QUEM ESCREVEU
A HISTÓRIA
SAGRADA?

 

FRANCISCO MARTINS SJ

UNIVERSIDADE HEBRAICA
DE JERUSALÉM

 

A BÍBLIA E A HISTÓRIA DO ISRAEL ANTIGO:
DO REI DAVID À CONQUISTA DE ALEXANDRE

 

INTRODUÇÃO: ‘QUEM ESCREVE UM CONTO,
ACRESCENTA UM PONTO… DE VISTA’

‘Quem é que escreveu a Bíblia?’ A pergunta assim formulada não tem uma resposta óbvia. Para quem crê, os textos sagrados são fruto da revelação de Deus ao Seu povo ao longo de vários séculos e, num certo sentido, têm Deus como autor (pelo menos, “autor intelectual”). Assim o afirma, claramente, a Constituição Dogmática Dei Verbum sobre a Revelação Divina (DV) no n.º 11:
(…) a santa mãe Igreja, segundo a fé apostólica, considera como santos e canónicos os livros inteiros do Antigo e do Novo Testamento com todas as suas partes, porque, escritos por inspiração do Espírito Santo (Jo. 20,31; 2 Tim. 3,16; 2 Ped. 1, 19–21; 3, 15–16), têm Deus por autor, e como tais foram confiados à própria Igreja.
O mesmo documento, contudo, reconhece que o “fator humano” não deve ser eliminado da equação: homens (e mulheres?), na plena posse das suas faculdades, atuaram como “verdadeiros autores” e os textos refletem também as circunstâncias históricas concretas da sua redação (DV 12).
O nó da questão, pelo menos para quem estuda cientificamente o texto bíblico, é precisamente saber quem são aqueles últimos. Ou, pelo menos, identificar o meio onde os diferentes livros foram escritos (e/ou reescritos) e, se possível, a data (ou datas) da sua (re)elaboração. O trabalho é, o mais das vezes, bastante ingrato, porque se parece haver amplo consenso no “desconfiar” das atribuições tradicionais (Moisés escreveu o Pentateuco, o profeta Samuel o livro com o seu nome, etc.), o campo aberto pelas hipóteses académicas revela-nos que as certezas
serão sempre parcas e provisórias.
Dito isto, nas últimas décadas, certas asseverações básicas acerca dos autores dos textos bíblicos têm-se mostrado ferramentas hermenêuticas particularmente úteis. Mais do que antes, os investigadores estão hoje conscientes de que pelo menos certos textos bíblicos têm um claro pendor polémico ou ideológico e este último condiciona e estrutura decisivamente a forma como a história é contada. Mais ainda, a perspetiva vinculada não é, muitas vezes, completamente “inocente”, podendo incluir desde uma recomposição enviesada dos factos até à damnatio memoriae
de certos grupos ou personagens. Finalmente, este “revisionismo histórico”, se assim se pode dizer, fez “vítimas” não só entre os povos e personagens estrangeiros, mas também entre os membros do Israel histórico.
No assunto que nos vai ocupar neste artigo, a saber, a história do Israel antigo no período desde o rei David e a formação dos reinos de Judá e de Israel (séculos X–IX a.C.) até à conquista de Alexandre, o Grande (c. 332 a.C.), a questão do “quem escreveu o quê” aliada a uma atenção renovada aos limites, também ideológicos, dos textos bíblicos é, na minha opinião, a chave que nos permite ir além de uma repetição apologética ou cega do que a Bíblia nos diz sobre o passado. Neste esforço hermenêutico, que também quer renunciar a arrazoados relativistas, a arqueologia figura como fiel da balança, ainda que as pedras só “falem”, como veremos, quando e pela boca de quem as interpreta.1

 

O GLORIOSO REINO DE DAVID E SALOMÃO:
VERDADE OU MITO?

As figuras do rei David e do seu filho e sucessor Salomão são sinónimo, na cultura ocidental de matriz judaico-cristã, de heroísmo militar, de grandeza política e de favor divino. Sem negar os seus pecados, a Bíblia, nomeadamente os livros de Samuel e dos Reis, oferecem-nos um retrato empolgante e pleno de glória da meteórica ascensão ao poder do mais novo dos filhos de Jessé, David, dos seus sucessos militares e do estabelecimento de um reino (ou melhor, de um império!), cuja prosperidade, sob o reinado de Salomão, atraía a admiração (e as riquezas!) de outros povos e reis (como Hirão de Tiro ou a rainha de Sabá). O período da chamada “monarquia unida” (de Israel e Judá) projeta um ideal ao qual o Israel da História nunca conseguiu regressar e que, no imaginário de crentes e não-crentes, permanece uma imagem poderosa, tantas vezes messiânica, de “idade de ouro”.
As descobertas arqueológicas do século XIX e XX pareciam confirmar o que os textos bíblicos deixavam antever. As escavações nas cidades de Hazor, Guézer e Meguido revelaram o que se considerou ser uma espécie de “revolução arquitetónica”, marcada pelo monumentalismo. Com os olhos em 1º Reis 9,15–17, os arqueólogos e outros estudiosos não hesitaram em associar um tal fenómeno ao florescimento de Israel sob Salomão no século X a.C. Essa mesma associação também parecia justificada no caso da rede de fortalezas escavadas no Neguev: eram mais um sinal da consolidação do recém-criado reino, apostado em proteger-se das incursões inimigas. Finalmente, as escavações na chamada “cidade de David”, em Jerusalém, trouxeram à luz uma impressionante estrutura em pedra, que teria servido de suporte a um edifício ou grupo de edifícios igualmente monumentais: não seria esta ainda um vestígio do programa de renovação arquitetónica implementado por Salomão (1º Reis 9,15)?

 

1  O presente artigo continua o esforço de apresentar, de forma
extremamente sucinta, o que podemos saber sobre a História do Israel
Antigo (e como o podemos saber). Constitui, por isso, a continuação
do artigo publicado nesta mesma revista, em Março de 2019:
‘E a Bíblia tinha razão?’ A Bíblia e a História do Israel Antigo: de Abraão
aos Juízes (Brotéria 188 [2019] p. 409–427).

 

Uma tal concordância não resistiu, contudo, às últimas décadas do século precedente. As escavações empreendidas nesta época e, sobretudo, uma reavaliação da evidência material já disponível acabou por revelar que certas conclusões dependiam mais da vontade de confirmar os textos que da realidade dos factos. A datação e carácter “revolucionário” das fortificações de Meguido, Guézer e Hazor deixaram de ser um dado adquirido, com a escola de arqueologia da Universidade de Telavive a propor desde o final da década de 80 que estas construções monumentais devem ser atribuídas aos reis israelitas da dinastia de Omri (século IX a.C.). A rede de fortalezas do Neguev também perdeu a “aura” salomónica que a envolvia: uma parte significativa
destas construções não é do século X a.C. e algumas não podem ser consideradas parte de um sistema integrado de defesa. Em relação à famosa “estrutura de pedra” da cidade de David, a revisão da estratigrafia acabou por conduzir os investigadores à conclusão de que o complexo arquitetónico, no qual estava integrada, data do período do Bronze recente (séculos XV–XII a.C.) e não da época de Salomão.
Por esta época, e algumas vezes impulsionados pela revisão interpretativa descrita, alguns biblistas e historiadores começaram a questionar a veracidade da narrativa bíblica. A descrição das guerras e da extensão do reino de David em 2º Samuel 8, que fazia de Jerusalém a capital de um autêntico império entre o Eufrates e o Egito, passou a ser lida “com uma pitada de sal”, dando origem a uma visão mais minimalista do que teria sido a época da monarquia unida. Prestando atenção ao facto dos textos da Bíblia teriam sido escritos, na sua maioria, em Judá, no reino do sul, certos autores foram mais longe e questionaram a própria existência de uma “monarquia unida”: não seria a noção de que Israel e Judá formaram um só reino ao início, na “idade de ouro”, o fruto de uma projeção tardia, quando o reino do norte, Israel, foi “apagado” do mapa da História pelos Assírios (c. 720 a.C.) e Judá desenvolveu um desejo de ocupar o vazio político e cultural deixado? A culminar este “revisionismo histórico” e a dar-lhe uns certos laivos de niilismo, alguns membros da chamada escola de Copenhaga (P.R. Davies, T.L. ‡ompson) deram o passo derradeiro e puseram em dúvida as próprias figuras históricas de David e Salomão.2 Com a maioria dos investigadores numa posição de cautela metodológica, os últimos anos têm sido marcados por um debate acérrimo, e sem tréguas, entre os arqueólogos da Universidade de Telavive (nomeadamente Israel Finkelstein) e os seus colegas da Universidade Hebraica de Jerusalém (Amihai e Eilat Mazar, Yosef Garfinkel). 

2 Sobre esta mudança de perspetiva acerca do período da “monarquia
unida”, veja-se o artigo de Gary Knoppers, cujo título não podia
ser mais eloquente: “‡e Vanishing Solomon: ‡e Disappearance of
the United Monarchy from Recent Histories of Ancient Israel”, Journal
of Biblical Literature 116 (1997), p. 19–44.

 

Estes últimos têm procurado não só rebater os argumentos avançados pelos revisionistas (em especial, as datações propostas por aqueles), mas também trazer novos dados para cima da mesa. Nesse sentido, a descoberta de uma fortaleza em Khirbet Qeiyafa (30 quilómetros a sudoeste de Jerusalém), datada da primeira metade do século X a.C. (de acordo com Yosef Garfinkel), e as mais recentes descobertas na cidade de David (em escavações dirigidas por Eilat Mazar) deixaram os proponentes da posição mais maximalista confiantes da verdade da sua visão. Finkelstein e outros, contudo, levantaram sérias dúvidas não só acerca da metodologia empregue por arqueólogos como Eilat Mazar e Yosef Garfinkel, mas até da motivação por detrás da sua interpretação dos dados. Para estes autores, há suficiente evidência para postular a historicidade destas figuras (ou, pelo menos, de David, cujo nome é atestado na famosa estela de Tel Dan, do século IX a.C.), mas tudo parece indicar que os seus “reinos” pouco mais eram que um aglomerado de aldeias na região montanhosa de Judá.3 Em face do exposto, é justo concluir que não há respostas simples para a pergunta do quem foram e que fizeram David e Salomão.
Por um lado, parece razoável supor que, do ponto de vista territorial, o reino cuja capital se situava na zona montanhosa da Judeia não foi seguramente o império que parece desenhar-se em 2º Samuel 8 e, muito provavelmente, há motivos para duvidar que se estendesse até à região do vale de Jezrael (Meguido) e, mais além, até à Alta Galileia (Hazor).
Por outro lado, parecem ter sido figuras históricas e não há razões para negar sem apelo que Jerusalém possa ter sido, no séc. X a.C., a capital do que teria sido uma incipiente estrutura estatal. Terá sido desta última que nasceram tanto o reino de Judá como o reino de Israel? Ou é a própria ideia de “monarquia unida” uma simples construção ideológica? É difícil responder taxativamente a esta última questão, ainda que o facto de o texto bíblico ter sido escrito, muito provavelmente, no Sul e depois da queda de Samaria, a capital do reino de Israel, seja um convite a dar pelo menos algum crédito à segunda hipótese.

 

3 Para um resumo detalhado da controvérsia, veja-se, por exemplo,
Pedro Cabello Morales, Arqueología Bíblica. Los textos Bíblicos
a la luz de los hallazgos arquelógicos, Almuzarz, 2019, p. 329–370.

 

 

OS REINOS DE JUDÁ E DE ISRAEL: UMA “HISTÓRIA
NORMAL” TRANSFORMADA PELO EXÍLIO

 

Em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, via a luz do dia uma obra que revolucionaria os estudos bíblicos das décadas seguintes e haveria de tornar-se uma referência incontornável. A primeira parte do livro Überlieferungsgeschichtliche Studien (“Estudos de história das tradições”) do exegeta alemão Martin Noth, dedicada à chamada “História Deuteronomista” (Deuteronomistisches Geschichtswerk), daria origem à hipótese que ainda hoje constitui uma espécie de ponto de partida para a compreensão histórico-literária dos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis.
Reconhecendo, com outros antes dele, que a linguagem e a teologia do livro do Deuteronómio tinham deixado uma marca inegável no conjunto dos livros seguintes da Bíblia (de Josué ao Segundo Livro dos Reis), Noth propôs que a organização e redação final destas tradições numa história contínua desde o início da conquista da terra até ao exílio de Babilónia é fruto do trabalho de um historiador da escola “Deuteronomista” que teria vivido algures (provavelmente em Judá) no século VI a.C.. Com a “História Deuteronomista”, este ilustre sobrevivente da tragédia que se abateu sobre Jerusalém e Judá em 587–6 a.C. teria querido oferecer uma perspetiva teológica sobre os factos, mostrando como, ao longo dos séculos, o povo de Deus se tinha afastado sempre mais e mais de Yahvé, a ponto de acender a ira deste último contra o Seu templo, o Seu povo e a cidade santa de Jerusalém (2º Reis 24,3–4).
O “pessimismo teológico” deste autor teria assim constituído simultaneamente o “pano-de-fundo” e o “fio condutor” da sua apresentação/representação dos acontecimentos do passado.4

A hipótese de Martin Noth conheceu uma longa história de críticas, desenvolvimentos e modificações, mas permanece uma das mais duradouras e robustas “ferramentas hermenêuticas” disponíveis. Para o tema que aqui nos ocupa, a história dos reinos de Israel e de Judá entre os séculos IX–VI a.C., o facto dos livros dos Reis, que constituem a nossa principal fonte de informação, serem também a conclusão da “História Deuteronomista” convida-nos ao exercício necessário, mas sempre hipotético, de separar “o joio da ideologia” do “grão da História”.
Ao considerar os reinos levantinos de Israel e Judá no contexto mais vasto do Próximo Oriente antigo na primeira metade do primeiro milénio antes de Cristo, um investigador isento rapidamente se dá conta da “normalidade” da sua história. Tendo emergido como reinos algures no final do século X – início do século IX a.C., estas duas identidades sociopolíticas “gémeas” floresceram à sombra de outros poderes regionais, como o Egito ao sul e os reinos aramaicos ao norte, até que, na segunda metade do século VIII a.C., o império neoassírio emergiu na região da Síria-Palestina, provocando o desaparecimento do reino mais próspero e mais poderoso do norte, Israel, em 722–720 a.C., e reduzindo Judá ao estado de vassalo.

 

4 Para uma curta apresentação da hipótese de Martin Noth e da sua
receção crítica até aos dias de hoje, veja-se, por exemplo, o livro
de ‡omas Römer, A chamada História Deuteronomista. Introdução
sociológica, histórica e literária, Editorial Vozes, 2008.

 

Com a crise do império neoassírio, Judá experimenta um período de relativa prosperidade e de paz na segunda metade do século VII a.C., antes de incorrer, às mãos do império neobabilónico, em 587/586 a.C., no mesmo destino que Israel: exílio e “provincialização”. Se, no campo político, os reinos de Israel e Judá não se destacaram dos seus pares, no campo religioso, a herança judaico-cristã convenceu-nos de que, mesmo antes do exílio de Babilónia, o culto de Yahvé, o Deus nacional de Israel e Judá, já constituía uma exceção.
Nas últimas décadas, contudo, uma série de estudos e de descobertas arqueológicas ofereceram uma nova imagem da religião antiga de Israel. É hoje quase unanimemente aceite que o monoteísmo Yahvista, enquanto tal, é um desenvolvimento religioso tardio, fruto da interação com as ideologias imperialistas dos Assírios e dos Babilónios. Mais, na sua versão mais “pura”, com a exclusão de todos os outros deuses e a condenação dos seus cultos, uma tal conceção religiosa permaneceu, durante séculos, mais um “ideal oficial”, propagado pelos círculos mais eruditos da sociedade, que um “credo popular”. Nesse sentido, o Yahvismo praticado pelos habitantes dos antigos reinos de Israel e de Judá não teria constituído “uma carta fora do baralho” no universo
das religiões nacionais do Próximo Oriente antigo.5 À luz do que atrás fica dito, é necessário ler o Primeiro e Segundo Livro dos Reis com um olhar menos “inocente”, reconhecendo que a
“história normal” é ali, antes de mais, matéria para provar uma tese.
Apostado em justificar o castigo divino sobre Israel e Judá, o historiador deuteronomista não se coíbe de projetar os seus próprios ideais sobre o passado. Por exemplo, na questão da centralização do culto em Jerusalém. Uma tal norma, inspirada pela Lei de Deuteronómio 12, aparece como a “trave-mestra” do juízo sobre a qualidade religiosa dos reis de Israel e Judá. No limite, é o desrespeito por esta ordem divina que provoca a queda de Samaria, a capital do reino do Norte, e o exílio de Israel para longe da sua terra (2º Reis 17: este é o “pecado de Jeroboão”). Ora, muito possivelmente, um tal ideal emergiu apenas na segunda metade do século VII a.C., sob o rei Josias (2º Reis 22–23), ou, quiçá, apenas durante ou após o exílio, pelo que só “anacronicamente” podia ter sido essa a causa da ira divina que se abateu sobre Israel. Mas, no contexto da História Deuteronomista, uma tal “explicação” do desastre cumpre a função exortativa que parece ter
sido o principal motivo pelo qual a historiografia antiga (e, de facto, toda a historiografia pré-moderna!) se queria distinguir: mais do que fonte de informação, o passado era (ou devia ser!) fonte de instrução.

 

5 Para uma excelente introdução ao “nascimento do monoteísmo bíblico”,
veja-se Mark S. Smith, Ne Origins of Biblical Monotheism: Israel’s
Polytheistic Background and the Ugaritic Texts, Oxford University Press,
2001. A contribuição da arqueologia para uma nova compreensão da
religião antiga de Israel é o objeto do já clássico livro de William G.
Denver, Did God Have a Wife? Archaeology and Folk Religion in Ancient
Israel, Eerdmans, 2005.

 

 

 

OS MITOS DA “TERRA DESABITADA” E DO
“REGRESSO EM MASSA”:
O REGRESSO DO EXÍLIO NA BÍBLIA

 

A leitura dos últimos dois capítulos do Segundo Livro dos Reis (24–25) deixa-nos com a convicção que a dupla tragédia de 597/587–6 a.C. (a dupla invasão pelos Babilónios) significou para Jerusalém e para Judá não só a destruição da capital e das suas estruturas políticas e religiosas (palácio e templo), mas ainda a deportação da totalidade da população. Ainda que os números não sejam demasiado elevados (2º Reis 24,14, por exemplo, fala de 10.000 pessoas), a ideia de que a totalidade da cidade foi evacuada pelos Babilónios (2º Reis 24,14: “Ele [o rei Nabucodonosor] levou cativa toda [a cidade de] Jerusalém”) e que não ficaram para trás, em Judá, senão os “pobres da terra” (2º Reis 24,14; 25,12) é diretamente veiculada e cria na retina do leitor uma imagem de devastação completa e de uma terra inteiramente despovoada. Judá é, depois de 587–6 a.C., um “país (praticamente) vazio”.
O “negativo fotográfico” do exílio total é o regresso em massa nas primeiras décadas do período persa. De acordo com o livro de Esdras, durante o reinado de Ciro, o primeiro dos reis persas, regressaram a Jerusalém e a Judá 42.370 israelitas, acompanhados de mais 7.337 escravos e 200 cantores e cantoras (Esdras 2,64–65; veja-se também Neemias 7,66–67). Na época de Artaxerxes (I? II?), com Esdras, outros 1.800 terão igualmente empreendido o regresso a Jerusalém (Esdras 8,1–20). São estas mais de 55.000 “almas” que, segundo a historiografia bíblica, levaram a cabo a reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém e que impulsionaram o retomar da vida na província de Yehud (a região administrativa correspondente aos antigos territórios do reino de Judá).
O cenário esboçado pelos livros bíblicos determinou e, nalguns casos, continua a determinar a forma como os investigadores reconstruiam/reconstroem a situação histórica de Judá no século VI–V a.C. A arqueologia, contudo, começou, pouco a pouco, a oferecer uma visão alternativa dos factos. Pela mão de Hans Barstad e outros (nomeadamente Oded Lipschits), o antigo consenso a propósito do período da ocupação babilónia perdeu muito da sua força: estes autores mostraram que Jerusalém e Judá continuaram a funcionar política e economicamente, apesar da perda de população provocada pelo exílio e pelo colapso de uma parte importante da estrutura social.6 Por outro lado, nada no registo arqueológico parece confirmar os números avançados em Esdras 2: um influxo de 50.000 pessoas numa região que teria, de acordo com as estimativas, pouco mais de 30.000 pessoas no final do século VI a.C., haveria de ter provocado uma transformação significativa dos padrões de ocupação do território. Ora, tal não se verifica e, por isso, não há motivos para continuar a imaginar um regresso em grande escala. Como o mostram as várias centenas de tabuletas cuneiformes provenientes de alu ša Našar e de al-Yahudu, muitos exilados (senão mesmo a maioria!) parecem ter seguido o conselho do profeta Jeremias (29,1–23) e permanecido (e prosperado!) em Babilónia. À luz desta perspetiva sobre os factos, é justo interrogar os textos bíblicos acerca do horizonte da sua formulação. A tentação, simplista, é de considerar que se trata apenas de exageros literários. Uma tal interpretação, contudo, permanece cega em relação àquilo que parecem ter sido os motivos que terão levado os autores destes textos a criar um “vazio” político, social e religioso entre o exílio e o regresso. Como noutros textos do Próximo Oriente antigo (nomeadamente textos neobabilónicos), o propósito parece ser o de sugerir que os verdadeiros herdeiros do passado, neste caso do Israel pré-exílio, são aqueles que passaram pelo exílio e regressaram à terra, algumas décadas depois.
Uma tal perspetiva, inscrita nos textos bíblicos, tem um evidente carácter polémico, na medida em que nega aos que não foram exilados em 597 e 587–6 a.C. (uma parte significativa da população!) a pertença ao verdadeiro Israel, ao Israel “renascido” (veja-se a recusa de Zorobabel em deixar os que ficaram participar na obra de reconstrução do templo em Esdras 4,1–4). Num certo sentido, estes textos “apagam da História” o que teria sido a natural continuação da vida, em Judá, entre 587–6 a.C. e as últimas décadas do século VI a.C. Além disso, trazem para o seio do Yahvismo, a religião do povo de Israel, qual elemento-chave, a própria experiência do exílio de Babilónia e do regresso à terra prometida: o que podia ter sido só e apenas um “interregno” torna-se o “eixo” que dá sentido ao passado, ao presente e ao futuro.7

 

6 A obra de referência é Hans Barstad, Ne Myth of the Empty Land. A Study
in the History and Archaeology of Judah during the “Exilic” Period, Scandinavian
University Press, 1996. Oded Lipschits critica o “negacionismo” (do exílio)
de H. Barstad, mas reconhece com este último que a noção de que os
Babilónios “esvaziaram” Judá da sua população é um “mito” alimentado
pelo texto bíblico: veja-se o seu opus magnum Oded Lipschits, Ne Fall and
Rise of Jerusalem. Judah under Babylonian Rule, Eisenbrauns, 2005.

7 A culminação teológica desta visão dos acontecimentos do século VI
a.C. é a ideia que o próprio Deus (ou, numa terminologia mais precisa,
a Sua “glória”) abandonou Jerusalém (o templo) com os exilados
(veja-se Ezequiel 10) e apenas regressou à cidade santa com aqueles
últimos (veja-se, por exemplo, Isaías 40,1–11).

 

 

CONCLUSÃO:
JUDÁ DURANTE O PERÍODO PERSA (515–332 A.C.):
‘POUCOS, MAS… INSPIRADOS!’

 

No que diz respeito ao período persa (515–332 a.C.), as sondagens arqueológicas dos últimos anos na antiga região do reino de Judá (a província de Yehud) contribuíram, decisivamente, para uma melhor compreensão daquele que é comummente considerado, do ponto de vista historiográfico, um “período negro”. Estas sondagens de superfície, que, ao contrário das escavações de sítios individuais, tendem a abranger regiões inteiras, permitiram-nos perceber que a ocupação do território sofreu uma quebra grave na sequência da campanha militar babilónica de 587–6 a.C. (uma redução para menos de 1⁄3 do número de sítios).
Também nos permitiram estimar que a população de Yehud durante os séculos V–IV a.C. não teria superado as 30.000–40.000 pessoas (contra os cerca de 110.000 habitantes em princípios do século VI a.C.), tendo Jerusalém permanecido uma pequena cidade de apenas 2.000–3.000 indivíduos, de acordo com as estimativas mais otimistas (alguns arqueólogos, como Israel Finkelstein, creem que não superaria 400–500!). Será preciso esperar até ao século III a.C., em pleno período helenístico, para que estes números comecem a crescer significativamente.8
Ao mesmo tempo, e talvez de forma surpreendente, os investigadores que se dedicam ao estudo dos textos sagrados têm insistido cada vez mais no carácter decisivo do período persa para o surgimento do corpus bíblico tal como nós o conhecemos. O livro de Esdras sugere, no capítulo 7, que o rei persa confiou ao escriba Esdras a missão de implementar e velar pelo cumprimento da Lei de Deus em toda a região de Além-Eufrates (toda a região da Síria-Palestina). Atualmente, a maioria dos especialistas é da opinião que uma tal “ratificação imperial da Torá” é, com toda a probabilidade, apenas uma criação literária, mas há um certo consenso em relação à noção de que o Pentateuco (Génesis-Deuteronómio), enquanto antologia de tradições e coleção de livros, “nasceu” durante o período persa.9 Outros livros, nomeadamente os livros proféticos de Isaías e de Jeremias, provavelmente também receberam a sua forma final neste período.
Se isto é assim, aqueles quase duzentos anos nos quais Judá viveu sob a autoridade dos Aqueménidas podem ter sido uma época de contrastes. Nunca tão desprovido e humilhado, o povo de Israel teve a sabedoria de voltar-se para as tradições recebidas do passado em busca de redefinir a sua identidade política, social e religiosa. Este trabalho de receção e reescritura, de memória e reflexão de um grupo diminuto de pessoas (muito provavelmente apenas os membros da elite cultural!) produziu ou deu a forma final a este livro de livros, a Bíblia, que se tornaria não só o “coração” do judaísmo da época do Segundo Templo, mas também, graças à sua “adoção” como texto sagrado pela Igreja nascente, uma das fontes, senão a fonte por excelência, do pensamento e da cultura ocidentais.

 

8 Para uma breve discussão dos resultados destas sondagens, veja-se
Avraham Faust, Judah in the Neo-Babylonian Period. Ne Archeology of
Desolation, SBL, 2012, p. 119–147.

9 A teoria clássica acerca da composição do Pentateuco postulava a
existência de quatro “fontes” ou “documentos” paralelos e independentes
(o Eloísta, o Yahvista, o Sacerdotal e o Deuteronomista). Atualmente, a
existência de uma fonte eloísta é fortemente contestada e o Yahvista também
começa a perigar. Tem-se tornado, por isso, mais consensual falar de
tradições não-sacerdotais (alguma delas pré-exílicas) e de textos e uma
redação sacerdotal do conjunto de Génesis-Números. O documento
deuteronomista coincide, no essencial, com o livro do Deuteronómio (ou
melhor, com a sua versão mais antiga, um “proto-Deuteronómio”). Sobre
o estado atual da discussão, veja-se Reinhard Kratz, “‡e Pentateuch in
Current Research: Consensus and Debate”, em ‡omas B. Dozemann e
outros (éd.), Ne Pentateuch: International Perspectives on Current Research,
Mohr Siebeck, 2011, p. 31–61.

 

in BROTÉRIA 190 (2020) páginas 162-172