mesma forma, quem se esteja a preparar para os votos perpétuos, independentemente de serem homens ou mulheres, deveria fazê-lo. Evidentemente, o mesmo para os bispos que veriam atualizado o curso comumente designado de babybishops, que fazem em Roma quando acabam de ser consagrados. E não, não me esqueço dos núncios tão diretamente implicados na eleição dos anteriores.

Os formadores dos seminários, das congregações religiosas, quem tenha responsabilidades pastorais deveria fazê-lo. Até agora, muitos leigos já o fizeram. Seria bom que se ampliasse o tipo de corpo discente. Poderia ser uma maneira de renovar a formação permanente do clero.

Muitas vítimas morreram sem ver justiça nenhuma porque o tempo passou sem que ninguém as atendesse. Outras suicidaram-se porque a vida tinha todos os dias o gosto e o cheiro do abuso. O que para alguns era a intuição daquilo que se aproximava, é já para todos uma evidência comprovada.

Não é uma guerra acabada. É uma batalha travada, apenas isso. O abuso de poder continua, os abusos sexuais também. Os agressores sexuais, disfarçados sobretudo como mestres espirituais, também. Muito cuidado com esses mestres espirituais de voz baixa, movimentos elegantes e contidos, porque alguns deles, no momento que possam, envolvem a sua presa e devoram-na psicológica, espiritual e sexualmente sem o menor escrúpulo.

Há quem tenha tido a ousadia de afirmar, tanto em âmbito público como no meio eclesial, uma opinião pessoal desde uma pressuposta atalaia de superioridade moral – tão inexistente quanto vazia – que não só insulta sem consideração as vítimas, como a qualquer cristão e, inclusivamente, a um não crente. Dir-se-ia que a maior preocupação para alguns é que a Igreja não pague um euro às vítimas e que os seus ouvidos não ouçam a crueza daquilo que viviam diariamente muitas vítimas. Mas há que ouvir e, mais ainda, há que escutar.

No filme Spotlight há uma cena em que o jornalista do Globe se encontra com uma vítima e esta fala de toques e violação. A jornalista, com muito cuidado, faz-lhe ver que a linguagem será muito importante para que todo o mundo saiba o que aconteceu e que terá de ser muito explícito. Tinha toda a razão. E agora devemos escutar a crueza daquilo que passaram.

Se a Igreja “não sabia” o que se passava, isso não a exime de ser responsável. Tem responsabilidade institucional e responsabilidade moral, porque não soube ou não quis formar bem os seus pastores, que deviam cuidar dos mais débeis; porque na formação deu prioridade à figura do clérigo, formando-o naquilo a que poderíamos chamar de “cultura da impunidade” que tão bem aprenderam os grandes especialistas do clericalismo, e que nos trouxe até a situação em que estamos, e na qual se lhes fez acreditar que seriam intocáveis por serem clérigos, por serem – por se julgarem – superiores.

Não. Não são. Não são intocáveis, e sim, são membros de uma instituição que os protegeu desde um espaço de poder corrompido. A única vez que Jesus mostra um traço de ira no evangelho é quando expulsa os vendedores do templo. Jesus não age contra uns comerciantes inocentes. Jesus age contra toda uma trama de poder corrompido que tinha no templo a sua sede central, e nos seus sacerdotes, os seus funcionários mais eficientes. Que diferença havia entre eles e nós? Não me cansarei de repetir que a luta contra os abusos começa nos seminários e nas casas de formação dos aspirantes à vida religiosa.

Em parte, vamos sabendo algo do que aconteceu com as crianças. No entanto, prestamos atenção a outras instituições da Igreja para as quais não olhamos? Em muitos países de outros continentes estão a pôr-se sobre a mesa as denuncias de religiosas abusadas de muitas formas, inclusive sexualmente, é claro. Quanto de tudo disto é devidamente processado no Vaticano? É um aspecto a ter em conta neste flagelo que não acaba.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

[O flagelo que não acaba – IV]

Rupnik e Anatrella: Um antes e um depois na realidade dos abusos?

Cristina Inogés Sanz | 12 Fev 2023

Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens

O último caso tarda em chegar. Também sei que será difícil que venhamos a ver o último caso. É mais um desejo, quase uma utopia, do que uma realidade que possa acontecer.

Ainda não saímos de um caso e já estamos a entrar noutro; se um é escandaloso, o seguinte não é menos. Assim, enquanto continuamos surpreendidos a assistir ao silêncio em torno do – ainda? – padre jesuíta Rupnik, um silêncio que fere as vítimas e as volta a re-vitimizar, chega outro caso também mediático e também envolto em silêncio, o caso [do padre francês Tony] Anatrella que, por sinal, continua a pertencer ao estado clerical.

Ambos os casos, por diferentes razões, são tremendamente mediáticos e, por isso mesmo, deveriam ter sido tratados mostrando a maior sensibilidade possível para com as vítimas.

Em vez disso, não estarão de algum modo a ser protegidos os infratores? Sobre Rupnik há um gotejar de novas vítimas. Sobre Anatrella não será difícil que apareçam. Em ambos os casos, as suas atividades, muito diferentes entre si, parecem ter sido os seus escudos e álibis. Todo o acto de agressão é repugnante em si mesmo e reprovável, não importa quem o cometa. Nestes dois casos, a perversão foi levada a extremos impensáveis.

Quem representava a beleza do evangelho em imagens, quem era considerado um mestre dos Exercícios Inacianos, e um mestre espiritual, Rupnik, revelou-se um jovem predador que começou a agir como tal um ano após ser ordenado, pondo em prática aquilo que devia aprender na sua bem abastecida videoteca de pornografia, não respeitando nada nem ninguém, a Trindade incluída, a fim de atingir o seu propósito de agredir sexualmente uma comunidade de freiras.

Quem era considerado um perito como psicoterapeuta, Anatrella, aproveitava-se dessa sua condição no consultório para abusar de quem precisava da sua ajuda profissional, para além de se manifestar sempre que podia, inclusive com livros onde apoiava e expandia as suas ideias, contra todas as pessoas LGBTI de forma rígida.

Em ambos os casos algo falhou no Dicastério para a Doutrina da Fé. Em ambos os casos há demasiadas perguntas sem respostas. Em ambos os casos, prevaleceu o agressor sobre as vítimas. Até hoje não sabemos onde estão estes dois agressores, nem que tratamento estão a seguir (porque é evidente que o necessitam), nem quem os acompanha espiritualmente. Alguém poderá dizer: mas e então o direito à presunção de inocência e o direito à intimidade? E a resposta poderia ser: e o direito das vítimas de saberem? E o seu direito a serem tratadas com respeito?

Poderíamos pensar que estes dois casos podem supor um antes e um depois na realidade dos abusos sexuais na Igreja? Poder, podíamos. Mas que isso vá mesmo acontecer ainda estamos para ver.

O silêncio “oficial” que envolveu e ainda envolve os dois casos já é uma declaração de intenções. Pouquíssimas vozes entoam o mea culpa; algumas sim, e claramente, o que torna ainda mais evidente o silêncio de muitas outras. Esse silêncio comporta um manifesto desprezo pelas vítimas, cujo clamor começa a ter as características de um salmo de lamentação.

Nada prenuncia que alguma mudança profunda esteja a ser delineada no Dicastério para a Doutrina da Fé (como eu gostaria de estar enganada!) exceto a mudança do presidente, já prevista e dentro da norma. E isto leva-me a fazer mais uma pergunta: que papel desempenham aqueles que trabalham nesse dicastério? Quem garante a independência e imparcialidade nas falhas que se detectam nalguns processos? Não quero criar dúvidas, mas a condição humana é isso mesmo: condição humana.

O choque que estes dois casos causaram colocam-nos perante a necessidade de fazer uma avaliação séria e urgente dos factos, dos comportamentos daqueles que têm acompanhado os processos desde as denúncias, de como se têm impelido ou abrandado os tempos, enfim, de como foram geridas duas pastas cujos nomes de referência eram Rupnik e Anatrella.

E tudo isso para pensarmos em algumas mudanças para o futuro. E futuro imediato porque não podemos esperar muito mais. Como cristãos, deveríamos viver em permanente estado de atenção às vítimas. O nosso compromisso deve ser coerente com o nosso ser cristão. E o ser cristão também deve levar-nos a estar atentos sobre como se age nos casos de agressões sexuais e de outros delitos. Não seria demais se pedíssemos periodicamente explicações e transparência. E, já agora, pedir aos nossos pastores o mesmo comportamento que eles exigem aos outros.

O nosso silêncio e a nossa falta de envolvimento não nos farão cúmplices do sofrimento das vítimas? Não nos tornarão como o levita e o sacerdote que passam ao lado e deixam o homem espancado sem o ajudar?

Já que a Igreja não reconhece a sua responsabilidade objetiva em toda esta realidade, pelo menos, que o nosso silêncio não contribua para isso.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

 

Teóloga do Sínodo católico fala ao 7M

Cristina Inogés Sanz: É preciso ser criativo para alargar o lugar da mulher na Igreja

António Marujo | 11 Fev 2023

Cristina Inogés Sanz: os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Foto © António Marujo/7Margens

“O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos” como foram os primeiros cristãos na adaptação que fizeram do credo, para serem ouvidos pelos gregos e romanos. A ideia é de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do sínodo da Igreja Católica, que está a decorrer até 2024. “E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real”, defende, nesta entrevista ao 7MARGENS.

De passagem por Portugal, Cristina Inogés Sanz, conhecida de quem lê este jornal também pelas crónicas da sua autoria que publicamos regularmente, participou como convidada, em Novembro, no Congresso sobre os seminários católicos, em Braga.

Formada na Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a revista espanhola Vida Nuevaalém de autora de vários livros, que inclui os recentes Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas, e La Sinfonía Femenina (Incompleta) de Thomas Merton, sobre a relação do monge místico do século XX com as mulheres.

Nesta entrevista, cuja segunda parte será publicada neste sábado, 11, Cristina Inogés defende que os leigos católicos não encontraram ainda o seu lugar na Igreja “porque não os deixam encontrar o seu lugar”. Os abusos sexuais, a relação de Merton com as mulheres e o futuro próximo do Papa Francisco e do Sínodo são os temas da segunda parte da conversa. Nesta primeira, a teóloga fala também da intervenção política dos cristãos, da questão LGBTI e do lugar das mulheres. E, sobre este último tema e apesar de gostar muito do Papa, diz que lhe diria algumas coisas, se tivesse oportunidade.

Assembleia continental europeia do Sinodo católico em Praga (República Checa), esta semana: “O laicado tomou consciência de que sabe pensar, tem voz para expressar o pensamento e o que diz é importante.” Foto © synod.va.

7MARGENS – Escrevia numa crónica sobre o Sínodo católico que estamos num momento em que as mudanças se podem tornar evidentes. Que mudanças?

CRISTINA INOGÉS SANZ – O laicado tomou consciência de que há um antes e um depois deste sínodo, seja ele mais lento ou mais rápido, tomou consciência de que sabe pensar, tem voz para expressar o pensamento e o que diz é importante.

Isso já é uma grande mudança e um grande avanço. A palavra única do laicado era “ámen”. Ao que vinha de cima, o laicado dizia “ámen”, era a sua única forma de expressão.

7M – Mesmo se falamos 60 anos depois do Concílio Vaticano II…

Sim, inclusive agora a sua palavra é “ámen”. É verdade que sobretudo a fase diocesana do Sínodo [da Igreja Católica] criou essa consciência de que sabemos pensar, sabemos expressar o pensamento e que o que dizemos é importante.

Estamos conscientes de que em Outubro de 2024 não teremos uma Igreja sinodal, isso é impossível. Mas já teremos um pouco a consciência de que isso se poderá alcançar e de que há um antes e um depois deste Sínodo, isso é uma grande evidência.

7M – Será essa a evidência destas mudanças?

De momento, sim. Quem tenha lido o documento da fase continental, verá que saltaram as mesmas questões em todo o mundo; questões que muitas vezes pensamos que são de índole cultural, de uma parte do mundo, porque temos uma forma de vida determinada; mas de facto destacaram-se em todo o mundo. Isso realmente é um primeiro indício de que o Espírito voa com liberdade e que essa liberdade se manifesta numa ampla base do povo de Deus. Se o povo de Deus somos todos, há uma base ampla que é o laicado e que descobriu que as coisas importantes que tem para dizer coincidem em todo o mundo. Ou seja, há uma forma de pensamento que necessita de mudar – sem se impor – e expressar-se dessa maneira.

7M – Falamos de questões como o papel dos leigos, o papel da mulher na Igreja…

O lugar da mulher…

7M – Registo a correcção. Falamos ainda das questões morais, da administração económica, das questões LGBT, dos abusos sexuais… A partir deste quadro, como olha para o momento presente da Igreja?

O meu olhar parte de uma Europa que viveu o que viveu, vive o que vive e agora está a pagar as consequências de uma forma de vida muito concreta. Mas o curioso é que as mesmas inquietudes vêm de todo o mundo, o que nos deve levar a pensar que para lá de uma visão europeia, ocidental, há, no interior das pessoas, uma reflexão que leva a ver que as coisas não são o que têm de ser.

Essas reflexões plasmaram-se em todos os pontos falados. É muito interessante que num lugar de África, como o Lesoto, tenha aparecido como um clamor, dentro da própria Igreja, [a pergunta]: o que fazemos com as pessoas LGBTI, que de repente se manifestaram enquanto tal na nossa comunidade e que não sabemos como acolhê-las? Isso mostra que há um grau de reflexão, que não há uma recusa frontal porque se reconhece que não se sabe como acolher essas pessoas; portanto, pede-se ajuda sobre o que fazer com essas pessoas, que não se quer que se vão embora e que não querem abandonar a comunidade.

Católicos LGBT conversam com participantes da assembleia europeia do Sínodo em Praga: “Há pessoas LGBTI na vida religiosa, na vida sacerdotal, entre os cardeais…” Foto: Direitos reservados.

7M – De que modo isso a surpreendeu?

Isto pode levar-nos a reflectir porque não fizemos, por exemplo na Europa, esta reflexão. Continuamos a colocar palas perante a realidade LGBTI, [não conseguindo] que [essas pessoas] tenham uma vida normal na Igreja, como qualquer outra. Parece que as questões LGBTI são apenas relativas aos leigos, mas há pessoas LGBTI na vida religiosa, na vida sacerdotal, entre os cardeais, terá havido entre os papas mesmo que não nos tenhamos sabido, e terá havido santos, que não sabemos que eram LGBTI. Mas é uma realidade que está aí.

Só a forma como no Lesoto se colocou a questão, sem qualquer recusa, desafia-nos a nós, que cremos que conquistámos tudo o que era conquistável como direito. Na verdade, sofremos um retrocesso, porque há muita homofobia, muito latente, sobretudo na Igreja. Alguém [que queira ser] padre porque se confessa homossexual, tem uma de duas hipóteses: se confessa, é mandado embora; se mente, vai viver toda a sua vida reprimido e com medo de que alguém descubra e o possa chantagear. Isso já não se deveria admitir hoje.

7M – Algum tema mais?…

Claro: há ainda a transparência em todas as questões económicas ou a realidade da mulher na Igreja – somos 80 por cento da Igreja neste momento, de uma Igreja que não nos aceita plenamente. Mesmo em culturas em que a submissão da mulher não se questiona por ser algo tão cultural que nem se põe em causa, também apareceu o tema.

Essa realidade está aí e há que afrontá-la, simplesmente. O facto de se terem equacionado estas questões a nível mundial abre uma possibilidade de que tal realidade exista e não se possa ocultar nem negar. Já é muito importante reconhecer e falar sobre isso.

7M – Em várias sínteses, referia-se a gestão económica, dizendo que os leigos têm mais vocação para a fazer. A partir do documento da fase continental ou de outras sínteses que conhece, como olhar para o lugar dos leigos: ele não existe, apesar da doutrina do Concílio Vaticano II?

O facto de os leigos não encontrarem o seu lugar é porque não os deixam encontrar o seu lugar. É uma evidência que o clero não se prepara para a realidade da gestão económica, para viver tudo o que implica a responsabilidade de gerir os bens da paróquia, porque nem tudo é viver dos sacramentos e com os sacramentos; se não se conta com os leigos e se em muitas paróquias, por exemplo, não há um conselho económico, isso é uma das formas mais primárias e evidentes de abuso de poder. Onde acontece não haver controlo, pode suceder tudo.

Mas deve considerar-se, além disso, que o laicado tem um sacerdócio baptismal com o qual há que contar. E disso não se fala. Estamos pensando que soluções podemos procurar porque há falta de vocações e, [quando] chega a semana do seminário ou coisas do género, parece que os leigos só servimos para dar dinheiro. Em vez de fazer novenas para pedir vocações, vamos fazer novenas para ver o que nos diz o Espírito com a falta de vocações.

7M – E que diz?…

Temos sempre a mentalidade de vir o Espírito resolver-nos o problema. Não: o Espírito está a dar-nos muitas pistas sobre o que se passa. Vamos ver o que podemos fazer com a falta de vocações, que nos está a dizer, porventura, que repensemos a estrutura eclesial – digo eclesial, não eclesiástica, é preciso dar a volta completa – no sentido do sacerdócio baptismal, que pode ser vivido pelo conjunto do laicado, homens e mulheres. Mas há que lhes dar o seu espaço, uma formação adequada – que não tem de ser uma formação igual à do clero, porque então geraríamos muitíssimos mais problemas – e, sobretudo, fazer entender que o compromisso de fé de um leigo não está ligado à agenda do pároco, nem tem de passar pela paróquia. Tem de passar pelo compromisso de fé no mundo.

Neste momento, há muitíssimos cristãos com um compromisso sólido com a questão social e com a questão política, que estão fazendo um grande trabalho fora da estrutura eclesial. Sempre pensámos que colaborar com a Igreja era ser catequista, dedicar tempo à paróquia. Não, é colaborar com o Evangelho, primeiro.

São Paulo: “As cartas de Paulo colocam-nos perante os problemas experimentados pelas comunidades, todos eles diferentes.”

7M – Mas tão pouco se debate, no interior da comunidade cristã, esse compromisso na política, nos sindicatos, nas associações…

Sim. Tenho alguns amigos – uns mais próximos, outros menos – num amplo espectro da política, não só na grande política de partidos, mas também em associações de vizinhos (que não deixam de ser política). É curioso que todos os que são crentes coincidem no mesmo: a Igreja anima muito a que nos comprometamos, que estejamos presentes. Mas quanto se dá esse passo e se entra na política, a comunidade desaparece. Porque não quer comprometer-se em apoiar, no caso de se passar algo. Que vínculo existe se não há apoio da comunidade?

7M – No Novo Testamento, São Paulo cita várias mulheres que deixara como líderes de comunidades. Devemos começar por ir às fontes, e à Bíblia em concreto, para buscar uma inspiração, para encontrar um lugar para as mulheres na Igreja?

As cartas de Paulo colocam-nos perante os problemas experimentados pelas comunidades, todos eles diferentes. Em Paulo há um paradoxo importante: ele refere claramente algumas mulheres que acolhiam nas suas casas, e que portanto eram líderes das comunidades que acolhiam. Mas ele apaga de cena uma personagem vital no Evangelho, à qual Jesus Cristo, real e directamente a ela, lhe concede o sacerdócio supremo, que é o anúncio da ressurreição: Maria Madalena.

Que ele nunca tinha ouvido falar de Maria Madalena é muito difícil de acreditar, porque deve ter sido um acontecimento tão importante que seria recordado durante muito tempo.

7M – Mas as fontes são importantes?…

As fontes bíblicas são apenas isso, uma fonte. O que tememos é, desde a fonte, situar hoje o cristianismo.

Estamos no século XXI, não somos os primeiros. Muitas realidades mudaram, mas nós temos medo. Agarramo-nos à religião, à norma, não à crença.

Deveríamos ser mais criativos porque a criatividade pastoral é um grande aliado. Porque é que temos duas versões do credo? Quando o cristianismo e a Igreja quiseram expandir-se, tiveram de passar pela Grécia e Roma e não negaram o que veio antes, mas adaptaram uma versão para que gregos e romanos a pudessem compreender. E o credo “longo” apareceu. Tratava-se de uma questão de adaptação à realidade.

O lugar da mulher na Igreja, que é dado pelo baptismo, permite-nos ser tão criativos como eles foram na adaptação do credo. E isso não irá destruir os fundamentos do cristianismo. Pelo contrário, permitirá que esteja mais presente no mundo real.

7M – Que síntese podemos então fazer, entre a inspiração bíblica e a actualidade sinodal?

A Igreja nasce laical e sinodal. A dimensão sinodal durou mais tempo, mas a laical perdeu-se muito cedo. E porque falo de “lugar”? Se falamos de “papel”, ele é outorgado sempre por alguém que crê poder ter poder sobre outrem, que se atribui esse poder. Neste caso, é o clero.

O lugar é dado pelo baptismo. Negar o lugar a uma pessoa baptizada é manipular a realidade da comunidade e privar a comunidade do amor, do contributo, da reflexão, ajuda, conselho dessa pessoa.

Através dos séculos e neste momento, as mulheres – apesar das diferenças que permanecem – já temos um estatuto bastante igual, mas na Igreja continuamos na Idade Média. E oxalá vivêssemos, as mulheres, na Idade Média, em que as mulheres eram muito mais livres na Igreja que neste momento, para poder trabalhar e colaborar nas tarefas de evangelização.

Maria Madalena imaginada pelo pintor italiano Rutilio Manetti em 1620: “Jesus concede-lhe real e directamente o sacerdócio supremo, que é o anúncio da ressurreição.

7M – Mas quando se fala deste tema, muitos dizem que essa é a tradição e que Jesus não teve mulheres como apóstolas. Como levar as pessoas a perceber, com o exemplo de Maria Madalena e das mulheres referidas por Paulo, que esse lugar vem desde o início e desde Jesus?

Há uma personagem, que é curioso como é “esquecida”: é a samaritana que se encontra com Jesus. Muitas vezes ficamos pelos maridos que ela tinha tido, isso é o que convém. Na segunda parte do encontro, Jesus diz-lhe para ir e contar [o que ouviu] à sua aldeia. Ela podia ter chegado ao seu povo e ter contado, fazendo-se ela o centro. Mas não, ela conta às pessoas o que Jesus lhe disse, retira-se do centro, dizendo aos outros: ide e vede, ide e falai com ele. Não é preciso que ela acompanhe permanentemente a Jesus, porque ele confia-lhe um ministério, que é o de ir contar [o que ouviu]. Ela afasta-se, não é o centro.

A Igreja, como se converteu em meta e perdeu a sua condição de caminho – que é o que sempre devia ser e que devia recuperar – manipula a história.

Deus criou-nos homem e mulher. No Evangelho de João está claríssimo que o Verbo se fez carne e que na carne de Jesus está assumida toda a carne humana, de todas as condições – homem, mulher, LGBTI, raças, tudo… Se não assumimos isso, não assumiremos nada e haverá sempre diferenças. Se cremos que Jesus, porque era homem, só escolhia homens – que ainda por cima não ordenou nenhum – e que os doze são a base do que vão a ser os seus continuadores e que só podem ser homens, aquela afirmação não é verdadeira.

7M – Estudou as beguinas medievais. Esse exemplo pode ser uma inspiração?

Estamos a viver um momento muito parecido não apenas com o das beguinas, mas de todos os movimentos depois chamados de pré-reformadores, que vão desde finais do século XII ao início do século XVI. Eles vão fazendo tentativa e erro: a Igreja persegue-os mas os que nascem a seguir tomam o que fizeram os anteriores e acrescentam novas questões básicas, como a aceitação das mulheres, a participação do laicado na celebração e na evangelização, com homens e mulheres em plano igual e, sobretudo, recuperar a centralidade da Palavra. Isto, que era próprio de todos os movimentos medievais, será recuperado por Lutero, que “inventa” poucas coisas na Reforma, se quisermos ser um pouco desapaixonados.

7M – E para hoje?…

Estes movimentos – e as beguinas em concreto – são muito válidos hoje, inclusive para a vida religiosa, que está buscando novas formas e novas maneiras de estar na sociedade. Sobretudo algumas mulheres que mostraram, naquela época, que não precisavam de depender de um homem – e não estamos a falar de um qualquer feminismo, estamos a falar de mulheres que se podiam manter, que demonstraram que evangelizavam sem mover-se no mundo eclesiástico, que tinham uma sólida preparação (e mesmo as que não a tinham, não eram rejeitadas, todas tinham o seu lugar dentro do movimento).

Essas mulheres têm de nos ensinar a profundidade da relação com Deus e – para lá de serem as mães de várias línguas europeias nascentes naquela época, assim consideradas pela ONU – são as predecessoras do que hoje conhecemos como pastoral da saúde, pastoral penitenciária, pastoral de educação. Geravam, à sua volta, espaços de acolhimento, de acompanhamento, de cuidado, de cura e eram muito aceites nas cidades. [Elas protagonizavam] movimentos urbanos, não eram como os monges e as monjas que se afastavam, estavam no centro das cidades, faziam um grande serviço à sociedade…

Cristina Inogés Sanz: “Se tivesse oportunidade diria ao Papa que  uma coisa são os lugares de responsabilidade, mas o governo da Igreja continua nas mãos dos cardeais… Foto © António Marujo/7Margens

7M – E aos mais frágeis…

E aos mais frágeis, sempre. E tudo isso era valorizado. Essas mulheres podem ajudar-nos muito e se saíssem das típicas notas de rodapé dos manuais de história da Igreja onde normalmente se fala de um movimento ético feminino medieval, ajudaria a recuperar também um pouco de objectividade na história.

7M – Como leu a declaração recente do Papa sobre as mulheres, tendo em conta que, antes, ele dissera que era preciso encontrar um lugar para as mulheres, incluindo nos lugares de responsabilidade na Igreja?

Ele também já tinha dito que a questão da ordenação de mulheres está encerrada e isso não é verdade: por muito que seja magistério de João Paulo II, há muitíssimos exemplos na história em que um Papa disse coisas que depois outros desdisseram. Quando a questão se abrir – porque assim acontecerá –abrir-se-á tarde, mal e por necessidade, porque não somos capazes de ir valorizando e ir formando opinião.

Por outro lado, sublinhe-se o facto de [o Papa] ter criado uma segunda comissão para o estudo do diaconato feminino. O cristianismo de hoje não tem nada a ver com a Igreja e o cristianismo do primeiro século. Não temos de [fazer igual às] mulheres que viviam o diaconato no princípio do cristianismo, temos de ver como o vamos viver hoje. Vejamos o exemplo das mulheres da Amazónia e de muitas outras zonas, onde as mulheres realmente são diáconos “sem papéis”: exercem como tal, mas canonicamente não o são, porque não têm a nomeação canónica.

7M – O Papa pode mudar alguma coisa nesta matéria?

Eu quero muito ao Papa Francisco, gosto muito dos movimentos que ele faz para colocar o Evangelho no centro e para fazer certas mudanças. Mas também é certo que em algumas questões gosta muito de criar uma certa expectativa que depois não se cumpre. Por exemplo: nomeou mulheres para certas áreas importantes no Vaticano, como os Museus Vaticanos, que são dos mais importantes do mundo. No circuito dos grandes museus, causou assombro que tenha sido nomeada uma mulher, quando nunca houve nenhuma directora do Prado ou outros museus.

Isto é assim, mas também é verdade que lugares como esse são administrativos, não têm a força de um lugar deliberativo. Na hora da verdade, continua-se a não contar com a participação das mulheres. Eu gosto muito do Papa, mas se tivesse oportunidade dir-lhe-ia: uma coisa são os lugares de responsabilidade, mas o governo da Igreja continua nas mãos dos cardeais…

As crónicas de Cristina Inogés Sanz no 7M: Um olhar de teóloga

Cristina Inogés Sanz | 5 Fev 2022

Olhar de teóloga

O 7MARGENS inicia, com esta crónica, um espaço de colaboração regular de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Teóloga pela Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a Vida Nueva, além de autora de vários livros, entre os quais o recente Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas.

As crónicas que o 7MARGENS publicará são as da Vida Nueva, que aceitou esta colaboração. À autora e ao director da revista, José Beltrán, agradecemos a deferência.

Escutar e fazer-se escutar

O verbo escutar parece ter despertado após uma intensa letargia durante a qual foi muito facilmente confundido com o verbo ouvir. Não têm nada a ver um com o outro.

Francisco ofereceu-nos um belíssimo texto para o Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulado Escutar com os ouvidos do coração.

Escrito nesse estilo tão próximo e pessoal deste Papa e não lhe faltando profundidade, convida-nos a uma escuta que vai muito além do facto de recebermos palavras no nosso pavilhão auditivo, para irmos mais fundo naquilo que escutamos e, sobretudo, à profundidade daquele que nos fala, confiando, e sem violentar a sua intimidade.

Francisco diz no texto que também na Igreja há uma grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. Tem toda a razão e, embora haja muitas pessoas dispostas a fazê-lo e com boa preparação para o fazer (porque a escuta também precisa de preparação), por vezes dá a impressão de que mais do que Igreja somos somente instituição, o que não é a mesma coisa. Na Igreja, a escuta tem de seguir o ritmo da compaixão, que é uma mistura sólida, nas proporções adequadas, de empatia e compreensão para com aqueles que sofrem e padecem, e que nos permite chegar a sentir o que essa pessoa sente.

A preparação para a escuta não é um assunto trivial e requer o treino do ouvido, do coração, dos gestos do corpo e do olhar, porque tudo faz parte do conjunto de elementos necessários para que a pessoa que está a falar se sinta escutada. Não é aceitável, mesmo que se esteja a prestar toda a atenção, que quem escuta esteja a olhar para o tecto, ou para o infinito, ou tenha os braços cruzados, enquanto a outra pessoa desafoga o seu coração. Muito menos que esteja à procura de uma citação bíblica adequada para a ocasião. O contacto visual na escuta é de importância vital.

Coincidindo – sem que fosse essa a intenção – com a publicação da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, surgiu a notícia da iniciativa “#OutinChurch. Por uma Igreja sem medo”, na qual 125 pessoas pertencentes à Igreja Católica Alemã, decidiram manifestar publicamente a sua orientação sexual.

Entre eles há professores de religião, sacerdotes, funcionários de diversas entidades diocesanas… Alguns poderão dizer que está na moda sair do armário; contudo, este gesto é extremamente corajoso porque, na Igreja Católica, sair do armário ainda é um gesto que é visto mais como um desafio do que como uma profecia.

Em muitas ocasiões, um gesto como o realizado por estes católicos alemães é a única maneira de fazer-se escutar, de dizer à Igreja que estão aí, que existem.

É certo, e deve ser reconhecido, que algumas vozes dentro da Igreja já compreendem que devem ser adoptadas medidas que incluam, para não continuar a excluir por sistema. Assim, podemos ler as declarações do cardeal Hollerich em La Croix (20-1-22), onde abertamente e, para além de outros assuntos interessantíssimos, diz: “Seria bom que os padres homossexuais, que são muitos, falassem com o seu bispo sem que este os condene”.

A Igreja não é um clube. Um clube tem certas normas. Se as aceitas tudo corre bem, se não as aceitas já sabes onde fica a porta de saída. Sim, a Igreja também tem as suas normas; no entanto, essas normas contidas no Código de Direito Canónico devem ser lidas à luz do Evangelho, que é ou deveria ser a nossa máxima lei. É verdade que o Código de Direito Canónico reflecte e legisla a teologia do momento, e por isso, precisamente por isso, algo tem que ser feito para que não haja tanto contraste.

Há um texto no Evangelho de João que diz: “Também tenho outras ovelhas que não pertencem a este rebanho; também essas devo conduzir: Escutarão a minha voz e haverá um só rebanho sob um só Pastor” (10,16). É um texto maravilhoso que mostra uma força regeneradora, da qual está muito necessitada a nova evangelização. Não esqueçamos que o contexto destas palavras é onde Jesus ensina que Ele é o Bom Pastor. Está a mostrar aos discípulos (tenhamos presente que no evangelho de João só há discípulos, não há apóstolos e discípulos) como deve ser o pastor. Está a dizer-lhes como devem ser como pastores.

A mensagem de Francisco termina dizendo que na acção pastoral, a obra mais importante é o “apostolado do ouvido”. E acrescenta no penúltimo parágrafo: Começou há pouco um processo sinodal. Oremos para que seja uma grande oportunidade de escuta recíproca. A comunhão não é o resultado de estratégias e programas, antes se edifica na escuta recíproca entre irmãos e irmãs. Como num coro, a unidade não requer uniformidade, monotonia, mas sim pluralidade e variedade de vozes, polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes e em relação à harmonia do conjunto. Esta harmonia foi idealizada pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e de cada uma das vozes.

Ámen.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

[O flagelo que não acaba – iii]

Nem tudo é abuso sexual (há mais)

Cristina Inogés Sanz | 9 Jan 2023

Ilustração original de © Catarina Soares Barbosa para o 7Margens.

O abuso de poder, temo-lo repetido e continuaremos a insistir nisso, é a origem de todas as outras formas de abuso na Igreja. O abuso de poder é a principal fonte da maldade moral e da corrupção moral. É o uso pervertido e ilegítimo do poder para fazer dano a alguém.

O escritor Oscar Wilde dizia que na vida tudo tinha a ver com o sexo, menos o sexo que tem a ver com o poder. E está certo. A maioria dos escândalos dos últimos tempos, sejam de que tipo forem e aconteçam na instituição que acontecerem, estão capturados em imagens e gravações onde os seus protagonistas foram apanhados em deslizes, festas e até orgias sexuais muito difíceis de explicar. Se a informação é poder – e é evidente que é –, a informação temperada com sexo é o poder do poder.

Quando comecei a escrever este artigo, tornaram-se públicos os abusos cometidos por Marko Rupnik, um sacerdote jesuíta conhecido pelos seus impressionantes murais de mosaico que ornamentam inúmeras igrejas e até capelas do próprio Vaticano. É o penúltimo – o último está sempre por chegar – escândalo de abuso sexual na Igreja e, além disso, com dupla acusação. O abuso sexual e espiritual, em si mesmo, das religiosas de uma comunidade de Liubliana (Eslovénia) e o escândalo de ver como mais uma vez o abusador fica impune porque o crime prescreveu, segundo informou o Dicastério para a Doutrina da Fé, manifesta o que fica por fazer e corrigir na luta contra os abusos. Além disso, soubemos mais tarde que tinha sido excomungado pelo crime de ter obrigado uma das suas vítimas a confessar-se com ele e a dar-lhe a absolvição, também temperada com sexo e que, ao ter manifestado arrependimento e ter pedido perdão, lhe tinha sido levantada a excomunhão apenas um mês depois.

Chama a atenção que outros clérigos por delitos semelhantes já tenham sido afastados do “estado clerical”… Estaremos a assistir ao aparecimento de abusadores VIP?

Os abusos sexuais – de crianças, jovens e adultos – são do mais execrável que existe; porém, não são os únicos que se cometem, nem os únicos que merecem essa qualificação. Todos eles descrevem uma instituição mais preocupada consigo própria do que com as vítimas; mais empenhada em salvaguardar os seus muros do que em cuidar das pedras vivas que a compõem; e, finalmente, uma instituição onde a própria estrutura faz parte do problema.

Vou enumerar alguns desses abusos não sexuais porque citá-los a todos tornaria este artigo interminável; contudo, haverá no final uma ideia de conjunto, que creio ser acertada.

É um abuso de poder do pároco, sob a forma de ausência, quando nas paróquias não existe um Conselho Pastoral, nem um Conselho Económico; e é também um abuso de poder que, mesmo existindo, esses sirvam apenas para dar o seu consentimento às propostas do pároco, sem nenhuma possibilidade de sugerir ideias diferentes ou de manifestar que não se está de acordo com a proposta dele. O mesmo ocorre nas dioceses quando os seus conselhos – episcopais, presbiterais, económicos e pastorais – apenas servem para assentir as propostas do bispo.

Quando ele, o bispo, salta todos os passos consultivos nas nomeações paroquiais e vai impondo nos cargos mais relevantes da diocese pessoas com uma única linha de pensamento, sem possibilidade de tornar visível uma diversidade que dê forma à complementaridade e à riqueza de diferentes visões, está a incorrer em abuso de poder.

É claramente um abuso de poder que o bispo ou o pároco se recusem a falar com algumas pessoas, pela simples razão de não quererem falar com elas por suspeitarem ou saberem que não são da sua linha de pensamento pastoral.

Neste tempo sinodal, é um abuso de poder por parte dos párocos e bispos – o que evidencia tanto o seu desconhecimento da sinodalidade quanto o seu desprezo por ela – o ter criado obstáculos à fase diocesana do Sínodo sobre a sinodalidade, 2021-2024, e continuarem a colocar barreiras às fases sucessivas onde se requer a participação laical. O abuso de poder, e continuando com o tema sinodal, também se dá na manipulação das sínteses diocesanas e na implementação nula do que aí foi recolhido para, pouco a pouco, ir mudando a forma de actuação nas dioceses. Na fase continental que agora estamos a viver, é um abuso de poder muito claro que em algumas, para não dizer em bastantes dioceses, a parte em que os leigos podem e devem intervir seja redigida pelos bispos e, em alguns casos, pelos seus conselhos episcopais.

E é um abuso de poder, tanto por parte dos párocos como dos bispos, não fomentar uma sólida formação dos leigos que os torne capazes de pensar por si mesmos e continuar a mantê-los submetidos à única formação do Catecismo da Igreja Católica, que só permite dizer sim ao que ali se apresenta, sem dar a menor possibilidade de formar critérios próprios.

As congregações religiosas não escapam ao abuso de poder já que, pelo menos algumas, passaram a reproduzir, de modo quase milimétrico, as formas de clericalismo dentro delas. E o clericalismo é a maneira óbvia de abuso de poder. Agora, quando está a acontecer uma saída em grande escala de muitos dos seus membros, ninguém se lembra de pensar na estreita relação que existe entre essas saídas e o abuso de poder? Não ver isto é simplesmente não querer ver.

Há também aquelas formas de abuso de poder tão assumidas e nunca questionadas que praticamente acontecem como algo natural, e onde a expressão “porque sempre foi assim” ganha toda a sua força. Estas formas acontecem, sobretudo, por parte do clero em relação às mulheres, que uma boa parte dos sacerdotes considera como mão de obra barata para paróquias onde apenas são o que as deixam ser: empregadas de limpeza, assistentes pessoais (vai ali e compra-me, vai lá e leva isto da minha parte…) e subalternas litúrgicas. No Vaticano ainda ocorre a cruel realidade de que muitas religiosas, que em princípio vão a Roma para estudar, acabam sendo criadas (sem remuneração nem benefícios) de alguns cardeais.

O abuso de poder na vida religiosa – seja apostólica ou contemplativa – é uma realidade que aos poucos vem à tona. Dentro deste tipo de abuso, destaca-se o abuso de consciência que ocorre na vida contemplativa – tanto feminina como masculina – onde as pessoas abusadas chegam a acreditar que estão a agir livremente. Chega a este ponto a forma de manipulação.

Tanto assim é que, quando estas vítimas se apercebem e reagem (e ainda bem que o podem fazer), o normal é deixar a vida religiosa. Depois, diante da realidade de se verem abandonadas, literalmente abandonadas, junta-se o sentimento de fracasso e desorientação, a baixa autoestima e um sentimento de culpabilidade sempre presente. Quando conseguem ir ganhando distância e com ajuda psicológica na maioria das vezes, reconhecem que tudo aquilo que sentiram ao deixar a vida religiosa foram sentimentos perfeitamente implantados e nutridos por aqueles que deveriam ter sido os seus guias espirituais, que semearam – sem que a vítima se apercebesse até chegar o momento – dúvidas sobre a retidão dos seus pensamentos, decisões e ações. E se a vítima não se via capaz de abandonar a vida religiosa, caía cada vez mais numa dependência patológica do seu abusador, em quem procurava incessantemente refúgio.

O abuso de consciência vai condicionando as respostas que as pessoas dão a si próprias em determinadas circunstâncias, acreditando que agem livremente. Acaba por ser uma reeducação da sua capacidade de resposta que as irá manter submissas à vontade do seu abusador (sem que haja ideia de abuso sexual posterior), simplesmente para satisfazer a necessidade de domínio de quem abusa dela.

O abuso espiritual define-se facilmente lendo as declarações de uma das vítimas de Rupnik. Neste tipo de abuso, fica claro que o abusador não conhece nenhum limite para subjugar a sua vítima. Neste abuso, há mesmo a intenção de ir para o abuso sexual e, para isso, é capaz de usar e distorcer até os princípios teológicos mais sagrados.

E, por último, há um tipo de abusos do qual pouco se fala, mas que não são menos importantes. São os abusos laborais dentro da Igreja. O curioso destes abusos é que se movem dentro da legalidade, mas à beira da questão: o legal é sempre moral?

Este tipo de abuso passa por questões que contrariam a Doutrina Social da Igreja (até a lei é violada como tal) e, no entanto, ninguém parece dar-se conta disso. Os trabalhadores encontram-se, mais frequentemente do que pensamos, sem qualquer possibilidade de reacção porque à “empresa” custa-lhe menos despedi-los, ainda que seja sem justa causa e pagar a correspondente indemnização, do que satisfazer reivindicações laborais mais justas e equitativas. Curiosamente, neste tipo de abuso, considera-se que o trabalhador deve estar grato à Igreja por permitir que ele trabalhe para ela, mesmo que não se respeitem muitos direitos laborais.

Todo o abuso nasce do abuso de poder, fruto de um clericalismo que, embora não gostemos, ainda está muito presente na Igreja. Denunciar todas as formas de abuso é a única maneira de poder limpar o flagelo que não acaba.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

 

[O flagelo que não acaba] (ii)

Algumas características do perfil dos abusadores (e dos encobridores)

Cristina Inogés Sanz | 3 Dez 2022

“Os abusadores – de qualquer forma de abuso – são narcisistas por natureza. Esta é uma característica geral. Têm uma alta estima pela sua pessoa e pelas suas faculdades de todo o tipo, e consideram-se a si próprios com um tal grau de superioridade que os leva a verem-se como intocáveis e obviamente inquestionáveis, façam aquilo que fizerem. Muitos deles têm fama de santidade em vida.”  Ilustração original de © Catarina Barbosa

Alguns podem não gostar, provavelmente muitos, mas sim, há um perfil de abusadores na Igreja regido por um padrão de comportamento: abusar do poder que foi concedido a uma pessoa. É importante ter isto em consideração porque não estamos a falar apenas de abusos sexuais, mas de todo o tipo de abusos que irei comentar.

Precisamente por isso, deve ter-se em conta que na Igreja o poder não se ganha; pelo contrário, é concedido por quem tem mais poder. Isto já assinala uma forma de comportamento muito contrária ao evangelho, extremamente hierárquica (o poder vem de cima), e que implica uma forma de actuação muito específica, tanto por acção como por omissão, de quem aspira a determinados cargos. Ou seja, se quiser alcançar uma determinada posição, devo comportar-me como a pessoa acima de mim deseja que eu me comporte. É uma espécie de sistema de colaboração entre as partes.

Isto já ajuda a clarificar que o perfil geral dos abusadores não é o do típico doente que, em muitas ocasiões, nos tentaram fazer ver. Alguns abusadores pode ser que sejam doentes. A maioria não. E isto deve ser claro e dizer-se claramente.

Os abusadores – de qualquer forma de abuso – são narcisistas por natureza. Esta é uma característica geral. Têm uma alta estima pela sua pessoa e pelas suas faculdades de todo o tipo, e consideram-se a si próprios com um tal grau de superioridade que os leva a verem-se como intocáveis e obviamente inquestionáveis, façam aquilo que fizerem. Muitos deles têm fama de santidade em vida.

A partir daqui, vão-se acrescentando algumas características (enumerá-las a todas requer um livro de dimensões consideráveis e uma análise psicológica profunda que não estou em condições de fazer); enumero três muito específicas.

O abusador é agressivo, embora não de forma continuada, e muito menos pública. Costuma ter episódios em que explode contra quem estiver à sua frente de forma descontrolada. Podem ser gritos, formas muito duras de apontar comportamentos alheios, intransigência perante determinadas questões, e um rigorismo moral muito suspeito onde a misericórdia não existe nem é esperada.

Agir assim, mesmo que seja de vez em quando, proporciona-lhe uma sensação – apenas sensação – de um certo equilíbrio entre a tensão da dissimulação em que deve viver e como gostaria de manifestar-se.

Evidentemente, alguns dos abusadores não se contentam apenas com estas formas agressivas e chegam ao abuso sexual. Aqui, ter-se-ia de diferenciar entre o abuso de crianças, adolescentes e pessoas adultas vulneráveis, e o abuso de pessoas adultas sob certas condições, circunstâncias, promessas, projecção de uma relação inexistente, mas secreta, que implicaria que “eu que não posso nem devo fazer isto, escolhi-te a ti para o fazer porque és muito especial…” Eles sabem procurar muito bem as suas vítimas.

O abuso de crianças, adolescentes e pessoas vulneráveis traz claramente ao de cima uma perversão muito calculada, dada a assimetria da relação entre a vítima e o agressor e a evidência de querer satisfazer um impulso sexual.

O abusador é manipulador, começando por ele próprio; ao manipular a sua própria condição de celibato como algo que lhe serve para “ganhar pontos” perante as pessoas em geral (embora, vendo aquilo que vemos, o celibato já não impressiona a quase ninguém). Esta manipulação do eu, que é disso que se trata, utiliza-a para se impor e dominar alguém ou dominar uma situação. E faz isso sem o mínimo pudor.

A sua identidade, que vê somente pelo prisma do sacerdócio, deve-a impor através dessa visão de superioridade que lhe dá o ministério, e porque renunciou a tudo na vida para ser padre. No tudo, entende-se que renunciou, evidentemente, à vivência da sua própria sexualidade. Por isso necessita de ter relações sexuais dominantes e agressivas – que nada têm a ver com a sexualidade – como mecanismo de compensação.

E, claro, manipula, se for o caso, a quem lhe pede explicações sobre algumas formas de comportamento, porque está tão seguro da sua superioridade a todos os níveis que se permite exercê-la em todas as direcções.

O abusador é rígido e autoritário, o que o leva a agir desde um pedestal que o eleva (ou nisso acredita) sobre os outros, a quem não quer, nem ama, nem respeita, nem lhe importam. Esta característica é própria daqueles que estão desesperadamente necessitados de afecto e carinho, e não o reconhecem por medo de perder a sua condição de “puros” em qualquer sentido.

A sua intransigência com o próximo não tem nada a ver com a vida que eles levam. São tão extremamente rigoristas que não conseguem dissimular nem em público nem em privado a sua forma de agir. No entanto, isto não parece atrair a atenção de ninguém, embora causem estragos por onde passam e em si próprios.

Estas são algumas das características mais habituais nos abusadores, não as únicas. No entanto, parecem não ser importantes para os encobridores, quando se descobre algo sobre eles.

Os encobridores, na sua maioria bispos ou pessoas hierarquicamente superiores aos abusadores, têm estado sempre mais atentos ao medo do escândalo pelo bem da instituição, que das pessoas abusadas e dos próprios abusadores. A realidade dos abusos de todo o tipo têm-na vivido como episódios soltos, sem nenhum tipo de conexão entre eles e sobre os quais, à pressa, tinha que se deitar terra por cima, porque os encobridores suspeitavam, não sem razão, que as suas carreiras poderiam vir a ser afectadas.

Com o tempo e algumas investigações, apesar de todas as tentativas para impedir que os resultados se tornassem públicos, percebemos que não eram questões desligadas. Pelo contrário, na maioria das dioceses havia toda uma trama corporativamente montada na própria estrutura diocesana. Daí a corrupção da mesma.

Sirva de modelo o caso de Boston, onde desde a mais alta instância, representada pelo cardeal Bernard Law (é uma piada do destino que o seu apelido signifique lei) e aqueles que o seguiam em cargos de responsabilidade, sabiam da realidade dos abusos (havia denúncias), conheciam os abusadores (as denúncias tinham os seus nomes) e consentiram que continuassem em acção, espalhando o mal ao mudá-los de paróquia, demonstrado pelas sucessivas nomeações.

A perversão chegou a tal ponto que os padres que foram obrigados a mudar de paróquia devido aos seus abusos – neste caso, sexuais – chegavam a oferecer uma determinada medalha às crianças abusadas para que, quem viesse substituí-lo, soubesse quais as crianças de que podia abusar. Isto era institucionalmente conhecido, admitido e permitido.

Os encobridores, sejam quem sejam, nunca agiram por amor à Igreja nem, obviamente, às vítimas. Têm agido assim para se protegerem e porque nunca acreditaram que a verdade vos libertará (João 32). Também eles abusaram e abusam do poder que tinham e têm e, justamente por isso, são moralmente responsáveis pela situação.

Estamos a assistir, não atónitos, porque sabemos que há muito para trazer à luz, mas sim muito preocupados, com a situação que se está a viver na Igreja de França. O que lá está a acontecer pode passar-se em qualquer outro país porque, assim como uma após outra, todas as conferências episcopais cometeram os mesmos erros, e foram acrescentando outros na hora de fazer frente à crise dos abusos, temo que continuem a cometer os mesmos erros a outros níveis e sempre dentro desta realidade.

A convocação do Sínodo da sinodalidade neste momento não foi algo casual. Ficou demonstrado que as dioceses e instituições eclesiásticas onde ocorrem mais casos de abusos de todos os tipos estão diretamente relacionadas com a falta de transparência no seu funcionamento. Daí o pouco entusiasmo que o Sínodo suscitou em algumas dioceses, embora não seja justo estabelecer uma relação direta entre o pouco entusiasmo sinodal, a falta de transparência e a presença de encobridores.

Um sinal de maturidade dos leigos – que foi demonstrado nas contribuições feitas na fase diocesana do Sínodo – seria, primeiramente, procurar a melhor informação e, caso seja possível, fora da instituição eclesial, sobre a realidade dos abusos. Porque todos temos responsabilidade na tremenda crise do abuso de poder na Igreja.

Neste momento já é mais do que evidente que a crise é real, não é uma invenção para atacar a Igreja; e que os seus protagonistas chegaram a ocupar altos cargos pastorais; contudo, a linha que separa o ser ou não cúmplices de permitir que a situação continue, é tremendamente fina. Basta não querer ver – nem sequer é necessário olhar com atenção – o que acontece e as provas que o demonstram. Não querer ver, negar a evidência, torna-nos a todos cúmplices da situação

Por isso, em segundo lugar e não menos importante, teria de haver um pedido de esclarecimentos, de mais transparência e de melhor e mais eficaz formação dos candidatos ao sacerdócio e na formação permanente do clero e dos bispos, da qual se sabe muito pouco. Porque a raiz de todo o abuso está aí. Na formação inicial, mas sobretudo, na inexistente formação permanente.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

  

Olhar de teóloga]

De pastoral para pastoral

Cristina Inogés Sanz | 12 Nov 2022

Quarta Assembleia Sinodal do Caminho Sinodal, em Frankfurt. Foto © Synodaler Weg/Maximilian von Lachner.

Estamos de parabéns! Terminou a fase diocesana do Sínodo, mas não o Sínodo em si, e começamos o caminho com tudo fresco na cabeça. Aquilo que dissemos nos grupos e que foi recolhido nas sínteses diocesanas e nacionais está disponível para refrescar a memória. A nossa voz soou clara, com conteúdo e força, e agora temos a grande oportunidade de iniciar o caminho vivendo as primeiras práticas sinodais.

O momento oportuno

Em muitas dioceses, vão começar a aplicar-se os planos pastorais que ficaram parados porque o Sínodo exigia toda a atenção, e que vinham “de cima”, segundo a rançosa explicação de “porque sempre se fez assim”. No entanto, estamos num momento em que as mudanças podem tornar-se evidentes. E se, em vez de aceitar um determinado Plano, elaborado por especialistas (cujos nomes raramente são conhecidos), o fizéssemos juntos? As mudanças têm de vir já “de baixo”. Vamos praticar um pouco?

Na hora de elaborar um plano pastoral entre todos, todos deveremos ter alguns pontos claros para poder realizá-lo. Alguns desses pontos seriam, por exemplo, conhecer a real situação da diocese, o que equivale a transparência em todas as áreas; não ter pressa em ter o plano acabado; estamos a começar a andar de maneira sinodal e vai demorar algum tempo; conhecer as diretrizes de governo do bispo é evidentemente mais do que necessário porque, caso contrário, daria a impressão de que o bispo age como um senhor feudal do seu território sem querer compartilhar nada com aqueles que caminham com ele; todos os contributos dos grupos sinodais deveriam ser recolhidos e tidos em conta, porque manifestam as preocupações concretas de quem vive na diocese (mesmo que não se declarem crentes) e assinalariam linhas essenciais no plano pastoral; na elaboração do mesmo deveriam participar sacerdotes – independentemente dos seus cargos pastorais – e leigos; e que fique claro que os grupos onde se trabalhe o plano pastoral não terão nada a ver com as formas de trabalho seguidas durante a fase diocesana do Sínodo.

Diante das resistências

Agora estaríamos a falar de desenhar formas concretas de pastoral para a diocese: realidade rural, urbana, universitária, paroquial, de reforma dos costumes. Algo novo, diferente, criativo, atraente… Afinal de contas, a pastoral já aponta para ir evoluindo da pastoral dos planos – que poucas vezes funcionaram porque são maioritariamente ideais e não planos avaliáveis – para uma pastoral de atitudes. Nós poderíamos ser os artífices dessa mudança necessária, aliás, urgente. Soa bem, não é verdade? Poder fazer isto entre todos.

A mudança é séria. Compreendo que há pessoas a quem lhes custa aceitar que algo de novo está a nascer. Não o notam? As resistências apenas projetam uma imagem patética de quem resiste – não abertamente, é claro – porque não vá ser que se perca um pingo de poder, sem ser conscientes que perder esse pingo nocivo de poder vale toneladas de autoridade moral.

Vamos lá! Ânimo! Nas dioceses onde não se proponha o trabalho conjunto do plano pastoral, digamos ao bispo que queremos fazê-lo. Estou certa de que, na sua maioria, se alegrarão ao ver a boa disposição, o interesse e o desejo de começar a ser sinodais de verdade.

A mudança veio para ficar. Recordemos que estamos em pleno processo espiritual – e é isso a sinodalidade – e se o processo é espiritual, até que ponto não se envolver ou tentar travá-lo não é ir contra o Espírito?

Sinodais ou rançosamente feudaisThat is the question…

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo da Igreja Católica. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

[O flagelo que não acaba (i)]

A origem distante e próxima dos abusos na Igreja

Cristina Inogés Sanz | 8 Nov 2022

Começo com este uma série de artigos sob o título genérico de “O flagelo que não acaba”, dedicados à realidade dos abusos na Igreja. Abusos sem especificações, porque acontecem de diferentes formas, e todos têm uma origem comum: o abuso de poder.

“A Igreja, que nasceu laica e sinodal, perdeu essas duas condições em momentos diferentes. A sua condição laical terminou muito depressa, quando a partir do final do primeiro século e durante os dois séculos seguintes, o laicado foi afastado de qualquer protagonismo ao sacralizarem-se as figuras do presbítero e do bispo. Gravura: Infância. Abusos. Série “Childhood Fracture” (V), de Allen Vandever. Reproduzido de Wikimedia Commons

Quando na vida vem à tona um escândalo, a reação imediata é procurar os culpados e tentar averiguar a sua origem. No caso que nos ocupa e que diz respeito aos abusos na Igreja, determinámos a procura da origem procurando as possíveis primeiras datas, das possíveis primeiras denúncias, das possíveis primeiras vítimas. Uma pesquisa complicada se começarmos a colocar a palavra “possível” tantas vezes.

Na realidade, a crise do abuso de poder começou há muito tempo, séculos atrás. E não estou a exagerar. A Igreja, que nasceu laica e sinodal, perdeu essas duas condições em momentos diferentes. A sua condição laical terminou muito depressa, quando a partir do final do primeiro século e durante os dois séculos seguintes, o laicado foi afastado de qualquer protagonismo ao sacralizarem-se as figuras do presbítero e do bispo.

A condição sinodal levou mais tempo para desaparecer. Foi na Baixa Idade Média, depois de estar presente durante mais de mil anos, quando a sinodalidade desapareceu esmagada por um clericalismo imposto a velocidade galopante e, aí, começou a tomar forma o flagelo que ainda hoje estamos a viver. Além disso, o clericalismo tem muitos companheiros de viagem. Na verdade, nenhum deles mais importante que o outro, pois todos ajudam a aprofundar o problema. A partir da instalação do clericalismo, apareceu o abuso de poder. Basta examinar o percurso da história da Igreja.

Os séculos foram passando e o clericalismo foi-se enquistando na Igreja. Uma das suas consequências foi a separação, até nos desconhecermos uns dos outros, os que formamos a Igreja. Uma espécie de cultura submersa apropriou-se do povo de Deus. Éramos, e em boa medida ainda somos, seres que vivem em compartimentos estanques.

Essa separação consentiu que ocorressem espaços de escuridão que ocultavam e propiciavam comportamentos aberrantes. As personalidades narcisistas triunfavam. Porque os abusadores correspondem a uma personalidade narcisista até ao extremo que, ainda por cima, se disfarça de santidade. Essa forma de comportamento por parte de um clero que ninguém controlava e que agia com prepotência foi ensinada, talvez até sem querer, de geração em geração em seminários sob a forma de impunidade.

Não fazia falta um manual, nem apontamentos nem bibliografia. O testemunho, também para o mal, era e é o melhor exemplo. Assim, de forma inconsciente, os seminaristas empaparam-se e aprenderam formas, comportamentos e astúcias que moldaram a personalidade de alguns deles à imagem e semelhança dos seus “deformadores”.

Assumiram durante anos e anos que, sendo sacerdotes, eram intocáveis e, portanto, impunes. Eram homens sagrados segundo uma concepção deformada do sagrado, manipulada até a náusea, sem ser conscientes de que o clericalismo é a perversão de uma vocação chamada a servir os mais fracos, pobres, necessitados, inocentes. No entanto, não se importaram com isso. Consideraram-se como uma casta e viveram como tal.

Chegou um momento em que era impossível continuar a tapar os escândalos. O que começava a ser um murmúrio dentro de muitos ambientes eclesiais, foi destapado com força no único lugar que as vítimas encontraram para serem ouvidas: os meios de comunicação. A partir daí começou a levantar-se o tapete – e como negar o evidente! Pois sim: fizeram-no, negaram (e negam) tudo e transformam-no num ataque à Igreja. Não a eles diretamente (clero e hierarquia), mas à Igreja, para criar um caos maior.

Também chegou a atitude clericalista para tentar evitar o inevitável. E começaram a ouvir-se explicações de membros do clero que diziam claramente que não tinham de justificar-se; que o mundo não os entendia; que tinham renunciado a muita coisa e, portanto, podiam dizer e fazer aquilo que quisessem; que eram os representantes de Cristo e da sua Igreja e, portanto, mereciam respeito; que os ataques dos meios de comunicação eram o sinal inequívoco de que seguiam o Crucificado e se abraçavam à sua cruz… Sem se aperceberem, ou talvez sim, que o Crucificado foi a Vítima por excelência.

E apareceram os bispos negando tudo, negando até os encobrimentos que se podiam demonstrar. Negando, negando, negando… E insistindo que tudo isto é uma mentira descarada e manipulação, porque os inimigos da Igreja há muito tempo que estão a tramar um ataque bem orquestrado contra ela, contra os cristãos. A culpa é sempre dos outros.

Quando chegará o momento de assumir a responsabilidade pelo sucedido? Para quando assumir a responsabilidade objetiva da instituição? Para quando não voltar a revitimizar as vítimas uma e outra vez?

Perante tal reação está o estupor de muitos membros da Igreja, inclusive parte do clero e, sobretudo, o sentimento de abandono das vítimas.

Veremos isso mais adiante.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.

Olhar de teóloga]

Alma de pobres (II)

Cristina Inogés Sanz | 19 Out 2022

Cena do Filme As Sandálias do Pescador entre o padre David Telemond (Oskar Werner) e Kiril Lakota (Anthony Quinn).

Continuo com a reflexão a partir de As Sandálias do Pescador, de Morris West. Fico agora com a figura de David Telemond, o sacerdote que Kiril escolhe como secretário, apesar da sua obra teológica estar a ser submetida a revisão. Por certo, Kiril não favorecerá David Telemond quando chegar a rejeição da sua obra por parte da então Congregação para a Doutrina da Fé.

Mais do que um questionamento da teologia que estudou, David Telemond mostra um espírito que não se conforma com aquilo que aprendeu e isso é muito diferente. Não é um rebelde que questiona por questionar ou que proponha por propor; pelo contrário, é um homem reflexivo que comparte o seu pensamento a partir das experiências vividas e da evolução do seu próprio estudo. Porque David Telemond é um sacerdote que continua a estudar.

A criação continua a acontecer

Enquanto andava imersa nestas reflexões, começaram a chegar as imagens do telescópio James Webb, com uma nitidez assombrosa, e tornando-nos participantes de algo que está a acontecer a uma distância do nosso planeta que somos incapazes de abarcar. Para além da maravilha das próprias imagens, elas estão a contar-nos não apenas como foi a criação, mas como a criação está sendo porque continua a acontecer.

Cada vez que via as numerosas imagens que se tornavam públicas e lia artigos de especialistas, mais pensava em Teilhard de Chardin e em David Telemond que tinha muito recente na minha memória. Dizem que a personagem do David foi baseada na pessoa do jesuíta. Em todo o caso, a semelhança é enorme.

 

Normas e dogmas

Ambos olharam muito mais além do que os censores da sua obra puderam alguma vez olhar. Certamente que esses censores agiram em consciência e de boa-fé; porém, ajustaram-se às normas e aos dogmas que surgiram em contextos totalmente diferentes dos que existiam naquele momento.

Quanto tem perdido a Igreja, quer dizer, todos nós, ao privar-nos das reflexões teológicas de pessoas que não tiveram medo de olhar muito mais além daquilo que podemos ver a olho nu? Sim, é verdade que existe um depósito de verdades reveladas, mas será que já não cabem mais? Está tudo dito? Entendo que a pergunta surpreenda.

 

Abertos a realidades

Neste caso, ter alma de pobres supõe estar aberto a realidades que há poucos anos nem imaginávamos. Aqui sim que é necessário recuperar essa humildade bíblica, por pura coerência, que deve levar a uma escuta atenta do que Deus nos quer dizer com o que estamos a descobrir no universo mais profundo. Deus deu-nos inteligência suficiente para chegar a essas descobertas e aceitar os desafios que elas nos apresentam.

Nós tomamos a humildade para assumir que, num planeta tão diminuto como a Terra, que nem sequer é a cabeça de um alfinete no cosmos, existam todos os elementos para que germine algo tão frágil como é a vida. Sim, somos menos que um pontinho no vasto universo, mas, sem dúvida nenhuma, um pontinho privilegiado e sublime.

 

Figuras necessárias

Voltando às imagens do telescópio James Webb, creio que figuras como Teilhard de Chardin e personagens como David Telemond são muito necessárias na Igreja para nos ajudarem a pensar. Certamente que o jesuíta já teria dito alguma coisa a esse respeito, como o fez Guy Consolmagno, diretor do Observatório Astronómico do Vaticano, que deixou claro que hoje em dia não tem sentido nenhum o confronto entre ciência e fé.

Demasiado habituados a que nos contem a Bíblia e não a lê-la, não costumamos prestar atenção ao relato da criação que aparece em Génesis 1, 1-31, que nos narra a evolução desejada por Deus na criação de forma lógica e que podemos confrontar com artigos científicos – e agora com muitíssima mais informação – que nos explicam a origem do cosmos, do universo, do homem.

 

Sem medo

Não seria interessante se retomássemos a Teologia da Criação, onde teologia e ciência ou ciência e teologia andassem de mãos dadas e se apresentassem como artífices conjuntos dessa reflexão? Nem por sombras está tudo dito e não há que ter medo de continuar a aprofundar a imanência de Deus. Se continuamos a crescer na compreensão científica, também deveríamos crescer na compreensão de Deus.

Quando alguém permanece naquilo que aprendeu e a evolução da vida insiste em nos apresentar novos desafios, ou se evolui também nos estudos ou acaba por apegar-se a uma religiosidade cada vez mais vazia de conteúdo e mais cheia de superstição. Começamos a nossa confissão de fé afirmando que cremos em Deus, Pai Todo-Poderoso, criador do céu e da terra. Deus e a criação vão de mãos dadas.

 

Sinfonia de vozes

Sim, confesso que sinto falta dos comentários que, partindo daquilo que estamos a ver do universo e da criação, fariam Teilhard de Chardin e David Telemond, e também sinto falta das reflexões – tenho a certeza que já teriam dito alguma coisa e estariam a trabalhar nisso – de Juan Luis Ruíz de la Peña e de Sofía Chipana, de Riane Eisler e de Françoise Gange, porque a criação fala-nos com uma sinfonia de vozes.

Cada descoberta leva-nos a fazer cada vez mais perguntas que nos convidam a continuar a refletir e a investigar. Continuamos à procura de muitas respostas no céu, só que agora temos que procurá-las olhando de outra maneira e sem medo porque, em muitas ocasiões, é preciso raspar muito a religião para chegar à fé.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin. O primeiro texto com este título pode ser lido nesta ligação.

Alma de pobres (I)

Cristina Inogés Sanz | 28 Set 2022

Paço Episcopal do Porto. “Fará algum sentido que um pastor viva num palácio, mesmo que a sua vida dentro dele seja mais austera do que a de um monge cartuxo?”. Foto © Paço Episcopal do Porto.

Reli neste Verão a novela – e voltei a ver o filme – As Sandálias do Pescador, de Morris West. Farei mais referência ao filme, porque muitas mais pessoas viram o filme e nem tantas leram o livro.

Continua a surpreender-me a actualidade do seu argumento e as semelhanças com o momento que estamos a viver no mundo: um protagonista ucraniano, Kiril; guerras em todo o mundo, com o especial protagonismo da China e da Rússia; fome de milhões de pessoas; incerteza no futuro imediato. Há também semelhanças na Igreja: o medo da mudança e a necessidade dela; um papa vindo do fim do mundo (de outro fim do mundo diferente do protagonista do filme); uma grande herança que não somos capazes de manter e, em alguns casos, a Igreja debatendo-se entre ter-conservar e ser.

 

Crentes e não-crentes

Muitas cenas questionam-me: A escolha que Kirill faz para secretário na pessoa de um sacerdote, David Telemond, que é questionado, e cuja obra teológica está a ser submetida a revisão; a necessidade de contacto humano, normal, que ele mostra ao querer falar com Gelasio, que cuida do seu apartamento pontifício; a sua decisão de ir ao encontro com o mandatário chinês, despojando-se das suas vestes papais, contra os seus cardeais; como ele lida com os ataques do cardeal Leone, tão parecido com o cardeal Ottaviani com João XXIII; mas, sobretudo, a cena que mais me questiona é a final, a cerimónia de coroação com a renúncia da tiara tripla e onde Kiril anuncia a alienação dos bens materiais da Igreja para aliviar a fome do povo chinês. É um gesto que todo o mundo entende, crentes e não-crentes.

Esta última cena, além de continuar a ter impacto em mim, fez-me pensar muito, porque pode ser que, com boas intenções, haja muitas pessoas que se perguntam se não se poderia vender o Vaticano, já que é visto como um sinal de ostentação. O Vaticano não se pode vender porque a história nos demonstra que é necessário que a Igreja tenha um território, por muito pequeno que seja, que salvaguarde a independência do Papa. Outra coisa é aprender a não repetir comportamentos principescos que aí ocorreram ao longo do tempo, e que alguns ainda hoje resistem a largar.

 

Dependências do Vaticano

Hoje em dia, quem for à Praça de São Pedro e queira observar – porque não se trata apenas de ver – poderá comprovar a quantidade de serviços de todo o tipo que foram criados em instalações do Vaticano para os necessitados, independentemente da sua origem ou credo.

Esta mesma preocupação de muitas pessoas em relação ao Vaticano pode ser trasladada para edifícios que nos são mais próximos, por exemplo as nossas catedrais. As nossas catedrais também não se podem vender porque o seu simbolismo – bem explicado – é tão necessário quanto importante, porque são (ou deveriam ser) a casa viva de todos, crentes e não-crentes, na diocese. Quando digo viva, refiro-me a que têm de ter uma projecção social que, precisamente, seja capaz de acolher a sua história e projectá-la na sociedade para além do seu uso para o culto, para que mostrem vida e não sejam apenas um museu.

As igrejas? Ao ritmo a que vamos e com o tempo, é quase certo que teremos de nos desprender de algumas, como já aconteceu em vários países do norte da Europa. Será doloroso, mas serão sempre mais importantes para a Igreja as pedras vivas, isto é, as pessoas, do que as pedras de um património inapropriável.

 

Obra social

No entanto, há de facto algo de que nos poderíamos desprender e que seria um gesto profético de primeira ordem. Nalguns casos, poderíamos desprender-nos literalmente. Noutros, poderíamos dedicar esses edifícios à obra social da Igreja de acordo com as necessidades de cada lugar e, já agora, comunicá-lo bem, com transparência e naturalidade. Refiro-me aos palácios episcopais.

Hoje em dia, na realidade desde há muito tempo, não têm nenhum sentido quando se tenta – mesmo que custe um pouco – que os bispos recuperem o seu perfil de pastores; pois fará algum sentido que um pastor viva num palácio, mesmo que a sua vida dentro dele seja mais austera do que a de um monge cartuxo? É muito complicado fazer com que as pessoas vejam isso, especialmente quando os palácios episcopais parecem arcanos sob sete chaves. O mesmo se poderia dizer de algumas residências de alguns bispos eméritos, mas isso será tema de outro artigo.

 

Sem alforge

Não se trata de demagogia barata, nem de uma reflexão de carácter populista. Trata-se simplesmente de coerência evangélica porque nós seguimos alguém que não tinha onde reclinar a cabeça, que pregamos ser pobre com os pobres, e que nos disse para não levarmos bolsa nem alforge nem calçado, porque não são necessários para evangelizar.

Algumas dioceses, obrigadas a fazer frente a dispendiosas indemnizações por motivos bem conhecidos, levaram os seus bispos a transferir as suas residências para lugares mais ajustados com o evangelho e a desprenderem-se dos palácios, entre outros elementos patrimoniais. Noutras, as situações económicas precárias que estão a atravessar tornam praticamente insustentável a manutenção desses edifícios. Os palácios episcopais são, dentro do rico património da Igreja, os elementos que mais chirriam hoje em dia.

 

Sinal profético

O sinal profético seria inquestionável – como a renúncia da tiara no filme, por parte de Kiril – e seria um gesto que nos ajudaria muito, a todos, a recuperar a alma de pobres que não devíamos ter perdido. Alma de pobres? Sim, porque não se trata somente de ser pobres no sentido bíblico de abertura e disponibilidade a Deus, mas de tocar, sentir a pobreza, de nos desprendermos de um bem que projecta muita sombra sobre a Boa Nova que queremos comunicar.

Compreendo que nem toda a gente irá partilhar esta ideia; contudo, estamos num tempo que nos pede aos gritos por sinais proféticos que nos ajudem a sair de uma inércia que nos sufoca. Mil palavras bem escolhidas podem valer tanto ou mais do que uma imagem; contudo, no mundo em que vivemos, as palavras perderam muito perante as imagens e os gestos adquirem um imenso valor. Podemos falar e falar, explicando que os palácios são fruto de outro tempo; todavia, renunciar a eles seria o testemunho profético da mudança de que tanto precisamos. E o testemunho arrasta.

Talvez fosse interessante começar a pensar nisso.

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

 

[Olhar de teóloga]

Um só rebanho com diversidade

Cristina Inogés Sanz | 21 Jul 2022

“Nunca escondi, nem esconderei, a minha relação com comunidades de diversidade sexual que acompanho na medida em que elas querem, onde tenho amigos com quem partilho a fé em Deus e num cristianismo inclusivo que leve a Igreja a sê-lo também.” Foto: Direitos reservados.

Diz João no seu Evangelho: “Eu sou o bom pastor: conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem-me, tal como o Pai me conhece e Eu conheço o Pai; e dou a minha vida pelas ovelhas. E tenho outras ovelhas que não são deste redil. É necessário que também a essas Eu conduza; ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só pastor.” (Jo 10:14-16)

Junho é o mês em que, tradicionalmente, vemos muitas manifestações de todos os tipos e onde a bandeira arco-íris voa amplamente desfraldada. É o mês em que se comemora o Dia do Orgulho.

 

Frustrações e tristezas

Nunca escondi, nem esconderei, a minha relação com comunidades de diversidade sexual que acompanho na medida em que elas querem, onde tenho amigos com quem partilho alegrias, sonhos, esperanças, frustrações, tristezas, e fé em Deus e num cristianismo inclusivo que leve a Igreja a sê-lo também.

Recentemente tornou-se público que o franciscano alemão Markus Fhurmann tinha sido eleito provincial depois de se ter declarado publicamente homossexual.

Ao ver a notícia, perguntei-me: quando se verá isto tão normal que deixe de ser notícia?

 

Diferenças admitidas

Na rua encontramos pessoas que são diferentes umas das outras porque somos todos diferentes. E há pessoas que, para além de todas as diferenças admitidas sem problemas, são sexualmente diferentes. Algo que é admitido na sociedade, algo que é admitido pela maioria da ampla base do povo de Deus que é o laicado e que, ainda hoje e oficialmente, uma parte da hierarquia olha com desdém e, claro, não aceita. É certo que alguns bispos já estão a dar alguns passos, o que é de saudar.

Também recentemente, os bispos de uma província eclesiástica [espanhola] emitiram um comunicado a propósito da aprovação da “Lei Trans” da comunidade a que pertencem. Sem entrar nem na lei nem na resposta dos bispos, pensei em como nos condiciona a todos ter apenas um único ponto de vista.

 

A polarização como regra

Fruto da época em que vivemos, marcada pelo imediatismo e que não permite a criação e muito menos o estabelecimento de correntes de pensamento, a polarização parece ser a única regra do jogo, tanto na sociedade como na Igreja.

Assim, os políticos tendem a ideologizar tudo o que lhes cai nas mãos e, na Igreja, responde-se com rigidez. Lendo a declaração dos bispos, interroguei-me sobre o ponto de vista a partir do qual estariam a reflectir, se teriam falado com cientistas sociais, se saberiam quem são Judith P. Butler e a sua teoria queer, e Paul-Michel Foucault e a sua história da sexualidade humana. Não estou a dizer que eles têm de concordar com os estudos e investigações destas duas pessoas, pergunto somente se as conhecerão e saberão quem são. Aparentemente não, não as conhecem.

 

Manuais de moral

A postura da Igreja oficial, em geral, diante da realidade das comunidades e pessoas de diversidade sexual, costuma começar e terminar nos manuais de moral sexual sem sequer espreitar o texto do Evangelho de João que abre esta reflexão. Não há texto mais inclusivo, mais acolhedor e mais claro no evangelho sobre o que deve ser o único rebanho. Como se isto não fosse suficiente, no Evangelho de João há outra questão muito importante: é que não há apóstolos, todos são discípulos, e este ensinamento de como deve ser o único pastor do único rebanho, é dirigido a todos aqueles que o possam acompanhar naquele momento.

As comunidades de diversidade sexual, neste momento e dentro da Igreja, são como a mulher encurvada do Evangelho de Lucas. Encurvámos essas pessoas com o peso de mil histórias somadas, mil desprezos, mil fardos vazios de conteúdo e, sobretudo, milhares de preconceitos a que não queremos nem sabemos como renunciar.

 

Ninguém excluído

Porque o facto de Jesus ter curado a mulher, endireitando-a, é o que sempre atrai e focaliza a reflexão; no entanto, o facto de ele a ter ajudado a pôr-se direita significou para a mulher poder olhar para Jesus cara a cara – e não esqueçamos que ele era e é Deus. Jesus, com esse gesto, lançou a poderosa mensagem de que ninguém estava excluído – a situação da mulher naquela época e a situação das pessoas de diversidade sexual hoje – da ternura e do olhar de Deus.

Também como Igreja deveremos viver o processo de nos endireitarmos com a ajuda de Deus para nos livrarmos das histórias, tradições, fardos e preconceitos com os quais temos sobrecarregado os outros. Se não o fizermos, como poderemos olhar para os nossos semelhantes – todos diferentes entre si e todos criados à imagem e semelhança de Deus – cara a cara?

 

Pequenos passos

Vão-se dando pequenos passos. Conheço bispos, sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos que acompanham com a mais absoluta naturalidade, ou seja, de forma igual, pessoas que provêm destas comunidades e comunidades inteiras. Essa é a atitude. A normalidade.

Agora falta ir reconhecendo que essa diversidade sexual não está apenas fora da Igreja, mas que está dentro dela desde… Há leigos, naturalmente, e também sacerdotes, religiosos e religiosas, monges, freiras e bispos. Nem todos sabem como enquadrar essa diferença, se devem ou não manifestá-la, dá-la a conhecer, como vivê-la.

 

A vocação

Definitivamente, vivem a sofrer muito por algo que não escolheram ser. Isso impede-os de desfrutar da vocação para a qual foram chamados porque ninguém pense que todos fogem do mundo e buscam na vida eclesial, religiosa, etc., um refúgio. Pode ser que alguns tenham decidido assim, mas não é fácil viver essa vida sem vocação. No entanto, há aqueles que têm uma autêntica vocação e entrega para tornar realidade o Reino de Deus; e assim sendo, o que os diferencia de tantos outros?

Dizia Yvan Audouard, jornalista e escritor francês: “Bem-aventurados os fragmentados, porque deixam passar a luz”. Sinceramente, prefiro que a luz multicolor que os nossos amigos das comunidades de diversidade sexual nos possam proporcionar, seja fruto da refração quando a luz atravessa gotas de água ou um prisma de vidro triangular. Porque, como dizia Eduardo Galeano, “o mundo muda se dois se olham e se reconhecem”.

P.S. – Mantemos a esperança de que algum dia se olhe de modo tão fino a moral social, como se faz agora, em algumas instâncias eclesiásticas, com a moral sexual?

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

  

[Olhar de teóloga]

O que Deus uniu…

Cristina Inogés Sanz | 7 Jul 2022

Rembrandt, O Regresso do Filho Pródigo.

O que Deus uniu… Como podemos permitir que esta frase seja usada quase exclusivamente no ritual do casamento? Deus nos une em tudo porque nos une na vida e para a vida. Estar unidos por e em Deus significa que temos uma origem comum que é o seu amor em criar-nos; significa também que temos um destino comum, que é o de acabar fundidos no Amor que nos criou por amor.

Entre a origem e o destino há um tempo intermédio em que tendemos a complicar as nossas vidas, porque ainda não apanhámos bem o jeito daquilo a que chamamos liberdade e andamos ora a acertar ora a enganarmo-nos; agimos bem e outras vezes mal; ouvimos conselhos ou fazemos ouvidos moucos…

Tudo isto que acontece na vida, também nos acontece na Igreja e na Igreja concreta, nessa pequena parcela em que cada um de nós contribui e dá e partilha com os outros, e que pode ser o nosso movimento, a nossa paróquia, a nossa confraria ou irmandade e, claro, a nossa diocese.

A diocese engloba tudo o que foi referido anteriormente e, por vezes, há circunstâncias na diocese que podem levar a um sério perigo de divisão, desunião e até de confronto.

O irmão mais velho rígido

Todos conhecemos a parábola do filho pródigo, do bom pai ou do rígido irmão mais velho, como cada um preferir chamar-lhe. Há três elementos nela – por vezes falei e escrevi sobre eles – que tendem a passar um pouco despercebidos. Estes elementos são a túnica, o anel e as sandálias.

O que o pai oferece ao filho mais novo não são meros ornamentos. São os elementos com os quais, no tempo e na cultura de Jesus, ficava demonstrado o perdão total face a uma situação que poderia romper, neste caso, a unidade familiar. E, por ventura, não somos nós na Igreja uma família?

Perdoado e herdeiro

Estes três elementos desta parábola assinalam que o filho que tinha delapidado a herança não só foi perdoado, como também se tornou herdeiro novamente porque, ter uma túnica (uma roupa decente para se cobrir) era sinal da bênção de Deus; o anel era o símbolo que o credenciava como membro da família a que pertencia; as sandálias eram o elemento que servia para fechar os pactos de compra e venda de terras e muitas outras trocas (Rute 4,7).

Assim, o filho que tinha delapidado a herança viu-se abençoado com a túnica, readmitido na família com o anel, e podendo exercer as funções de administrador – junto com o seu pai e o seu irmão – tendo sandálias para entregar como sinal de pacto.

Aprender

De um perdão assim e sem pensar, só Deus é capaz. O filho mais novo não tinha só delapidado a sua herança, pois essa herança não era só sua, fazia parte do património da família. O filho mais novo aprendeu. É de esperar que algum eco tenha chegado àqueles que o aconselharam ou ajudaram a agir desta maneira e também tenham entendido o perdão. 

Perdoar é difícil. Pedir perdão também. Em ambos os casos, é necessário um processo que leva o seu tempo. Perdoar não significa esquecer. É assumir o dano recebido e não o devolver. Pedir perdão significa reconhecer e assumir as consequências do mal causado.

Tempo de purificação

Se estes processos forem mal vivenciados, o risco de nos quebrarem é imenso; se os vivermos bem, pode ser um tempo de purificação, de limpeza das teias de aranha que nos enredam sutilmente, mas nos enredam tremendamente, perdendo de vista o objetivo principal que é tornar o evangelho de Jesus Cristo uma realidade entre todos.

Não é fácil e eu sei, no entanto, se não tentarmos com todas as nossas forças, e se nos deixarmos levar pelos primeiros sentimentos que algumas situações provocam em nós, que diferença haverá entre o rígido irmão mais velho, e nós? Não sabemos se ele foi ou não à festa que o seu pai tinha preparado para o seu irmão. É a grande incógnita da parábola.

Fortes na fragilidade

Situações como esta testam-nos a todos e, contudo, são também um momento de oportunidade excepcional. Por um lado, aprendemos como é fácil fraturar e dividir, e como é difícil recriar a comunhão. Por outro lado, é-nos apresentada a possibilidade de aprender a ouvir-nos uns aos outros, de confiar uns nos outros, de crescer como uma família, de nos unirmos para seguir em frente ou para partilhar o que a vida nos traz.

Deus criou-nos para a unidade que nos torna fortes mesmo na fragilidade. Deus criou-nos para a unidade que nos torna próximos, e atentos uns aos outros, e compreensivos, e sinceros, e irmãos!

Como disse na meditação de abertura do Sínodo em Outubro do ano passado, “esse mesmo Jesus que não nos deixou normas ou estruturas sobre como ser Igreja, deixou-nos um modo de vida com o qual construir aquela Igreja chamada a ser um porto seguro para todos; um lugar de encontro e de diálogo intercultural, um espaço de criatividade teológica e pastoral para afrontar os desafios que enfrentamos. Em suma, ser a Igreja – Lar que todos desejamos”. Que desafio apaixonante!

Essa forma de vida está no nosso ADN cristão porque Deus no-la deu na criação. Por isso, é melhor crescer em comunhão do que jogar mal com o que Deus uniu…

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

 

[Olhar de teóloga]

A Ressurreição e as abelhas

Cristina Inogés Sanz | 2 Mai 2022

Abelhas na sua colmeia. Foto © Boba Jaglicic | Unsplash

 Diz-se que no dia em que as abelhas se extinguirem, a vida deixará de existir porque, sem polinização, a vida vegetal não poderá subsistir e será desencadeado um processo de desaparecimento. Segundo os peritos, são insectos sociais hierarquicamente organizados que comunicam por meio de uma dança ritual.

Pequenas, originais, trabalhadoras e sempre a fazer o seu trabalho, fornecem-nos um dos alimentos mais completos que podemos desfrutar. A sua combinação de vitaminas, minerais e proteínas é literalmente uma fonte de vida.

No Haiti, um dos países mais pobres do mundo, há uma escola que escolheu as abelhas para um projecto tão importante que se chama assim, Projecto Abelha, no qual estes insectos, para além do mel, estão a demonstrar como podem ser multifacetados.

No projecto estão directamente envolvidos alunos a partir dos dezasseis anos, religiosas, professores, pais e, é claro, qualquer pessoa que queira dar uma mão. À frente da escola está a Companhia de Maria, e é preciso ouvir a sua responsável, Rose Marie, sempre a sorrir com aquela alegria que não nasce de nada humano, contar como surgiu o projecto, como já recolheram várias colheitas de mel e como, graças à conquista de um prémio, têm um laboratório que lhes permite seguir adiante com o mel e os seus derivados.

Com este projecto alcançam-se vários objectivos. Preparar alguns alunos para que possam viver da apicultura, unir toda a comunidade escolar num projecto comum (não é o único), angariar fundos para continuar com a escola, que já têm a ideia de ampliar, e polinizar o meio ambiente fortemente devastado por terramotos, tufões e todo o tipo de infortúnios.

Há que ter em conta que, sendo o Haiti um país que não tem nada, nenhum país se mostra interessado nem sequer numa visita de cortesia. Mas desde há algum tempo que a escola já é algo que o Haiti pode mostrar como sendo uma conquista, um modelo e uma possibilidade. Um verdadeiro triunfo destas freiras! Tal como o são o de milhares de religiosas, em qualquer parte do mundo, que dão as suas vidas para dar vida.

Aí está a Rose Marie e outras suas companheiras fazendo com que, cada dia, possa valer a pena continuar a lutar por essas crianças cuja única comida é a que recebem na escola, por esses jovens que têm uma oportunidade de seguir em frente, por essas famílias que, pela primeira vez, estão envolvidas em projectos que geram vida e comunidade.

Conta a Rose Marie – sem perder o sorriso – como, no final do dia, dão graças a Deus por terem ultrapassado os obstáculos habituais e aqueles que aparecem sem os procurar; dão graças para que o projecto siga adiante; e dão graças por poderem continuar a ajudar as crianças e jovens haitianos e as suas famílias. Alguém me sussurra, em voz baixa, que embora Rose Marie não o diga, também dão graças, em cada dia, por não terem sido assassinadas.

 

Ressurreição

Quando falamos de ressurreição, o nosso pensamento vai logo para a ressurreição final; no entanto, estas ressurreições quotidianas onde o Ressuscitado se faz presente custam-nos mais a ver. Quanto nos custa ver aquilo que é evidente! Nisto somos parecidos com as abelhas. Milhares delas passarão por este projecto e só verão o mel que produzem, nada mais…. E sem elas não haveria vida!

Quando se caminha num claustro medieval ou onde quer que haja colunas com capitéis decorados dessa época, descobre-se como a ressurreição se expressava com símbolos como o pavão, as pinhas, os ovos… Agora poderíamos acrescentar as abelhas porque, realmente, devem ser consideradas como um símbolo de ressurreição.

Há pessoas que nos dão a vida através do seu testemunho e do seu compromisso. Dão-nos a oportunidade de desfrutar da vida como ela deve ser, de amor dado. Mas, como diz Francisco quando se refere ao amor, dando-lhe o significado que tem em hebraico, que é “fazer o bem”. E muito bem é feito com este Projecto Abelha.

Desfrutemos da ressurreição de Cristo que, ao vencer a morte, nos ofereceu a Vida Eterna. E desfrutemos também das ressurreições quotidianas que nem sempre sabemos ver e que, no entanto, estão tão presentes nas nossas vidas. Feliz Páscoa!

 

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva  ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

 

[Olhar de teóloga]

O grande inquisidor

Cristina Inogés Sanz | 2 Abr 2022

lenda de ‘O Grande Inquisidor’, de F. Dostoievski, está inserida na sua grande obra Os Irmãos Karamazov, e é uma parábola que alude à fé e ao ateísmo, que sempre andaram de mãos dadas neste magnífico autor. O texto narra o aparecimento de Jesus Cristo no século XVI, em Sevilha. Jesus regressa ao seu povo após quinze séculos. Na noite anterior, tinham ardido na fogueira cerca de cem hereges por ordem do Inquisidor-mor. Jesus caminha por Sevilha, as pessoas reconhecem-no, aproximam-se dele, cura os doentes, e inclusivamente ressuscita uma menina no átrio da Catedral. Chega o Inquisidor-mor e somente com o levantar de um dedo, a multidão, que o teme, dispersa-se e faz prender Jesus. No interrogatório a que o submete, serve-se das tentações do Evangelho de São Mateus para questionar toda a mensagem de Jesus Cristo.

O Grande Inquisidor pretende instaurar a felicidade na terra e crê que o conseguirá apoderando-se das almas e consciências das pessoas. Hoje, chamaríamos a isto um abuso de poder, porque o Grande Inquisidor pretendia suplantar o Deus-homem, o Deus encarnado, por um homem-deus que era ele próprio.

O escritor russo antecipou os movimentos totalitários do século XX, infelizmente também presentes no século XXI, onde os seus líderes, para além de decidirem o destino dos subjugados, se veriam a si próprios como um instrumento do destino acima do bem e do mal.

 

Inquisidores de hoje

Naturalmente, que a visita de Jesus Cristo foi tomada como um desafio pelo Grande Inquisidor e seus colaboradores porque questionava a sua forma de vida, a sua interpretação retorcida do Evangelho, os seus abusos, as suas regalias, a sua religiosidade imperial, a sua falta de caridade, amor e entrega ao próximo…

Existirão hoje na nossa Igreja figuras parecidas ao Grande Inquisidor? Sim? Sejamos bons e não nomeemos ninguém! Na realidade não apontamos nomes porque aqueles que indicam o caminho para este comportamento, reivindicando como primeira tarefa para o próximo Papa o restabelecimento da “normalidade” são, para além de tudo o que é evidenciado pelo Grande Inquisidor, cobardes, e fazem-no anonimamente.

Também é verdade que não é muito difícil intuir quem são, o que estão a tramar e como devem sentir-se questionados pelo estilo de vida, a pastoral e o compromisso de Francisco com o povo de Deus – com todo o povo de Deus – para reagirem deste modo.

Para eles, quem não presta mais atenção à pompa, às vestes, aos acessórios (que também existem na Igreja) e ao culto do culto, não tem nada a fazer e é herético. Dizem, intuo que surpreendidos (e escrevo-o conscientemente no masculino), que a Igreja está secularizada, mas não vejo que façam uma mera análise sobre esse secularismo interno que tem a ver com a categorização das paróquias em paróquias de primeira e segunda classe, ou dioceses em dioceses de primeira e segunda classe, que, em ambos os casos, se assemelham a prémios que são atribuídos mais por terem sido “bons rapazes”, sem ter em consideração aqueles que vivem nessas paróquias ou nessas dioceses.

 

Una forma de vida

O que é para estes homens, normativos acima de tudo, o ser humano? O que é a misericórdia, o amor e a caridade? O que é a relação fraterna? A maioria deles, cheios de si mesmos, são incapazes de ver para além da realidade que querem ver. Sim, infelizmente, os príncipes da Igreja continuam a existir (também entre os leigos).

Se, como se costuma dizer, o segredo da vitalidade cristã e católica provem da fidelidade aos ensinamentos de Cristo e às práticas católicas e não provem da adaptação ao mundo nem do dinheiro, continuo a perguntar-me, que Evangelho lêem? Alguma edição especial desconhecida (felizmente) para o resto de nós?

Sempre às voltas com a fé e a moral. Como se a fé não pudesse ser vivida no quotidiano da vida e a moralidade apenas abrangesse a sexualidade, que obsessão! Nem uma palavra contra os principescos que vivem em palácios, penthouses ou mansões reabilitadas para os seus momentos da reforma e eméritos.

Não, isso não entra na moralidade. A moralidade é apenas para assinalar, empurrar para fora, e condenar aqueles que se manifestam sexualmente diferentes, e aqueles que vivem a fé de acordo com o evangelho, o evangelho! É uma verdadeira tristeza que só encontrem segurança na norma e percam a alegria e a liberdade do evangelho. Que personalidades tão pobres e doentes!

Devemos ter pena deles. Mas não devemos perdê-los de vista porque são mais perigosos do que um camião sem travões a descer uma encosta. Oxalá possam descobrir que ser cristão tem mais a ver com uma forma de vida do que com um compêndio de leis e normas proibitivas que asfixiam a única coisa importante, que é a Boa Nova!

O rigorismo nunca foi uma boa receita. O cristianismo é gratuidade, humildade e alegria. Ah, esquecia-me! Também é igualdade, que todos nós recebemos no baptismo. Vai custar-lhes admiti-lo e mais ainda que o entendam. Francisco chama-nos a tornar o Evangelho uma realidade. Não deveria ser esta a única “normalidade” na Igreja?

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

 

Olhar de teóloga]

Outros o farão por nós

Cristina Inogés Sanz | 13 Fev 2022

Assembleia plenária da Conferência Episcopal Espanhola, Março de 2020. O cardeal Juan José Omella, presidente da Conferência Episcopal Espanhola: “O resto de nós vai ter de lidar com a vergonha de ter de calar perante os muitos comentários que se ouvem sobre a Igreja e contra os quais não há defesa possível.” Foto © ReligiónDigital

Pode ser que ainda haja espaço de manobra. Ou não. O que eu creio é que a pouca credibilidade que nos restava foi por água abaixo. E não é porque não fosse previsível; não é porque não tivéssemos tido tempo de pôr as barbas de molho, vendo os nossos países vizinhos a fazerem aquilo que deveria ter sido feito muito antes; não é porque a situação não apontasse na direcção que, finalmente, tomou o assunto; não é porque muitos de nós não o tivéssemos pedido desde há algum tempo com verdadeiro espírito eclesial.

Aqui nada apanhou ninguém de surpresa, nem sequer a recusa da Conferência Episcopal Espanhola em investigar como tal os casos de abusos sexuais. Embora houvesse sempre a esperança que o fizésseis, mas não. Isso não aconteceu.

Agora outros o farão por nós e fá-lo-ão primando pelos seus próprios interesses, e não tanto pelo interesse das vítimas. Esses outros também não merecem muita credibilidade; contudo, para algumas das vítimas serão a referência de terem tentado ou conseguido fazer algo, aconteça o que acontecer no final. E, obviamente, venceram a batalha dos media.

 

A casa de todos

O resto de nós vai ter de lidar com a vergonha de ter de calar perante os muitos comentários que se ouvem sobre a Igreja e contra os quais não há defesa possível. No entanto, caros bispos, podeis ficar descansados, muitos de nós católicos continuaremos a inventar mil maneiras de defender a Igreja em que acreditamos e que consideramos ser a casa de todos.

Porém, seria interessante que começásseis a pensar em desculpas – porque em razões será impossível – com as quais se possa tentar explicar o abandono, a indiferença, a falta de credibilidade e, em suma, a situação em que nos deixais a todos. Creio que nos aproximamos muito da imagem do Evangelho de sermos ovelhas sem pastor.

O que ninguém queria – e quero acreditar que vocês bispos também não – já nos caiu em cima. A crise dos abusos sexuais, que já por si é um abismo moral e criminoso, está em vias de se tornar na crise que acabará em grande medida por nos vir a atropelar com outras. Isso sim, a vida, com uma dessas partidas que algumas vezes prega, dá-vos a possibilidade de começar a pensar em como gerir as crises dos abusos de consciência, espirituais e laborais. Porque estas denúncias também irão chegar e mais vale irem-se preparando.

 

Desde a transparência

Intuo, espero e desejo que nem todos vocês tenham cerrado fileiras em torno da recusa de investigar como Conferência Episcopal. Espero que neste, como em muitos outros temas, agora que temos de aprender a alcançar consensos, sejais capazes de o fazer e, mais importante ainda, que mostreis abertamente como o fizeste. Seria muito bom ir praticando a transparência porque aquilo que vós decidis, diz respeito a todos nós. E todos somos Igreja.

Apesar do que possais pensar, não estais sozinhos. Muitos de nós estamos dispostos a dar uma mão, ou as duas se for necessário, para tirar a Igreja deste pântano em que vós, e a verdade é que lamento dizê-lo, a metestes. E fá-lo-emos, se nos pedirdes, porque a nossa consciência de pertença à Igreja é muito forte e está acima de certas atitudes que vemos e acima de nos vermos a nós próprios mais ou menos apreciados e respeitados.

Pode ser que ainda haja espaço de manobra. Ou não. Depende de vós. Quereis a nossa ajuda?

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Este texto é publicado por cedência da autora e da revista espanhola Vida Nueva ao 7MARGENS. Tradução de Júlio Martin.

 

As crónicas de Cristina Inogés Sanz no 7M: Um olhar de teóloga

Cristina Inogés Sanz | 5 Fev 2022

Olhar de teóloga

O 7MARGENS inicia, com esta crónica, um espaço de colaboração regular de Cristina Inogés Sanz, teóloga espanhola que integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Teóloga pela Faculdade de Teologia Protestante de Madrid, Cristina Inogés colaborou já com a Faculdade de Teologia de Gotinga (Gottingen), Alemanha, e actualmente é colaboradora regular de várias publicações, entre as quais a Vida Nueva, além de autora de vários livros, entre os quais o recente Beguinas, Memoria Herida (“Beguinas, memória ferida”), sobre a experiência medieval comunitária e autónoma das beguinas.

As crónicas que o 7MARGENS publicará são as da Vida Nueva, que aceitou esta colaboração. À autora e ao director da revista, José Beltrán, agradecemos a deferência.

Escutar e fazer-se escutar

O verbo escutar parece ter despertado após uma intensa letargia durante a qual foi muito facilmente confundido com o verbo ouvir. Não têm nada a ver um com o outro.

Francisco ofereceu-nos um belíssimo texto para o Dia Mundial das Comunicações Sociais intitulado Escutar com os ouvidos do coração.

Escrito nesse estilo tão próximo e pessoal deste Papa e não lhe faltando profundidade, convida-nos a uma escuta que vai muito além do facto de recebermos palavras no nosso pavilhão auditivo, para irmos mais fundo naquilo que escutamos e, sobretudo, à profundidade daquele que nos fala, confiando, e sem violentar a sua intimidade.

Francisco diz no texto que também na Igreja há uma grande necessidade de escutar e de nos escutarmos. Tem toda a razão e, embora haja muitas pessoas dispostas a fazê-lo e com boa preparação para o fazer (porque a escuta também precisa de preparação), por vezes dá a impressão de que mais do que Igreja somos somente instituição, o que não é a mesma coisa. Na Igreja, a escuta tem de seguir o ritmo da compaixão, que é uma mistura sólida, nas proporções adequadas, de empatia e compreensão para com aqueles que sofrem e padecem, e que nos permite chegar a sentir o que essa pessoa sente.

A preparação para a escuta não é um assunto trivial e requer o treino do ouvido, do coração, dos gestos do corpo e do olhar, porque tudo faz parte do conjunto de elementos necessários para que a pessoa que está a falar se sinta escutada. Não é aceitável, mesmo que se esteja a prestar toda a atenção, que quem escuta esteja a olhar para o tecto, ou para o infinito, ou tenha os braços cruzados, enquanto a outra pessoa desafoga o seu coração. Muito menos que esteja à procura de uma citação bíblica adequada para a ocasião. O contacto visual na escuta é de importância vital.

Coincidindo – sem que fosse essa a intenção – com a publicação da mensagem para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, surgiu a notícia da iniciativa “#OutinChurch. Por uma Igreja sem medo”, na qual 125 pessoas pertencentes à Igreja Católica Alemã, decidiram manifestar publicamente a sua orientação sexual.

Entre eles há professores de religião, sacerdotes, funcionários de diversas entidades diocesanas… Alguns poderão dizer que está na moda sair do armário; contudo, este gesto é extremamente corajoso porque, na Igreja Católica, sair do armário ainda é um gesto que é visto mais como um desafio do que como uma profecia.

Em muitas ocasiões, um gesto como o realizado por estes católicos alemães é a única maneira de fazer-se escutar, de dizer à Igreja que estão aí, que existem.

É certo, e deve ser reconhecido, que algumas vozes dentro da Igreja já compreendem que devem ser adoptadas medidas que incluam, para não continuar a excluir por sistema. Assim, podemos ler as declarações do cardeal Hollerich em La Croix (20-1-22), onde abertamente e, para além de outros assuntos interessantíssimos, diz: “Seria bom que os padres homossexuais, que são muitos, falassem com o seu bispo sem que este os condene”.

A Igreja não é um clube. Um clube tem certas normas. Se as aceitas tudo corre bem, se não as aceitas já sabes onde fica a porta de saída. Sim, a Igreja também tem as suas normas; no entanto, essas normas contidas no Código de Direito Canónico devem ser lidas à luz do Evangelho, que é ou deveria ser a nossa máxima lei. É verdade que o Código de Direito Canónico reflecte e legisla a teologia do momento, e por isso, precisamente por isso, algo tem que ser feito para que não haja tanto contraste.

Há um texto no Evangelho de João que diz: “Também tenho outras ovelhas que não pertencem a este rebanho; também essas devo conduzir: Escutarão a minha voz e haverá um só rebanho sob um só Pastor” (10,16). É um texto maravilhoso que mostra uma força regeneradora, da qual está muito necessitada a nova evangelização. Não esqueçamos que o contexto destas palavras é onde Jesus ensina que Ele é o Bom Pastor. Está a mostrar aos discípulos (tenhamos presente que no evangelho de João só há discípulos, não há apóstolos e discípulos) como deve ser o pastor. Está a dizer-lhes como devem ser como pastores.

A mensagem de Francisco termina dizendo que na acção pastoral, a obra mais importante é o “apostolado do ouvido”. E acrescenta no penúltimo parágrafo: Começou há pouco um processo sinodal. Oremos para que seja uma grande oportunidade de escuta recíproca. A comunhão não é o resultado de estratégias e programas, antes se edifica na escuta recíproca entre irmãos e irmãs. Como num coro, a unidade não requer uniformidade, monotonia, mas sim pluralidade e variedade de vozes, polifonia. Ao mesmo tempo, cada voz do coro canta escutando as outras vozes e em relação à harmonia do conjunto. Esta harmonia foi idealizada pelo compositor, mas a sua realização depende da sinfonia de todas e de cada uma das vozes.

Ámen.

Cristina Inogés Sanz é teóloga e integra a comissão metodológica do Sínodo dos Bispos católicos. Tradução de Júlio Martin.