Sínodo 2021-2024

Liturgia da Palavra

Domingo III do Tempo do Advento – Ano C – 15 dezembro 2024

Viver a Palavra

A alegria cristã nasce do encontro íntimo e pessoal com Jesus Cristo, o Salvador e Redentor da humanidade, Aquele que oferece um sentido para a vida e desafia a percorrer com esperança e confiança o caminho da santidade. Na Liturgia da Palavra deste Domingo, o convite à alegria está estritamente ligado com o permanente desafio à conversão e à mudança de vida: «Que devemos fazer?». Por isso, alegria e conversão são palavras que caminham de mãos dadas na nossa vocação batismal porque nos recordam que a verdadeira alegria nasce de um coração que dia após dia se renova pela força transformadora do amor de Deus.

O tempo de Advento está revestido da jubilosa esperança de um Deus tão próximo de nós que assume a nossa natureza humana, para nos ensinar a verdadeira arte de nos fazermos próximos uns dos outros. «O Senhor está próximo» e esta certeza da proximidade de Deus, como nos recorda S. Paulo traduz-se num insistente convite à alegria: «Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos». Inspirados por estas palavras que compõe a antífona de entrada deste dia, este Domingo é designado como Domingo Gaudete, isto é, Domingo da Alegria e, assim, a Liturgia da Palavra, as orações e a simbologia deste Domingo estão repletas de um convite à alegria e à esperança. A palavra alegria aparece 16 vezes na Liturgia da Palavra e nas orações da missa deste dia. E se contarmos palavras relacionadas com o convite à alegria como rejubilai e exultai, então o número sobre para 24 ocorrências. Mas esta alegria não é apenas um mero contentamento, nem um sentimento fugaz e efémero de bem-estar e bom humor. É alegria que nasce do Evangelho, a alegria dos que reconhecem que a sua vida se abre a um bem maior e que não se contentam com menos que Deus e o Seu amor, revelado em Jesus Cristo como um serviço concreto aos irmãos.

Deste modo, acolhemos o convite de Sofonias e a exortação de Paulo aos Filipenses, conscientes que alegria cristã é a alegria daqueles que querem ver realizada na terra a verdade e a justiça, a alegria daqueles que não se deixam diminuir no seu desejo, nem deixam este desejo divergir e dissipar-se em alegrias fugazes que acabam por ser fontes de descontentamento próprios e alheios mas que procuram a satisfação plena que só em Deus se pode encontrar, pois é Deus o autor das mais profundas aspirações do nosso coração.

Esta alegria que se renova no encontro com Jesus Cristo reclama a disponibilidade de coração que João Baptista anuncia com o seu batismo de penitência. Por isso, também nós, interpelados pela presença e pela palavra do percursor, perguntamos como as multidões, os publicanos e os soldados: «que devemos fazer?». Para cada um, João tem uma palavra concreta e um desafio preciso. A escuta da Palavra não nos pode deixar indiferentes e o convite à alegria reclama movimentos concretos de conversão, pois um coração que em cada dia cresce na fidelidade ao Evangelho frutifica saboreando a alegria nova que brota do coração de Deus.

Os frutos da conversão que João Baptista aponta e reclama referem-se sempre ao nosso comportamento com o próximo. Fica claro, que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus passa sempre pelos nossos gestos com o próximo. No Evangelho o verbo «amar» traduz-se sempre pelas formas verbais «dar» e «dar-se». Deste modo, preparemos o Natal do Senhor com um coração agradecido pela presença terna e misericordiosa de Deus em Jesus Cristo e façamos da conversão verdadeira estrada que nos conduz à santidade. in Voz Portucalense.

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O terceiro Domingo de Advento é designado como Domingo Gaudete (Domingo da Alegria). Esta designação é retirada da primeira palavra da antífona de entrada da missa: “Gaudete in Domino semper” (Alegrai-vos sempre no Senhor). A celebração eucarística deste Domingo é a oportunidade de uma reflexão sobre a alegria cristã e que está tão ligada ao magistério do Papa Francisco (Evangelii GaudiumAmoris Laetitia e Gaudete et Exsultate), onde podemos encontrar belíssimos textos e contributos sobre a alegria do Evangelho, a alegria do amor que se vive na família ou a alegria de percorrer a estrada da santidade. in Voz Portucalense.

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Com o Tempo de Advento damos início a um novo Ano Litúrgico – Ano C – onde seremos acompanhados pelo evangelista Lucas. Tendo em vista a formação bíblica dos fiéis e a importância do conhecimento da Sagrada Escritura como Palavra que ilumina a vida dos batizados, o contexto do início do Ano Litúrgico pode ser uma oportunidade para um encontro ou até vários encontros, integrados na dinâmica de Advento, sobre o Evangelista deste ano litúrgico.

Como se diz acima, durante todo este ano litúrgico – 2024/2025 -, acompanhamos o evangelista Lucas em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação complementar, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Lucas.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra e, também, num separador próprio, da página da paróquia de Vilar de Andorinho, ficará disponível um texto sobre o evangelista Lucas. Poderão melhorar os conhecimentos bíblicos –Novo Testamento e Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

 

LEITURA I – Sofonias 3,14-18a

Clama jubilosamente, filha de Sião;
solta brados de alegria, Israel.
Exulta, rejubila de todo o coração, filha de Jerusalém.
O Senhor revogou a sentença que te condenava,
afastou os teus inimigos.
O Senhor, Rei de Israel, está no meio de ti
e já não temerás nenhum mal.
Naquele dia, dir-se-á a Jerusalém:
«Não temas, Sião,
não desfaleçam as tuas mãos.
O Senhor teu Deus está no meio de ti,
como poderoso salvador.
Por causa de ti, Ele enche-Se de júbilo,
renova-te com o seu amor,
exulta de alegria por tua causa,
como nos dias de festa».

 

CONTEXTO

Em 734 a.C. o rei Acaz (734-727 a.C.), confrontado com a ameaça militar de uma coligação formada pelo rei de Damasco e pelo rei de Israel, pediu ajuda a Tiglat-Pileser III, rei da Assíria (cf. 2Rs 16,7). Tiglat Pileser III derrotou o rei de Damasco, pondo fim à ameaça contra Judá; mas, na sequência, o rei Acaz tornou-se vassalo da Assíria. Judá passou a girar na órbita política da Assíria e teve de abrir as portas às influências culturais e religiosas dos assírios (cf. 2Rs 16,10-18). Diversos costumes estranhos e cultos pagãos irromperam então em Jerusalém e minaram a fidelidade do Povo de Judá a Javé. Essa situação manteve-se durante o longo reinado do ímpio Manassés (698-643 a.C.), em que o próprio rei reconstruiu os lugares de culto aos deuses estrangeiros, levantou altares a Baal, ofereceu o seu filho em holocausto, dedicou-se à adivinhação e à magia, colocou no Templo de Jerusalém a imagem da deusa Astarte (cf. 2Rs 21,3-9). Paralelamente, continuavam a multiplicar-se as injustiças sociais, as arbitrariedades, as violências contra os mais pobres e débeis. Tudo isto configurava uma grave violação da Aliança que o povo tinha com Deus. Quando em 639 a.C. o rei Josias (639-609 a.C.) subiu ao trono, Judá estava a precisar urgentemente de uma profunda reforma política, social e religiosa. Josias, o novo rei, lançou-se a essa tarefa.

Sofonias começou o seu ministério profético por essa altura. É possível que, numa primeira fase da reforma empreendida por Josias, Sofonias tivesse sido o verdadeiro motor dessa reforma. Não sabemos quanto tempo durou o ministério de Sofonias. A maior parte dos biblistas prolongam-no até 625 a.C., aproximadamente.

Sofonias, no desempenho da sua missão profética, denunciou o imenso pecado de Judá. Atacou a idolatria cultual, as injustiças, o materialismo, a despreocupação religiosa, os abusos da autoridade. Disse claramente que esta situação não poderia continuar e que, se nada fosse mudado, chegaria o dia do castigo ou do Juízo de Deus (cf. Sf 1,2-2,3). Apesar de tudo, o grande objetivo da pregação de Sofonias não era anunciar o castigo de Judá; mas era levar o Povo a converter-se a Deus.

Sofonias considerava que o Povo de Deus não podia pretender ter um compromisso com Javé e, ao mesmo tempo, comportar-se como se esse compromisso não contasse para nada; achava que o Povo de Judá não podia invocar a Aliança e, simultaneamente, prestar culto a deuses estrangeiros, desrespeitar os direitos dos pobres, cultivar a exploração, a injustiça, as arbitrariedades. O que Sofonias pedia é que Judá se convertesse, que o Povo deixasse o caminho de infidelidade que estava a seguir e regressasse ao encontro de Deus.

O texto de Sofonias que a liturgia deste terceiro domingo do advento nos propõe como primeira leitura integra um lote de “promessas de salvação” (Sf 3,9-20) que aparece na parte final do livro. Antes, Sofonias tinha predito a chegada do “dia do Senhor”, o dia da intervenção justiceira de Deus, o dia em que Deus castigaria Judá pelas suas infidelidades (cf. Sf 1,14-18); tinha também avisado Jerusalém, a “cidade rebelde, manchada e opressora” (cf. Sf 3,1-8) que o fogo do zelo de Deus iria consumi-la… Mas, de repente, o discurso do profeta muda de tom; a ameaça do castigo transforma-se em anúncio de salvação; a aflição e o pranto dão lugar à alegria e à festa (cf. Sf 3,14-18). O que é que está na origem desta mudança? in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • A Bíblia mostra, em cada uma das suas linhas, que a história dos homens se vai construindo ao ritmo do amor de Deus. A essência de Deus é amor; e esse amor, inquebrantável e sem medida, ilumina cada passo do caminho que os homens percorrem. O profeta Sofonias, dirigindo-se a um povo instalado na infidelidade, que escolheu caminhos de autossuficiência, de materialismo e de pecado, garante que o amor de Deus se sobrepõe à sua ira e que será fonte de conversão, de mudança, de vida nova. O amor infinito que Deus sente pelos seus filhos “obriga-O” a perdoar o pecado do povo (a “revogar a sentença de condenação”); mas, mais do que isso, faz com que o povo infiel sinta vontade de renascer e de percorrer caminhos novos. Desde a bela mensagem de Sofonias, passaram-se vinte e seis séculos; mas a essência de Deus não mudou. O amor infinito de Deus continua, em pleno séc. XXI, a derramar-se sobre os seus filhos e filhas. Eles vão deixando, em cada curva do caminho que fazem, as marcas da sua infidelidade e da sua debilidade; mas isso não impede que Deus continue a sustentá-los e a abraçá-los com o seu amor. A história que Deus vai construindo connosco não é uma história de condenação, mas uma história de salvação. A consciência de que Deus nos ama com um amor sem limites ilumina o horizonte da nossa vida? Acreditamos que o seu amor de pai e de mãe é muito mais forte do que a sua vontade de castigar? Estamos disponíveis para nos deixarmos abraçar e transformar pelo amor de Deus?
  • Muitos acreditam que o medo é a única forma de levar os seres humanos a mudarem os seus comportamentos errados. Por isso, recorrem a ameaças, anunciam castigos, praticam – talvez com boas intenções – um “terrorismo espiritual” que provoca angústia, depressão e abre caminho a uma visão pessimista e negativa de Deus, da vida e do mundo. Talvez consigam, através do medo, mudar alguns comportamentos; mas o preço de tudo isso é muito alto: cria escravidão, sofrimento, consciência de culpa, traumas infindáveis. O que renova o mundo e o transforma não é o medo, mas o amor. O amor é que faz crescer, é que cria dinamismos de superação, é que nos torna mais humanos e mais livres, é que nos faz confiar, é que potencia o encontro e a comunhão… Devemos ter isto bem presente quando formos chamados a dar testemunho do Evangelho e a proclamar a proposta de salvação que o nosso Deus faz aos homens. No nosso testemunho de Deus, somos profetas do medo que escraviza, ou do amor que liberta? Anunciamos um deus justiceiro e intransigente, ou um Deus que ama incondicionalmente os seus queridos filhos?
  • Sofonias anuncia a Jerusalém a presença de Deus no meio do seu Povo. É uma “boa nova” de salvação, que varre o medo, renova o ânimo, infunde coragem, abre a porta à esperança. Preparamo-nos para celebrar, dentro de poucos dias, a “visita” de Deus ao nosso mundo e à nossa história. Jesus é o Deus que veio habitar no meio de nós para nos mostrar, olhos nos olhos, os caminhos que Deus nos chama a percorrer para alcançarmos vida em abundância. Caminhamos pela vida conscientes de que Deus está no meio de nós? É esse o testemunho que damos aos outros irmãos e irmãs que vão ao nosso lado?
  • “Clama jubilosamente, filha de Sião; solta brados de alegria, Israel. Exulta, rejubila de todo o coração, filha de Jerusalém” – pede Sofonias ao Povo de Deus. A constatação de que Deus nos ama e que reside no meio de nós com uma proposta de salvação e de felicidade para todos os que O acolhem, não pode provocar senão uma imensa alegria no coração dos crentes. Damos sempre testemunho dessa alegria? Será que as nossas comunidades são espaços onde se nota a alegria pelo amor e pela presença de Deus? in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Isaías 12,2-3.4bcd.5-6

Refrão 1: Exultai de alegria,
porque é grande no meio de vós o Santo de Israel.

Refrão 2: Povo do Senhor, exulta e canta de alegria.

 

Deus é o meu Salvador,
tenho confiança e nada temo.
O Senhor é a minha força e o meu louvor.
Ele é a minha salvação.

Tirareis água com alegria das fontes da salvação.
Agradecei ao Senhor, invocai o seu nome;
anunciai aos povos a grandeza das suas obras,
proclamai a todos que o seu nome é santo.

Cantai ao Senhor, porque Ele fez maravilhas,
anunciai-as em toda a terra.
Entoai cânticos de alegria, habitantes de Sião,
porque é grande no meio de vós o Santo de Israel.

 

LEITURA II Filipenses 4,4-7

Irmãos:
Alegrai-vos sempre no Senhor.
Novamente vos digo: alegrai-vos.
Seja de todos conhecida a vossa bondade.
O Senhor está próximo.
Não vos inquieteis com coisa alguma;
mas em todas as circunstâncias,
apresentai os vossos pedidos diante de Deus,
com orações, súplicas e ações de graças.
E a paz de Deus, que está acima de toda a inteligência,
guardará os vossos corações e os vossos pensamentos
em Cristo Jesus.

 

CONTEXTO

Filipos, situada na Macedónia oriental, fundada por Alexandre II da Macedónia, pai de Alexandre, o Grande, pelo ano 358 a.C., estava ao lado da “Via Egnatia” a estrada que ligava a Europa com a Ásia. O imperador Augusto fez dela uma colónia romana. No tempo de Paulo, a maior parte dos seus habitantes eram antigos veteranos do exército romano. A cidade era regida pelo direito romano e governada por dois chefes militares, ao estilo dos cônsules de Roma. Havia também na cidade uma colónia judaica, que costumava reunir-se para rezar num lugar fora da cidade, na margem de um rio. Da pregação de Paulo nasceu a comunidade cristã de Filipos (cf. At 16,11-40). Quando Paulo foi obrigado a deixar a cidade, deixou atrás de si uma comunidade viva e fervorosa, verdadeiramente empenhada em dar testemunho de Jesus e em viver a sua fé. Paulo manteve sempre com os cristãos de Filipos laços afetivos muito fortes. Essa ligação levou-o, inclusive, a aceitar, numa altura que estava na prisão (em Cesareia? Em Éfeso? Em Roma?), a ajuda económica dos filipenses, que lhe enviaram uma determinada quantia em dinheiro para que Paulo pudesse prover às suas necessidades.

Foi um tal Epafrodito, membro da comunidade cristã de Filipos, que levou ao apóstolo a ajuda financeira de que ele necessitava. Entretanto, Epafrodito adoeceu, o que causou algumas preocupações aos cristãos de Filipos. Logo que Epafrodito se restabeleceu, Paulo enviou-o de novo para Filipos e fê-lo portador de uma carta de agradecimento aos seus queridos amigos de Filipos.

Depois de agradecer a Deus pela sensibilidade dos Filipenses ao anúncio do Evangelho (cf. Flp 1,11), de informar a comunidade sobre a sua situação pessoal (cf. Flp 1,12-26), de dirigir exortações várias à comunidade (cf. Flp 1,27-2,18), de dar notícias sobre Timóteo e Epafrodito (cf. Flp 2,19-30) e de denunciar as acusações que lhe fazem os seus adversários (cf. Flp 3,1-21), Paulo – consciente de que ainda nem tudo é perfeito nesta comunidade exemplar – apresenta um conjunto de recomendações diversas de carácter prático. O texto que a liturgia deste terceiro domingo do advento nos propõe como segunda leitura contém algumas dessas recomendações. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A alegria é a marca por excelência da existência cristã. Referimo-nos a essa alegria serena que não resulta de acontecimentos efémeros, de factos corriqueiros ou de razões puramente materiais; mas resulta da certeza de que “o Senhor está próximo”. Os cristãos caminham pela vida de olhos postos nesse horizonte. A vida deles não é um peso que arrastam numa fadiga sem fim, nem um calvário de medos e de desesperos; mas é um caminhar tranquilo, decidido e confiante ao encontro de uma salvação que não tardará a chegar. Por isso, o tempo do advento – este tempo de espera do Senhor que vem – é um tempo onde a alegria está especialmente presente. Ao longo do “caminho do advento” que estamos a fazer temos dado aos nossos irmãos testemunho dessa alegria que nos aquece o coração?
  • A certeza de que “o Senhor está próximo” alarga os nossos horizontes, reconcilia-nos com a vida, serena o nosso coração, torna-nos mais conscientes da bondade e do amor de Deus, dispõe-nos a ser bondosos, compreensivos, pacientes, afáveis, generosos para com os irmãos e irmãs que partilham connosco a aventura da vida. Será possível esperar o Senhor com um coração fechado, intolerante, prepotente, presunçoso, onde não há lugar para mais ninguém além de nós próprios? Enquanto esperamos a chegada do Senhor, como é que vemos, tratamos e acolhemos aqueles que caminham ao nosso lado?
  • Não é possível acolhermos alguém com quem não comunicamos e de quem nos sentimos distantes. A espera do Senhor faz-se, portanto, num diálogo contínuo com Ele. Ao longo deste “caminho de advento”, temos arranjado tempo e disponibilidade para falar com Deus, para escutar a sua Palavra, para acolher as suas indicações, para lhe apresentar as nossas dúvidas, inquietações, sonhos e esperanças? in Dehonianos.

EVANGELHO Lucas 3,10-18

Naquele tempo,
as multidões perguntavam a João Baptista:
«Que devemos fazer?»
Ele respondia-lhes:
«Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma;
e quem tiver mantimentos faça o mesmo».
Vieram também alguns publicanos para serem batizados
e disseram:
«Mestre, que devemos fazer?»
João respondeu-lhes:
«Não exijais nada além do que vos foi prescrito».
Perguntavam-lhe também os soldados:
«E nós, que devemos fazer?»
Ele respondeu-lhes:
«Não pratiqueis violência com ninguém
nem denuncieis injustamente;
e contentai-vos com o vosso soldo».
Como o povo estava na expectativa
e todos pensavam em seus corações
se João não seria o Messias,
ele tomou a palavra e disse a todos:
«Eu batizo-vos com água,
mas está a chegar quem é mais forte do que eu,
e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias.
Ele batizar-vos-á com o Espírito Santo e com o fogo.
Tem na mão a pá para limpar a sua eira
e recolherá o trigo no seu celeiro;
a palha, porém, queimá-la-á num fogo que não se apaga».
Assim, com estas e muitas outras exortações,
João anunciava ao povo a Boa Nova».

 

CONTEXTO

O Evangelho deste domingo leva-nos até ao vale do rio Jordão, ao encontro de um profeta chamado João, a quem as gentes da Judeia chamavam “o batista”. O seu pai era o sacerdote Zacarias (cf. Lc 1,5-25. 57-80). Mas, embora de família sacerdotal, não há notícia de que João tenha exercido funções sacerdotais no quadro da religião tradicional.

Por volta do ano 27 ou 28, João aparece nas franjas do deserto de Judá, perto de Jericó, na região da Pereia (território administrado por Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande), na margem oriental do rio Jordão. Aí, num lugar que poderá identificar-se com o moderno Qasr El Yahud, João pregava “um batismo de conversão para remissão dos pecados” (Lc 3,3).

A pregação de João causou um forte impacto nas gentes da Judeia e da Galileia; e muitos vinham até à margem do rio Jordão escutá-lo. João denunciava – na linguagem rude de um homem do campo – o pecado e a rebeldia de Israel; e anunciava a iminente intervenção de Deus no mundo para acabar com o mal (“raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da cólera que está para chegar? O machado já se encontra à raiz das árvores; por isso, toda a árvore que não der bom fruto será cortada e lançada ao fogo” – Lc 3,7-9). A forma de evitar a “ira de Deus” era, segundo João, converter-se radicalmente, cortar com o pecado e voltar para Deus. Aos que se dispunham a essa mudança, João propunha um gesto purificador e renovador: uma imersão nas águas do rio Jordão. Era por isso que lhe chamavam “o batista”.

O judaísmo antigo conhecia diversos rituais de purificação pela água. A seita judaica dos essénios, instalada em Kûmran (uma aldeia situada muito perto do lugar onde João batizava) praticava diariamente banhos rituais de purificação em piscinas construídas para o efeito. Mas o gesto que João propunha era diferente. Quem aceitava a sua proposta de conversão, era imerso por João nas águas-vivas do rio Jordão, confessava os seus pecados, recebia o perdão de Deus e saía da água purificado. Este ritual só se fazia uma vez. A pessoa que tinha sido “batizada” por João passava a pertencer à comunidade da nova Aliança. Voltava para sua casa decidida a viver de uma forma nova, sentindo-se membro de um novo Israel, preparada para acolher a chegada iminente de Deus. in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • No centro da mensagem de João Batista está o apelo à conversão, à mudança radical de vida. Como é que respondemos a esse apelo? Como o concretizamos? Trata-se de sentirmos um arrependimento vago pelo nosso egoísmo e pelas nossas opções erradas? Trata-se de pedirmos perdão a Deus pelas nossas faltas e de acalmarmos a nossa consciência com algumas orações ou práticas de piedade que “compensem” Deus pelo mal que fizemos? João Batista pede muito mais do que isso… Pede uma efetiva mudança de vida que produza “frutos de sincera conversão”. A nossa mudança tem de traduzir-se em “frutos bons”, em gestos diferentes, numa nova forma de viver e de atuar, em comportamentos mais humanos, mais altruístas, mais solidários, mais bondosos, mais misericordiosos. Neste tempo de advento, preparando-nos para acolher o Senhor que vem, estamos dispostos a uma mudança de vida que se traduza numa nova forma de encarar o mundo, de olhar para as pessoas com quem nos cruzamos, de acolher cada irmão e cada irmã que Deus coloca no nosso caminho?
  • Os meios de comunicação social fornecem-nos a cada momento informações sobre a forma como o nosso mundo se vai construindo. Conhecemos bem as violências, as injustiças, as maldades, as misérias, os abusos que, por todo o lado, deixam um rasto de desumanidade, de sofrimento e de morte. Estas informações inquietam-nos e desenvolvem em nós um certo sentimento de solidariedade para com os nossos irmãos que são vítimas das injustiças e das arbitrariedades que chegam ao nosso conhecimento. Sentimo-nos vagamente culpados; mas, ao mesmo tempo, sentimo-nos impotentes, incapazes de mudar o rumo da história e de pôr cobro a todo esse imenso cortejo de sofrimento que desfeia o mundo. Espontaneamente brota uma pergunta: “Que podemos fazer?” Já encontramos resposta para esta questão? Como poderemos contribuir para uma nova ordem, para um mundo mais justo, mais humano, mais fraterno?
  • “Que devemos fazer?” – perguntam as pessoas a João Batista. O profeta dá-lhes uma resposta direta, simples, clara, prática e contundente: “Quem tiver duas túnicas reparta com quem não tem nenhuma; e quem tiver mantimentos faça o mesmo”. Esta resposta elimina as nossas escapatórias, põe a nu as nossas desculpas esfarrapadas, ridiculariza as nossas justificações fáceis. Mais de um terço da humanidade passa fome porque alguns açambarcam os bens que pertencem a todos; biliões de irmãos nossos vivem abaixo do limiar da dignidade humana porque alguns construíram uma fortaleza à volta da sua “sociedade de bem-estar” e açambarcam os bens que Deus pôs à disposição de todos os seus filhos e filhas. Queremos continuar a construir o nosso bem-estar indiferentes à sorte dos que não têm o mínimo necessário para sobreviver? Estamos dispostos a viver de uma forma mais frugal, para podermos partilhar com os irmãos necessitados aquilo que lhes faz falta? Estamos dispostos a pagar mais impostos para que seja possível implementar políticas mais eficazes de apoio aos mais carenciados?
  • “Que devemos fazer?” – perguntam os publicanos a João Batista. “Não exijais nada além do que vos foi prescrito” – responde-lhes o profeta. Sabemos que muitos, no nosso mundo, conduzidos pela ambição desmedida e pela falta de escrúpulos, continuam a apostar no enriquecimento rápido, na acumulação de riqueza à margem de todas as regras e de toda a moral. Que diria hoje João àqueles que especulam com bens de primeira necessidade, aproveitando as carências dos seus irmãos para acumular mais e mais? Que diria hoje João àqueles que cobram taxas excessivas pelos serviços prestados? Que diria hoje João àqueles que fogem aos impostos, prejudicando a comunidade e defraudando o bem comum? Que diria hoje João àqueles que branqueiam dinheiro sujo, muitas vezes ao serviço de interesses criminosos e imorais? Que diria João àqueles que se deixam envolver em esquemas de corrupção e de mentira? Será possível prejudicar conscientemente um irmão ou a comunidade inteira e acolher, com o coração tranquilo, “o Senhor que vem”?
  • “E nós, que devemos fazer? – perguntam os soldados a João Batista. “Não pratiqueis violência com ninguém nem denuncieis injustamente; e contentai-vos com o vosso soldo” – responde-lhes João. Ora, em pleno séc. XXI a violência continua a manchar de sofrimento e de sangue a nossa história. Que diria hoje João àqueles que escolhem a violência e a guerra como forma de resolver os diferendos entre as nações? Que diria João àqueles que matam indiscriminadamente, muitas vezes em nome de Deus ou de ideais pretensamente elevados? Que diria João àqueles que usam a violência para satisfazer a sua ambição ou os seus interesses pessoais? Que diria João àqueles que, dentro dos muros das suas casas, têm atitudes de prepotência, de despotismo, de tirania sobre aqueles que fazem parte da sua família? Que diria João àqueles que exploram os seus trabalhadores, lhes recusam um salário justo, ou escravizam imigrantes estrangeiros? Que diria João àqueles que, nos tribunais, nas repartições públicas, nas receções das nossas igrejas, tratam os outros com sobranceria ou arrogância? Sentimos que o apelo de João nos diz respeito, de alguma maneira?
  • Jesus veio batizar no Espírito Santo e no fogo. Ora, nós recebemos esse batismo. No momento da nossa adesão a Jesus renunciamos ao pecado e acolhemos o Espírito vivificador, esse Espírito que animava Jesus e que o impulsionava para dar testemunho do Reino. Temos vivido de forma coerente com o batismo que recebemos? Deixamo-nos conduzir pelo Espírito e produzimos frutos bons, frutos do Espírito? Somos testemunhas e arautos de um mundo mais fraterno, mais humano, mais pacífico? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura constitui-se como um convite à alegria, dirigido pelo profeta Sofonias a Jerusalém. Este convite está fundamentado nesta certeza consoladora: «o Senhor teu Deus está no meio de ti». A proclamação deve ter em conta o tom alegre que marca a leitura, tirando proveito das formas verbais no imperativo: clama, solta, exulta, rejubila.

O mesmo tom alegre e exortativo está presente na segunda leitura. Uma especial atenção deve ser dada ao início da leitura, de modo que o imperativo «alegrai-vos» repetido duas vezes e o advérbio de modo «novamente» tenham a força que transmitem, pois marcam o tom de toda a leitura

 

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria – Ano C – 08.12.2024

Nota inicial

Segundo a ordem de precedência indicada na tabela dos dias litúrgicos, os Domingos do Advento têm precedência sobre todas as solenidades, devendo aquelas que ocorrem nesses domingos ser transferidas para a segunda-feira seguinte. É o que deveria acontecer este ano com a solenidade da Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria. Porém, pelo significado desta solenidade em Portugal, a Comissão Episcopal de Liturgia obteve da Congregação do Culto Divino permissão para a celebrar no dia próprio, 8 de dezembro, com as seguintes condições: 1) «que, na Missa, a II Leitura seja a do domingo II do Advento; 2) que se faça menção deste domingo na homilia; 3) que a oração conclusiva da oração dos fiéis seja a oração coleta do mesmo domingo».

 

Viver a Palavra

Percorrendo o itinerário de Advento, somos convidados a colocar o nosso olhar em Maria, a Imaculada Conceição. Apesar dos Domingos do Advento terem precedência sobre todas as solenidades, dado o significado desta solenidade para Portugal, celebramos, neste segundo Domingo de Advento, a Imaculada Conceição da Virgem Santa Maria.

Celebrar esta solenidade não significa fazer uma pausa no Tempo de Advento, mas viver este tempo ao jeito de Maria que, visitada por Deus, se deixa surpreender pelas maravilhas do Seu amor e se disponibiliza totalmente para aquilo que Deus quer realizar nela. Este tempo litúrgico que nos prepara para a celebração do Natal do Senhor é o tempo da espera alegre e confiante do Deus que em Jesus Cristo nos visita e que nos convida a ser instrumentos do Seu amor e da Sua graça para que Ele possa continuar a escrever em cada tempo e em cada lugar a história da salvação.

Deus visita-nos! Vem ao nosso encontro! Por isso, continua a ressoar no tempo e na história a primeira pergunta que Deus dirige à humanidade: «Onde estás?». E nós? Como respondemos a este Deus que nos procura? Adão, procurado por Deus, esconde-se, porque estava nu, porque reconhecia a sua fragilidade e o seu pecado. Tem vergonha de se apresentar diante de Deus porque reconhece a sua pequenez. Como Adão, também nós reconhecemos a nossa fragilidade e o nosso pecado e temos vergonha da nudez que revela as nossas fraquezas e misérias.

Porém, ao celebrar a solenidade da Imaculada Conceição, somos convidados a colocar o olhar na Jovem de Nazaré, que com toda a certeza, vivia cheia dos sonhos e projetos próprios da sua idade e que, visitada por Deus, não esconde o receio e a perplexidade: «como será isto, se eu não conheço homem?». Maria reconhece-se pequena para o projeto grandioso que o Anjo lhe comunica. Contudo, visitada por Deus, Maria não se esconde, mas coloca a sua vida nas mãos de Deus e disponibiliza-se totalmente: «Eis a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra».

A nossa fragilidade e o nosso pecado não são um obstáculo à misericórdia de Deus nem um impedimento para que Deus realize em nós a Sua obra. A vocação de cada um de nós não é um mero desenvolvimento ou potenciamento das nossas capacidades e qualidades, mas o caminho através do qual nos disponibilizamos para o acontecer de Deus nas nossas vidas: «o Espírito Santo virá sobre ti e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra».

É o Espírito Santo que conduz a história e que opera em nós a obra de Deus. Nós somos convidados a colocar a nossa confiança em Deus e a abrir o nosso coração à Sua vontade. Somos convidados a superar os nossos medos e receios e, à pergunta «Onde estás?», colocada a Adão e a cada um de nós, somos chamados a responder com a generosidade e a disponibilidade de Maria. Somos desafiados a fazer o itinerário que nos conduz do medo à disponibilidade, do pecado e da fragilidade que nos envergonha e nos faz esconder, ao perdão recebido que nos faz partir na aventura do amor. «A Deus nada é impossível» e também não será para cada um de nós, se nos abandonarmos totalmente nas mãos Daquele que torna possíveis os impossíveis da nossa vida. in Voz Portucalense.

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Com o Tempo de Advento damos início a um novo Ano Litúrgico – Ano C – onde seremos acompanhados pelo evangelista Lucas. Tendo em vista a formação bíblica dos fiéis e a importância do conhecimento da Sagrada Escritura como Palavra que ilumina a vida dos batizados, o contexto do início do Ano Litúrgico pode ser uma oportunidade para um encontro ou até vários encontros, integrados na dinâmica de Advento, sobre o Evangelista deste ano litúrgico.

Como se diz acima, durante todo este ano litúrgico – 2024/2025 -, acompanhamos o evangelista Lucas em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação complementar, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Lucas.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra e, também, num separador próprio, da página da paróquia de Vilar de Andorinho, ficará disponível um texto sobre o evangelista Lucas. Poderão melhorar os conhecimentos bíblicos –Novo Testamento e Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

 

LEITURA I – Génesis 3,9-15.20

Depois de Adão ter comido da árvore,
o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe: «Onde estás?»
Ele respondeu:
«Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim
e, como estava nu, tive medo e escondi-me».
Disse Deus:
«Quem te deu a conhecer que estavas nu?
Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?»
Adão respondeu:
«A mulher que me destes por companheira
deu-me do fruto da árvore e eu comi».
O Senhor Deus perguntou à mulher:
«Que fizeste?»
E a mulher respondeu:
«A serpente enganou-me e eu comi».
Disse então o Senhor à serpente:
«Por teres feito semelhante coisa,
maldita sejas entre todos os animais domésticos
e entre todos os animais selvagens.
Hás de rastejar e comer do pó da terra
todos os dias da tua vida.
Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher,
entre a tua descendência e a descendência dela.
Esta te esmagará a cabeça
e tu a atingirás no calcanhar».
O homem deu à mulher o nome de ‘Eva’,
porque ela foi a mãe de todos os viventes.

CONTEXTO

O relato javista de Gn 2,4b-3,24 sobre as origens da vida e do pecado (ao qual pertence o texto que hoje nos é proposto como primeira leitura) é um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante e vivo e parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes.

Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem realista de acontecimentos passados na aurora da humanidade. O seu autor não pretende deixar-nos uma informação factual sobre algo que ele viu ou que lhe contaram; mas está a dizer-nos, com a linguagem do homem de fé, que na origem da vida e dos seres humanos está Deus; e que na origem do mal e do pecado estão as opções erradas que todos os dias os homens fazem. Trata-se, portanto, de uma página de catequese.

Esta longa reflexão sobre as origens da vida e do mal que desfeia o mundo está estruturada num esquema tripartido, com duas situações claramente opostas e uma realidade central que aparece como charneira e ao redor da qual giram a primeira e a terceira parte… Na primeira parte (cf. Gn 2,4b-25), o autor descreve a criação do paraíso e do homem; apresenta a criação de Deus como um espaço ideal de felicidade, onde tudo é bom e o homem vive em comunhão total com o criador e com as outras criaturas. Na segunda parte (cf. Gn 3,1-7), o autor descreve o pecado do homem e da mulher; mostra como as opções erradas do homem introduziram na comunhão do homem com Deus e com o resto da criação fatores de desequilíbrio e de morte. Na terceira parte (cf. Gn 3,8-24), o autor apresenta o homem e a mulher confrontados com o resultado das suas opções erradas e as consequências que daí advieram, quer para o homem, quer para o resto da criação.

Na perspetiva do catequista javista, Deus criou o homem para a felicidade… Então, pergunta ele, como é que hoje conhecemos o egoísmo, a injustiça, a violência que destroem o mundo e a felicidade do homem? A resposta é: algures na história humana, o homem que Deus criou livre e feliz fez escolhas erradas e introduziu na criação boa de Deus dinamismos de sofrimento e de morte.

O nosso texto integra a terceira parte do tríptico. Adão e Eva – que representam os homens e as mulheres de todas as épocas, ávidos de autossuficiência e de liberdade absoluta – tinham tomado a opção de ir contra as indicações de Deus (cf. Gn 3,1-7). Agora, sentindo-se culpados, escondem-se envergonhados “por entre o arvoredo do jardim” (Gn 3,8b).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O mal é uma realidade omnipresente, que a cada instante enche de sombras a história do mundo e a vida dos homens. Apresenta-se na forma de egoísmo, de arrogância, de mentira, de opressão, de injustiça, de violência. Impede-nos de desfrutar de uma vida harmoniosa, pacífica, fecunda, verdadeiramente feliz e realizada. Quando o mal nos fere, sentimos incompreensão, frustração, desânimo, acusação, revolta… Magoados e indignados, reagimos de forma intempestiva e irracional. Por vezes culpamos Deus e acusámo-lo de não se importar connosco, de deixar que o mal se imponha e deixe feridas irreparáveis nas nossas vidas. Ao culpar Deus, estaremos a ser justos e razoáveis? A catequese bíblica garante-nos que o mal não vem de Deus e que Deus não se conforma com o mal. Deus criou-nos para a vida e fez tudo para que não nos tornássemos prisioneiros do mal. Deus ama-nos com um amor sem igual e só quer o nosso bem. Desde o início da história humana mostrou-nos, com paciência infinita, quais os caminhos que devíamos percorrer para chegar à vida plena. Faz algum sentido culparmos Deus, de alguma forma, pelo mal que desfeia o mundo e que traz sofrimento à nossa vida?
  • A catequese bíblica ensina, também, que o mal resulta das nossas escolhas erradas, do nosso orgulho, da nossa arrogância, do nosso egoísmo e autossuficiência. Quando o homem escolhe ignorar as propostas de Deus e prescindir do amor, passa a construir a sua vida à volta dos seus projetos pessoais e dos seus interesses egoístas. O resultado de tudo isso traduz-se em injustiças, prepotências, mentiras, pecado… Não teremos, nós também, a nossa quota parte de responsabilidade no imenso caudal de mal que sufoca o mundo e afoga os homens? Procuramos conduzir a nossa vida de acordo com as propostas de Deus e seguir as indicações que Ele nos dá, ou preferimos fazer as nossas escolhas pessoais, à margem de Deus e até mesmo contra Deus?
  • A opção por caminhos de egoísmo e de pecado, contra as indicações de Deus, leva-nos ao confronto com os outros homens e mulheres que “viajam” ao nosso lado. Quando nos erigimos em centro e referência de tudo, os outros deixam de ser irmãos, para passarem a ser uma ameaça ao nosso bem-estar, à nossa segurança, ao nosso comodismo, aos nossos interesses pessoais. De tudo isso resulta o conflito, a violência, a exploração, a injustiça; criamos barreiras que nos separam uns dos outros; cortamos as pontes de entendimento e de colaboração; riscamos a fraternidade do dicionário da nossa vida; destruímos a união e a comunhão que nos deviam unir. Como é que nos situamos face aos meus irmãos? Como é que nos relacionamos com aqueles que são diferentes, que invadem o nosso espaço, que atrapalham os nossos interesses, que nos questionam e nos interpelam?
  • O nosso egocentrismo, além de afetar a nossa relação com os outros homens e mulheres, também afeta a nossa relação com o resto da criação. Quando só os nossos interesses pessoais comandam as nossas decisões e ações, a natureza deixa de ser a casa comum que Deus ofereceu a todos os homens como espaço de vida e de felicidade, para se tornar algo que usamos e exploramos em nosso proveito, sem considerar a sua dignidade, beleza e grandeza. O que é que a criação de Deus significa para nós: algo que podemos usar e explorar de forma egoísta, ou algo que Deus ofereceu a todos os homens e mulheres – inclusive àqueles que hão de vir depois de nós – e que devemos respeitar, guardar e cuidar com amor? in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)

Refrão: Cantai ao Senhor um cântico novo:
o Senhor fez maravilhas.

 

Cantai ao Senhor um cântico novo,
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação
revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade
em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.

 

LEITURA II – Filipenses 1,4-6.8-11

Irmãos:
Em todas as minhas orações,
peço sempre com alegria por todos vós,
recordando-me da parte que tomastes na causa do Evangelho,
desde o primeiro dia até ao presente.
Tenho plena confiança
de que Aquele que começou em vós tão boa obra
há de levá-la a bom termo até ao dia de Cristo Jesus.
Deus é testemunha
de que vos amo a todos no coração de Cristo Jesus.
Por isso Lhe peço que a vossa caridade
cresça cada vez mais em ciência e discernimento,
para que possais distinguir o que é melhor
e vos torneis puros e irrepreensíveis para o dia de Cristo,
na plenitude dos frutos de justiça
que se obtêm por Jesus Cristo,
para louvor e glória de Deus.

CONTEXTO

A cidade de Filipos, situada na Macedónia oriental, era uma cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador. Gozava dos mesmos privilégios das cidades de Itália e os seus habitantes tinham cidadania romana. Paulo chegou a Filipos pelo ano 49 ou 50, no decurso da sua segunda viagem missionária, acompanhado de Silvano, Timóteo e Lucas (cf. At 16,1-40). Da sua pregação nasceu a primeira comunidade cristã em solo europeu.

A comunidade cristã de Filipos era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2Cor 8,1-5). Paulo nutria pelos cristãos de Filipos um afeto especial; e os filipenses, por seu turno, tinham Paulo em grande apreço. Apesar de tudo, a comunidade cristã de Filipos não era perfeita: os altivos patrícios romanos de Filipos tinham alguma dificuldade em assumir certos valores como o desprendimento, a humildade e a simplicidade.

Paulo escreve aos Filipenses numa altura em que estava na prisão (não sabemos se em Cesareia, em Roma, ou em Éfeso). Os filipenses tinham-lhe enviado, por um membro da comunidade chamado Epafrodito, uma certa quantia em dinheiro, a fim de que Paulo pudesse prover às suas necessidades. Na carta, Paulo agradece a preocupação dos filipenses com a sua pessoa (cf. Flp 4,10-20); exorta-os a manterem-se fiéis ao Evangelho de Jesus e a incarnarem os valores que marcaram a vida de Cristo (“tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus” – Flp 2,5).

O texto que a liturgia deste segundo domingo do advento nos propõe é, praticamente, o início da Carta aos Filipenses. Depois de saudar “os santos em Cristo Jesus que estão em Filipos” (Flp 1,1), Paulo manifesta aos seus amigos de Filipos o apreço que eles lhe merecem e as expetativas que tem em relação à comunidade cristã da cidade. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Em tempo de advento, a liturgia convida-nos a olhar para uma comunidade cristã que espera a vinda do Senhor: a comunidade cristã da cidade de Filipos. Como qualquer comunidade cristã, não é uma comunidade perfeita: continua a ter necessidade de crescer sempre mais no caminho que leva à santidade; mas é uma comunidade comprometida, empenhada, generosa, que sabe que é chamada por Deus, enquanto caminha na história, a viver de forma coerente com o Evangelho que acolheu. Como é que, nas nossas comunidades cristãs, se vive este tempo de espera do Senhor? Este tempo poderá ser, para as nossas comunidades cristãs, um tempo de purificação, de conversão, de discernimento dos desafios de Deus, de renovação da fé e do compromisso, de reforço da caridade, da generosidade, da partilha, do perdão, do entendimento?
  • A comunidade cristã de Filipos é uma comunidade que se interessa pela obra da evangelização. O apoio que dá a Paulo não resulta apenas de um sentimento de gratidão pessoal para com um apóstolo que trouxe à cidade de Filipos a Boa nova de Jesus; mas traduz o compromisso daquela Igreja com o esforço de evangelização que o missionário Paulo, na linha da frente do combate pelo anúncio do Evangelho, leva a cabo. Os cristãos de Filipos entenderam que a Igreja é missionária (“Ide pelo mundo e anunciai o Evangelho a toda a criatura” – Mc 16,15); e sentem que é ser dever participar da missão. As nossas comunidades cristãs sentem este imperativo missionário? Sentem a necessidade de fazer Jesus nascer para todos os povos? Estão atentas às necessidades e são solidárias com aqueles que dão a sua vida à causa do anúncio de Jesus? É com ternura e carinho que, nas nossas comunidades cristãs, se acolhem os que anunciam o Evangelho – os catequistas das crianças, dos jovens, dos adultos?
  • É possível que tenhamos queixas da Igreja e que não nos revejamos em algumas afirmações e testemunhos de pessoas que são referência na comunidade cristã; é possível que não nos identifiquemos com certas formas de celebrar a fé, ou com algumas atitudes de falta de misericórdia e de caridade que acontecem dentro dos espaços das nossas igrejas; é possível que nos sintamos desiludidos com a forma como, muitas vezes, os cristãos incarnam na história o testemunho de Jesus… Mas, em termos pessoais, estará cada um de nós a fazer tudo o que está ao seu alcance para que a nossa comunidade cristã seja a casa da comunhão, da fraternidade, do entendimento, da caridade? Neste tempo de espera do Senhor, que contributo podemos pessoalmente dar para que a nossa comunidade cristã se torne uma “casa” onde Jesus tem lugar? in Dehonianos.

EVANGELHO Lucas 1,26-38

Naquele tempo,
o Anjo Gabriel foi enviado por Deus
a uma cidade da Galileia chamada Nazaré,
a uma Virgem desposada com um homem chamado José.
O nome da Virgem era Maria.
Tendo entrado onde ela estava, disse o anjo:
«Ave, cheia de graça, o Senhor está contigo».
Ela ficou perturbada com estas palavras
e pensava que saudação seria aquela.
Disse-lhe o Anjo:
«Não temas, Maria,
porque encontraste graça diante de Deus.
Conceberás e darás à luz um Filho,
a quem porás o nome de Jesus.
Ele será grande e chamar-Se-á Filho do Altíssimo.
O Senhor Deus Lhe dará o trono de seu pai David;
reinará eternamente sobre a casa de Jacob
e o seu reinado não terá fim».
Maria disse ao Anjo:
«Como será isto, se eu não conheço homem?»
O Anjo respondeu-lhe:
«O Espírito Santo virá sobre ti
e a força do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra.
Por isso, o Santo que vai nascer será chamado Filho de Deus.
E a tua parenta Isabel concebeu também um filho na sua velhice
e este é o sexto mês daquela a quem chamavam estéril;
porque a Deus nada é impossível».
Maria disse então:
«Eis a escrava do Senhor;
faça-se em mim segundo a tua palavra».

CONTEXTO

O texto que nos é hoje proposto pertence ao chamado “Evangelho da Infância”. Ora, os “Evangelhos da Infância de Jesus (quer o de Mateus, quer o de Lucas) enquadram-se num género literário próprio, que recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de leitura e de interpretação do texto sagrado usada pelos rabis judeus) para nos apresentar o mistério de Jesus. A preocupação dos evangelistas que nos legaram os “Evangelhos da Infância” não é apresentar um relato factual dos acontecimentos dos primeiros anos de Jesus, mas sim oferecer às suas comunidades uma catequese que proclame determinadas realidades (que Jesus é o Messias, que Ele vem de Deus, que Ele é o “Deus connosco”). Com recurso a tipologias (correspondência entre certos factos e pessoas do Antigo Testamento, e outros factos e pessoas do Novo Testamento), a manifestações apocalípticas (anjos, aparições, sonhos) e a outros recursos literários, Mateus e Lucas tecem as suas catequeses sobre Jesus, o Filho de Deus que veio ao encontro dos homens. O Evangelho que nos é hoje proposto deve ser entendido a esta luz e neste enquadramento.

A cena situa-nos numa aldeia da Galileia, chamada Nazaré. A Galileia, região a norte da Palestina, à volta do Lago de Tiberíades, era considerada pelos judeus uma terra longínqua e estranha, em permanente contacto com as populações pagãs e onde se praticava uma religião heterodoxa, influenciada pelos costumes e pelas tradições pagãs. Daí a convicção dos mestres judeus de Jerusalém de que “da Galileia não pode vir nada de bom”. Quanto a Nazaré, era uma aldeia pobre e ignorada, nunca nomeada na história religiosa judaica e, portanto (de acordo com a mentalidade judaica), completamente à margem dos caminhos de Deus e da salvação.

Maria, a jovem de Nazaré que está no centro deste episódio, era “uma virgem desposada com um homem chamado José”. O casamento hebraico considerava o compromisso matrimonial em duas etapas: havia uma primeira fase, na qual os noivos se prometiam um ao outro (os “esponsais”); só numa segunda fase surgia o compromisso definitivo (as cerimónias do matrimónio propriamente dito). Entre os “esponsais” e o rito do matrimónio, passava um tempo mais ou menos longo, durante o qual qualquer uma das partes podia voltar atrás, ainda que sofrendo uma penalidade. Durante os “esponsais”, os noivos não viviam em comum; mas o compromisso que os dois assumiam tinha já um carácter estável, de tal forma que, se surgia um filho, este era considerado filho legítimo de ambos. A Lei de Moisés considerava a infidelidade da “prometida” como uma ofensa semelhante à infidelidade da esposa (cf. Dt 22,23-27). E a união entre os dois “prometidos” só podia dissolver-se com a fórmula jurídica do divórcio. José e Maria estavam, portanto, na situação de “prometidos”: ainda não tinham celebrado o matrimónio, mas já tinham celebrado os “esponsais”. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O mal de que falava a primeira leitura desta solenidade, constituirá uma inevitabilidade? Estaremos condenados a fazer escolhas erradas, a não fazer caso das indicações de Deus? A verdade é que, desde o primeiro instante da nossa existência, integramos a família humana, uma família onde o pecado existe. Fazendo parte dessa família, estamos marcados e até mesmo condicionados por essa realidade. Resta-nos encolher os ombros, com fatalismo, invocar como desculpa a nossa fragilidade e resignar-nos á mediocridade? Hoje somos convidados a olhar para Maria de Nazaré, aquela que a Igreja chama a “Imaculada Conceição”. Ao contrário de Adão e Eva, ao contrário de todos os homens e mulheres que cedem à tentação de dizer “não” às indicações de Deus, ela ousou dizer “sim” a Deus. Mostrou-se disponível – não apenas num momento particular, mas em toda a sua vida – para deixar em segundo plano os seus projetos pessoais e para abraçar os planos de Deus. Maria de Nazaré mostrou-nos que é possível fazer escolhas acertadas; mostrou-nos que é possível não nos deixarmos submergir pelo egoísmo e pela autossuficiência. O que significa Maria de Nazaré, a “Imaculada Conceição”, para nós? Ela é apenas a “mãe de Deus e nossa mãe do céu”, por quem temos muita devoção, ou é também – e sobretudo – uma referência de vida, aquela que nos ensina a dizer “sim” a Deus e aos seus projetos?
  • Deus tem, desde sempre, um projeto de salvação e de graça para os seus queridos filhos e filhas. Como é que Deus intervém na história humana e concretiza, dia a dia, a sua oferta de salvação? A história de Maria de Nazaré (bem como a de tantos outros “chamados”) responde, de forma clara, a esta questão: é através de homens e mulheres atentos aos projetos de Deus e de coração disponível para o serviço dos irmãos que Deus atua no mundo, que Ele manifesta aos homens o seu amor, que Ele convida cada pessoa a percorrer os caminhos da felicidade e da realização plena. Já pensámos que é através dos nossos gestos de amor, de partilha e de serviço que Deus Se torna presente no mundo e transforma o mundo?
  • Outra questão é a dos “instrumentos” de que Deus se serve para realizar os seus planos… Maria era uma jovem mulher de uma aldeia obscura dessa “Galileia dos pagãos” de onde não podia “vir nada de bom”. Não consta que tivesse uma significativa preparação intelectual, profundos conhecimentos teológicos, ou amigos poderosos nos círculos de poder e de influência da Palestina de então. Apesar disso, foi escolhida por Deus para desempenhar um papel primordial na etapa mais significativa na história da salvação. A história vocacional de Maria deixa claro que, na perspetiva de Deus, não são o poder, a riqueza, a importância ou a visibilidade social que determinam a capacidade para levar a cabo uma missão. Deus age através de homens e mulheres, independentemente das suas qualidades humanas. O que é decisivo é a disponibilidade e o amor com que se acolhem e testemunham as propostas de Deus. Estamos disponíveis – apesar da nossa pequenez, fragilidade e indignidade – para sermos colaboradores de Deus e testemunhas da sua salvação no meio dos nossos irmãos e irmãs?
  • É possível alguém entregar-se tão cegamente a Deus, sem reservas, sem medir os prós e os contras? Como é que se chega a esta confiança incondicional em Deus e nos seus projetos? Naturalmente, não se chega a esta confiança cega em Deus e nos seus planos sem uma vida de diálogo, de comunhão, de intimidade com Deus. Maria de Nazaré foi certamente uma mulher para quem Deus ocupava o primeiro lugar e era a prioridade fundamental. Maria de Nazaré foi seguramente uma pessoa de oração e de fé, que fez a experiência do encontro com Deus e aprendeu a confiar totalmente n’Ele. No meio da agitação de todos os dias, encontramos tempo e disponibilidade para ouvir Deus, para viver em comunhão com Ele, para tentar perceber os seus sinais nas indicações que Ele nos dá?in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura é composta pelo diálogo entre Deus e o primeiro casal humano. Deste modo, a proclamação desta leitura deve ter o cuidado de articular bem o discurso direto entre as diversas intervenções com uma especial atenção para as frases interrogativas.

A segunda leitura apresenta frases longas com diversas orações, requerendo uma acurada preparação nas pausas e respirações para que o texto seja bem proclamado.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Domingo I do Tempo do Advento – Ano C – 01.12.2024

Viver a Palavra

O texto do Evangelho para este Domingo, começa por evocar os sinais presentes «no sol, na lua e nas estrelas» e descreve o modo como «as forças celestes serão abaladas». Os astros são o relógio cósmico a partir do qual a humanidade ritma o seu tempo e constrói a sucessão dos dias e dos anos: calculamos os anos da nossa vida pelas voltas dadas ao sol; os navegadores desbravaram os mares e chegaram a terras desconhecidas guiados pelos astros; os agricultores ao ritmo das fases da lua encontram o tempo mais favorável para as suas plantações e as suas colheitas. O anúncio da queda e abalo das forças celestes atemoriza e aterroriza, pois parece fazer ruir lugares onde encontramos o ritmo da vida e a orientação do caminho. Contudo, o anúncio, aparamente dramático, proclamado por Jesus, é acompanhado pela certeza de que tudo isto acontecerá acompanhado pela visão do Filho do Homem que virá numa nuvem com grande poder e glória. Desmoronam os relógios humanos e os ritmos marcados pelos astros celestes, para darem lugar ao ritmo de Deus que deve marcar o passo da história.

A espera, que habita o coração de cada homem e de cada mulher, e, que faz sonhar um mundo novo e diferente, encontra realização e plenitude no advento de Deus, que vem ao nosso encontro com grande poder e glória. O tempo da nossa vida não pode limitar-se à contabilização dos dias e horas que nos são dadas viver, mas o saborear da presença de Deus que rasga horizontes novos e faz experimentar a verdadeira sabedoria que invoca o salmista: «ensina-nos a contar assim os nossos dias, para podermos chegar ao coração da sabedoria» (Sl 90,12).

Com o primeiro Domingo de Advento, damos início a um novo ano litúrgico que não é apenas uma organização sistemática e articulada das memórias, festas e solenidades, mas a celebração do Mistério de Cristo, que ilumina o tempo e a história, e nos ensina a arte de fazer dos dias que vivemos, o tempo onde Deus atua e realiza a Sua obra de amor.

O tempo de Advento é tempo de espera alegre e jubilosa. Não esperamos um autocarro atrasado em hora de ponta ou um comboio em dia de greve. A nossa espera não desespera, porque o nosso Deus cumpre a promessa feita aos nossos pais: «dias virão, em que cumprirei a promessa que fiz à casa de Israel e à casa de Judá».

O Senhor vem! Vem, porque já veio na fragilidade e debilidade da nossa natureza inaugurar os novos céus e a nova terra. Vem, porque virá um dia no esplendor da sua glória para estabelecer os novos céus e a nova terra de modo pleno, total e definitivo. Vem, porque continuamente se faz presente na vida de cada homem por meio de tantos sinais. Deste modo, o tempo de Advento é o tempo por excelência da vida cristã, porque nos situa entre a vinda primeira de Cristo e a vinda definitiva, ensinando-nos a arte de acolher cada dia como uma visita de Deus: «Esperar é um modo de chegares / Um modo de te amar dentro do tempo» (Daniel Faria).

Viver despertos e vigilantes aguardando a vinda do Senhor não é uma alienação, nem uma projeção dos nossos desejos mais íntimos, mas o único modo de atravessar a história, semeando a esperança que brota do coração de Deus e se revela em Jesus Cristo. É tempo de «nutrir a esperança de amanhã, curando a dor de hoje» (Papa Francisco), porque a esperança que nasce do Evangelho não consiste em esperar passiva e ingenuamente um amanhã em que tudo ficará bem, mas em tornar concreta hoje a promessa de salvação de Deus. in Voz Portucalense.

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Com o Tempo de Advento damos início a um novo Ano Litúrgico – Ano C – onde seremos acompanhados pelo evangelista Lucas. Tendo em vista a formação bíblica dos fiéis e a importância do conhecimento da Sagrada Escritura como Palavra que ilumina a vida dos batizados, o contexto do início do Ano Litúrgico pode ser uma oportunidade para um encontro ou até vários encontros, integrados na dinâmica de Advento, sobre o Evangelista deste ano litúrgico.

Como se diz acima durante todo este ano litúrgico – 2024/2025 -, acompanhamos o evangelista Lucas em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação complementar, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Lucas.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra e, também, num separador próprio, da página da paróquia de Vilar de Andorinho, ficará disponível um texto sobre o evangelista Lucas. Poderão melhorar os conhecimentos bíblicos –Novo Testamento e Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

 

LEITURA I – Jeremias 33,14-16

Eis o que diz o Senhor:
«Dias virão, em que cumprirei a promessa
que fiz à casa de Israel e à casa de Judá:
Naqueles dias, naquele tempo,
farei germinar para David um rebento de justiça
que exercerá o direito e a justiça na terra.
Naqueles dias, o reino de Judá será salvo
e Jerusalém viverá em segurança.
Este é o nome que chamarão à cidade:
‘O Senhor é a nossa justiça’». 

CONTEXTO

O profeta Jeremias nasceu no ano 650 a.C., em Anatot, uma pequena cidade situada nas proximidades de Jerusalém. A sua missão profética começou por volta de 627/626 a.C., e prolongou-se até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário geográfico da atividade de Jeremias é o reino do sul (Judá), e sobretudo a cidade de Jerusalém.

Podemos dividir o tempo de atividade profética de Jeremias em diversas fases. A primeira abrange parte do reinado do rei Josias. Este rei, apostado em defender a identidade nacional em todas as suas vertentes, promoveu uma grande reforma religiosa destinada a limpar do país o culto aos deuses estrangeiros. Jeremias, a partir de 626 a.C., envolveu-se nessa reforma, convidando os habitantes de Judá a converterem-se a Javé e a viverem na fidelidade à Aliança e aos mandamentos de Deus. Esta fase terminou quando, em 609 a.C., Josias foi morto em Megido, em combate contra os exércitos egípcios.

Depois de alguns meses de instabilidade, o trono de Judá foi ocupado por Joaquim (609-597 a.C.). Com Joaquim no trono, a infidelidade dos habitantes de Judá a Javé e à Aliança volta a estar na ordem do dia. Nesta nova fase, a voz profética de Jeremias soa novamente para denunciar as graves injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) e o abandono de Javé. Jeremias critica especialmente as alianças políticas que Joaquim procura fazer com outras nações, catalogando-as como infidelidade contra Deus: em lugar de confiar em Deus, Judá coloca a sua esperança e a sua segurança em exércitos estrangeiros. Convencido de que Judá não tem emenda e que Deus já não suporta mais o pecado do seu Povo, Jeremias anuncia a iminência de uma invasão babilónica, que irá castigar a nação pelos seus pecados. As previsões de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém. No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.).

Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças militares com o Egipto. Jeremias, uma vez mais, mostra o seu desacordo: a esperança de Judá deve estar em Javé e não em exércitos estrangeiros… Mas, nem o rei, nem os notáveis de Judá prestam qualquer atenção à opinião do profeta. Visto por toda a gente como um amargo “profeta da desgraça”, Jeremias apenas consegue criar o vazio à sua volta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe novamente cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

No livro de Jeremias, o texto que a liturgia deste primeiro domingo do advento nos propõe como primeira leitura é apresentado como um oráculo de Deus, confiado ao profeta quando a cidade de Jerusalém está cercada pelos babilónios e que o próprio Jeremias está detido no átrio da guarda, acusado de derrotismo e de traição (cf. Jr 33,1). Nesse cenário que parece sem saída, o profeta é convidado a proclamar, em nome de Javé, a chegada de um tempo novo, no qual Deus vai curar as feridas do seu Povo e proporcionar a Judá “abundância de paz e segurança” (Jr 33,6). A mensagem é tanto mais surpreendente quanto o futuro imediato parece sombrio e o próprio Jeremias é acusado de profetizar a destruição de Jerusalém e o exílio de Sedecias (cf. Jr 32,3-5).

No entanto, o mais provável é que este oráculo seja um texto tardio, redigido por um discípulo de Jeremias após o Exílio do Povo na Babilónia, com a finalidade de animar os judeus regressados do Exílio, desiludidos porque encontraram tudo destruído e um futuro incerto. A promessa de um “rebento de justiça”, da família de David, pretende ajudar os retornados do Exílio a recobrarem ânimo e a abrirem as portas à esperança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Cada tempo, cada século, tem os seus momentos de crise, os seus problemas, as suas angústias, os seus dramas. O nosso tempo também. Apercebemo-nos, hoje, que o nosso estilo de vida põe em causa o equilíbrio do planeta e o futuro da nossa civilização; constatamos, hoje, que a indiferença se tornou uma doença global, e que nos interessamos cada vez menos uns pelos outros; descobrimos, hoje, que ainda não aprendemos a viver fora de uma lógica de egoísmo e que essa lógica condena uma grande parte dos homens e mulheres que caminham ao nosso lado a uma vida sem recursos e sem esperança; verificamos, hoje, que continuamos a preferir a velha lógica da guerra e da violência para resolver os nossos diferendos e as nossas diferenças; reparamos, hoje, que todos os dias aumenta o imenso cortejo de homens e mulheres que são despojados da sua dignidade e que são abandonados nas margens do caminho que a humanidade vai percorrendo… Para onde caminhamos? Que história estamos a construir? É neste cenário que ecoa essa mensagem eterna que nos é apresentada na primeira leitura deste primeiro domingo do advento: Deus permanece fiel às suas promessas e não abandona os seus filhos. Ele vai enviar-nos – ou melhor, vai continuar a enviar-nos – “um rebento de justiça” que nos apontará o caminho e que nos ensinará a construir um mundo novo. Da nossa parte, estaremos disponíveis para o acolher? Estaremos dispostos a escutá-lo e a aceitar as suas indicações?
  • Jesus, o “rebento de justiça” da família de David, veio ao nosso encontro e mostrou-nos, com palavras e com gestos, os caminhos que devemos percorrer. Mas fez ainda mais: convidou-nos a integrar a comunidade do Reino de Deus e envolveu-nos na construção de um mundo mais justo, mais humano, pleno de harmonia e de paz. Como discípulos de Jesus, sentimo-nos comprometidos na construção desse mundo de justiça, de harmonia, de paz, de fraternidade, que Deus deseja para todos os seus filhos e filhas? Os nossos gestos, as nossas atitudes, as nossas palavras criam harmonia e entendimento, ou acrescentam agressividade, intolerância, confronto, revolta, sofrimento ao cenário onde nos movemos todos os dias?
  • O “profeta” que nos deixou a mensagem que a nossa primeira leitura nos apresenta foi capaz, numa época histórica difícil para si e para o seu povo, de não se deixar submergir pela onda de desânimo e de pessimismo que ameaçava os habitantes de Jerusalém. Ele estava absolutamente seguro de Deus: da sua bondade, do seu amor, da sua fidelidade; e por isso pôde oferecer aos seus irmãos uma mensagem que lhes abriu as portas da esperança. Confiamos em Deus, na sua presença na história dos homens, no seu cuidado de Pai, no seu interesse pelo bem de todos os seus filhos? Somos arautos e testemunhas da esperança no meio dos irmãos e irmãs que tropeçam no desespero e no desencanto?
  • Estamos a iniciar o tempo do “advento”. No nosso horizonte próximo está a vinda de Jesus. Ele, o “rebento de justiça” da família de David, vem ao nosso encontro para nos ajudar a vencer as nossas contradições e para nos ajudar a corrigir os passos mal andados que trazem sofrimento ao mundo e aos homens. A sua vinda será, portanto, um acontecimento feliz, que deve ser aguardado com alegria e com esperança. Como nos dispomos a viver este tempo de espera de Jesus? Será mais uma oportunidade que passa por nós sem nos tocar e transformar, ou será um tempo de verdadeira renovação, de verdadeiro compromisso, de verdadeiro encontro com Jesus? in Dehonianos.

 

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

Refrão: Para Vós, Senhor, elevo a minha alma.

 

Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.

O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer os seus caminhos.

Os caminhos do Senhor são misericórdia e fidelidade
para os que guardam a sua aliança e os seus preceitos.
O Senhor trata com familiaridade os que O temem
e dá-lhes a conhecer a sua aliança.

 

LEITURA II – 1 Tessalonicenses 3,12–4,2

Irmãos:
O Senhor vos faça crescer e abundar na caridade
uns para com os outros e para com todos,
tal como nós a temos tido para convosco.
O Senhor confirme os vossos corações
numa santidade irrepreensível,
diante de Deus, nosso Pai,
no dia da vinda de Jesus, nosso Senhor,
com todos os santos.
Finalmente, irmãos,
eis o que vos pedimos e recomendamos no Senhor Jesus:
recebestes de nós instruções
sobre o modo como deveis proceder para agradar a Deus,
e assim estais procedendo;
mas deveis progredir ainda mais.
Conheceis bem as normas que vos demos
da parte do Senhor Jesus.

CONTEXTO

No século I da nossa era, Tessalónica era a cidade mais importante da Macedónia. Porto marítimo e cidade de intenso comércio, era uma encruzilhada religiosa, na qual os cultos locais coexistiam lado a lado com todo o tipo de propostas religiosas vindas de todo o Mediterrâneo.

A cidade foi evangelizada por Paulo durante a sua segunda viagem missionária, muito provavelmente no Inverno dos anos 49-50. Paulo chegou a Tessalónica acompanhado por Silvano e Timóteo, depois de ter sido forçado a deixar a cidade de Filipos. O tempo de evangelização foi curto, talvez uns três meses; mas foi o suficiente para fazer nascer uma comunidade cristã numerosa e entusiasta, constituída maioritariamente por pagãos convertidos. No entanto, a obra de Paulo foi brutalmente interrompida pela reação da colónia judaica. Os judeus acusaram Paulo de agir contra os decretos do imperador e levaram alguns cristãos diante dos magistrados da cidade (cf. At 17,5-9). Paulo teve de deixar a cidade à pressa, de noite, indo para Bereia e, depois, para Atenas (cf. At 17,10-15).

Entretanto, Paulo tinha a consciência de que a formação doutrinal da comunidade cristã de Tessalónica ainda deixava muito a desejar. A jovem comunidade, fundada há pouco tempo e ainda insuficientemente catequizada, estava quase desarmada nesse contexto adverso de perseguição e de provação (cf. 1Ts 3,1-10). Preocupado, Paulo enviou Timóteo a Tessalónica, a fim de saber notícias e encorajar os tessalonicenses na fé (cf. 1Ts 3,2-5). Quando Timóteo voltou para apresentar o seu relatório, encontrou Paulo em Corinto. Confortado pelas informações dadas por Timóteo, o apóstolo decidiu escrever aos cristãos de Tessalónica, felicitando-os pela sua fidelidade ao Evangelho. Aproveitou também para esclarecer algumas dúvidas doutrinais que inquietavam os tessalonicenses e para corrigir alguns aspetos menos exemplares da vida da comunidade. A Primeira Carta aos Tessalonicenses é, com toda a probabilidade, o primeiro escrito do Novo Testamento. Apareceu na Primavera-Verão do ano 50 ou 51.

Os dois primeiros versículos do texto que hoje nos é proposto como segunda leitura (cf. 1Ts 3,12-13) encerram a primeira parte da Carta aos Tessalonicenses; mas os outros dois versículos (cf. 1Ts 4,1-2) já pertencem à segunda parte da mesma carta. No seu conjunto, podem ser entendidos como uma espécie de “voto”, através do qual Paulo augura aos cristãos de Tessalónica que possam crescer cada vez mais na fé e no compromisso com o Evangelho de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Começamos hoje a fazer o caminho do advento. Queremos que as próximas semanas sejam, para nós, um tempo favorável para prepararmos o encontro com o Senhor que vem. O que devemos fazer para que isso aconteça? Paulo deixa-nos, no texto da primeira Carta aos Tessalonicenses que a liturgia nos oferece como segunda leitura uma “dica” importante: enquanto esperamos a vinda do Senhor Jesus, devemos “crescer e abundar na caridade uns para com os outros e para com todos”. É um convite a sairmos de nós e a abrirmos o coração aos irmãos que caminham ao nosso lado; é um convite a não ficarmos indiferentes perante as dores e os sofrimentos daqueles que nos rodeiam; é um convite a cuidarmos daqueles que não têm voz, que não têm vez, que ficam abandonados na berma da estrada porque ninguém se lembra deles. Estamos disponíveis, neste advento, para nos convertermos ao amor?
  • Todas as vezes que nos reunimos para celebrar a eucaristia, somos convidados a rezar o “Pai nosso”, assumindo que Deus é o Pai de todos e que estamos ligados uns aos outros por laços fraternos. No entanto, nem sempre as nossas comunidades cristãs são a “casa da fraternidade” onde os irmãos se acolhem, se aceitam, se respeitam e se amam. Por vezes, deixamos que as quezílias, os ciúmes, as invejas, as maledicências, as vaidades pessoais se intrometam na comunidade e quebrem a comunhão e o entendimento fraterno. Talvez este tempo de advento possa ser um tempo para purificarmos a nossa fraternidade e construirmos comunidades onde se viva o amor “uns para com os outros e para com todos”. Estamos dispostos, neste tempo de advento, a fazer o que estiver ao nosso alcance para que as nossas comunidades cristãs deem ao mundo e aos homens um testemunho verdadeiro de fraternidade, de partilha, de comunhão?
  • Paulo lembra aos cristãos de Tessalónica que, enquanto peregrinarmos nesta terra, o caminho da santificação nunca está concluído. É um caminho sempre a fazer-se, que implica o compromisso, o esforço, a fidelidade a cada passo; é um caminho de conversão constante, nunca terminada. Estamos dispostos a aproveitar este tempo de advento para renovarmos a nossa vida, para redirecionarmos os nossos passos, para questionarmos as opções que temos vindo a fazer, para nos comprometermos mais e mais com o seguimento de Jesus e o testemunho do Evangelho? in Dehonianos.

EVANGELHO Lucas 21,25-28.34-36

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas
e, na terra, angústia entre as nações,
aterradas com o rugido e a agitação do mar.
Os homens morrerão de pavor,
na expectativa do que vai suceder ao universo,
pois as forças celestes serão abaladas.
Então, hão de ver o Filho do homem vir numa nuvem,
com grande poder e glória.
Quando estas coisas começarem a acontecer,
erguei-vos e levantai a cabeça,
porque a vossa libertação está próxima.
Tende cuidado convosco,
não suceda que os vossos corações se tornem pesados
pela intemperança, a embriaguez e as preocupações da vida,
e esse dia não vos surpreenda subitamente como uma armadilha,
pois ele atingirá todos os que habitam a face da terra.
Portanto, vigiai e orai em todo o tempo
para que possais livrar-vos de tudo o que vai acontecer
e comparecer diante do Filho do homem».

CONTEXTO

O Evangelho deste primeiro domingo do advento situa-nos em Jerusalém, num dos dias que precedem a prisão, condenação e morte de Jesus na cruz. O programa de Jesus, nestes dias, é sempre igual: de manhã dirige-se ao templo e passa aí o dia, “a ensinar”; ao final da tarde sai da cidade, atravessa o vale do Cedron e vai até ao Monte das Oliveiras, onde passa a noite (cf. Lc 21,37).  Esses dias também vão ser marcados por diversas controvérsias entre Jesus e os líderes judaicos. Depois do gesto profético da purificação do templo, tornado “covil de ladrões” pela cupidez dos negociantes (cf. Lc 19,45-48), Jesus foi questionado pelos sacerdotes, pelos doutores da Lei e pelos anciãos do povo sobre a sua autoridade (cf. Lc 20,1-8); e respondeu-lhes com a parábola dos vinhateiros homicidas, comparando-os a uns arrendatários de uma vinha que sempre se recusaram a dar ao seu senhor os frutos que lhe deviam. Os representantes do judaísmo oficial também discutiram com Jesus sobre o pagamento do tributo a César (cf. Lc 20,20-26) e sobre a ressurreição dos mortos (cf. Lc 20,27-40). Vai-se tornando cada vez mais clara a ideia de que a proposta de Jesus nunca será acolhida pelas autoridades religiosas de Israel. A cruz está, cada vez mais, no horizonte próximo de Jesus.

Num daqueles dias, ao retirar-se do templo para se dirigir para o Monte das Oliveiras, em resposta ao comentário dos discípulos sobre a beleza e a riqueza do templo, Jesus avisa que tudo isso que estão a contemplar e a admirar irá ser destruído (cf. Lc 21,5-6). Os discípulos, muito impressionados, pedem-lhe explicações (“mestre, quando sucederá isso? E qual será o sinal de que estas coisas estão para acontecer?” – Lc 21,7). Em resposta, Jesus deixa aos discípulos uma longa instrução que é conhecida como o “discurso escatológico” (cf. Lc 21,7-38).

Na versão do evangelista Lucas, o “discurso escatológico” de Jesus refere três momentos, ou temas, da história futura: a destruição de Jerusalém (que veio a concretizar-se no ano 70, quando as tropas romanas sob o comando de Tito tomaram Jerusalém e destruíram o templo), as vicissitudes que os discípulos irão enfrentar ao longo do seu caminho histórico e, por fim, a vinda definitiva do Filho do Homem. De acordo com o texto de Lucas, Jesus recorre, para falar de tudo isto, a imagens estereotipadas de que os pregadores escatológicos da época se serviam quando discorriam sobre o fim dos tempos. A finalidade de Lucas, ao oferecer-nos o “discurso escatológico de Jesus”, não é tanto descrever os acontecimentos da história futura dos homens, mas sim transmitir aos crentes – aos crentes da década de oitenta do primeiro século e aos crentes de todas as épocas – a força para viverem o seu compromisso com Jesus no meio das dificuldades, incompreensões e perseguições que a história os obrigará a enfrentar. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • No “discurso escatológico”, Jesus diz aos discípulos uma frase que poderia servir de mote para este “caminho de advento” que hoje começamos a percorrer: “erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima”. Jesus refere-se ao fim dos tempos, ao dia em que o “Filho do Homem” vier sobre as nuvens para dar início a um mundo novo, a um mundo transformado; mas a frase pode perfeitamente aplicar-se a cada “visita” de Deus, a cada vez que Jesus vem ter connosco, “veste” a nossa humanidade, se torna um de nós, nasce na nossa vida… Sim, a vinda de Jesus liberta-nos pois proporciona-nos o encontro cara a cara com o coração misericordioso e paternal de Deus; a vinda de Jesus liberta-nos pois traz-nos um convite irrecusável a dizermos não ao egoísmo que nos escraviza; a vinda de Jesus liberta-nos pois Ele, quando nos encontra, propõe-nos uma vida nova, uma vida com sentido, uma vida vivida em chave de amor. Nestes dias, à medida que preparamos o nosso coração para acolher Jesus, estamos a aproximar-nos da nossa libertação. O que podemos fazer para preparar a chegada de Jesus? O que temos de fazer, neste tempo, para acolher a nossa libertação?
  • “Erguei-vos e levantai a cabeça” – pede Jesus aos seus discípulos. Na verdade, muitas vezes não caminhamos, mas simplesmente arrastamo-nos pela vida, sem horizontes e sem esperança. O medo paralisa-nos, atira-nos ao chão, obriga-nos a escondermo-nos no nosso espaço protegido, à margem da vida e da luta dos homens; o ativismo cansa-nos de tal forma que a certa altura não temos mais forças para nos levantarmos da cama e começarmos a construir, cada manhã, um dia novo e um mundo novo; a desilusão pela forma como o mundo se vai construindo dá-nos vontade de nos isolarmos e desistirmos de qualquer esforço; as injustiças, as violências, as maldades que vemos crescer à nossa volta fazem-nos pensar que o mundo não tem saída… Baixamos a cabeça, conformamo-nos com a realidade de um mundo que nos parece um lugar cada vez mais assustador e renunciamos a desempenhar o nosso papel enquanto protagonistas da história. Ousaremos, neste tempo de advento, animados pela vinda de Deus, “levantar a cabeça”, olhar a vida olhos nos olhos, e assumir o papel que Deus nos destina na construção de um mundo mais justo, mais humano, mais feliz?
  • Jesus pede aos discípulos que esperem a sua vinda numa atitude de vigilância. Estar vigilante é estar atento a tudo o que se passa para intervir e atuar quando necessário; é olhar a vida e a história com sentido crítico, sabendo ler os sinais de Deus e respondendo, sem hesitações, aos desafios de Deus; é olhar continuamente à volta para identificar os pedidos de ajuda que nos chegam dos irmãos que caminham ao nosso lado. Significa não acomodação, não conformação, não cedência à preguiça ou ao egoísmo, não indiferença em relação ao mundo e aos homens. Estamos dispostos, neste advento, a reativar a nossa atitude de vigilância? Estamos dispostos, neste advento, a ficar mais atentos a Deus e às indicações que Ele nos vai dando? Estamos dispostos, neste advento, a “ver” e a dar resposta às necessidades e dificuldades dos homens e mulheres que nos rodeiam?
  • Jesus também pede aos seus discípulos que, enquanto O esperam, orem “em todo o tempo”. A oração torna-nos íntimos de Deus e aprofunda a nossa comunhão com Deus. No diálogo com Deus apercebemo-nos dos projetos que Ele tem para o mundo e para os homens, interessamo-nos por esses projetos e assumimo-los como nossos; no diálogo com Deus percebemos como atuar, como fazer as coisas, como sermos testemunhas e sinais de Deus no nosso mundo; no diálogo com Deus, colhemos as forças para vivermos de acordo com os valores de Deus e para sermos colaboradores d’Ele na construção do mundo. Dispomo-nos, neste advento, a encontrar momentos para falarmos com Deus, para o escutarmos, para lhe dizermos o que nos vai no coração?
  • No seu “discurso escatológico”, Jesus diz aos discípulos que há de vir no final dos tempos, de forma definitiva, sobre as nuvens do céu, “com grande poder e glória”. Só então o mal, o egoísmo, o pecado em todas as suas formas, serão definitivamente derrotados. Até lá, caminhamos na história, fiéis e vigilantes, de olhos postos nesse horizonte, com o coração batendo ao ritmo da esperança. Em tempo de advento, preparando a próxima vinda de Jesus ao nosso mundo e à nossa vida, somos convidados a olhar, de forma mais consciente e convicta, para o momento final da história, o momento em que a humanidade será definitivamente libertada. Sentimos que a próxima vinda de Jesus, no Natal do Senhor, prepara e anuncia a vinda definitiva do “Filho do Homem”, no final dos tempos, para inaugurar o novo céu e a nova terra onde os filhos e filhas de Deus encontrarão uma felicidade que não tem fim? in Dehonianos

 

Para os leitores:

O início do Ano Litúrgico constitui-se como uma pertinente oportunidade para uma formação de leitores acerca da temática e da estrutura das leituras deste novo Ano Litúrgico e de modo particular do evangelista que nos irá acompanhar.

A primeira leitura é o anúncio da promessa do Senhor pela voz de Jeremias. Por isso, pede-se especial atenção à introdução da leitura – Eis o que diz o Senhor – e uma proclamação com o tom da esperança e libertação que as palavras do Senhor oferecem.

Na segunda leitura, o texto deve expressar a dimensão exortativa com que Paulo se dirige aos Tessalonicenses.

 

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Domingo XXXIV do Tempo Comum – Ano B – 24.11.2024
Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo

Viver a Palavra

A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas, indicando que esta festa se celebrasse «em todas as partes da terra no último Domingo de Outubro, isto é, o Domingo precedente à Festa de Todos os Santos. Do mesmo modo, ordenamos, que neste mesmo dia, em cada ano, se renove a consagração de todo o Género Humano ao Sagrado Coração de Jesus, que o nosso Predecessor de santa memória, Pio X, ordenou que se repetisse anualmente». Com a reforma litúrgica esta festa passou a ser celebrada no último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo.

Depois dos tempos conturbados da Primeira Guerra Mundial, diante dos cenários de violência e destruição, o Papa Pio XI convida a contemplar Jesus Cristo, Rei do Universo, Senhor do Tempo e da História, o Príncipe da Paz que anunciou o Reino de Deus por meio de sinais e prodígios, para que diante dos reinados, soberanias e poderes passageiros deste mundo, irrompa a radical novidade de uma autoridade que se faz serviço e de um reinado que não tem fim, porque tem a marca do amor.

Os textos escolhidos para a celebração desta solenidade apontam para a novidade deste Reino instaurado por Jesus Cristo e, por isso, Aquele que proclamamos no Salmo Responsorial como Rei num trono de Luz, no texto do Evangelho, está diante de Pilatos para ser julgado.

Escutar neste dia um trecho do relato da Paixão do Evangelista S. João situa o reinado de Jesus no horizonte da Sua crucifixão e morte, recordando-nos que o nosso Rei, bem diferente dos reinos deste mundo, tem como trono uma Cruz e a Sua Coroa não é de ouro e pedras preciosas, mas de espinhos. Um Reino Novo que precisa de soldados que sejam verdadeiros discípulos missionários, isto é, homens e mulheres que impelidos pelo encontro único e irrepetível com Jesus Cristo, concebem a sua vida como construção do Reino de Amor e de Paz que Jesus veio anunciar.

Proclamar Jesus Cristo como Rei implica necessariamente confiar as nossas vidas nas Suas mãos, pois, na linguagem bíblica, reinar significa salvar, justificar, perdoar e criar. Jesus reina porque assumindo a nossa carne se entregou à morte por nosso amor e o Seu sangue derramado na Cruz salva e justifica, perdoa e recria, apontando-nos o caminho da conversão como caminho de realização e felicidade, porque de aperfeiçoamento e santidade.

Caminhar com Jesus para que no mundo se faça já presente este Reino, que será em plenitude no Céu, implica abraçar a nova lógica do Reino porque «este Reino não se identifica com os poderes triunfalistas que conhecemos, mas com os valores mais profundos do Evangelho. A moeda deste reino é a gratuidade, a bandeira é o amor, o hino é Evangelho e o exército é formado pelos humildes. As armas dão lugar aos braços para acolher, os muros transformam-se em pontes para unir. A diferença é estímulo para a comunhão e a linguagem comum é a força do Espírito».

Fascinados pelo amor que brota da Cruz de Cristo, façamos das nossas vidas um lugar de anúncio da nova lógica do Reino que se traduz num novo modo de ser e de estar, porque um novo modo de servir e amar. in Voz Portucalense.

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A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo, sendo o último Domingo do Ano Litúrgico, é uma oportunidade para dar graças a Deus pelo dom deste ano litúrgico que termina e invocar a bênção de Deus para o ano que se vai iniciar. Proclamando a realeza de Jesus Cristo como Senhor do tempo e da história, este Domingo deve ter a marca do louvor e ação de graças que pode traduzir-se no canto solene do Te Deum, hino litúrgico de louvor e de júbilo, agradecendo o dom da vida comunitária e de tantos batizados que corresponsáveis na missão colaboram e edificam a comunidade. in Voz Portucalense.

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Concluímos neste Domingo o ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

           No próximo Domingo iniciaremos um novo ciclo litúrgico – o Ano C.

Durante todo este novo ano litúrgico – 2024/2025 -, acompanhamos o evangelista S. Lucas em grande parte das proclamações do Evangelho

LEITURA I – Daniel 7,13-14

Contemplava eu as visões da noite,
quando, sobre as nuvens do céu,
veio alguém semelhante a um filho do homem.
Dirigiu-Se para o Ancião venerável
e conduziram-no à sua presença.
Foi-lhe entregue o poder, a honra e a realeza,
e todos os povos e nações O serviram.
O seu poder é eterno, não passará jamais,
e o seu reino não será destruído.

CONTEXTO

O livro de Daniel tem este nome, não por causa do seu autor, mas sim do seu protagonista. Daniel é apresentado, no livro, como um jovem judeu exilado na Babilónia, levado para a corte de Nabucodonosor e preparado para aí desempenhar cargos de algum relevo. Apesar da pressão social e das exigências do rei, Daniel nunca renegou a sua fé e os seus princípios: soube manter-se fiel a Deus, à religião tradicional e aos valores dos seus antepassados.

Na realidade, o livro de Daniel foi escrito na primeira metade do século II a.C., numa época em que o rei selêucida Antíoco IV Epífanes (reinou entre 174 e 164 a.C.) procurava impor, pela força, a cultura grega ao Povo de Deus. No entanto, as imposições de Antíoco IV Epífanes depararam-se com uma tenaz resistência, vinda sobretudo dos sectores mais tradicionais do judaísmo. Alguns judeus optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heroicos seguidores); outros, contudo, preferiram lutar contra a prepotência dos reis helénicos com a sua palavra e os seus escritos.

O Livro de Daniel foi composto neste cenário. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que é possível, mesmo em contexto de perseguição, manter a fidelidade aos valores tradicionais. Contando a história de Daniel, o jovem judeu exilado na Babilónia que soube manter a sua fé, o autor do Livro de Daniel pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. O desconhecido autor do livro de Daniel garante aos seus conterrâneos que Deus está do lado do seu Povo e que não deixará de recompensar aqueles que se mantiverem fiéis à Lei e aos mandamentos.

O texto que nos é proposto integra a segunda parte do Livro de Daniel (Dan 7,1-12,13). Aí o autor, recorrendo à “figura” da “visão”, apresenta-nos uma leitura profética da história, cuja finalidade é transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da sua fé.

Na primeira dessas “visões” (Dn 7,1-28), o autor do Livro apresenta “quatro grandes animais”, surgidos do mar: o primeiro “era semelhante a um leão” (Dn 7,4); o segundo era “semelhante a um urso” (Dn 7,5); o terceiro era “parecido com uma pantera” (Dn 7,6); o quarto era “horroroso, aterrador e de uma força excecional” e “tinha dez chifres”, embora lhe tivesse depois nascido um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como homem e uma boca que proferia palavras arrogantes” (Dn 7,7-8). Esses “quatro animais” evocam a sucessão dos impérios humanos… O primeiro seria o império neobabilónico, o segundo representaria o império dos medos, o terceiro referir-se-ia ao império persa e o quarto seria o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos. Os “dez chifres” desse quarto animal referem-se a dez reis selêucidas que herdaram parte do império de Alexandre; e o décimo primeiro chifre, mais pequeno do que os outros, seria, seguramente, Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo de Deus.

Em paralelo com o quadro histórico destes impérios – todos eles conotados com o mal, com o imperialismo, com a opressão, com a violência, com a perseguição ao Povo de Deus – o autor apresenta o tribunal de Deus. O supremo juiz (Deus) é “um ancião” com os cabelos e as vestes brancas “como a neve” (símbolo de pureza e retidão); está sentado num trono feito de chamas e é servido “por milhares e dezenas de milhares”. O tribunal decretou a morte do décimo primeiro chifre (Antíoco IV Epífanes): o seu corpo foi desfeito e atirado às chamas. Os “quatro animais” (os impérios do mal) foram privados do seu poder (Dn 7,9-12).

Derrotados os impérios que traziam sofrimento ao mundo e ao Povo de Deus, surge em cena uma nova figura. Os dois versículos que compõem a primeira leitura deste trigésimo quarto domingo comum (cf. Dn 7,13-14) descrevem precisamente a entrada em cena dessa figura que é “semelhante a um filho de homem”. in Dehonianos

 INTERPELAÇÕES

  • O texto que nos é proposto como primeira leitura na Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, faz parte de uma reflexão mais ampla sobre a história e sobre a forma como os impérios humanos se têm implantado e exercido o seu poder. Os reinos construídos pelos homens baseiam-se, frequentemente, num poder arrogante e são geradores de exploração, de violência, de escravidão, de sofrimento. Em pleno séc. XXI, este quadro mantém-se: a cada hora as nações e os blocos políticos e militares desenvolvem as suas estratégias imperialistas de conquista e de domínio, condenando milhões e milhões de homens e mulheres a viverem mergulhados numa espiral insuportável de violência e de morte. A humanidade estará, irremediavelmente, condenada a viver sob o domínio da arrogância, da opressão, da prepotência, de crueldade? Nunca nos libertaremos desse ciclo de morte? Deus assiste, indiferente e de braços cruzados, a esta dinâmica de violência e de violação dos direitos mais elementares dos povos e das nações? O autor do Livro de Daniel acredita que o reino do mal não será eterno e que Deus, a seu tempo, há de interromper a cadeia de brutalidade que oprime os seus filhos e os impede de viver em paz. Acreditamos que Deus não abandona o seu Povo em marcha pela história e saberá derrubar todos os poderes humanos que impedem a realização plena do homem? Estamos dispostos a trabalhar, ao lado de Deus, para que os impérios do mal não tomem conta do mundo? O que podemos fazer nesse sentido?
  • O anúncio de um “filho de homem” que virá “sobre as nuvens” para instaurar um reino que “não será destruído” leva-nos a Jesus. Ele veio ao encontro dos homens para lhes propor uma nova ordem, em que os pobres, os débeis, os fracos, os marginalizados, aqueles que não podem fazer ouvir a sua voz nos grandes areópagos internacionais não mais serão humilhados e espezinhados. Jesus, vestindo a pele de um “filho de homem”, introduziu na história uma nova lógica, substituindo a lógica do da arrogância, da prepotência, da ambição e do egoísmo, por uma lógica de amor, de serviço, de doação, de humanidade. É verdade que, mais de dois mil anos depois, o “reino” proposto por Jesus ainda não baniu do mundo, de forma definitiva, a violência e a maldade; contudo, esse “reino” está presente na vida do mundo, como uma semente a crescer ou como o fermento a levedar a massa. Como discípulos de Jesus, assumimos a missão de fazer nascer no nosso mundo e na nossa história o reino da verdade, da justiça e da paz? Procuramos ser testemunhas e arautos do mundo novo, do Reino de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 92 (93)

Refrão: O Senhor é rei num trono de luz.

O Senhor é rei,
revestiu-Se de majestade,
revestiu-Se e cingiu-Se de poder.

Firmou o universo, que não vacilará.
É firme o vosso trono desde sempre,
Vós existis desde toda a eternidade.

Os vossos testemunhos são dignos de toda a fé
a santidade habita na vossa casa
por todo o sempre.

 

LEITURA II – Apocalipse 1,5-8

Jesus Cristo é a Testemunha fiel,
o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra.
Àquele que nos ama e pelo seu sangue nos libertou do pecado
e fez de nós um reino de sacerdotes para Deus seu Pai,
a Ele a glória e o poder pelos séculos dos séculos. Amen.
Ei-l’O que vem entre as nuvens,
e todos os olhos O verão, mesmo aqueles que O trespassaram;
e por sua causa hão de lamentar-se todas as tribos da terra.
Sim. Amen.
«Eu sou o Alfa e o Ómega», diz o Senhor Deus,
«Aquele que é, que era e que há de vir,
o Senhor do Universo».

CONTEXTO

“Apocalipse” é uma palavra de origem grega que significa “manifestação de algo que está oculto”. O nosso “Livro do Apocalipse” – do qual é retirado o trecho da segunda leitura deste domingo – é um livro que se apresenta como uma “revelação” sobre “as coisas que brevemente devem acontecer” (Ap 1,1) e que um tal João, exilado na ilha de Patmos (uma pequena ilha do Mar Egeu) por causa da sua fé, tem por missão comunicar aos seus irmãos na fé. Essa “revelação” é endereçada a “sete igrejas” da província romana da Ásia (atual Turquia), às quais o autor se sentia especialmente ligado e cuja problemática conhecia bem.

Estamos na parte final do reinado do imperador Domiciano (à volta do ano 95). As comunidades cristãs da Ásia Menor vivem numa grave crise interna, resultante das heresias (como a dos nicolaítas, referida em Ap 2,6.15), da falta de entusiasmo, da tibieza, da indiferença, da acomodação. Por outro lado, a perseguição contra os cristãos, ordenada pelo imperador, tinha criado um clima de insegurança e de medo: muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados e outros, temendo pelas suas vidas, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava mesmo, como senhor todo-poderoso, era o imperador de Roma.

É neste contexto de crise, de perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o Apocalipse. O objetivo do autor é levar os crentes a revitalizarem o seu compromisso com Jesus e a não perderem a esperança. Nesse sentido, o autor do livro começa por fazer um convite à conversão (cf. Ap 1-3), convidando as “sete igrejas” a corrigirem as suas opções erradas e a revitalizarem a sua fé; passa, depois, a apresentar uma leitura profética da história humana, que promete a vitória final de Deus e dos seus fiéis sobre as forças do mal (cf. Ap 4-22). Estes conteúdos são apresentados com o recurso sistemático a símbolos e imagens (como é típico da literatura apocalíptica), o que torna este livro estranho e difícil, mas, ao mesmo tempo, muito belo e interpelante.

O texto da segunda leitura de hoje faz parte da “introdução” ao livro do Apocalipse (cf. Ap 1,1-8). Numa espécie de diálogo litúrgico entre um leitor e a comunidade reunida para escutar uma proclamação, os crentes são convidados a glorificar o Senhor Jesus, a vê-lo como o centro da história humana, a considerá-lo como a coordenada fundamental à volta da qual se estrutura e organiza toda a vida cristã. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Quase no final do séc. I, as comunidades cristãs do mundo greco-romano caminhavam sufocadas pelo medo. Domiciano, o imperador de Roma, tinha atribuído a si próprio o estatuto de dono do mundo e ordenara uma violenta perseguição contra a Igreja de Jesus. Os cristãos sentiam-se impotentes diante desse poder arrogante que nada parecia poder deter. É neste contexto que um “profeta”, exilado na ilha de Patmos por causa da sua fé, proclama corajosamente aos cristãos da Ásia Menor: “o senhor da História não é o imperador de Roma, mas sim Jesus, o nosso Salvador. Confiai n’Ele e no seu poder. Ele vem sobre as nuvens do céu para nos livrar da opressão e da violência dos líderes humanos que se arrogam o direito de definir os destinos do mundo e de determinar o sentido da História”. E os cristãos, destinatários desta mensagem libertadora, respondem: “Sim, confiamos incondicionalmente em Jesus; que Ele seja louvado pelos séculos dos séculos”. A mensagem do “profeta” de Patmos continua a ecoar hoje, num tempo em que os nossos líderes humanos, titubeantes e pouco esclarecidos, mas com uma arrogância semelhante à de Domiciano, nos arrastam para becos sem saída e deixam que a maldade, a violência, a injustiça, a exploração encham de sombras o caminho dos homens… Acreditamos nós também, neste tempo difícil que nos toca viver, que Jesus é o verdadeiro Senhor da História, o Salvador que há de aparecer sobre as nuvens do céu para derrotar os poderes arrogantes e para instaurar um reino de felicidade, de vida e de paz sem fim? Essa convicção dá-nos forças para avançar e para enfrentar as vicissitudes que a vida nos traz?
  • O “profeta” de Patmos refere-se a Jesus como “o Alfa e o Ómega”, “aquele que é, que era e que há de vir”, “o Senhor do Universo”. Convida-nos a vê-lo como o centro do Tempo e da História dos homens, aquele de quem tudo parte e para quem tudo converge, a referência fundamental à volta da qual toda a nossa vida se constrói. Como os cristãos das comunidades joânicas, talvez nós sejamos capazes de dizer, nas nossas assembleias litúrgicas: “sim. Amen. Aceitamos tudo isso como verdade”. No entanto, no dia a dia da nossa vida, Cristo está efetivamente no centro dos nossos interesses, das nossas opções, do nosso caminho? As nossas vidas alimentam-se das suas propostas, das suas palavras, dos seus gestos? Vivemos ao seu estilo, amamos como Ele amava, pensamos como Ele pensava, perdoamos como Ele perdoava, servimos como Ele servia? Jesus Cristo é, de verdade, o nosso “rei”, a nossa referência fundamental, aquele a quem seguimos de olhos fechados?
  • O “profeta” exilado na ilha de Patmos por causa da sua fé lembra-nos tantos e tantos homens e mulheres que, em contextos adversos, insistem em dar testemunho de Jesus e do seu Evangelho. Incompreendidos, maltratados, caluniados, mantêm-se coerentes com o Evangelho de Jesus; com coragem profética, procuram ser sal que dá sabor ao mundo e luz que brilha no meio das trevas; mesmo contra a corrente, são testemunhas corajosas dos valores de Deus e sinais que apontam para um mundo novo. Também nós, discípulos de Jesus e arautos do seu projeto, temos a coragem do testemunho, da coerência, do compromisso com os valores do Reino de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO João 18,33b-37

Naquele tempo,
disse Pilatos a Jesus:
«Tu és o Rei dos judeus?»
Jesus respondeu-lhe:
«É por ti que o dizes,
ou foram outros que to disseram de Mim?»
Disse-Lhe Pilatos:
«Porventura eu sou judeu?
O teu povo e os sumos sacerdotes é que Te entregaram a mim.
Que fizeste?»
Jesus respondeu:
«O meu reino não é deste mundo.
Se o meu reino fosse deste mundo,
os meus guardas lutariam
para que Eu não fosse entregue aos judeus.
Mas o meu reino não é daqui».
Disse-Lhe Pilatos:
«Então, Tu és Rei?»
Jesus respondeu-lhe:
«É como dizes: sou Rei.
Para isso nasci e vim ao mundo,
a fim de dar testemunho da verdade.
Todo aquele que é da verdade escuta a minha voz».

CONTEXTO

O Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo leva-nos até ao “pretório”, situado em Jerusalém, na fortaleza chamada “Antónia” (em homenagem ao triúnviro romano Marco António), que albergava a guarnição romana de Jerusalém. Jesus tinha sido para aí levado depois de, na madrugada desse dia, ter sido considerado “réu de morte” pelas autoridades religiosas judaicas reunidas no palácio do sumo-sacerdote.

É de manhã cedo. Pôncio Pilatos, o “prefeito” romano que administrou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36, está sentado na sua cadeira do poder. Jesus está diante dele, manietado como um delinquente. Pôncio Pilatos vivia habitualmente no seu palácio de Cesareia Marítima, junto do mar, a cerca de cem quilómetros de Jerusalém; mas, por altura das grandes festas, dirigia-se a Jerusalém com tropas de reforço, a fim de manter a ordem na cidade. Nesta altura Pilatos está em Jerusalém por causa das festas da Páscoa.

As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam Pôncio Pilatos como um governante duro e violento, obstinado e severo, culpado de ordenar execuções de opositores sem um processo legal. As queixas de excessiva crueldade apresentadas contra ele pelos samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, o legado romano na Síria, a tomar posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do imperador. Pôncio Pilatos foi deposto do seu cargo de governador da Judeia logo a seguir.

Curiosamente, o autor do Quarto Evangelho, no seu relato do julgamento de Jesus, apresenta Pôncio Pilatos como um homem fraco, indeciso e volúvel, uma espécie de marioneta habilmente manobrada pelos líderes judaicos. Esta apresentação – que contradiz aquilo que os historiadores da época dizem sobre Pilatos – não deve ter grandes bases históricas: deve ser, apenas, uma tentativa de lançar a culpa e a responsabilidade da condenação de Jesus para cima das autoridades judaicas: foram elas que promoveram e insistiram na condenação de Jesus, enquanto Pilatos tentou, por todos os meios, libertá-lo. Na altura em que o autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), os cristãos tratavam de evitar quaisquer polémicas com o poder imperial, que poderiam ter consequências nefastas na vida da Igreja. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O que significa concluirmos o ano litúrgico celebrando a Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, rei do universo? Significa que, depois de termos caminhado com Jesus ao longo de um ano inteiro, sentimos que Ele é o nosso verdadeiro guia, o nosso verdadeiro mestre, o nosso verdadeiro Senhor; significa que, depois de termos andado com Ele por tantos caminhos e de termos enfrentado com Ele tantos desafios, confiamos incondicionalmente nas suas orientações e propostas; significa que, depois de termos experimentado a sua amizade e o seu amor, queremos apostar n’Ele toda a nossa vida; significa que, depois de termos caminhado ao ritmo das suas palavras e de termos sido alimentados com o seu Pão, nos sentimos mais fortes, mais livres, mais próximos da vida verdadeira que buscamos; significa que, tendo constatado a centralidade e a importância de Jesus na nossa vida, queremos construir à volta d’Ele toda a nossa existência. Aceitamos a “autoridade” de Jesus, não porque Ele nos impõe o seu poder, mas porque Ele nos toca com o seu amor. Como é que entendemos a realeza de Cristo? Reconhecemos Jesus como o nosso rei?
  • Diante de Pôncio Pilatos, o “prefeito” romano da Judeia, Jesus admite a sua realeza; mas deixa claro que essa realeza não assenta em poder, em autoridade, em riqueza, em domínio, em mordomias, em distinções humanas. Diante daquele funcionário do império que o questiona, Jesus está só, indefeso, prisioneiro, armado apenas com a força do amor e da verdade. A sua atitude, naquela hora decisiva, corresponde àquilo que foi toda a sua vida: obediência a Deus, serviço aos homens, solidariedade com as vítimas, doação total de si, testemunho da verdade. É com estas “armas” que Ele vai combater o egoísmo, a autossuficiência, a injustiça, a exploração, tudo o que gera sofrimento e morte. A lógica da vida de Jesus é uma lógica desconcertante e incompreensível, à luz dos critérios que o mundo avaliza e enaltece. Consideramos que a opção de Jesus faz sentido? O mundo novo, de vida e de felicidade plena para todos os homens nascerá de uma lógica de força, de autoridade e de imposição, ou de uma lógica de amor, de serviço e de dom da vida?
  • Se acolhemos o convite de Jesus e decidimos ir atrás d’Ele, como discípulos, é porque acreditamos que a proposta d’Ele é a receita certa para a construção de um mundo novo, de um mundo mais humano, mais feliz, mais pacífico, mais harmonioso, mais cheio de amor; se aceitamos Jesus como rei, é porque estamos dispostos a seguir as suas orientações e a viver, como Ele viveu, numa atitude de serviço humilde, de dom gratuito, de respeito, de partilha, de amor; se estamos seguros de que Jesus é a nossa grande referência, é porque nos dispomos a lutar ao lado d’Ele, não com a força do ódio e das armas, mas com a força do amor, contra todas as formas de exploração, de injustiça, de alienação e de morte… Estamos disponíveis para testemunhar e fazer aparecer o Reino de Cristo no nosso mundo e nos corações dos homens?
  • No seu diálogo com Pôncio Pilatos, Jesus define, de forma muito bela, o seu programa de vida: “nasci e vim ao mundo, a fim de dar testemunho da verdade”. O seu grande objetivo é que o projeto de Deus – aquilo a que Jesus chama “a verdade” – seja assumido e concretizado pelos homens. Para dar testemunho da verdade, Jesus mostrou-nos o rosto misericordioso de Deus; para dar testemunho da verdade, Jesus disse-nos que Deus queria ver todos os seus filhos queridos caminharem livres e felizes; para dar testemunho da verdade, Jesus lutou contra o egoísmo, a injustiça, a discriminação, a intolerância, a violência, a mentira nas suas mil e uma formas; para dar testemunho da verdade, Jesus acolheu e abraçou os pecadores, os malditos, os que não tinham voz nem direitos; para dar testemunho da verdade, Jesus denunciou os mecanismos obscuros que os “donos do mundo” utilizavam para perpetuar os seus privilégios e para defender os seus interesses egoístas; para dar testemunho da verdade, Jesus amou até ao extremo e deu a própria vida para nos ensinar a viver… Aceitamos nós também fazer do “testemunho da verdade” o nosso programa de vida? Como Jesus, dispomo-nos a combater objetivamente todas as formas de mentira que tornam mais feio o nosso mundo?
  • A forma simples e despretensiosa como Jesus, o nosso Rei, Se apresenta diante dos poderes do mundo, convida-nos a repensar certas atitudes, certas formas de organização e certas estruturas que criamos para enfrentar a história… A comunidade de Jesus (a Igreja) não pode estruturar-se e organizar-se com os mesmos critérios dos reinos da terra… Deve interessar-se mais em dar um testemunho de amor e de solidariedade para com os pobres e marginalizados, do que em agradar às autoridades políticas e aos chefes das nações; deve preocupar-se mais com o serviço simples e humilde aos homens, do que com os títulos, as honras, as mordomias, os privilégios; deve apostar mais na partilha e no dom da vida, do que na posse de bens materiais ou na eficiência das estruturas. Se a Igreja não testemunhar, no meio dos homens, essa lógica de realeza que Jesus apresentou diante de Pôncio Pilatos, está a ser gravemente infiel à sua missão. Como é que a Igreja de Jesus entende e vive hoje, no séc. XXI, o seu serviço ao mundo e aos homens? Ao estilo de Jesus, o “rei” sem trono e sem poder, que se apresenta diante do mundo apenas “armado” com a humildade, o serviço, o amor? in Dehonianos

Para os leitores:

As leituras deste Domingo não apresentam nenhuma dificuldade aparente, contudo, devem ser preparadas cuidadosamente para que a proclamação da Palavra seja bela e digna. As leituras desta solenidade apresentam a realeza de Jesus, em contraponto com os reinos deste mundo, por isso, a proclamação das leituras deve traduzir este anúncio.

A primeira leitura da profecia de Daniel é a narrativa das visões da noite onde se anuncia a vinda do Filho do Homem que instaura um reino eterno.

A segunda leitura do Livro do Apocalipse é um texto litúrgico que apresenta um diálogo entre um leitor e a comunidade cristã reunida para escutar a proclamação. Deve haver um especial cuidado nas fórmulas litúrgicas que se concluem com um «Ámen».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

 

ANEXOS:

Domingo XXXIII do Tempo Comum – Ano B – 17.11.2024
VIII Dia Mundial dos Pobres

Viver a Palavra

Viajando de transportes públicos ou permanecendo por algum tempo numa qualquer sala de espera de um local público onde passam as notícias, depressa se fazem sentir vozes de desilusão e descontentamento, afirmando a necessidade de um mundo novo e diferente. Queremos um mundo melhor, onde cada homem e cada mulher sejam verdadeiramente felizes! A nossa esperança deve encher-se de alegria, porque este é também o desejo de Deus. O Deus do Amor, da Alegria e da Vida sonhou-nos para a felicidade, pela construção de um mundo novo e diferente com a marca do amor que se faz entrega generosa ao serviço dos irmãos.

Por isso, não nos devem assustar as palavras de Jesus: «naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas. Então, hão-de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele mandará os Anjos, para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais, da extremidade da terra à extremidade do céu». Na verdade, não são nenhuma profecia do «fim do mundo», nem um modo pedagógico de nos atemorizar para nos conduzir à conversão. Não é de terror que trata o Evangelho, mas de amor e misericórdia. Estas palavras são a certeza de que as realidades deste mundo, por maiores que elas possam parecer, são passageiras e efémeras, ao invés do amor de Deus e da Sua Palavra que permanecem como verdadeira luz que conduz a nossa história.

Por isso, temos muito a aprender com a parábola da figueira que enche o nosso coração da verdadeira esperança cristã. A esperança que brota da nossa fé não é uma esperança oca ou vazia, porque possui a consistência de um rosto: o rosto terno e misericordioso de Jesus Cristo, Aquele que «tendo oferecido pelos pecados um único sacrifício, sentou-Se para sempre à direita de Deus».

O Mestre ensina-nos a parábola da figueira cujos ramos tenros e folhas verdes anunciam a chegada do Verão. Coisas tenras e ternas são as que anuncia Jesus, pois a figueira que começa a brotar na Primavera, anuncia o ressurgir da natureza após o Inverno. A fé cristã recorda-nos que depois de descobrir Jesus Cristo e o seu Evangelho a nossa vida ressurge e ganha uma vida absolutamente nova. Por isso, não é o medo do que vai acabar que fica sublinhado neste Evangelho, mas a expectativa feliz da novidade de Deus, que em Jesus Cristo irrompe na nossa vida e transforma o mundo, transformando o coração de cada discípulo missionário.

«Quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta». Quando as dificuldades surgem no nosso caminho, quando tudo parece perdido, quando o mundo parece desabar sobre nós, recordemos que Jesus está próximo, que Ele não é indiferente às nossas dores e angústias, mas Ele próprio as assumiu na Sua vida, abraçando a Cruz para nossa salvação.

Por isso, o único «fim do mundo» que a Liturgia da Palavra nos propõe é o fim de um mundo marcado pelo egoísmo e pela violência, pela nossa autossuficiência e pela indiferença, para que possa despontar um mundo novo, marcado pelo amor e pela misericórdia. Deste modo, o mundo tornar-se-á um lugar mais belo, pois como recorda a profecia de Daniel, quando nos abrimos à verdadeira sabedoria a nossa vida torna-se um rasto luminoso que aponta o caminho do Céu: «os sábios resplandecerão como a luz do firmamento e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade». in Voz Portucalense.

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No Domingo XXXIII do Tempo Comum, assinala-se o VIII Dia Mundial dos Pobres. Para este ano o Papa Francisco escreveu uma mensagem intitulada «A oração do pobre eleva-se até Deus (cf. Sir 21, 5)» (ver anexo). No ano dedicado à oração, em vista ao Jubileu da Esperança de 2025, o Papa Francisco desafia-nos a viver a partir da esperança cristã que transforma a nossa oração num lugar de confiança: «a esperança cristã inclui também a certeza de que a nossa oração chega à presença de Deus; não uma oração qualquer, mas a oração do pobre». Além da divulgação desta mensagem, este Domingo é uma ocasião privilegiada para recordar o nosso compromisso cristão com os mais frágeis e desfavorecidos. Pode dar-se a conhecer os diversos grupos e movimentos paroquiais que trabalham ao serviço dos mais pobres, mas sem esquecer que a caridade não é uma tarefa de alguns ou apenas de um grupo, mas de toda a comunidade. in Voz Portucalense.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Daniel 12,1-3

Naquele tempo, surgirá Miguel, o grande chefe dos Anjos,
que protege os filhos do teu povo.
Será um tempo de angústia,
como não terá havido até então, desde que existem nações.
Mas nesse tempo, virá a salvação para o teu povo,
para aqueles que estiverem inscritos no livro de Deus.
Muitos dos que dormem no pó da terra acordarão,
uns para a vida eterna,
outros para a vergonha e o horror eterno.
Os sábios resplandecerão como a luz do firmamento
e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça
brilharão como estrelas por toda a eternidade.

CONTEXTO

Em 333 a.C., Alexandre da Macedónia derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de Issos (Síria). A Palestina, até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império de Alexandre. Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., os seus generais disputaram entre si a sucessão. A Palestina passou a ser pomo de discórdia entre a família dos Ptolomeus, que governava o Egito, e a família dos Selêucidas, que governava a Mesopotâmia e a Síria. Num primeiro momento, os Ptolomeus asseguraram o domínio da Palestina e da Síria; mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe V da Macedónia, acabou por vencer os Ptolomeus (batalha das fontes do Jordão, no ano 200 a.C.) e por conquistar o domínio da Palestina.

Se o período ptolomaico tinha sido uma época de relativa benevolência para com a cultura judaica, a situação mudou radicalmente durante o reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.). Este rei querendo impor a cultura helénica em todo o seu império, praticou uma política de intolerância para com a cultura e a religião judaicas. A perseguição foi dura e as marcas da intolerância selêucida provocaram feridas muito graves no universo social e religioso judaico. Se muitos judeus renegaram a sua fé e assumiram os valores helénicos, muitos outros resistiram, defenderam a sua identidade cultural e religiosa. Uns optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heroicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helénicos com a sua palavra e os seus escritos.

O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos seus antepassados. A pretexto de contar a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilónia, que soube manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição de Antíoco IV Epífanes e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. O autor garante aos seus concidadãos que Deus não abandonará o seu Povo e que recompensará todos aqueles que se mantiveram fiéis à Lei e aos mandamentos. Estamos na primeira metade do séc. II a.C., pouco antes do desaparecimento de cena de Antíoco (que aconteceu em 164 a.C.).

No livro de Daniel misturam-se géneros literários diversos. Os capítulos 7 a 12 (que incluem o breve texto que a liturgia nos propõe como primeira leitura neste trigésimo terceiro domingo comum) pertencem ao género apocalítico. “Apocalipse” significa “revelação”. Servindo-se de um género literário que recorre abundantemente a símbolos (números, cores, animais, plantas…) e a uma linguagem cifrada (que os destinatários da mensagem conhecem, mas que os perseguidores ignoram), o autor propõe-se comunicar “revelações” sobre o projeto de Deus, o protagonismo de Deus sobre a história, a luta de Deus contra o mal, a vitória final de Deus sobre os impérios humanos. Em tempo de perseguição e de crise, o objetivo do autor é restaurar a esperança e assegurar ao Povo a vitória de Deus e dos seus fiéis sobre os opressores. in Dehonianos

 INTERPELAÇÕES

  • A mensagem de esperança que o autor do livro de Daniel procura transmitir dirige-se a judeus desanimados, que sofrem na pele a perseguição que lhes é movida pelo ímpio Antíoco IV Epífanes e que se sentem impotentes para romper a cadeia de sofrimento e de morte que lhes é imposta. Talvez a nossa situação não seja tão dramática; mas não é verdade que muitas vezes nos sentimos desanimados e impotentes perante o predomínio dos maus, dos violentos, dos opressores, daqueles que tomam as rédeas do mundo e impõem aos outros os seus esquemas injustos e egoístas? Não é verdade que por vezes nos apetece desistir dos nossos valores, pois o mundo parece funcionar segundo esquemas onde esses valores não cabem? A mensagem que o autor do livro de Daniel deixa poderá ser, também para nós, uma refrescante mensagem de esperança: Deus é o Senhor da história; Ele não desiste de lutar contra tudo aquilo que impede os seus queridos filhos de serem livres e felizes; a vitória final não será dos maus, dos injustos, dos opressores, mas será de Deus e de todos aqueles que se mantiverem fiéis a Deus. Acreditamos nisto? Confiamos em Deus e na sua intervenção salvadora, mesmo quando parece que os maus prevalecem e têm nas mãos o domínio da história dos homens?
  • A “perseguição” por causa da fidelidade aos valores em que acreditamos é uma realidade que todos conhecemos e que faz parte de qualquer existência verdadeiramente comprometida. Hoje, essa “perseguição” nem sempre é sangrenta; manifesta-se, muitas vezes, em atitudes de marginalização ou de rejeição, em ditos humilhantes, em atitudes provocatórias, na colagem de “rótulos” (“conservadores”, “atrasados”, “fora de moda”), em julgamentos apressados e injustos, em preconceitos ridículos… Ora, tudo isso pode não matar, mas mói e cansa: faz-nos sofrer e pode levar-nos ao desânimo. Como lidamos com a oposição, a rejeição, a condenação de que somos alvo quando insistimos em viver de acordo com os valores em que acreditamos? Mantemo-nos fiéis aos nossos princípios e aos valores sobre os quais assenta a nossa fé? Ou a incompreensão dos nossos contemporâneos é fator de enfraquecimento das nossas convicções e de quebra dos nossos compromissos com Deus?
  • A oposição e a incompreensão do “mundo” podem gerar, da nossa parte, uma resposta agressiva e levarem a um corte da nossa relação com o mundo. Será essa a melhor resposta à incompreensão que “o mundo” nos tributa? Poderemos continuar a ser “sal da terra e luz do mundo” se cortarmos as pontes que nos ligam ao mundo? Poderemos continuar a propor o Evangelho ao mundo se, magoados pelas críticas e incompreensões que temos de suportar, nos escondermos atrás dos muros dos nossos templos e nos limitarmos a condenar esse mundo fútil que não nos entende? Talvez o caminho seja continuarmos a afirmar, de forma humilde, mas convicta, os valores em que acreditamos, com a certeza que o nosso testemunho há de interpelar alguém e há de produzir frutos de renovação do mundo e das mentalidades. Como é que lidamos com a hostilidade do mundo?
  • O autor do livro de Daniel promete a vida eterna àqueles que procuraram viver na fidelidade aos valores de Deus. A certeza de que a vida não acaba na morte liberta-nos do medo e dá-nos a coragem do compromisso. Podemos, serenamente, enfrentar neste mundo as forças da opressão e da morte, porque sabemos que elas não conseguirão derrotar-nos: no final da nossa caminhada por este mundo, está sempre a vida eterna e verdadeira, que Deus reserva para os que estão “inscritos no livro da vida”. A certeza da ressurreição é, para nós, a fonte de onde brota a coragem para enfrentarmos a vida, as vicissitudes do caminho, a incompreensão dos homens? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 15 (16)

Refrão 1: Defendei-me, Senhor: Vós sois o meu refúgio.

Refrão 2: Guardai-me, Senhor, porque esperei em Vós.

 

Senhor, porção da minha herança e do meu cálice,
está nas vossas mãos o meu destino.
O Senhor está sempre na minha presença,
com Ele a meu lado não vacilarei.

Por isso o meu coração se alegra e a minha alma exulta
e até o meu corpo descansa tranquilo.
Vós não abandonareis a minha alma na mansão dos mortos,
nem deixareis o vosso fiel sofrer a corrupção.

Dar-me-eis a conhecer os caminhos da vida,
alegria plena em vossa presença,
delícias eternas à vossa direita.

LEITURA II – Hebreus 10,11-14.18

Todo o sacerdote da antiga aliança
se apresenta cada dia para exercer o seu ministério
e oferecer muitas vezes os mesmos sacrifícios,
que nunca poderão perdoar os pecados.
Cristo, ao contrário,
tendo oferecido pelos pecados um único sacrifício,
sentou-Se para sempre à direita de Deus,
esperando desde então que os seus inimigos
sejam postos como escabelo dos seus pés.
Porque, com uma única oblação,
Ele tornou perfeitos para sempre os que Ele santifica.
Onde há remissão dos pecados,
já não há necessidade de oblação pelo pecado. 

CONTEXTO

A “Carta aos Hebreus” (mais do que uma “carta”, é uma “homilia”) destina-se a comunidades cristãs que vivem dias complicados… À falta de entusiasmo de muitos dos seus membros na vivência do compromisso cristão, junta-se a hostilidade dos inimigos e as confusões causadas à fé comunitária por certos pregadores pouco ortodoxos que ensinam doutrinas estranhas, que não são coerentes com as propostas de Jesus. São, portanto, comunidades fragilizadas, cansadas e desalentadas, que necessitam de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais empenhada.

Nesse sentido, um “mestre” cristão (talvez um discípulo do apóstolo Paulo) dispõe-se a apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes são chamados a fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar uma experiência de fé enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial. As referências ao culto praticado no templo de Jerusalém como uma realidade ainda vigente parecem sugerir que esta “Carta” foi escrita antes de o templo ser destruído pelos romanos, no ano 70.

O texto que nos é proposto é parte da conclusão da reflexão sobre o sacerdócio de Cristo (cf. Heb 10,1-18). Nessa perícope, o autor repete temas desenvolvidos nos capítulos precedentes, procurando, uma vez mais, pôr em relevo a dimensão salvadora da missão sacerdotal de Jesus. O objetivo é despertar no coração dos crentes uma resposta adequada ao amor de Deus, manifestado na ação de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O pecado é sempre um “não” a Deus, dito conscientemente por homens e mulheres que prescindem das indicações de Deus e decidem escolher caminhos de egoísmo e de autossuficiência. Não nos faz sentir bem, nem nos torna mais livres; pelo contrário, pesa intoleravelmente na nossa consciência, inquieta o nosso coração, altera o nosso equilíbrio, rouba-nos a paz, torna-nos escravos, leva-nos por caminhos que não nos realizam. Resulta da nossa fragilidade, do nosso egoísmo crónico, da nossa dificuldade em discernir o que nos torna felizes e o que nos torna infelizes. Será uma realidade inultrapassável, à qual estaremos fatalmente condenados? Afetará a nossa realização plena, o nosso encontro final com Deus? A segunda leitura deste trigésimo terceiro domingo comum garante-nos que Deus não abandona o homem que faz, mesmo conscientemente, opções erradas. O nosso egoísmo, o nosso orgulho, a nossa autossuficiência, o nosso comodismo, o nosso pecado, não têm a última palavra; a última palavra é sempre do amor de Deus e da sua vontade de salvar o homem. Deus está sempre disponível para nos justificar, para nos abraçar e para nos acolher. A consciência do amor e do perdão de Deus ajuda-nos a enfrentar e a superar a nossa fragilidade? A certeza da misericórdia de Deus liberta-nos da angústia com que o pecado nos carrega e oprime?
  • Jesus, o Filho amado de Deus, veio ao mundo para concretizar o projeto salvador de Deus: libertar-nos da escravidão do pecado e inserir-nos numa dinâmica de vida eterna. Com a sua vida, com os seus gestos, com as suas palavras, Ele ensinou-nos a vencer o egoísmo e a fazer da nossa vida um dom de amor a Deus e aos irmãos. No dia em que aderimos a Jesus – o dia do nosso Batismo –, renunciamos ao pecado, acolhemos o projeto de vida que Jesus nos apresentou e passámos a integrar a comunidade dos filhos de Deus. Trata-se de um compromisso sério e exigente, que necessita de ser continuamente renovado. O nosso compromisso com Jesus e com a sua proposta de vida exige que, como Ele, vivamos na escuta de Deus e na obediência ao seu projeto; exige que vivamos no amor, na partilha, no serviço, se necessário até ao dom total da vida; exige que lutemos, sem desanimar, contra tudo aquilo que rouba a vida do homem e o impede de chegar à vida plena; exige que sejamos, no meio do mundo, testemunhas de uma dinâmica nova – a dinâmica do amor. A nossa vida tem sido coerente com esse compromisso?
  • A sociedade que temos vindo a construir está armadilhada com “estruturas de pecado”, que ajudam a perpetuar as injustiças, a potenciar as violências sobre os mais débeis, a criar exclusão e marginalização, a destruir a dignidade de muitos homens e mulheres. São estruturas, mecanismos, práticas, instituições, ideologias, que banalizam a indiferença, desumanizam mais e mais o nosso mundo, multiplicam o sofrimento de milhões e milhões de irmãos nossos. São utilizadas pelos donos do mundo para favorecer projetos egoístas, interesses pessoais, planos ambiciosos de pessoas sem escrúpulos, preocupadas apenas consigo mesmas a não com o bem comum. Como nos situamos frente a essas “estruturas de pecado”? Aceitámo-las enquanto elas não nos afetam diretamente, ou lutamos contra elas com todas as nossas forças? Seremos alguma peça dessas máquinas de injustiça que contribuem para aumentar o pecado do mundo? in Dehonianos.

EVANGELHO Marcos 13,24-32

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Naqueles dias, depois de uma grande aflição,
o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade;
as estrelas cairão do céu
e as forças que há nos céus serão abaladas.
Então, hão de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens,
com grande poder e glória.
Ele mandará os Anjos,
para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais,
da extremidade da terra à extremidade do céu.
Aprendei a parábola da figueira:
quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas,
sabeis que o Verão está próximo.
Assim também, quando virdes acontecer estas coisas,
sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta.
Em verdade vos digo:
Não passará esta geração sem que tudo isto aconteça.
Passará o céu e a terra,
mas as minhas palavras não passarão.
Quanto a esse dia e a essa hora, ninguém os conhece:
nem os Anjos do Céu, nem o Filho;
só o Pai».

CONTEXTO

Jesus tinha passado o dia no templo de Jerusalém. Tinha sido o dia dos “ensinamentos” e das polémicas com os líderes judaicos (cf. Mc 11,20-12,44). No final desse dia, Jesus dirigiu-se novamente para Betânia, rodeado pelos discípulos. Detiveram-se no “Jardim das Oliveiras”, a contemplar Jerusalém, que ficava defronte. Pouco antes, em resposta a uma observação de um dos discípulos sobre a grandiosidade do templo e das suas pedras, Jesus tinha dito que o templo seria destruído e que não ficaria pedra sobre pedra (cf. Mc 13,1-2). Agora, olhando a cidade, Pedro, André, Tiago e João (cf. Mc 13,3) pedem explicações mais concretas a Jesus acerca do que Ele tinha dito sobre a destruição do templo. Em resposta, Jesus oferece-lhes um amplo e enigmático ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” (cf. Mt 13,4-37).

O “discurso escatológico” de Jesus é um texto difícil, uma vez que emprega imagens e linguagens marcadas por alusões enigmáticas, bem ao jeito do género literário “apocalipse”. Nele confluem elementos de caráter histórico – a anunciada destruição de Jerusalém e do templo ocorrerá quarenta anos depois, no ano 70, quando as tropas romanas de Tito tomarem a cidade e a incendiarem – com reflexões de caráter profético sobre o sentido da história humana no seu conjunto. O objetivo do discurso seria dar aos discípulos indicações acerca da atitude a tomar frente às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da comunidade, até ao momento em que Jesus vier para instaurar, em definitivo, o novo céu e a nova terra.

Os quatro discípulos referenciados no início do “discurso escatológico” representam a comunidade cristã de todos os tempos. Os quatro são, precisamente, os primeiros discípulos chamados por Jesus (cf. Mc 1,16-20) e, como tal, convertem-se em representantes de todos os futuros discípulos. O discurso escatológico de Jesus não seria, assim, uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o Pai.

A missão que Jesus (que está consciente de ter chegado a sua hora de partir ao encontro do Pai) confia à sua comunidade não é uma missão fácil… Jesus sabe que os seus discípulos terão que enfrentar as dificuldades, as perseguições, as tentações que “o mundo” vai colocar no seu caminho. Essa comunidade em marcha pela história necessitará, portanto, de estímulo e de alento. É por isso que surge este apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância… No horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o reencontro definitivo dos discípulos com Ele.

O “discurso escatológico” divide-se em três partes, antecedidas de uma introdução (cf. Mc 13,1-4). Na primeira parte (cf. Mc 13,5-23), o discurso anuncia uma série de vicissitudes que vão marcar a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada: vigilância e lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo velho (cf. Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto ao “tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (cf. Mc 13,28-37). O texto evangélico que a liturgia deste trigésimo terceiro domingo comum nos propõe apresenta, precisamente, a segunda parte e alguns versículos da terceira parte do “discurso escatológico”.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Ver os telejornais ou escutar os noticiários é, com frequência, uma experiência que nos desassossega e que nos deprime. Os dramas da “aldeia global” que é o mundo entram em nossa casa, sentam-se à nossa mesa, perturbam a nossa tranquilidade, escurecem os nossos horizontes. A guerra, a opressão, a injustiça, a miséria, a escravidão, o egoísmo, o desprezo pela dignidade dos seres humanos, atingem-nos, mesmo quando acontecem a milhares de quilómetros do pequeno mundo onde nos movemos todos os dias. As sombras que marcam a história atual da humanidade tornam-se realidades próximas, tangíveis, que nos inquietam e nos desanimam. Sentimo-nos impotentes, incapazes de mudar o rumo das coisas. O futuro parece-nos sombrio e sem saída. A Palavra de Deus que hoje nos é servida abre, contudo, a porta à esperança. Reafirma, uma vez mais, que Deus não abandona os seus filhos que caminham na história e está determinado a transformar o mundo velho do egoísmo e do pecado num mundo novo de vida e de felicidade para todos os homens. A humanidade não caminha para o caos, para a destruição, para o sem sentido, para o nada; mas caminha ao encontro desse mundo novo em que o homem, com a ajuda de Deus, alcançará a plenitude das suas possibilidades. Como é que vemos e avaliamos a história dos homens? Acreditamos que o mal não triunfará e que a última palavra será sempre de Deus? Acreditamos que Deus fará surgir, das ruínas do mundo velho, um mundo novo, de alegria e de felicidade plenas?
  • Os cristãos não leem a história atual da humanidade como um caminho sem saída; mas veem os momentos de tensão e de luta que hoje marcam a vida dos homens e das sociedades como sinais de que o mundo velho está a ser transformado e renovado, e que em seu lugar vai surgir um mundo novo e melhor. Isso faz dos discípulos de Jesus arautos e testemunhas da esperança. Certos de que Deus conduz a história de acordo com o seu projeto, os seguidores de Jesus não vivem dominados pelo medo, pelo pessimismo, pelo desespero, por discursos negativos, por angústias a propósito do fim do mundo… Os nossos contemporâneos têm de ver em nós pessoas a quem a fé dá uma visão otimista da vida e da história; pessoas que caminham, alegres e confiantes, ao encontro desse mundo novo que Deus nos prometeu. Sustentados pela fé, somos testemunhas da esperança? Os homens e mulheres com quem nos cruzamos são contaminados pelo nosso testemunho de confiança em Deus, pela nossa alegria serena, pela coragem com que enfrentamos as vicissitudes e as crises da vida?
  • Deus é o Senhor da história, Deus é o arquiteto do mundo novo que irá surgir. No entanto, Ele associa-nos à sua obra e convoca-nos para trabalharmos ao lado d’Ele na concretização desse projeto. Os filhos e filhas de Deus não podem ficar de braços cruzados à espera que o mundo novo caia do céu; mas, enquanto caminham pela vida e pela história, são chamados a anunciar e a construir, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus gestos, esse mundo que está nos projetos de Deus. Isso implica, antes de mais, um processo de conversão que nos leve a suprimir aquilo que em nós é egoísmo, orgulho, prepotência, exploração, injustiça (mundo velho); implica, também, testemunharmos objetivamente em gestos concretos, os valores do mundo novo: a partilha, o serviço, o perdão, o amor, a fraternidade, a solidariedade, a paz; implica, ainda, lutarmos sem desfalecer contra tudo aquilo que desfeia o mundo, que causa sofrimento e morte, que põe em causa a vida, a liberdade e a felicidade dos filhos e filhas de Deus. Aceitamos ser protagonistas, ao lado de Deus, na construção de um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano, ou deixamo-nos arrastar passivamente, acomodados e instalados, aceitando que o mundo avance sem a nossa intervenção e sem o nosso testemunho de discípulos de Jesus?
  • Esse Deus que não abandona os homens na sua caminhada histórica vem continuamente ao nosso encontro para nos deixar os seus desafios, para nos fazer entender os seus projetos, para nos indicar os caminhos que Ele nos chama a percorrer. Da nossa parte, precisamos de estar atentos à sua proximidade e reconhecê-l’O nos sinais da história, no rosto dos irmãos, nos apelos dos que sofrem e que buscam a libertação. O cristão não vive de olhos postos no céu, à espera de uma comunicação especial de Deus; mas vive de olhos postos no mundo, para “ler” o que está a acontecer a cada instante e para escutar os apelos que Deus lhe deixa a cada momento nos acontecimentos da história e nos factos corriqueiros de que é feita a nossa vida de todos os dias. Procuramos detetar os apelos e sinais que Deus nos envia e através dos quais Ele nos indica o que espera de nós? Procuramos manter-nos íntimos de Deus, dialogar frequentemente com Ele, escutar a sua Palavra, a fim de percebermos o plano que Ele tem para o mundo e para nós?
  • Há uma realidade incontornável, que nunca podemos olvidar: apesar da ação de Deus e dos nossos próprios esforços para que o nosso mundo seja, a cada instante, transformado e humanizado, o mundo novo com que sonhamos e que está no projeto de Deus nunca será uma realidade plena nesta terra: a nossa caminhada neste mundo será sempre marcada pela nossa finitude, pelos nossos limites, pela nossa imperfeição, pelo nosso egoísmo, pelas nossas opções discutíveis. O mundo novo sonhado por Deus é uma realidade escatológica, cuja plenitude só acontecerá depois de Cristo, o Senhor, ter destruído definitivamente o mal que nos torna escravos. Estamos conscientes disso? Temos consciência de que caminhamos rodeados de debilidade e de finitude, mas que isso não pode enfraquecer o nosso compromisso, os nossos esforços, a nossa alegria, a nossa confiança em Deus? in Dehonianos

Para os leitores:

A ausência de palavras e expressões de difícil pronunciação não deve permitir descurar a atenta preparação das leituras.

Na primeira leitura, a proclamação deve ter em atenção a centralidade da última frase do texto que se apresenta como conclusão e mensagem principal da leitura, mas também como convite à esperança e luz que brota da prática da verdadeira sabedoria.

A segunda leitura, como nos Domingos anteriores requer um especial cuidado nas longas frases e com várias orações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

 

ANEXOS:

Domingo XXXII do Tempo Comum – Ano B – 10.11.2024

Viver a Palavra

Quando tudo parece perdido Deus irrompe na nossa vida, oferecendo um novo horizonte de esperança. Surpreendendo a nossa fragilidade, ensina-nos que a nossa pequenez quando oferecida totalmente como dom, se torna lugar de anúncio alegre e feliz de que a vida só se torna verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Na verdade, foi assim com a viúva que depositou tudo quanto possuía na arca do tesouro e foi também assim com a viúva de Sarepta que se preparava para tomar a última refeição com o seu filho, mas visitada pelo profeta Elias e dando tudo quanto lhe restava, não lhe faltou a farinha na panela, nem o azeite na almotolia.

Deste modo, a Liturgia da Palavra deste Domingo, coloca no nosso horizonte Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, que se oferece todo e de uma vez para sempre e nos convoca para a entrega total das nossas vidas, advertindo-nos para o perigo de dar apenas o supérfluo, o que nos sobra ou o que não nos interessa.

Sentindo ainda ecoar no nosso coração o desafio de Jesus no Domingo passado, recordamos o convite permanente a viver a partir de um amor a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento, para que amando assim a Deus, possamos amar o que Ele ama, possamos amar os irmãos que connosco trilham a estrada da vida. Jesus reclama a nossa vida toda, para que oferecida ao serviço de Deus e dos irmãos, a sintamos cada vez mais como nossa.

Por isso, Jesus começa por nos advertir para o perigo de uma prática religiosa que vive apenas para a visibilidade das ações, ao jeito dos escribas. No fundo, o horizonte da vida de quem vive assim a sua fé é mais ateu do que cristão, pois a referência decisiva para eles é o olhar dos homens e não o de Deus. No contexto atual, numa sociedade que vive tanto do parecer e do aparecer, onde as redes sociais se tornam lugar de exposição do que fazemos e vivemos, está muito presente o perigo de expor aquilo que deveria ser vivido no recolhimento, na descrição e no silêncio. Aprendamos com Jesus e com a viúva do Evangelho, a exigente arte de dar testemunho na simplicidade do coração e na entrega total da vida.

A viúva, que deposita tudo quanto possui na arca do tesouro, testemunha que na nossa vida cristã e na entrega da vida que ela exige, não está em causa uma questão de quantidade, mas de totalidade. Quem não dá tudo, por muito que possa dar, dá ainda muito pouco. Jesus ensina-nos que quem dá apenas o supérfluo deixa a vida intacta, ao contrário do dom de si que transforma a vida para sempre. Mas não deixemos que este desafio e estas palavras fiquem apenas na poética da entrega e do amor. Pensemos no concreto do nosso quotidiano: o que estamos dispostos a dar? O que nos sobra ou o que nos faz falta? Por exemplo, quando oferecemos roupa para uma qualquer campanha de solidariedade, damos o que não nos serve ou já não está em bom estado ou a peça de roupa nova que mais gostamos?

Será este modo concreto de pensar a vida e o quotidiano que marcará a diferença. É esta mudança do coração e da vida que faz irromper no tempo e na história uma nova lógica de ser e de estar, que se traduz num novo modo de servir e amar ao jeito do Mestre que, oferecendo-se todo e até ao fim, nos abriu as portas da felicidade que tem sabor de eternidade.in Voz Portucalense.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 1 Re 17,10-16

Leitura do Primeiro Livro dos Reis

Naqueles dias,
o profeta Elias pôs-se a caminho e foi a Sarepta.
Ao chegar às portas da cidade,
encontrou uma viúva a apanhar lenha.
Chamou-a e disse-lhe:
«Por favor, traz-me uma bilha de água para eu beber».
Quando ela ia a buscar a água, Elias chamou-a e disse:
«Por favor, traz-me também um pedaço de pão».
Mas ela respondeu:
«Tão certo como estar vivo o Senhor, teu Deus,
eu não tenho pão cozido,
mas somente um punhado de farinha na panela
e um pouco de azeite na almotolia.
Vim apanhar dois cavacos de lenha,
a fim de preparar esse resto para mim e meu filho.
Depois comeremos e esperaremos a morte».
Elias disse-lhe:
«Não temas; volta e faz como disseste.
Mas primeiro coze um pãozinho e traz-mo aqui.
Depois prepararás o resto para ti e teu filho.
Porque assim fala o Senhor, Deus de Israel:
‘Não se esgotará a panela da farinha,
nem se esvaziará a almotolia do azeite,
até ao dia em que o Senhor mandar chuva sobre a face da terra’».
A mulher foi e fez como Elias lhe mandara;
e comeram ele, ela e seu filho.
Desde aquele dia, nem a panela da farinha se esgotou,
nem se esvaziou a almotolia do azeite,
como o Senhor prometera pela boca de Elias.

 

CONTEXTO

Encontramos no Livro dos Reis um conjunto de tradições ligadas à vida e à ação de uma figura central do profetismo bíblico: o profeta Elias. Essas tradições aparecem, de forma intermitente, entre 1 Re 17,1 e 2 Re 2,12.
Elias (cujo nome significa “o meu Deus é o Senhor” – o que, por si só, constitui logo um programa de vida) atua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).

Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.

Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.

O ciclo de Elias começa com o anúncio, diante do rei Acab, de uma seca que irá atingir Israel (cf. 1 Re 17,1). Essa seca é apresentada, não tanto como um castigo pelos pecados do rei, mas sobretudo como uma forma de mostrar que é Jahwéh (e não Baal, o deus cananeu das colheitas e da fertilidade, cujo culto era favorecido por Jezabel, a esposa fenícia de Acab) o verdadeiro senhor da vida que brota, cada ano, nos campos e nos rebanhos. A implacável seca leva, contudo, Elias para a cidade de Sarepta (hoje Sarafand), uma pequena cidade da costa fenícia, a cerca de 15 quilómetros a sul de Sídon. É aí que o nosso texto nos situa.in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • A nossa história – como tantas outras histórias bíblicas – fala-nos da predileção de Deus pelos desfavorecidos, pelos débeis, pelos pobres, pelos explorados, por aqueles que são colocados à margem da vida. Porquê? Porque Deus vê a história humana na perspetiva da luta de classes e escolhe um lado em detrimento do outro? Obviamente, não. No entanto, Deus opta preferencialmente pelos pobres porque, em primeiro lugar, eles vivem numa situação dramática de necessidade e precisam especialmente da bondade, da misericórdia e da ajuda de Deus; e, em segundo lugar, porque os pobres – sem bens materiais que os distraiam do essencial – estão sempre mais atentos e disponíveis para acolher os apelos, os desafios e os dons de Deus. Os “ricos”, ao contrário, estão sempre preocupados com os seus bens, com os seus interesses egoístas, com os seus projetos e preconceitos e não têm espaço para acolher as propostas que Deus lhes faz. Isto deve lembrar-nos, permanentemente, a necessidade de sermos “pobres”, de nos despirmos de tudo aquilo que pode atravancar o nosso coração e que pode impedir-nos de acolher os desafios e as propostas de Deus.
  • A mulher de Sarepta tinha, apenas, uma quantidade mínima de alimento, que queria guardar para si e para o seu filho; mas, desafiada a partilhar, viu esse escasso alimento ser multiplicado uma infinidade de vezes… A história convida-nos a não nos fecharmos em esquemas egoístas de acumulação e de lucro, esquecendo os apelos de Deus à partilha e à solidariedade com os nossos irmãos necessitados. Quando repartimos, com generosidade e amor, aquilo que Deus colocou à nossa disposição, não ficamos mais pobres; os bens repartidos tornam-se fonte de vida e de bênção para nós e para todos aqueles que deles beneficiam.
  • A nossa história prova que só Jahwéh dá ao homem vida em abundância. É um aviso que não podemos ignorar… Todos os dias somos confrontados com propostas de felicidade e de vida plena que, quase sempre, nos conduzem por caminhos de escravidão, de dependência, de desilusão. Não é à volta do dinheiro, do carro, da casa, do cargo que temos na empresa, dos títulos académicos que ostentamos, das honras que nos são atribuídas que devemos construir a nossa existência. Só Deus nos dá a vida plena e verdadeira; todos os outros “deuses” são elementos acessórios, que não devem afastar-nos do essencial. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)

Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.

Refrão 2: Aleluia.

O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.

O Senhor ilumina os olhos do cego,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.

O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.

O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.

 

LEITURA II – Heb 9,24-28

Leitura da Epístola aos Hebreus

Cristo não entrou num santuário feito por mãos humanas,
figura do verdadeiro,
mas no próprio Céu,
para Se apresentar agora na presença de Deus em nosso favor.
E não entrou para Se oferecer muitas vezes,
como sumo sacerdote que entra cada ano no Santuário,
como sangue alheio;
nesse caso, Cristo deveria ter padecido muitas vezes,
desde o princípio do mundo.
Mas Ele manifestou-Se uma só vez, na plenitude dos tempos,
para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo.
E, como está determinado que os homens morram uma só vez
e a seguir haja o julgamento,
assim também Cristo, depois de Se ter oferecido uma só vez
para tomar sobre Si os pecados da multidão,
aparecerá segunda vez, sem a aparência do pecado,
para dar a salvação àqueles que O esperam.

CONTEXTO

No passado domingo, o autor da Carta aos Hebreus apresentava Cristo como o sumo-sacerdote por excelência, não na linha do sacerdócio levítico, mas na linha do sacerdócio de Melquisedec… Hoje, passamos a outra secção (cf. Heb 8,1-9,28), na qual o autor apresenta Cristo como o sacerdote perfeito e explica em que consiste essa perfeição e quais as suas consequências para a vida dos fiéis.

Depois de refletir sobre a imperfeição do culto antigo (cf. Heb 8,1-6), a imperfeição da antiga Aliança (cf. Heb 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios oferecidos no Templo de Jerusalém (cf. Heb 9,1-10), o autor passa a explicar aos cristãos a quem a Carta se destina porque é que o sacrifício oferecido por Cristo é perfeito (cf. Heb 9,11-14) e como é que, por esse sacrifício, Cristo se torna o mediador da Nova Aliança (cf. Heb 9,15-22). No último parágrafo desta secção (cf. Heb 9,23-28), o autor tira, para a vida dos fiéis, as consequências de tudo o que disse atrás, a propósito do sacerdócio perfeito de Cristo.

Dirigindo-se a cristãos em dificuldade, que já perderam o entusiasmo inicial e que, diante das dificuldades, correm o risco de renunciar ao compromisso assumido no dia do Baptismo, o autor da Carta procura animá-los e revitalizar a sua experiência de fé.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A ideia de que Cristo nos libertou do pecado com o seu sacrifício domina este texto. O que é que o autor da Carta aos Hebreus quer dizer com isto? Cristo veio a este mundo para libertar o homem das cadeias de egoísmo e de pecado que o prendiam. Nesse sentido, Cristo pediu uma “metanoia” (transformação radical) do coração, da mente, dos valores, das atitudes do homem e propôs, com a sua palavra, com o seu exemplo, com a sua vida, que o homem passasse a percorrer o caminho do amor, da partilha, do serviço, do perdão, do dom da vida. A sua entrega na cruz é a lição suprema que Ele quis deixar-nos – a lição do amor que renuncia ao egoísmo e que se faz dom total aos irmãos, até às últimas consequências. Mais, a sua luta contra o pecado levou-O a confrontar-Se com as estruturas políticas, sociais ou religiosas geradoras de injustiça e de opressão; a sua morte, arquitetada pelos detentores do poder (as autoridades políticas e religiosas do país), foi, também, a consequência da sua luta contra as estruturas que oprimiam o homem e que geravam egoísmo e morte. Ele ofereceu, de facto, a sua vida em sacrifício para nos libertar do pecado. A sua ressurreição revelou que Deus aceitou o seu sacrifício e que não deixará mais que o pecado roube ao homem a vida. Aderir a Jesus, ser cristão, é procurar viver, dia a dia, no seguimento de Jesus e fazer da própria vida um dom de amor aos irmãos; é, também, lutar contra todas as estruturas que geram injustiça e pecado. Gastar a vida dessa forma é participar da missão de Jesus, é colaborar com Ele para eliminar o pecado.
  • As outras leituras deste domingo falam-nos de desapego, de partilha, de capacidade para “dar tudo”. Cristo, com a entrega total da sua vida a Deus e aos homens, realizou plenamente esta dimensão. Ele mostrou-nos, com o seu sacrifício, qual é o dom perfeito que Deus quer e que espera de cada um dos seus filhos. Mais do que dinheiro ou outros bens materiais, Deus espera de nós o dom da nossa vida, ao serviço desse projeto de salvação que Ele tem para os homens e para o mundo.
  • A certeza de que Jesus Cristo, o sacerdote perfeito, venceu o pecado e está agora junto de Deus, intercedendo por nós e esperando o momento de nos oferecer a vida eterna, deve dar-nos confiança e esperança, ao longo da nossa caminhada diária pela vida. A Palavra de Deus que hoje nos é oferecida garante-nos que as nossas fragilidades e debilidades não podem afastar-nos da comunhão com Deus, da vida eterna; e, no final do nosso caminho, Jesus, o nosso libertador, lá estará à nossa espera para nos oferecer a vida definitiva. in Dehonianos.

EVANGELHO Mc 12,38-44

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus ensinava a multidão, dizendo:
«Acautelai-vos dos escribas,
que gostam de exibir longas vestes,
de receber cumprimentos nas praças,
de ocupar os primeiros assentos nas sinagogas
e os primeiros lugares nos banquetes.
Devoram as casas das viúvas
com pretexto de fazerem longas rezas.
Estes receberão uma sentença mais severa».
Jesus sentou-Se em frente da arca do tesouro
a observar como a multidão deixava o dinheiro na caixa.
Muitos ricos deitavam quantias avultadas.
Veio uma pobre viúva
e deitou duas pequenas moedas, isto é, um quadrante.
Jesus chamou os discípulos e disse-lhes:
«Em verdade vos digo:
Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros.
Eles deitaram do que lhes sobrava,
mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha,
tudo o que possuía para viver».

 

CONTEXTO

O nosso texto situa-nos em Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão, julgamento e morte de Jesus. Por esta altura, adensam-se as polémicas de Jesus com os representantes do Judaísmo oficial. A cada passo fica mais claro que o projeto do Reino (proposto por Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos líderes judaicos. Num ambiente carregado de dramatismo, adivinha-se o inevitável choque decisivo entre Jesus e a instituição judaica e prepara-se o cenário da Cruz.

Jesus tem consciência de que os líderes da comunidade judaica tinham transformado a religião de Moisés – com os seus ritos, exigências legais, proibições e obrigações – numa proposta vazia e estéril. Mal-servida e manipulada pelos seus líderes religiosos, a comunidade judaica tinha-se transformado numa figueira seca (cf. Mc 11,12-14. 20-26), onde Deus não encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o amor, a justiça, a misericórdia). O próprio Templo – o espaço onde se desenrolavam abundantes ritos cultuais e sumptuosas cerimónias litúrgicas – tinha deixado de ser o lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e tinha-se tornado um lugar de exploração e de injustiça, “um covil de ladrões” (cf. Mc 11,15-19) …

Jesus tem presente tudo isto quando ensina nos átrios do Templo, rodeado pelos discípulos. À sua volta desenrola-se esse folclore religioso, feito de ritos externos, de grandes gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo. Os “doutores da Lei” (geralmente, do partido dos fariseus; estudavam e memorizavam as Escrituras e ensinavam aos seus discípulos as regras – ou “halakot” – que deviam dirigir cada passo da vida dos fiéis israelitas), com as suas vestes especiais e os traços característicos de quem se julgava com direito a todas as deferências, honras e privilégios, são mais um elemento no quadro desse culto de mentira que Jesus tem diante dos olhos.
Em contraponto, Jesus repara no “átrio das mulheres”, onde uma viúva deposita, no tesouro do Templo, a sua humilde oferta (dons voluntários eram feitos com frequência, tendo por finalidade, por exemplo, cumprir votos). As viúvas, no ambiente palestino de então (sobretudo quando não tinham filhos que as protegessem e alimentassem), eram o modelo clássico do pobre, do explorado, do débil. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Qual é o verdadeiro culto que Deus espera de nós? Qual deve ser a nossa resposta à sua oferta de salvação? A forma como Jesus aprecia o gesto daquela pobre viúva não deixa lugar a qualquer dúvida: Deus não valoriza os gestos espetaculares, cuidadosamente encenados e preparados, mas que não saem do coração; Deus não se deixa impressionar por grandes manifestações cultuais, por grandes e impressionantes manifestações religiosas, cuidadosamente preparadas, mas hipócritas, vazias e estéreis… O que Deus pede é que sejamos capazes de Lhe oferecer tudo, que aceitemos despojar-nos das nossas certezas, das nossas manifestações de orgulho e de vaidade, dos nossos projetos pessoais e preconceitos, a fim de nos entregarmos confiadamente nas suas mãos, com total confiança, numa completa doação, numa pobreza humilde e fecunda, num amor sem limites e sem condições. Esse é o verdadeiro culto, que nos aproxima de Deus e que nos torna membros da família de Deus. O verdadeiro crente é aquele que não guarda nada para si, mas que, dia a dia, no silêncio e na simplicidade dos gestos mais banais, aceita sair do seu egoísmo e da sua autossuficiência e colocar a totalidade da sua existência nas mãos de Deus.
  • Como na primeira leitura, também no Evangelho temos um exemplo de uma mulher pobre (ainda mais, uma viúva, que pertence à classe dos abandonados, dos débeis, dos mais pobres de entre os pobres), que é capaz de partilhar o pouco que tem. Na reflexão bíblica, os pobres, pela sua situação de carência, debilidade e necessidade, são considerados os preferidos de Deus, aqueles que são objeto de uma especial proteção e ternura por parte de Deus. Por isso, eles são olhados com simpatia e até, numa visão simplista e idealizada, são retratados como pessoas pacíficas, humildes, simples, piedosas, cheias de “temor de Deus” (isto é, que se colocam diante de Deus com serena confiança, em total obediência e entrega). Este retrato, naturalmente um pouco estereotipado, não deixa de ter um sólido fundo de verdade: só quem não vive para as riquezas, só quem não tem o coração obcecado com a posse dos bens (falamos, naturalmente, do dinheiro, da conta bancária; mas falamos, igualmente, do orgulho, da autossuficiência, da vontade de triunfar a todo o custo, do desejo de poder e de autoridade, do desejo de ser aplaudido e admirado) é capaz de estar disponível para acolher os desafios de Deus e para aceitar, com humildade e simplicidade, os valores do Reino. Esses são os preferidos de Deus. O exemplo desta mulher garante-nos que só quem é “pobre” – isto é, quem não tem o coração demasiado cheio de si próprio – é capaz de viver para Deus e de acolher os desafios e os valores do Reino.
  • A figura dos doutores da Lei está em total contraste com a figura desta mulher pobre. Eles têm o coração completamente cheio de si; estão dominados por sentimentos de egoísmo, de ambição e de vaidade, apostam tudo nos bens materiais, mesmo que isso implique explorar e roubar as viúvas e os pobres… Na verdade, no seu coração não há lugar para Deus e para os outros irmãos; só há lá lugar para os seus interesses mesquinhos e egoístas. Eles são a antítese daquilo que os discípulos de Jesus devem ser; não apreciam os valores do Reino e, dessa forma, não podem integrar a comunidade do Reino. Podem ter atitudes que, na aparência, são religiosamente corretas, ou podem mesmo ser vistos como autênticos pilares da comunidade do Povo de Deus; mas, na verdade, eles não fazem parte da família de Deus. Nunca é demais refletirmos sobre este ponto: quem vive para si e é incapaz de viver para Deus e para os irmãos, com verdade e generosidade, não pode integrar a família de Jesus, a comunidade do Reino.
  • Jesus ensina-nos, neste episódio, a não julgarmos as pessoas pelas aparências. Muitas vezes é precisamente aquilo que consideramos insignificante, desprezível, pouco edificante, que é verdadeiramente importante e significativo. Muitas vezes Deus chega até nós na humildade, na simplicidade, na debilidade, nos gestos silenciosos e simples de alguém em quem nem reparamos. Temos de aprender a ir ao fundo das coisas e a olhar para o mundo, para as situações, para a história e, sobretudo, para os homens e mulheres que caminham ao nosso lado, com o olhar de Deus. É precisamente isso que Jesus faz.
  • Uma das críticas que Jesus faz aos doutores da Lei é que eles se servem da religião, da sua posição de intérpretes oficiais e autorizados da Lei, para obter honras e privilégios. Trata-se de uma tentação sempre presente, ontem como hoje… Em nenhum caso a nossa fé, o nosso lugar na comunidade, a consideração que as pessoas possam ter por nós ou pelas funções que desempenhamos podem ser utilizadas, de forma abusiva, para “levar a água ao nosso moinho” e para conseguir privilégios particulares ou honras que não nos são devidas. Utilizar a religião para fins egoístas é um comércio ilícito e abominável, e constitui um enorme contratestemunho para os irmãos que nos rodeiam.in Dehonianos

 

Para os leitores:

Na primeira leitura, é necessário ter em atenção o diálogo entre Elias e a viúva, com especial cuidado nas intervenções em discurso direto. Deve evitar-se quer o tom demasiado dramático, quer uma leitura indistinta do discurso direto e indireto. As palavras Sarepta e almotolia devem pronunciar-se re.p.ta (lendo o p) e al.mu.tu.li.a.

A segunda leitura possui frases longas e com diversas orações. Deve fazer-se uma preparação acurada, indicando pausas e respirações, para uma proclamação mais articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

 

ANEXOS:

Domingo XXXI do Tempo Comum – Ano B – 03.11.2024

Viver a Palavra

Um amor absolutamente centrado em Deus e universalmente alargado aos irmãos é a proposta de Jesus para quem deseja acolher o projeto de realização e felicidade que Deus tem para cada homem e cada mulher. Ser discípulo de Jesus, acolher o Seu chamamento à santidade, é fazer do amor o alicerce seguro onde edificamos a nossa vida. Por isso, ao ser interpelado por um escriba, que lhe pergunta «qual é o primeiro de todos os mandamentos?», Jesus fala de um amor entrelaçado, que comporta dois amores inseparáveis: o amor a Deus e o amor aos irmãos e, deste modo, o amor não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas.

Jesus está com os discípulos a caminho de Jerusalém e a proclamação do amor a Deus e ao próximo tem de estar necessariamente situado neste horizonte de entrega, da qual Jerusalém e a Cruz são sinal. Jesus não se limita a falar do amor, não se limita a dizer que «o maior é aquele que serve», mas lava os pés aos Seus discípulos e faz-se Servo. Jesus não se limita a dizer que «não há maior amor do que dar a vida pelos amigos», mas voluntariamente foi até ao fim dando a vida por nós na Cruz. Ensina-nos a beleza de um amor que se vive no concreto da vida, que se constitui como maior e mais importante mandamento, porque plasmando toda a vida humana, nos faz saborear a beleza divina.

Por isso, o anúncio do amor em Jesus de Nazaré é a proclamação de um amor que se faz entrega generosa em atitudes concretas e onde palavras e gestos intimamente ligados entre si (DV 2) nos falam do amor maior que Deus derrama sobre cada um de nós.

Este escriba que se aproxima de Jesus coloca-lhe uma pergunta bem-intencionada, ao contrário de outras passagens evangélicas onde escribas, fariseus ou doutores da lei se dirigem a Jesus para o porem à prova ou armarem alguma cilada. Na verdade, sabemos que os mestres judeus, lendo minuciosamente os livros da Lei tinham encontrado 613 preceitos, acerca dos quais se desenvolviam inúmeras discussões e conflitos para que se estabelecesse uma hierarquia, para identificar quais os mais importantes.

É verdade, que já estamos longe da imposição destes 613 preceitos, mas não deixa de ser atual a pergunta acerca daquilo que é mais importante na nossa vida. Entre os múltiplos afazeres de cada dia, com o frenesim do trabalho, da vida familiar e dos compromissos sociais, a nossa vida enche-se e preenche-se de coisas a fazer e de deveres a cumprir. É urgente tornar à pergunta acerca daquilo que é mais importante e deve estar no centro da nossa vida: o amor. Tendo bem presente as palavras do livro do Deuteronómio, Jesus propõe um amor a Deus que se vive «com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças», isto é, um amor que envolve toda a vida e a vida toda, porque nenhuma dimensão da nossa vida deve ficar fora deste dinamismo de amor e de graça. Deste modo, se sou convidado a amar assim a Deus, sou convidado a amar o que Ele ama, sou chamado a amar cada homem e cada mulher como um irmão, porque o mandamento novo do amor há-de sempre recordar-nos a beleza de sermos filhos muito amados de Deus e, por isso, desafiados ao exigente e reconfortante compromisso de viver como irmãos. in Voz Portucalense.

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No Domingo XXXI, dia 3 de novembro, inicia a Semana de oração pelos Seminários. O tema deste ano é: “Que posso eu esperar?” (cf. Sl 39,8). A Comissão Episcopal Vocações e Ministérios preparou um conjunto de materiais para ajudar as comunidades a viver e dinamizar esta semana. Os materiais estão disponíveis na página da referida comissão (http://www.ecclesia.pt/cevm/). Recomenda-se que seja uma semana de oração e partilha com os seminários diocesanos, mas também a oportunidade de apresentar o seminário como lugar feliz de formação para o serviço da Igreja. Poderá ser oportuno da parte do presidente da celebração uma pequena partilha da sua experiência no seminário, sobretudo junto dos mais jovens. Além disso, a Liturgia da Palavra deste Domingo é uma oportunidade para falar da vocação ao ministério presbiteral como lugar de entrega num amor centrado em Deus e universalmente alargado aos irmãos.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 6,2-6

Moisés dirigiu-se ao povo, dizendo:
«Temerás o Senhor, teu Deus, todos os dias da tua vida,
cumprindo todas as suas leis e preceitos que hoje te ordeno,
para que tenhas longa vida,
tu, os teus filhos e os teus netos.
Escuta, Israel, e cuida de pôr em prática
o que te vai tornar feliz e multiplicar sem medida
na terra onde corre leite e mel,
segundo a promessa que te fez o Senhor, Deus de teus pais.
Escuta, Israel:
o Senhor nosso Deus é o único Deus.
Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração,
com toda a tua alma e com todas as tuas forças.
As palavras que hoje te prescrevo
ficarão gravadas no teu coração».

 

CONTEXTO

O Livro do Deuteronómio parece ser o “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18° ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22,3-13) e que serviu de motor à grande reforma religiosa levada a cabo por este rei no sentido de reconduzir o Povo à fé em Javé. Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com ele uma Aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, uma família unida que tem Deus como a sua grande referência (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).

Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, pouco antes de o Povo libertado do Egito atravessar o Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua Aliança com Javé.

O texto que hoje nos é proposto integra o segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Tanto pelo lugar que ocupa no livro, como pela sua importância, este segundo discurso de Moisés constitui o centro do Livro do Deuteronómio. Em linhas gerais, este discurso apresenta-se em três peças principais: uma introdução (cf. Dt 4,44-11,32), um código legal (cf. Dt 12,1-25,19) e uma conclusão (cf. Dt 26,1-28,68).

A primeira parte da introdução ao segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-9,5) oferece-nos uma apresentação do Decálogo (cf. Dt 5,1-33) – a Lei fundamental da Aliança estabelecida entre Deus e Israel, no Horeb – e, na sequência, um conjunto de exortações ao Povo para que viva na fidelidade aos mandamentos (cf. Dt 6,1-9,5). O nosso texto é um extrato dessa exortação.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • “Temerás o Senhor, teu Deus, todos os dias da tua vida” – diz Moisés ao Povo que se prepara para entrar na Terra da Promessa. A expressão pode soar mal aos ouvidos dos crentes formados na escola de Jesus, que se habituaram a ver em Deus um Pai bom, que ama cada um dos seus filhos com um amor sem limites. A um Deus que ama como Pai, não se “teme”: aproximamo-nos d’Ele com a confiança de filhos, que se sentem queridos, acolhidos e profundamente amados. “Temer o Senhor” é, na realidade, responder ao amor desse Pai bom com a obediência incondicional, a confiança inamovível, a entrega confiada; é renunciar à própria autossuficiência para se entregar completamente nas mãos de Deus, acolhendo, com a confiança de filhos, as suas indicações, as suas propostas, os seus bons conselhos de Pai. Como é que nos situamos diante de Deus? Caminhamos pela vida carregando o fardo do medo de Deus, ou fazemos caminho sentindo que a ternura do nosso Pai do céu nos liberta, nos consola, nos dá confiança, nos abre em cada passo horizontes de esperança? A nossa resposta ao amor de Deus traduz-se no acolhimento das suas propostas e indicações?
  • “Escuta, Israel: o Senhor nosso Deus é o único Deus”. Esta “profissão de fé” que os crentes israelitas ainda hoje fazem duas vezes por dia, convida-nos a lembrar a centralidade única de Deus nas nossas vidas. Deus “é o único”: é Ele e só Ele que nos dá Vida e que enche de significado a nossa existência. É à volta d’Ele que podemos ancorar o nosso projeto de vida. Provavelmente todos nós, crentes, aceitamos isto… Mas, mesmo assim, podemos viver como “politeístas práticos”, que no dia a dia correm atrás de outros “deuses”, de “deuses” efémeros, nos quais pomos a nossa confiança, a nossa segurança e a nossa esperança: o dinheiro, o poder, o êxito, a posição social, os títulos, as honras, os aplausos e a admiração dos que nos rodeiam… Estamos conscientes de que esses “deuses”, mesmo trazendo algo de útil e de agradável à nossa existência, não podem servir de pedra angular na construção da nossa vida? Estamos conscientes de que algumas realidades que endeusamos poderão escravizar-nos e destruir-nos?
  • “Amarás o Senhor teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças” – pede Moisés ao Povo de Deus. Como é que deve expressar-se, em termos práticos, esse amor a Deus? É através de declarações solenes e ocas de boas intenções? É através de fórmulas fixas de oração que papagueamos de cor? É através de solenes ritos litúrgicos, que nos enchem os olhos, mas não nos tocam o coração? Não deverá antes ser na entrega total nas mãos de Deus, na escuta atenta da sua vontade, no cumprimento dos seus mandamentos e preceitos, no testemunho do amor junto dos nossos irmãos, no compromisso com a construção de um mundo que esteja de acordo com o projeto de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 17

Refrão: Eu Vos amo, Senhor: Vós sois a minha força.

 

Eu Vos amo, Senhor, minha força,
minha fortaleza, meu refúgio e meu libertador,
meu Deus, auxílio em que ponho a minha confiança,
meu protetor, minha defesa e meu salvador.

Invoquei o Senhor – louvado seja Ele –
e fiquei salvo dos meus inimigos.
Viva o Senhor, bendito seja o meu protetor;
exaltado seja Deus, meu Salvador.

Senhor, eu Vos louvarei entre os povos
e cantarei salmos ao vosso nome.
O Senhor dá ao seu Rei grandes vitórias
e usa de bondade para com o seu Ungido.

 

LEITURA II – Hebreus 7,23-28

Os sacerdotes da antiga aliança
sucederam-se em grande número,
porque a morte os impedia de durar sempre.
Mas Jesus, que permanece eternamente,
possui um sacerdócio eterno.
Por isso pode salvar para sempre
aqueles que por seu intermédio se aproximam de Deus,
porque vive perpetuamente para interceder por eles.
Tal era, na verdade, o sumo sacerdote que nos convinha:
santo, inocente, sem mancha,
separado dos pecadores e elevado acima dos céus,
que não tem necessidade, como os sumos sacerdotes,
de oferecer cada dia sacrifícios,
primeiro pelos seus próprios pecados,
depois pelos pecados do povo,
porque o fez de uma vez para sempre
quando Se ofereceu a Si mesmo.
A Lei constitui sumos sacerdotes
homens revestidos de fraqueza,
mas a palavra do juramento, posterior à Lei,
estabeleceu o Filho sumo sacerdote perfeito para sempre.

CONTEXTO

A Carta aos Hebreus, mais do que uma “carta”, é um sermão de autor desconhecido, que alguns pensam ter sido um discípulo do apóstolo Paulo. Os destinatários desse sermão são cristãos que vivem a sua fé em contexto difícil e que, por isso, deixaram arrefecer o seu entusiasmo e o seu compromisso com Jesus e com o Evangelho. O uso abundante de citações e de figuras do Antigo Testamento poderá indiciar que esses cristãos são de origem judaica; mas isso não é totalmente claro, uma vez que o Antigo Testamento já era, na altura em que a Carta aos Hebreus apareceu, referência para todos os cristãos, quer os de origem judaica, quer os de origem greco-romana.

Recorrendo à linguagem da catequese judaica, o autor da Carta aos Hebreus apresenta Cristo como o sumo-sacerdote fiel e misericordioso que estabelece a ligação entre Deus e os homens. Depois de ter incarnado e caminhado lado a lado com os homens, Jesus “atravessou os céus” e apresentou ao Pai a nossa humanidade, obtendo de Deus o perdão para as nossas falhas e inserindo-nos na família de Deus. Membros de Cristo, fazemos parte do Povo sacerdotal, que é a Igreja. De olhos postos em Cristo, procuramos viver de acordo com as suas indicações e, como Ele, fazemos da vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor.

Referindo-se a Cristo como o sumo-sacerdote que nos dá acesso a Deus, o autor da Carta aos Hebreus coloca-o na linha de Melquisedec (cf. Heb 6,20), um personagem misterioso que se encontra com Abraão depois de este vencer o rei Cadorlaomer e seus aliados. Apresentado como rei e sacerdote de Salem (localidade desconhecida, que o Sl 76,3 identifica com Jerusalém), Melquisedec é “sacerdote do Deus Altíssimo”. Abençoa Abraão e oferece-lhe pão e vinho; e Abraão, o antepassado dos sacerdotes levíticos, inclinar-se-á diante dele e pagar-lhe-á o dízimo (cf. Gn 14,18-20). O Salmo 110, por sua vez, apresenta um rei da casa de David como o continuador do sacerdote Melquisedec (“o Senhor jurou” ao rei “e não voltará atrás: tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedec” – Sl 110,4). A partir daqui a figura de Melquisedec adquirirá uma clara conotação messiânica. Após o Exílio na Babilónia, os judeus esperam ver surgir um salvador da descendência de David que reúna, como Melquisedec, o sacerdócio e a realeza.

O autor da Carta aos Hebreus vê Cristo a esta luz. Na sua perspetiva, Jesus exerce um sacerdócio perfeito e eterno, que não se vincula ao sacerdócio de Levi (que é um sacerdócio exercido por homens pecadores, mortais e que se sucedem de geração em geração), mas que realiza o sacerdócio real do Messias davídico, sucessor de Melquisedec.

Na primeira parte do capítulo 7 da Carta, o autor resume a história de Melquisedec e afirma a superioridade do seu sacerdócio sobre o sacerdócio levítico (cf. Heb 7,1-10); na segunda, o autor demonstra que o sacerdócio novo de Cristo (na linha do sacerdócio de Melquisedec) é um sacerdócio perfeito e eterno, que veio substituir o sacerdócio levítico e abolir a antiga Lei (cf. Heb 7,11-28). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Dirigindo-se a cristãos que vivem num ambiente hostil e que, por isso, se sentem desanimados e desmotivados, o autor da Carta aos Hebreus convida-os a revitalizar o seu compromisso com Cristo. Ele, o sumo-sacerdote eterno que intercede por nós junto de Deus, é fonte inesgotável de Vida e de salvação. Por isso, não podemos fechar-lhe as portas da nossa vida, nem desistir do caminho que Ele nos indica. A recomendação do autor da Carta aos Hebreus continua a fazer sentido vinte séculos depois… O ambiente desfavorável à fé, a crise de valores, o cansaço, a acomodação, talvez mesmo a desilusão que sentimos diante das fragilidades da Igreja, podem levar-nos a negligenciar o nosso compromisso com Cristo e a “guardar na gaveta” os valores do Evangelho. Mas Cristo continua a ser a nossa melhor oportunidade para construirmos uma vida plena de sentido. Estamos conscientes disso? As suas palavras, as suas indicações, o seu evangelho, continuam a ser decisivos na definição da nossa vida, das nossas opções, do nosso caminho?
  • Uma das razões que leva o autor da Carta aos Hebreus a estabelecer a superioridade do sacerdócio de Cristo sobre o sacerdócio levítico prende-se com a “qualidade” do sacrifício que Cristo ofereceu a Deus. Ele não ofereceu, como os sacerdotes do Antigo Testamento, o sangue de animais imolados, mas ofereceu a sua própria vida. Ele pôs a sua vida ao serviço do projeto de Deus e deu tudo, até à última gota de sangue, para que esse projeto se concretizasse. Nós, os crentes, sempre preocupados em agradar a Deus e em render-Lhe o culto que Ele merece, esquecemos, por vezes, o óbvio: mais do que ritos majestosos, manifestações públicas de fé, solenes celebrações, Deus aprecia o dom de nós mesmos. O culto que Ele nos pede, o sacrifício que Ele aprecia e que há de gerar Vida nova para nós e para os que caminham ao nosso lado, é a obediência aos seus projetos, o acolhimento da sua vontade, a entrega completa da nossa vida nas suas mãos. Como é a nossa resposta ao amor de Deus? É uma resposta puramente externa, ou é a oblação a Deus de nós próprios, de tudo o que somos e fazemos?
  • Cristo é, efetivamente, o sumo-sacerdote que está junto do Pai e que intercede continuamente por nós, como repete até ao infinito o autor da Carta aos Hebreus. A consciência desse facto deve encher o nosso coração de paz, de esperança e de confiança: se Cristo intercede por nós, podemos encarar a vida de forma serena, com a consciência de que as nossas debilidades e fragilidades nunca nos afastarão, de forma definitiva, da comunhão com Deus e da vida eterna. Essa certeza é, para nós, fonte de paz, de harmonia e de esperança? in Dehonianos.

EVANGELHO Marcos 12,28-34

Naquele tempo,
aproximou-se de Jesus um escriba e perguntou-Lhe:
«Qual é o primeiro de todos os mandamentos?»
Jesus respondeu:
«O primeiro é este:
‘Escuta, Israel:
O Senhor nosso Deus é o único Senhor.
Amarás o Senhor teu Deus
com todo o teu coração, com toda a tua alma,
com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças’.
O segundo é este:
‘Amarás o teu próximo como a ti mesmo’.
Não há nenhum mandamento maior que estes».
Disse-Lhe o escriba:
«Muito bem, Mestre! Tens razão quando dizes:
Deus é único e não há outro além d’Ele.
Amá-l’O com todo o coração,
com toda a inteligência e com todas as forças,
e amar o próximo como a si mesmo,
vale mais do que todos os holocaustos e sacrifícios».
Ao ver que o escriba dera uma resposta inteligente,
Jesus disse-lhe:
«Não estás longe do reino de Deus».
E ninguém mais se atrevia a interrogá-I’O.

 

CONTEXTO

Jesus e os discípulos já estão em Jerusalém. Chegaram há três dias. Durante a noite, têm ficado alojados em Betânia, a pequena povoação situada no lado oriental do Monte das Oliveiras; mas todos os dias descem o monte, entram na cidade de Jerusalém e dirigem-se ao templo.

Esses dias têm sido marcados por duros confrontos entre Jesus e as autoridades religiosas de Jerusalém. Logo no segundo dia Jesus tinha realizado o gesto profético de expulsar do Templo os negociantes e tinha acusado os líderes judaicos de terem feito da “casa de Deus um covil de ladrões” (cf. Mc 11,15-18). Depois disso, tinha contado aos dirigentes judeus a parábola dos vinhateiros homicidas (cf. Mc 12,1-12), acusando-os de se oporem, de forma continuada, à realização do plano salvador de Deus. Os líderes judaicos, convencidos de que Jesus era irrecuperável, tinham tomado decisões drásticas: Ele devia ser preso, julgado, condenado e eliminado. Fariseus, partidários de Herodes (cf. Mc 12,13) e até saduceus (cf. Mc 12,18), procuravam estender armadilhas a Jesus, a fim de O surpreender em afirmações pouco ortodoxas, que pudessem ser usadas em tribunal para conseguir uma condenação. As controvérsias sobre o tributo a César (cf. Mc 12,13-17) e sobre a ressurreição dos mortos (cf. Mc 12,18-27) devem ser situadas e compreendidas neste contexto.

É precisamente neste cenário que aparece um escriba a perguntar a Jesus qual era o maior mandamento da Lei. Ao contrário de Mateus (cf. Mt 22,34-40), Marcos não considera, contudo, que a questão seja posta a Jesus para o embaraçar ou para o pôr à prova. O escriba que coloca a questão parece ser um homem sincero e bem-intencionado, genuinamente preocupado em esclarecer uma questão para a qual ele ainda não tinha encontrado uma resposta convincente.

De facto, a questão do maior mandamento da Lei não era uma questão pacífica e tornou-se, no tempo de Jesus, objeto de debates intermináveis entre os fariseus e os doutores da Lei. A preocupação em atualizar a Lei, de forma que ela respondesse a todas as questões que a vida do dia a dia punha, tinha levado os doutores da Lei a deduzir um conjunto de 613 preceitos, dos quais 365 (o número dos dias do ano) eram proibições e 248 (o número dos membros do corpo humano, segundo a mentalidade judaica) ações a pôr em prática. Esta “multiplicação” dos preceitos legais lançava, no entanto, a questão da ordenação dos mandamentos: qual era o primeiro, o maior, o mais importante, aquele que devia aparecer à frente de todos os outros? Os “mestres” judaicos mantinham, sobre isto, discussões intermináveis; mas as suas respostas não eram coincidentes. É daqui que parte a pergunta que o escriba traz a Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Dois mil anos de cristianismo significam um longo caminho. Ao longo desse caminho, a comunidade de Jesus – como todas as instituições que caminham pela história – foi acumulando um grande número de coisas: normas, preceitos, costumes, tradições, ritos, doutrinas, explicações, veneráveis opiniões, teorias mais ou menos discutíveis… Algum desse material é muito belo e continua a ajudar a comunidade cristã a caminhar na fidelidade a Jesus; outro é datado, perdeu o prazo de validade e pode tornar-se obstáculo para que os homens e mulheres do séc. XXI possam descobrir Jesus e a sua proposta. O pó que os séculos vão acumulando pode, a dada altura, ocultar-nos o essencial e fazer-nos perder a noção do que é realmente importante. Hoje, em âmbito eclesial, gastamos tempo e energias a discutir certas questões secundárias, puramente acidentais, enquanto deixamos em segundo plano o essencial da proposta de Jesus. As palavras de Jesus que escutamos no evangelho deste domingo poderão ajudar-nos a refazer as nossas prioridades: o essencial é o amor a Deus e o amor aos irmãos. Nisto se resume toda a revelação de Deus e a sua proposta de Vida plena e definitiva para os homens. O que é que consideramos essencial para nos mantermos fiéis e a Jesus e à sua proposta? A nossa avaliação do que é essencial está de acordo com as palavras de Jesus que hoje ouvimos?
  • O que é “amar a Deus”? Olhemos para Jesus… Ele sentia-se profundamente amado por Deus; Deus era o centro da sua vida. Por isso, procurava estar com o Pai, falar com o Pai, conhecer os planos do Pai para o mundo e para os homens. Jesus vivia o seu amor a Deus a partir desta realidade. Para Ele, o amor a Deus concretizava-se na procura de proximidade com o Pai, na escuta do Pai, na obediência incondicional à vontade do Pai, na entrega de toda a sua vida à realização do projeto do Pai. Esta forma de “amar a Deus” pode ser um bom modelo para nós. Deus é para nós, como era para Jesus, um Pai por quem nos sentimos profundamente amados? E esse amor que Deus nos dedica atrai-nos, faz-nos sentir necessidade de arranjar tempo para estar com Ele, para manter um diálogo com Ele? Faz-nos sentir vontade de acolher as indicações de Deus e de viver de acordo com elas? Motiva-nos para acolhermos os projetos de Deus e para nos comprometermos em torná-los realidade no mundo que estamos a construir?
  • O que é “amar os irmãos”? Olhemos outra vez para Jesus… Ele “passou pelo mundo fazendo o bem”. Curava as feridas dos que sofriam, sentava-se à mesa com aqueles que a sociedade e a religião condenavam, tocava os leprosos e devolvia-lhes a consciência da sua dignidade, defendia as mulheres vítimas de leis discriminatórias, saciava a fome das multidões e ensinava-as a partilhar, levava a esperança a todos aqueles cujas vidas estavam em becos sem saída. Nunca discriminou ninguém e morreu pedindo a Deus perdão para os seus assassinos. Os seus gestos testemunhavam a solicitude, a misericórdia de Deus por todos os seus filhos. De acordo com o exemplo e o testemunho de Jesus, o amor aos irmãos passa por cuidarmos de cada homem e de cada mulher com quem nos cruzamos nos nossos caminhos de todos os dias, sem distinção de raça, de nacionalidade, de estatuto social, de religião ou de qualquer outra fronteira real ou imaginária. Como é que vemos e tratamos os irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado? Sentimo-nos responsáveis por cada pessoa que sofre, que vive em condições indignas, que é vítima de injustiça, que é deixada para trás, que é maltratada e desrespeitada?
  • Muitos homens e mulheres, ao longo da história, viram no “amor a Deus” e no “amor ao próximo” duas realidades de difícil conciliação. Alguns dos que acentuavam a verticalidade – o “amor a Deus” – fecharam-se numa piedade que fugia do mundo e se refugiava em lugares solitários, de olhos postos na contemplação de Deus, à margem dos problemas e das dores dos homens e das mulheres; outros, que acentuavam a horizontalidade (o “amor ao próximo”) – apostaram tudo na dimensão humana, desvalorizando Deus, ou até mesmo considerando Deus um adversário da liberdade e da realização plena dos seres humanos. O evangelho deste domingo garante que não há qualquer contradição entre as duas realidades. “A glória de Deus é o homem vivo” (Santo Ireneu de Lião); quem mergulha no amor de Deus descobre que a grande preocupação de Deus é o bem dos seus queridos filhos e filhas que peregrinam na terra. A contemplação de Deus alguma vez nos afastou da luta por um mundo mais digno e mais humano para todos os filhos e filhas de Deus? A intervenção social alguma vez nos afastou de Deus ou nos levou a “fechar os ouvidos” às indicações de Deus?
  • Qual é, para nós, o elemento fundamental da nossa experiência de fé? Que lugar ocupa o amor – o amor a Deus e o amor ao próximo – no edifício da nossa vida religiosa? Por vezes não tenderemos a dar demasiada importância a elementos que não têm grande significado (as tradições religiosas que herdamos dos nossos antepassados, a devoção que nos inspira determinada imagem religiosa, as festas com um leve verniz religioso mas que são pretexto para manifestações pouco cristãs, os rituais pomposos e muitas vezes vazios de significado, as questões disciplinares laterais, as honrarias pouco evangélicas, os títulos “religiosos” que nada significam…), esquecendo o essencial, negligenciando o mandamento maior? in Dehonianos

 

Para os leitores:

As leituras propostas para este Domingo não apresentam nenhuma dificuldade relevante na sua preparação. Contudo, a aparente facilidade destas leituras não deve permitir descurar a sua preparação:

A primeira leitura deve ser marcada pelo tom exortativo do discurso de Moisés ao Povo e a segunda leitura tem frases longas com diversas orações

 

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

 

ANEXOS:

Domingo XXX do Tempo Comum – Ano B – 27.10.2024

Viver a Palavra

O discípulo missionário é aquele que experimentando na sua vida a ação salvífica de Deus, se faz anunciador das maravilhas do amor do Pai, revelado de modo pleno, total e definitivo em Jesus Cristo, Luz das nações.

Na Liturgia da Palavra deste Domingo sentimos ecoar a alegria de um Deus que se aproxima de nós, que caminha connosco, que estabelece, em Jesus Cristo, gestos concretos de amor e misericórdia que estão já presentes na revelação veterotestamentária, como escutamos nas palavras do Profeta Jeremias: «soltai brados de alegria por causa de Jacob, enaltecei a primeira das nações. Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai: ‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’», ou no canto do Salmo Responsorial: «da nossa boca brotavam expressões de alegria e dos nossos lábios cânticos de júbilo».

Somos desafiados pela Palavra de Deus a olhar a nossa vida com um coração agradecido, reconhecendo as maravilhas que Deus realiza. A oração de louvor é o segredo para encontrar a força e a coragem para os momentos mais difíceis e exigentes da nossa vida: assim como no passado Deus se fez presente na nossa vida, manifestando o Seu amor e cuidado, assim no presente e no futuro o Senhor estará connosco para que cada obstáculo e desafio sejam uma nova oportunidade para sentir o Seu amor e a Sua graça. Deste modo, as dificuldades e desafios tornam-se lugares de crescimento e a oportunidade de renovar a fidelidade à Palavra de Deus que nos convida a depositar Nele toda a nossa confiança.

A nossa fraqueza e pecado não são um caminho sem saída, como nos recorda a Carta aos Hebreus, tornam-se escola de compreensão e perdão, pois partilhando com os irmãos esta condição de fragilidade, compartilhamos a necessidade do perdão oferecido e recebido como lugar de exercício da verdadeira fraternidade.

Jesus, Aquele que assumiu a nossa fraqueza, para nos elevar pela força do Seu amor, é o rosto da misericórdia do Pai e não fica indiferente às nossas dores e fragilidades. Jesus sai de Jericó, vai a caminho de Jerusalém e escuta o clamor do cego Bartimeu: «Jesus, Filho de David, tem piedade de mim». Jesus chama-o, quer entrar em diálogo com ele, pergunta-lhe o que pretende, manifestando assim o desejo de escutar as suas necessidades e anseios. É assim Jesus, deve ser assim a Igreja, enquanto continuadora da obra redentora de Cristo: caminhando no meio dos homens e mulheres do Seu tempo, deve ser lugar de escuta e de acolhimento.

Contudo, há um pormenor muito interessante: Jesus pede aos discípulos para irem chamar Bartimeu e eles chamam-no utilizando duas palavras, que só Jesus pronuncia nas restantes passagens do Evangelho: primeiro, o apelo «Coragem!» como convite à confiança porque a sua prece foi escutada e depois a ordem «Levanta-te!», tal como Jesus quando se dirigia aos doentes, tomando-os pela mão e salvando-os das suas enfermidades.

Também nós, discípulos missionários no hoje da história, diante dos gritos e clamores da humanidade ferida por tantas estradas de dor e sofrimento, somos chamados a assumir na nossa vida as palavras e gestos de Jesus, para que no mundo possa despontar a Luz que só Jesus pode oferecer e a Esperança que só a Sua misericórdia nos pode garantir. in Voz Portucalense.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jeremias 31,7-9

Eis o que diz o Senhor:
«Soltai brados de alegria por causa de Jacob,
enaltecei a primeira das nações.
Fazei ouvir os vossos louvores e proclamai:
‘O Senhor salvou o seu povo, o resto de Israel’.
Vou trazê-los das terras do Norte
e reuni-los dos confins do mundo.
Entre eles vêm o cego e o coxo,
a mulher que vai ser mãe e a que já deu à luz.
É uma grande multidão que regressa.
Eles partiram com lágrimas nos olhos
e Eu vou trazê-los no meio de consolações.
Levá-Ios-ei às águas correntes,
por caminho plano em que não tropecem.
Porque Eu sou um Pai para Israel
e Efraim é o meu primogénito».

 

CONTEXTO

Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o reino de Judá (e, sobretudo, a cidade de Jerusalém).

A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei, preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus, leva a cabo uma importante reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à aliança.

Em 609 a.C., no entanto, Josias é morto, em combate contra os egípcios. Depois de uns meses de instabilidade, o trono de Judá é ocupado por Joaquim (609-597 a.C.). É durante o reinado de Joaquim que se desenrola a segunda fase da missão profética de Jeremias. Nesta fase, o profeta denuncia as graves injustiças sociais (às vezes fomentadas pelo próprio rei) que fragilizavam irremediavelmente o tecido social de Judá; e denuncia, por outro lado, a infidelidade religiosa, traduzida sobretudo na política de alianças políticas com potências estrangeiras (Jeremias entende que os líderes de Judá, ao colocarem a esperança da nação em exércitos estrangeiros, estão a mostrar que não confiam em Deus). Convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas, Jeremias anuncia a iminência de uma invasão babilónica que irá castigar os pecados da nação. As previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado. Num primeiro momento, Sedecias mantém-se alheado das convulsões políticas que agitavam os povos da região; mas, após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Uma vez mais, Jeremias manifesta o seu desacordo com essa política temerária, que mais tarde ou mais cedo há de desembocar no desastre. Nem o rei, nem os notáveis prestam qualquer atenção à opinião do profeta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias aparece a anunciar o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jer 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jer 37,11- 16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jer 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

É impossível dizer com segurança em que contexto apareceu a mensagem que nos é proposta como primeira leitura neste trigésimo domingo comum. Para alguns comentadores, trata-se de um oráculo que poderia situar-se na primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias) e que seria dirigido aos habitantes do Reino do Norte (Israel). Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio. Para outros, contudo, este texto poderá ser da época de Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e começa a refletir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá. in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • Num momento histórico dramático, quando o Povo de Deus exilado nas “terras do norte” se afundava no desânimo, Jeremias lança a sua proclamação convidando à alegria e ao louvor. Razão: Deus vai intervir para salvar o seu Povo, “o resto de Israel”. É um episódio mais de uma história de salvação que continua a escrever-se nos nossos dias e nos dias que hão de vir, até ao final dos tempos. Em pleno séc. XXI, Deus continua a vir ao encontro do seu Povo exilado neste “vale de lágrimas”, a estender-lhe a mão e a empurrá-lo para caminhos novos de vida e de esperança. As alterações climáticas fazem-nos temer pela viabilidade do planeta, as guerras novas e velhas continuam a tingir de sangue inocente a história do mundo, a ambição e a arrogância dos grandes parecem incontroláveis, a indiferença nascida do egoísmo condena cada dia mais e mais homens a caminhos sem saída… E Deus? Deus continua a insistir, uma e outra vez, com paciência infinita, em conduzir-nos em direção à Vida, em apontar-nos caminhos de salvação. Deus não desiste de nós. Deus não desiste dos seus filhos e filhas. Deus não desiste de ser “nosso Pai” e de nos envolver de ternura e amor. Como sentimos, como acolhemos, como vivemos esta “boa notícia”? O que é que ela traz à nossa luta de todos os dias? Podemos continuar a semear pessimismo quando somos amados desta forma?
  • Jeremias garante que a ação salvadora e libertadora de Deus estender-se-á a todos, inclusive aos “cegos” e aos “coxos”. Os “coxos” e os “cegos representam, aqui, aqueles que estão numa situação de fragilidade, de debilidade, de dependência e que são incapazes, por si sós, de deixar essa condição. Também com esses – ou especialmente com esses – Deus quer caminhar. Na verdade, Deus não marginaliza ninguém, nem coloca ninguém à margem da sua proposta de salvação. Os fracos, os débeis, os limitados, os marginalizados ocupam um lugar especial no coração de Deus e são objeto privilegiado do seu amor e da sua misericórdia. Na nossa sociedade, os pequenos, os pobres, os humildes, os doentes, os velhos, os estrangeiros sem papéis são, frequentemente, marginalizados e ultrapassados pelo comboio da história. A sociedade edifica-se sem eles ou, pelo menos, sem ter em conta as suas necessidades e carências… Nós, os crentes, formados na escola de Deus, procuramos olhar para eles com o mesmo olhar com que Deus os olha? Somos capazes de ver em cada homem ou mulher – no “coxo”, no “cego”, no velho, no doente, no marginal – um irmão que Deus ama e a quem Deus quer oferecer, por nosso intermédio, a Vida plena, a salvação definitiva?
  • A história da salvação mostra, numa repetição que chega a ser monótona, de um lado o amor e a fidelidade de Deus, do outro a infidelidade do Povo. Ora, apesar da resposta continuamente dececionante de Israel ao amor e à fidelidade de Deus, a verdade é que Deus nunca virou as costas ao seu Povo. Toda a história da salvação é uma história de perdão, de possibilidade de recomeço, de convite à superação do pecado. Também para nós isto vale. Podemos virar as costas a Deus e fechar-nos na nossa pobre autossuficiência; podemos ignorar a voz de Deus e escolher andar em caminhos que nos levam para longe d’Ele; podemos ir atrás de deuses menores, de deuses dececionantes, de deuses que nos escravizam e não nos asseguram vida… Mas, aconteça o que acontecer, Deus lá estará em cada passo do caminho a olhar para nós com um olhar cheio de amor, a perdoar-nos e a convidar-nos para nos sentarmos novamente com Ele à mesa da Vida nova, à mesa onde Ele quer reunir todos os seus filhos e filhas. Acreditamos na misericórdia e no perdão de Deus? O amor e a misericórdia de Deus são para nós motivação para vencermos a cegueira e a paralisia que tantas vezes nos impedem de caminhar? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 125 (126)

Refrão 1: Grandes maravilhas fez por nós o Senhor, por isso exultamos de alegria.

Refrão 2: O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo.

 

Quando o Senhor fez regressar os cativos de Sião,
parecia-nos viver um sonho.
Da nossa boca brotavam expressões de alegria
e dos nossos lábios cânticos de júbilo.

Diziam então os pagãos:
«O Senhor fez por eles grandes coisas».
Sim, grandes coisas fez por nós o Senhor,
estamos exultantes de alegria.

Fazei regressar, Senhor, os nossos cativos,
como as torrentes do deserto.
Os que semeiam em lágrimas
recolhem com alegria.

À ida vão a chorar,
levando as sementes;
à volta vêm a cantar,
trazendo os molhos de espigas.

 

LEITURA II – Hebreus 5,1-6

Todo o sumo sacerdote, escolhido de entre os homens,
é constituído em favor dos homens,
nas suas relações com Deus,
para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados.
Ele pode ser compreensivo
para com os ignorantes e os transviados,
porque também ele está revestido de fraqueza;
e, por isso, deve oferecer sacrifícios
pelos próprios pecados e pelos do seu povo.
Ninguém atribui a si próprio esta honra,
senão quem foi chamado por Deus, como Aarão.
Assim também, não foi Cristo que tomou para Si a glória
de Se tornar sumo sacerdote;
deu-Lha Aquele que Lhe disse:
«Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»,
e como disse ainda noutro lugar:
«Tu és sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedec».

 

CONTEXTO

A tradição, sobretudo das igrejas do oriente, atribui a Paulo de Tarso o escrito a que chamamos “Carta aos Hebreus”; mas as igrejas do ocidente há muito que descartaram a autoria paulina desta “homilia”. É provável que a “Carta aos Hebreus” venha de um discípulo de Paulo; mas não foi Paulo que a escreveu. Teria aparecido pouco antes do ano 70, quando o culto praticado no Templo ainda era uma realidade atual (recorde-se que, no ano 70, os romanos destruíram Jerusalém e o Templo). Os destinatários da “Carta” são, segundo a tradição, comunidades cristãs constituídas maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; no entanto, também há quem considere que a Carta poderia dirigir-se a qualquer comunidade cristã, nomeadamente a comunidades onde dominavam os cristãos de origem greco-romana. O facto de se citar abundantemente o Antigo Testamento não é decisivo para a definição dos destinatários, uma vez que, por essa altura, o Antigo Testamento era património comum de todos os cristãos. Seja como for, os destinatários da Carta aos Hebreus são crentes que vivem numa situação de fragilidade, de cansaço e de desalento. O objetivo do autor da Carta é ajudar esses cristãos a redescobrir o entusiasmo inicial, a revitalizar o seu compromisso com Cristo e a empenhar-se numa fé mais coerente e mais comprometida.

O autor desta reflexão convida os crentes a apreciar o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, que o Pai enviou ao mundo com a missão de convidar todos os homens a integrar a comunidade do Povo sacerdotal. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes – membros desse Povo sacerdotal – devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Ao lembrar aos crentes o seu compromisso com Cristo e com a comunidade do Povo sacerdotal, o autor oferece aos cristãos a base para revitalizarem a sua experiência de fé, enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação e pela monotonia.

O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Jesus Cristo, o sumo-sacerdote “que atravessou os céus” para interceder junto de Deus pelos seus “irmãos” (cf. Heb 4,14-16), tornou-se para todos os que beneficiam do seu sacerdócio fonte de salvação eterna (cf. Heb 5,1-10). in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • Caminhamos para onde? Por que caminhos? O que buscamos? Quem nos conduz, de forma que possamos chegar a porto seguro e dar sentido pleno à nossa vida? O autor da Carta aos Hebreus apresenta-nos Jesus e convida-nos a segui-l’O sem hesitações. Garante-nos que Ele nos leva ao Pai e nos ajudará a integrar a família de Deus. Ninguém vai ao Pai, ninguém encontra a Vida verdadeira sem caminhar com Jesus, sem escutar as suas indicações, sem viver ao seu estilo. É uma mensagem destinado a acordar crentes adormecidos, conformados com uma fé morna e sem grandes exigências, instalados na sua zona de conforto, protegidos atrás da sua segurança e do seu bem-estar. E nós? Escutamos Jesus, temo-lo como referência sempre que temos de fazer opções e de escolher caminhos? Ele é para nós Caminho, Verdade e Vida? Estamos dispostos a deixar que Ele nos conduza até ao Pai?
  • Jesus experimentou a nossa fragilidade, a nossa debilidade, a nossa dependência; identificou-se connosco e tornou-Se capaz de compreender os nossos erros e de olhar para as nossas insuficiências com bondade e misericórdia. Depois, “atravessou os céus” e apresentou-se diante de Deus a interceder por nós e a obter do Pai a nossa salvação. Quando a consciência da nossa fragilidade e do nosso pecado nos impedir de caminhar em paz; quando o remorso pelas nossas escolhas erradas nos pesar intoleravelmente, lembremo-nos de Jesus, o nosso irmão, a interceder por nós junto do Pai. Caminhamos derrotados pelos nossos erros e pelo nosso pecado, ou confiamos em Jesus e na misericórdia de Deus?
  • Jesus experimentou a nossa fragilidade e os nossos limites; solidarizou-se com todos os homens e mulheres, independentemente do lugar que a sociedade lhes atribuía. Esteve especialmente do lado dos mais frágeis, dos mais pequenos, dos mais esquecidos. O seu exemplo convida-nos à solidariedade com os últimos, com os pobres, com os mais humildes, com aqueles que o mundo rejeita e marginaliza; convida-nos a identificarmo-nos com os sofrimentos e as angústias, as alegrias e as esperanças de cada homem ou mulher; convida-nos a fazer o que estiver ao nosso alcance para promover aqueles que são humilhados, explorados, incompreendidos, colocados à margem da vida e da história. Sentimo-nos solidários com os irmãos e as irmãs que fazem caminho connosco, especialmente com aqueles dos quais ninguém cuida, que ninguém quer, que ninguém defende? Sentimos que as dores e feridas que fazem sofrer os nossos irmãos também são nossas? in Dehonianos.

EVANGELHO Marcos 10,46-52

Naquele tempo,
quando Jesus ia a sair de Jericó
com os discípulos e uma grande multidão,
estava um cego, chamado Bartimeu, filho de Timeu,
a pedir esmola à beira do caminho.
Ao ouvir dizer que era Jesus de Nazaré que passava,
começou a gritar:
«Jesus, Filho de David, tem piedade de mim».
Muitos repreendiam-no para que se calasse.
Mas ele gritava cada vez mais:
«Filho de David, tem piedade de mim».
Jesus parou e disse: «Chamai-O».
Chamaram então o cego e disseram-lhe:
«Coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te».
O cego atirou fora a capa, deu um salto e foi ter com Jesus.
Jesus perguntou-lhe:
«Que queres que Eu te faça?»
O cego respondeu-Lhe:
«Mestre, que eu veja».
Jesus disse-lhe:
«Vai: a tua fé te salvou».
Logo ele recuperou a vista
e seguiu Jesus pelo caminho.

 

CONTEXTO

Jesus e os discípulos descem pelo vale do Jordão, a caminho de Jerusalém. Já não falta muito para que esse caminho – simultaneamente geográfico e espiritual – chegue ao seu termo. O grupo entra na cidade de Jericó, mas não fica lá muito tempo. É provável que Jesus tivesse uma certa pressa de chegar a Jerusalém.

Jericó, a “cidade das Palmeiras”, é um oásis situado na margem do rio Jordão, a norte do Mar Morto, a cerca de 30 quilómetros de Jerusalém. Considerada a cidade mais antiga do mundo, está a cerca de 250 metros abaixo do nível do mar. Foi por Jericó que os hebreus vindos do Egito, conduzidos por Josué, entraram na Terra Prometida. Na época de Jesus, era uma cidade relativamente importante, com grandes plantações de palmeiras e de bálsamo. Para os peregrinos que vinham da Galileia e da Pereia, pelo vale do Jordão, a caminho de Jerusalém, Jericó era um local de passagem obrigatória. Herodes, o Grande, edificou em Jericó um luxuoso palácio de Inverno e dotou a cidade de um hipódromo e de um anfiteatro. Foi aí que ele cometeu alguns dos seus muitos crimes e onde veio a falecer. Jericó era, também, a cidade do publicano Zaqueu (cf. Lc 19,1-10).

Quando Jesus e os discípulos estão a sair de Jericó para retomarem o caminho para Jerusalém, deparam-se com um homem sentado à beira do caminho. Esse homem é cego e chama-se Bartimeu (Marcos explica aos seus leitores que o nome significa “filho de Timeu”).

Os “cegos” – como Bartimeu – faziam parte do grupo dos excluídos da sociedade palestina de então. As deficiências físicas eram consideradas pela teologia oficial como resultado do pecado. Ora, nesta lógica, um cego era alguém que tinha cometido um pecado especialmente grave, pois tinha sido castigado por Deus com um problema físico que o impedia de estudar a Lei. Pela sua condição de impureza notória, os cegos eram impedidos de servir de testemunhas no tribunal e de participar nas cerimónias religiosas no Templo. in Dehonianos

 

INTERPELAÇÕES

  • A situação inicial do cego Bartimeu – encerrado numa escuridão paralisante, acomodado à sua vida de hábitos e comportamentos velhos, aos seus medos, às suas hesitações, à sua vergonha – evoca um quadro que talvez não nos seja estranho… É a condição do homem que não consegue levantar os olhos do chão, que vive a prazo, que navega sempre à vista de terra, que se conforma com horizontes limitados e é incapaz de olhar para mais longe e mais alto; é a situação do homem prisioneiro do egoísmo, do orgulho, da ambição, dos bens materiais, da preguiça, que vive preso a preocupações rasteiras e materiais; é a realidade do homem refém dos seus vícios, hábitos e paixões, que “deixa correr” as coisas porque não se sente com capacidade para romper, com as suas frágeis forças, as cadeias que o impedem de construir uma vida mais digna e mais ditosa. A Palavra de Deus que escutamos neste domingo garante-nos que a vida não tem de ser vivida desta forma. Estamos conscientes disso? Estamos dispostos a vencer a tentação do imobilismo, da acomodação, do facilitismo, das apostas fáceis em “conquistas” que nunca saciam a nossa fome de vida eterna?
  • Para o cego Bartimeu, o momento decisivo para a transformação da sua vida foi o encontro com Jesus. Bartimeu sentiu, nesse instante, que Jesus lhe oferecia perspetivas novas de vida e de realização; percebeu que Jesus lhe trazia uma proposta irrecusável e que não podia deixar escapar a oportunidade que lhe era oferecida. Em Jesus, Bartimeu viu a oportunidade de deixar a escuridão e de nascer para a luz. O encontro com Jesus, se é verdadeiro, é sempre desafiante e transformador. Ora, esse mesmo Jesus que Se cruzou com o cego Bartimeu à saída de Jericó continua a cruzar-Se hoje, de forma continuada, com cada homem e com cada mulher nos caminhos da vida e a oferecer-lhes, sem cessar, a possibilidade de agarrarem uma vida nova, uma vida cheia de sentido, uma vida plenamente realizada… E isto diz-nos respeito: a salvação que Jesus oferece também é para nós. Ousaremos sair do nosso egoísmo, da nossa indiferença, da nossa autossuficiência para escutar e abraçar a proposta de Jesus?
  • Bartimeu confiou e colocou toda a sua vida nas mãos de Jesus. Atirou fora, sem hesitação, a vida que conhecia até aí, deu um salto qualitativo que alterou os seus horizontes e partiu para a aventura de seguir Jesus. Bartimeu apostou tudo em Jesus; e, ao fazer essa opção, deixou de estar sentado “à beira do caminho” para “ir com Jesus no caminho” ou para “fazer caminho com Jesus”. Jesus passou a ser a sua referência, o seu “mestre”, o seu “guia”, o seu “Senhor”. E nós? Quem é a nossa referência no caminho da fé? Vivemos a fé como seguimento incondicional de Jesus, ou como o simples cumprimento de rituais que herdamos dos nossos antepassados e que vivemos de forma desleixada, morna e pouco comprometida? Sentimo-nos discípulos decididos, que não querem perder Jesus de vista porque sabem que Ele é Caminho, Verdade e Vida?
  • Na história do encontro de Bartimeu com Jesus, aparecem diversos figurantes, com papéis vários. Uns são obstáculo ao encontro entre Bartimeu e Jesus (“muitos repreendiam-no para que se calasse”); mas outros apresentam-se como intermediários entre Jesus e Bartimeu e transmitem ao cego o “chamamento” de Jesus (“coragem! Levanta-te, que Ele está a chamar-te”). Este facto serve para nos tornar conscientes do papel daqueles que nos rodeiam no nosso caminho da fé. Ao longo da nossa caminhada, encontraremos pessoas que nos levam até Jesus e que nos ajudam a tornarmo-nos discípulos; mas encontraremos também pessoas que, muitas vezes com ótimas intenções, tentam impedir-nos de nos comprometermos com Jesus e com o Reino de Deus. Assim, neste processo de aproximação a Jesus, temos de tentar perceber, com sentido crítico, a quem dar ouvidos, que indicações e conselhos devemos acolher ou rejeitar… Entre as pessoas que encontramos no nosso caminho, quem é que nos pode ajudar, genuinamente, a chegar a Jesus e a estabelecer contacto com Ele?
  • As pessoas que encorajam Bartimeu a aproximar-se de Jesus representam aqueles homens e mulheres genuinamente preocupados com o sofrimento dos seus irmãos, que não conseguem ficar indiferentes ao apelo de quem procura a luz, que têm um coração capaz de se compadecer com as lágrimas e as dores dos que vivem em dificuldade. Esses são, no meio do mundo, sinais vivos da misericórdia, da ternura e do amor de Deus; esses são filhos verdadeiros de um Deus que ama. Como nos posicionamos diante dos gritos dos nossos irmãos que sofrem? Preocupamo-nos em cuidar das feridas dos homens e mulheres que encontramos caídos nas estradas da vida e procuramos levá-los a Jesus a fim de que Ele os cure?
  • Quando alguém abandona a vida velha e decide tornar-se discípulo de Jesus, não tem todos os problemas resolvidos. Enfrenta desafios novos, fica fora da sua zona de conforto e tem de se adaptar a novas realidades, perde a segurança que os velhos hábitos davam, tem de enfrentar as críticas e as incompreensões de quem não compreende a sua opção… Aquele caminho de Jerusalém para o qual Jesus convoca os discípulos, é um caminho que passa pela cruz e pelo dom de si próprio. Não esqueçamos, no entanto, que esse caminho conduz à Vida nova, à ressurreição, à Vida definitiva. Jesus não arrasta os seus discípulos para um beco sem saída, mas leva-os ao encontro da Vida verdadeira, segundo o projeto do Pai. Quando avaliamos tudo isto, sentimo-nos com coragem para escolher Jesus e para O seguir? Estamos seguros de que vale a pena seguir Jesus, apesar de todas as dificuldades que teremos de enfrentar? in Dehonianos

 

Para os leitores:

A primeira leitura é o anúncio alegre e jubiloso da libertação de Israel. A proclamação deste texto deve ser marcada por este tom, valorizando as formas verbais no modo imperativo: «soltai», «enaltecei», «proclamai».

A segunda leitura requer uma acurada preparação nas pausas e respirações, sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações, para uma mais articulada leitura do texto.

 

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Domingo XXIX do Tempo Comum – Ano B – 20.10.2024

XCVIII DIA MUNDIAL DAS MISSÕES

Viver a Palavra

O caminho é lugar de encontro e desencontro, ousadia e tibieza, entusiasmo e desânimo, expectativas e desilusões. Contudo, mais do que estes binómios extremos, a caminhada de cada homem e de cada mulher constrói-se numa grande diversidade de sentimentos e emoções que invadem o nosso coração e que reclamam uma nova cultura do encontro e do cuidado que promove a comunhão e a unidade.

Os discípulos estão a caminho com Jesus e acabaram de escutar o terceiro anúncio da paixão. Estão desconcertados! Seguir um homem forte e vitorioso que abre os olhos aos cegos, põe os coxos a andar e ressuscita os mortos é entusiasmante e oferece garantias de que vale a pena confiar a vida e gastar as forças. Os discípulos parecem ignorar que juntamente com o anúncio da paixão e morte, Jesus anuncia que ao terceiro dia ressuscitará. Confiar em Alguém que anuncia a morte e o sofrimento como caminho inevitável para o cumprimento da vontade do Pai torna-se muito exigente. A nova lógica do Reino não é imediata, nem humanamente apetecível, e o facto de nos impelir a abraçar um modo novo de ser e de estar que se traduz num modo novo de servir e amar, provoca a procura de seguranças e certezas que ofereçam tranquilidade e estabilidade. Controlar o presente para dominar o futuro é um caminho tentador. Por isso, Tiago e João enchem-se de coragem e abeiram-se de Jesus com um pedido descarado e incisivo: «Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».

Poderiam ter colocado diante de Jesus a questão que lhes ocupava o coração, quais as motivações que os levavam a fazer tal pedido e dar a Jesus a liberdade de propor o caminho a percorrer. Porém, os discípulos pensam saber bem o que pretendem e querem apenas que Jesus execute o que desejam. Tiago e João são imagem da nossa vida orante quando nos dirigimos a Jesus para Lhe dizer aquilo que Ele deve fazer. Na verdade, a verdadeira oração não é aquela que se faz até que Jesus nos ouça, mas aquela que se realiza até que nós saibamos escutar melhor a voz de Deus. A confiança de que Deus é o Senhor do tempo e da história, permite abrir o coração à Sua vontade e criar a docilidade para nos deixarmos conduzir por Ele. Contudo, quando ao invés queremos encontrar em nós e no mundo as nossas seguranças, entramos numa lógica utilitarista que nos afasta da verdadeira espiritualidade cristã.

«Concede-nos que, na tua glória, nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda». Diante do anúncio do Mestre, Tiago e João começam a pensar nos lugares a ocupar. Mais do que se aproximarem do Mestre, pretendem passar à frente dos demais. Jesus adverte-os: quando pedimos motivados pela tentação de controlar o presente para dominar o futuro, não sabemos o que estamos a pedir, porque ao invés de acolher a vontade Daquele que nos chama ao amor e à felicidade, estamos a impor os nossos desejos e a nossa vontade.

Jesus, sábio pedagogo, não recrimina, mas chama a si os discípulos e com amor e paciência aponta o novo horizonte do Reino: «quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos». A humildade e o serviço como coordenadas fundamentais para ser grande. Não são os nossos pedidos que definem o nosso lugar, mas a certeza de que a nossa vida se inscreve numa dinâmica responsorial que nos impele a proclamar: «eis-me aqui!». Quem se deixa escolher por Deus coloca os pés ao caminho e, ao jeito de Jesus, Servo da Humanidade, encontrará no serviço por amor o caminho da verdadeira felicidade. in Voz Portucalense.

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No XXIX Domingo do Tempo Comum, dia 20 de outubro, celebramos o Dia Mundial das Missões. O tema para este ano é «Ide e convidai a todos para o banquete (cf. Mt 22, 9)». As comunidades cristãs são convidadas a dinamizar quer este dia, quer este mês, ajudando toda a comunidade a abrir o coração para a dimensão missionária da Igreja e, de modo particular, para a missão Ad Gentes. As Obras Missionárias Pontifícias em Portugal prepararam um guião para ajudar na vivência e celebração deste dia e deste mês (https://www.opf.pt/guiao-missionario/). Sublinho a mensagem do Papa Francisco para este dia que pode ser divulgada e distribuída nas diversas celebrações (ver anexo). in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 53,10-11

Aprouve ao Senhor esmagar o seu Servo pelo sofrimento.
Mas, se oferecer a sua vida como vítima de expiação,
terá uma descendência duradoira, viverá longos dias,
e a obra do Senhor prosperará em suas mãos.
Terminados os sofrimentos,
verá a luz e ficará saciado.
Pela sua sabedoria, o Justo, meu Servo, justificará a muitos
e tomará sobre si as suas iniquidades.

CONTEXTO

O texto que a liturgia deste vigésimo nono domingo comum nos propõe como primeira leitura pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

O Povo de Deus estava cansado e desanimado, depois de várias décadas de Exílio. Não via saída para a sua triste situação. Perguntava-se se Deus se tinha esquecido de Judá e se as promessas outrora feitas por Deus ainda eram válidas. Nesse contexto, o Deutero-Isaías recebeu de Deus a missão de consolar os exilados e de manter, com a sua mensagem, aberta a porta da esperança. Nesse sentido, o Deutro-Isaías começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Javé”: ele é um predileto de Javé, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte (apenas dois versículos) do quarto cântico do “servo de Javé”. Nesse cântico, Deus toma a palavra, no início, para chamar a atenção para o seu “servo”, “de rosto desfigurado e aspeto disforme” (Is 52,13); depois a palavra passa para um “coro”, que narra a paixão, e a morte, bem como o sentido do sacrifício do “servo de Javé” (cf. Is 53,1-11a); finalmente, Deus retoma a palavra para confirmar as palavras do “coro” e para declarar a inocência do “servo”, cuja morte “justificará a muitos”. O nosso texto apresenta a leitura que o “coro” faz sobre o sentido da paixão e da morte do “servo” (Is 53,10-11a), bem como parte das palavras finais de Deus (Is 53,11bc). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Como classificaríamos a vida do “servo de Javé”, se tivéssemos que lhe “dar nota”? À luz dos critérios que regem o nosso mundo, que diríamos sobre a vida de um homem que nunca atraiu as atenções (“cresceu como raiz em terra árida, sem figura, sem beleza e sem aspeto atraente” – Is 53,2), que foi marginalizado, maltratado e humilhado sem protestar ou se revoltar (cf. Is 53,3.7), que foi condenado e morto sem ser culpado (cf. Is 53,8), que mesmo depois de morto foi desprezado (cf. Is 53,9)? Hesitaríamos alguma vez em o colocar no lote dos “perdedores”, dos fracassados, dos que falharam a vida, dos que não deixaram a sua pegada na história do nosso mundo? No entanto – diz-nos a primeira leitura deste vigésimo nono domingo comum – o plano de Deus para o mundo concretizou-se por meio dele (cf. Is 53,10), e os seus gestos de amor e serviço trouxeram vida aos seus irmãos (cf. Is 53,11). Será possível que, para Deus, esse homem maltratado e humilhado, sem voz e sem vez, que os grandes do mundo desconsideraram e mataram seja um vencedor? Porque é que Deus aprecia este “servo”, até ao ponto de dizer que ele “terá êxito” e “será engrandecido e exaltado” (Is 52,13)? Deus terá critérios diferentes dos nossos para avaliar o sentido da vida? Que pensamos desta estranha lógica de Deus? E que pensamos sobre a lógica oposta – a lógica dos homens – que considera e promove os grandes, os poderosos, os triunfadores, os ambiciosos, os que levantam a voz para se impor e para reivindicar um estatuto de grandeza e de poder?
  • Olhemos ainda outra vez para este “servo” insignificante e desprezado pelos homens, mas que é um sinal de Deus no mundo: através dele Deus vem ao encontro dos homens e oferece-lhes a salvação. Ora, o “servo de Javé” não é um caso isolado. Em todos os tempos da história têm surgido homens e mulheres – humildes, simples, despretensiosos, às vezes desprezados e desconsiderados pela gente importante da sociedade e das igrejas – que com os seus gestos de serviço, de doação e de entrega são sinais vivos de Deus no meio dos seus irmãos e irmãs. Neles “vemos”, ao vivo e a cores, a bondade e o amor de Deus. Seremos capazes de olhar para essas pessoas simples e boas, que amam e servem “a fundo perdido”, e ver nelas o rosto bondoso e terno de Deus?
  • Qual o sentido do sofrimento? Porque é que há tantas pessoas boas, honestas, justas, generosas, que atravessam a vida mergulhadas na dor e no sofrimento? Trata-se de uma pergunta que fazemos frequentemente e que o autor do quarto cântico do “Servo” também punha a si próprio. A resposta que ele encontra é a seguinte: o sofrimento do justo não se perde; através dele, da sua entrega e do seu sofrimento, os pecados da comunidade são expiados e Deus dará vida e salvação ao seu Povo. Trata-se de uma resposta insatisfatória? Talvez. Mas por detrás desta resposta percebe-se a convicção profunda que alimenta a fé deste “catequista” de Israel: nos misteriosos caminhos de Deus, o sofrimento pode ser uma dinâmica geradora de vida nova. Aliás, alguns séculos mais tarde Jesus Cristo demonstrará, com a sua paixão, morte e ressurreição, a verdade desta afirmação. Como entendemos o sofrimento? Sentimo-lo como algo injusto e definitivamente incompreensível, ou como algo que, de uma forma que nem sempre é clara para nós, se insere no plano de Deus? Entendemos que o sofrimento poderá ser fonte de vida nova para nós e para o mundo? Como? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)

Refrão:  Desça sobre nós a vossa misericórdia,
porque em Vós esperamos, Senhor.

 

A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do senhor.

Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.

A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.

LEITURA II – Hebreus 4,14-16

Irmãos:
Tendo nós um sumo sacerdote que penetrou os Céus,
Jesus, Filho de Deus,
permaneçamos firmes na profissão da nossa fé.
Na verdade, nós não temos um sumo sacerdote
incapaz de se compadecer das nossas fraquezas.
Pelo contrário, Ele mesmo foi provado em tudo,
à nossa semelhança, exceto no pecado.
Vamos, portanto, cheios de confiança ao trono da graça,
a fim de alcançarmos misericórdia
e obtermos a graça de um auxílio oportuno.

CONTEXTO

Não sabemos quem foi o autor do escrito a que se deu o nome de “Carta aos Hebreus”. A tradição oriental atribui-o a São Paulo; mas no ocidente há muito que este texto é considerado não paulino. Surgido na segunda metade da década de sessenta do primeiro século (antes da destruição de Jerusalém, no ano 70, pois fala da liturgia do Templo como uma realidade atual), poderá ser obra de um discípulo de Paulo, empenhado em estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.

Embora a tradição tenha considerado como destinatários deste escrito os “hebreus”, isso não significa, efetivamente, que o seu autor o destinasse exclusivamente a cristãos oriundos do mundo judaico. É verdade que nele se referem continuamente factos e figuras do Antigo Testamento; mas, por essa altura, o Antigo Testamento era já património comum de todos os cristãos, mesmo dos que provinham do mundo greco-romano. Tratava-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que viviam num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades tinham já perdido o fervor inicial pelo Evangelho e começavam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos…

A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste vigésimo nono domingo comum está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A Palavra de Deus que escutamos cada domingo realça repetidamente o significado profundo dessa extraordinária história de amor que adivinhamos na incarnação de Jesus: Deus amou-nos de tal forma, que nos enviou o seu Filho, a fim de que, através d’Ele, chegássemos a integrar a família de Deus. Esta dimensão está bem presente também no texto da Carta aos Hebreus que escutamos neste domingo: Jesus, o Filho de Deus, veio ter connosco, caminhou connosco, partilhou as nossas dores e dificuldades, mostrou-nos como devemos viver, deu a própria vida para vencer o egoísmo e a maldade que nos afastavam de Deus, e apresentou-se de novo ao Pai levando com Ele a nossa humanidade redimida. Levados por Jesus, o nosso sumo-sacerdote, temos acesso definitivo a Deus e passamos a integrar a família de Deus. O autor da Carta aos Hebreus considera que isto deve fundamentar, de forma inabalável, a nossa confiança em Jesus e a nossa adesão a Ele. É isso que acontece? Vivemos conscientes do que Jesus fez em nosso favor e isso leva-nos realmente a comprometermo-nos com Ele, a vivermos com Ele, a deixarmo-nos orientar por Ele, a caminharmos sempre atrás d’Ele, como discípulos?
  • Jesus, ao vir ao encontro dos homens e ao tornar-se homem, conheceu e amou a nossa fragilidade. Com coração de irmão, pôde entender-nos e ficar do nosso lado. Sentiu como suas as nossas dores e procurou dar-lhes remédio; experimentou as nossas alegrias e sentiu a felicidade que brota das coisas simples e dos gestos de bondade e de amor. Nada do que acontecia aos homens e mulheres que Ele encontrava nos caminhos da Galileia e da Judeia lhe era indiferente. Ele solidarizou-se a cada instante com os homens e as mulheres que com Ele se cruzavam; assim pôde entendê-los e ficar do lado deles. Ora, o exemplo de solidariedade que Cristo nos deixou deve tocar-nos e convidar-nos a seguir o seu exemplo. Estamos disponíveis para, seguindo o exemplo de Cristo, nos despirmos do nosso egoísmo, da nossa acomodação, da nossa preguiça, da nossa indiferença, para irmos ao encontro dos nossos irmãos, para vestirmos as suas dores e fragilidades, para nos fazermos solidários com eles, para partilharmos os seus dramas, lágrimas, sofrimentos, alegrias e esperanças? Sentimo-nos responsáveis pelos irmãos que connosco partilham os caminhos deste mundo, mesmo quando não os conhecemos pessoalmente ou mesmo que deles estejamos separados por fronteiras geográficas, históricas, étnicas ou outras?
  • Ao assegurar-nos que nada temos a temer pois Deus ama-nos, quer integrar-nos na sua família e oferecer-nos Vida em abundância, o nosso texto convida-nos a encarar a vida e os seus caminhos com serenidade e confiança. A certeza do amor infinito de Deus é, para nós, fonte de serenidade e de paz? Sabemos que as nossas fragilidades e debilidades não nos afastam, nunca, de Deus e do seu amor? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 10,35-45

Naquele tempo,
Tiago e João, filhos de Zebedeu,
aproximaram-se de Jesus e disseram-Lhe:
«Mestre, nós queremos que nos faças o que Te vamos pedir».
Jesus respondeu-lhes:
«Que quereis que vos faça?»
Eles responderam:
«Concede-nos que, na tua glória,
nos sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda».
Disse-lhes Jesus:
«Não sabeis o que pedis.
Podeis beber o cálice que Eu vou beber
e receber o batismo com que Eu vou ser batizado?»
Eles responderam-Lhe: «Podemos».
Então Jesus disse-lhes:
«Bebereis o cálice que Eu vou beber
e sereis batizados com o batismo
com que Eu vou ser batizado.
Mas sentar-se à minha direita ou à minha esquerda
não Me pertence a Mim concedê-lo;
é para aqueles a quem está reservado».
Os outros dez, ouvindo isto,
começaram a indignar-se contra Tiago e João.
Jesus chamou-os e disse-lhes:
«Sabeis que os que são considerados como chefes das nações
exercem domínio sobre elas
e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder.
Não deve ser assim entre vós:
Quem entre vós quiser tornar-se grande,
será vosso servo,
e quem quiser entre vós ser o primeiro,
será escravo de todos;
porque o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir
e dar a vida pela redenção de todos».

CONTEXTO

Voltamos a encontrar-nos com Jesus e com o seu grupo de discípulos no caminho que conduz a Jerusalém. É um caminho não apenas geográfico, mas sobretudo espiritual: ao longo do percurso, Jesus vai completando a sua catequese sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica.

Entretanto, Jerusalém já não está longe. Jesus vai à frente, a indicar o caminho; e os discípulos seguem-n’O “estupefactos” (Mc 10,32). Talvez estejam espantados por Jesus insistir naquele projeto aparentemente sem sentido e sem saída. É possível que ainda conservem a esperança de que Jesus volte atrás e se disponha a concretizar o projeto do Reino com a conquista do poder; mas cada metro que percorrem aproxima-os do destino final e Jesus não dá mostras de ceder. Como é que aquele “caminho” irá terminar? Os discípulos estão “cheios de medo” (Mc 10,32).

Jesus não lhes facilita a vida. Para dissipar todas as dúvidas fala-lhes, pela terceira vez, do que vão encontrar na cidade santa: Ele “vai ser entregue aos sumos sacerdotes e aos doutores da Lei, e estes por sua vez vão entregá-lo aos gentios”, que vão “escarnecê-lo, cuspir sobre Ele, açoitá-lo e matá-lo; mas três dias depois, ressuscitará”. A descrição que Jesus faz do que o espera em Jerusalém é ainda mais pormenorizada do que nos outros anúncios anteriores (cf. Mc 8,31-32; 9,31-32). Será que, desta vez, os discípulos ficaram convencidos e resolveram aceitar as palavras de Jesus? Não. Marcos vai mostrar-nos, logo a seguir, que os discípulos de Jesus ainda continuam a raciocinar em termos muito humanos e que a sua lógica está em absoluta contradição com o projeto de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O que é que determina o êxito ou o fracasso da nossa vida? Em que direção precisamos de caminhar para garantir que a nossa vida vale a pena? Sobre que valores devemos construir a nossa existência para que ela tenha pleno sentido? No Evangelho deste domingo temos a perspetiva de Jesus e a perspetiva dos discípulos quanto a estas questões. As duas posições são perfeitamente antagónicas. Para os discípulos, o êxito de uma vida passa por assegurar uma posição de poder e de domínio, de honras e de triunfos humanos, que permita a cada pessoa impor-se aos outros e concretizar a sua ambição. Para Jesus, no entanto, a vida só tem sentido se é gasta a servir, com humildade e simplicidade, até ao dom total de si próprio em favor dos outros (aliás, foi assim que Jesus viveu, desde o primeiro instante em que “construiu a sua tenda no meio de nós”). Que pensamos de cada uma destas posições? Com sinceridade: em qual destas duas mesas temos andado a apostar as nossas fichas? Em qual destes campos vislumbramos a nossa plena realização?
  • “Quem entre vós quiser tornar-se grande, será vosso servo, e quem quiser entre vós ser o primeiro, será escravo de todos” – diz Jesus. Aqui está uma estranha equação que, mesmo depois de dois mil anos de cristianismo, ainda não entra bem nos nossos cálculos e projetos de vida. Para Jesus, o êxito na vida passa simplesmente por servir humildemente e a fundo perdido quem necessita da nossa ajuda e do nosso cuidado. Que eco encontram estas palavras de Jesus na sociedade que temos vindo a construir? E nas nossas comunidades cristãs, como é que estas indicações de Jesus têm vindo a ser escutadas e vividas? Podemos dizer que a Igreja de Jesus tem testemunhado, de forma coerente, as indicações dadas a Tiago e João naquele caminho para Jerusalém? Que sentido é que fazem, à luz das palavras de Jesus, as nossas tentativas de nos impormos aos outros, as nossas ridículas guerras pelo poder ou pelo protagonismo, a nossa inqualificável apetência por honras e títulos honoríficos, as nossas ambições mesquinhas e rasteiras? Estamos disponíveis para servir quem necessita de nós, ou a nossa atitude é a de quem vive para ser servido, admirado e adulado? Como tratamos aqueles que caminham ao nosso lado – a família, os amigos, os empregados, os vizinhos – com sobranceria e agressividade, ou com respeito e amor?
  • As pretensões de Tiago e de João provocaram a indignação dos outros discípulos. Afinal, também eles estavam preocupados em assegurar a sua própria fatia de honras e privilégios e não queriam ver-se ultrapassados. Eis uma realidade que todos os dias podemos observar no nosso mundo: a ambição, a ânsia de protagonismo, a apetência pelo poder são sempre fatores de divisão, de guerra, de ciúme, de conflito. Criam mal-estar, destroem a união, ferem gravemente a comunhão, põem em causa a fraternidade. Não são, portanto, estratégias recomendáveis para quem estiver interessado em integrar a comunidade do Reino. Estamos conscientes disso?
  • “Os que são considerados como chefes das nações exercem domínio sobre elas e os grandes fazem sentir sobre elas o seu poder” – diz Jesus. Na verdade, o domínio sobre os outros, o exercício autoritário do poder, concretizam-se muitas vezes em tirania, em opressão dos mais fracos, em exploração dos pobres, em atentado ao bem comum, em indiferença face ao sofrimento dos mais vulneráveis, em imposição cega da própria autoridade, em desrespeito pela dignidade e direitos dos outros homens e mulheres. O exercício do poder, quando não é entendido e concretizado como serviço, pode contribuir para aumentar a maldade, a violência, a injustiça, a morte. Sabemos que um mundo construído sobre autoritarismos cegos e cultos de personalidade é um mundo que contradiz frontalmente o projeto de Deus?
  • Há pessoas – muitas – que passam despercebidas, que não são nomeadas nos jornais, que não frequentam ambientes seletos, que nunca tiveram acesso a cargos de poder, que não têm dinheiro nem influência, que não possuem títulos nem nomes sonantes, que não se impõem pela sua beleza física ou pelas roupas finas que vestem, que não fazem ouvir a sua voz nem impõem a sua presença… mas são grandes pela sua bondade, pela sua humildade, pela sua compaixão, pela sua alegria serena, pelo serviço humilde que prestam aos mais necessitados, pela forma como cuidam dos seus irmãos e irmãs, pelo amor e carinho que põem em cada gesto que fazem. De acordo com Jesus, essas pessoas são aquelas cujas vidas são plenamente realizadas. Elas tornam o nosso mundo um lugar mais bonito, mais humano e mais feliz. No deserto inóspito e egoísta do nosso mundo, essas pessoas são pequenos oásis de paz, de fecundidade e de vida nova. Elas são o melhor do nosso mundo. Como avaliamos e consideramos esses homens e mulheres simples e humildes, que o mundo tantas vezes ignora ou despreza, mas que são testemunhas e sinais do amor e da bondade de Deus na vida dos seus irmãos e irmãs? in Dehonianos

Para os leitores:

Na primeira leitura, valorizar a palavra «servo», repetida duas vezes neste texto, e que é central para a sua compreensão. O tom dramático e doloroso deve marcar a proclamação, mas sempre marcada pela abertura à esperança, pois «o Justo, meu Servo, justificará a muitos».

A segunda leitura é marcada pela tónica da esperança: «Jesus, Filho de Deus» é rico em misericórdia e fonte de graça e misericórdia. O anúncio da esperança, valorizando as expressões «Jesus, Filho de Deus» e «Sumo Sacerdote» como fonte de graça deve estar presente na proclamação do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Domingo XXVIII do Tempo Comum – Ano B – 13.10.2024

Viver a Palavra

Caminhar é verbo fundamental na conjugação da vida cristã. O homem e a mulher criados à imagem e semelhança de Deus foram sonhados para participar na vida divina e trilham os caminhos da história de pés bem assentes na terra e olhos fitos no céu. A meta do caminho não permite imobilismos e comodismos, mas coloca cada pessoa em estado permanente de saída. São diferentes as capacidades e aptidões de cada um para o caminho e as dificuldades e resistências impedem tantas vezes de alcançar o ritmo desejado e as metas aneladas. Contudo, mais do que um caminho isolado, a vida da fé constrói-se num caminho conjunto, marcado pela fraternidade e comunhão, sustentado pela caridade e aberto à esperança da construção do mundo novo. Calcorreando os trilhos do tempo e da história aprendemos a conjugar ritmos, a construir pontes, a vencer dificuldades e a conceber a vida como construção permanente.

O texto evangélico proposto para este Domingo oferece indicações fundamentais para quem se quer colocar a caminho e abre com dois andamentos tão diferentes no modo de se fazer à estrada. Jesus «ia pôr-Se a caminho» e um homem «aproximou-se correndo». Jesus é o enviado do Pai, a brisa suave que percorre os caminhos da história feito carne humana, e na serenidade do caminhar estabelece encontros que geram o verdadeiro Encontro que dá sentido à nossa existência. Aquele homem caminha apressado. A inquietação e a ansiedade invadem a sua vida. Procura a vida eterna, a vida plena e verdadeira e, porventura, tudo tem feito para descobrir qual o melhor caminho a percorrer. A sua insatisfação coloca-o em movimento com passo lesto, arrojado e confiante.

A pergunta colocada a Jesus, com ousadia e humildade (ajoelhou-se), reclamam do Mestre a indicação do caminho onde se joga a vida toda, porque a vida plena e eterna. Aquele jovem procura Jesus para se encontrar a si próprio e, se começa o caminho correndo, agora ajoelha-se e detém-se junto de Jesus. O sentido da nossa existência como caminho para uma vida plena e verdadeira só se pode encontrar em Jesus Cristo e na liberdade de coração para acolher a Sua Palavra. Jesus nada impõe, mas tudo propõe. Como sábio pedagogo, paulatinamente e progressivamente nos faz tender para a meta da nossa existência. A primeira indicação que dá àquele jovem é o cumprimento dos mandamentos e, verificando que ele já os pratica desde a sua juventude, avança na proposta radical de um caminho absolutamente livre: «falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me».

Falta-lhe apenas uma coisa: libertar-se do peso que impede de alcançar a meta. Uma relação nova com os bens que possui para que aprenda a possuí-los. A dificuldade em entrar no Reino dos Céus para aqueles que têm riquezas, não está no maior ou menor número de bens que possuem. O problema surge quando, colocando as suas seguranças naquilo que têm, já não são eles a possuir os bens, mas os bens que os possuem a eles. A arte de aprender a contar os dias, que pedimos no salmo, implica abraçar esta corrente de desprendimento que se conjuga nesta rajada de verbos: vai, vende, dá, vem e segue-me. Deixar o que nos prende para abraçar com maior largueza de coração, passar do horizonte do bem-estar ao horizonte do bem-maior que só Jesus e o Seu amor podem oferecer.in Voz Portucalense.

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Na passada quarta-feira, dia 2 de outubro, decorreu a missa de abertura da Segunda Sessão do caminho sinodal da XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos «Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão». A sinodalidade é «o caminho da Igreja para o Terceiro Milénio» (Papa Francisco) e, por isso, um estilo eclesial que deve moldar toda a ação da Igreja porque caracteriza a sua identidade. Deste modo, as comunidades eclesiais devem promover junto dos fiéis uma tomada de consciência da importância da sinodalidade como modo de ser Igreja, tornando mais operativas as mais diversas estruturas de participação e gerando processos sinodais renovados e renovadores. As comunidades são convidadas a rezar por este caminho sinodal ao longo deste mês de outubro, para que ele seja um tempo e lugar decisivo para o diálogo da Igreja com o Mundo contemporâneo. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sabedoria 7,7-11

Orei e foi-me dada a prudência;
implorei e veio a mim o espírito de sabedoria.
Preferi-a aos cetros e aos tronos
e, em sua comparação, considerei a riqueza como nada.
Não a equiparei à pedra mais preciosa,
pois todo o ouro, à vista dela, não passa de um pouco de areia
e, comparada com ela, a prata é considerada como lodo.
Amei-a mais do que a saúde e a beleza
e decidi tê-la como luz,
porque o seu brilho jamais se extingue.
Com ela me vieram todos os bens
e, pelas suas mãos, riquezas inumeráveis.

CONTEXTO

O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Pensa-se que terá sido redigido durante o séc. I, em língua grega (por ser escrito em grego, nunca chegou a integrar o cânone judaico). O seu autor terá sido um judeu culto, provavelmente nascido e educado na Diáspora.

O “berço” do livro da Sabedoria parece ter sido Alexandria (no Egito). A brilhante cultura helénica marcava o ritmo de vida e impunha aos habitantes da cidade os valores dominantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – eram desvalorizadas e hostilizadas. A colónia judaica que vivia em Alexandria tinha sido obrigada a lidar, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), com duras perseguições. Os sábios helénicos procuravam demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus eram encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

Foi neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decidiu defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo era duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), exortava-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convidava-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretendia deixar esta ideia fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

O texto que nos é proposto integra a segunda parte do livro (cf. Sb 6,1-9,18). Aí, o autor apresenta o “elogio da sabedoria”. Este “elogio da sabedoria” pode dividir-se em três pontos… No primeiro (cf. Sb 6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de adquirirem a “sabedoria”; no segundo (cf. Sb 6,22-8,21), há uma descrição da natureza e das propriedades da “sabedoria”, aqui apresentada como o valor mais importante entre todos os valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sb 9,1-18), aparece uma longa oração do autor, implorando de Javé a “sabedoria”.

O que é esta “sabedoria” de que se fala neste livro e em outros livros sapienciais que vieram a integrar o cânone dos livros sagrados? É, fundamentalmente, a capacidade de fazer as escolhas corretas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem ao êxito, à realização, à felicidade. Na perspetiva dos “sábios” de Israel, esta “sabedoria” vem de Deus e é um dom que Deus oferece a todos os homens que tiverem o coração disponível para o acolher. É preciso, portanto, ter os ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para acolher a “sabedoria” que Deus quer oferecer a todos os homens.

O autor deste “elogio da sabedoria” insinua claramente ser o rei Salomão (embora o nome do rei nunca seja referido explicitamente). Na realidade, o “Livro da Sabedoria” não vem de Salomão (já vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por um judeu de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei sábio era, para os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a “sabedoria” e para a recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca, pois, na boca de Salomão este discurso sapiencial. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Costumamos dizer que “só se vive uma vez” e que, por isso, temos de “aproveitar a vida”. Geralmente, quando falamos em “aproveitar a vida”, falamos de provar as coisas boas que a vida pode oferecer-nos, de aproveitar as oportunidades de concretizar os nossos sonhos e aspirações, de tirar o melhor partido de cada momento, de encher a nossa existência de significado… Mas, “aproveitar a vida” incluirá atirar-nos às cegas para agarrar tudo aquilo que os influencersde serviço nos impingem? “Aproveitar a vida” significará irmos atrás de tudo o que de alguma forma nos atrai, sem critérios nem limites? “Aproveitar a vida” será gastarmos o tempo e as forças a correr atrás de coisas fúteis, efémeras, que enchem a nossa existência de vazio, de frivolidade e de mediocridade? Temos consciência de que há caminhos e valores que nos permitem construir uma vida bonita, feliz e plenamente realizada, e também há caminhos e valores que nos escravizam e que nos limitam horizontes? Estamos disponíveis para acolher a sabedoria de Deus e para deixar que ela nos guie pelos caminhos que conduzem onde há Vida verdadeira?
  • O “sábio” que, no texto da primeira leitura deste domingo, reparte connosco a sua experiência de vida, tinha bem definida a sua hierarquia de valores. Sabia bem o que era prioritário e o que era secundário; sabia o que o ajudaria a definir bem a sua missão e aquilo que não seria fundamental para que a sua vida fizesse sentido. E nós, que até vivemos imersos num tempo de “modernidade líquida”, de mudança vertiginosa, de relativismo de valores, de certezas nunca consolidadas, temos bem definida a nossa lista dos valores prioritários? Em que valores apostamos para sobre eles construir, com coerência e verdade, a nossa história de vida?
  • O “sábio” autor do nosso texto assegura que a “sabedoria”, dom de Deus, não o afastou de outros valores desejáveis; mas que, pelo contrário, o ajudou a apreciá-los devidamente e a situá-los no lugar adequado. Por vezes existe a ideia de que viver de acordo com Deus significa renunciar a tudo aquilo que nos pode tornar felizes e realizados… Mas isso não é verdade. Há valores, mesmo efémeros, que são perfeitamente compatíveis com a nossa opção pelos valores de Deus e do Reino. Não se trata de nos fecharmos ao mundo, de desconfiarmos das coisas do mundo, de renunciarmos definitivamente às coisas boas que o mundo nos pode oferecer e que nos dão segurança e estabilidade; trata-se simplesmente de darmos às coisas o valor que têm, sem nos deixarmos iludir por aquilo que não é duradouro. Como é que nos relacionamos com os valores que o mundo nos oferece? Com desconfiança e condenação à priori, ou com a apreciação serena e equilibrada do que eles valem? Usamo-los parcimoniosamente, sem deixar que eles nos usem a nós?in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)

Refrão 1:  Saciai-nos, Senhor, com a vossa bondade
e exultaremos de alegria.

Refrão 2: Enchei-nos da vossa misericórdia:
será ela a nossa alegria.

 

Ensinai-nos a contar os nossos dias,
para chegarmos à sabedoria do coração.
Voltai, Senhor! Até quando?
tende piedade dos vossos servos.

Saciai-nos, desde a manhã, com a vossa bondade,
para nos alegrarmos e exultarmos todos os dias.
Compensai em alegria os dias de aflição,
os anos em que sentimos a desgraça.

Manifestai a vossa obra aos vossos servos
e aos seus filhos a vossa majestade.
Desça sobre nós a graça do Senhor.
confirmai em nosso favor a obra das nossas mãos.

LEITURA II – Hebreus 4,12-13

A palavra de Deus é viva e eficaz,
mais cortante que uma espada de dois gumes:
ela penetra até ao ponto de divisão da alma e do espírito,
das articulações e medulas,
e é capaz de discernir os pensamentos e intenções do coração.
Não há criatura que possa fugir à sua presença:
tudo está patente e descoberto a seus olhos.
É a ela que devemos prestar contas.

CONTEXTO

A “Carta aos Hebreus”, mais do que uma “carta” tradicional, parece um sermão destinado a ser proclamado oralmente. O texto foi atribuído, sobretudo pela tradição oriental, a São Paulo; no entanto, as diferenças de linguagem, de estilo e mesmo de ideias em relação a outros textos autenticamente paulinos levaram os biblistas a considerar que São Paulo não terá sido o seu autor. Apesar de tudo, é provável que o autor tenha sido alguém relacionado com São Paulo, talvez um discípulo do apóstolo.

Provavelmente a “Carta aos Hebreus” foi redigida nos anos anteriores ao ano 70, antes da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos: o autor fala da liturgia do Templo como uma realidade atual, o que não aconteceria se o Templo já tivesse sido destruído. Embora a tradição cite os “hebreus” como destinatários desta Carta, não é certo que ela se destine a comunidades cristãs de origem judaica. As referências constantes ao Antigo Testamento não são decisivas para identificar os destinatários da carta, uma vez que o Antigo Testamento era já referência, por essa altura, quer para os cristãos que vinham do mundo judaico como para os cristãos que vinham do mundo greco-romano. Em qualquer caso, os destinatários da Carta aos Hebreus são cristãos que vivem numa situação difícil, num ambiente hostil à fé cristã. O autor procura fortalecê-los na vivência do compromisso cristão e ajudá-los a crescer na fé.

A figura de Cristo é central na “Carta aos Hebreus”. Apresentado como sumo sacerdote, Ele é o mediador entre Deus e os homens. A sua entrega sacrificial na cruz substitui todos os sacrifícios do antigo culto judaico, estabelece uma nova Aliança entre Deus e os homens e inaugura um culto novo. Pelo sacerdócio de Cristo, os crentes são inseridos no Povo sacerdotal que é a comunidade cristã.

O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio trazer. Nessa sequência, o autor introduz na sua reflexão uma espécie de hino à Palavra de Deus, a Palavra que Cristo veio transmitir aos homens. O objetivo do autor, ao propor-nos este “hino”, é levar-nos a escutar atentamente a Palavra proposta por Cristo. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O nosso tempo é um tempo de muitas palavras. Toda a gente, a propósito e a despropósito, entende dar a sua opinião sobre tudo. É positivo ouvirmos opiniões e perspetivas diversas, pois isso sempre enriquece a nossa visão pessoal das coisas; mas isso cria, por vezes, um ruído de fundo que causa confusão, banaliza o poder da palavra e atira para segundo plano palavras fundamentais, como é o caso da Palavra de Deus. No meio desta autêntica floresta de palavras, de opiniões e de ditos, que lugar ocupa a Palavra de Deus? Para nós, é uma palavra decisiva, determinante, primordial na definição do sentido da nossa vida, ou é apenas “mais uma” palavra entre tantas outras? Conseguimos encontrar tempo para escutar a Palavra de Deus, disponibilidade para a discutir e partilhar, vontade de confrontar a nossa vida com as suas exigências?
  • A Palavra de Deus, diz a segunda leitura deste vigésimo oitavo domingo comum, é viva, atuante, eficaz e renovadora. Deveria, portanto, ter um impacto positivo e transformador nas nossas vidas, nas nossas famílias, nas nossas comunidades, na sociedade à nossa volta… Mas nem sempre isso acontece. Ouvimos diariamente a proclamação da Palavra de Deus nas nossas liturgias e continuamos a escolher valores errados, a erguer barreiras de separação entre pessoas, a marcar a nossa relação comunitária pela inveja, pelo ciúme, pela discórdia, a perpetuar mecanismos de injustiça, de violência, de exploração, de ódio… Será que a Palavra de Deus perdeu a força, ultrapassou o prazo de validade? Não. O problema não está na Palavra de Deus, mas está em nós. Talvez estejamos tão “habituados” à Palavra que já não a escutemos; talvez estejamos tão acomodados na nossa zona de segurança que recusemos o confronto com uma Palavra que incomoda e desinstala; talvez estejamos tão entrincheirados atrás da nossa autossuficiência, que acreditemos que a Palavra de Deus não acrescenta nada à nossa vida. Porque é que a Palavra de Deus não tem na nossa vida e no nosso mundo o impacto que deveria ter?
  • A nossa vivência da fé desenrola-se, muitas vezes, à volta de fórmulas de oração repetitivas, de práticas devocionais fixas, de rituais estéreis e desligados da vida, de tradições cheias de pó, de grandes manifestações de fé que, no entanto, têm pouca profundidade… E a Palavra de Deus é relegada, na experiência de fé de tantos crentes, para um papel muito secundário. Qual o papel e o lugar da Palavra de Deus na nossa forma de viver a fé? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 10,17-30

Naquele tempo,
ia Jesus pôr-Se a caminho,
quando um homem se aproximou correndo,
ajoelhou diante d’Ele e Lhe perguntou:
«Bom Mestre, que hei de fazer para alcançar a vida eterna?»
Jesus respondeu:
«Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão Deus.
Tu sabes os mandamentos:
‘Não mates; não cometas adultério;
não roubes; não levantes falso testemunho;
não cometas fraudes; honra pai e mãe’».
O homem disse a Jesus:
«Mestre, tudo isso tenho eu cumprido desde a juventude».
Jesus olhou para ele com simpatia e respondeu:
«Falta-te uma coisa: vai vender o que tens,
dá o dinheiro aos pobres, e terás um tesouro no Céu.
Depois, vem e segue-Me».
Ouvindo estas palavras, anuviou-se-lhe o semblante
e retirou-se pesaroso,
porque era muito rico.
Então Jesus, olhando à volta, disse aos discípulos:
«Como será difícil para os que têm riquezas
entrar no reino de Deus!»
Os discípulos ficaram admirados com estas palavras.
Mas Jesus afirmou-lhes de novo:
«Meus filhos, como é difícil entrar no reino de Deus!
É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no reino de Deus».
Eles admiraram-se ainda mais e diziam uns aos outros:
«Quem pode então salvar-se?»
Fitando neles os olhos, Jesus respondeu:
«Aos homens é impossível, mas não a Deus,
porque a Deus tudo é possível».
Pedro começou a dizer-Lhe:
«Vê como nós deixámos tudo para Te seguir».
Jesus respondeu:
«Em verdade vos digo:
Todo aquele que tenha deixado casa,
irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos ou terras,
por minha causa e por causa do Evangelho,
receberá cem vezes mais, já neste mundo,
em casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras,
juntamente com perseguições,
e, no mundo futuro, a vida eterna».

CONTEXTO

Jesus está a caminhar com os discípulos através da Judeia e da Transjordânia, em direção a Jerusalém. Contudo, o caminho que fazem não é apenas geográfico; é, sobretudo, um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Pretende-se que, à medida que vão avançando nesse caminho com Jesus, os discípulos deixem para trás os seus interesses egoístas e interiorizem cada vez mais a lógica do Reino. Só no final desse caminho serão verdadeiros discípulos de Jesus e estarão preparados para serem arautos do Reino de Deus.

O Evangelho deste vigésimo oitavo domingo comum narra o encontro de Jesus com um homem rico que está interessado em conhecer a maneira de alcançar a vida eterna. Esse encontro dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.

Na perspetiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt 28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o orgulhoso e autossuficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sl 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspetiva do Reino de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Aquele homem que vai ter com Jesus na estrada para Jerusalém, tem urgência em descobrir a reposta para uma questão que é, talvez, a mais decisiva que enfrentamos: que havemos de fazer e como devemos viver para alcançar a vida eterna, uma vida plena, verdadeira e com sentido? Trata-se de uma questão que nos inquieta a todos e que certamente já pusemos muitas vezes a nós próprios, com estas ou com outras palavras semelhantes. Já encontramos a resposta para esta questão? Qual é? Muitos dos nossos contemporâneos, mergulhados na cultura do “ter”, limitam-se a “navegar à vista”, sem horizontes amplos, procurando rodear-se de bem-estar e segurança, apostando tudo nas coisas fúteis e efémeras, apenas preocupados em satisfazer necessidades periféricas… Onde nos leva uma opção deste tipo? Ela é capaz de preencher o vazio existencial que tantas vezes toma conta da nossa vida?
  • Marcos diz-nos que Jesus tem uma resposta definitiva para a questão colocada por aquele homem inquieto. Para Jesus, viver “com sentido” passa, naturalmente, por respeitar a dignidade e os direitos dos irmãos e irmãs (“não mates; não cometas adultério; não roubes; não levantes falso testemunho; não cometas fraudes; honra pai e mãe”); mas, mais que tudo, aproxima-se da vida eterna quem se liberta da escravidão dos bens, está disponível para partilhar tudo o que tem com os irmãos que caminham ao seu lado, aceita tornar-se discípulo e seguir Jesus no caminho do amor que se dá até às últimas consequências. Afinal, alcança a vida eterna quem vive menos para si e mais para os outros; e afasta-se da vida eterna quem vive mais para si próprio e menos para os outros. Nas estranhas contas de Deus, menos dá mais, e mais dá menos. Estamos disponíveis para alinhar nesta paradoxal matemática de Deus e para nos despojarmos de nós próprios a fim de alcançarmos a vida eterna?
  • A história do homem rico, que coloca o seu amor ao dinheiro à frente do seguimento de Jesus alerta-nos para a impossibilidade de conjugar a pertença à comunidade do Reino com o amor aos bens deste mundo. Quando a “doença do dinheiro” toma conta de nós, encerra-nos no nosso próprio mundo, leva-nos a ignorar os nossos irmãos e as suas necessidades, endurece o nosso coração, faz com que sejamos corrompidos pela cobiça, torna-nos aliados da injustiça e da exploração, faz-nos ceder à corrupção e à desonestidade… É, portanto, incompatível com o seguimento de Jesus. Podemos levar vidas religiosamente corretas, participar nos atos litúrgicos mais relevantes, ter até o nosso lugar de destaque na comunidade paroquial; mas, se o nosso coração vive obcecado com os bens deste mundo e fechado ao amor, à partilha, à solidariedade, não podemos fazer parte da comunidade do Reino (“é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus”). Como é a nossa relação com os bens materiais? Qual o lugar que os bens materiais ocupam na nossa vida?
  • O “império do dinheiro” é um império iníquo, que tem deixado feridas insaráveis na vida dos homens e do planeta. Nos “países de bem-estar”, situados maioritariamente a norte do nosso mundo, tudo está submetido a mecanismos económicos que atuam de forma cega e impessoal e que todos os dias deixam nas bermas da da sociedade um cortejo de vítimas; a “economia de mercado” sacrifica a dignidade das pessoas ao lucro e exclui os mais vulneráveis da mesa da vida; o reforço da competitividade atira irremediavelmente os menos preparados para a pobreza e a marginalidade; a exploração egoísta dos recursos naturais destrói esta casa comum que Deus preparou para todos os seus filhos e filhas… Podemos conformar-nos com um mundo assim? A Igreja poderá ser fiel a Jesus sem se pronunciar contra este “império do dinheiro” (o sistema económico neoliberal) que deixa marcas tão desastrosas no nosso mundo? E cada um de nós, pessoalmente, o que poderá fazer para que o mundo e a história dos homens sejam construídos noutros moldes?
  • A expressão “vida eterna” não define apenas essa outra vida que encontraremos no céu, quando terminarmos o nosso caminho na terra. Ela refere-se também à qualidade da nossa vida aqui e agora, à excelência da vida que construímos cada dia neste caminho marcado pela finitude e pela debilidade da nossa condição humana. Uma vida vivida ao estilo de Jesus oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos libertarmos da escravidão das coisas, de vivermos o nosso dia a dia com o coração repleto de alegria e de paz; uma vida marcada pela solidariedade, pela partilha, pelo serviço aos irmãos oferece-nos, já aqui na terra, a possibilidade de nos sentirmos plenamente realizados, “cúmplices” de Deus na criação de um mundo novo… Assim talvez faça mais sentido abraçarmos sem hesitações a proposta de Jesus: ela dirige-se já ao nosso “hoje” e garante-nos, desde já, uma vida com sentido, uma vida que vale a pena viver. Temos consciência disto?
  • Jesus avisa aos discípulos que o “caminho do Reino” é um caminho contra a corrente, que gerará inevitavelmente o ódio do mundo e que se traduzirá em perseguições e incompreensões. É uma realidade que conhecemos bem… Quantas vezes as nossas opções cristãs são criticadas, incompreendidas, apresentadas como realidades incompreensíveis e ultrapassadas por aqueles que representam a ideologia dominante, que fazem a opinião pública, que definem o socialmente correto… Quem optou pelo seguimento de Jesus sabe, no entanto, que a perseguição e a incompreensão são realidades inevitáveis, que não podem desviar-nos do Reino de Deus e da sua justiça. Mantemo-nos fiéis ao caminho de Jesus, sem medo dos rótulos que nos colocam, das críticas que nos fazem, das perseguições que nos movem? in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura é um texto de estilo poético, pelo que a sua proclamação deve respeitar este estilo literário para uma melhor transmissão da mensagem.

A brevidade da segunda leitura e a aparente facilidade na proclamação do texto não devem permitir descurar a sua preparação. As frases com diversas orações exigem especial cuidado nas pausas e respirações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

ANEXOS:

Domingo XXVII do Tempo Comum – Ano B – 06.10.2024

Viver a Palavra

Um grupo de fariseus aproxima-se de Jesus e dirigem-se a Ele com a intenção de O colocar à prova. No Evangelho são muitos os que se abeiram de Jesus e são tão variadas as motivações que os colocam a caminho. Dois mil anos depois, também nós integramos a multidão imensa de homens e mulheres que percorrem os trilhos da história e sentem a necessidade de se encaminharem para Jesus. Mas quais são as motivações que invadem o nosso coração? Não basta ir ao encontro de Jesus para O encontrar! É necessário criar a docilidade e a disponibilidade para fazer do encontro com Ele um lugar decisivo de transformação e de conversão. O Evangelho do Amor e da Alegria é uma proposta que reclama uma adesão livre para inscrever a nossa vida no horizonte de liberdade e de graça que o Ressuscitado na força do Espírito nos oferece.

Os fariseus trazem a Jesus uma questão muito concreta e para a qual conheciam bem a resposta. Qualquer fariseu, conhecedor da Lei de Moisés, sabia que era lícito «um homem repudiar a sua mulher», passando-lhe um certificado de divórcio. Contudo, esta permissão, segundo Jesus, é apenas sinal da dureza de coração e insere-se na longa e paciente pedagogia de Deus. A doença que Jesus mais teme é esta dureza de coração e, por isso, afirma algo de absolutamente desconcertante: nem toda a lei é divina, nem sempre é um reflexo da vontade de Deus e, por vezes, é mesmo o reflexo da dureza do nosso coração e da intransigência dos nossos esquemas e preconceitos.

O ponto de partida da reflexão cristã não é uma moral ou uma doutrina, mas o encontro único, íntimo e decisivo com Jesus Cristo. A iniciativa é sempre de Deus e do Seu amor superabundante. A fé não nasce do «pode ou não pode», do «lícito ou ilícito», mas do amor misericordioso de Deus que nos faz redescobrir a nossa verdadeira identidade e missão. Aqui não reside nenhum laxismo ou relativismo, mas a certeza de que o ponto de partida é a iniciativa amorosa de Deus que reclama a nossa adesão livre e este encontro transformador rasga horizontes novos que nos impelem a percorrer com ousadia e coragem a estrada inaudita da conversão.

Jesus recorda que a nossa vida se inscreve no sonho primordial e original de Deus que nos criou à Sua imagem e semelhança na complementaridade e alteridade que cria harmonia e gera comunhão. Por isso, o problema não é a licitude ou ilicitude do repúdio, mas o convite a manter vivo o sonho primordial e original. Jesus reafirma o projeto do Criador e recorda a missão de cuidar do mundo fazendo dele um lugar de unidade.

Jesus vai ainda mais longe e declara a igualdade entre homem e mulher no compromisso de uma construção conjunta na busca da realização e felicidade, na fidelidade ao projeto criador: «quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério». O caminho é exigente, mas é possível. É uma proposta de realização e felicidade que não consente exclusão ou discriminação, mas reclama acolhimento e integração.

Acolhendo as crianças que os discípulos teimavam em afastar, Jesus recorda que o acolhimento é marca fundamental daqueles que O querem seguir. A Igreja do século XXI, a Igreja sinodal da escuta e da comunhão, só poderá realizar a sua missão como mãe acolhedora que, antes de qualquer distinção ou imposição, abre os braços da sua misericórdia e recorda que com um coração de criança acolhemos o Reino novo que Jesus veio inaugurar porque somos capazes de abrir o coração à vida nova que Deus faz despontar diante de nós. in Voz Portucalense.

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A Liturgia da Palavra convida a refletir sobre o matrimónio e a família como projeto do Criador elevado por Jesus à dignidade de sacramento. Neste contexto poderá ser importante apresentar a beleza e a alegria do amor que se vive nas famílias e a tarefa exigente de viver a vocação matrimonial como serviço à Igreja e ao mundo. Tendo em conta as situações de fragilidade da vida matrimonial e familiar, será importante uma palavra de acolhimento à luz das indicações oferecidas pela Amoris Laetitia que convidam a acompanhar, discernir e acompanhar as situações de fragilidade. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 2,18-24

Disse o Senhor Deus:
«Não é bom que o homem esteja só:
vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele».
Então o Senhor Deus, depois de ter formado da terra
todos os animais do campo e todas as aves do céu,
conduziu-os até junto do homem,
para ver como ele os chamaria,
a fim de que todos os seres vivos fossem conhecidos
pelo nome que o homem lhes desse.
O homem chamou pelos seus nomes
todos os animais domésticos, todas as aves do céu
e todos os animais do campo.
Mas não encontrou uma auxiliar semelhante a ele.
Então o Senhor Deus fez descer sobre o homem
um sono profundo
e, enquanto ele dormia, tirou-lhe uma costela,
fazendo crescer a carne em seu lugar.
Da costela do homem o Senhor Deus formou a mulher
e apresentou-a ao homem.
Ao vê-la, o homem exclamou:
«Esta é realmente osso dos meus ossos e a minha carne.
Chamar-se-á mulher, porque foi tirada do homem».
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne.

CONTEXTO

O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido como relato “javista” da criação – é um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, pitoresco, cheio de vida e parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem realista de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do homem está Javé. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.

Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos javistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Por outras palavras: a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são significativamente diferentes: mais maduras, mais ponderadas, mais profundas, mais consistentes.

O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”, um espaço ideal onde, segundo o autor javista, Deus colocou o homem que tinha criado. De acordo com o relato, esse “jardim do Éden” é um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, a ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na perspetiva do catequista javista, o homem não estava plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • “Não é bom que o homem esteja só”. Estas palavras, postas pelo autor javista na boca de Deus, sugerem que a realização plena do homem acontece na relação e não na solidão. O ser humano que vive fechado em si próprio, que escolhe percorrer caminhos de egoísmo e de autossuficiência, que recusa o diálogo e a comunhão com aqueles que caminham a seu lado, que tem o coração fechado ao amor e à partilha, é alguém profundamente infeliz, que nunca conhecerá a felicidade plena. Por vezes a preocupação com o dinheiro, com a realização profissional, com o estatuto social, com a busca do êxito, com a procura de uma liberdade sem compromisso, levam os homens a prescindir do amor, a secundarizar a família, a não ter tempo para os amigos… E um dia, depois de terem acumulado muito dinheiro ou de terem colocado o mundo a seus pés, constatam que estão sozinhos e que a sua vida é estéril e vazia. A Palavra de Deus que nos é hoje proposta deixa um aviso claro: a vocação do homem é o amor; a solidão egoísta, mesmo quando compensada pela abundância de bens materiais, não ajuda a que o homem se sinta plenamente realizado. Estamos conscientes disso? As nossas opções fundamentais privilegiam caminhos de egoísmo e autossuficiência, ou caminhos de amor e de comunhão?
  • Por vezes certas filosofias, tingidas de um verniz pretensamente religioso, desvalorizam o amor humano, consideram o casamento como um estado menos perfeito de realização da vocação cristã e veem na sexualidade algo de indecoroso ou até mesmo pecaminoso. Não é esta, de todo, a perspetiva que a Palavra de Deus nos apresenta… Na bela catequese que a primeira leitura deste vigésimo sétimo domingo comum nos apresenta, o amor aparece como algo que está, desde sempre, inscrito no projeto de Deus e que é querido por Deus. Deus criou o homem e a mulher para se ajudarem mutuamente e para partilharem, no amor, as suas vidas. Estamos conscientes de que o amor vem de Deus e está inscrito no plano que Deus tem para cada um de nós? Que responsabilidades é que isso nos traz?
  • O plano de Deus para o homem e para a mulher concretiza-se quando os dois, ligados pelo amor que sentem um pelo outro, se comprometem diante de Deus, da sociedade e da comunidade cristã, a partilhar a vida e o amor, na entrega total um ao outro, na comunhão total de vidas. Esta comunidade de amor, plenamente assumida e sinceramente vivida, sinaliza e testemunha no mundo a ternura, o carinho, a misericórdia que Deus sente pelos seus queridos filhos e filhas. Como é que vamos construindo, todos os dias, a comunidade de amor a que nos chama a vocação matrimonial? No respeito, na ajuda mútua, no dom de nós próprios àqueles que amamos, no amor fiel e dedicado, no apoio firme à pessoa com quem nos comprometemos a partilhar a vida e o amor? E o nosso compromisso com a pessoa que elegemos para viver a aventura do amor e da partilha de vida é total e sem reservas – na saúde e na doença, nos momentos de alegria e nos momentos de tristeza, na juventude e na velhice, por toda a vida?
  • Homem e mulher aparecem, no relato javista da criação, como seres dotados de igual dignidade. São “da mesma carne”, em igualdade de ser. Ora isto exclui, naturalmente, qualquer preponderância ou superioridade de um em relação ao outro. Assim, qualquer relação que implique dominação, discriminação, escravidão, prepotência, uso egoísta do outro, atenta gravemente contra o projeto de Deus. Como tratamos as pessoas que amamos? Respeitando absolutamente a sua dignidade, ou tratando-as com sobranceria, com prepotência, com arrogância, com pouca consideração? Como vemos o papel da mulher na família e na sociedade, à luz do projeto de Deus enunciado na catequese do livro do Génesis que hoje nos foi proposta? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)

Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida.

 

Feliz de ti que temes o Senhor
e andas nos seus caminhos.
Comerás do trabalho das tuas mãos,
serás feliz e tudo te correrá bem.

Tua esposa será como videira fecunda
no íntimo do teu lar;
teus filhos como ramos de oliveira,
ao redor da tua mesa.

Assim será abençoado o homem que teme o Senhor.
De Sião o Senhor te abençoe:
vejas a prosperidade de Jerusalém todos os dias da tua vida;
e possas ver os filhos dos teus filhos. Paz a Israel.

LEITURA II – Hebreus 2,9-11

Irmãos:
Jesus, que, por um pouco, foi inferior aos Anjos,
vemo-l’O agora coroado de glória e de honra
por causa da morte que sofreu,
pois era necessário que, pela graça de Deus,
experimentasse a morte em proveito de todos.
Convinha, na verdade, que Deus,
origem e fim de todas as coisas,
querendo conduzir muitos filhos para a sua glória,
levasse à glória perfeita, pelo sofrimento,
o Autor da salvação.
Pois Aquele que santifica e os que são santificados
procedam todos de um só.
Por isso não Se envergonha de lhes chamar irmãos.

CONTEXTO

O escrito a que chamamos “Carta aos Hebreus” parece ser, mais do que uma carta, um sermão ou discurso destinado a ser proclamado oralmente. Não sabemos quem foi o seu autor. A tradição das Igrejas do oriente atribui-o a Paulo; mas as Igrejas do ocidente há muito que descartaram a autoria paulina deste documento: a forma literária, a linguagem, o estilo, a maneira de citar o Antigo Testamento e mesmo a doutrina exposta estão bastante longe de qualquer outro escrito paulino. Pensa-se que teria sido elaborado por um cristão anónimo – talvez um discípulo de Paulo – que, no entanto, conhecia muito bem o Antigo Testamento.

A tradição antiga põe os “hebreus” como destinatários deste escrito; porém, não há qualquer indicação, ao longo do escrito, de que o texto se destinasse especificamente a cristãos oriundos do mundo judaico. É verdade que refere constantemente o Antigo Testamento; mas o Antigo Testamento já era, por essa altura, património comum de todos os cristãos, seja os de origem judaica, seja os de origem pagã. Tratava-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que viviam num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Teria sido elaborado nos anos que antecederam a destruição da cidade de Jerusalém (que ocorreu no ano 70), uma vez que o autor se refere à liturgia do Templo como uma realidade ainda atual. É provável, portanto, que tenha aparecido por volta do ano 67, muito perto da altura em que Paulo e Pedro foram martirizados em Roma.

A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo sétimo domingo comum está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: Ele incarnou e fez-se irmão dos homens, experimentou mesmo o sofrimento e a morte, mas foi ressuscitado e glorificado por Deus. Apesar dessa experiência de “abaixamento” que fez, Ele é superior a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A história da salvação – essa história que a liturgia nos recorda e nos convida a celebrar em cada domingo – é uma história espantosa. É a história de um Deus que olha para nós com amor infinito e que, por amor, nos enviou o seu Filho Jesus. Para esse Deus com o coração de Pai e de mãe, a nossa salvação, a nossa felicidade plena é muito mais importante do que a incompreensão dos homens, do que a recusa teimosa dos homens, até mesmo do que o horrível sofrimento que a cruz comporta. A paciência que Deus tem demonstrado connosco só tem sido ultrapassada pela grandeza do seu amor. Como é que vemos isto? Sentimo-nos realmente tocados e desafiados pela grandeza do amor de Deus? A consciência do amor que Deus nos tem tem-se traduzido, da nossa parte, em reconhecimento, gratidão e louvor?
  • Desde o início do seu caminho histórico os homens e as mulheres negligenciaram as propostas de Deus e preferiram trilhar caminhos de egoísmo e de autossuficiência. Sabemos onde é que isso nos tem conduzido: a guerras, violências, injustiças, ambição, corrupção, que deixam no nosso mundo um longo rasto de sofrimento e de morte. Por vezes até nos atrevemos, na nossa insensatez e arrogância, a questionar Deus e a perguntar-lhe porquê todo esse sofrimento, como se Ele fosse o culpado das nossas escolhas erradas… Estamos conscientes de que uma fatia muito significativa dos males que nos ferem resultam das nossas opções egoístas? O que necessitaríamos de mudar, na nossa forma de viver, para construirmos um mundo mais pacífico, mais justo e mais humano?
  • Cristo vestiu a nossa humanidade, veio ao nosso encontro, experimentou a nossa fragilidade, acompanhou-nos nos caminhos da vida, falou-nos na nossa linguagem humana, mostrou-nos em gestos como é que devemos viver para correspondermos ao projeto de Deus para o homem e para encontrarmos Vida verdadeira. Tornou-se um “guia” próximo, interessado, digno de crédito, com quem nos identificamos, que temos vontade de escutar e de seguir, mesmo quando Ele nos aponta caminho difíceis de cruz e de dom da vida. Jesus é a nossa referência? Procuramos segui-l’O sem hesitações, mesmo quando Ele nos propõe caminhos contra a corrente? Confiamos n’Ele incondicionalmente? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 10,2-16

Naquele tempo,
Aproximaram-se de Jesus uns fariseus para O porem à prova
e perguntaram-Lhe:
«Pode um homem repudiar a sua mulher?»
Jesus disse-lhes:
«Que vos ordenou Moisés?»
Eles responderam:
«Moisés permitiu que se passasse um certificado de divórcio,
para se repudiar a mulher».
Jesus disse-lhes:
«Foi por causa da dureza do vosso coração
que ele vos deixou essa lei.
Mas, no princípio da criação, ‘Deus fê-los homem e mulher.
Por isso, o homem deixará pai e mãe para se unir à sua esposa,
e os dois serão uma só carne’.
Deste modo, já não são dois, mas uma só carne.
Portanto, não separe o homem o que Deus uniu».
Em casa, os discípulos interrogaram-n’O de novo
sobre este assunto.
Jesus disse-lhes então:
«Quem repudiar a sua mulher e casar com outra,
comete adultério contra a primeira.
E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro,
comete adultério».
Apresentaram a Jesus umas crianças
para que Ele lhes tocasse,
mas os discípulos afastavam-nas.
Jesus, ao ver isto, indignou-Se e disse-lhes:
«Deixai vir a Mim as criancinhas, não as estorveis:
dos que são como elas é o reino de Deus.
Em verdade vos digo:
Quem não acolher o reino de Deus como uma criança,
não entrará nele».
E, abraçando-as, começou a abençoá-las,
impondo a mão sobre elas.

CONTEXTO

Despedindo-se da Galileia, Jesus começa a caminhar para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. Não seguiu pelo “caminho da montanha”, que passava pelo centro do país e atravessava a Samaria, mas sim pelo caminho que desce ao longo do rio Jordão e que era o caminho habitualmente tomado pelos peregrinos que vinham da Galileia para Jerusalém.

O episódio que o Evangelho deste domingo nos apresenta é colocado por Marcos “na região da Judeia, para além do Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, governado por Herodes Antipas. Este Herodes Antipas, então tetrarca da Galileia e da Pereia, tinha pouco antes mandado executar João Batista, que criticara o tetrarca por este se ter divorciado da esposa legítima para viver maritalmente com Herodíade, sua cunhada (cf. Mc 6,17-29).

No caminho para Jerusalém, Jesus volta a encontrar as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os discípulos caminham atrás de Jesus. Mas também aqui, como tinha acontecido na Galileia, voltam a aparecer os fariseus para confrontar Jesus. Desta vez – diz-nos Marcos – trazem-Lhe uma questão relativa ao divórcio: “pode um homem repudiar a sua mulher?”. Marcos esclarece que a razão da pergunta é pôr Jesus à prova.

A questão, formulada nestes exatos termos, não era especialmente controversa. A Lei de Israel permitia que o homem tomasse a iniciativa de despedir a sua mulher, pondo assim fim à relação (“quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1). O que se discutia, no entanto, era sobre as razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher por parte do marido. Entre os judeus, duas grandes escolas teológicas divergiam profundamente na interpretação da Lei do divórcio. A escola de Shammai, mais rigorista, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa; mas a escola de Hillel, dominante na época de Jesus, ensinava que qualquer motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque, por qualquer razão, tinha deixado de agradar ao marido), servia para o homem despedir a mulher. A mulher, por sua vez, muito dificilmente era autorizada a obter o divórcio em tribunal (somente no caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante).

Portanto, a lei judaica do divórcio era altamente discriminatória. O homem podia facilmente obter o divórcio e casar com outra mulher; mas a mulher praticamente não podia tomar a iniciativa de se divorciar do seu marido. Além disso, a mulher divorciada ficava frequentemente numa situação social intolerável: sem meios de subsistência, sem ninguém que a defendesse, se não fosse acolhida na casa do pai ou de um irmão, ficava condenada a pedir esmola ou a prostituir-se.

Os fariseus já tinham percebido que Jesus não alinhava na discriminação da mulher. Jesus defendia as mulheres, respeitava-as, tratava-as com dignidade… Aliás, contradizendo tudo o que era habitual, tinha até acolhido algumas mulheres entre os seus discípulos. Como é que Ele via a lei do divórcio, uma lei que agradava aos homens, mas que provocava tanto sofrimento entre as mulheres judaicas? in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Como é que Jesus entende o amor humano? Como é que Ele encara o amor que une um homem e uma mulher? A opinião de Jesus sobre o amor humano está profundamente vinculada com o projeto que o Deus criador tinha para o homem e para a mulher. Ora, Deus criou o homem e a mulher iguais em dignidade e quis que eles caminhassem de mãos dadas ao encontro da felicidade. Por isso, convidou-os a amarem-se, a partilharem a vida, a serem apoio um do outro, a completarem-se um ao outro, a viverem um para o outro; pediu-lhes que esse amor se expressasse em doação, em partilha de vida, em entrega um ao outro, em respeito um pelo outro, em fidelidade mútua; assegurou-lhes que o caminho do amor, vivido dessa forma, lhes traria uma felicidade sem fim. Na perspetiva do Deus criador, um amor vivido assim não é um amor “descartável” e com prazo de validade, mas é um amor que tem a marca da eternidade. Como avaliamos um projeto de amor que tem este horizonte? É possível um amor assim?
  • Naturalmente, no projeto de Deus para o homem e para a mulher não cabe o egocentrismo, a arrogância, a prepotência, a submissão que escraviza, o domínio de um sobre o outro, o desrespeito pela dignidade do outro, o tratamento do outro como simples objeto descartável, o aviltamento do outro, a tentativa de controlar a liberdade do outro, o pensamento do outro, os valores do outro. Como é que nos relacionamos com a pessoa com quem um dia nos comprometemos, diante de Deus, da Igreja e da sociedade, a partilhar um projeto de amor? A relação que mantemos com a pessoa que amamos é comandada pelo nosso egoísmo ou pelo respeito que o outro nos merece?
  • As telenovelas fúteis, os influenciadores que ditam os valores da moda, os lobbies ao serviço de interesses diversos, têm procurado convencer-nos de que o fracasso do amor é uma realidade normal, banal, que pode acontecer a qualquer instante. Para os casais cristãos – os casais que se disponibilizaram para seguir Jesus e para viver na dinâmica do Reino de Deus – o fracasso do amor não é uma normalidade, mas uma situação extrema, uma realidade excecional. Para os casais cristãos, o divórcio não deve ser um remédio simples e sempre à mão para resolver as pequenas dificuldades que a vida todos os dias apresenta. Marido e esposa têm que esforçar-se por realizar a sua vocação de amor, apesar das dificuldades, das crises, das divergências e dos problemas que, dia a dia, a vida lhes vai colocando. Como é que vemos tudo isto? Como nos posicionamos em relação a tudo isto?
  • Apesar de tudo, a vida dos homens e das mulheres é marcada pela debilidade própria da condição humana. Nem sempre as pessoas, apesar do seu esforço e da sua boa vontade, conseguem ser fiéis aos ideais que Deus propõe. A vida de todos nós está cheia de fracassos, de infidelidades, de falhas; mas Deus não desiste, apesar disso, de nos tratar como filhos muito queridos. Chamada a ser sinal e testemunha da misericórdia de Deus no mundo, a comunidade cristã deve usar de compreensão para com aqueles que falharam (muitas vezes sem culpa) na vivência do seu projeto de amor. Em nenhuma circunstância as pessoas divorciadas devem ser marginalizadas ou afastadas da vida da comunidade cristã. A comunidade deve, em todos os instantes, acolher, integrar, compreender, ajudar aqueles a quem as circunstâncias da vida impediram de viver o tal projeto ideal de Deus. Não se trata de renunciar ao “ideal” que Deus propõe; trata-se de testemunhar a bondade e a misericórdia de Deus para com aqueles que, por diversas razões, não puderam realizar esse ideal que um dia, diante de Deus e da comunidade, se comprometeram a viver. Como é que a nossa comunidade cristã acolhe aqueles que viram falhar o seu projeto de amor?
  • Os discípulos de Jesus, conscientes do seu papel e da sua importância, julgaram-se no direito de limitar o acesso de determinadas pessoas a Jesus. Para eles, a comunidade do Reino era um clube de gente importante, onde os pequeninos não tinham lugar… Mas Jesus troca-lhes as voltas: ao acolher com amor e ternura as crianças que lhe trouxeram, Jesus está a dizer aos discípulos que no centro da sua comunidade devem estar sempre os mais pequenos, os mais frágeis, os mais débeis, aqueles que são desprezados e ignorados pela gente importante do mundo. Esses, segundo Jesus, são os preferidos de Deus, aqueles que têm um lugar especial no coração de Deus. Como é que são acolhidas e tratadas entre nós as pessoas mais humildes, as mais frágeis, as mais pobres, as que a sociedade ignora, rejeita ou até mesmo condena? in Dehonianos

Para os leitores:

Na primeira leitura deve haver especial atenção nas duas frases em discurso direto e na proclamação dos verbos que as introduzem. O leitor deve estar atento à respiração e às pausas nas frases e orações curtas, para uma leitura articulada e fluente do texto.

Na segunda leitura, as frases longas com diferentes orações exigem não só o respeito pela pontuação, como uma preparação acurada das pausas e respirações de acordo com o conteúdo e mensagem do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A DOENÇA DO CORAÇÃO DE PEDRA (sklêrokardía)

Além dos quatro episódios que decorrem fora das fronteiras de Israel (três na Decápole, a oriente do Mar da Galileia, e um na região de Tiro, a noroeste de Israel) (ver Domingo XXIII), a ação de Jesus decorre quase toda na Galileia (Marcos 1-9) e em Jerusalém (Marcos 11-16), tendo pelo meio a viagem da Galileia para Jerusalém (Marcos 10): em Marcos 10,1, Jesus sai de Cafarnaum, onde esteve em Marcos 9,33-50; em Marcos 10,46, chega a Jericó; em Marcos 11,1, está nas imediações de Jerusalém. Serve este levantamento topográfico para situar o episódio do Evangelho deste Domingo XXVII (Marcos 10,2-16) após a saída de Cafarnaum, a caminho da Judeia e de Jerusalém, viagem feita, não pela Samaria, mas descendo pela margem oriental do Jordão, talvez na Pereia, onde a comunidade judaica era considerável (Marcos 10,1a). O narrador ainda nos informa que as multidões (óchloi), única vez no plural em Marcos, vieram ter com Ele, que, como de costume (hôs eiôthei), expressão só aqui usada em Marcos, os ensinava (Marcos 10,1b).

É também aqui que os fariseus, mais uma vez «para pôr Jesus à prova» (peirázô) (cf. 8,11; 12,15), lhe perguntam «se é lícito (éxestin) ao homem repudiar (apolýô) a sua mulher» (Marcos 10,2). A pergunta é uma armadilha, por mais de uma razão. Primeiro, porque este modo de fazer era já usual entre os judeus. Se Jesus desse uma resposta negativa, corria o risco de provocar um alvoroço entre os homens que o ouviam. Segundo, porque podia acentuar o conflito com Herodes Antipas, que já tinha feito prender João Batista, por este ter protestado contra a sua relação irregular com Herodíades (Marcos 6,18). Terceiro, porque se desse uma resposta positiva, corria o risco de entrar numa discussão académica interminável e inútil, pois eram conhecidas interpretações diversas, entre o rigorismo e o laxismo. Por exemplo, a escola rigorista de Shammai era de opinião que a separação só devia ser permitida em caso de adultério, enquanto a escola liberal de Hillel achava que a separação era permitida por tudo e por nada.

Portanto, Jesus não se deixa apanhar na armadilha, e pergunta por sua vez aos fariseus: «O que é que vos ordenou (entéllomai) Moisés?» (Marcos 10,3). Eles tiveram de responder: «Moisés permitiu (epitrépô) escrever uma ata de divórcio e repudiar» (Marcos 10,4). Os fariseus estão a citar o Livro do Deuteronómio 24,1, e vê-se que interpretavam esta prescrição de Moisés como permissão do divórcio. De onde se deduzia que os homens (só os homens) têm o direito de repudiar as suas mulheres, direito a que as mulheres não tinham direito, pois não podiam separar-se dos seus maridos. Ouvida esta resposta, Jesus entra então na argumentação a sério, referindo que Moisés não permitiu o divórcio, mas apenas quis pôr ordem e humanidade numa situação que os homens tinham criado, e que gerava muitas complicações. Na verdade, a mulher repudiada, se o divórcio não fosse devidamente documentado, continuava ligada ao seu anterior marido, e não ficava livre para se voltar a casar; podia ser vista como uma mulher casada em fuga, e, caso se viesse a ligar a outro homem, podia ser acusada de adultério e ser condenada à morte por lapidação (cf. Deuteronómio 22,22).

Tirado isto a limpo, Jesus declara então que esta prescrição de Moisés não se destina a permitir o divórcio, mas a pôr os necessários limites à «dureza do coração» ou «esclerose do coração», a famosa sklêrokardía dos homens, a verdadeira responsável pelo divórcio (Marcos 10,5). Esclarecido então o alcance da prescrição de Moisés, meramente corretiva de uma situação que a «esclerose do coração» dos homens criou, e que, lendo bem o Livro do Deuteronómio 10,12-22, significa o fechamento do homem a Deus, à sua bondade, à sua grandeza e à sua vontade (ver a expressão em Deuteronómio 10,16 e Jeremias 4,4), Jesus passa logo a expor (Marcos 10,6-8) a vontade de Deus sobre o casal humano, como se pode ver lendo os relatos da criação: «Deus os fez homem e mulher» (Génesis 1,27); «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Génesis 2,24). E conclui: «Não separe o homem o que Deus uniu» (Marcos 10,9).

Depois, em casa (Marcos 10,10), lugar da intimidade, Jesus explica aos seus discípulos que tanto incorre em adultério o homem como a mulher que abandonam os respetivos cônjuges e casam com outros (Marcos 10,11-12). Com este dizer, alargado à mulher, Jesus estende o bisturi também à nossa sklêrokardía. De facto, aos fariseus Jesus apenas falou do homem que repudia a sua mulher e casa com outra, porque, em mundo judaico, não era permitido à mulher repudiar o marido, para casar com outro. Era, porém, permitido em mundo grego. E é sabido que os destinatários diretos do Evangelho de Marcos vivem no mundo greco-romano.

E Jesus mostra de novo aos seus discípulos que é necessário romper a crosta da nossa importância, que nos separa de Deus e dos pequeninos (Marcos 10,13-16). Também aqui se trata de sklêrokardía. Em boa verdade, envoltos na crosta da nossa importância, já não sabemos receber. E o reino de Deus não é para comprar ou conquistar, mas unicamente para receber. Daí a importância das crianças para Jesus. Não é a sua inocência e candura que aqui é salientada, mas o facto de serem dependentes e confiantes.

Aí está, então, o chão do Evangelho de hoje, a vontade de Deus expressa na Criação, a que Jesus faz referência (Génesis 2,18-24). A extraordinária narrativa abre com a constatação enfática por parte de Deus de um problema gravíssimo que pode acarretar a morte do homem. Este problema chama-se «solidão». Deus é levado a afirmar: «Não é, de facto, bom (lo’-tôb) que o HOMEM (ha’adam) esteja só (lebaddô)» (Génesis 2,18a). Note-se que este enfático «não-bom» colide com o «sete vezes bom» e o «SIM» que enchia Génesis 1,1-2,4a, ao todo 452 palavras em que não soa um único «não», e o «bom» se faz ouvir por sete vezes.

Tendo constatado o o grave perigo que ameaça o homem, Deus trata logo de remediar a situação, propondo-se «fazer (‘asah) um auxílio (‘ezer) a ele correspondente (kenegdô)» (Génesis 2,18b). Note-se outra vez o uso do masculino ‘ezer, e não do feminino ‘ezrah. Neste contexto, em que ‘ezer designará a mulher, mas não só, o uso do masculino é fruto com certeza de uma escolha premeditada, sendo, por isso, de lhe atribuir especial importância. Na verdade, a exegese moderna mostrou que o título «auxílio» (‘ezer), que aparece no Antigo Testamento por 21 vezes [= Génesis 2,18.20; Êxodo 18,4; Deuteronómio 33;7.26.29; Salmo 20,3; 33,20; 70,6; 89,20; 115,9.10.11; 121,1.2; 124,8; 146,5; Isaías 30,5; Ezequiel 12,14; Os 13,9; Daniel 11,34], é, na maioria dos casos, excetuadas as duas menções do Génesis, um título dado direta ou indiretamente a Deus, que é o verdadeiro «auxílio» do homem. Trata-se, em todos os casos, de um auxílio pessoal, e não instrumental, sendo mesmo um auxílio indispensável em situações de extremo perigo, não longe da fronteira que separa a vida e a morte. Qual é então o perigo que ameaça o homem em Gn 2,18? É certamente a solidão. E a verdadeira solidão chama-se coisificação. Sim, o homem pode perder-se no meio de objetos, coisificando também Deus e os outros. É Deus normalmente o auxílio do homem. A mulher surge na mente de Deus com o título grande de «auxílio» do varão, assim como o varão é o «auxílio» da mulher, e qualquer ser humano deve ser o «auxílio» de outro ser humano. Está assim desvendado o estranho uso, neste contexto, do masculino ‘ezer.

Por sua vez, a expressão kenegdô assenta na preposição neged [= ao lado de, diante de, contra], mas remete ainda para o hiphil higgîd [= narrar], e, portanto, para um sujeito de palavra, deixando entrever que o «auxílio» que Deus se propõe fazer seja alguém que saiba estar «ao lado de» alguém, não de forma tirânica e prepotente, mas apto para a doçura da palavra.

É então que, de um lado (tsela‘) do ser humano, Deus «constrói» (banah) a mulher (’ishshah) (Génesis 2,22). O texto diz tudo. Sendo um lado, fica logo dito que a mulher e o homem, juntos, são dois lados, que formam uma unidade, como os dois lados de uma porta ou de uma janela. Não se pode destruir um sem destruir também o outro. Por outro lado, ao usar o verbo «construir» (banah) para a mulher, fica já igualmente dito, por assonância, o mundo da mulher: «filhos» (banîm), «casa» (bêt). Quanto a ’ishshah, é simplesmente o feminino de ’îsh.

Ainda que não tenhamos reparado nisso, tivemos de esperar até agora, para ouvirmos pela primeira vez a voz humana a ecoar no cenário da criação. E é significativo que tal suceda para o homem expressar o seu alvoroço de noivo, saudando extasiado a mulher-noiva com a expressão familiar «osso dos meus ossos e carne da minha carne» (Génesis 2,23), primeiro canto de amor e ao amor que se encontra nas páginas da Bíblia. O relato da aparição da mulher não deve fazer esquecer que é relatada, em estreito paralelismo, a aparição da linguagem.

E porque são o auxílio um do outro, o lado um do outro, identificando-se um pelo outro (veja-se o jogo de ’îsh e ’ishshah), «o homem (’îsh) deixará o seu pai e a sua mãe, e se unirá amorosamente à sua mulher (’ishshah), e serão [os dois] uma só carne» (Génesis 2,24). Convenhamos que a expressão é insólita! No sistema patriarcal, é a mulher, e não o homem, que deixa a sua família para se unir ao seu marido. Mas o insólito serve aqui talvez para realçar a grande força do amor, e para mostrar que é só outro amor, e só ele, que pode separar do primeiro amor, o amor dos pais. De resto, o texto não pretende, com certeza, fazer qualquer referência a um sentido matriarcal, mas quer sobretudo acentuar que são os dois a deixar um amor anterior, porque encontraram um amor mais forte. «Forte como a morte o amor»! (Cântico dos Cânticos 8,6). Inegociável o amor. Não separe o homem o que Deus uniu.

Mas há, porventura, outra temática que se insinua em filigrana nesta expressão: a temática do único eleito, abençoado e portador de bênção para todos os povos, peregrino da liberdade, chamado a deixar-se transformar em «outro homem». De facto, o relato de Abraão abre com a interpelação do Senhor para uma viagem transitiva e intransitiva (lek-leka), para deixar a sua terra e a sua parentela e ir… (Génesis 12,1-3). É paradigmático que Abraão deixe a casa paterna. É nessa estrada que é colocado Adam, o pai da humanidade, e a inteira humanidade consigo. Mas também os primeiros reis pisam essa estrada. É assim que Saul vai da casa do seu pai à procura das jumentas perdidas (1 Samuel 9,3), e acaba por ser ungido rei (1 Samuel 10,1), sendo transformado em um «homem outro» (’îsh ’aher) (1 Samuel 10,6), com um «coração outro» (leb ’aher) (1 Samuel 10,9). E também David anda fora de casa, quando Samuel o procura para o ungir como rei (1 Samuel 16,11-13). E também a amada do Cântico dos Cânticos, símbolo de Israel e da inteira humanidade amada e desposada por Deus, é mandada entrar na estrada de Abraão, mediante aquele «Vai para ti» (lekî-lak) (Cântico dos Cânticos 2,10). Em jogo está a verdadeira vocação-missão de alteridade, sendo que a alteridade bem compreendida implica outra maneira de compreender, outro coração, portanto. Esta é certamente a grande temática já instalada no texto fundacional de Génesis 2,24. A não ser assim, nem o texto faz sentido, pois não se vê bem como é que este primeiro homem, modelado da terra, possa deixar o seu pai e a sua mãe!

Sim, as 45 palavras hebraicas do salmo 128 enchem-nos de paz, luz, serenidade. Respira-se também a fragrância da videira e a juventude da oliveira. Mas a família cantada neste Salmo não está fechada sobre si mesma, mas aberta à comunidade por Deus abençoada. Portanto, do perímetro da casa e da mesa em que vivem e se sentam pais e filhos, avista-se e sente-se a paz da Cidade Santa, Jerusalém. Não é de admirar que a tradição judaica tenha sabido extrair deste Salmo as «sete bênçãos para as núpcias». Saboreemos o perfume deste extrato: «Bendito, ó Senhor, que concedeste ao esposo e à esposa júbilo, canto, gozo, alegria, amor, paz, fraternidade e amizade. Possam depressa e para sempre, ó Senhor, ressoar gritos de gozo em Jerusalém, cidade santa. Possa levantar-se, cheia, a voz jubilosa do esposo e da esposa e os coros gozosos de quem os acompanha na sua alegria. Bendito és tu, Senhor, que alegras o esposo com a sua esposa!».

            E assim também com aquele que incarnou no nosso mundo, que deu a sua vida por nós, e sacerdotalmente nos santifica, e não se envergonha de nos chamar seus irmãos. É assim a homilia da Carta aos Hebreus que hoje iniciamos (2,9-11).

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXVI do Tempo Comum – Ano B – 29.09.2024

Viver a Palavra

Acolhimento, testemunho coerente e conversão são os grandes desafios que emergem da Liturgia da Palavra deste XXVI Domingo do Tempo Comum.

Jesus continua a caminhar com os discípulos, conduzindo-os pela estrada nova do amor, fazendo-os experimentar a surpreendente lógica do Reino. Contudo, os discípulos sentem ainda a dificuldade de se deixar moldar pela Boa Nova que implica um acolhimento sem obstáculos nem barreiras, um testemunho coerente e credível que os introduz num caminho de conversão permanente.

«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco». Aquele homem expulsava demónios, restituía gente à vida e fazia-o em nome de Jesus, mas os discípulos impedem-no porque não pertencia ao grupo deles. Preocupa-os mais a defesa do grupo, que o bem que aquele homem fazia. E bem sabemos como é tão humana esta tentação, pois já na primeira leitura, Josué, vendo Eldad e Medad a profetizar, pede a Moisés que os proíba. Por isso, Jesus adverte aos discípulos: «não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Diante da tentação de proibir, afastar ou condenar, Jesus convida ao acolhimento que não desiste de ninguém, que é capaz de olhar para cada fenda aberta onde o amor pode ser semeado. Ficamos perplexos com este aparente frágil, fácil e ligeiro critério de ingresso no amor: «quem não é contra nós é por nós». Mas que libertador é o Mestre que tem sempre um caminho estendido para quem O procura! A proibição e o impedimento servem apenas para afastar e excluir. O acolhimento é único caminho que pode gerar vida, conversão e arrependimento.

Diante de um mundo a transformar pela força do amor, são precisos seguidores de Jesus, com testemunho coerente e credível, pois como preveniu Jesus: «se alguém escandalizar algum destes pequeninos que creem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar». Deste modo, porque somos frágeis e pecadores, a coerência será sempre um grande desafio que nos impele a abraçar a conversão como tarefa permanente da nossa vida cristã.

Apesar de exigente, a conversão e a renovação da vida, deve começar pelos pequenos gestos do quotidiano. Como é consolador ver como Jesus simplifica a vida: «quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa». Um copo de água, um sorriso, um abraço, uma visita a um doente, uma conversa com alguém que está sozinho: gestos pequenos e aparentemente banais, mas que semeiam no tempo e na história o amor e fazem despontar a esperança de um mundo mais fraterno e feliz.

Contudo, a mensagem final do Evangelho parece tão dura e exigente: se a tua mão, se o teu pé ou o teu olho são ocasião de escândalo corta-os. De facto, é necessária coragem para a renúncia daquilo que pode ser obstáculo à entrada do Reino, pois a entrada não acontece a partir daquilo que possuímos ou amealhamos, como nos recorda S. Tiago na segunda leitura, mas por aquilo que somos capazes de oferecer, deixar e renunciar. A solução não está numa mão cortada, mas numa mão convertida que oferece um copo de água.

Por isso, acolhimento, testemunho e conversão semeiam a esperança do mundo novo que Jesus veio anunciar e inauguram no aqui e agora do tempo, o Reino que há-de ser em plenitude no Céu. in Voz Portucalense.

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No dia 29 de setembro, assinala-se o Dia Mundial do Migrante e do Refugiado. O Papa Francisco escreveu uma mensagem para este dia intitulada: «Deus caminha com o seu povo». Nesta mensagem, (que fica em anexo) o Santo Padre, na senda do caminho sinodal que estamos a viver, afirma «é possível ver nos migrantes do nosso tempo, como aliás nos de todas as épocas, uma imagem viva do povo de Deus em caminho rumo à Pátria eterna» e desafia a sabermos ser Igreja a caminho no acolhimento e ajuda de tantos irmãos e irmãs migrantes e refugiados. No final desta mensagem, é proposta uma oração que pode ser rezada por todos na celebração da Eucaristia.

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Números 11,25-29

Leitura do Livro dos Números

Naqueles dias,
o Senhor desceu na nuvem e falou com Moisés.
Tirou uma parte do Espírito que estava nele
e fê-lo poisar sobre setenta anciãos do povo.
Logo que o Espírito poisou sobre eles,
começaram a profetizar;
mas não continuaram a fazê-lo.
Tinham ficado no acampamento dois homens:
um deles chamava-se Eldad e o outro Medad.
O Espírito poisou também sobre eles,
pois contavam-se entre os inscritos,
embora não tivessem comparecido na tenda;
e começaram a profetizar no acampamento.
Um jovem correu a dizê-lo a Moisés:
«Eldad e Medad estão a profetizar no acampamento».
Então Josué, filho de Nun,
que estava ao serviço de Moisés desde a juventude,
tomou a palavra e disse:
«Moisés, meu senhor, proíbe-os».
Moisés, porém, respondeu-lhe:
«Estás com ciúmes por causa de mim?
Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta
e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!»

CONTEXTO:

O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.

No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 11,1-36,13).

Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por acção de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por ação de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.

O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • A comunidade do Povo de Deus é a comunidade do Espírito. O Espírito não é privilégio dos membros da hierarquia; mas está bem vivo e bem presente em todos aqueles que abrem o coração aos dons de Deus e que aceitam comprometer-se com Jesus e com o seu projeto de vida. Mesmo o irmão mais humilde, mais pobre, menos considerado da nossa comunidade possui o Espírito de Deus.
  • O episódio ensina também que o Espírito de Deus é livre e atua onde quer e como quer. Não está limitado por fronteiras, nem por regras, nem por interesses pessoais, nem por privilégios de grupo. Nenhuma Igreja tem o monopólio do Espírito, nenhuma instituição pode controlá-lo ou acorrentá-lo. Por vezes, somos testemunhas da ação do Espírito no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa instituição religiosa… Não temos que sentir-nos melindrados ou ciumentos se Deus age no mundo através de pessoas que não pertencem à nossa Igreja; temos é de reconhecer a presença de Deus nos gestos de amor, de paz, de justiça, de solidariedade, de partilha que todos os dias testemunhamos (mesmo naqueles que se dizem ateus) e agradecer ao nosso Deus a sua presença, a sua ação, o seu amor pelos homens e pelo mundo.
  • A certeza de que ninguém tem o exclusivo do Espírito obriga-nos a pôr de lado qualquer atitude de fanatismo, de intransigência ou de intolerância face às perspetivas diferentes com que somos confrontados. Os preconceitos, os esquemas egoístas, as condenações à priori, os julgamentos apressados, podem fazer-nos perder os desafios que o Espírito, pela voz dos irmãos, nos apresenta.
  • Moisés, o líder do processo de libertação que trouxe os hebreus da terra da escravidão para a Terra da liberdade, foi capaz de reconhecer a sua debilidade e a sua incapacidade de “fazer tudo” e aceitou a ajuda da comunidade. Não teve ciúmes, nem inveja, nem medo de perder o controle do processo, nem dificuldade em aceitar a partilha das tarefas que o Senhor lhe confiou. Com o seu exemplo, ele ensina os responsáveis das nossas comunidades a aceitar a ajuda dos irmãos, a partilhar com outros o peso da responsabilidade de conduzir a comunidade do Povo de Deus. Por vezes, temos a convicção de que só nós somos capazes de fazer as coisas bem e evitamos aceitar a ajuda dos outros; por vezes, sentimos que a intervenção de outras pessoas é uma ameaça ao nosso poder e rejeitamos qualquer ajuda; por vezes, queremos controlar o caminho da comunidade, porque não estamos dispostos a renunciar aos nossos sonhos, aos nossos projetos pessoais… Já pensámos que, quando não aceitamos partilhar responsabilidades, estamos a impedir os outros de crescer? Já pensámos que, quando somos nós a conduzir todo o processo, sem nos deixarmos confrontar com perspetivas diferentes, podemos estar a calar os desafios do Espírito? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)

Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.

 

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma.
As ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.

O temor do Senhor é puro
e permanece eternamente;
Os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são rectos.

Embora o vosso servo se deixe guiar por eles
e os observe com cuidado,
quem pode, entretanto, reconhecer os seus erros?
Purificai-me dos que me são ocultos.

Preservai também do orgulho o vosso servo,
para que não tenha poder algum sobre mim:
então serei irrepreensível
e imune de culpa grave.
LEITURA II – Tg 5,1-6

Leitura da Epístola de São Tiago

Agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos,
por causa das desgraças que vão cair sobre vós.
As vossas riquezas estão apodrecidas
e as vossas vestes estão comidas pela traça.
O vosso ouro e a vossa prata enferrujaram-se,
e a sua ferrugem vai dar testemunho contra vós
e devorar a vossa carne como fogo.
Acumulastes tesouros no fim dos tempos.
Privastes do salário os trabalhadores
que ceifaram as vossas terras.
O seu salário clama;
e os brados dos ceifeiros
chegaram aos ouvidos do Senhor do Universo.
Levastes na terra uma vida regalada e libertina,
cevastes os vossos corações para o dia da matança.
Condenastes e matastes o justo
e ele não vos resiste.

CONTEXTO

A Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos seus interlocutores alguns dos aspetos que elencou anteriormente e que, na sua perspetiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra.

O primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no orgulho e na autossuficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O segundo bloco (cf. Tg 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12), oração (cf. Tg 5,1-18) e preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg 5,19-20).

O texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho eautossuficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em primeiro lugar porque eles vivem apenas para acumular bens materiais, negligenciando os verdadeiros valores. Fazem do ouro e da prata os seus deuses e centram toda a sua existência em valores caducos e perecíveis. No final da sua existência vão perceber que gastaram a vida a correr atrás de algo que não dá felicidade nem conduz o homem à vida plena; a sua existência terá sido, então, um dramático equívoco. O “aviso” do autor da Carta de Tiago conserva uma espantosa atualidade… A acumulação de bens materiais tornou-se, para tantos homens do nosso tempo, o único objetivo da vida e o critério único para definir uma vida de sucesso. Contudo, aqueles que apostam tudo nos bens perecíveis facilmente constatam como essa opção não responde, em definitivo, à sua sede de felicidade e de vida plena. O ouro, a conta bancária, o carro de luxo, a casa de sonho, dão-nos satisfações imediatas e, talvez, um certo estatuto aos olhos do mundo; mas não saciam a nossa sede de vida eterna. Nós, os cristãos, somos chamados a testemunhar que a vida verdadeira brota dos valores eternos – esses valores que Deus nos propõe.
  • O autor da Carta de Tiago critica os ricos, em segundo lugar, porque frequentemente a riqueza resulta da exploração e da injustiça. Acumular bens à custa da miséria e da exploração dos irmãos é, na perspetiva do autor do nosso texto, um crime abominável e que Deus não deixará impune. Não é cristão quem não paga o salário justo aos seus operários, mesmo que ofereça depois somas chorudas para a construção de uma igreja; não é cristão quem especula com os bens de primeira necessidade, mesmo que vá todos os domingos à missa e pertença a vários grupos paroquiais; não é cristão quem inventa esquemas para não pagar impostos, mesmo que seja muito amigo do padre da paróquia; não é cristão quem se aproveita da ignorância e da miséria para realizar negócios altamente rentáveis, mesmo que pense repartir com Deus os frutos das suas rapinas…
  • Uma coisa deve ficar clara: Deus não apoia nunca quem vive fechado em si próprio, no açambarcamento egoísta desses bens que Deus nos concedeu para serem postos ao serviço de todos os homens; e qualquer crime cometido contra os pobres é um crime contra Deus, que afasta o homem da vida plena da comunhão com Deus. in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 9,38-43.45-47-48

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
João disse a Jesus:
«Mestre,
nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome
e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco».
Jesus respondeu:
«Não o proibais;
porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome
e depois dizer mal de Mim.
Quem não é contra nós é por nós.
Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo,
em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa.
Se alguém escandalizar algum destes pequeninos
que creem em Mim,
melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço
uma dessas mós movidas pró um jumento
e o lançassem ao mar.
Se a tua mão é para ti ocasião de escândalo, corta-a;
porque é melhor entrar mutilado na vida
do que ter as duas mãos e ir para a Geena,
para esse fogo que não se apaga.
E se o teu pé é para ti ocasião de escândalo, corta-o;
porque é melhor entrar coxo na vida
do que ter os dois pés e ser lançado na Geena.
E se um dos teus olhos é para ti ocasião de escândalo,
deita-o fora;
porque é melhor entrar no reino de Deus só com um dos olhos
do que ter os dois olhos e ser lançado na Geena,
onde o verme não morre e o fogo não se apaga».

CONTEXTO

Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados sonhos de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se inquietos e ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses, a sua autoridade, os seus “privilégios”.

Jesus vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
Marcos juntou aqui uma série de “ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si e pronunciados em contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo, exigências várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES:

  • O Evangelho deste domingo apresenta-nos um grupo de discípulos ainda muito atrasados na aprendizagem do “caminho do Reino”. Eles ainda raciocinam em termos de lógica do mundo e têm dificuldade em libertar-se dos seus interesses egoístas, dos seus esquemas pessoais, dos seus preconceitos, dos seus sonhos de grandeza e poder… Eles não querem entender que, para seguir Jesus, é preciso cortar com certos sentimentos e atitudes que são incompatíveis com a radicalidade que a opção pelo Reino exige. As dificuldades que estes discípulos apresentam no sentido de responder a Jesus não nos são estranhas: também fazem parte da nossa vida e do caminho que, dia a dia, percorremos… Assim, a instrução que, neste texto, Jesus dirige aos seus discípulos serve-nos também a nós. As propostas de Jesus destinam-se aos discípulos de todas as épocas; pretendem ajudar-nos a purificar a nossa opção e a integrar, de forma plena, a comunidade do Reino.
  • Antes de mais, Jesus mostra aos discípulos que a comunidade do Reino não pode ser uma seita arrogante, fechada, intolerante, fanática, que se arroga a posse exclusiva de Deus e das suas propostas. Tem de ser uma comunidade que sabe qual o seu papel e a sua missão, mas que reconhece que não tem o exclusivo do bem e da verdade e que é capaz de se alegrar com os gestos de bondade e de esperança de que acontecem à sua volta, mesmo quando esses gestos resultam da ação de não crentes ou de pessoas que não pertencem à instituição Igreja. O verdadeiro discípulo não tem inveja do bem que outros fazem, não sente ciúmes se Deus atua através de outras pessoas, não pretende ter o monopólio da verdade nem ter o exclusivo de Jesus. O verdadeiro discípulo esforça-se, cada dia, por testemunhar os valores do Reino e alegra-se com os sinais da presença de Deus em tantos irmãos com outros percursos religiosos, que lutam por construir um mundo mais justo e mais fraterno.
  • Os discípulos de que o Evangelho de hoje nos fala estão preocupados com a ação de alguém que não é do grupo, pois temem ver postos em causa os seus sonhos pessoais de poder e de grandeza. Por detrás dessa preocupação dos discípulos não está o bem do homem (aquilo que, em última análise, devia “mover” os membros da comunidade do Reino), mas a salvaguarda de certos interesses egoístas. Nas nossas comunidades cristãs ou religiosas, há pessoas capazes de gestos incríveis de doação, de entrega, de serviço aos irmãos; mas há também pessoas cuja principal preocupação é proteger o espaço que conquistaram e continuar a manter um estatuto de poder e de prestígio… Quando afastamos (com o pretexto de defender a pureza da fé, os interesses da moralidade, ou tranquilidade da comunidade) aqueles que desafiam a comunidade a purificar-se e a procurar novos caminhos para responder aos desafios de Deus, estaremos a proteger os interesses de Deus ou os nossos projetos, os nossos esquemas interesseiros, as nossas apostas pessoais?
  • No nosso texto, Jesus exige dos discípulos o corte radical com os valores, os sentimentos, as atitudes que são incompatíveis com a opção pelo Reino. O discípulo de Jesus nunca está acomodado, instalado, conformado; mas está sempre atento e vigilante, procurando detetar e eliminar da sua existência tudo aquilo que lhe impede o acesso à vida plena. Naturalmente, a renúncia ao egoísmo, ao comodismo, ao orgulho, aos esquemas pessoais, à vontade de poder e de domínio, ao apelo do êxito, ao aplauso das multidões, é um processo difícil e doloroso; mas é também um processo libertador e gerador de vida nova. O que é que eu necessito, prioritariamente, de “cortar” da minha vida, para me identificar mais com Jesus, para merecer integrar a comunidade do Reino, para ser mais livre e mais feliz?
  • O apelo de Jesus à sua comunidade no sentido de não “escandalizar” (afastar da comunidade do Reino) os pequenos, faz-nos pensar na forma como lidamos, enquanto pessoas e enquanto comunidades, com os pobres, os que falharam, os que têm atitudes moralmente reprováveis, aqueles que têm uma fé pouco consistente, aqueles que a vida marcou negativamente, aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita… Eles encontram em nós a proposta libertadora que Cristo lhes faz, ou encontram em nós rejeição, injustiça, marginalização, mau exemplo? Quem vê o nosso testemunho tem razões para aderir a Cristo, ou para se afastar de Cristo? in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura é um longo discurso dos ímpios que incita a armarem ciladas aos justos e condená-los à morte. A proclamação deste texto deve valorizar as formas verbais que marcam o ritmo e o tom da leitura.

Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado na proclamação da enumeração das características da sabedoria e nas frases interrogativas presentes no texto. Além disso, é necessário ter em consideração as afirmações finais que estabelecem uma dinâmica de causa/efeito que deve ser clara na proclamação da leitura.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

CADA COPO DE ÁGUA CONTA

A lição do Livro dos Números deste Domingo XXVI (Números 11,25-29) mostra-nos um Moisés, não dono de nada nem de ninguém, nada ciumento ou invejoso, mas livre, cheio de bem e de bondade, completamente a céu aberto, desejoso de ver, com olhos puros, o Espírito de Deus a operar maravilhas em todas as pessoas e através de todas as pessoas. Josué representa, neste texto, a figura sombria do ciumento.

O Evangelho deste mesmo Domingo XXVI (Marcos 9,38-48) segue o mesmo rumo, e mostra-nos um Jesus feliz por ver que o bem saltou as fronteiras do pequeno grupo que o seguia, sendo praticado também por pessoas de fora. João encarna aqui a figura do Josué do texto supracitado do Livro dos Números, e quer o bem todo para Jesus e o seu grupo, vendo com maus olhos que também outros o possam realizar, talvez sobretudo porque os próprios discípulos tinham pouco antes fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.

Nas palavras de João, o facto é o seguinte: os discípulos de Jesus viram alguém a expulsar demónios no nome de Jesus, e trataram logo de o impedir. A razão apresentada para fundamentar este impedimento, tem, porém, o seu quê de estranho e surpreendente. Na verdade, João refere, com todas as letras, que o grupo dos discípulos impediu o homem anónimo de continuar a sua atividade «em nome de Jesus», «porque não nos seguia» (ouk êkoloúthei hêmîn) (Marcos 9,38). O problema reside todo neste «porque não nos seguia». Trata-se, de facto, de uma fórmula estranha e surpreendente, porque, no Evangelho, fala-se sempre de «seguir Jesus», e não «a nós», inclusive no único paralelo desta passagem, apresentado em Lucas 9,49, em que se lê: «porque não segue connosco» (ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Vê-se bem que estes discípulos de Jesus ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço do Domingo passado, querendo eles próprios estar indevidamente «no meio», ocupando ou usurpando o primeiro lugar. Sempre este nosso doentio gosto de querermos estar sempre no centro das atenções! Salta à vista que este texto notável funciona como um espelho: mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos de Jesus, que se julgam donos exclusivos de algumas funções e defendem ciosamente esse status.

Vê-se, no fundo da tela, que não basta querer o bem. Querer o bem nem sempre é bom. Por paradoxal que pareça, querer o bem pode ser mau. É de facto mau, quando queremos o bem só para nós, ciumenta e invejosamente. Às vezes, os nossos maus olhos levam-nos a retirar o bem do alcance dos outros, e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros! Ora, o bem que divide e exclui nunca é bem. O bem mostra-se tal apenas quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos.

Um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade. Aí está outra soberana lição de Jesus. Toda a atenção, portanto, às nossas mãos, pés, olhos, entranhas, coração. A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja. Estas últimas maneiras de ver levam-nos ao mal, e, portanto, ao sentimento venenoso de queremos o bem só para nós. Aí está como querer o bem nem sempre é bom; pode ser mau. E é melhor arrancar pela raiz este veneno mortal.

A lição de Tiago (5,1-6), que lemos e abandonamos este Domingo (no próximo Domingo começa a ler-se a Carta aos Hebreus) mostra bem, numa linguagem duríssima, que o rico é o que quer o bem só para si, retirando-o (roubando-o!) aos outros. Autoexclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna. O resultado é a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão, recuperando assim, em termos proféticos e sapienciais, muitos motivos patentes no Antigo Testamento. O pequeno texto da Carta de Tiago usa 119 imperativos, dos quais se ouvem três no texto de hoje. Permanentes chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo, e a maioria não tem quase nada. O texto da Carta de Tiago é claramente tardio, de finais do século I ou princípios do século II, mas vale para todos os tempos.

Esta linguagem duríssima aproxima-se de quanto, no texto do Evangelho de hoje aparece retratado na «geena» (Marcos 9,43.45.47), do aramaico gêhinnam, hebraico gê-hinnom, que é o nome de um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os seus próprios filhos (2 Crónicas 28,3; 33,6). O piedoso rei Josias, no decurso da sua reforma religiosa, acabou com estes cultos pagãos, e destinou este lugar para queimar as entranhas dos animais. É daqui que vem o espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo, (Jeremias 7,31-34; 19,1-13; 32,35), «vermes que não morrem, fogo que não se apaga» (Marcos 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno. A chapa original encontra-se em Isaías 66,24, último versículo do profeta.

Aí está, no ponto e em contraponto, a lição soberana do Evangelho de Jesus: um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade.

O Salmo 19 é, no seu todo, uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Apresenta-se em dois quadros, que formam um belo díptico que canaliza o louvor do orante. O primeiro quadro, composto pelos v. 2-7, é um hino ao Deus Criador. O segundo, que reúne os v. 8-15, é um hino à Lei de Deus. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida na sua Lei revelada. Hoje contemplamos e cantamos o segundo quadro. Quem tem ouvidos, oiça então, e cante.

D. António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXV do Tempo Comum – Ano B – 22.09.2024

Viver a Palavra

Caminhamos com Jesus como aprendizes na escola da arte de amar e vemos o Mestre fazer-se presente e próximo das nossas dúvidas, anseios e desejos tantas vezes marcados pelos nossos esquemas calculistas e ambiciosos. Jesus é o pedagogo paciente que uma vez mais anuncia a vontade do Pai: «O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens, que vão matá-l’O; mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará». Repete pela segunda vez e ainda há-de comunicá-lo no Evangelho de Marcos uma terceira vez. Jesus anuncia novamente o desígnio do Pai porque o que é importante deve ser repetido e nós como os discípulos precisamos de o ouvir de novo, porque temos dificuldade em acolhê-lo. A nível antropológico repete-se o que é essencial e vital e a nível teológico a repetição reformula o acontecimento fundamental da salvação.

Surpreende-me sempre este espanto e escândalo dos discípulos e ainda mais o medo de interrogar Jesus. Eles caminham com Jesus desde a Galileia, viram os seus milagres e prodígios: os cegos a ver, os coxos a andar, a filha de Jairo a ressuscitar, uma multidão saciada com cinco pães e dois peixes… Escutaram as Suas palavras cheias de amor e misericórdia e contemplaram o modo como Jesus acolhia aqueles que vinham ao Seu encontro. Contudo, homens como nós, os discípulos têm dificuldade em escutar até ao fim. Jesus não disse apenas que irá sofrer e morrer, anuncia também que, três dias depois de morto, ressuscitará. Contudo, estamos diante de uma linguagem nova que parece incompreensível para os nossos ouvidos e conceitos.

Jesus é o Servo fiel e obediente à voz do Pai a quem armam ciladas «porque incomoda» e a quem querem matar para verem «se as Suas palavras são verdadeiras». Jesus faz ecoar na Sua vida as palavras do salmista: «o Senhor sustenta a minha vida» e caminha confiante, fiel e obediente ao projeto do Pai.

A Sua vida entregue é o convite a superar os nossos desejos de grandeza, pois tantas vezes como os discípulos perdemo-nos e ocupamo-nos em discussões inúteis, tal como nos recordava o Papa Bento XVI: «nós, que somos pequeninos, aspiramos a parecer grandes, a ser os primeiros; enquanto Deus, que é realmente grande, não tem medo de se humilhar e de se fazer último». Por isso, Jesus não os repreende, mas como o pai de família senta-se com eles para lhes recordar a nova lógica do amor, da humildade e da bondade e não se limita a fazê-lo com palavras: «tomando uma criança, colocou-a no meio deles, abraçou-a». Jesus conhece no silêncio as preocupações dos discípulos e está atento aos seus anseios e sonhos. Jesus irrompe na nossa vida e convida-nos a perder para ganhar: cala os nossos jogos de interesses com a serenidade da humildade. Jesus, abraçando-nos como crianças, pois ainda temos tanto para aprender, ensina-nos que «na corrida do amor chega primeiro quem se esqueceu de si para que os outros também cheguem».

A nova lógica do amor impele-nos a sair de nós próprios para acolher o outro e inscreve a nossa vida na verdadeira sabedoria de que fala S. Tiago. Sabedoria que vem do alto e que não se compadece de invejas e ciúmes, rivalidades e competitividade, mas se vive pela generosidade, misericórdia, bondade e fraternidade. in Voz Portucalense.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sabedoria 2,12.17-20

Disseram os ímpios:
«Armemos ciladas ao justo,
porque nos incomoda e se opõe às nossas obras;
censura-nos as transgressões à lei
e repreende-nos as faltas de educação.
Vejamos se as suas palavras são verdadeiras,
observemos como é a sua morte.
Porque, se o justo é filho de Deus,
Deus o protegerá e o livrará das mãos dos seus adversários.
Provemo-lo com ultrajes e torturas
para conhecermos a sua mansidão
e apreciarmos a sua paciência.
Condenemo-lo à morte infame,
porque, segundo diz, Alguém virá socorrê-lo».

CONTEXTO

Os biblistas situam a redação do livro da Sabedoria por volta do ano 50 a.C., o que o torna o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito em grego por um judeu de língua grega, nascido e educado na Diáspora. Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve – com exemplos tirados da história do Êxodo – as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé).

O “berço” da reflexão proposta pelo autor é, provavelmente, a cidade de Alexandria. Por essa altura, a cultura helénica marca o ritmo da vida da cidade e dos seus habitantes. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente no Egito conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida. Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.

É neste contexto que o sábio autor do Livro da Sabedoria se propõe fazer a defesa dos valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrir a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus. Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

O texto que a primeira leitura deste domingo nos propõe integra a primeira parte do livro da Sabedoria (cf. Sb 1-5), que apresenta uma reflexão sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”. O autor descreve a forma de pensar e de agir dos ímpios, analisa os seus raciocínios (cf. Sb 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sb 2,10-20). Depois conclui: os ímpios, agindo assim, estão longe de Deus e do prémio que Ele reserva para aqueles que vivem nos seus caminhos (cf. Sb 2,21-24).

Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Deixemos de lado a classificação de “ímpios” e “justos”, utilizada pelo “sábio”, que é um tanto redutora e rotuladora… Fixemo-nos antes no confronto – bem claro no texto – entre os valores de Deus e os valores do mundo, entre a “sabedoria de Deus” e a “sabedoria do mundo”. Trata-se de um “frente-a-frente” que conhecemos bem e que atravessa cada momento do caminho histórico que a humanidade vai percorrendo… Há quem tente simplificar as coisas resumindo tudo isto à mera opção entre valores antiquados e valores atuais, valores passados de moda e valores condizentes com o quadro civilizacional do nosso tempo… Na realidade, não é assim tão simples. O confronto é entre valores eternos e valores passageiros, entre valores que asseguram Vida verdadeira e valores que apenas proporcionam flashes de felicidade efémera. Neste confronto, em que campo nos situamos?
  • O que é a “sabedoria do mundo”? A “sabedoria do mundo” é a atitude de quem, fechado no seu orgulho, arrogância e autossuficiência, resolve prescindir de Deus e dos seus valores; é a opção de quem vive para o “ter”, de quem põe em primeiro lugar o dinheiro, o poder, o êxito, a fama, a ambição, os valores efémeros. Trata-se de uma “sabedoria” que, em lugar de conduzir o homem à sua plena realização, o deixa vazio, frustrado, deprimido, escravo. A “sabedoria do mundo” pode apresentar-se com as cores sedutoras da felicidade efémera, com o brilho da filosofia que está na moda, com a respeitabilidade das construções intelectuais mais sólidas, com o selo de garantia dos influencersde serviço; mas não assegurará ao homem uma felicidade duradoura. Que papel joga a “sabedoria do mundo” nas nossas vidas?
  • O que é a “sabedoria de Deus”? A “sabedoria de Deus” é a atitude daqueles que assumiram e interiorizaram as propostas de Deus e se deixam conduzir por elas. Atentos à vontade e aos desafios de Deus, procuram escutá-l’O e seguir os seus caminhos; tendo como modelo de vida Jesus Cristo, vivem a sua existência no amor, na partilha, no serviço simples e humilde aos irmãos; estão sempre atentos a quem chora, a quem sofre, a quem necessita de amor e cuidado; comprometem-se com a construção de um mundo mais fraterno e lutam pela justiça e pela paz; não se conformam com as injustiças e as violências que desfeiam o mundo, e esforçam-se por construir o Reino de Deus. Os que se deixam conduzir pela “sabedoria de Deus” nem sempre são compreendidos e aceites. Às vezes chamam-lhes “fracos”, “perdedores”, “incapazes”, “retrógrados”, e colocam-nos em guetos onde podem ser controlados. Mas eles, mesmo desautorizados e incompreendidos, procuram ser sal que dá sabor ao mundo e luz viva que ilumina os caminhos que a humanidade percorre. Que papel joga a “sabedoria de Deus” no nosso projeto de vida?
  • Quem escolhe a “sabedoria de Deus”, não tem uma vida fácil. Com frequência será incompreendido, caluniado, escarnecido, desautorizado, perseguido, torturado – como aconteceu com Jesus. É claro que o sofrimento, a incompreensão, a perseguição, são assustadores; mas devem ser vistos como consequência natural da fidelidade a Deus e aos seus valores. Não devemos ficar preocupados quando o mundo nos persegue; devemos ficar preocupados quando somos aplaudidos e adulados por aqueles que escolheram a “sabedoria do mundo”. Alguma vez o medo de sermos incompreendidos e perseguidos nos impediu de sermos testemunhas coerentes da “sabedoria de Deus”? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)

Refrão: O Senhor sustenta a minha vida.

 

Senhor, salvai-me pelo vosso nome,
pelo vosso poder fazei-me justiça.
Senhor, ouvi a minha oração,
atendei às palavras da minha boca.

Levantaram-se contra mim os arrogantes
e os violentos atentaram contra a minha vida.
Não têm a Deus na sua presença.

Deus vem em meu auxílio,
o Senhor sustenta a minha vida.
De bom grado oferecerei sacrifícios,
cantarei a glória do vosso nome, Senhor.

LEITURA II – Tiago 3,16-4,3

Caríssimos:
Onde há inveja e rivalidade,
também há desordem e toda a espécie de más ações.
Mas a sabedoria que vem do alto
é pura, pacífica, compreensiva e generosa,
cheia de misericórdia e de boas obras,
imparcial e sem hipocrisia.
O fruto da justiça semeia-se na paz
para aqueles que praticam a paz.
De onde vêm as guerras?
De onde procedem os conflitos entre vós?
Não é precisamente das paixões que lutam nos vossos membros?
Cobiçais e nada conseguis: então assassinais.
Sois invejosos e não podeis obter nada:
então entrais em conflitos e guerras.
Nada tendes, porque nada pedis.
Pedis e não recebeis, porque pedis mal,
pois o que pedis é para satisfazer as vossas paixões.

CONTEXTO

A chamada “Carta de Tiago” é uma exortação de um mestre cristão do séc. I, que se apresenta como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Ainda não foi possível identificar concretamente este “Tiago”. Em qualquer caso parece ser um personagem de origem semita, que conhece bem as escrituras sagradas judaicas, mas que é capaz de se expressar muito bem em língua grega, recorrendo inclusive a recursos retóricos muito apreciados pelos literatos helénicos.

O escrito é endereçado às “doze tribos da Diáspora”. A expressão designa, provavelmente, as comunidades cristãs de origem judaica existentes fora da Palestina (Síria, Egito, Ásia Menor); mas também pode ser uma expressão metafórica utilizada para designar as comunidades cristãs em geral, dispersas pelo mundo greco-romano.

O objetivo do autor desta “carta encíclica” será ajudar os cristãos a viverem a sua fé com coerência e autenticidade, dentro de um estilo de vida que reflita os valores do Evangelho de Jesus. Os temas abordados na carta são diversos e vão-se sucedendo sem uma ordem ou plano doutrinal previamente definido. Avultam as indicações de caráter prático, às vezes num estilo que lembra a reflexão sapiencial: um “mestre” cristão deixa aos seus “discípulos” conselhos práticos sobre a arte de viver de acordo com o espírito cristão nas mais diversas circunstâncias.

Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de Tiago reflete, na terceira parte do seu escrito (cf. Tg 3,1-4,10), sobre alguns aspetos bem concretos onde deve transparecer a opção que os seguidores de Jesus fizeram. O primeiro aspeto particular a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo alude à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro aponta a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro dos referidos pontos. O objetivo é sempre exortar os crentes a pautarem as suas vidas pelos valores cristãos autênticos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O Batismo é, para todos os crentes, o momento em que se encontram com Jesus e optam por Ele (mesmo que esse momento tenha ocorrido numa idade em que não tinham plena consciência das implicações dessa opção, entretanto renovada posteriormente); é o momento em que os crentes escolhem a “sabedoria do alto” e passam a conduzir a sua vida pelos critérios de Deus. Ungidos no batismo com o óleo do crisma, os batizados são escolhidos para serem sinais de Deus e rostos vivos dessa Vida nova que Deus quer propor ao mundo e aos homens. Coerentes com a sua opção batismal, os crentes fazem a diferença e anunciam – com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida – um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais feliz para todos os filhos e filhas de Deus. Vivemos conscientes de que esta é a vocação a que são chamados todos os batizados? Procuramos viver de forma coerente com os compromissos que assumimos no dia do nosso Batismo? Os valores que conduzem a nossa vida e que testemunhamos são os valores que brotam da “sabedoria do alto”?
  • O autor da Carta de Tiago considera que muitos batizados, seduzidos pela “sabedoria do mundo”, instalam-se no egoísmo e na autossuficiência, vivem para o “ter”, deixam que a sua existência seja dirigida por critérios de ambição e de ganância, recusam-se a fazer da sua vida uma partilha generosa com os irmãos… Essa opção – diz ele – traz inevitáveis consequência negativas: não lhes assegura a sua plena realização, não enche de sentido as suas vidas; e destrói a vida das comunidades onde eles caminham, pois gera desordem, guerras, rivalidades, conflitos, divisões. A forma de se derrotar a “sabedoria do mundo” passa por nos mantermos em contínuo processo de conversão, sempre disponíveis para nos questionarmos sobre as nossas opções erradas e para voltarmos a escutar Deus e a sua “sabedoria”. É nesse sentido que caminhamos? Estamos acomodados à “sabedoria do mundo”, ou estamos continuamente dispostos a rever as nossas opções, a voltar para Deus e a viver de acordo com as propostas que Ele nos faz?
  • Finalmente, o autor da Carta de Tiago avisa que, quando o nosso coração está cheio da “sabedoria do mundo”, a nossa oração torna-se um monólogo egoísta, uma pedinchice de coisas que se destinam a satisfazer as nossas “paixões”, as nossas ambições egoístas, os nossos interesses pessoais. Ora, Deus não está disponível para esse tipo de conversa. Deixa-nos a falar sozinhos. A nossa oração é, nesse caso, inconsequente. Antes de falar com Deus, precisamos de mudar o nosso coração, de reequacionar os valores que priorizamos, de aprender a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus, de nos aproximar de Deus. Então, sim, a nossa oração será um verdadeiro diálogo com Deus… Através desse diálogo, tornamo-nos mais conscientes do que Deus quer, dos planos que Ele tem para nós e para o mundo; ao mesmo tempo, partilhamos com Deus as nossas dificuldades, as nossas esperanças, os nossos sonhos, e entregamos tudo nas mãos d’Ele. A nossa oração será, então, um diálogo de amor entre Pai e filho, que encherá de paz e de esperança o nosso coração. Como é o nosso diálogo com Deus? É um monólogo que serve para atirar a Deus as nossas reivindicações e pedidos, ou é um diálogo sereno e cheio de amor com o nosso Pai do céu? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 9,30-37

Naquele tempo,
Jesus e os seus discípulos caminhavam através da Galileia,
mas Ele não queria que ninguém o soubesse;
porque ensinava os discípulos, dizendo-lhes:
«O Filho do homem vai ser entregue às mãos dos homens
e eles vão matá-l’O;
mas Ele, três dias depois de morto, ressuscitará».
Os discípulos não compreendiam aquelas palavras
e tinham medo de O interrogar.
Quando chegaram a Cafarnaum e já estavam em casa,
Jesus perguntou-lhes:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados,
porque tinham discutido uns com os outros
sobre qual deles era o maior.
Então, Jesus sentou-Se, chamou os Doze e disse-lhes:
«Quem quiser ser o primeiro será o último de todos
e o servo de todos».
E, tomando uma criança, colocou-a no meio deles,
abraçou-a e disse-lhes:
«Quem receber uma destas crianças em meu nome
é a Mim que recebe;
e quem Me receber
não Me recebe a Mim, mas Àquele que Me enviou».

CONTEXTO

Alguns dias antes, nos arredores de Cesareia de Filipe, Jesus já tinha avisado os discípulos de que devia, em breve, dirigir-se para Jerusalém; e que aí seria rejeitado pelas autoridades religiosas, preso, condenado à morte e crucificado (cf. Mc 8,31-32). Pedro tinha reagido mal às indicações de Jesus e tentara demover Jesus desses passos. Os outros discípulos, por sua vez, não tinham dado mostras de ter processado aquilo que Jesus tinha dito: estavam demasiado agarrados a sonhos antigos de grandeza, de poder e de prestígio para que as palavras de Jesus fizessem sentido. Aquela conversa parecia-lhes despropositada e incongruente; ainda acreditavam que Jesus, chegado a Jerusalém, iria entrar na cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio romano.

Entretanto, a viagem pela Galileia continuou. Jesus apercebeu-se, nos dias seguintes, que os discípulos não tinham levado a sério aquele primeiro anúncio sobre o destino de morte que o esperava em Jerusalém. Consciente de que era necessário deixar as coisas bem claras, aproveitou uma altura em que caminhava a sós com os discípulos e voltou a referir-se à sua morte próxima, às mãos das autoridades de Jerusalém. Ele não queria equívocos e não pretendia que os discípulos andassem atrás d’Ele pelas razões erradas. Este é o ponto de partida para o texto do Evangelho que a liturgia nos propõe neste vigésimo quinto domingo comum.

O evangelista Marcos, pela sua parte, está interessado em dizer aos seus leitores que Jesus é o Messias, o Filho de Deus (cf. Mc 1,1); no entanto, nunca lhes oculta que esse Filho de Deus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ao apresentar, num breve espaço, os três anúncios da paixão de Jesus (cf. Mc 8,31-32; 9,30-31; 10,32-34), Marcos está a preparar-nos para o que vai contar na segunda parte do seu Evangelho; e para que também nós repitamos aquilo que disse o centurião romano destacado junto da cruz onde Jesus entregou a vida nas mãos do Pai: “Verdadeiramente este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O Evangelho deste vigésimo quinto domingo comum põe frente a frente dois sistemas de valores, duas formas radicalmente diferentes de encarar a existência. De um lado está Jesus e a sua forma de viver e de priorizar os valores que dão sentido à vida; do outro lado estão os discípulos, cujos interesses parecem ser opostos aos de Jesus. Jesus vive imbuído dos valores de Deus. Não está preocupado com o seu êxito pessoal; interessa-lhe apenas cumprir o projeto de Deus e mostrar aos homens como o caminho do amor e do serviço conduzem à Vida verdadeira, à felicidade sem fim. Para dizer isso aos homens, Jesus está mesmo disposto a dar a sua vida até ao extremo, até à última gota de sangue, na cruz. Mas os discípulos, escravos da “sabedoria do mundo”, acreditam piamente que a felicidade está nos bens materiais, no poder, nas honras, nos privilégios; e fazem “orelhas moucas” quando Jesus os convida a segui-l’O nesse caminho que Ele vai percorrer, o caminho da vida dada por amor. Neste confronto de caminhos opostos, onde nos situamos?
  • Passaram-se dois mil anos, desde que Jesus andou pelos caminhos da Galileia e da Judeia a apresentar a sua proposta e a convidar os homens a construir um mundo mais justo e mais fraterno; e, mesmo depois desse tempo todo, parece que ainda não nos convencemos de que Jesus tinha razão. A corrida às honras, a priorização dos bens materiais, a luta pelos postos de poder e de influência, a ambição desmedida, a apetência pelos títulos e honrarias, a sobreposição dos interesses pessoais ao bem comum, continuam a marcar o ritmo de vida de muitos homens e mulheres do séc. XXI… Mais: isto não acontece apenas em ambientes “civis”, afastados de Jesus e das suas propostas; mas também acontece em contextos marcadamente cristãos, na comunidade dos discípulos. Que sentido é que isto faz? Poderemos apresentar-nos como discípulos de Jesus se ignoramos o caminho que Ele nos aponta? Uma Igreja que se organiza e estrutura tendo em conta os esquemas do mundo poderá considerar-se a Igreja de Jesus?
  • De acordo com Jesus, a importância de uma pessoa não se mede pelo dinheiro que possui, nem pelo poder que conquistou, nem pela influência social que adquiriu, nem pelo sucesso profissional que obteve, nem pelo estilo com que se veste, nem pelos títulos civis ou canónicos que ostenta, nem pelo seu aspeto físico, mas sim pela forma como serve e como ama os seus irmãos, sobretudo os mais frágeis e desprezados. De acordo com Jesus, a única grandeza é a grandeza de quem, com humildade e simplicidade, faz da própria vida um serviço aos irmãos. É isto que se passa nas nossas comunidades cristãs? Quem são, entre nós, os mais importantes, os que mais consideramos, reverenciamos e admiramos, aqueles a quem sentamos nos lugares mais distintos?
  • Jesus, para ilustrar a sua lição sobre o amor, tomou uma criança – símbolo de fragilidade, de pequenez, de pobreza, de simplicidade – colocou-a no meio dos discípulos e abraçou-a. Quis dizer, com esse gesto, que na sua comunidade são os mais pequenos, os mais pobres, os mais desprezados, os mais desconsiderados, os mais humildes que devem estar no centro; e que todos os outros membros da comunidade devem cuidar deles, abraçá-los, servi-los, ajudá-los, defendê-los. O frágil, o pequeno, o pobre é o próprio Jesus; e quem o acolhe, abraça o próprio Jesus… Como é que as nossas comunidades cristãs acolhem os pobres, os mais humildes, aqueles que o resto da sociedade rejeita e ignora, aqueles que ninguém quer e ninguém ama? Como é que são tratados nas nossas comunidades as pessoas vítimas de doenças incuráveis, os irmãos e irmãs que a moral condena, os refugiados, os sem abrigo, os que a vida feriu irremediavelmente? Há lugar para eles? São tratados com respeito e amor? São cuidados, abraçados e ajudados?
  • Marcos diz-nos que os discípulos “tinham medo de interrogar” Jesus. É verdade: por vezes sentimo-nos pouco cómodos com a frontalidade, a radicalidade, a exigência, a verdade de Jesus. Ele não se contenta com “meias tintas”, com verdades parciais, com escolhas que não são quente nem frio; Ele não se conforma com a nossa preguiça, a nossa acomodação, a nossa cobardia; Ele desafia-nos continuamente a um compromisso firme, à doação total da vida, ao amor até ao extremo, à conversão e à renovação. Seria mais fácil, para nós, refugiarmo-nos nas nossas orações decoradas, nas nossas devoções particulares, nos nossos solenes rituais litúrgicos, na nossa religião vivida como cumprimento de leis… Mas Jesus pede mais: pede que o sigamos no caminho de Jerusalém, no caminho do amor e do dom da vida… A exigência de Jesus deixa-nos pouco à vontade, ou é, para nós, uma decisão assumida e que procuramos viver com coerência e radicalidade? O seguimento de Jesus dá-nos medo, ou é um caminho libertador? in Dehonianos

Para os leitores:

A primeira leitura é um longo discurso dos ímpios que incita a armarem ciladas aos justos e condená-los à morte. A proclamação deste texto deve valorizar as formas verbais que marcam o ritmo e o tom da leitura.

Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado na proclamação da enumeração das características da sabedoria e nas frases interrogativas presente no texto. Além disso, é necessário ter em consideração as afirmações finais que estabelecem uma dinâmica de causa/efeito que deve ser clara na proclamação da leitura

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

DESCER DE NÓS ABAIXO

No Evangelho deste Domingo XXV do Tempo Comum, continuamos a ler a chamada «secção do caminho» do Evangelho de Marcos (Ver Domingo XXIV), hoje a passagem de Marcos 9,30-37. Este texto intenso e sublime cai sobre nós como uma faca de dois gumes e envolve-nos em duas vagas avassaladoras: Marcos 9,30-32 e 9,33-37.

A primeira acontece no caminho que desce de Cesareia de Filipe para Cafarnaum, um dia de caminho e de ensinamento de Jesus aos seus discípulos. Concentração máxima: Jesus a sós com os seus discípulos (ninguém de fora os acompanha) e um único dizer na sua boca de Mestre que repetidamente ensinava: «O Filho do Homem vai ser entregue (paradídotai: pass. teológico ou divino) por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas três dias depois de morto ressuscitará» (Marcos 9,31). Note-se, em todo o caso, que Jesus passará das nossas mãos violentas e assassinas, para as mãos paternais do Pai. Jesus ensina, portanto, a sua paixão, morte e ressurreição. Ficam aqui bem a descoberto as nossas mãos violentas e assassinas. Mas é estranho o comportamento dos discípulos de Jesus, que nos é dado a conhecer pelo narrador. Na verdade, aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não queriam compreender aquelas palavras e até tinham medo de as vir a compreender. É esta a mais correta tradução daquele verbo agnoéô, que não significa apenas «ignorar», «desconhecer», «não compreender», mas, mais do que isso, «não querer compreender». E era o medo de, porventura, virem a compreender que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (Marcos 9,32).

Leva tempo àqueles discípulos de Jesus, e a mim, e a nós, compreender que, se a maneira de ser de Deus é o amor, só o amor, então Ele tem de descer ao nosso nível, sujando-se na mentira do nosso coração e na violência das nossas mãos, não nos opondo qualquer resistência, que é o nosso modo habitual de fazer e que faz aumentar a violência, mas amando também a nossa violência até ao fim e ao fundo. Aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não querem nem sequer pensar nesta maneira de viver… e de morrer. Por isso, não querem compreender o verdadeiro caminho do amor que Jesus ensina, e, porque não querem correr quaisquer riscos, não ousam sequer fazer perguntas.

É aqui que somos atingidos em cheio pela segunda vaga do texto de hoje. Chegados a Cafarnaum, e tendo entrado na casa (seguramente a casa de Pedro), somos confrontados com uma pergunta certeira de Jesus acerca do assunto que vínhamos a debater (dialogízomai) no caminho (Marcos 9,33). Mas se já antes não arriscámos perguntar nada a Jesus, agora também não nos atrevemos a responder. O narrador passa-nos duas informações: que «eles (como nós) se calavam» (esiôpôn: imperf. de siôpáô), implicando este imperfeito um silêncio continuado (1), e que tinham disputado (dialégomai) no caminho uns com os outros sobre quem fosse o maior (2) (Marcos 9,34). Note-se que a pergunta de Jesus supõe um debate de ideias (verbo dialogízomai), mas a anotação do narrador deixa supor uma luta de interesses (verbo dialégomai). Note-se ainda o contraponto: enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até ao fim, os seus discípulos ocupam-se de grandezas.

Neste momento, Jesus senta-se (modo enfático) e chama para si (modo enfático) os Doze, e diz-lhes (légei: pres. do verbo légô), a eles e a nós, num presente que ainda hoje ecoa no meio de nós: «Se alguém quer ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos» (Marcos 9,35). Entenda-se bem aquele «de todos», duas vezes dito, para evitar equívocos. Anote-se também que, no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes (4,1; 9,35; 13,3).

E a ilustração do Mestre, que continua sentado a ensinar, agora com gestos e palavras: recebeu uma criança pequena (paidíon), colocou-a no meio deles e de nós, e disse: «Quem receber uma destas crianças pequeninas, no meu nome, recebe-me a Mim…» (Marcos 9,36-37). Note-se aquele: «No meio», que é o lugar mais importante. Note-se também o «No meu nome», que significa ao jeito de Jesus. Note-se ainda que Jesus não usa jogos de estatística. Fala de uma criança apenas. E também deixa claro que, para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos maternais, que acariciam e dão vida, ao contrário das mãos dos homens que agarram e matam, já atrás retratadas em Marcos 9,31. De resto, vê-se bem, em filigrana, que uma criança pequenina traduz todos os nossos irmãos dependentes, cuja vida depende de nós, não nos sendo permitido, portanto, abandoná-los e voltar-lhes as costas.

Tanto se pode aprender com Jesus «na casa» e «no caminho». Aprendemos a descer de nós abaixo, a abrir as nossas mãos fechadas e armadas, e a revestir-nos de gestos de amor novos, serviçais, maternais.

O justo Jesus caminha por entre o sofrimento, o desprezo e a zombaria. E assim também os seus discípulos. O fim, porém, é a glória da Ressurreição. Um breve extrato do Livro da Sabedoria (2,12.17-20) faz-nos ver os ímpios a conspirar de mil maneiras contra o justo, que os importuna com o seu comportamento, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. Não faltam os motivos de zombaria, afirmando que querem verificar se é verdade o que justo diz, pois afirma que é filho de Deus, e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios (Sabedoria 2,18). Tudo semelhante à ironia sarcástica dos zombadores que passam junto da Cruz do Senhor (Marcos 15,29-32). Mas também é oportuno ver Sabedoria 5,1-15, o quadro que forma um díptico com Sabedoria 2,1-20. Em 5,1-15, os ímpios provocadores e zombadores reencontram-se, no dia do julgamento, lado a lado com o justo que maltrataram. Ao ver o justo de pé, apavorados e atónitos, dirão entre soluços de angústia: «Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura, e o seu fim infame. Como é que agora é contado entre os filhos de Deus, e partilha a sorte dos santos?» (Sabedoria 5,4-5). E confessam: «Sim, extraviámo-nos do caminho da verdade, a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição…» (Sabedoria 5,6-7).

São Tiago 3,16-4,3 serve-nos também hoje um texto incisivo, que nos ajuda a ler o nosso mundo e o nosso coração. Inveja e discórdia produzem desordem e ações perversas (3,16). Ao contrário, a Sabedoria do alto (ánôthen) é pura (hágnê), pacífica, afável, conciliadora, misericordiosa, cheia de frutos bons, sem duplicidade nem hipocrisia (3,17). E depois, de forma penetrante e pedagógica, pergunta São Tiago: «De onde vêm as guerras e os conflitos entre vós? Não é das vossas paixões que lutam nos vossos membros? Cobiçais, e nada tendes; então, assassinais. Sois ciumentos, e nada conseguis; então, entrais em conflitos e guerras» (4,1-2a). E desvenda este não ter: «Não tendes, porque não pedis» (4,2b). E ainda: «Pedis, e não recebeis, porque pedis mal» (4,3). As lições são muitas e importantes, e têm de ser objeto de profunda reflexão.

O Salmo 54 representa a típica súplica bíblica, em que se contam três atores: o «eu» orante, «eles» (os inimigos), e Deus. Três são também os tempos em que se desenrola a oração: o passado feliz, o presente amargo, um futuro melhor, objeto de esperança. Entretanto, fica claro que Deus está sempre do lado do orante, e, por isso, o tempo está carregado de esperança. Os inimigos são descritos como estrangeiros, estranhos (zarîm). Entenda-se: gente fora da comunidade e longe de Deus, que não respeita Deus nem a maneira de viver dos justos. Também este Salmo ajuda a reler, por um lado, toda a agressividade e zombaria que atravessa os textos de hoje, que a figura do ímpio estulto incarna. Por outro lado, mostra também a segurança do justo.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXIV do Tempo Comum – Ano B – 15.09.2024

27 …. No caminho, fez aos discípulos esta pergunta: «Quem dizem os homens que Eu sou?» ….. 
29«E vós, quem dizeis que Eu sou?» – perguntou-lhes. Pedro tomou a palavra, e disse: «Tu és o Messias.» Mc 8, 27, 29

Viver a Palavra

            A liturgia deste domingo desinstala-nos e coloca-nos a caminho. Recordando-nos a nossa condição de peregrinos, quer ajudar-nos a construir a nossa identidade de cristãos a partir da descoberta da verdadeira identidade de Jesus: quem é Jesus para mim? Quem sou eu a partir de Jesus?

Jesus caminha da Galileia a Jerusalém: do lugar do amor que se fez chamamento e seduziu o coração dos discípulos, convocando-os para a missão até à Cruz, ao lugar da paixão, lugar da entrega generosa até ao fim. Neste percurso da Galileia a Jerusalém, passam por Cesareia de Filipe, cidade junto a uma das nascentes do Rio Jordão, marcada pelo paganismo. Mas é precisamente aí, em terreno hostil e pagão, que Jesus pergunta acerca da Sua identidade, para que os discípulos compreendam que a Boa Nova que veio anunciar está revestida da nova lógica do amor e da entrega, bem diferente dos líderes e reis deste mundo.

«Quem dizem os homens que Eu sou?». Não é mera curiosidade de Jesus, nem tão pouco sondagem da opinião pública. Jesus interroga os Seus discípulos e fá-lo pedagogicamente, para introduzir a pergunta mais difícil: «E vós, quem dizeis que Eu sou?». Afinal, vós que andais comigo, que comigo partilhais a vida, que deixaste tudo para me seguir, quem sou eu para vós?

Hoje, podemos imaginar aquele olhar de Jesus fixo em nós e sentir ecoar no nosso coração esta pergunta difícil e exigente, à qual é tentador responder com uma frase feita ou alguma frase bonita, porventura aprendida à memória. Mas, hoje, queremos como Pedro responder com o coração e a vida, dizer a Jesus que Ele é Aquele que irrompe na nossa vida e oferece um sentido absolutamente novo que brota da experiência de encontro com Ele.

Reconhecer a verdadeira identidade de Jesus, coloca-nos a caminho: «Se alguém quiser seguir-Me, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me». Na verdade, começamos a ser discípulos quando entramos nesta nova lógica de ser e de estar, neste novo modo de servir e amar. É a lógica daquele que sabe que a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos irmãos. Que a vida é tanto mais ganha, quanto mais for entregue. Que a vida é verdadeiramente vida, quando entregue sem medida. Esta é a estrada nova que Jesus abre e que nos convida a percorrer, não sem Ele, nem longe Dele, mas atrás Dele. Ele abrirá o caminho, Ele iluminará os nossos passos e será o garante de que estamos a percorrer o caminho certo.

Jesus recorda-nos que um Cristianismo sem Cruz é um Cristianismo sem Páscoa e sem Luz e que a Cruz não é mais o símbolo da morte e da condenação. Em Jesus, a Cruz é árvore da vida, porta aberta para a eternidade, pois sinal e expressão máxima do amor e da bondade de Deus que se dá sem medida e nos convoca para a Sua missão, para também nós sermos entrega total e disponível.

A descoberta da verdadeira identidade de Jesus conduz-nos à pergunta decisiva: «quem sou eu a partir de Jesus?» e desafia-nos como S. Tiago a anunciar ao mundo o rosto de Jesus pelas obras de amor e misericórdia que colocamos nos nossos gestos.in Dehonianos.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 50,5-9a

O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio
e por isso não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.
O meu advogado está perto de mim.
Pretende alguém instaurar-me um processo?
Compareçamos juntos.
Quem é o meu adversário?
Que se apresente!
O Senhor Deus vem em meu auxílio.
Quem ousará condenar-me?

CONTEXTO

A primeira leitura do vigésimo quarto domingo comum pertence ao “Livro da Consolação”, do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus, na fase final do Exílio (talvez entre 550 e 539 a.C., aproximadamente).

A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “Servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “Servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1-5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem caráter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; dela resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida e do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
  • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
  • Temos consciência que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
  • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (115)

Refrão 1: Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

Refrão 3: Aleluia.

 

Amo o senhor,
porque ouviu a voz da minha súplica.
Ele me atendeu
no dia em que O invoquei.

Apertaram-me os laços da morte,
caíram sobre mim as angústias do além, vi-me na aflição e na dor.
Então invoquei o Senhor:
«Senhor, salvai a minha alma».

Justo e compassivo é o Senhor,
o nosso Deus é misericordioso.
O Senhor guarda os simples:
estava sem forças e o Senhor salvou-me.

Livrou da morte a minha alma,
das lágrimas os meus olhos, da queda os meus pés.
Andarei na presença do Senhor,
sobre a terra dos vivos.

LEITURA II – Tiago 2,14-18

Meus irmãos:
De que serve a alguém dizer que tem fé, se não tem obras?
Poderá essa fé obter-lhe a salvação?
Se um irmão ou uma irmã não tiverem que vestir
e lhes faltar o alimento de cada dia,
e um de vós lhe disser: «Ide em paz.
Aquecei-vos bem e saciai-vos»,
sem lhes dar o necessário para o corpo,
de que lhes servem as vossas palavras?
Assim também a fé sem obras está completamente morta.
Mas dirá alguém:
«Tu tens a fé e eu tenho as obras».
Mostra-me a tua fé sem obras,
que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé
.

CONTEXTO

O autor da Carta de Tiago apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). Mas, na verdade, não sabemos quem é este personagem. Não será, certamente, o Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19), nem sequer o “Tiago, filho de Alfeu” que também integrava a lista dos Doze apóstolos de Jesus (cf. Mc 3,18). Também é pouco provável que seja o “Tiago, irmão do Senhor” (Gl 1,19; cf. Mc 6,3; At 12,17), que presidiu à comunidade cristã de Jerusalém e que foi martirizado no ano 62. Mas parece ser um cristão de origem judaica, que fala muito bem a língua grega e que conhece bem o Antigo Testamento.

A carta é endereçada “às Doze tribos da Dispersão”, o que poderia supor que os seus destinatários seriam cristãos de origem judaica, a viver fora da Palestina. No entanto, a expressão pode também ser entendida em sentido metafórico e referir-se às comunidades cristãs (o novo “Povo de Deus”) que vivem espalhadas pelo mundo greco-romano.

O escrito tem um cunho marcadamente judaico. O seu pensamento está enraizado no Antigo Testamento. É daí que o autor – um mestre cristão – parte para refletir sobre a existência cristã e desafiar os seus irmãos a viverem a sua fé de forma autêntica, empenhada e coerente.

O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O que é ser cristão? O nosso compromisso cristão é algo que se vive a nível da teoria, ou do compromisso vital? O que caracteriza um cristão não é o conhecimento de belas fórmulas que expressam uma determinada ideologia, nem o cumprimento exato de ritos vazios e estéreis, nem uma assinatura feita no livro de registos de batismo da paróquia, mas é a adesão a Cristo. Ora, aderir a Cristo (fé), significa conformar, a cada instante, a própria vida com os valores de Cristo, seguir Cristo a par e passo no caminho do amor a Deus e da entrega total aos irmãos. Não se pode fugir a isto: a nossa caminhada cristã não é um processo teórico e abstrato concretizado num reino de belas palavras; mas é um compromisso efetivo com Cristo que tem de se traduzir, a cada instante, em gestos concretos em favor dos irmãos. A nossa fé em Jesus e na Vida que Ele nos propõe traduz-se em obras concretas em favor dos nossos irmãos, especialmente dos mais necessitados?
  • Os discípulos de Cristo são aqueles que vão atrás d’Ele e que aprendem com Ele como é que se vive, como é que se ama, como é que se constrói o Reino de Deus. Ora, Cristo lutou pela justiça e pela verdade, denunciou tudo aquilo que escravizava o homem e o impedia de ser feliz, foi ao encontro dos marginalizados e manifestou-lhes o amor de Deus, realizou gestos de serviço e de partilha, distribuiu o perdão e a paz, ofereceu a sua própria vida para salvar os seus irmãos. Quem acredita em Cristo tem de viver assim: tem de lutar, objetivamente, contra as estruturas que geram injustiça e opressão; tem de acolher e amar aqueles que a sociedade marginaliza e rejeita; tem de denunciar uma sociedade construída sobre esquemas de egoísmo e de mostrar, com o seu testemunho, que só a partilha e o amor tornam o homem feliz; tem de quebrar a espiral da violência e do ódio e propor a tolerância e o amor. Que obras fazemos? As nossas obras são as mesmas que Cristo fez?
  • Por vezes, há uma profunda dicotomia entre a fé que afirmamos e a vida que levamos. O nosso compromisso cristão traduz-se na participação certa nas eucaristias dominicais, na oferta de chorudas quantias para as obras da igreja, na participação destacada em manifestações públicas de religiosidade, na pertença a movimentos eclesiais… e mais nada. Depois, na vida do dia a dia, praticamos injustiças, pactuamos com esquemas de corrupção, criticamos e rotulamos aqueles de quem não gostamos, passamos indiferentes diante das necessidades e dores dos irmãos, tratamos com sobranceria os mais humildes e fracos, dizemos palavras que ferem e que levantam muros de desentendimento, demitimo-nos das nossas responsabilidades na construção de um mundo novo e melhor… De acordo com os ensinamentos da Carta de Tiago, a nossa religião será verdadeira se não se traduzir em gestos concretos de amor e de fraternidade? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 8,27-35

Naquele tempo,
Jesus partiu com os seus discípulos
para as povoações de Cesareia de Filipe.
No caminho, fez-lhes esta pergunta:
«Quem dizem os homens que Eu sou?»
Eles responderam:
«Uns dizem João Baptista; outros, Elias;
e outros, um dos profetas».
Jesus então perguntou-lhes:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?»
Pedro tomou a palavra e respondeu: «Tu és o Messias».
Ordenou-lhes então severamente
que não falassem d’Ele a ninguém.
Depois, começou a ensinar-lhes
que o Filho do homem tinha de sofrer muito,
de ser rejeitado pelos anciãos,
pelos sumos sacerdotes e pelos escribas;
de ser morto e ressuscitar três dias depois.
E Jesus dizia-lhes claramente estas coisas.
Então, Pedro tomou-O à parte e começou a contestá-l’O.
Mas Jesus, voltando-Se e olhando para os discípulos,
repreendeu Pedro, dizendo: «Vai-te, Satanás,
porque não compreendes as coisas de Deus,
mas só as dos homens».
E, chamando a multidão com os seus discípulos, disse-lhes:
«Se alguém quiser seguir-Me,
renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-Me.
Na verdade, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á;
mas quem perder a vida, por causa de Mim e do Evangelho,
salvá-la-á».

CONTEXTO

O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.

A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objetivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).

Cesareia de Filipe – o cenário geográfico onde o Evangelho deste vigésimo quarto domingo comum nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, no sopé do Monte Hermon, junto de uma das nascentes do rio Jordão (na zona da atual Bânias). Durante o período helenístico, a cidade tinha tomado o nome de Panion, em virtude de haver lá um santuário dedicado ao deus grego Pan; mas, no ano 2 ou 3 a.C., Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) reconstruiu-a e deu-lhe o nome de Cesareia, em honra de César Augusto, imperador de Roma. Era, portanto, uma cidade marcada pelo paganismo e pelo culto ao imperador. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Quem é Jesus? Como é que os homens do séc. XXI o veem? Muitos dos nossos contemporâneos – crentes, agnósticos ou mesmo ateus – veem em Jesus um homem bom, generoso, atento aos sofrimentos dos outros, que sonhou com um mundo diferente; outros veem em Jesus um admirável “mestre” de moral, que tinha uma proposta de vida “interessante”, mas que não conseguiu impor os seus valores; alguns veem em Jesus um admirável condutor de massas, que acendeu a esperança nos corações das multidões carentes e órfãs, mas que passou de moda quando as multidões deixaram de se interessar pelo fenómeno; outros, ainda, veem em Jesus um revolucionário, ingénuo e inconsequente, preocupado em construir uma sociedade mais justa e mais livre, que procurou promover os pobres e os marginais e que foi eliminado pelos poderosos, preocupados em manter o “status quo”. Que achamos destas “visões” sobre Jesus? Consideramo-las redutoras, ou exatas? Jesus terá sido apenas um “homem” que deixou a sua pegada na história humana, como tantos outros que a história absorveu e digeriu?
  • “E vós, quem dizeis que Eu sou?” – perguntou Jesus diretamente aos seus discípulos nos arredores de Cesareia de Filipe. É uma pergunta decisiva, que deve ecoar, de forma constante, nos ouvidos e no coração dos discípulos de Jesus de todas as épocas. A nossa resposta a esta questão não pode ficar-se pela repetição papagueada de velhas fórmulas que aprendemos na catequese, ou pela reprodução impessoal de uma definição tirada de um qualquer tratado de teologia. A questão vai dirigida ao âmago do nosso ser e exige uma tomada de posição pessoal, um pronunciamento sincero, sobre a forma como Jesus toca a nossa vida. A resposta a esta questão é o passo mais importante e decisivo na vida de cada crente. Quem é Jesus para nós? Que lugar ocupa Ele na nossa existência? Que valor damos às suas propostas? Que importância assumem os seus valores nas nossas opções de vida? Jesus é, para nós, a grande referência, o vetor à volta do qual o nosso mundo se constrói? Ele é para nós, de facto, “caminho, verdade e vida”?
  • Evangelho do vigésimo quarto domingo comum coloca frente a frente a lógica dos homens (Pedro) e a lógica de Deus (Jesus). A lógica dos homens aposta no poder, no domínio, no triunfo, no êxito; garante-nos que a vida só tem sentido se estivermos do lado dos vencedores, se tivermos dinheiro em abundância, se formos reconhecidos e incensados pelas multidões, se pudermos cercar-nos de bem-estar e garantir que os nossos dias decorram tranquilos e confortáveis, se assegurarmos a nossa quota de poder e influência… A lógica de Deus aposta na entrega da vida a Deus e aos irmãos; garante-nos que a vida só faz sentido se assumirmos os valores do Reino e vivermos no amor, na partilha, no serviço, na solidariedade, na humildade, na simplicidade… Na nossa vida de cada dia estas duas perspetivas confrontam-se, a par e passo e exigem de nós um posicionamento claro. Qual é a nossa escolha? Na nossa perspetiva, qual destas duas propostas apresenta um caminho de felicidade seguro e duradouro?
  • Jesus tornou-se um de nós para concretizar os planos do Pai e propor aos homens – através do amor, do serviço, do dom da vida – o caminho da salvação. Neste texto fica claramente expressa a fidelidade radical de Jesus a esse projeto. Por isso, Ele não aceita que nada nem ninguém O afastem do caminho do dom da vida: dar ouvidos à lógica do mundo e esquecer os planos de Deus é, para Jesus, uma tentação diabólica que Ele rejeita terminantemente. Que significado e que lugar ocupam na nossa vida os projetos de Deus? Esforçamo-nos, como Jesus, por descobrir a vontade de Deus a nosso respeito e a respeito do mundo? Mantemo-nos atentos, em cada passo do nosso caminho, a esses “sinais dos tempos” através dos quais Deus nos interpela? Somos capazes de acolher e de viver com fidelidade e radicalidade as propostas de Deus, mesmo quando elas são exigentes e vão contra os nossos interesses e projetos pessoais?
  • O que é que faz de nós verdadeiros discípulos de Jesus? Muitos de nós receberam uma catequese que insistia em ritos, em fórmulas, em práticas de piedade, em determinadas obrigações legais, mas que nem sempre punha em relevo o essencial do cristianismo: o seguimento de Jesus. No entanto, a identidade cristã constrói-se à volta de Jesus, do seu Evangelho, da sua proposta de vida. Sentimo-nos verdadeiramente discípulos de Jesus? Estamos disponíveis, de alma e coração, para ir atrás d’Ele no caminho da doação da vida e do amor até às últimas consequências?
  • Jesus convida os seus discípulos a renunciarem a si mesmos… O que é “renunciar a si mesmo”? É não deixar que o egoísmo, o orgulho, o comodismo, a autossuficiência, a ambição, a mentira, dominem a nossa vida. O seguidor de Jesus não vive fechado na sua zona de segurança, a olhar para si mesmo, indiferente aos dramas que se passam à sua volta, insensível às necessidades dos irmãos, alheado das lutas e reivindicações dos outros homens; mas vive para Deus e na solidariedade, na partilha e no serviço aos irmãos. Até que ponto estamos disponíveis para renunciar a nós mesmos e para colocar a nossa vida ao serviço do projeto de Deus?
  • Jesus também convida os seus discípulos a tomarem a cruz… O que é “tomar a cruz”? É amar até às últimas consequências, até à morte, se for necessário; é gastar cada instante da vida a servir, a amar, a cuidar, a fazer o bem… O seguidor de Jesus é aquele que está disposto a dar a vida para que os seus irmãos sejam mais livres e mais felizes. Por isso, o cristão não tem medo de lutar contra a injustiça, a exploração, a miséria, o pecado, mesmo que isso signifique enfrentar a morte, a tortura, as represálias dos poderosos. Aceitamos tomar cada dia a nossa cruz e a viver para os outros, como Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

A proclamação das leituras deve ter em conta as diversas perguntas que surgem nos dois textos.

Na primeira leitura, inserida nos chamados “Cânticos do Servo de Javé”, é necessário ter em atenção as respostas que intercalam as perguntas, cuidando a articulação entre as frases interrogativas e declarativas, sublinhando a força das palavras finais que são como uma profissão de fé: «O Senhor Deus vem em meu auxílio. Quem ousará condenar-me?».

Na segunda leitura, entre as várias perguntas, ter uma especial atenção na frase interrogativa mais longa, que contém no seu interior texto em discurso direto. A proclamação desta leitura deve ainda considerar a última frase – «Mostra-me a tua fé sem obras, que eu, pelas obras, te mostrarei a minha fé» como conclusão de toda a leitura e como mensagem fundamental que S. Tiago quer transmitir.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O CAMINHO DE JESUS

Também hoje, dada a importância de que se reveste, optamos por visitar mais de perto o texto do Evangelho deste Domingo XXIV do Tempo Comum (Marcos 8,27-35), disponibilizando-o em tradução literal:

«E saiu JESUS e os DISCÍPULOS d’ELE (hoi mathêtaì autoû) para as povoações de Cesareia de Filipe. E, NO CAMINHO (en tê hodô), perguntou aos DISCÍPULOS d’ELE, dizendo-lhes: “Quem dizem as pessoas que EU SOU?”. Eles disseram-LHEdizendo: “João Baptista; outros, Elias, e outros ainda, um dos profetas”. E ELE perguntou-lhes: “E VÓS, quem dizeis que EU SOU?” Respondendo, Pedro diz-LHE: “TU és o CRISTO”. E censurou-os (epetímêsen) para não dizerem a ninguém acerca d’ELE.

E COMEÇOU A ENSINÁ-LOS (kaì êrxato didáskein autoús) que é preciso (deî) o FILHO DO HOMEM sofrer muitoser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. E abertamente (parrêsía) falava esta palavra. E tomando-O consigo (proslabómenos), Pedro começou a censurá-lo (epitimân) (cf. 9,31-32; 10,32-34). ELE, porém, voltando-se e vendo os DISCÍPULOS d’ELE, censurou (epetímêsen) Pedro e diz: “Vai para trás de MIM (hypáge opísô mou), satanás, pois não tens em consideração as coisas de Deus, mas as dos homens”.

E chamando para SI (proskalesámenos) a MULTIDÃO, juntamente com os DISCÍPULOS d’ELE, disse-lhes: “Se alguém quiser atrás de MIM SEGUIR (opísô mou akoloutheîn), RENEGUE (aparnêsásthô: imp. aor. de aparnéomai) a si mesmo (heautón), TOME A SUA CRUZ e SIGA-ME, pois aquele que quiser salvar a própria vida, vai perdê-la, mas o que perder a própria vida por causa de MIM e do Evangelho, vai salvá-la”» (Marcos 8,27-35).

O episódio «NO CAMINHO» de Cesareia de Filipe abre significativamente com o nome «JESUS», abandonado 89 versículos atrás, em Marcos 6,30! Forma clara e enfática de o narrador dizer ao leitor que estamos perante um episódio importante, justamente considerado o centro geométrico e teológico do Evangelho de Marcos. Ao apresentar JESUS e os seus discípulos NO CAMINHO, o narrador abre a secção central deste Evangelho (Marcos 8,27-10,52), normalmente intitulada: «O seguimento de Jesus NO CAMINHO», que é o CAMINHO que conduz da Galileia a Jerusalém, o CAMINHO da formação de Jesus aos seus discípulos. Vamos seguir a par e passo esta importante secção do Evangelho de Marcos durante sete Domingos, desde o Domingo XXIV até ao Domingo XXX.

Cesareia de Filipe, tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Aí construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto.

É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que JESUS põe a questão da sua identidade. Soberanamente JESUS pergunta: «Quem dizem as pessoas que eu sou?» (8,27), para acrescentar logo de seguida: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29). A pergunta é única em todo o arco da Escritura. Ninguém, antes ou depois de Jesus, em toda a Escritura, fez ou fará uma pergunta semelhante.

Para o povo, JESUS é um profeta. Um entre muitos. Mas para Pedro, Jesus não é apenas um entre muitos. Ele é Único e Último (cf. Marcos 12,1-12), o Rei definitivo, o Cristo, o Messias, que traz todo o bem para o seu povo («Fez tudo bem feito»: Marcos 7,37). E assim, à questão direta e enfática – «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29) – posta por JESUS aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Pedro responde: «Tu és o Cristo!». Note-se bem que JESUS não pergunta simplesmente: «Quem sou Eu?», mas: «Quem dizeis vós que Eu sou?». Dizer é mais do que um saber. Implica o compromisso, a vida, de quem diz.

À primeira vista, parece que Pedro respondeu acertadamente. Mas o contexto mostra que o discípulo não reunia competência sobre a matéria, não estava ainda em condições de fazer as operações mentais e afetivas necessárias para uma resposta correta que reunisse todos os elementos necessários de modo a implicar na resposta o respondedor. O dizer de Pedro ainda era um dizer antigo, tradicional e convencional, sem implicações pessoais. Pedro ainda não tinha nascido de novo e do alto e do Espírito. Como podia dizer JESUS? «Tu és o Cristo!», respondeu Pedro. Fosse qual fosse a ideia que Pedro tivesse de «Cristo», vê-se logo no seguimento do texto, que no «Cristo» de Pedro não entrava o sofrimento, a rejeição, a morte, a ressurreição (8,31-32). Muito menos a adesão pessoal de Pedro a este «Cristo». Na verdade, Pedro recrimina JESUS pelo CAMINHO de rejeição, sofrimento e morte que Ele acaba de mostrar como sendo o verdadeiro CAMINHO de «Cristo» segundo JESUS. O CAMINHO de «Cristo» segundo Pedro só inclui triunfo e sucesso.

Por isso, porque Pedro acertou com a resposta – na verdade, JESUS é o «Cristo» –, mas não é o «Cristo» como Pedro pensa que é, JESUS impõe soberanamente silêncio (8,30). O silêncio imposto por JESUS aos seus discípulos pode passar falsamente a ideia do chamado «segredo messiânico», segundo o qual JESUS não quereria que a sua identidade, uma vez descoberta, fosse divulgada. Trata-se, antes, de impedir que respostas, porventura certas nas palavras, mas erradas nos conteúdos, e elaboradas apenas com base em elementos convencionais e tradicionais (o «Cristo» do judaísmo), que não implicam um verdadeiro dizer pessoal, um novo nascimento do alto e do Espírito, sejam transmitidas boicotando assim o nascimento do conhecimento profundo e verdadeiro da novidade de JESUS e a implicação pessoal de quem diz JESUS e se diz face a JESUS. O verdadeiro sujeito deste dizer não o pode ser só por fazer parte de alguma instituição que confere credibilidade ao seu dizer já antes de começar a dizer, como, por exemplo, os escribas ou os próprios discípulos de JESUS.

Porque há muita coisa que os discípulos ainda têm de aprender, antes de saberem dizer JESUS, soberanamente JESUS começou a ensinar (8,31). É grandemente sintomático que o narrador empregue a mesma expressão («E começou a ensiná-los») quando JESUS ensina a semente (Marcos 4,1-2), quando ensina o pão (Marcos 6,34s.), e quando ensina a Paixão, Morte e Ressurreição (Marcos 8,31s.). Em boa verdade, JESUS é a semente e é também o pão, linguagem que ilumina e é iluminada pela Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Veja-se o dito condensado de João 12,24: «Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto».

Já sabemos que Pedro respondeu antes do tempo com um punhado de palavras convencionais, que vinham na corrente da tradição judaica. Ainda não tinha nascido do alto e do Espírito, como sujeito novo de ação [= dizer e fazer], face à novidade de JESUS. Falta-lhe fazer aquele «caminho» transitivo e intransitivo, longo, gradual e tortuoso, da Galileia até à Cruz, que JESUS aponta logo de seguida aos seus discípulos e ao leitor. Aí nascerá para a Glória a humanidade de JESUS, enquanto nascerá Pedro como sujeito apto para dizer JESUS e se dizer face a JESUS. Por agora, Pedro e os discípulos e a multidão e o leitor devem «dizer energicamente não» (aparnéomai) a si mesmos e ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS, para seguir o Mestre ao longo do CAMINHO. Este «dizer não» a si mesmo implica uma forte conotação de rejeição, que Isaías usa para a rejeição dos ídolos: «Naquele dia, Israel rejeitará (aparnéomai) os seus ídolos de prata e os seus ídolos de ouro, trabalho das vossas mãos pecadoras» (Isaías 31,7). Marcos só usa esta expressão aqui e no anúncio feito por Jesus da negação de Pedro (Marcos 14,30-31) e na recordação desse anúncio por parte de Pedro (Marcos 14,72). A lição é clara: ou «dizemos não» a nós mesmos ou acabaremos sempre por «dizer não» a JESUS.

Ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS. Note-se a tradução correta: «Vai para trás de MIM» (hypáge opísô mou) (8,33), e não: «Afasta-te de MIM», como se vê em muitas traduções. «Atrás de MIM» é o lugar do discípulo, que segue o Mestre passo a passo, que deve ter em consideração as coisas de Deus, e não as dos homens. É, de resto, a mesmíssima linguagem posta na boca de JESUS aquando do chamamento de Pedro e André: «Vinde atrás de Mim (deûte ôpísô mou)» (Marcos 1,17).

Seguindo atentamente «atrás de» Jesus neste caminho de formação que constitui a secção central de Marcos (8,27-10,52), estes sete Domingos fazem-nos viver, episódio após episódio, importantes situações pedagógicas.

O chamado «Terceiro Canto do Servo de YHWH» (Isaías 50,5-9) faz eco ao caminho do Filho do Homem e de todo aquele que o quiser seguir, aberto no Evangelho de hoje em duas vagas sucessivas (Marcos 8,31-33 e 8,34-35). Este itinerário de Jesus para a Cruz e a Ressurreição será ainda acentuado por mais duas vezes (Marcos 9,30-31 e 10,32-34), mas esta declaração será sempre acompanhada de uma declaração paralela sobre o seu discípulo (Marcos 9,35 e 10,43-45). O retrato do discípulo de Jesus deve decalcar os traços do retrato do Mestre. Tal como Jesus, também o seu discípulo tem de ser o homem da doação total, sem reservas. Assim é também o Servo de YHWH que caminha, sem recuos, enfrentando determinado o sofrimento, mas sempre assistido pelo seu Deus. Esta determinação aparece traduzida pela expressão: «Tornei o meu rosto duro como pedra» (Isaías 50,7), que é como quem diz que tomou uma decisão da qual não poderá voltar atrás. Lucas pediu emprestada a Isaías esta forma de dizer para vincar a determinação com que Jesus orienta o seu rosto na direção de Jerusalém (Lucas 9,51).

Outra vez a lição oportuna e contundente de S. Tiago (2,14-18), a lembrar-nos que a fé que professamos é um dom de Deus, e tem de ser professada, não apenas com os lábios, mas com gestos concretos de caridade. A fé com alegria recebida deve ser com alegria dita e com alegria feita em pequenos gestos de amor. Não. Não se trata da fé contra as obras, nem de Tiago contra Paulo. Veja-se o dizer de Paulo aos Gálatas: «Em Cristo Jesus nada conta… senão a fé que opera por meio da caridade» (Gálatas 5,6).

O Salmo 116 apresenta-se composto por dois painéis, que formam um díptico. O primeiro integra os v. 1-9, e abre com: «Eu amo». O segundo reúne os v. 10-19, e abre com: «Eu acreditei». O painel de hoje, o primeiro, abre, como vimos, com «Eu amo». O objeto deste amor do orante é Deus, o seu Deus, e são logo evocadas as razões pelas quais o orante ama o seu Deus. Porque ouviu a sua súplica, se debruçou sobre ele, salvou a sua vida, transformou as suas lágrimas em alegria, porque é bom, justo e compassivo. Sim, o nosso Deus é digno de confiança, está sempre atento à nossa vida, caminha connosco. É bom, belo e justo que nós caminhemos também com Ele.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXIII do Tempo Comum – Ano B – 08.09.2024

Viver a Palavra

            “Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto à parte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros!

            E eis que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros, tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus sobre os outros.

            A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João XXIII respondeu:” o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas.

            Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”. in Dehonianos.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 35,4-7a

Dizei aos corações perturbados:
«Tende coragem, não temais.
Aí está o vosso Deus;
vem para fazer justiça e dar a recompensa;
Ele próprio vem salvar-nos».
Então se abrirão os olhos dos cegos
e se desimpedirão os ouvidos dos surdos.
Então o coxo saltará como um veado
e a língua do mudo cantará de alegria.
As águas brotarão no deserto
e as torrentes na aridez da planície;
a terra seca transformar-se-á em lago
e a terra árida em nascentes de água.

CONTEXTO

            Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo a que os biblistas chamam o “pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27). Descrevem o castigo definitivo das nações inimigas de Israel, particularmente de Edom, o povo nascido de Esaú, irmão de Jacob (capítulo 34), e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos (capítulo 35).

            Estes dois capítulos, pelos motivos e pela temática, parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é o profeta designado por Deutero-Isaías, que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Por que razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33 (especialmente pelo capítulo 33).

            O autor destes dois capítulos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (por volta do ano 550 a.C.). A sua intenção é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías).

            Depois de apresentar o julgamento de Deus sobre as nações (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque chegou a hora da libertação. A própria terra (o Líbano glorioso, o belo monte Carmelo e a policromada planície do Saron) alegrar-se-á, vestir-se-á das suas melhores cores, encher-se-á de flores para celebrar a iniciativa salvadora de Deus e para acolher os exilados que regressam triunfalmente (cf. 35,1-2).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Para uns, o nosso tempo é um tempo fascinante, cheio de realizações, de descobertas, de conquistas, que abrem aos seres humanos possibilidades infinitas. Para outros, no entanto, o nosso tempo é um tempo assustador, marcado pelo sobreaquecimento do planeta, pela subida do nível do mar, pela destruição da camada do ozono, pela eliminação das florestas, pela poluição dos rios e mares, pelo espectro da fome e da miséria de biliões de seres humanos, pelas guerras cada vez mais violentas e destruidoras, pelo risco de holocausto nuclear… Para todos, é um tempo de desafios, de interpelações, de procura, de risco… Como é que nós nos relacionamos com este mundo? Vemo-lo com os olhos da esperança, ou com os óculos escuros do pessimismo?
  • Os crentes, seja qual for a avaliação que façam do mundo e das suas cores, não podem esquecer que “Deus está aí”: Ele preside à história humana, Ele conhece e acompanha a caminhada dos homens, Ele abraça a humanidade inteira com o seu carinho e a sua ternura de pai e de mãe. É Ele que faz com que o deserto se revista de vida nova e que na planície árida do desespero brote a flor da esperança; é Ele que ilumina o caminho para que não andemos aos tropeções, na escuridão; é Ele que desperta os surdos do seu isolamento e da sua autossuficiência e os convida a escutar os gritos de sofrimento dos pobres; é Ele que devolve aos coxos, presos por cadeias de opressão, de injustiça e de pecado, a possibilidade de serem livres. É com a certeza da presença salvadora e amorosa de Deus e com a convicção de que Ele não nos deixará abandonados nas mãos das forças da morte que somos convidados a caminhar pela vida e a enfrentar a história. Confiamos em Deus, na sua providência, na sua solicitude, no seu amor?
  • O profeta é o homem que rema contra a maré… Quando todos cruzam os braços e se afundam no desespero, o profeta é capaz de olhar para o futuro com os olhos de Deus e ver, para lá do horizonte do sol poente, um amanhã novo. Ele vai então gritar aos quatro ventos a esperança, fazer com que o desespero se transforme em alegria e que o imobilismo se transforme em luta empenhada por um mundo melhor. E nós, chamados a ser no mundo sinais vivos de Deus, somos profetas da desgraça, ou arautos e testemunhas da esperança? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 145 (146)

Refrão 1: Ó minha alma, louva o Senhor.

Refrão 2: Aleluia.

 

O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos que têm fome
e a liberdade aos cativos.

O Senhor ilumina os olhos dos cegos,
o Senhor levanta os abatidos,
o Senhor ama os justos.

O Senhor protege os peregrinos,
ampara o órfão e a viúva
e entrava o caminho aos pecadores.

O Senhor reina eternamente;
o teu Deus, ó Sião,
é rei por todas as gerações.

LEITURA II – Tiago 2,1-5

Meus irmãos:
A fé em Nosso Senhor Jesus Cristo
não deve admitir aceção de pessoas.
Pode acontecer que na vossa assembleia
entre um homem bem vestido e com anéis de ouro
e entre também um pobre e mal vestido;
talvez olheis para o homem bem vestido e lhe digais:
«Tu, senta-te aqui em bom lugar»,
e ao pobre: «Tu, fica aí de pé»,
ou então: «Senta-te aí, abaixo do estrado dos meus pés».
Não estareis a estabelecer distinções entre vós
e a tornar-vos juízes com maus critérios?
Escutai, meus caríssimos irmãos:
Não escolheu Deus os pobres deste mundo
para serem ricos na fé
e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?

CONTEXTO

            O autor da “Carta de Tiago” apresenta-se a si próprio como “servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (Tg 1,1). A tradição identifica-o com o Tiago “irmão do Senhor”, figura de referência na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 12,17; 15,13-21; 21,18-25), que foi martirizado no ano 62. No entanto, é pouco provável que esse Tiago tenha sido o autor deste escrito. Também não parece provável que a carta tenha sido escrita por Tiago, filho de Zebedeu e irmão de João (cf. Mc 1,19; 3,17), ou pelo outro Tiago, o “filho de Alfeu” (cf. Mc 3,18), que fazia parte do grupo dos Doze apóstolos.

            A carta é endereçada “às doze tribos da Dispersão” (Tg 1,1). Isso pode querer dizer que o documento se destinava a cristãos de origem judaica que viviam fora da Palestina; no entanto, as “doze tribos da Dispersão” também podem, em sentido figurado, ser as comunidades cristãs dispersas pelo mundo greco-romano.

            Seja como for, o autor desta carta é um escritor exímio, que se exprime muito bem na língua grega, apesar de usar diversos semitismos. Tem um vocabulário rico e utiliza recursos estilísticos de belo efeito.

            A Carta de Tiago não é um tratado de teologia. É, digamos assim, um conjunto de reflexões de um mestre cristão empenhado em propor, a partir da mensagem de Jesus, um caminho de vida cristã autêntica. Os discípulos de Jesus, destinatários da carta, são exortados a acolher a sabedoria que vem do alto e a deixar que ela os guie pelo caminho da fé e da vida.

            O texto que a liturgia deste vigésimo terceiro domingo do tempo comum nos propõe como segunda leitura pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26), que reflete sobre a fé. De uma forma muito prática, este “sábio” cristão ensina que a fé se concretiza no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); e que a fé se expressa, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). De acordo com o autor da Carta de Tiago, a fé dos crentes deve ser uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O autor da Carta de Tiago tem razão: a nossa fé em Cristo Jesus é incompatível com qualquer atitude que sugira a aceção de pessoas. Sabemos como Jesus viveu: Ele sentou-se à mesa com os desclassificados, acolheu os doentes, estendeu a mão aos leprosos, chamou um publicano para fazer parte do seu grupo de discípulos, disse que os pobres eram os filhos queridos de Deus, amou aqueles que a sociedade religiosa do tempo considerava amaldiçoados e condenados… Ora, a comunidade cristã é hoje, no meio do mundo, o rosto vivo de Cristo; por isso, deve ser a “casa de família” onde todos os filhos de Deus, sem exceção, se sentem acolhidos, queridos e amados. Isto é, naturalmente, uma evidência que ninguém contesta… Mas, na prática, todos são acolhidos na nossa comunidade cristã com respeito e amor? Na nossa comunidade cristã tratamos com a mesma delicadeza e com o mesmo respeito quem é rico e quem é pobre, quem tem uma posição social relevante e quem a não tem, quem tem um título universitário e quem é analfabeto, quem se dá bem com o padre e quem tem uma atitude crítica diante de certas opções dos responsáveis da comunidade?
  • Na nossa vida do dia a dia deparamo-nos, a cada passo – no nosso círculo de relações, no nosso universo profissional, no nosso prédio, talvez até na nossa família – com pessoas que têm ideias diferentes, das nossas, que têm comportamentos que reprovamos, que talvez levam vidas pouco recomendáveis, que vivem “fora da caixa” e não são social ou politicamente corretas… Como lidamos com as pessoas “diferentes”, com aqueles que a sociedade marcou, julgou e condenou? Somos, para todos e em todos os momentos, testemunhas daquele Jesus que nunca fez aceção de pessoas e que acolheu até aqueles que a sociedade julgava e condenava?
  • Deus tem uma relação privilegiada com os pobres. Isto não quer dizer, contudo, que Deus tenha uma opção de classe e que privilegie uns em detrimento de outros… Na verdade, Deus oferece o seu amor, a sua graça e a sua vida a todos; contudo, uns acolhem os seus dons e outros não… Os “pobres” são aqueles que, na sua simplicidade e humildade estão disponíveis para acolher os dons de Deus. Estamos conscientes de que temos de despir-nos do orgulho, da autossuficiência, dos preconceitos, das ostentações, das vaidades, para que nos nossos corações haja espaço para os desafios e as propostas de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 7,31-37

Naquele tempo,
Jesus deixou de novo a região de Tiro
e, passando por Sidónia, veio para o mar da Galileia,
atravessando o território da Decápole.
Trouxeram-Lhe então um surdo que mal podia falar
e suplicaram-Lhe que impusesse as mãos sobre ele.
Jesus, afastando-Se com ele da multidão,
meteu-lhe os dedos nos ouvidos
e com saliva tocou-lhe a língua.
Depois, erguendo os olhos ao Céu,
suspirou e disse-lhe:
«Effathá», que quer dizer «Abre-te».
Imediatamente se abriram os ouvidos do homem,
soltou-se-lhe a prisão da língua
e começou a falar corretamente.
Jesus recomendou que não contassem nada a ninguém.
Mas, quanto mais lho recomendava,
tanto mais intensamente eles o apregoavam.
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável:
faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».

CONTEXTO

            Na fase final da “etapa da Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu projeto, apesar do rasto de esperança que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e a passar, por algum tempo, ao território pagão.

            Marcos refere, neste contexto, uma viagem de Jesus pela Fenícia, que o leva até Tiro e Sídon, cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no Líbano atual (cf. Mc 7,24). Aí teria curado a filha de uma mulher pagã, siro-fenícia de origem (cf. Mc 7,25-30). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus não teria vindo diretamente na direção do Mar da Galileia, mas teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). O nome Decápole servia para designar uma liga de dez cidades (Damasco, Filadélfia, Rafana, Bet-Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata), que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos (ano 63 a.C.). Essas cidades situavam-se a oriente do Mar da Galileia e estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram centros de cultura grega, e cada uma delas tinha um certo grau de autonomia. Os judeus, por sua vez, viam a Decápole como um território pagão, completamente à margem dos caminhos da salvação.

            É nesse ambiente geográfico e humano que Marcos situa a cura, por Jesus, de um homem surdo-mudo. Provavelmente o catequista Marcos está a sugerir, com este enquadramento, que o anúncio do Evangelho aos pagãos – que alguns anos mais tarde, após o Concílio de Jerusalém, vem a ser uma aposta firme da comunidade cristã – foi algo que estava já nos planos e na prática de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A “surdez” e a “mudez” que atacam os seres humanos não estavam no plano original de Deus para a humanidade. Deus criou o ser humano para a relação, para o diálogo, para a comunhão (“não é conveniente que o homem esteja só” – disse Deus no início de tudo – cf. Gn 2,18). A “surdez” e a “mudez” que nos paralisam e nos tornam infelizes não vêm de Deus, mas são consequência das escolhas erradas feitas pelo homem. Contudo, Deus nunca se conformou com essa opção que priva os seres humanos de Vida verdadeira. Para nos curar da nossa “surdez” e da nossa “mudez”, enviou-nos o seu Filho, a sua “Palavra eterna”. Cumprindo a missão que o Pai Lhe entregou, Jesus convidou-nos insistentemente a superar o egoísmo, a autossuficiência, o isolamento, e a abrir o coração à comunhão, à partilha, ao amor (“effathá”, “abre-te”). Estamos disponíveis para nos encontrar com Jesus, para acolher o desafio que Ele nos veio propor, para assumir os valores do Reino de Deus, para O seguir até à cruz, até ao dom da vida por amor? Estamos convictos de que escolher viver na “surdez” e na “mudez” é uma opção estúpida, que impede a nossa realização plena, a nossa felicidade?
  • O “surdo-mudo”, incapaz de escutar a Palavra de Deus, pode perfeitamente representar aqueles homens e mulheres que vivem fechados aos projetos e aos desafios de Deus, que não têm espaço nem disponibilidade para Deus e para as suas propostas. Essa é, aliás, uma das “doenças” mais significativas do nosso tempo. O que carateriza o séc. XXI não é o ateísmo; mas é a indiferença em relação a Deus. Muitos dos nossos contemporâneos optam por permanecer surdos a Deus e às suas indicações; o que Deus diz e propõe não lhes interessa. O que é que as propostas de Deus significam para nós? Damos ouvidos aos apelos e desafios de Deus, ou aos valores e propostas que o mundo nos apresenta?
  • O “surdo-mudo” pode também ser figura daqueles que não se preocupam em comunicar, em escutar e acolher os outros, em partilhar a vida, em deixar-se questionar pelas achegas e sugestões dos irmãos… Os “surdos-mudos” são que não precisam dos irmãos para nada, que vivem instalados nas suas certezas e nos seus preconceitos, convencidos de que são donos absolutos da verdade; são aqueles que não têm tempo nem disponibilidade para ouvir os outros com paciência e compaixão, que não conseguem compreender os erros e as falhas dos outros e não sabem perdoar… Uma vida de “surdez” é uma vida vazia, estéril, triste, egoísta, fechada, sem amor. Temos consciência de que nesse caminho nunca encontraremos a nossa realização e a nossa felicidade?
  • O “surdo-mudo” representa ainda aqueles que se fecham no egoísmo e no comodismo e ficam indiferentes aos apelos do mundo… Somos “surdos-mudos” quando escutamos os gritos dos injustiçados e lavamos as nossas mãos; somos “surdos-mudos” quando toleramos estruturas que geram injustiça, miséria, sofrimento e morte; somos “surdos-mudos” quando pactuamos com valores que tornam o homem mais escravo e mais dependente; somos “surdos-mudos” quando encolhemos os ombros, indiferentes, face à guerra, à fome, à injustiça, à doença, ao analfabetismo; somos “surdos-mudos” quando nos demitimos das nossas responsabilidades e deixamos que sejam os outros a comprometer-se e a arriscar; somos “surdos-mudos” quando calamos a nossa revolta por medo, cobardia ou calculismo; somos “surdos-mudos” quando nos resignamos a vegetar no nosso espaço de conforto, sem nos empenharmos na construção de um mundo novo… Uma vida comodamente instalada nesta “surdez-mudez” descomprometida é uma vida que vale a pena ser vivida?
  • O “surdo-mudo” de que o Evangelho deste vigésimo terceiro domingo comum nos fala foi trazido e apresentado a Jesus por outras pessoas. Isto deve fazer-nos pensar na nossa obrigação de fazer a ponte entre os irmãos que vivem prisioneiros da “surdez-mudez” e a proposta libertadora de Jesus. Poderemos ficar de braços cruzados quando algum dos nossos irmãos se instala em esquemas de fechamento, de egoísmo, de autossuficiência, e renuncia assim à possibilidade de construir uma vida com sentido? O que poderemos fazer – respeitando sempre as opções e a liberdade de cada um – para que os “surdos-mudos” que encontramos nos caminhos da vida descubram a alegria do encontro, da comunhão, da partilha, do serviço, do amor?
  • Antes de curar o “surdo-mudo”, Jesus “ergueu os olhos ao céu”. O gesto de Jesus recorda-nos que é preciso manter sempre, no meio da ação, a referência a Deus. Não conseguiremos ser arautos de uma nova humanidade – de uma humanidade liberta do egoísmo e da autossuficiência – se não nos mantivermos conectados com Deus, em diálogo com Deus, atentos aos projetos e desafios de Deus, fortalecidos pelo Espírito de Deus. Deus é a nossa referência, a razão última de tudo aquilo que fazemos? Procuramos encontrar tempo para o escutar, para lhe colocar as nossas dúvidas e questões, para falar com Ele e para entender os seus caminhos e projetos? Quando tentamos fazer alguma coisa em favor de alguém, sentimos que agimos em nome de Deus e não em nome de nós próprios ou dos nossos projetos e interesses? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

TUDO FEZ BEM FEITO

            Em termos de caixilho geográfico, a cura de um surdo-mudo narrada no Evangelho deste Domingo XXIII (Marcos 7,31-37) decorre fora das fronteiras de Israel, a oriente do mar da Galileia, na Decápole. Além do episódio de hoje, o Evangelho de Marcos regista apenas mais três episódios fora das fronteiras de Israel: também na Decápole (Gerasa), a cura de um endemoninhado (5,1-20) e a segunda «multiplicação» dos pães (8,1-9), e a Noroeste, na região de Tiro, o episódio da mulher sirofenícia (7,24-30). Estas saídas do Evangelho em pessoa para terra pagã baralham os nossos esquemas de «antes» e «depois» [primeiro os judeus, depois os gregos], próprios da nossa mentalidade fechada, mas que não cabem no amor de Deus. Além disso, podem ser vistos ainda como uma prolepse da futura pregação do Evangelho entre os pagãos.

            Sendo um entre muitos relatos de cura por parte de Jesus, este episódio da cura de um surdo-mudo apresenta uma fisionomia própria assente em traços singulares. As pessoas trazem o pobre homem, incapaz de falar e de ouvir e inapto para entrar na assembleia de Deus, e pedem a Jesus que lhe imponha as mãos (Marcos 7,32). Em vez disso, Jesus faz uma série de ações: 1) toma-o à parte, para longe da multidão; 2) toca os órgãos privados da sua função: ouvidos e língua; 3) ergue os olhos para o céu; 4) suspira; 5) diz para o surdo-mudo: «Effatha, abre-te!».

            Jesus atende sempre a nossa súplica. Mas não do modo que lhe pedimos. Assim: não impôs as mãos ao surdo-mudo, mas tocou com as suas mãos os ouvidos e a língua daquele homem. Entenda-se já este gesto e mais do que este gesto: é tocando com as suas mãos tudo o que está doente, que Jesus o assume e o cura. É assumindo a nossa carne toda de pecado, de recusa e violência, que Jesus cura a nossa humanidade ferida e pecadora. Ergue os olhos para o céu: gesto sacerdotal da oração sacerdotal de Jesus (João 17,1). Suspirou: suspirar (stenázô) é rezar e interceder por nós à maneira do Espírito, que intercedia por nós com «suspiros sem palavras» (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26). O gesto de erguer os olhos para o céu, gesto de oração, logo traduzido no suspiro mostra que Jesus age em especialíssima relação com o Pai. De resto, no contexto de uma cura, só aqui Jesus ergue os olhos para o céu; do mesmo modo, só Marcos recorda o suspiro de Jesus (7,34; 8,12). Riquíssima simbologia. Também só aqui (Effatha) e em Marcos 5,41 (Thalitha kûm), a ordem de Jesus aparece pronunciada em aramaico, e depois traduzida em grego. Effatha (etftah, de ptah, abrir).

            Depois desta sequência de gestos de Jesus, que culmina com aquela ordem (Effatha), o sucesso surge imediatamente: o surdo-mudo abre-se, e começa a ouvir e a falar (Marcos 7,35). E a multidão reage manifestando um estado de maravilha (exeplêssonto: imperf. pass. de ekplêssô) para além de todas as medidas (hyperperismòs) (Marcos 7,37a), expressão que não encontramos em mais nenhum lugar do Evangelho. E a palavra que acompanha o espanto: «Bem todas as coisas fez: os surdos faz ouvir e os mudos falar» (Marcos 7,37b). remete claramente para a obra da criação (Génesis 1).

            Serve de chão ao Evangelho de hoje o texto de Isaías 35,4-7, que se integra no chamado «Pequeno Apocalipse de Isaías» (Isaías 34-35). Neste díptico, que reúne a destruição de Edom (34) e a resturação de Judá (35), fica à vista um belo link, que fecha, como em analepse, a linha desgraçada que pervade Isaías 1-33, e aponta, em prolepse, para a nova página, paisagem renovada, que aparecerá em Isaías 40-48. Se o Capítulo 34 aparece construído sobre um mundo de castigo e de julgamento, de cólera e destruição, o Capítulo 35 transporta-nos para um mundo de paz e de alegria, pondo em destaque a marcha de todo um povo que se levanta da miséria para a esperança e liberdade. É neste contexto de felicidade, novo Êxodo e nova Criação, que se leem as expressões: «Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos hão de desobstruir-se. Então o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo cantará de alegria» (Isaías 35,5-6). O Evangelho de hoje mostra a realização deste sonho. A exuberância de Isaías 35 não encaixa diretamente na estrada descrita em Isaías 40,3-5, e que é a estrada geográfica que conduz da Babilónia até Judá, no regresso do Exílio. Isaías 35 apresenta um colorido fortemente escatológico, que constitui uma metáfora para dizer a passagem deste mundo para o mundo novo que há de vir. Não se pode, portanto, sem mais, acostar Isaías 35 a Isaías 40 e ao chamado «segundo Isaías», e alinhá-los em continuidade. Há um problema de monta a considerar para evitar cair nessa tentação, e esse problema consiste em que as particularidades históricas de Isaías 40-55 estão completamente ausentes de Isaías 35, que apresenta um cenário completamente a-histórico, semelhante a uma projeção imaginária para o futuro, de colorido não histórico, mas de teor muito mais escatológico, ético e espiritual, que será, de resto, o sentido que se irá encontrar, com o mesmo vocabulário, em Isaías 57,14 e 62,10. Isto chega para mostrar que a estrada de Isaías 35 se associa, não tanto com o chamado «segundo-Isaías», mas mais com o chamado «trito-Isaías». É a todos os níveis  compreensível que a auto estrada histórico-geográfica de Isaías 40,3-5 seja expandida e transformada na auto estrada espiritual de Isaías 35, Isaías 57,14 e Isaías 62,10. E é assim também que o tema da auto estrada espiritual chegará a João Batista, o qual, nos alvores do Novo Testamento, e postando-se expressamente na linha de Isaías, continua a convocar o povo para a construção da ponte da conversão que leva a uma vida nova (cf. Mateus 3,3; Marcos 1,3; Lucas 3,4; João 1,23).

            S. Tiago continua, na incisiva lição de hoje (2,1-5), a reclamar a nossa atenção carinhosa para com os pobres, que são os escolhidos de Deus. E adverte-nos de que não podemos encher os olhos com os ricos, e pôr de lado os pobres, pois não pode haver disjunção entre culto e vida, fé e empenho eclesial. Na verdade, a nossa fé em Cristo tem de se traduzir em obras compatíveis. A atenção e o carinho que pusermos no nosso relacionamento com os pobres será sempre o exame e a verificação da nossa fé.

            É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo faz-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXII do Tempo Comum – Ano B – 01.09.2024

Viver a Palavra

            A Liturgia da palavra deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei” de Deus, que não se esgota no mero cumprimento de ritos ou de práticas vazias de significado. A “Lei” de Deus (1.ª Leitura) é o caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Para Jesus (Evangelho) a verdadeira religião não se centra no cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à comunhão com Deus e com os irmãos. Por isso (2.ª Leitura) a Palavra escutada e acolhida no coração tem de tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e com os homens. in Voz Portucalense.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 4,1-2.6-8

Moisés falou ao povo, dizendo:
«Agora escuta, Israel,
as leis e os preceitos que vos dou a conhecer
e ponde-os em prática,
para que vivais e entreis na posse da terra
que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais.
Não acrescentareis nada ao que vos ordeno,
nem suprimireis coisa alguma,
mas guardareis os mandamentos do Senhor vosso Deus,
tal como eu vo-los prescrevo.
Observai-os e ponde-os em prática:
eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência
aos olhos dos povos,
que, ao ouvirem falar de todas estas leis, dirão:
‘Que povo tão sábio e tão prudente é esta grande nação!’
Qual é, na verdade, a grande nação
que tem a divindade tão perto de si
como está perto de nós o Senhor, nosso Deus,
sempre que O invocamos?
E qual é a grande nação
que tem mandamentos e decretos tão justos
como esta lei que hoje vos apresento?»

CONTEXTO

            O Livro do Deuteronómio é o “livro da Lei” (ou parte dele) que, de acordo com a notícia de 2 Re 22, 8-13, foi descoberto no Templo de Jerusalém no décimo oitavo ano do reinado de Josias (622 a.C.). Nesse livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os elementos principais da sua visão teológica: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma Aliança eterna; o Povo de Deus é propriedade pessoal de Javé e deve viver para o serviço de Deus; nenhum outro Deus deve ocupar, no coração do Povo, o lugar que é de Javé por direito.

            Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão para tomar posse da Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

            O texto que a liturgia do vigésimo segundo domingo comum nos propõe como primeira leitura apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”. Isso indica que, na perspetiva dos teólogos deuteronomistas, o compromisso que agora se vai pedir a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos: a ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

            O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. Neste contexto os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Na catequese de Israel, as leis e os preceitos dados por Javé são vistos como o resultado do amor e da solicitude de Deus pelo seu Povo. O Deus criador, libertador e salvador acompanha os passos que Israel dá na história e, a cada instante, oferece-lhe indicações seguras sobre o caminho a seguir. A escuta e o acolhimento dessas “palavras” de Deus garantem, quer em termos pessoais, quer em termos comunitários, felicidade, harmonia, paz, Vida em abundância. Ora, o tesouro da Palavra de Deus continua à nossa disposição hoje. Os tempos são diferentes, mas as indicações de Deus não têm prazo de validade: continuam a dizer, aos homens e mulheres do séc. XXI, o que devem fazer para construírem vidas com sentido. Que importância é que as palavras de Deus assumem na construção da nossa vida e na escolha dos nossos caminhos? No meio da azáfama e do ativismo em que a nossa vida decorre, conseguimos encontrar tempo e disponibilidade para escutar, para meditar e para interiorizar a Palavra eterna de Deus?
  • Há quem considere que as leis e preceitos de Deus condicionam a autonomia e limitam a liberdade do homem; há quem veja nas leis e preceitos de Deus expressões de uma moral ultrapassada, que não condiz com os valores do nosso tempo e que deve permanecer, coberta de pó, no museu da história. Em contrapartida, há quem olhe para as leis e preceitos de Deus como um caminho sempre válido, que ajuda os seres humanos a construírem vidas com sentido, livres de todas as escravidões e balizadas por valores verdadeiros, como o amor, a partilha, o serviço, o dom da vida… E nós, como vemos e entendemos as leis e preceitos de Deus?
  • Uma das recomendações do texto é a de não adulterar a Palavra de Deus, ao sabor dos interesses pessoais ou grupais. Existe sempre o perigo, quer na nossa reflexão pessoal, quer na nossa partilha comunitária, de torcermos a Palavra ao sabor dos nossos interesses, de limarmos a sua radicalidade, de lhe cortarmos os aspetos mais questionantes, ou de a fazermos dizer coisas que não vêm de Deus… É preciso perguntarmo-nos constantemente se a Palavra que vivemos e anunciamos é a Palavra de Deus ou é a nossa “palavra”, se ela transmite os valores de Deus ou os nossos valores pessoais, se ela testemunha a lógica de Deus ou a nossa lógica humana. Este processo de discernimento é mais fácil quando é feito em comunidade, no diálogo e no confronto com os irmãos que caminham connosco, que nos questionam e que partilham connosco a sua perspetiva das coisas. Que Palavra testemunhamos: a de Deus, ou a nossa? Aceitamos que a nossa visão pessoal das coisas seja confrontada com perspetivas ou entendimentos diferentes? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 14 (15)

Refrão 1: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário?
Refrão 2: Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?

 

O que vive sem mancha e pratica a justiça
e diz a verdade que tem no seu coração
e guarda a sua língua da calúnia.

O que não faz mal ao seu próximo nem ultraja o seu semelhante,
o que tem por desprezível o ímpio,
mas estima os que temem o Senhor.

O que não falta ao juramento, mesmo em seu prejuízo,
e não empresta dinheiro com usura,
nem aceita presentes para condenar o inocente.
Quem assim proceder jamais será abalado.

LEITURA II – Tiago 1,17-18.21-22.27

Caríssimos irmãos:
Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto,
descem do Pai das luzes,
no qual não há variação nem sombra de mudança.
Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade,
para sermos como primícias das suas criaturas.
Acolhei docilmente a palavra em vós plantada,
que pode salvar as vossas almas.
Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes,
pois seria enganar-vos a vós mesmos.
A religião pura e sem mancha,
aos olhos de Deus, nosso Pai,
consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações
e conservar-se limpo do contágio do mundo.

CONTEXTO

            O autor da Carta de onde foi extraída a segunda leitura deste vigésimo segundo domingo comum apresenta-se a si próprio como “Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo” (cf. Tg 1,1). A tradição liga-o ao Tiago “irmão” (parente) do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). De acordo com Flávio Josefo, teria sido martirizado em Jerusalém no ano 62. No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até a recursos retóricos como a “diatribe” (um género muito usado pela filosofia popular helénica), a perguntas retóricas e a jogos de paradoxos e contrastes. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram nas palavras e no ensinamento de Jesus.

            A carta de Tiago foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, também pode referir-se, em termos metafóricos, à totalidade da comunidade de Jesus, dispersa pelo mundo greco-romano. Exorta os crentes a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Apela a que os cristãos vivam com coerência e verdade a própria fé.

            O texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-26). Aí, o autor apresenta, aparentemente sem ordem nem lógica, um conjunto de desenvolvimentos e de sentenças sobre a autenticidade e a coerência da fé. Convida os cristãos a enfrentarem com alegria as provações (Tg 1,2-18), a escutarem e a porem em prática a Palavra de Deus (cf. Tg 1,19-27), a viverem no amor (cf. Tg 2,1-13) e a conciliarem a fé com obras concretas em favor dos irmãos (cf. Tg 2,14-26). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Na nossa época há uma marcada tendência para a superabundância de palavras. As redes sociais, de forma especial, deram-nos possibilidades quase ilimitadas de fazer ouvir a nossa voz e de dar a nossa opinião sobre tudo o que nos apetecer. Isso abre-nos canais de comunicação, de diálogo e de partilha que nos enriquecem e nos aproximam uns dos outros. Mas, por outro lado, faz-nos viver imersos num ruído de fundo – muitas vezes feito de fake news, de opiniões pouco fundamentadas, de ditos pouco sérios, de pronunciamentos agressivos, de conversas sem conteúdo – que vai degradando o poder e a força das palavras. Habituamo-nos, para nossa defesa, a não levar demasiado a sério todas as palavras que escutamos, a relativizar aquilo que vamos ouvindo aqui e ali… E a Palavra eterna de Deus, como a situamos e valorizamos no meio de tudo isto? Ela tem, na nossa vida, um valor superlativo, ou é mais ou menos igual a tantas outras palavras que todos os dias ferem os nossos ouvidos e intoxicam a nossa mente?
  • Por vezes, nos nossos “tiques” de autossuficiência, temos a tentação de encarar as sugestões que nos são apresentadas como ingerências estranhas, que põem em causa a nossa autonomia e a nossa liberdade. Como reação, fechamo-nos no casulo das nossas certezas e rejeitamos aquilo que nos é proposto, correndo o risco de passar ao lado de desafios importantes. É por isso que o autor da Carta de Tiago nos convida a acolher a Palavra de Deus com docilidade, com boa vontade, com um coração disponível e obediente. Deus não é um adversário dos homens; as palavras que Ele diz nunca serão um atentado contra a nossa liberdade. Deus, ao propor-nos a “Palavra da verdade”, apenas pretende vestir a nossa vida de sentido e apontar-nos caminhos seguros para chegarmos à Vida em plenitude. Alguma vez encaramos as indicações de Deus como intromissões que limitam as nossas escolhas ou a nossa liberdade?
  • A Palavra de Deus que escutamos e que acolhemos deve conduzir-nos à ação e ao compromisso. Se ficamos apenas pela escuta e pela contemplação da Palavra, ela torna-se estéril e inútil. A Palavra de Deus leva-nos efetivamente a uma mudança de vida, a um refazer as nossas prioridades, a uma purificação dos valores que sustentam a nossa caminhada? A Palavra de Deus faz-nos sair de nós próprios, abandonar a nossa zona de conforto e envolver-nos na luta pela justiça, pela paz, pela dignidade dos nossos irmãos, pelos direitos dos mais pobres, por um mundo mais humano e mais fraterno?
  • A vivência da religião, sem a escuta atenta e comprometida da Palavra de Deus, pode facilmente tornar-se o mero cumprimento de ritos e práticas devocionais, a simples preservação de uma tradição que herdámos dos nossos antepassados, a adoção de práticas que tornam mais fácil a nossa inserção num determinado meio social… A Palavra de Deus põe-nos em diálogo com Deus, faz-nos conhecer os projetos de Deus, envolve-nos na vida de Deus, chama-nos a viver na obediência a Deus, compromete-nos com Deus e com o projeto que Ele tem para o mundo e para os homens. Que lugar tem a Palavra de Deus na nossa vivência religiosa? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 7,1-8.14-15.21-23

Naquele tempo,
reuniu-se à volta de Jesus
um grupo de fariseus e alguns escribas
que tinham vindo de Jerusalém.
Viram que alguns dos discípulos de Jesus
comiam com as mãos impuras, isto é, sem as lavar.
– Na verdade, os fariseus e os judeus em geral
não comem sem terem lavado cuidadosamente as mãos,
conforme a tradição dos antigos.
Ao voltarem da praça pública,
não comem sem antes se terem lavado.
E seguem muitos outros costumes
a que se prenderam por tradição,
como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre –.
Os fariseus e os escribas perguntaram a Jesus:
«Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos,
e comem sem lavar as mãos?»
Jesus respondeu-lhes:
«Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas,
como está escrito:
‘Este povo honra-Me com os lábios,
mas o seu coração está longe de Mim.
É vão o culto que Me prestam,
e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’.
Vós deixais de lado o mandamento de Deus,
para vos prenderdes à tradição dos homens».
Depois, Jesus chamou de novo a Si a multidão
e começou a dizer-lhe:
«Ouvi-Me e procurai compreender.
Não há nada fora do homem
que ao entrar nele o possa tornar impuro.
O que sai do homem é que o torna impuro;
porque do interior dos homens é que saem os maus pensamentos:
imoralidades, roubos, assassínios,
adultérios, cobiças, injustiças,
fraudes, devassidão, inveja,
difamação, orgulho, insensatez.
Todos estes vícios saem lá de dentro
e tornam o homem impuro».

CONTEXTO

            Enquanto andava pela Galileia a anunciar a chegada do Reino de Deus, Jesus era frequentemente questionado pelos fariseus e doutores da Lei (cf. Mc 2,6.16.18.24; 3,6.22).

            Os fariseus eram uma presença determinante no universo religioso judaico. Procuravam a cada passo – nomeadamente na liturgia sinagogal – contagiar o povo com o amor que eles próprios sentiam pela Tora (a Lei). Apoiando-se nos “escribas” (ou “doutores da Lei”), ensinavam as regras (“halakot”) que deviam dirigir cada passo da vida dos israelitas. A santidade, para eles, não estava reservada aos sacerdotes, mas era algo que dizia respeito a todo o povo. Chegava-se à santidade, cumprindo todas as exigências da Lei. E quando todo o povo cumprisse a Lei, o Messias viria trazer a salvação a Israel. Nesse sentido, vigiavam atentamente para que o Povo não se afastasse das “tradições dos antigos”.

            Essa “tradição dos antigos” não se cingia – na visão dos fariseus – às normas escritas contidas na Tora, mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos Rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.

            Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. Como proceder? O cumprimento da Lei de Moisés era importante para a experiência cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (realizado por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos, que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rm 14,1-15,6).

            O evangelista Marcos está ciente, na altura em que escreve o seu Evangelho, de que esta questão ainda levanta problemas à convivência entre cristãos vindos do mundo judaico e cristãos vindos do mundo pagão. Neste relato, recorrendo à autoridade de Jesus, Marcos pretende responder a esta problemática. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Muitas pessoas estão mais à vontade com definições claras, objetivas e seguras; mas não se sentem tão à vontade no campo nem sempre bem balizado da consciência e do coração. Têm medo do imprevisto, do que é novo e diferente, daquilo que não é claramente “branco” ou “preto”. Por isso, sentem necessidade de leis que lhes digam, sem margem para dúvidas, o que devem fazer e o como devem viver. Preferem que seja outra pessoa – talvez até o padre – a pensar por elas, a decidir por elas, a dizerem-lhe o que está certo e o que está errado. Escondem-se atrás de leis e sentem-se de consciência tranquila porque descarregaram a sua responsabilidade nas leis. As leis são a sua salvaguarda, as leis definem o seu caminho, as leis são uma proteção segura para lidar com aquilo que as ultrapassa. Vivem a religião das leis. Se transgredirem as leis, confessam-se e voltam a estar de consciência tranquila. O problema é que esta forma de viver a religião não liberta, não traz alegria, não enche o coração de paz. Também não ajuda a abraçar a religião de Jesus, a religião do amor. As leis, na sua rigidez de pedra, deixam pouco espaço para o amor, a misericórdia, a compaixão. Era esse o problema de Jesus com a religião das leis e com os fariseus, os arautos dessa experiência religiosa. E nós? A nossa vivência religiosa está presa a leis que balizam tudo aquilo que fazemos e dizemos, ou é a religião do amor, da tolerância, da misericórdia, do Evangelho, da abertura de coração aos desafios sempre novos de Deus?
  • “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim”, diz Jesus, citando o profeta Isaías. Esse é o risco de uma vivência religiosa que assenta na simples repetição de orações decoradas, na mera reprodução mecânica de respostas não assumidas interiormente, em hábitos e gestos rotineiros, em tradições fixas e imutáveis, num aparato externo que não envolve o coração e uma clara opção por Deus e pelas suas propostas. A nossa forma de viver e de celebrar a fé tem alguma coisa a ver com isto?
  • “A doutrina que ensinam são preceitos humanos”, diz Jesus. É inevitável: com o passar do tempo, as religiões vão acumulando normas, costumes, devoções, hábitos, tradições, rituais, fórmulas teológicas, que nasceram num determinado contexto cultural, social e religioso e que se transformaram em património inalienável. Todas essas coisas podem ser úteis e fazer bem; mas também podem fazer mal, se nos distraem e afastam da Palavra de Deus e do seguimento radical de Jesus. Os “preceitos humanos” nunca devem ter a primazia. Seria um erro grave se a comunidade de Jesus ficasse prisioneira das tradições humanas do passado e não buscasse, antes de tudo, a fidelidade a Jesus e ao Evangelho; seria uma falha grave se nos esforçássemos por manter intactas as tradições do passado, sem nos preocuparmos em dar testemunho vivo do Reino de Deus com a linguagem que os homens e mulheres do nosso tempo entendem; seria um grave equívoco se dessemos a mesma importância a certas leis da Igreja (sobre a liturgia, o jejum, o celibato dos padres, a organização paroquial, por exemplo) e às palavras de Jesus. Na nossa vivência da fé, a que é que damos o primeiro lugar: a tradições e a doutrinas humanas, ou à Palavra eterna e sempre nova de Deus?
  • “É vão o culto que me prestam”, diz Jesus. Ao dizer isto, Jesus poderia perfeitamente estar a falar de certas celebrações litúrgicas cheias de pompa e circunstância que todos os domingos se desenrolam nas nossas igrejas, mas que não correspondem, para aqueles que nelas participam, a uma opção clara por Deus e pela Vida de Deus: há celebrações do matrimónio que são meros acontecimentos de caráter social; há celebrações de batismo que não passam de atos impostos pela tradição familiar ou pela cultura ambiente; há celebrações da primeira caminhão que são vistos como simples “rituais de passagem” na história de vida de uma criança. Todas as nossas belas, solenes e elevadas celebrações litúrgicas são um encontro sincero com Deus? Quando vamos celebrar a fé preparamos o coração para o encontro com Deus?
  • “É do interior dos homens que saem os maus pensamentos: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez”, diz Jesus. É verdade. Podemos criar todo o tipo de mecanismos legais que combatam a injustiça, a corrupção, a violência, as desigualdades sociais, a indiferença diante da miséria, a deterioração moral da sociedade… Mas nada disso modificará substancialmente o estado do nosso mundo se não atuarmos ao nível dos corações. A conversão é sempre um processo pessoal, que implica uma renovação do coração, um redirecionar o coração para Deus e para as propostas de Deus. Estamos disponíveis para uma conversão, para uma mudança do coração que nos leve a viver segundo Deus?
  • A “religião das leis” pode ter efeitos perversos na nossa forma de vermos Deus e de situarmos a nossa relação com Deus… Quando absolutizamos as leis, elas podem tornar-se para nós um fim e não um caminho. Vivemos de acordo com as leis, procuramos cumpri-las integralmente, ficamos satisfeitos e descansados, sentimo-nos em regra com Deus e com a nossa consciência… Na sequência, corremos o risco de nos tornarmos orgulhosos e autossuficientes, pois sentimos que somos nós que, com o nosso esforço para estar em regra, conquistamos a nossa salvação. Deixamos de precisar de Deus, ou só precisamos d’Ele para apreciar o nosso esforço e para nos dar aquilo que julgamos ser uma “justa recompensa”. O culto que prestamos a Deus pode tornar-se, nesse caso, um processo interesseiro de compra e venda de favores e não uma manifestação do nosso amor a Deus. Tenho consciência de que o mero cumprimento das leis não torna Deus meu devedor? Sei que a salvação é um dom de Deus e não o resultado de uma conquista que eu fiz ao cumprir as leis? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

PÔR O CORAÇÃO NO PREGO

            Depois de termos feito durante cinco Domingos consecutivos, desde o XVII ao XXI, uma incursão pelo Capítulo VI do Evangelho segundo S. João, regressamos, neste Domingo XXII do Tempo Comum, ao Evangelho segundo S. Marcos, em que nos é dado escutar, ainda que com alguns cortes, o texto de Marcos 7,1-23.

            O texto referido divide-se claramente em três partes: Marcos 7,1-13, em que os interlocutores de Jesus são os fariseus e os escribas (1); Marcos 7,14-16, em que Jesus constitui um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos (2); Marcos 7,17-23, em que Jesus entra em casa e fala para os seus discípulos (3).

            No caso dos fariseus e escribas, são estes que fazem uma pergunta a Jesus: «Porque é que os teus discípulos não seguem a tradição (parádôsis) dos antigos, e comem o pão com as mãos impuras?» (Marcos 7,5). Jesus inicia a sua resposta com uma citação de Isaías 29,13: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; é vazio (mátên) o culto que me prestam, e as doutrinas que ensinam são preceitos humanos» (Marcos 7,6-7). Note-se que o texto hebraico de Isaías 29,13 abre assim: «Este povo aproxima-se (nagash) de mim só com palavras e honra-me com os lábios, pois o seu coração está longe de mim». Esta versão é fortíssima, pois reclama Jeremias 30,21 que, ao pôr Deus a fazer aproximar (nagash) de si o novo chefe que será posto à frente da comunidade que vem do exílio, justifica assim: «Na verdade, quem empenharia o coração (ʽarab ʼet-libô), aproximando-se (nagash) de mim?». «Empenhar o coração» é pôr o coração no prego, numa casa de penhores. É, portanto, igual a morrer. Portanto, o que Jesus começa por criticar aos fariseus e escribas é o facto de erguerem à sua volta uma muralha de palavras, de ficarem enredados nas palavras, e de não arriscarem a vida. Neste sentido, são apostrofados por Jesus por três vezes (modo enfático), quase com as mesmas palavras: «Vós abandonais / violais / anulais o mandamento de Deus em favor da vossa tradição» (Marcos 7,8.9.13).

            Na parte do discurso dirigido aos fariseus e escribas (Marcos 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que d’Ele vem, e só com rodeios humanos. É quanto Jesus diz com as expressões «só com os lábios, e não com o coração», «só com preceitos humanos, e sem os preceitos de Deus». Na nova vaga agora iniciada (Marcos 7,14-16), Jesus chama para junto de si a multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois imperativos a todos: «Escutai-me e compreendei» (Marcos 7,14). É assim que Jesus reclama de todos a máxima atenção. Posto este novo cenário, Jesus enuncia então o novo princípio ético do Novo Testamento: a pureza do coração. De fora para dentro. Da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na pureza do coração: «Nada há fora do homem, que entrando nele, o possa tornar impuro; são as coisas que saem do homem que tornam o homem impuro» (Marcos 7,15).

            Proclamado diante de todos o novo princípio ético fundamental (o que se passa no coração é a chave da ética), Jesus separa-se da multidão e entra em casa, novo espaço relacional, e aí e desse modo, explica aos seus discípulos o princípio sapiencial, o mashal, proposto à escuta e compreensão de todos. Note-se, todavia, que são os discípulos que pedem explicações em casa (Marcos 7,17). Só eles estão com Jesus «em casa», e pretendem, não tirar-se de razões, atropelar-se com palavras, mas compreender melhor o dizer sapiencial (mashal) de Jesus à multidão. E Jesus adverte-os, como quem espera deles e de nós uma melhor compreensão. Mas explica, apontando outra vez o dedo ao coração: «Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a fossa? E dizia: o que sai do homem, isso sim, torna o homem impuro. Na verdade, é de dentro do coração dos homens que saem as más intenções, imoralidades, roubos, homicídios, adultérios, cobiças, malvadez, fraudes, luxúria, mau-olhado, calúnia, soberba, insensatez. Todas estas coisas más vêm de dentro, e tornam o homem impuro» (Marcos 7,18-23). Notável elenco de vícios. E como nos dá Jesus uma extraordinária e incisiva explicação, pondo completamente a nu a nossa vida antiga, e ensinando-nos novíssimas maneiras de viver.

            Vê-se bem que não basta lavar por fora. O essencial não é o «envelope» no bolso, à entrada da porta, por cima ou por baixo da mesa. Não basta, portanto, a «lavagem das mãos», a chamada netilat yadayim, como forma exterior de traduzir a pureza interior, do coração. Na verdade, é sempre necessário manter puro o coração, e nada de exterior pode iludir ou camuflar esta ação fundamental.

            Acompanha a proclamação do Evangelho de hoje a leitura do Livro do Deuteronómio 4,1-8. Fantástico discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra Prometida. O Deuteronómio inteiro é formado por quatro longos discursos proferidos por Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e praticar os mandamentos de Deus.

            E S. Tiago, na sua Carta, também hoje lida (1,17-27), insiste no mesmo tom: sede fazedores (poiêtaì) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus (1,22) todos os dias e em todas as circunstâncias, atentos sempre aos mais pobres. É pela nossa atitude para com os pobres e necessitados (1,27), que podemos verificar se somos ou não fazedores da Palavra de Deus.

            O Salmo 15 é uma «Liturgia de ingresso» no santuário, ou uma «Liturgia das portas». Constituía, na prática, uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo, para se aquilatar se a pessoa reúne condições para poder entrar no Templo. Quer isto dizer que, para alguém poder transpor o limiar do Templo, para poder ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual, que nem sequer é falada no Salmo. Nas fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia estavam inscritas as condições requeridas para se aceder ao culto. Tratava-se, em quase todos os casos, de preceitos de natureza ritual ou exterior. Também o Talmude lembrava que «o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó; não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas, e muito menos cuspir neles». Como se vê, o nosso Salmo não se entretém com ritualismos exteriores, mas requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais, que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia e o insulto e a usura. Tenha-se presente que, no mundo oriental, o empréstimo interesseiro atingia, por vezes, níveis altíssimos. Por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de empréstimo chegaram a variar entre 17 e 50%. O nosso Salmo apela à generosidade.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XXI do Tempo Comum – Ano B – 25.08.2024

Viver a Palavra

            A liturgia do 21.º Domingo do Tempo Comum fala-nos de opções. Lembra-nos que podemos gastar a vida a perseguir valores estéreis ou, em contrapartida, a apostar em valores eternos, capazes de dar pleno sentido à nossa existência. Deus aponta-nos o caminho; mas a decisão final é sempre nossa. In Dehonianos

                                                        + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Josué 24,1-2a.15-17.18b

Naqueles dias,
Josué reuniu todas as tribos de Israel em Siquém.
Convocou os anciãos de Israel,
os chefes, os juízes e os magistrados,
que se apresentaram diante de Deus.
Josué disse então a todo o povo:
«Se não vos agrada servir o Senhor,
escolhei hoje a quem quereis servir:
se os deuses que os vossos pais serviram no outro lado do rio,
se os deuses dos amorreus em cuja terra habitais.
Eu e a minha família serviremos o Senhor».
Mas o povo respondeu:
«Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses;
porque o Senhor é o nosso Deus,
que nos fez sair, a nós e a nossos pais,
da terra do Egipto, da casa da escravidão.
Foi Ele que, diante dos nossos olhos,
realizou tão grandes prodígios
e nos protegeu durante o caminho que percorremos
entre os povos por onde passámos.
Também nós queremos servir o Senhor,
porque Ele é o nosso Deus». 

CONTEXTO

O Livro de Josué é uma reflexão sobre a história do Povo de Deus no período que vai desde a sua entrada em Canaã até à morte de Josué (talvez por meados do séc. XII a.C.). Descreve sobretudo a conquista da Terra Pronetida (cf. Js 1,1-12,24) e a distribuição do território pelas tribos (cf. Js 13,1-21,45). Um apêndice final, redigido provavelmente durante o Exílio na Babilónia, apresenta outro material, nomeadamente refere a despedida e a morte de Josué, bem como a notícia de uma reunião geral de tribos em Siquém, antes da morte de Josué (cf. Js 22,1-24,33).

Em geral, a preocupação dos autores da “escola deuteronomista” que compuseram este livro é mais de caráter teológico do que histórico. Por exemplo, a conquista da Terra é apresentada como uma campanha fulgurante e fácil em que as doze tribos a uma só voz, sob a liderança de Josué, se apoderaram facilmente de toda a Terra. Mas, historicamente as coisas não aconteceram dessa forma… O livro dos Juízes, muito mais realista, fala de uma conquista lenta, difícil (cf. Jz 1) e incompleta (cf. Jz 13,1-6; 17,12-16), que não foi obra de um povo unido à volta de um chefe único, mas de tribos que fizeram a guerra isoladamente. Mais do que descrever factos históricos, os autores do livro estão interessados em afirmar o poder de Javé, posto ao serviço do seu Povo. Foi Deus – e não a capacidade militar das tribos – que, com os seus prodígios, ofereceu a Israel a Terra Prometida; Israel, por sua vez, deve responder a esse dom mantendo-se fiel à Aliança e aos mandamentos.

O texto que a liturgia deste vigésimo domingo comum nos propõe como primeira leitura situa-nos na fase final da vida de Josué. Sentindo aproximar-se a morte, Josué teria reunido em Siquém os líderes das tribos e ter-lhes-ia proposto uma cerimónia de renovação da Aliança com Javé. Terá sido uma assembleia onde participaram as doze tribos que, mais tarde (na época de David) vão constituir uma unidade nacional? Os biblistas acham que não. Na “assembleia de Siquém” não estaria certamente a tribo de Judá, já que os contactos entre Judá e a “casa de José” só se estabeleceram na época do rei David. Por outro lado, a “casa” de Josué, referida no texto, reuniria provavelmente apenas as tribos do centro do país (Efraim, Benjamim e Manassés), as tribos que viveram a experiência da libertação do Egito, da caminhada pelo deserto e da Aliança do Sinai e que há muito tempo tinham aderido a Javé e à Aliança. E as outras tribos, convidadas a comprometer-se com Javé? Seriam, provavelmente, as tribos do norte do país (Issacar, Zabulón, Neftali, Asher e Dan), que não tinham estado no Egito e não tinham experimentado a maravilhosa aventura da libertação.

Alguns pensam que a “assembleia de Siquém”, referida em Js 24, foi a primeira tentativa histórica de estabelecer laços entre as tribos instaladas no centro e as tribos instaladas no norte da Palestina. Na perspetiva de Josué, a ligação deveria fazer-se à volta de uma fé comum num mesmo Deus. Na realidade, a união das tribos do norte e do centro não se deu de uma vez; mas foi uma caminhada lenta e progressiva, que só se completou muitos anos depois de Josué ter desaparecido de cena.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Vivemos mergulhados na cultura do efémero e do contingente. Somos condicionados para acreditar que, enquanto andarmos na terra, a nossa vida nunca estará fechada. As condições alteram-se, as pessoas mudam, os cenários variam, a nossa compreensão das coisas vai-se modificando. O que hoje nos parece perfeitamente adquirido, amanhã é-nos apresentado como incerto e variável. Dizem-nos que nada é definitivo e que a nossa liberdade de tudo rever é ilimitada. Neste vórtice, perguntamo-nos a cada instante: que caminhos escolher? Que valores privilegiar? Em que cenário de fundo queremos desenhar a nossa vida? É neste contexto que hoje somos convidados a escutar o desafio colocado por Josué ao Povo de Deus na “assembleia de Siquém”: “escolhei hoje a quem quereis servir”. A expressão interpela-nos acerca das nossas opções fundamentais, dos valores que sustentam a nossa caminhada, das nossas referências e prioridades… O que é que para nós é decisivo e inegociável? Quais são os “deuses” que nos fazem correr? Que lugar é que Deus e as suas propostas ocupam na construção da nossa vida? Como queremos realmente viver?
  • Israel aceitou “servir o Senhor” e comprometer-se com Ele, não por obrigação, mas pela convicção de que era esse o caminho para ser feliz e encontrar Vida. Foi uma escolha livre de um povo que, depois de ver como Deus atuava, acreditou na bondade e no amor de Deus. Nós não somos escravos de Deus, obrigados a cumprir as regras que Ele impõe; Deus não é um concorrente do homem, um adversário controlador e ciumento que limita a nossa independência e que rouba a nossa liberdade. Deus apenas está interessado na nossa libertação, na nossa realização e na nossa felicidade. Como é que nós entendemos as propostas e os mandamentos de Deus: como exigências que condicionam e reprimem, ou como indicações seguras, fruto do amor e da bondade de Deus, para nos fazerem chegar à nossa plena realização?
  • Josué, o líder que sucedeu a Moisés na condução do Povo de Deus, teve um papel fundamental no sentido de ajudar o Povo a discernir os caminhos mais adequados para construir um futuro com sentido. O discurso de Josué não é um discurso populista ou politicamente correto; o procedimento de Josué não procura condicionar as escolhas do Povo e obrigá-lo a fazer opções que não desejava; o pronunciamento de Josué não é um pronunciamento irresponsável e descomprometido… Josué, com firmeza, mas também com respeito, limitou-se a afirmar os seus valores e a oferecer o seu testemunho de forma clara, coerente e incisiva: “eu e a minha família serviremos o Senhor”. É assim – com esta lisura, com esta verdade e com esta coerência – que vemos proceder aqueles que têm a responsabilidade de presidir à comunidade (religiosa ou civil)? E nós próprios, quando temos a responsabilidade de animar uma comunidade, é assim que procedemos? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Os olhos do Senhor estão voltados para os justos
e os ouvidos atentos aos seus rogos.
A face do Senhor volta-se contra os que fazem o mal,
para apagar da terra a sua memória.

Os justos clamaram e o Senhor os ouviu,
livrou-os de todas as suas angústias.
O Senhor está perto dos que têm o coração atribulado
e salva os de ânimo abatido.

Muitas são as tribulações do justo,
mas de todas elas o livra o Senhor.
Guarda todos os seus ossos,
nem um só será quebrado.

A maldade leva o ímpio à morte,
os inimigos do justo serão castigados.
O Senhor defende a vida dos seus servos,
não serão castigados os que n’Ele se refugiam.

LEITURA II – Efésios 5,21-32

Irmãos:
Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo.
As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor,
porque o marido é a cabeça da mulher,
como Cristo é a cabeça da Igreja, seu Corpo,
do qual é o Salvador.
Ora, como a Igreja se submete a Cristo,
assim também as mulheres
se devem submeter em tudo aos maridos.
Maridos, amai as vossas mulheres,
como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela.
Ele quis santificá-la,
purificando-a no batismo da água pela palavra da vida,
para a apresentar a Si mesmo como Igreja cheia de glória,
sem mancha nem ruga, nem coisa alguma semelhante,
mas santa e imaculada.
Assim devem os maridos amar as suas mulheres,
como os seus corpos.
Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo.
Ninguém, de facto, odiou jamais o seu corpo,
antes o alimenta e lhe presta cuidados,
como Cristo à Igreja;
porque nós somos membros do seu Corpo.
Por isso, o homem deixará pai e mãe,
para se unir à sua mulher,
e serão dois numa só carne.
É grande este mistério,
digo-o em relação a Cristo e à Igreja.

CONTEXTO

Paulo passou em Éfeso, no decurso da sua terceira viagem missionária, e ficou lá um pouco mais de dois anos (cf. At 19,8.10). Éfeso era, por essa altura, a capital da Província romana da Ásia e um dos mais importantes centros comerciais e religiosos do mundo greco-romano. O seu templo de Artémis, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo, era conhecido em toda a bacia mediterrânea.

A partir do trabalho missionário de Paulo, formou-se em Éfeso uma comunidade cristã dinâmica, viva e fervorosa. Paulo viveu esse tempo de estadia em Éfeso de forma muito intensa, criando uma relação privilegiada com a comunidade, como ficou patente quando o apóstolo, no final dessa viagem, quis encontrar-se com os anciãos de Éfeso, em Mileto, numa despedida carregada de emoção e de sentimento (cf. At 20,17-38).

Estranhamento, na Carta aos Efésios não transparece essa ligação pessoal entre Paulo e os cristãos de Éfeso. É uma carta com uma reflexão madura e cuidada, mas bastante formal e impessoal. Isso tem contribuído para que alguns neguem a autenticidade paulina da Carta aos Efésios, considerando-a como obra tardia de um discípulo de Paulo. O mais provável, contudo, é que se trate de uma “carta circular”, enviada por Paulo a diversas igrejas do ocidente da Ásia Menor (atual Turquia), entre as quais se contava também a comunidade cristã de Éfeso.

O texto que a liturgia deste vigésimo primeiro domingo comum nos apresenta como primeira leitura está incluído na parte moral e parenética da Carta aos Efésios (cf. Ef 4,1-6,20). Aí, o autor da Carta aos Efésios lembra aos crentes, de forma bastante concreta, a opção que fizeram no dia do seu Batismo e que os obriga a viver como Homens Novos, à imagem de Jesus.

Na secção de Ef 5,21-6,9 são apresentadas algumas das normas que devem reger as relações familiares. De forma especial referem-se os deveres dos esposos, cuja união é apresentada como figura da união de Cristo com a sua Igreja. Trata-se de um dos temas mais importantes da teologia desenvolvida na Carta aos Efésios. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O compromisso com Jesus mexe com a totalidade da vida dos seres humanos e tem consequências em todos os níveis da existência, nomeadamente ao nível da relação familiar. Para além de ser oásis de amor e de felicidade, o espaço da relação familiar também é, para os casais cristãos, um lugar onde se vivem e se manifestam os valores do Reino de Deus. Com a sua partilha de amor, com a sua união, com a sua comunhão de vida, o casal cristão é chamado a ser sinal e reflexo da união de Cristo com a sua Igreja. Por isso, a Igreja pede: “os esposos, feitos à imagem de Deus e estabelecidos numa ordem verdadeiramente pessoal, estejam unidos em comunhão de afeto e de pensamento e com mútua santidade de modo que, seguindo a Cristo, princípio da vida, se tornem, pela fidelidade do seu amor, através das alegrias e sacrifícios da sua vocação, testemunhas daquele mistério de amor que Deus revelou ao mundo com a sua morte e ressurreição” (Gaudium et Spes, 52). Os casais cristãos estão conscientes de que são chamados a dar testemunho no mundo, com o seu amor, com a sua entrega, com a sua harmonia, com a sua vida partilhada, da união entre Cristo e a sua Igreja?
  • O amor de Cristo, manifestado em todos os gestos da sua vida, mas tornado patente de forma superlativa na cruz, é o modelo para todos os nossos “amores”, incluindo o amor dos esposos. O amor dos casais cristãos é um amor definido pelo dom total de si próprio em favor do outro; é um amor que vive de olhos postos no bem do outro; é um amor que não procura ser servido, mas servir e dar vida; é um amor que não é competição de direitos e deveres, mas comunidade de partilha e de serviço; é um amor que não é arrogante, nem orgulhoso, nem injusto, nem prepotente; é um amor que compreende os erros e as falhas do outro, e que tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta (cf. 1 Co 13,4-7). É assim que vivem e amam aqueles de entre nós que foram chamados à vocação matrimonial?
  • Paulo, dirigindo-se às mulheres, recomenda-lhes que assumam, frente aos maridos uma atitude de “submissão” (poderíamos traduzir também a palavra utilizada pelo apóstolo como “docilidade”). Evidentemente, temos de enquadrar a recomendação de Paulo no contexto sociocultural da época, em que o marido era considerado a referência fundamental da ordem familiar (“porque o marido é a cabeça da mulher” – diz Paulo). Seja como for, esta “palavra” de Paulo nunca poderá ser utilizada como pretexto para justificar qualquer atitude de discriminação baseada no sexo ou de imposição da autoridade do homem sobre a mulher: nem na sociedade, nem na Igreja, nem no contexto familiar. Aliás, Paulo dirá, noutras circunstâncias, que “não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus” (Gl 3,28). Respeitamos a dignidade de cada pessoa, sem discriminar e sem tratar de forma menos própria aqueles que caminham connosco? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,60-69

Naquele tempo,
muitos discípulos, ao ouvirem Jesus, disseram:
«Estas palavras são duras.
Quem pode escutá-las?»
Jesus, conhecendo interiormente
que os discípulos murmuravam por causa disso,
perguntou-lhes:
«Isto escandaliza-vos?
E se virdes o Filho do homem
subir para onde estava anteriormente?
O espírito é que dá vida,
a carne não serve de nada.
As palavras que Eu vos disse são espírito e vida.
Mas, entre vós, há alguns que não acreditam».
Na verdade, Jesus bem sabia, desde o início,
quais eram os que não acreditavam
e quem era aquele que O havia de entregar.
E acrescentou:
«Por isso é que vos disse:
Ninguém pode vir a Mim,
se não lhe for concedido por meu Pai».
A partir de então, muitos dos discípulos afastaram-se
e já não andavam com Ele.
Jesus disse aos Doze:
«Também vós quereis ir embora?»
Respondeu-Lhe Simão Pedro:
«Para quem iremos, Senhor?
Tu tens palavras de vida eterna.
Nós acreditamos
e sabemos que Tu és o Santo de Deus».

CONTEXTO

Depois de Jesus ter saciado a fome da multidão que o seguia (cf. Jo 6,1-15), gerou-se uma situação equívoca. A multidão esperava que Jesus fosse um messias-rei que lhe oferecesse uma vida confortável e pão em abundância; e Jesus estava bem consciente de que a sua missão não era “dar coisas”, mas sim oferecer-se a si próprio para que a humanidade tivesse Vida. A multidão esperava de Jesus uma proposta humana que conduzisse ao triunfo e à glória; e Jesus sabia claramente que o caminho que tinha para propor era o caminho da cruz, da vida dada até ao extremo, por amor. Percebendo que a multidão e Ele não estavam no mesmo comprimento de onda, Jesus não quis alimentar mal-entendidos; e, no “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59), procurou deixar clara a sua proposta. Depois de escutarem Jesus, os seus interlocutores perceberam que tinham de fazer uma opção decisiva: ou continuar a viver numa lógica humana, virada para os bens materiais e para as satisfações mais imediatas, ou assumir a lógica de Deus, seguindo o exemplo de Jesus e fazendo da vida um dom de amor para ser partilhado.

O texto do Evangelho que a liturgia deste vigésimo primeiro domingo comum nos propõe refere a reação negativa de “muitos discípulos” às propostas que Jesus deixou no ar, naquele discurso feito na sinagoga de Cafarnaum, no dia a seguir à partilha dos pães e dos peixes. Nem todos os discípulos que, até agora, o seguiam pelas aldeias e vilas da Galileia estão dispostos a identificar-se com Jesus (“comer a sua carne e beber o seu sangue”) e a oferecer a sua vida como dom de amor que deve ser partilhado com toda a humanidade.

Poderá ser útil também, para entendermos a “catequese” aqui feita pelo autor do Quarto Evangelho, lembrarmos o contexto em que vivia a comunidade joânica, nos finais do séc. I, quando o Evangelho segundo João foi escrito… Os cristãos eram discriminados e perseguidos em todo o Império romano; muitos discípulos afastavam-se, recusando-se a seguir Jesus no caminho do dom da vida; outros, confusos e perplexos, questionavam-se se para ser cristão seria preciso percorrer um caminho tão radical e de tanta exigência… A proposta que Jesus tinha apontado aos seus conduziria, efetivamente, à felicidade e à Vida plena, ou ao fracasso e à morte? Neste cenário – um cenário que exigia opções decisivas – o “catequista” João procura, recorrendo às palavras de Jesus, encontrar respostas que devolvam aos cristãos o ânimo e a esperança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Um dos mais belos dons de Deus é a liberdade. Contudo, no exercício da liberdade, somos a cada passo confrontados com escolhas; e, muitas vezes as escolhas que fazemos são decisivas para o êxito ou o fracasso da nossa vida. É essa a grande questão que atravessa o Evangelho que escutamos neste domingo. De um lado está um projeto de vida – alimentado e cultivado por alguns dos discípulos que seguem Jesus – alicerçado na ambição pessoal, que busca glória humana, poder, bens materiais, resposta imediata a interesses próprios; é um projeto que responderá a determinadas necessidades básicas do homem, mas que dificilmente preencherá uma vida com sentido. Do outro lado está o projeto de Jesus, que propõe uma vida feita dom, concretizada em gestos de serviço, de partilha, de generosidade, de amor até ao extremo; é um projeto que, muitas vezes, implica andar contra a corrente e enfrentar a incompreensão e a perseguição, mas que conduz à Vida verdadeira e eterna. Como nos situamos face a isto? Qual a nossa opção?
  • Confrontados com a radicalidade do projeto de Jesus, “muitos discípulos” decidiram que aquilo não era para eles e foram-se embora. Estavam demasiado reféns dos seus sonhos de riqueza fácil, dos seus desejos egoístas, dos seus valores fúteis, dos seus jogos de poder e de influência, dos seus comodismos e seguranças… Provavelmente tinham ido atrás de Jesus pelas razões erradas. Trata-se de um “equívoco” que tem tendência a repetir-se: em cada época da história há “discípulos” de Jesus – talvez até figuras de referência nas nossas comunidades cristãs – que andam com Ele pelas razões erradas e que assumem um estilo de vida claramente divorciado da proposta de Jesus. Cultivam valores ocos, vivem obcecados com os bens materiais, tratam os irmãos com prepotência e arrogância, não têm escrúpulos em pôr os outros a servi-los, tratam a comunidade como sua propriedade privada, não olham a meios para atingir determinados fins. Este quadro diz-nos alguma coisa? O quê?
  • Os Doze ficaram com Jesus, pois estavam convictos de que só Ele tem “palavras de Vida eterna”. Ao lado de Jesus descobriram outra maneira de viver; a mensagem de Jesus apontou-lhes uma Vida verdadeira e definitiva que eles antes não conheciam. Por isso, estão decididos a deixarem-se conduzir por Jesus. Não veem ninguém que os ajude, melhor do que Jesus, a dar sentido às suas vidas. Esses Doze representam aqueles que não se conformam com a banalidade de uma vida construída sobre valores efémeros e que querem ir mais além; representam aqueles que não estão dispostos a conduzir a sua vida ao sabor da preguiça, do comodismo, da instalação; representam aqueles que aderem sinceramente a Jesus, se comprometem com o seu projeto e se esforçam por viver em coerência com a opção por Jesus que fizeram no dia do seu Batismo. Vemos esses Doze como modelo da nossa adesão a Jesus e ao seu projeto? Mesmo com as falhas que resultam da nossa fragilidade, procuramos viver com coerência e verdade o nosso compromisso com o seguimento de Jesus?
  • Jesus não parece estar tão preocupado com o número de discípulos que continuarão a segui-l’O, quanto com o manter a verdade e a coerência do seu projeto. Ele não faz cedências fáceis para ter êxito ou para captar a benevolência e os aplausos das multidões, pois o Reino de Deus não é um concurso de popularidade… O Evangelho que Jesus veio propor conduz à Vida plena, mas por um caminho que é de radicalidade e de exigência e que muitas vezes está em contradição com as ideias e valores que o mundo privilegia. “Suavizar” as exigências do Evangelho, a fim de que ele seja mais facilmente aceite pelos homens do nosso tempo, pode ser desvirtuar a proposta de Jesus e despojar o Evangelho daquilo que ele tem de verdadeiramente transformador. O que deve inquietar-nos não é tanto o número de pessoas que vão à Igreja, mas é mais o mantermos a fidelidade ao programa de Jesus. Anunciamos e testemunhamos o Evangelho de Jesus sem cedências fáceis e sem prescindirmos da sua radicalidade e exigência?
  • Um dos elementos que sobressai no Evangelho deste domingo é a serenidade com que Jesus encara o “não” de alguns discípulos ao projeto que Ele veio propor. Diante desse “não”, Jesus não força as coisas, não protesta, não ameaça, mas respeita absolutamente a liberdade de escolha dos seus discípulos. Jesus mostra, assim, o respeito de Deus pelas decisões (mesmo erradas) do homem, pelas dificuldades que o homem sente em comprometer-se, pelos caminhos diferentes que o homem escolhe seguir. O nosso Deus é um Deus que respeita o homem, que o trata como adulto, que aceita que ele exerça o seu direito à liberdade. É bom caminharmos sentindo que Deus respeita a nossa autonomia e liberdade. Por outro lado, um Deus tão compreensivo e tolerante convida-nos a dar mostras de misericórdia, de respeito e de compreensão para com os irmãos que seguem caminhos diferentes, que fazem opções diferentes, que conduzem a sua vida de acordo com valores e critérios diferentes dos nossos. É esse o testemunho que damos? Procuramos respeitar as diferenças, os “diferentes”, sem assumirmos atitudes de marginalização ou de exclusão? Respeitamos a legítima liberdade dos homens e das mulheres que caminham ao nosso lado? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O BISTURI DA PALAVRA DE DEUS

            Neste Domingo XXI do Tempo Comum, escutaremos a sexta e última Parte do Capítulo VI do Quarto Evangelho, que contempla os últimos versículos (João 6,60-69), e estende a discussão antes havida da multidão (João 6,25-40) e dos judeus (João 6,41-58) com Jesus, também aos discípulos em geral, que entram agora em cena em João 6,60, para pouco depois saírem de cena, para fora da ação de Jesus, em João 6,66, sendo então a vez dos Doze e de Pedro entrarem em cena (João 6,67-69).

            Veja-se a gradação: multidão, judeus, discípulos, Doze e Pedro. Curiosamente, os discípulos, numa espécie de imbricação, retomam a atitude dos judeus, que os precederam em cena: murmuram (goggýzô) como eles contra o escândalo da incarnação e das origens divinas de Jesus (João 6,61), e classificam como duro (sklêrós), incompreensível, intragável (João 6,60), o discurso de Jesus sobre a sua carne-vida dada em alimento para a vida verdadeira.

            Além de «murmurar» como os judeus de Cafarnaum e do deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36), muitos dos discípulos abandonam Jesus e «voltam para trás» (João 6,66), configurando-se como anti discípulos e anti povo de Deus, que, no deserto, também pretende voltar para trás, para o Egito (Êxodo 14,12; 16,3; 17,3; Números 14,3-4). Ora, o discípulo verdadeiro é aquele que vai atrás de Jesus, seguindo-o, e não o que volta para trás, abandonando-o.

            De notar ainda que, no caso dos discípulos, e de forma diferente da multidão e dos judeus, é Jesus que faz a pergunta e dá a resposta. Os discípulos apenas murmuram, não ouvem, não respondem e vão-se embora. No caso dos Doze, é Jesus que faz a pergunta, e é Pedro que, em nome dos Doze e em contraponto com todos os grupos anteriores, não se limita apenas a responder, mas profere uma verdadeira profissão de fé (João 6,68-69).

            Vendo bem, neste Capítulo VI do Evangelho de João, que hoje atinge o seu ápice, as diversas reações aos acontecimentos de Jesus, a que a exegese chama «crise galilaica», antecipam e leem já as crises sucessivas que vão aparecer na Igreja. Trata-se sempre da grande decisão de fé pró ou contra a humildade da Incarnação, da Cruz e da Eucaristia. A Palavra de Jesus que se ouve aqui, e continua a ouvir-se ainda hoje, será sempre como um bisturi que divide, julga e purifica.

            A mesma grande decisão ou incisão está patente no grande texto de Josué 24,1-18. Josué profere diante de todo o povo reunido um dos mais belos e completos «módulos narrativos» de toda a Escritura, mostrando ao povo que foi Deus que conduziu a inteira história de Israel, com amor poderoso, desde o outro lado do Rio Eufrates, chamando e conduzindo os passos de Abraão, libertando depois o povo da opressão do Egito, guiando-o pelo deserto, libertando-o dos inimigos poderosos que o ameaçavam por todos os lados, e fazendo-o entrar na Terra de Canaã (Josué 24,2-14). Depois desta descrição maravilhosa que tem Deus por sujeito, Josué abre o tempo das decisões, em que «servir» é a palavra-chave, que se ouve por 14 vezes. Servir ou não servir, eis a questão posta por Josué ao povo: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir» (Josué 24,15a). Josué avança a sua escolha e decisão: «Eu e a minha família serviremos o Senhor!» (Josué 24,15b). Então, o povo repassa outra vez na memória do coração todos os benefícios que lhe fez o Senhor, desde a libertação do Egito, aos sinais e prodígios realizados em seu favor, à proteção assegurada pelo Senhor ao longo do caminho percorrido e perante os adversários (Josué 24,16-18a), para afirmar logo convictamente: «Nós também serviremos o Senhor» (Josué 24,18b).

            E, na Carta aos Efésios 5,21-32, o «serviço» chama-se amor. O texto hoje lido constitui um extrato de um dos «Códigos familiares», que se encontram nas chamadas Cartas editadas de S. Paulo. Estas Cartas que remontam a Paulo, mas que são editadas depois da sua morte, já não traduzem o esforço evangelizador patente nas Cartas autênticas, mas procuram levar o Evangelho a situações concretas da vida, como sejam a família e o trabalho. O texto de hoje realça sobretudo a relação marido-esposa, que deve retratar a relação sublime e salutar Cristo-Igreja. Mas, se a leitura continuasse, também veríamos o Evangelho a renovar as relações pais-filhos e patrões-empregados.

            Voltamos, pelo terceiro Domingo consecutivo, à música do Salmo 34. Desta vez para nos apercebermos melhor que Deus atende sempre com solicitude os gritos de socorro do justo perseguido (v. 16.18), ao mesmo tempo que apaga da terra a memória dos malfeitores (v. 17.22). Esta certeza é muitas vezes a única e a última defesa do justo que sofre às mãos dos ímpios. Os Salmos de imprecação, ou as suas partes mais violentas, foram abolidos da oração oficial, como se não fossem, na verdade, Palavra inspirada. Pecado nosso, que assim mostramos não compreender o realismo e a eficácia da oração bíblica, e dificultamos aos aflitos o poder extravasar diante de Deus as suas amarguras, e deixamos os violentos a maquinar tranquilamente as suas crueldades, como se Deus não visse nem ouvisse nem lhes pedisse contas.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XX do Tempo Comum – Ano B – 18.08.2024

Viver a Palavra

Não convém interromper o Discurso, o Evangelho, o Sermão do Pão.

Um convite. Ler em contínuo todo o Capítulo 6 do Evangelho de João, que foi “partido” ao longo de 5 domingos

XVII DTC – Jo 6, 1-15 “De onde comprareis pão para dar de comer a esta gente toda?”
XVIII DTC – Jo 6, 24-35 “O meu pai é que vos dá o Pão, o do céu, o verdadeiro.”
XIX DTC – Jo 6, 41-51 “Eu sou o Pão Vivo, o do Céu.”
XX DTC – Jo 6, 51-58 “Assim como eu vivo do Pai, quem me comer viverá de mim.”
XXI DTC – Jo 6, 60-69 “Vós não quereis ir-vos embora, pois não?”

Jo 6, 51-58

51Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo.»52Então, os judeus, exaltados, puseram-se a discutir entre si, dizendo: «Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?!» 53Disse-lhes Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. 54Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei de ressuscitá-lo no último dia, 55porque a minha carne é uma verdadeira comida e o meu sangue, uma verdadeira bebida. 56Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e Eu nele. 57Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim. 58Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram; quem come mesmo deste pão viverá eternamente.»

                                                        + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Provérbios 9,1-6

A Sabedoria edificou a sua casa e levantou sete colunas.
Abateu os seus animais,
preparou o vinho e pôs a mesa.
Enviou as suas servas
a proclamar nos pontos mais altos da cidade:
«Quem é inexperiente venha por aqui».
E aos insensatos ela diz:
«Vinde comer do meu pão e beber do vinho que vos preparei.
Deixai a insensatez e vivereis;
segui o caminho da prudência».

CONTEXTO

O “Livro dos Provérbios” apresenta diversas coleções de ditos, de sentenças, de máximas, de provérbios (“mashal”) onde se cristaliza o resultado da reflexão e da experiência (“sabedoria”) de várias gerações de “sábios” antigos (israelitas e alguns não israelitas). O objetivo desses provérbios é definir uma espécie de “ordem” do mundo e da sociedade que, uma vez apreendida e aceite pelo indivíduo, o levará a uma integração plena no meio em que está inserido. Dessa forma, o indivíduo poderá viver sem traumas nem sobressaltos que destruam a sua harmonia interior e o incapacitem para dar o seu contributo à comunidade. Ficará, assim, de posse da chave para viver em harmonia consigo mesmo e com os outros, e assegurará uma vida feliz, tranquila e próspera.

O livro apresenta-se como tendo sido composto por Salomão (cf. Pr 1,1), o rei “sábio”, conhecido pelos seus dotes de governação, pelos seus dons literários, por numerosas sentenças sábias (cf. 1 Re 3,16-28; 5,7; 10,1-9.23) e que se tornou uma espécie de “padrão” da tradição sapiencial… Na realidade, não podemos aceitar, de forma acrítica, essa indicação: a leitura atenta do livro revela que estamos diante de coleções de proveniência diversa, compostas em épocas diversas. Alguns dos materiais apresentados no livro podem ser do séc. X a.C., a época de Salomão (embora isso não nos garanta que venham do próprio Salomão); outros, no entanto, são bem mais recentes.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo domingo comum integra uma secção que poderíamos intitular, genericamente, “instruções e advertências” (cf. Pr 1,8-9,18). Trata-se de um conjunto de exortações e de instruções de um pai/educador, convidando o filho a adquirir a “sabedoria”. É dentro desta secção que nos aparece a antítese entre a “senhora sabedoria” e a “senhora insensatez” (cf. Pr 9,1-6.13-18) – um dos textos emblemáticos do “Livro dos Provérbios”. A nossa leitura é, precisamente, a primeira parte da antítese (a apresentação da “senhora sabedoria”).

Segundo os especialistas, esta secção é a parte mais recente do “Livro dos Provérbios” e não pode ser anterior ao séc. IV ou III a.C. Provavelmente, foi escrita como introdução ao livro quando todas as outras secções já estavam organizadas. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A questão das opções é absolutamente determinante na construção da nossa vida. O que são opções corretas? O que é que determina o êxito ou o fracasso da nossa existência? O que é que nos faz viver uma vida com sentido? Em que caminhos podemos encontrar a nossa felicidade e a nossa realização plena? Todos os dias nos deparamos com mil e uma respostas a estas questões. Os líderes políticos, os publicitários, os “fazedores de opinião”, os agentes dos lobbies, não cessam de nos soprar indicações que, segundo eles, nos garantem o sucesso, o êxito, a realização, a felicidade. Como discernir, no meio desse vendaval de propostas, aquilo que nos ajuda e aquilo que nos prejudica? Em quem acreditar? Para os cristãos, há uma “sabedoria” que não pode ser ignorada: Jesus, a “sabedoria de Deus”. Andaremos bem-avisados se as propostas de Jesus forem o critério decisivo para sabermos o que nos serve e o que não nos serve, aquilo que nos realiza e aquilo que nos prejudica, aquilo que nos traz paz e aquilo que nos rouba a paz, aquilo que nos leva à Vida e aquilo que nos leva à morte. Procuramos conduzir a nossa vida pela “sabedoria” que é Jesus? As palavras e os gestos de Jesus são indicações decisivas para construirmos a nossa vida?
  • Os que são admitidos na casa da “dona Sabedoria” e que participam do banquete que ela preparou são os “simples” e os “insensatos que querem deixar a insensatez e seguir o caminho da prudência”. Os “simples” são aqueles que não têm o coração demasiado cheio de si próprio, que não se fecham no orgulho e na autossuficiência, que reconhecem a sua pequenez e finitude e que se entregam com humildade e confiança nas mãos de Deus; os “insensatos que buscam o caminho da prudência” são aqueles que estão dispostos a mudar, que não se conformam com a vida do homem velho e querem ir mais além… Uns e outros são o paradigma de uma determinada atitude: a atitude de abertura aos dons de Deus, de disponibilidade para acolher a Vida de Deus… Como é que nos situamos diante de Deus, das suas indicações e propostas? Reconhecemos a nossa pequenez e a nossa incapacidade para encontrarmos, contando apenas connosco, o caminho para a realização, para a felicidade, para a Vida plena? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL –   Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Temei o Senhor, vós os seus fiéis,
porque nada falta aos que O temem.
Os poderosos empobrecem e passam fome,
aos que procuram o Senhor não faltará riqueza alguma.

Vinde, filhos, escutai-me,
vou ensinar-vos o temor do Senhor.
Qual é o homem que ama a vida,
que deseja longos dias de felicidade?

Guarda do mal a tua língua
e da mentira os teus lábios.
Evita o mal e faz o bem,
procura a paz e segue os seus passos.

LEITURA II – Efésios 5,15-20

Irmãos:
Vede bem como procedeis.
Não vivais como insensatos, mas como pessoas inteligentes.
Aproveitai bem o tempo, porque os dias que correm são maus.
Por isso não sejais irrefletidos,
mas procurai compreender qual é a vontade do Senhor.
Não vos embriagueis com o vinho, que é causa de luxúria,
mas enchei-vos do Espírito Santo,
recitando entre vós salmos, hinos e cânticos espirituais,
cantando e salmodiando em vossos corações,
dando graças, por tudo e em todo o tempo, a Deus Pai,
em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.

CONTEXTO

Éfeso, situada na costa ocidental da Ásia Menor era, na antiguidade, considerada a segunda cidade do Império romano, logo a seguir a Roma. A sua numerosa população, o seu importante porto de mar e o seu templo dedicado a Ártemis (considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo), tornavam-na conhecida em todo o Mediterrâneo.

Paulo esteve em Éfeso mais de dois anos, no decurso da sua terceira viagem missionária. Durante esse tempo ensinou “na escola de Tirano” (At 19,9), propondo a Boa nova de Jesus. Como resultado da ação do apóstolo, nasceu uma comunidade cristã viva e fervorosa, que vivia com entusiasmo o seu compromisso com Jesus. Os laços entre Paulo e os cristãos de Éfeso eram fortes. Ao embarcar para a Palestina, no final dessa viagem missionária, Paulo despediu-se dos representantes da Igreja de Éfeso com um discurso veemente e apaixonado, revelador dos laços que o uniam aos cristãos dessa cidade (cf. At 20,1738).

Estranhamente, a carta aos Efésios é uma carta algo impessoal, onde não aparecem sinais dessa relação forte que unia Paulo à comunidade. Alguns consideram, por isso, que a Carta aos Efésios não seria um texto paulino, mas um texto redigido por um seu discípulo de Paulo, alguns anos após a morte do apóstolo. Muitos consideram, no entanto, que se trataria de uma “carta circular”, redigida por Paulo enquanto estava na prisão (em Cesareia Marítima? Em Roma?) e dirigida a diversas comunidades do ocidente da Ásia Menor, entre as quais se contava também a comunidade cristã de Éfeso.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste vigésimo domingo comum pertence à segunda parte da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Nessa “exortação aos batizados”, Paulo retoma alguns dos temas tradicionais do catecismo primitivo e convida os cristãos a deixarem a antiga forma de viver para assumir a nova, revestindo-se de Cristo (cf. Ef 4,17-31), imitando Deus (cf. Ef 4,32-5,2), passando das trevas à luz (cf. Ef 5,3-20). Como cenário de fundo da reflexão paulina está sempre a necessidade de os cristãos deixarem a vida do homem velho, para assumirem a vida do Homem Novo. É neste sentido que devem ser entendidos essas normas práticas de conduta que Paulo apresenta aos seus cristãos no texto que nos é proposto. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não resulta fácil vivermos sempre a cem por cento os compromissos que assumimos no nosso batismo. Com o passar do tempo, com o cansaço, com a monotonia, com o desencanto, com as preocupações e problemas que a vida traz, chegam a acomodação, a instalação, a tentação de “deixar correr” e passamos a viver a fé de uma forma “morna”, pouco empenhada, às vezes pouco consentânea com os compromissos que assumimos com Cristo. O autor da Carta aos Efésios diz, a propósito disto, que é uma estupidez termos descoberto e experimentado a Vida verdadeira e deixarmos que o homem velho do egoísmo e do pecado nos domine de novo… Não necessitaremos de “acordar” do sono que nos paralisa e de reencontrar o entusiasmo, a novidade de Deus, o desafio da fé? O que podemos fazer para revitalizar o nosso compromisso com a Vida nova que nos foi oferecida no dia do nosso batismo?
  • A todos os instantes somos bombardeados com propostas de valores que, pretensamente, nos asseguram o êxito, o triunfo, a popularidade, a realização, a felicidade. No entanto, já reparamos que muitos vezes os valores que nos “vendem” não fazem mais do que aumentar a frustração e o vazio que enche a nossa vida de nada. O autor da Carta aos Efésios diz-nos para não acolhermos, de forma acrítica, os valores que nos são propostos. A verdadeira sabedoria está em conseguir discernir aquilo que nos ajuda a viver uma vida mais humana e mais digna daquilo que nos traz desilusão e sofrimento. Quais são os valores a que damos importância e que dirigem a nossa vida? Esses valores ajudam-nos a encontrar a paz, a viver uma vida com sentido, uma vida mais feliz e realizada?
  • O viver “no Espírito” implica ainda, na perspetiva de Paulo, a oração, o louvor, a ação de graças. Um crente que tem Deus como a coordenada fundamental da sua existência e que se sente chamado a fazer parte da família de Deus é um crente que vive em diálogo contínuo com Deus. É nesse diálogo que ele percebe os planos e os projetos de Deus para si próprio e para o mundo e encontra a coragem para percorrer o caminho da fidelidade e do compromisso. Conseguimos, no meio da azáfama e da tensão em que a nossa vida diária decorre, encontrar tempo e disponibilidade para falar com Deus e para escutar as propostas que Ele nos apresenta? Estamos conscientes dos dons de Deus e respondemos-Lhe com o louvor e a ação de graças? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,51-58

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».
Os judeus discutiam entre si:
«Como pode ele dar-nos a sua carne a comer?»
E Jesus disse-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Se não comerdes a carne do Filho do homem
e não beberdes o seu sangue,
não tereis a vida em vós.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
tem a vida eterna;
e Eu o ressuscitarei no último dia.
A minha carne é verdadeira comida
e o meu sangue é verdadeira bebida.
Quem come a minha carne e bebe o meu sangue
permanece em Mim e eu nele.
Assim como o Pai, que vive, Me enviou
e eu vivo pelo Pai,
também aquele que Me come viverá por Mim.
Este é o pão que desceu do Céu;
não é como o dos vossos pais, que o comeram e morreram:
quem comer deste pão viverá eternamente».

CONTEXTO

Jesus está na sinagoga de Cafarnaum. À sua volta estão muitos daqueles que, no dia anterior, tinham sido agraciados com uma refeição de pão e de peixe (cf. Jo 6,1-15). Jesus diz-lhes que devem correr atrás, não do alimento que perece, mas do alimento que dá a Vida eterna (cf. Jo 6,22-58). Fala-lhes também de si próprio como o “pão que desceu do céu para dar Vida ao mundo”; e convida-os a comer desse pão. Também estão ali alguns líderes judaicos (os “judeus”) que recebem com hostilidade as palavras de Jesus.

No trecho do “discurso do pão da Vida” que a liturgia deste vigésimo domingo comum nos serve, Jesus avança um pouco mais e convida os seus interlocutores a comer a sua carne e a beber o seu sangue. São palavras inauditas, impossíveis de ser entendidas pelos interlocutores de Jesus, se as situarmos no cenário da sinagoga de Cafarnaum. Elas só são compreensíveis após a instituição da eucaristia, na última ceia.

Alguns biblistas pensam que este trecho poderia ser uma reflexão da primitiva comunidade cristã, que reinterpretou a primeira parte do “discurso do pão da Vida”, explicitando-a a partir da celebração eucarística posterior. Outros, contudo, pensam que João reelaborou e colocou neste lugar uma série de materiais que estavam inicialmente incluídos no relato da última ceia, mas que foram deslocados para aqui por conveniências teológicas, já que na sua versão da última ceia, o autor do Quarto Evangelho preferiu dar relevo à cena do lava pés (no entanto, dada a relevância que o discurso eucarístico de Jesus assumiu na tradição cristã, João não quis omiti-lo completamente, transladando-o para o lugar que lhe pareceu mais apropriado: o cenário do discurso sobre “o pão descido do céu para dar Vida ao mundo).

Seja como for, o discurso sobre o “pão da vida” (cf. Jo 6,22-58) ficou, no esquema final do Quarto Evangelho, com a seguinte sequência lógica: os homens buscam o pão material; Jesus traz-lhes o “pão do céu que dá vida ao mundo”; e o pão eucarístico realiza, de forma plena, a missão de Jesus no sentido de dar Vida ao homem. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A parte final do “discurso do pão da Vida” (Jo 6,26-58) – precisamente o texto que escutamos neste vigésimo domingo comum – coloca-nos, indubitavelmente, em contexto eucarístico. Leva-nos às palavras e aos gestos de Jesus na última ceia, quando Ele deu aos discípulos o pão e o cálice e os convidou a “comer” o seu corpo e a “beber” o seu sangue (cf. Mc 14,22-25). A eucaristia revive e atualiza a vida, os gestos, as palavras de Jesus, a sua paixão, morte e ressurreição. A eucaristia é uma experiência central para os seguidores de Jesus; a Igreja vive e alimenta-se da eucaristia. Ora, um dos sinais mais graves da crise da fé cristã entre nós é o abandono tão generalizado da eucaristia dominical. Revela indiferença por Jesus, pelo projeto de Jesus, pela Vida que Jesus quer oferecer. Que importância é que a eucaristia assume na nossa vida e na nossa existência cristã? Para nós, a eucaristia é um rito tradicional a que “assistimos” por obrigação, para acalmar a consciência ou para cumprir as regras do “religiosamente correto”, ou é um encontro pessoal e comunitário com esse Jesus que é fonte inesgotável de Vida? O que podemos fazer – inclusive ao nível do ritual eucarístico – para tornar a celebração da eucaristia uma experiência forte, sentida e inolvidável de encontro com Jesus?
  • Muito novos ainda, depois de uma preparação mais ou menos conseguida, aproximamo-nos da mesa eucarística e fizemos a “primeira comunhão”. Tinham-nos ensinado que, no momento de comungar, Jesus vinha ao nosso encontro e ficava connosco pela graça do sacramento da eucaristia. Depois disso, entramos numa espiral de comunhões, muitas vezes rotineiras e pouco sentidas. Em cada celebração eucarística, no momento previsto, colocamo-nos distraidamente na fila para cumprir o rito sacramental de receber o pão consagrado e voltamos ao nosso lugar, sem mais consequências nem desenvolvimentos… Como é que sentimos e vivemos o encontro com Jesus feito “pão” para nos dar Vida? O momento em que recebemos Jesus no pão eucarístico é sentido por nós como o momento em que O acolhemos no coração, em que nos abrimos à sua verdade, em que acolhemos o seu Evangelho, em que interiorizamos o seu estilo de vida, em que O colocamos no centro da nossa vida?
  • Na Eucaristia, o alimento servido é o próprio Jesus. Quem acolhe (quem “come”) essa Vida que Ele oferece torna-se, portanto, um com Ele. “Comer” cada domingo (ou cada dia) o alimento que Jesus oferece e que é a sua própria pessoa, leva os crentes a uma comunhão total de vida com Ele. É a Vida de Jesus que passa a circular em nós e a animar tudo aquilo que fazemos. Celebrar a Eucaristia é aprofundar os laços familiares que nos unem a Jesus, é identificarmo-nos com Ele. Quando comungamos, temos a consciência clara de que ficamos intimamente ligados a Jesus e que Jesus fica connosco, a alimentar a nossa vida a partir de dentro?
  • Na conceção judaica, a partilha do mesmo alimento à volta da mesa gera entre os convivas familiaridade e comunhão. Assim, os crentes que participam da Eucaristia passam a ser irmãos: em todos circula a mesma Vida, a Vida que brota da mesma “videira” que é Jesus. Dessa forma, a participação na eucaristia tem de resultar no reforço da comunhão dos irmãos. Uma comunidade que celebra a eucaristia e que vive depois na divisão, no ciúme, no conflito, no orgulho, na autossuficiência, na indiferença para com as dores e as necessidades dos irmãos, é uma comunidade que não está a ser coerente com aquilo que celebra; e, nesse caso, a celebração eucarística é uma incoerência e uma mentira. O pão eucarístico que partilhamos com outros irmãos leva-nos a ser testemunhas e sinais de união e de comunhão? A participação na eucaristia torna-nos menos egoístas e mais atentos aos irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado?
  • “Comer a carne” e “beber o sangue” de Jesus implica um compromisso com esse mesmo projeto que Jesus procurou concretizar em toda a sua vida, em todos os seus gestos, em todas as suas palavras. Como Jesus, o crente que celebra a Eucaristia tem de levar ao mundo e aos homens essa vida que aí recebe… Tem de lutar, como Jesus, contra a injustiça, o egoísmo, a opressão, o pecado; tem de esforçar-se, como Jesus, por eliminar tudo o que desfeia o mundo e causa sofrimento e morte; tem de construir, como Jesus, um mundo de liberdade, de amor e de paz; tem de testemunhar, como Jesus, que a vida verdadeira é aquela que se faz amor, serviço, partilha, doação até às últimas consequências. Se a Eucaristia for, de facto, uma experiência profunda e sentida de adesão a Cristo e ao seu projeto, dela resultará o imperativo de uma entrega semelhante à de Cristo em favor dos nossos irmãos e da construção de um mundo novo. A Vida que recebemos de Jesus leva-nos ao compromisso com a transformação do mundo?
  • Jesus apresenta-se como fonte de Vida para todos aqueles que aceitam a sua proposta e decidem caminhar atrás d’Ele. Ele garante poder saciar a nossa fome de Vida eterna e verdadeira. Na verdade, todos nós andamos à procura dessa Vida, de uma Vida que nos realize. Muitas vezes fazemo-lo em caminhos equivocados e temos, depois, de lidar com a frustração e a desilusão. Constatamos, a partir de experiências amargas, que o dinheiro, o poder, a ambição, o êxito social, a marca do carro que utilizamos, a qualidade da urbanização onde vivemos, a capacidade do nosso smartphone, não saciam nossa fome de Vida. Na nossa busca de Vida, há lugar para Jesus e para a proposta de Vida que Ele faz? Estamos disponíveis para acolher as indicações de Jesus, mesmo que elas nos pareçam desfasadas dos valores que a nossa sociedade cultiva e impõe? in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UMA NOVA POSSIBILIDADE NA HISTÓRIA HUMANA

Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo XX começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por João 6,51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo XX fecha a quarta secção (João 6,41-51), e já foi lido no passado Domingo XIX. Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correta!

Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo VI do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão» ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que é a minha carne, que dá a vida» (João 6,51). A pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta acima referida por Jesus, soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).

Esclarecedor é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). Que a vida eterna, que é Jesus, entre em nós e transforme, transfigure e configure a nossa vida à maneira de viver de Jesus, eis a temática da transparência e da mútua imanência e pertença entre nós e Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.

A lição do Livro dos Provérbios, que hoje escutamos (Provérbios 9,1-6), mostra-nos a Sabedoria personificada, que edifica a sua casa, prepara o banquete, escolhe o vinho, põe a mesa, e convida todas as pessoas [= toda a humanidade] para o seu banquete. Para significar que o convite para uma nova maneira de viver é feito a todos, sem exceção, é dito que é feito dos pontos mais altos da cidade (Provérbios 9,3).

E a Carta de São Paulo aos Efésios 5,15-20 reclama também de nós uma vida nova, assente num coração inteligente que saiba ler o tempo em que estamos, discernir a vontade de Deus, decantar quotidianamente em música a Palavra de Deus e levantar a Deus permanente ação de graças. A não ser assim, teremos de nos haver com a crítica certeira de Nietzsche, que refere: «Se a Boa Nova da vossa Bíblia estivesse também escrita no vosso rosto, não teríeis necessidade de insistir tanto para que as pessoas acreditem. As vossas obras e ações deviam tornar quase supérflua a Bíblia, porque vós mesmos seríeis Bíblia nova e Boa Nova».

A música do Salmo 34, a que já nos referimos no Domingo passado (XIX), continua hoje a acompanhar-nos, realçando-se sobretudo o sabor sapiencial dos conselhos da Sabedoria personificada: «Vinde, meus filhos, escutai-me: ensinar-vos-ei o temor do Senhor» (v. 12); «afasta-te do mal e faz o bem: procura a paz e segue-a sempre» (v. 15). E continuamos hoje a cantar repetidamente o refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pedro 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome, que nos acompanha sempre.

António Couto

ASSUNÇÃO DA VIRGEM SANTA MARIA – 15 agosto 2024

Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).

            O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.

            É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.

            Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida, não por uma pressa qualquer, mas por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.

            O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).

            Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, que é a Igreja, ao mesmo tempo perseguida e preservada, grávida de um filho varão, e que sofre já as dores de parto, que dá à luz, não obstante a guerra em que está envolvida. Pode ver-se sempre por detrás também a figura de Maria. Resulta, todavia, surpreendente que este filho varão, mal nasceu foi logo arrebatado para junto de Deus. Vê-se bem que esta surpreendente representação da vida de Jesus (nasce, e é logo elevado ao céu!) cai fora das pautas tradicionais, que fazem Jesus nascer em Belém, atravessar a Paixão e a Cruz, e só depois vem a Ressurreição e a Ascensão. É claro que este nascimento messiânico dorido e vitorioso, descrito no Apocalipse, não é o de Belém, mas o da manhã de Páscoa, sendo as dores da maternidade as dores de parto da comunidade dos discípulos, vista como uma mulher que sofre para dar à luz, mas logo se alegra quando nasce o filho (cf. Jo 16,19-22). Nova maneira de ler o Calvário! Este nascimento do homem novo é visto como um «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, o do Dragão de cor vermelha, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).

            O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai. «Cristo foi ressuscitado (egêgertai: perf. pass. de egeírô) dos mortos, primícias (aparchê) dos que adormeceram» (1 Coríntios 15,20). Ele é, portanto, o primeiro Homem a ser ressuscitado. E se é o primeiro e primícias, então representa-nos a todos e constitui promessa e certeza para todos. Nele a morte foi vencida para todos. A esperança fundamenta-se na certeza deste Acontecimento principal da Vida do Senhor, que dá significado a todos os outros acontecimentos da sua Vida, ao inteiro Antigo Testamento, à Igreja e à vida de todos os homens.

            O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe, e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.

            Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.

            Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».

            No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.

            No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.

António Couto

 

ANEXOS:

Domingo XIX do Tempo Comum – Ano B – 11.08.2024

51Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente;

e o pão que Eu hei de dar é a minha carne, pela vida do mundo. Jo 6, 51

Viver a Palavra

«Somos aquilo que comemos!».

Esta expressão é popularmente repetida e hoje aparece frequentemente ligada a planos alimentares e programas nutricionais, para sublinhar que o que comemos diz muito sobre nós, sobre o que somos e sobre aquilo que defendemos. Esta frase que parece recentemente inventada por algum publicitário remonta a Hipócrates, pai da medicina, que há mais de 2500 anos divulgou esta ideia, acrescentando: «que o vosso alimento seja o vosso primeiro medicamento».

Sabemos que a alimentação é fundamental para uma vida saudável e, hoje mais do que nunca, sabemos do impacto que as nossas escolhas alimentares têm na nossa vida. Conscientes que esta página não se destina a refletir sobre planos alimentares e nutricionais, estas linhas servem apenas de prelúdio para tomarmos consciência que o «Pão vivo que desceu do Céu» não só sustenta a nossa caminhada como a configura e lhe aponta o rumo a traçar.

Como Elias temos consciência que temos um longo caminho a percorrer, ainda que tantas vezes possamos ser vencidos pelo desânimo e procuremos um junípero onde carpir as nossas misérias e soltar o nosso último suspiro. Também não nos contentamos com um pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água que entremeie o estado de apatia ou letargia em que nos encontramos, como se estivéssemos resignados a comer, beber e dormir até que o curso dos dias ache o seu fim.

Somos filhos do Deus do amor e da vida, chamados a inscrever a nossa existência num horizonte de eternidade que preenche de sentido os dias e as horas do nosso caminhar. Por isso, como nos exorta S. Paulo: «seja eliminado do meio de vós tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade». Afastemos de nós o que nos afasta de Deus e dos irmãos e sejamos construtores de uma vida verdadeiramente plena que possa fazer ecoar no coração de cada homem e de cada mulher as palavras que cantamos no Salmo: «saboreai e vede como o Senhor é bom».

Na verdade, é isto mesmo que nos revela Jesus: o nosso Deus bom e misericordioso é um Deus que somos chamados a saborear. A Sua vida entregue sem medida é pão partido e repartido para a redenção do mundo. Apresentando-se como o «Pão que desceu do Céu», Jesus depara-se com a perplexidade e admiração dos judeus que murmuram entre si sobre a loucura destas palavras. Um homem que se apresenta como alimento e, mais ainda, um alimento que vem do céu, quando eles até conhecem bem o Seu pai e Sua mãe.

Acostumados a estas palavras, não nos sentimos interpelar com a força que elas deveriam provocar em nós. Não somos alimentados por um pão qualquer, tampouco somos alimentados pelo maná que não evitou a morte daqueles que o comeram. Somos nutridos pelo Pão Vivo descido do Céu, pelo alimento que oferece vida em plenitude e prenhe de eternidade.

Jesus desce do céu, faz-se pão e oferece-se em alimento. Este é o dinamismo da incarnação que deve moldar a vida de todos aqueles que dele se alimentam: descer, fazer-se pão e oferecer-se. Nestas três formas verbais encontramos os pilares de uma vida verdadeiramente eucarística. Na verdade, se quando ingerimos algum alimento, os seus nutrientes são assimilados pelo nosso organismo, também todas as vezes que nos alimentamos do Pão da Eucaristia somos chamados a configurar a nossa vida com a vida Daquele que se quer fazer presente em nós. in Voz Portucalense

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Neste Domingo XIX do Tempo Comum tem início em Portugal a Semana Nacional da Mobilidade Humana. O tempo de férias e descanso não pode permitir esquecer quantos por motivações tão diferentes têm de se deslocar e fazer a experiência de serem estrangeiros e peregrinos. As comunidades cristãs devem estar atentas e criar processos de acolhimento e integração para que possamos anunciar a certeza que «Deus caminha com o Seu Povo», como escreve o Papa na sua mensagem para o 110º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado, a celebrar no dia 29 de setembro de 2024. A oração proposta pelo Papa, no final da mensagem, pode ser distribuída pelos fiéis e ser rezada nas diversas Eucaristias desta semana, convidando-os a terem essa intenção presente na sua oração pessoal.in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 1 Re 19,4-8

Leitura do Primeiro Livro dos Reis

Naqueles dias,
Elias entrou no deserto e andou o dia inteiro.
Depois sentou-se debaixo de um junípero
e, desejando a morte, exclamou:
«Já basta, Senhor. Tirai-me a vida,
porque não sou melhor que meus pais».
Deitou-se por terra e adormeceu à sombra do junípero.
Nisto, um Anjo do Senhor tocou-lhe e disse:
«Levanta-te e come».
Ele olhou e viu à sua cabeceira
um pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água.
Comeu e bebeu e tornou a deitar-se.
O Anjo do Senhor veio segunda vez, tocou-lhe e disse:
«Levanta-te e come,
porque ainda tens um longo caminho a percorrer».
Ele levantou-se, comeu e bebeu.
Depois, fortalecido com aquele alimento,
caminhou durante quarenta dias e quarenta noites
até ao monte de Deus, Horeb.

CONTEXTO

Elias actua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).

Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.

Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.

Após o massacre dos 400 profetas de Baal no monte Carmelo, Acab e a sua esposa fenícia juraram matar Elias; e o profeta fugiu para o sul, a fim de salvar a vida. Chegado à zona de Beer-Sheba, Elias internou-se no deserto. É precisamente nesse contexto que o episódio do Livro dos Reis que hoje nos é proposto nos situa. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • No quadro que o texto nos apresenta, Elias aparece como um homem vencido pelo medo e pela angústia, marcado pela deceção e pelo desânimo, que experimentou dramaticamente a sua impotência no sentido de mudar o coração do seu Povo e que, por isso, desistiu de lutar; a sua desilusão é de tal forma grande, que ele prefere morrer a ter de continuar. “Este” Elias testemunha essa condição de fragilidade e de debilidade que está sempre presente na experiência profética. É um quadro que todos nós conhecemos bem… A nossa experiência profética está, muitas vezes, marcada pelas incompreensões, pelas calúnias, pelas perseguições; outras vezes, é o sentimento da nossa impotência no sentido de mudar o mundo que nos angustia e desanima; outras vezes ainda, é a constatação da nossa fragilidade, dos nossos limites, da nossa finitude que nos assusta… Como responder a um quadro deste tipo e como encarar esta experiência de fragilidade e de debilidade? A solução será baixar os braços e abandonar a luta? Quem pode ajudar-nos a enfrentar o drama da desilusão e da deceção?
  • O nosso texto garante-nos que Deus não abandona aqueles a quem chama a dar testemunho profético. No “pão cozido sobre pedras quentes” e na “bilha de água” com que Deus retempera as forças de Elias, manifesta-se o Deus da bondade e do amor, cheio de solicitude para com os seus filhos, que anima os seus profetas e lhes dá a força para testemunhar, mesmo nos momentos de dificuldade e de desânimo. Quando tudo parece cair à nossa volta e quando a nossa missão parece condenada ao fracasso, é em Deus que temos de confiar e é n’Ele que temos de colocar a nossa segurança e a nossa esperança.
  • Como nota marginal, atentemos na forma de atuar de Deus: Ele não resolve magicamente os problemas do profeta, nem Se substitui ao profeta… O profeta deve continuar a sua missão, enfrentando os mesmos problemas de sempre; mas Deus “apenas” alimenta o profeta, dando-lhe a coragem para continuar a sua missão. Por vezes, pedimos a Deus que nos resolva milagrosamente os problemas, com um golpe mágico, enquanto nós ficamos, de braços cruzados, a olhar para o céu… O nosso Deus não Se substitui ao homem, não ocupa o nosso lugar, não estimula com a sua ação a nossa preguiça e a nossa instalação; mas está ao nosso lado sempre que precisamos d’Ele, dando-nos a força para vencer as dificuldades e indicando-nos o caminho a seguir.
  • A “peregrinação” de Elias ao Horeb/Sinai, para se reencontrar com as origens da fé israelita e para recarregar as baterias espirituais, sugere-nos a necessidade de, por vezes, encontrarmos momentos de “paragem”, de reflexão, de “retiro”, de reencontro com Deus, de redescoberta dos fundamentos da nossa missão… Essa “paragem” não será nunca um tempo perdido; mas será uma forma de recentrarmos a nossa vida em Deus e de redescobrirmos os desafios que Deus nos faz, no âmbito da missão que nos confiou. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33 (34)

Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.

 

A toda a hora bendirei o Senhor,
o seu louvor estará sempre na minha boca.
A minha alma gloria-se no Senhor:
escutem e alegrem-se os humildes.

Enaltecei comigo o Senhor
e exaltemos juntos o seu nome.
Procurei o Senhor e Ele atendeu-me,
libertou-me de toda a ansiedade.

Voltai-vos para Ele e ficareis radiantes,
o vosso rosto não se cobrirá de vergonha.
Este pobre clamou e o Senhor o ouviu,
salvou-o de todas as angústias.

O Anjo do Senhor protege os que O temem
e defende-os dos perigos.
Saboreai e vede como o Senhor é bom:
feliz o homem que n’Ele se refugia.

LEITURA II – Ef 4,30-5,2

Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Efésios

Irmãos:
Não contristeis o Espírito Santo de Deus,
que vos assinalou para o dia da redenção.
Seja eliminado do meio de vós
tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência
e toda a espécie de maldade.
Sede bondosos e compassivos uns para com os outros
e perdoai-vos mutuamente,
como Deus também vos perdoou em Cristo.
Sede imitadores de Deus, como filhos muito amados.
Caminhai na caridade, a exemplo de Cristo,
que nos amou e Se entregou por nós,
oferecendo-Se como vítima agradável a Deus.

CONTEXTO

A nossa segunda leitura apresenta-nos, mais uma vez, um texto dessa “carta circular” que Paulo escreveu a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor (inclusive aos cristãos de Éfeso), enquanto estava na prisão (em Roma, durante os anos 61-63?). Esta carta (escrita na fase final da vida de Paulo) é uma carta onde o apóstolo expõe aos cristãos, de forma serena e refletida, as principais exigências da vida nova que resulta do Batismo,

Na secção que vai de 4,1 a 6,20, temos uma “exortação aos batizados”: é um texto parenético, que tem por objetivo principal exortar os cristãos a viverem de forma coerente com o seu Batismo e com o seu compromisso com Cristo. A perícope de 4,14-15,14 (que inclui o nosso texto) deve ser entendida como um convite a viver de acordo com a condição de Homem Novo, que o cristão adquiriu no dia do seu Batismo.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Pelo Batismo, os cristãos tornam-se filhos amados de Deus e passam a integrar a comunidade de Deus. O Batismo não é, portanto, uma tradição familiar, um rito cultural, ou uma obrigação social; mas é um momento sério de opção por Deus e de compromisso com os valores de Deus. Tenho consciência de que me comprometi com a família de Deus e que devo viver como filho de Deus? Tenho consciência de que assumi o compromisso de testemunhar no mundo, com os meus gestos e atitudes, os valores de Deus? Tenho consciência de que devo, portanto, procurar ser perfeito “como o Pai do céu é perfeito” (cf. Mt 5,48)?
  • Para os batizados, o modelo do “Filho amado de Deus” que cumpre absolutamente os planos do Pai, é Jesus… A vida de Jesus concretizou-se na contínua escuta dos projetos do Pai e no amor total aos homens. Esse amor (que teve a sua expressão máxima na cruz) expressou-se sempre em gestos de entrega aos homens, de serviço humilde aos irmãos, de dom de Si próprio, de acolhimento de todos os marginalizados, de bondade sem fronteiras, de perdão sem limites… Dessa forma, Jesus foi o paradigma do Homem Novo, o modelo que Deus propõe a todos os outros seus filhos. Como é que me situo face a esse “modelo” que é Jesus? Como Ele, vivo numa atenção constante às propostas de Deus e disposto a responder positivamente aos seus desafios? Como Ele, estou disposto a despir-me do egoísmo, a caminhar na caridade e a fazer da minha vida um dom total aos irmãos?
  • Seguir Cristo e ser um Homem Novo implica, na perspetiva de Paulo, assumir uma nova atitude nas relações com os irmãos. O apóstolo chega a especificar que o azedume, a irritação, os rancores, os insultos, as violências, a má-língua, a inveja, os orgulhos mesquinhos devem ser totalmente banidos da vida dos cristãos. Esses “vícios” são manifestações do “homem velho” que não cabem na existência de um “filho de Deus”, cuja vida foi marcada com o selo do Espírito. É necessário que estejamos cientes desta realidade: quando na nossa vida pessoal ou comunitária nos deixamos levar pelo rancor, pelo ciúme, pelo ódio, pela violência, pela mesquinhez e magoamos os irmãos que nos rodeiam, estamos a ser incoerentes com o compromisso que assumimos no dia do nosso Batismo e a cortar a nossa relação com a família de Deus.in Dehonianos.

EVANGELHO – Jo 6,41-51

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João

Naquele tempo,
os judeus murmuravam de Jesus, por Ele ter dito:
«Eu sou o pão que desceu do Céu».
E diziam: «Não é ele Jesus, o filho de José?
Não conhecemos o seu pai e a sua mãe?
Como é que Ele diz agora: ‘Eu desci do Céu’?»
Jesus respondeu-lhes:
«Não murmureis entre vós.
Ninguém pode vir a Mim,
se o Pai, que Me enviou, não o trouxer;
e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia.
Está escrito no livro dos Profetas:
‘Serão todos instruídos por Deus’.
Todo aquele que ouve o Pai e recebe o seu ensino
vem a Mim.
Não porque alguém tenha visto o Pai;
só Aquele que vem de junto de Deus viu o Pai.
Em verdade, em verdade vos digo:
Quem acredita tem a vida eterna.
Eu sou o pão da vida.
No deserto, os vossos pais comeram o maná e morreram.
Mas este pão é o que desce do Céu
para que não morra quem dele comer.
Eu sou o pão vivo que desceu do Céu.
Quem comer deste pão viverá eternamente.
E o pão que Eu hei-de dar é a minha carne,
que Eu darei pela vida do mundo».

CONTEXTO

No seu “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), João apresenta-nos um conjunto de cinco catequeses sobre Jesus; e, em cada uma delas, usando diferentes símbolos, Jesus é apresentado como o Messias que veio ao mundo para cumprir o plano do Pai e fazer aparecer um Homem Novo. Todas essas catequeses (“Jesus, a água que dá a vida” – cf. Jo 4,1-5,47; “Jesus, o verdadeiro pão que sacia todas as fomes” – cf. Jo 6,1-7,53; “Jesus, a luz que liberta o homem das trevas” – cf. Jo 8,12-9,41; “Jesus, o Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” – cf. Jo 10,1-42; “Jesus, vida e ressurreição para o mundo” – cf. Jo 11,1-56) terminam com uma secção onde se manifesta a oposição dos judeus a essa vida nova que Jesus veio propor aos homens. João vai, dessa forma, preparando os seus leitores para aquilo que vai acontecer em Jerusalém no final da caminhada histórica de Jesus: a morte na cruz.

O texto que nos é hoje proposto apresenta-nos uma dessas histórias de confronto entre Jesus e os judeus. No final do discurso explicativo da multiplicação dos pães e dos peixes, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6,22-40), Jesus propusera-Se como “o Pão da vida” e convidara os seus interlocutores a aderirem à sua proposta para nunca mais terem fome. O nosso texto é a sequência desse episódio. Refere a murmuração dos judeus a propósito das palavras de Jesus e descreve a controvérsia que se seguiu. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Repetindo o tema central do texto que refletimos no passado domingo, também o Evangelho que hoje nos é proposto nos convida a acolher Jesus como o “pão” de Deus que desceu do céu para dar a vida aos homens… Para nós, seguidores de Jesus, esta afirmação não é uma afirmação de circunstância, mas um facto que condiciona a nossa existência, as nossas opções, todo o nosso caminho. Jesus, com a sua vida, com as suas palavras, com os seus gestos, com o seu amor, com a sua proposta, veio dizer-nos como chegar à vida verdadeira e definitiva. Que lugar é que Jesus ocupa na nossa vida? É à volta d’Ele que construímos a nossa existência? O projeto que Ele veio propor-nos tem um real impacto na nossa caminhada e nas opções que fazemos em cada instante?
  • “Quem acredita em Mim, tem a vida eterna” – diz-nos Jesus. “Acreditar” não é, neste contexto, aceitar que Ele existiu, conhecer a sua doutrina, ou elaborar altas considerações teológicas a propósito da sua mensagem… “Acreditar” é aderir, de facto, a essa vida que Jesus nos propôs, viver como Ele na escuta constante dos projetos do Pai, segui-l’O no caminho do amor, do dom da vida, da entrega aos irmãos; é fazer da própria vida – como Ele fez da sua – uma luta coerente contra o egoísmo, a exploração, a injustiça, o pecado, tudo o que desfeia a vida dos homens e traz sofrimento ao mundo. Eu posso dizer, com verdade e objetividade, que “acredito” em Jesus?
  • No seu discurso, Jesus faz referência ao maná como um alimento que matou a fome física dos israelitas em marcha pelo deserto, mas que não lhes deu a vida definitiva, não lhes transformou os corações, não lhes assegurou a liberdade plena e verdadeira (só o “pão” que Jesus oferece sacia verdadeiramente a fome de vida do homem). O maná pode representar aqui todas essas propostas de vida que, tantas vezes, atraem a nossa atenção e o nosso interesse, mas que vêm a revelar-se falíveis, ilusórias, parciais, porque não nos libertam da escravidão nem geram vida plena. É preciso aprendermos a não colocar a nossa esperança e a nossa segurança no “pão” que não sacia a nossa fome de vida definitiva; é necessário aprendermos a discernir entre o que é ilusório e o que é eterno; é preciso aprendermos a não nos deixarmos seduzir por falsas propostas de realização e de felicidade; é necessário aprendermos a não nos deixarmos manipular, aceitando como “pão” verdadeiro os valores e as propostas que a moda ou a opinião pública dominante continuamente nos oferecem…
  • Porque é que os judeus rejeitam a proposta de Jesus e não estão dispostos a aceitá-l’O como “o pão que desceu do céu”? Porque vivem instalados nas suas grandes certezas teológicas, prisioneiros dos seus preconceitos, acomodados num sistema religioso imutável e estéril e perderam a faculdade de escutar Deus e de se deixar desafiar pela novidade de Deus. Eles construíram um Deus fixo, calcificado, previsível, rígido, conservador, e recusam-se a aceitar que Deus encontre sempre novas formas de vir ao encontro dos homens e de lhes oferecer vida em abundância. Esta “doença” de que padecem os líderes e “fazedores” de opinião do mundo judaico não é assim tão rara… Todos nós temos alguma tendência para a acomodação, a instalação, o aburguesamento; e quando nos deixamos dominar por esse esquema, tornamo-nos prisioneiros dos ritos, dos preconceitos, das ideias política ou religiosamente corretas, de catecismos muito bem elaborados mas parados no tempo, das elaborações teológicas muito coerentes e muito bem arrumadas mas que deixam pouco espaço para o mistério de Deus e para os desafios sempre novos que Deus nos faz. É preciso aprendermos a questionar as nossas certezas, as nossas ideias pré-fabricadas, os esquemas mentais em que nos instalamos comodamente; é preciso termos sempre o coração aberto e disponível para esse Deus sempre novo e sempre dinâmico, que vem ao nosso encontro de mil formas para nos apresentar os seus desafios e para nos oferecer a vida em abundância. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, deve ter-se em atenção à palavra «jupero» que se repete duas vezes durante a leitura, para uma correta acentuação da palavra. Deve ter-se também em consideração as frases curtas e as intervenções em discurso direto, para uma leitura articulada e fluente.

Na segunda leitura, estar atento às formas verbais na forma imperativa que evidenciam o tom exortativo que deve pautar a proclamação deste texto. Deve haver ainda um especial cuidado com a proclamação enumeração presente no texto: «azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O PÃO QUE DÁ A VIDA

            Continuamos, neste Domingo XIX do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de João 6,41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo XVII). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (João 6,25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (João 6,41-51).

João 6,25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de João 6,25-59 mostra-se organizado em cinco secções: João 6,25-29 (a), João 6,30-33 (b), João 6,34-40 (c), João 6,41-51 (d) e João 6,52-59 (e).

O texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (João 6,41-51). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (João 6,2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (João 6,41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.

E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (João 6,42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas indiretamente, em 3.ª pessoa: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42).

Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração: «Não murmureis entre vós» (João 6,43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44). Jesus põe, portanto, fim à murmuração, isto é, ao falar mal de alguém, em 3.ª pessoa, abrindo um discurso novo, direto, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Isaías 54,13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (João 6,45). Os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. De pai para Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: só nos identificando com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos entrar em nós a vida eterna. Notável interligação: o IV Evangelho já nos tinha ensinado que é Jesus que explica o Pai (João 1,18) e que conduz ao Pai (João 14,6). Nesta passagem, é o Pai que explica Jesus e que conduz a Jesus.

Notar-se-á por debaixo do falar de Jesus o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um deles é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (João 6,45), que é uma citação de Isaías 54,13. Todavia, a música é diferente: o texto de Isaías é restritivo, pois fala de «Todos os teus filhos» (de Jerusalém). Jesus alarga a perspetiva, falando de todos em geral. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44), que tem por debaixo Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere: «Com um amor eterno, Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo (hebraico e grego) traduz bem. Entenda-se: Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!

Como os judeus cortam laços e cavam fossos, murmurando, também Elias (1 Reis 19,4-8) se afasta de Deus e do mundo e de si mesmo. Murmurando. De acordo com a murmuração de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, de pernas para o ar, já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso e desanimado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem Deus e sem sentido. Tudo somado, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais (1 Reis 19,4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo.

Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Manda o seu anjo, que lhe toca (como toca em nós um anjo?), fala-lhe, alimenta-o, e abre-lhe um caminho imenso para uma nova nascente. Também não fala mal de nós, mas ama-nos.

Na linha do que bem faz hoje o Apóstolo Paulo para nós na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, bons (chrêstoí, leitura viva: christoí) uns para com os outros, misericordiosos, perdoadores (Efésios 4,32), «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados» (Efésios 5,1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E vistas as coisas do nosso lado: «o amor não faz mal ao próximo» (Romanos 13,10).

O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (v. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9), como cantamos hoje repetidamente no refrão: «Saboreai e vede que Bom é o Senhor». Versão grega dos LXX: «Geúsasthe kaì ídete hóti chrêstós ho Kýrios», ou, na pronúncia viva: «Geúsasthe kaì ídete hóti christós ho Kýrios», o que dá lugar a um jogo de palavras (chrêstós/christós) com resultados à vista na tradição patrística, que lê o texto em clave cristológica e eucarística, cujos primeiros resultados se podem ver já na Primeira Carta de S. Pedro: «Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual, para crescerdes com ele para a salvação, se é que já saboreastes que bom é o Senhor» (hóti chrêstòs ho kýrios) (1 Pe 2,2-3). Em pronúncia viva: «que Cristo é o Senhor». Sim, vê-se daqui melhor a Bondade e o Amor fiel e comprometido, com Rosto e com Nome. Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».

À entrada de agosto,
Com o sol no rosto,
Dá Deus o descanso
De um ribeiro manso,
Uma roseira brava,
Um silêncio em lava,
Uma bilha de água,
Pão folhado a arder na frágua
Um anjo à cabeceira,
Celestial pulseira,
Com que o céu nos guia
De noite e de dia,
Pelo deserto ardente,
Rumo à nascente
Da alegria.

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVIII do Tempo Comum – Ano B – 04.08.2024

Viver a Palavra

            Atravessamos um contexto social e cultural marcado por rápidas e profundas transformações e se há uma constante no tempo em que vivemos é estar em estado permanente de mudança. Na verdade, no coração de cada homem e de cada mulher reside uma insatisfação que o faz partir à procura de um garante de estabilidade e equilíbrio que lhe ofereça um horizonte de plenitude e de sentido. Contudo, tantas vezes gastamos o nosso tempo e as nossas energias naquilo que não é capaz de satisfazer a verdade que o nosso coração anseia. Acredito que mesmo quando alguém entra num caminho mais árduo e exigente por escolhas menos acertadas e desviantes, o faz procurando o bem e a verdade, mas erra o alvo e os objetivos saem frustrados.

            Num contexto marcado pela diversificação e a diferenciação, a proposta da fé emerge como uma entre tantas outras e o itinerário crente torna-se mais exigente, pois pode carecer de atração e entusiasmo diante de tantas propostas aparentemente mais atrativas e entusiasmantes. Há, de facto, no coração humano um desejo de vida nova que tantas vezes é camuflado e aliviado pelas mudanças exteriores. Basta ver como na publicidade, repetidas vezes, surgem propostas de mudança de vida pela transformação da aparência física, com dietas e operações estéticas que procuram uma eterna juventude ou uma mudança de vida que rompa com o passado. «Sinta-se bem consigo mesmo!» é refrão que caracteriza uma sociedade do bem-estar que procura a satisfação imediata e a autorrealização pessoal. A proposta da vida cristã convida a percorrer o itinerário que nos conduz do «bem-estar» ao «bem-maior», isto é, à procura de um horizonte de plenitude e felicidade que nos faz entrar num caminho de renovação interior que cria em nós um modo novo de ser e de estar porque nos abre a um modo novo de servir e amar: «renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência e revesti-vos do homem novo, criado à imagem de Deus na justiça e santidade verdadeiras».

            As grandes transformações que o mundo anseia começam a partir de dentro, a partir do coração de cada homem e de cada mulher, e manifestam-se na vida concreta que o amor de Deus faz florescer quando a humanidade pela fé adere livremente à proposta que Deus lhe dirige. Não é uma mudança interior porque acontece no íntimo da pessoa e aí fica resguardada e escondida, mas interior porque nasce de uma opção fundamental que começa no íntimo do homem e se manifesta exteriormente, pela coerência de vida, nas ações concretas, no modo de ser e de estar no mundo.

            Aquela multidão que procura Jesus precisa ainda de purificar as suas motivações. A frontalidade das palavras de Jesus – «vós procurais-Me, não porque vistes milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes saciados» – é o convite a recentrar a nossa busca. A procura daquela multidão está ainda centrada na lógica da satisfação das necessidades mais imediatas e prementes e não na gratuidade de Deus que nos oferece muito mais do que o nosso coração deseja e nos desconcerta pelo excesso de graça que Dele recebemos. Enquanto procuramos coisas que possam preencher os nossos vazios, Deus oferece-nos uma Pessoa, Jesus Cristo, feito pão partido e repartido, que sustenta a nossa caminhada.

            Para atravessar o limiar que nos oferece vida nova e verdadeira é necessário acolher a vida plena e eterna que nos oferece o Pão que desceu do Céu, conscientes que a obra de Deus não se realiza pela conjugação do verbo fazer, mas pela capacidade de deixar Deus acontecer nas nossas vidas pela fé que depositamos no Seu amor e na Sua graça.in Voz Portucalense

                                                                  + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

            Do Domingo XVII ao Domingo XXI do Tempo Comum, interrompemos a leitura do Evangelho de S. Marcos, evangelista deste Ano Litúrgico, para escutarmos o capítulo seis do Evangelho de S. João. O capítulo do Pão da Vida, como tantas vezes é designado, é o convite a recentrar a vida cristã na Eucaristia e descobrir em Jesus, Pão Vivo descido do Céu, o alimento que sacia a nossa fome e oferece novo sentido e configuração à nossa vida. Que estes Domingos sejam a oportunidade de caminharmos juntos, renovando a consciência que a Eucaristia é «fonte e centro da vida cristã» (LG 11) e, preparando o novo ano pastoral, que possa ser a oportunidade de criativamente fazer da Eucaristia o centro da vida de cada comunidade.in Voz Portucalense

                                                            + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Êxodo 16,2-4.12-15

Naqueles dias,
toda a comunidade dos filhos de Israel
começou a murmurar no deserto contra Moisés e Aarão.
Disseram-lhes os filhos de Israel:
«Antes tivéssemos morrido às mãos do Senhor na terra do Egipto,
quando estávamos sentados ao pé das panelas de carne
e comíamos pão até nos saciarmos.
Trouxestes-nos a este deserto,
para deixar morrer à fome toda esta multidão».
Então o Senhor disse a Moisés:
«Vou fazer que chova para vós pão do céu.
O povo sairá para apanhar a quantidade necessária para cada dia.
Vou assim pô-lo à prova,
para ver se segue ou não a minha lei.
Eu ouvi as murmurações dos filhos de Israel.
Vai dizer-lhes:
‘Ao cair da noite comereis carne
e de manhã saciar-vos-eis de pão.
Então reconhecereis que Eu sou o Senhor, vosso Deus’».
Nessa tarde apareceram codornizes,
que cobriram o acampamento,
e na manhã seguinte havia uma camada de orvalho
em volta do acampamento.
Quando essa camada de orvalho se evaporou,
apareceu à superfície do deserto uma substância granulosa,
fina como a geada sobre a terra.
Quando a viram, os filhos de Israel perguntaram uns aos outros:
«Man-hu?», quer dizer: «Que é isto?»,
pois não sabiam o que era.
Disse-lhes então Moisés:
«É o pão que o Senhor vos dá em alimento».

CONTEXTO

            A secção de Ex 15,22-18,27 desenvolve um dos grandes temas do Pentateuco: a marcha pelo deserto dos hebreus libertados da escravidão no Egito. Aqui estamos, ainda, na primeira etapa dessa marcha, a que vai desde a passagem do mar (cf. Ex 14,15-31), até ao Sinai.

            Ao longo desta etapa, o tema da murmuração do Povo contra Moisés e contra Deus aparece em três episódios (cf. Ex 15,22-27; 16,1-21; 17,1-7). Em geral, esta temática desenvolve-se à volta de um esquema semelhante: diante das dificuldades que encontra no caminho, o Povo murmura, revolta-se contra Moisés e acusa Deus pelos desconfortos da caminhada; Moisés intervém e intercede junto de Deus; finalmente, Deus acaba por conceder ao Povo os bens de que este sente necessidade. Os relatos apresentam-se sempre de uma forma dramática, . prodigiosa de Deus em benefício do seu Povo.

            Provavelmente, estes relatos têm por base dificuldades concretas sentidas pelos hebreus no seu caminho pelo deserto em direção à Terra Prometida. Essas dificuldades ficaram na memória coletiva; e, mais tarde, foram utilizadas pelos teólogos de Israel com um objetivo catequético. O objetivo dos catequistas que nos legaram estes relatos nunca foi apresentar uma reportagem factual dos acontecimentos do caminho, mas sim fazer catequese. Percebe-se nas entrelinhas que a grande preocupação de quem compôs estes relatos é pôr o Povo de sobreaviso contra a tentação de procurar refúgio e segurança longe de Javé.

            O episódio que hoje nos é proposto – o episódio em que Deus oferece ao seu Povo codornizes e maná como alimento – é situado no deserto de Sin, “que está entre Elim e o Sinai, no décimo quinto dia do segundo mês após a saída da terra do Egipto” (Ex 16,1). Os estudiosos identificam o referido espaço geográfico com o território que vai de Kadesh Barnea para ocidente, nomeadamente para noroeste, onde está o Wadi El Arish.

            A história das codornizes tem por base um fenómeno que se observa, por vezes, na Península do Sinai: a migração em massa de codornizes que, depois de atravessar o mar, chegam ao Sinai cansadas da viagem, pousam junto das tendas dos beduínos e deixam-se apanhar com facilidade. A história do maná deve ter por base a secreção de uma pequena árvore (“tamarix mannifera”) existente em certas zonas do Sinai que, após ser picada por um inseto, segrega uma substância granulosa e aguada, de cor branca e com sabor a mel, que logo se coagula; os beduínos recolhem, ainda hoje, essa substância (a que chamam “man”), derretem-na ao calor do sol e passam-na sobre o pão.

            Vai ser com estes elementos – elementos que o Povo conheceu e que o impressionaram, ao longo da marcha pelo deserto – que os catequistas bíblicos vão “amassar” a catequese que nos transmitem no texto da primeira leitura deste décimo oitavo domingo comum. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Peregrinar pelos caminhos desolados do deserto e experimentar privações e carências de todo o tipo não é uma realidade improvável para nós, gente sedentária e acomodada que vive no séc. XXI e que tem mais ou menos garantidas as respostas às necessidades mais prementes. Também nós, à medida que caminhamos, experimentamos a precariedade da existência, o cansaço da caminhada, a expetativa do que nos espera lá para a frente, a instabilidade que os problemas de todos os dias trazem, a tentação de nos acomodarmos e de ficarmos para trás, o medo de deixarmos a nossa tranquila zona de conforto… E também nós, como os escravos hebreus que Javé salvou do Egito e acompanhou no caminho para a liberdade, experimentamos a presença de Deus, desse Deus libertador e salvador que nos acompanha com solicitude e amor, dando-nos a mão, pegando-nos ao colo e oferecendo-nos, com ternura, o “alimento” que nos fortalece e que nos permite continuar a caminhar. Temos consciência da presença de Deus ao nosso lado no caminho que fazemos todos os dias? Vamos reparando no seu amor previdente que nos cerca, que nos protege e que nos salva? A presença salvadora e amorosa de Deus ao nosso lado é incentivo e alimenta a nossa esperança?
  • As “saudades” que os israelitas sentem do Egipto, onde estavam “sentados junto de panelas de carne” e tinham “pão com fartura”, revelam a realidade de um Povo acomodado à escravidão, instalado tranquilamente numa vida sem perspetivas e sem saída, incapaz de enfrentar a novidade, de querer mais, de arriscar a liberdade que se constrói na luta e no compromisso. Esta mentalidade de escravidão continua, nos nossos dias, a marcar a vida e as opções de muita gente… É a mentalidade dos que vivem obcecados pelo “ter” e que são capazes de renunciar à sua dignidade para acumular bens materiais; é a mentalidade dos que trocam valores importantes pelos “cinco minutos de fama” e de exposição mediática; é a mentalidade dos que têm como único objetivo na vida a satisfação das suas necessidades mais básicas; é a mentalidade dos que se instalam comodamente nos seus esquemas cómodos, nos seus preconceitos e se recusam a ir mais além, a deixarem-se interpelar pela novidade e pelos desafios de Deus; é a mentalidade dos que vivem voltados para o passado, que idealizam o passado, recusando-se a enfrentar os desafios da história e a descobrir o que há de positivo e de desafiante nos novos tempos; é a mentalidade dos que se resignam à mediocridade e que não fazem nenhum esforço para que a sua vida faça sentido… A Palavra de Deus que nos é proposta diz-nos: o nosso Deus não Se conforma com a resignação, o comodismo, a instalação, a mediocridade que fazem de nós escravos; Ele vem ao nosso encontro, desafia-nos a ir mais além, convida-nos a crescer e a dar passos firmes em direção à liberdade e à Vida nova… Como nos enquadramos em tudo isto? Vivemos agarrados às velhas certezas e seguranças, de olhos postos no chão, ou vivemos de cabeça levantada, sempre à procura da novidade de Deus e dispostos a confrontar-nos com os desafios sempre novos que a vida traz?
  • A ideia de que Deus dá ao seu Povo, dia a dia, o pão necessário para a subsistência (proibindo “juntar” mais do que o necessário para cada dia) pretende ajudar o Povo a libertar-se da tentação do “ter”, da ambição desmedida. É um convite a não nos deixarmos dominar pelo desejo descontrolado de posse dos bens, a libertarmos o nosso coração da ganância que nos torna escravos das coisas materiais, a não vivermos obcecados e angustiados com o futuro, a não colocarmos na conta bancária a nossa segurança e a nossa esperança. Só Deus é a nossa segurança, só n’Ele devemos confiar, pois só Ele (e não os bens materiais) nos liberta e nos leva ao encontro da Vida definitiva. Onde está a nossa esperança? Como é que está organizada a nossa escala de prioridades e qual o lugar que Deus ocupa nela? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 77 (78)

Refrão: O Senhor deu-lhes o pão do céu.

Nós ouvimos e aprendemos,
os nossos pais nos contaram
os louvores do Senhor e o seu poder
e as maravilhas que Ele realizou.

Deus ordens às nuvens do alto
e abriu as portas do céu;
para alimento fez chover o maná,
deu-lhes o pão do céu.

O homem comeu o pão dos fortes!
Mandou-lhes comida com abundância
e introduziu-os na sua terra santa,
na montanha que a sua direita conquistou.

 

 

LEITURA II – Efésios 4,17.20-24

Irmãos:
Eis o que vos digo e aconselho em nome do Senhor:
Não torneis a proceder como os pagãos,
que vivem na futilidade dos seus pensamentos.
Não foi assim que aprendestes a conhecer a Cristo,
se é que d’Ele ouvistes pregar e sobre Ele fostes instruídos,
conforme a verdade que está em Jesus.
É necessário abandonar a vida de outrora
e pôr de parte o homem velho,
corrompido por desejos enganadores.
Renovai-vos pela transformação espiritual da vossa inteligência
e revesti-vos do homem novo, criado á imagem de Deus
na justiça e santidade verdadeiras.

CONTEXTO

            A controversa carta de Paulo aos Efésios é tradicionalmente incluída nas “cartas do cativeiro”. Teria sido escrita por Paulo quando estava na prisão (em Cesareia Marítima? Em Roma?). No entanto, há quem a considere obra de um discípulo do apóstolo, que a escreveu no último terço do séc. I (depois da morte de Paulo) para combater doutrinas judaico-gnósticas que ameaçavam algumas comunidades cristãs da Ásia Menor. Embora reconhecendo que a Carta apresenta uma linguagem, um estilo e até alguns desenvolvimentos teológicos diferentes dos que encontramos nas cartas genuinamente paulinas, muitos consideram, contudo, que a Carta aos Efésios poderá ser uma “carta circular” escrita por Paulo e endereçada a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor, incluindo a de Éfeso. Convencido de que tinha concluído o seu trabalho missionário no oriente, Paulo apresenta, de forma serena e refletida, uma amadurecida síntese do seu pensamento e da sua teologia. O autor da Carta expõe “o Mistério”, isto é, o projeto salvador de Deus, oculto durante séculos até ser finalmente revelado em Cristo e concretizado no testemunho e na vida da Igreja, Corpo de Cristo. Da execução desse projeto nasce um novo Povo de Deus, um Povo de Homens novos que vivem do Espírito.

            A secção da Carta aos Efésios que vai de 4,1 a 6,20 é um texto parenético, que tem por objetivo principal exortar os cristãos a viverem de forma coerente com o seu Batismo e com o seu compromisso com Cristo. Depois de convidar os crentes a viverem na unidade do amor (cf. Ef 4,1-6) e de lhes apresentar uma reflexão sobre a comunidade, Corpo de Cristo formado por muitos membros (cf. Ef 4,7-13), o autor da Carta exorta os cristãos a viverem de acordo com a sua condição de Homens Novos em Cristo (cf. 4,14-5,14). O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo oitavo domingo comum é parte dessa exortação.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A interpelação de Paulo atinge-nos especialmente a nós que fomos batizados em Cristo. É possível que não guardemos memória do dia do nosso batismo, desse momento decisivo em que o “homem velho” que existia em nós ficou sepultado na água e nasceu o “homem novo”, animado e conduzido pelo Espírito. No entanto, a opção que nesse dia fomos convidados a fazer tornou-se explícita mais tarde e, possivelmente, foi renovada em diversos momentos do nosso caminho. Talvez hoje seja um dia propício para revisitarmos o nosso batismo e para nos apercebermos das suas implicações… A celebração do nosso batismo não foi um momento de folclore religioso ou uma ocasião de cumprimento de um ritual cultural qualquer; foi o momento do nosso encontro com Cristo e da nossa adesão ao seu Evangelho; foi o momento em que aderimos à família de Deus e passamos a integrá-la; foi o momento em que recebemos o Espírito e aceitamos que a nossa vida fosse animada pelo Seu dinamismo. Temos vivido de forma coerente com essa opção?
  • Paulo convida insistentemente os crentes a deixar a vida do “homem velho”. O “homem velho” é o homem dominado pelo egoísmo, pelo orgulho, que vive de coração fechado a Deus e aos irmãos, que vive instalado em esquemas de opressão e de injustiça, que gasta a vida a correr atrás dos deuses errados (o dinheiro, o poder, o êxito, o bem-estar…), que se deixa dominar pela cobiça, pela corrupção, pela concupiscência, pela ira, pela maldade e se recusa a escutar a proposta libertadora que Deus lhe apresenta. Provavelmente, não nos revemos na totalidade deste quadro; mas não teremos momentos em que construímos a nossa vida à margem das propostas de Deus e em que negligenciamos os valores de Deus para abraçar valores que nos escravizam?
  • Paulo apela a que os crentes vivam a vida do “homem novo”. O “homem novo” é o homem continuamente atento às propostas de Deus, que aceita integrar a família de Deus, que não se conforma com a maldade, a injustiça, a exploração, a opressão, que procura viver na verdade, no amor, na justiça, na partilha, no serviço, que pratica obras de bondade, de misericórdia, de humildade, que dia a dia dá testemunho, com alegria e simplicidade, dos valores de Deus. É este o nosso “projeto” de vida? Os nossos gestos e atitudes de cada dia manifestam a realidade de um “homem novo”, que vive em comunhão com Deus, que é “sal da terra e luz do mundo, que testemunha o amor e a bondade de Deus na vida dos seus irmãos?
  • Mesmo que a nossa opção fundamental por Deus e pelos seus valores tenha sido há muito plenamente assumida, não podemos esquecer que a construção do “homem novo” nunca é um processo terminado… A monotonia, o cansaço, os problemas da vida, as influências do mundo, a nossa preguiça e o nosso comodismo levam-nos, muitas vezes, a instalarmo-nos na mediocridade, nas “meias tintas”, na não exigência, na acomodação. O “homem velho” espreita-nos a cada esquina e, na primeira oportunidade, volta a assumir o controle das nossas vidas. Precisamos de ter consciência de que em cada minuto que passa tudo começa outra vez; precisamos de renovar continuamente as nossas opções e o nosso compromisso, numa atenção constante ao chamamento de Deus. Vivemos de braços cruzados, considerando que já atingimos um nível satisfatório de perfeição, ou vivemos numa atitude de vigilância e de conversão, questionando a cada passo a direção que a nossa vida vai tomando? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,24-35

Naquele tempo,
quando a multidão viu
que nem Jesus nem os seus discípulos estavam à beira do lago,
subiram todos para as barcas
e foram para Cafarnaum, à procura de Jesus.
Ao encontrá-l’O no outro lado do mar, disseram-Lhe:
«Mestre, quando chegaste aqui?»
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
vós procurais-Me, não porque vistes milagres,
mas porque comestes dos pães e ficastes saciados.
Trabalhai, não tanto pela comida que se perde,
mas pelo alimento que dura até à vida eterna
e que o Filho do homem vos dará.
A Ele é que o Pai, o próprio Deus,
marcou com o seu selo».
Disseram-Lhe então:
«Que devemos nós fazer para praticar as obras de Deus?»
Respondeu-lhes Jesus:
«A obra de Deus
consiste em acreditar n’Aquele que Ele enviou».
Disseram-Lhe eles:
«Que milagres fazes Tu,
para que nós vejamos e acreditemos em Ti?
Que obra realizas?
No deserto os nossos pais comeram o maná,
conforme está escrito:
‘Deu-lhes a comer um pão que veio do céu’».
Jesus respondeu-lhes:
«Em verdade, em verdade vos digo:
Não foi Moisés que vos deu o pão do Céu;
meu Pai é que vos dá o verdadeiro pão do Céu.
O pão de Deus é o que desce do Céu
para dar a vida ao mundo».
Disseram-Lhe eles:
«Senhor, dá-nos sempre desse pão».
Jesus respondeu-lhes:
«Eu sou o pão da vida:
quem vem a Mim nunca mais terá fome,
quem acredita em Mim nunca mais terá sede».

CONTEXTO

            Depois da partilha dos pães e dos peixes Jesus, “sabendo que estavam prestes a vir apoderar-se dele para o fazer rei, retirou-se sozinho para o monte” (Jo 6,15). Provavelmente demorou-se por lá em oração, pois no final de cada dia Ele sentia necessidade de conversar longamente com o Pai. Os discípulos, por sua vez, meteram-se no barco dispostos a voltar a Cafarnaum. Navegaram sozinhos durante algum tempo, até que Jesus veio ter com eles, caminhando sobre o mar. Depois de Jesus ter entrado no barco, logo chegaram a Cafarnaum (cf. Jo 6,16-21).

            O episódio que o Evangelho deste décimo oitavo domingo comum nos apresenta situa-nos em Cafarnaum (cf. Jo 6,59), no dia imediatamente a seguir aos factos anteriormente narrados. Passada a noite, a multidão que tinha sido agraciada com os pães e os peixes, não encontrando Jesus e os discípulos, conjeturou que eles tinham voltado a Cafarnaum e dirigiu-se para lá. Cafarnaum, a cidade de pescadores situada na margem ocidental do Mar da Galileia, era a cidade onde Jesus se tinha instalado depois de deixar Nazaré. A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. De Cafarnaum Jesus podia facilmente dirigir-se a qualquer aldeia ou cidade da Galileia para proclamar a chegada do Reino de Deus. Alguns dos discípulos de Jesus – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.

            Jesus estava na sinagoga quando a multidão veio ao seu encontro. Naturalmente, os acontecimentos do dia anterior foram tema de conversa; e Jesus, sentindo que era necessário deixar as coisas bem claras, teve com aquela gente uma longa conversa. O que Ele disse nesse dia à multidão, na sinagoga de Cafarnaum, ficou conhecido como o “discurso do pão da vida” (cf. Jo 6,22-59. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O pão de que necessitamos diariamente para saciar a nossa fome física é algo sem o qual não podemos viver; mas não é tudo. Temos sempre a impressão de que nos falta algo para que a nossa vida seja mais plena e mais realizada. Temos sempre “fome” de mais qualquer coisa: de amor, de felicidade, de justiça, de paz, de esperança, de liberdade, de realização, de verdade, de transcendência, até dessas coisas mais ou menos fúteis que nos asseguram bem-estar e segurança… Procuramos, de mil formas, saciar essa fome; mas continuamos sempre insatisfeitos, tropeçando na nossa finitude, em respostas parciais, em tentativas falhadas de realização, em esquemas equívocos, em falsas miragens de felicidade, em valores efémeros, em propostas que parecem sedutoras mas que só geram escravidão e dependência. Por vezes, a nossa procura conduz-nos ao beco sem saída da frustração e do pessimismo; outras vezes, a nossa busca sempre repetida leva-nos ao cinismo ou ao cansaço… É esta também a nossa experiência? Como podemos “encher” a nossa vida e dar-lhe pleno significado? Onde encontrar o “pão” que mata a nossa fome de Vida?
  • O Evangelho que escutámos neste décimo oitavo domingo comum diz-nos que Jesus de Nazaré é o “pão de Deus que desce do céu para dar a vida ao mundo”. É em Jesus e através de Jesus que Deus responde à fome dos homens e lhes oferece a Vida em plenitude. Que papel desempenha Jesus na nossa vida? Para nós, Jesus é uma figura do passado (embora tenha sido um homem excecional) que a história absorveu e digeriu, ou é o Deus que continua vivo e a caminhar ao nosso lado, oferecendo-nos Vida em plenitude? Ele é “mais uma” das nossas referências (ao lado de tantas outras) ou a nossa referência fundamental? Ele é alguém a quem adoramos, com respeito e à distância, ou o irmão que nos indica o caminho, que nos propõe valores, que condiciona a nossa atitude face a Deus, face aos irmãos e face ao mundo?
  • O que é preciso fazer para ter acesso a esse “pão de Deus que desce do céu para dar a vida ao mundo”? De acordo com o Evangelho deste domingo, a resposta é clara: é preciso aderir (“acreditar”) a Jesus, o “pão” que o Pai enviou ao mundo para saciar a fome dos homens. Aderir a Jesus não é, no entanto, cumprir corretamente um código de práticas e observâncias rituais, ou termos os nossos nomes nos livros de registos de batismos, de crismas ou de casamentos na nossa paróquia; mas é criar uma ligação a Jesus, caminhar atrás d’Ele, escutar as suas palavras, aprender com os seus gestos, viver ao estilo d’Ele, identificar-se com Ele, pensar, sentir, amar, trabalhar, sofrer e viver como Ele. Como é que vivemos a nossa adesão a Jesus: como religião de crenças e de práticas externas, ou como uma religião de discípulos que seguem e vivem ao estilo do Mestre? Identificamo-nos realmente com Jesus e com o seu projeto?
  • No Evangelho deste domingo, Jesus mostra-Se profundamente incomodado quando constata que a multidão o procura pelas razões erradas e, sem preâmbulos, apressa-Se em desfazer os equívocos. Ele não quer, de forma nenhuma, que as pessoas O sigam por engano, ou iludidas. Há, aqui, um convite implícito a repensarmos as razões porque nos envolvemos com Cristo… É um equívoco procurar o Batismo porque é uma tradição da nossa cultura; é um equívoco celebrar o matrimónio na Igreja porque, assim, a cerimónia é mais espetacular e proporciona fotografias mais bonitas; é um equívoco assumir tarefas na comunidade cristã para nos autopromovermos ou para resolvermos os nossos problemas materiais; é um equívoco receber o sacramento da Ordem porque o sacerdócio nos proporciona uma vida menos problemática; é um equívoco praticarmos certos atos de piedade para que Jesus nos recompense, nos livre de desgraças, nos resolva algumas das nossas necessidades materiais… Porque é que um dia aderimos a Jesus? Porque é que ainda mantemos a nossa adesão a Jesus? Estamos plenamente convictos de que só Jesus é o “pão” que sacia a nossa fome de Vida?
  • A recusa de Jesus em realizar gestos espetaculares (como fazer o maná cair do céu), mostra que, normalmente, Deus não vem ao encontro do homem para lhe oferecer a sua vida em gestos portentosos, que deixam toda a gente espantada e que testemunham, de forma inequívoca, a sua autoridade e o seu poder; mas Deus atua na vida dos homens de forma discreta, embora duradoura e permanente. Deus vem, todos os dias, ao encontro do homem e, sem forçar nem se impor, convida-o a escutar a Palavra de Jesus, propõe-lhe a adesão a Jesus e ao seu projeto, ensina-lhe os caminhos do amor, da partilha, do serviço. Procuramos ler todos os dias, nas páginas que registam a nossa caminhada pela terra, as indicações discretas que Deus vai colocando para que nós possamos chegar à Vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em consideração as diferentes intervenções em discurso direto que devem ser articuladas com o texto narrativo, tendo particular atenção nas introduções ao discurso direto. A frase final deve ser lida afirmativa e pausadamente como conclusão de todo o texto.

            A proclamação da segunda leitura deve ser marcada pelo tom exortativo, tendo especial atenção às formas verbais no modo imperativo

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

SENHOR, DÁ-NOS SEMPRE DESSE PÃO!

            Continuamos, neste Domingo XVIII do Tempo Comum, a revisitar a página Evangélica de João 6, no caso de hoje, 6,24-35. Depois do episódio do CONDIVISÃO dos pães, Jesus afastou-se sozinho para o monte (João 6,15), e os seus discípulos entraram na Barca e atravessaram o Mar da Galileia, na direção de Cafarnaum (João 6,16-17). Em pleno Mar, foram apanhados pelo escuro, por um vento grande e pelo medo (João 6,17-20). Na verdade, iam sós, pois Jesus ainda não tinha vindo ter com eles. Mas vem, e com ele vem também a calma e a serenidade, e logo encontram rumo seguro para terra (João 6,21). Definitivamente: os discípulos de Jesus não podem andar sozinhos, sem Jesus: quando o fazem, invade-os a noite, a tormenta, o medo.

            Com o afastamento de Jesus para o monte, também a multidão ficou sozinha, mas leva mais tempo até se aperceber da sua solidão e da ausência de Jesus. O escuro não os preocupa. Passam a noite a dormir descansadamente. Só no dia seguinte se apercebem da falta de Jesus, da falta que Jesus lhes faz, e vão à procura d’Ele (João 6,22-24). Encontram-no, e manifestam a confusão neles instalada, perguntando: «Rabbî, quando vieste para aqui?» (João 6,25).

            Sem contemplações e com palavras duríssimas, Jesus desvenda logo, de forma clara e solene, a sonolência e incompreensão que os habita: «Em verdade, em verdade, vos digo: “Vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e enchestes a barriga como animais (chortázô)”» (João 6,26). A comparação é forte e de denso sabor profético. O verbo usado é chortázô, derivado de chórtos, que significa «erva seca», «feno», «palha». No dizer de Jesus, aquela multidão comeu como comem os animais. E, no fim, deitam-se a dormir. Até ao dia seguinte. A comida dos animais também é dom de Deus, mas eles não se apercebem, nem agradecem. Do mesmo modo, a multidão come e dorme. Não vê nem lê «sinais». O alimento recebido não dá que pensar e que rezar. Não se apercebe que o alimento é dom de Deus, e que remete, portanto, para Deus.

            E tão-pouco entendem que está ali o verdadeiro pão da vida (João 6,35). Não veem nem ouvem Jesus, e o sentido novo que traz para a vida das pessoas. Limitam-se a contar a história antiga do maná antigo que os seus pais comeram no deserto. Como quem diz (e nós repetimos muitas vezes o mesmo refrão viciado): «antigamente é que era!».

            E esse maná antigo era, afinal, bem pouca coisa. Mas foi «visto» como sinal da providência de Deus em pleno deserto, como ensina a lição de hoje do Livro do Êxodo 16. Trata-se do maná chamado lecanora, que se encontra desde o Irão até ao Norte de África, portanto também no norte da Península sinaítica, que é granuloso e aguado, de dimensões bem reduzidas, minúsculas, do tamanho da semente do coentro [= cerca de 5 milímetros de diâmetro], de cor branca, e tem sabor a mel (Êxodo 16,31). Trata-se, na verdade, da secreção produzida pelo tamarisco, chamado tamarix gallica ou tamarix-mannifera, após a picada de um inseto, o coccus manniparus, ou de dois, a trabutina-mannipara e o naiacoccus serpentinus.

            Afinal, é bem pouca coisa o maná. Tal como os cinco pães e os dois peixinhos. Mas, quando se vê como um dom de Deus, essa pouca coisa é tanto! Eis como admiravelmente escreve o Livro da Sabedoria, quando fala do maná: «nutriste o teu povo com um alimento de anjos, DESTE-lhe o PÃO do CÉU, com mil sabores: ele manifestava a tua DOÇURA (glykýtês, glicose). Assim os teus FILHOS QUERIDOS aprenderam, Senhor, que  NÃO É A PRODUÇÃO DE FRUTOS que alimenta os homens, mas a tua Palavra que a todos sustenta» (Sabedoria 16,20-21.26). Aí está, claro, claríssimo, o indicador correto da compreensão da chamada «multiplicação» dos pães por Jesus. Não, Jesus não faz o papel de um qualquer produtor ou empresário que faz uma operação de multiplicação de bens, para satisfazer os desejos das pessoas, em termos de consumo e de mercado. Ele distribui, reparte, partilha a Palavra de Deus, fazendo nascer desta operação um mundo novo. Já todos devíamos saber que aumentar a produção pode aumentar a ganância, mas não resolve o problema da fome ou da pobreza. Aumentar a produção não é nenhum milagre. O milagre reside na partilha! O nosso povo simples, que guarda sempre uma inteligência grata e penetrante, diz bem que «o pouco com Deus é muito; o muito sem Deus é nada!». Admirável sabedoria e sintonia com o Evangelho de Jesus!

            Jesus é a Palavra Viva, o Pão da Vida, que, no meio de nós, manifesta a Doçura ou a Glicose de Deus (cf. Sabedoria 16,21). É sempre tendo este Jesus como referência e fonte de vida nova, que devemos abandonar a antiga vida oca e vã (mátaios), a inteligência obscurecida (skótos), a alienação (apallotrióô) e a ignorância (agnôsía) de Deus, o coração endurecido (pôrôsis), que geram insensibilidade, dissolução, impureza e avidez, e, em Jesus, renovar a nossa inteligência, compreensão e sentido da vida, revestindo-nos (endýô) de hábitos novos, que não se vendem ou compram no pronto-a-vestir (Efésios 4,17-24).

            Sim, Ele está no meio de nós, mas não é nosso. Não é um sistema de produção ou de abastecimento. Ele é o Amor, a Alegria, a Vida Vivente e Eterna, Vida divina, dita zôê (João 6,33) ou zôê aiônios (João 6,27), e não bíos ou psychê, vocábulos que dizem a nossa vida corrente e o seu sustento. Ele é o Céu e o Pão descido do Céu à nossa terra, para nos fazer viver felizes e nos elevar à sua condição de Filho, filhos no Filho. Está no meio de nós, mas não o podemos reter ou possuir. Ensina-nos bem Abraham Joshua Heschel que um dom é como um vaso cheio de afeto, que se quebra logo que o recebedor o comece a considerar como seu. Senhor Jesus, dá-nos sempre desse pão!

            O Salmo 78 ensina-nos que a Bíblia é a longa história de uma salvação sempre oferecida, acolhida e, por vezes, rejeitada. Lembra-nos que as maravilhas de Deus não são para guardar no cofre da família, mas para passar, de mão em mão, de coração a coração, de pais para filhos, de geração a geração. A catequese é o anúncio de um acontecimento em carne viva que nos deve comprometer, e não de uma série de frias, enlatadas ou requentadas fórmulas ou teses teológicas.

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVII do Tempo Comum – Ano B – 28.07.2024

IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos

Viver a Palavra

            Jesus parte para o outro lado do mar… Jesus sobe ao monte… Jesus senta-se com os discípulos! O nosso Deus, em Jesus Cisto, é um Deus a caminho, que nos impele a atravessar para a outra margem, que nos conduz mais alto para contemplarmos o mundo e a humanidade de um modo novo, que nos liberta do nosso comodismo e nos ensina a arte de conceber a vida como um desafiante peregrinar. É curioso que grande parte da ação dos Evangelhos acontece a caminho, percorrendo as vilas e aldeias, o mar e o deserto, o alto do monte ou a planície. A vida cristã não é estática nem paralisadora, mas quando assumida com verdade e ousadia torna-se um lugar de inquietação e desacomodação.

            Jesus coloca-se a caminho, convoca os discípulos para caminharem com Ele e no caminho educa o Seu coração para arte de serem peregrinos. Nós, como os discípulos de outrora, queremos aprender a arte de estarmos tranquilos e serenos, enquanto nos soubermos inquietos e despertos para a missão. A vida da fé não é um conjunto de conhecimentos a adquirir, mas a entrada num dinamismo de salvação e de vida que tem a marca da incarnação, isto é, que permanentemente parte ao encontro do mundo e da realidade, transformando tudo a partir de dentro. As grandes mudanças não acontecem pela condenação ou acusação, mas pela acção concerta, generosa e gratuita que faz do mundo um lugar favorável e uma imperdível oportunidade para que a obra de Deus se realize.

            O relato da multidão saciada por Jesus é narrado pelos quatro evangelhos e Mateus e Marcos narram-no duas vezes. As diferentes versões deste relato convergem na apresentação de um Deus solícito e generoso, que em Jesus Cristo se faz próximo e sacia a nossa fome. O nosso Deus não é um Deus indiferente às nossas dores e angústias, alegrias e esperanças, fomes e sedes… É um Deus atento e misericordioso, que vê e assume consequentemente a tarefa de socorrer as nossas carências.

            Na versão de S. João que escutamos este Domingo, sublinha-se ainda mais a gratuidade e a generosidade de Jesus. Este gesto de Jesus é soberanamente gratuito, uma verdadeira ação e não apenas uma reação a um pedido dos discípulos ou à compaixão pela multidão. A Páscoa aproxima-se e sobre o monte começa já a contemplar-se a plenitude da gratuidade de Deus que se antecipa aos nossos pedidos e que nos liberta da nossa autossuficiência e egocentrismo. Jesus ensina-nos a ter um olhar largo e amplo que não pensa apenas nas necessidades e carências próprias, mas que faz suas as carências e necessidades dos homens e mulheres que se cruzam connosco no caminho.

            O primeiro aprendiz desta arte é aquele rapazito. No meio daquela multidão, tendo ouvido falar de que era necessário prover ao alimento de toda aquela gente, coloca à disposição de todos «cinco pães de cevada e dois peixes». Qual de nós teria a coragem de oferecer tão pouco para a fome de tantos? Contudo, a desproporção entre as nossas capacidades e potencialidades e as necessidades que temos diante de nós há-de sempre acompanhar-nos. Devemos aprender a confiar o nosso pouco nas mãos de Deus, para que se torne muito para bem de todos. O verdadeiro milagre acontece quando o meu pão passa a ser o nosso pão. A verdadeira surpresa é que a fome não acaba quando eu como o meu pão até ficar saciado, mas quando partilho o pouco que tenho. Ao contrário, a fome começa quando guardo só para mim o pão.

            Uma vida colocada nas mãos de Jesus, feita ação de graças ao Pai pelos dons que deposita em nossas mãos, torna-se uma vida partida e repartida que rasga horizontes de esperança e nos fala da abundância da ternura e da misericórdia que nenhuma dúzia de cestos poderá conter. in Voz Portucalense

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            No dia 28 de julho, XVII Domingo do Tempo Comum, celebramos o IV Dia Mundial dos Avós e dos Idosos, instituído pelo Papa Francisco, no dia 31 de janeiro de 2021. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem (fica em anexo) intitulada «Na velhice, não me abandones (cf. Sal 71, 9)» e desafia-nos: «não deixemos de mostrar a nossa ternura aos avós e aos idosos das nossas famílias, visitemos aqueles que estão desanimados e já não esperam que seja possível um futuro diferente. À atitude egoísta que leva ao descarte e à solidão, contraponhamos o coração aberto e o rosto radioso de quem tem a coragem de dizer «não te abandonarei!» e de seguir um caminho diferente». Este Domingo pode ser a oportunidade para realizar um conjunto de iniciativas que manifestem a proximidade da comunidade para com os mais idosos e isolados. A cultura do cuidado é a resposta para a construção de um mundo mais fraterno, como lugar de comunhão e unidade. in Voz Portucalense (adaptado)

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 2 Reis 4,42-44

Naqueles dias,
veio um homem da povoação de Baal-Salisa
e trouxe a Eliseu, o homem de Deus,
pão feito com os primeiros frutos da colheita.
Eram vinte pães de cevada e trigo novo no seu alforge.
Eliseu disse: «Dá-os a comer a essa gente».
O servo respondeu:
«Como posso com isto dar de comer a cem pessoas?»
Eliseu insistiu:
«Dá-os a comer a essa gente,
porque assim fala o Senhor:
‘Comerão e ainda há de sobrar’».
Deu-lhos e eles comeram,
e ainda sobrou, segundo a palavra do Senhor.

CONTEXTO

            As tradições proféticas sobre Elias e Eliseu (os “ciclos” de Elias e Eliseu) ocupam um espaço significativo no Livro dos Reis (cf. 1 Re 17,1-21,29; 2 Re 1,1-13,21). Referem-se a um período bastante conturbado – quer em termos políticos, quer em termos religiosos – da vida do Reino do Norte (Israel). Elias exerce a sua missão profética durante os reinados de Acab (874-853 a.C.) e de Acazias (853-852 a.C.); Eliseu dá o seu testemunho profético durante os reinados de Jorão (853-842 a.C.), de Jeú (842-813 a.C.) e de Joacaz (813-797 a.C.).

            Os reis de Israel, com a mira no desenvolvimento e na viabilidade do reino, procuraram estabelecer relações comerciais, económicas, políticas e militares com os povos circunvizinhos. Essa abertura de fronteiras teve, no entanto, os seus custos no que diz respeito à vivência religiosa, uma vez que os cultos aos deuses estrangeiros, com entrada livre no país, começaram a ocupar um lugar significativo na vida e no coração dos israelitas. É uma época de sincretismo religioso, em que a religião javista é, com a complacência e até com o apoio declarado dos reis de Israel, preterida em favor dos cultos de Baal e de Astarte. Em termos sociais, é uma época de instabilidade social e política, em que se multiplicam as injustiças contra os pobres e as arbitrariedades contra os fracos. Os israelitas fiéis viam em tudo isto um quadro de graves infidelidades contra Deus e contra a Aliança.

            É contra este “mundo” que se levantam as vozes proféticas de Elias e de Eliseu. Elias aparece como o representante desses israelitas fiéis aos valores religiosos tradicionais, que recusavam a coexistência de Javé e de Baal no horizonte da fé de Israel; e a luta de Elias será continuada por um dos seus discípulos – Eliseu.

            Parece que Eliseu – o ator principal da primeira leitura deste décimo sétimo domingo comum – fazia parte de uma comunidade de “filhos de profetas” (os “benê nebi’im” – 2 Re 2,3; 4,1). Trata-se de uma comunidade de homens que viviam pobremente (2 Re 4,1-7) e que eram os seguidores incondicionais de Javé. Encontramo-los em algumas localidades do reino de Israel, talvez em ligação com alguns santuários locais, como Betel, Jericó ou Guilgal. O Povo consultava-os regularmente e buscava neles apoio face aos abusos dos poderosos. Eliseu é apresentado muitas vezes, nas histórias narradas no “ciclo de Eliseu” (cf. 2 Re 2; 3,4-27; 4,1-8,15; 9,1-10; 13,14-21), como um profeta “dos milagres”, cujas ações poderosas mostram a presença da força e da vida de Deus no meio do seu Povo. Outras vezes, Eliseu é o profeta da intervenção política; a sua ação neste campo ultrapassa mesmo as fronteiras físicas de Israel e chega a Damasco (cf. 2 Re 8,7-15).

            O cenário do episódio da primeira leitura deste décimo sétimo domingo comum é, provavelmente, Guilgal, o santuário situado a leste de Jericó onde tinha sido erguido um monumento de pedra para comemorar a passagem do rio Jordão pelos israelitas quando entraram na Terra Prometida (Jos 4,20). Havia em Guilgal uma comunidade de “filhos de profetas” que Eliseu costumava visitar (cf. 2 Re 4,38). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O “profeta” é o rosto de Deus no mundo. Ele fala e age em nome de Deus; ele “diz”, com as suas palavras e com os seus gestos, como é que Deus encara as dificuldades e as vicissitudes dos seus filhos que caminham pela terra. Assim, ao repartir com os seus irmãos famintos o pão que lhe tinha sido dado, Eliseu não está simplesmente, por sua iniciativa, a fazer um gesto gratuito de bondade; mas está a dizer solenemente – com a linguagem dos gestos, que é ainda mais expressiva do que a linguagem das palavras – que Deus não fica indiferente quando os seus filhos e filhas estão com “fome”: fome de pão, fome de amor, fome de liberdade, fome de justiça, fome de dignidade, fome de paz, fome de realização plena, fome de esperança. Que sentimos quando ouvimos alguém dizer que Deus abandonou os homens à sua sorte e não quer saber da “fome” dos seus filhos? Como é que nós próprios entendemos e avaliamos a preocupação de Deus com os seus filhos que caminham pela história?
  • Como é que Deus atua para saciar a fome de vida dos homens? É fazendo chover do céu, milagrosamente, o “pão” de que o homem necessita? A primeira leitura deste domingo sugere que Deus atua de forma mais simples e mais normal… É através da generosidade e da partilha dos homens (primeiro do homem que decide oferecer o fruto do seu trabalho; depois, do profeta que manda distribuir o alimento) que o “pão” chega aos necessitados. Normalmente, Deus serve-Se dos homens para intervir no mundo e para fazer chegar ao mundo os seus dons. Muitas vezes sonhamos com gestos espetaculares de Deus e vivemos de olhos fixos no céu à espera que Deus Se digne intervir no mundo; e acabamos por não perceber que Deus já veio ao nosso encontro e que Ele Se manifesta na ação generosa de tantos homens e mulheres que praticam, sem publicidade, gestos de partilha, de solidariedade, de generosidade, de doação, de entrega. É preciso que aprendamos a detetar a presença e o amor de Deus nesses gestos simples que todos os dias testemunhamos e que ajudam a construir um mundo mais justo, mais fraterno e mais solidário. Temos consciência de que é através de nós, seus profetas, que Deus sacia a “fome” do mundo?
  • O gesto de partilha de Eliseu é um manifesto contra o egoísmo, contra o açambarcamento, contra a ganância, contra o fechamento em si próprio. Diz-nos que a partilha nunca empobrece, mas multiplica infinitamente os dons que Deus põe à nossa disposição. É um gesto que anuncia um mundo novo, um mundo transformado, um mundo solidário, um mundo construído ao estilo de Deus, um mundo onde todos os filhos e filhas de Deus têm lugar à mesa da Vida e da esperança. Acreditamos nesse mundo e estamos genuinamente apostados em construí-lo? Quando somos chamados a fazer opções – inclusive políticas e ideológicas – temos em conta o projeto de Deus para o mundo? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 144 (145)

Refrão: Abris, Senhor, as vossas mãos e saciais a nossa fome.

 

Graças Vos deem, Senhor, todas as criaturas
e bendigam-Vos os vossos fiéis.
Proclamem a glória do vosso reino
e anunciem os vossos feitos gloriosos.

Todos têm os olhos postos em Vós,
e a seu tempo lhes dais o alimento.
Abris as vossas mãos
e todos saciais generosamente.

O Senhor é justo em todos os seus caminhos
e perfeito em todas as suas obras.
O Senhor está perto de quantos O invocam,
de quantos O invocam em verdade.

LEITURA II – Efésios 4,1-6

Irmãos:
Eu, prisioneiro pela causa do Senhor,
recomendo-vos que vos comporteis
segundo a maneira de viver a que fostes chamados:
procedei com toda a humildade, mansidão e paciência;
suportai-vos uns aos outros com caridade;
empenhai-vos em manter a unidade de espírito
pelo vínculo da paz.
Há um só Corpo e um só Espírito,
como existe uma só esperança na vida a que fostes chamados.
Há um só Senhor, uma só fé, um só Batismo.
Há um só Deus e Pai de todos,
que está acima de todos, atua em todos
e em todos Se encontra.

CONTEXTO

            Éfeso, antiga capital da província romana da Ásia, era, nos tempos apostólicos, um dos principais centros comerciais e culturais do Mediterrâneo. Estava situada na costa oeste da Ásia Menor, junto da foz do rio Cayster, ao lado da moderna Selçuk (Turquia). A sua população rondava os 250.000 habitantes. Chegou a ser a segunda maior cidade do Império Romano, logo a seguir a Roma. As suas escolas filosóficas eram famosas em todo o Império. A vida religiosa da cidade girava muito à volta do culto a Ártemis, cujo templo era considerado umas das sete maravilhas do mundo antigo.

            Paulo contactou a comunidade cristã de Éfeso durante a sua terceira viagem missionária e acabou por permanecer na cidade durante cerca de dois anos (cf. At 19,1-40). Aí desenvolveu um meritório trabalho apostólico, do qual resultou uma Igreja viva, fervorosa e comprometida.

            A Carta aos Efésios é considerada uma “carta de cativeiro”, escrita por Paulo na altura em que estava na prisão (discute-se se em Cesareia Marítima, se em Roma, ou em qualquer outro lugar). No entanto, alguns biblistas consideram que a carta não foi escrita por Paulo. Há uma forte hipótese de ser uma “carta circular”, não dirigida especificamente à comunidade cristã de Éfeso, mas antes a um conjunto de comunidades da zona ocidental da Ásia Menor.

            Seja como for, a Carta aos Efésios é um texto bem trabalhado, que apresenta uma catequese sólida e bem elaborada. Poderia ser um texto da fase “madura” de Paulo. Muitos consideram que a Carta aos Efésios é uma espécie de síntese do pensamento paulino.

            O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo sétimo domingo comum é o início da parte moral e parenética da carta (cf. Ef 4,1-6,20). Temos, nesses três capítulos, uma espécie de “exortação aos batizados”, na qual Paulo reflete longamente sobre a edificação e o crescimento do “Corpo de Cristo” (a Igreja). Em termos sempre bastante concretos, Paulo dá pistas aos cristãos acerca da forma como eles devem viver os seus compromissos com Cristo, de maneira a serem “Homens Novos”, homens que vivem a partir do dinamismo do Espírito.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A lógica do autor da Carta aos Efésios é irrebatível: a comunidade nascida de Jesus não pode viver de outra forma senão na unidade e na comunhão. Os membros da comunidade cristã têm o mesmo Pai (Deus), têm um projeto comum (o projeto de Jesus), têm o mesmo objetivo (fazer parte da família de Deus e encontrar a Vida em plenitude), caminham na mesma direção animados pelo mesmo Espírito, têm a mesma missão (dar testemunho no mundo do projeto de amor que Deus tem para os homens). Só vivendo unidos eles podem dar um testemunho coerente de Cristo e do mandamento do amor. No entanto, não é raro encontrarmos comunidades cristãs feridas por divisões, rivalidades, invejas, ciúmes, divergências inconciliáveis, jogos de influência… Quando isso acontece é porque os membros da comunidade ainda não descobriram os fundamentos da sua fé. Como é que as comunidades cristãs de que fazemos parte vivem o sagrado “sacramento” da unidade e da comunhão? O nosso envolvimento comunitário ajuda a consolidar a unidade e a comunhão, ou é fator de divisão e de conflito?
  • Para que a unidade seja possível, Paulo recomenda aos destinatários da Carta aos Efésios a humildade, a mansidão e a paciência. São atitudes que não se coadunam com esquemas de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de preconceito em relação aos irmãos. Como é que eu me situo face aos outros? A minha relação com os irmãos é marcada pelo egoísmo ou pela disponibilidade para acolher, servir e partilhar? Procuro estar atento às necessidades dos outros e ir ao encontro de cada irmão ou irmã que necessita de mim, ou levanto muros de orgulho e de autossuficiência que impedem a comunicação, a relação, a comunhão? Estou aberto às diferenças e disposto a dialogar, ou vivo entrincheirado nos meus preconceitos, catalogando e marginalizando aqueles que não concordam comigo?
  • A Igreja é uma unidade; mas é também uma comunidade de pessoas muito diferentes, em termos de raça, de cultura, de língua, de condição social ou económica, de maneiras de ser e de ver a vida… As diferenças legítimas nunca devem ser vistas como algo negativo, mas como uma riqueza para a vida da comunidade; não devem levar ao conflito e à divisão, mas a uma unidade cada vez mais estreita, construída no respeito e na tolerância. A diversidade é um valor, que não pode nem deve anular a unidade e o amor dos irmãos. Como é que lidamos com as diferenças e as “originalidades” dos irmãos que caminham connosco? Vemo-las como algo que nos enriquece a todos, ou como ameaças à nossa “ordem” e aos nossos esquemas pessoais? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 6,1-5

Naquele tempo,
Jesus partiu para o outro lado do mar da Galileia,
ou de Tiberíades.
Seguia-O numerosa multidão,
por ver os milagres que Ele realizava nos doentes.
Jesus subiu a um monte
e sentou-Se aí com os seus discípulos.
Estava próxima a Páscoa, a festa dos judeus.
Erguendo os olhos
e vendo que uma grande multidão vinha ao seu encontro,
Jesus disse a Filipe:
«Onde havemos de comprar pão para lhes dar de comer?»
Dizia isto para o experimentar,
pois Ele bem sabia o que ia fazer.
Respondeu-Lhe Filipe:
«Duzentos denários de pão não chegam
para dar um bocadinho a cada um».
Disse-Lhe um dos discípulos, André, irmão de Simão Pedro:
«Está aqui um rapazito
que tem cinco pães de cevada e dois peixes.
Mas que é isso para tanta gente?»
Jesus respondeu: «Mandai sentar essa gente».
Havia muita erva naquele lugar
e os homens sentaram-se em número de uns cinco mil.
Então, Jesus tomou os pães, deu graças
e distribuiu-os aos que estavam sentados,
fazendo o mesmo com os peixes;
E comeram quanto quiseram.
Quando ficaram saciados,
Jesus disse aos discípulos:
«Recolhei os bocados que sobraram,
para que nada se perca».
Recolheram-nos e encheram doze cestos
com os bocados dos cinco pães de cevada
que sobraram aos que tinham comido.
Quando viram o milagre que Jesus fizera,
aqueles homens começaram a dizer:
«Este é, na verdade, o Profeta que estava para vir ao mundo».
Mas Jesus, sabendo que viriam buscá-l’O para O fazerem rei,
retirou-Se novamente, sozinho, para o monte.

CONTEXTO

            A liturgia propõe-nos hoje – e durante os próximos domingos – a leitura do capítulo 6 do Evangelho segundo João. O texto integra uma parte do Quarto Evangelho que alguns biblistas designam como o “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56). Nesse “livro”, a partir de alguns símbolos com um especial poder evocador (a “água” – cf. Jo 4,1-5,47; o “pão” – cf. Jo 6,1-71; a “luz” – cf. Jo 8,12-9,41; o “pastor” – cf. Jo 10,1-42; a “ressurreição” – cf. Jo 11,1-56), são-nos propostas diversas catequeses que definem Jesus como aquele que veio de Deus para recriar, dar Vida, fazer nascer uma humanidade nova.

            No centro da catequese que o capítulo 6 nos apresenta, está um desses símbolos: o pão. O pão era, no mundo bíblico, o elemento básico na alimentação de todos os dias. O homem bíblico não podia viver sem pão. Muitas vezes era mesmo o único alimento disponível, especialmente para os pobres. Pão era vida. Ora, esse alimento fundamental para viver era considerado um dom de Deus. Por isso, pedia-se continuamente a Deus que desse ao seu Povo o pão necessário para a subsistência de cada dia (cf. Mt 6,11). “Ter pão” era gozar do favor de Deus; “ter pão” era receber Vida de Deus. O pão acabou mesmo por ser considerado o símbolo por excelência de todos os dons de Deus. Via-se a época escatológica que havia de chegar como o tempo em que Deus ofereceria ao seu Povo um pão abundante, nutritivo e saboroso (cf. Is 30,23), o “pão da Vida” definitiva. Por outro lado, o pão era para ser partilhado. “Partilhar o pão” era reunir outras pessoas à mesa familiar; “partilhar o pão” com alguém era estabelecer laços íntimos, laços familiares com essa pessoa; partilhar o pão era criar comunidade, uma comunidade unida por laços fraternos. Tudo isto está subjacente à catequese sobre Jesus como “Pão da Vida” que este capítulo nos apresenta.

            O cenário do episódio que o Evangelho deste décimo sétimo domingo comum nos apresenta situa-nos “na outra margem” do Lago de Tiberíades, no cimo de um monte não identificado (no capítulo anterior, Jesus estava em Jerusalém, no centro da instituição judaica; agora, sem transição, aparece na Galileia). A tradição cristã considera que essa “outra margem” não seria o lado oriental do lago, mas sim a zona de Tabga, não longe de Cafarnaum. Em termos cronológicos, João nota que estava perto a Páscoa, a festa mais importante do calendário religioso judaico, que celebrava a libertação do Povo de Deus da opressão do Egipto. É possível que a referência à Páscoa funcione, nesta catequese joânica, como um convite a que o leitor entenda a narração como figura da Páscoa e da instituição da eucaristia. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A preocupação de Jesus com a “fome” daquela multidão que O segue, sinaliza a preocupação de Deus em dar a todos os seus filhos e filhas Vida em abundância. É uma boa e bela notícia: Deus preocupa-se connosco, com a nossa carências e dificuldades, e está verdadeiramente empenhado em proporcionar-nos o “alimento” de que necessitamos para construirmos vidas com sentido. Estamos e estaremos sempre no coração de Deus; Ele encontrará sempre forma de vir ao nosso encontro para nos oferecer a sua Vida. Sabemos isto? Sentimo-nos acompanhados por Deus, mesmo quando nos parece que caminhamos de mãos e de coração vazio? Confiamos na bondade, no cuidado e no amor de Deus?
  • Apesar da generosidade de Deus, os dons que Ele coloca à nossa disposição nem sempre chegam à mesa de todos. Sabemos porquê: alguns homens e mulheres, por egoísmo e ganância, açambarcam os dons que pertencem a todos os filhos e filhas de Deus. Isso é subverter o projeto de Deus e condenar os irmãos a passar necessidades. Que sentimos em relação a isso? Temos consciência de que os nossos hábitos consumistas e esbanjadores podem estar a causar sofrimento e dificuldade aos irmãos que caminham ao nosso lado? A nossa preocupação excessiva com o nosso bem-estar não será uma injustiça que priva muitos dos nossos irmãos de dons de Deus que também lhes pertencem por direito?
  • O “pão” que Jesus faz distribuir à multidão faminta refere-se a algo mais do que o pão material que mata a nossa fome física. Aquelas pessoas que correm atrás de Jesus para saciar a sua “fome” são aqueles homens e mulheres que, todos os dias encontramos nos caminhos que percorremos e que, de alguma forma, estão privados daquilo que é necessário para viver uma vida digna… Os “que têm fome” são os que são explorados e injustiçados e que não conseguem libertar-se; são os que vivem na solidão, sem família, sem amigos e sem amor; são os que têm que deixar a sua terra e enfrentar uma cultura, uma língua, um ambiente estranho para poderem oferecer condições de subsistência à sua família; são os marginalizados, abandonados, segregados por causa da cor da sua pele, por causa do seu estatuto social ou económico, ou por não terem acesso à educação e aos bens culturais de que a maioria desfruta; são as crianças que sofrem violência; são as vítimas da economia global, cuja vida dança ao sabor dos interesses das multinacionais; são os que são espezinhados pelos interesses dos grandes do mundo… Que outras “fomes” conhecemos e que poderíamos acrescentar a esta lista?
  • Jesus dirige-Se aos seus discípulos e diz-lhes, referindo-se à multidão faminta: “dai-lhes vós mesmos de comer”. Fica assim clara a responsabilidade dos discípulos de Jesus em saciar a “fome” do mundo e em repartir o “pão” que mata a fome de vida, de justiça, de liberdade, de esperança, de felicidade de que os homens sofrem. Depois disto, nenhum discípulo de Jesus pode olhar tranquilamente os seus irmãos com “fome” e dizer que isso não lhe diz respeito; depois dasquelas palavras de Jesus, o egocentrismo e a autossuficiência deixaram de ser opção para todos aqueles que se comprometeram a construir o Reino de Deus… Como é que nos situamos em relação aos nossos irmãos vítimas do sofrimento, da maldade, da injustiça, da indiferença? Estamos conscientes de que a “fome” que faz sofrer os nossos irmãos também é um problema que nos diz respeito?
  • Os discípulos, questionados por Jesus, constatam que, recorrendo ao sistema económico vigente, é impossível responder à “fome” dos necessitados. O sistema capitalista vigente – que, quando muito, distribui a conta gotas migalhas da riqueza para adormecer a revolta dos explorados – será sempre um sistema que se apoia na lógica egoísta do lucro e que só cria mais opressão, mais dependência, mais necessidade. Não chega criar melhores programas de assistência social ou programas de rendimento mínimo garantido, ou outros sistemas que apenas perpetuam a injustiça e a dependência… Jesus propõe algo de realmente diferente: propõe uma lógica de partilha solidária. Os discípulos de Jesus são convidados a reconhecer que os bens são um dom de Deus para todos os homens e que pertencem a todos; são convidados a quebrar a lógica do açambarcamento egoísta dos bens e a pôr os dons de Deus ao serviço de todos. Como resultado, não se obtém apenas a saciedade dos que têm fome, mas um novo relacionamento fraterno entre quem dá e quem recebe, feito de reconhecimento e harmonia, que enriquece ambos e é o pressuposto de uma nova ordem, de um novo relacionamento entre os homens. Para nós, esta proposta faz sentido? Estamos disponíveis para a acolher e implementar na nossa vida e no nosso mundo?
  • No seu serviço aos “famintos”, os discípulos de Jesus nunca deverão apresentar-se com arrogância ou com tiques de superioridade; e nunca deverão usar a “caridade” para servir os seus interesses ou os seus projetos pessoais. Deverão agir com humildade e simplicidade (a “criança” do Evangelho), apenas preocupados em servir os irmãos com “fome”. Como é que nos apresentamos diante dos irmãos que necessitam da nossa ajuda para saciar a sua “fome” de Vida? Com arrogância e superioridade, ou com humildade e amor? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura devem ter cuidado na pronunciação da palavra Baal-Salisa (Báál-Salisa) e ter em atenção os verbos que introduzem o discurso: «disse», «respondeu» e «insistiu».

            A segunda leitura é constituída por duas partes distintas e a proclamação deve refletir isso mesmo. Devem ter especial cuidado na repetição da expressão: «Há um só…». As repetições devem ser proclamadas com especial cuidado para que se possa aproveitar toda a expressividade do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ONDE COMPRAREMOS PÃO?

            O grande texto que forma o Capítulo 6 do Evangelho de João, e que vamos ter a graça de escutar nestes cinco Domingos, pode dividir-se em seis Partes: a primeira Parte, que funciona como Introdução ou preparação do cenário, engloba os v. 1-4 e apresenta as personagens (Jesus, uma grande multidão, os discípulos), o lugar (na «outra margem do mar da Galileia», na «montanha») e o tempo («estava próxima a Páscoa dos judeus»); a segunda Parte, que se estende pelos v. 5-15, abre com uma pergunta pedagógica de Jesus dirigida a Filipe («Filipe, onde compraremos pão para que eles comam?»), não corretamente respondida por Filipe e André, mas resolvida por Jesus; a terceira Parte, que compreende os v. 16-21, mostra-nos os discípulos a atravessar, no escuro, o mar encapelado, e Jesus vindo ao seu encontro caminhando sobre o mar; a quarta Parte, entre os v. 22-24, apresenta-nos um novo começo, no dia seguinte, mostrando-nos a multidão que nota a ausência de Jesus e parte à sua procura para Cafarnaum; a quinta Parte, que compreende a longa extensão de texto entre os v. 25-59, traz para a cena a importante discussão, travada entre Jesus e a multidão ou os judeus, sobre o pão vindo do céu; a sexta Parte, que contempla os últimos versículos (v. 60-71), estende a discussão aos discípulos, mostrando a deserção de muitos (v. 60-66), em contraponto com a confissão de fé de Pedro (v. 67-71).

            Dois Capítulos à frente de João 4, em João 6 (este agrafo de João 4 a João 6 é oportuno e necessário), diz-nos o narrador que Jesus subiu à montanha, que se sentou lá com os seus discípulos, e que uma grande multidão acorria a Jesus (João 6,3 e 5). É nessas circunstâncias que Jesus retoma o tema do alimento. Descendo agora ao nível dos discípulos, Jesus diz a Filipe: «Onde (póthencompraremos (agorázô) pão para que eles comam?» (João 6,5). De facto, o verbo comprar é corrente nos lábios dos discípulos, mas é estranho na boca de Jesus. No cenário anterior, de Jesus e da Samaritana (João 4), os discípulos passam quase o tempo todo a comprar, enquanto Jesus fala de dar, e dá-se mesmo.

            Na chamada «primeira multiplicação dos pães», que podemos ler nos Evangelhos de Mateus e de Marcos, Jesus recusa mesmo a solução de comprar (agorázô), avançada pelos discípulos, e propõe a de dar (dídômi) (Mateus 14,15-16; Marcos 6,36-37). Por que será, então, que Jesus fala agora de comprar, ainda para mais conjugando o verbo na 1.ª pessoa do plural, Ele incluído: «Onde compraremos»? Mas a questão não é apenas sobre comprar. É sobre «Onde comprar». Face à lógica da misericórdia, da condivisão e da partilha proposta por Jesus, já os discípulos, céticos, se tinham perguntado: «“De onde” (póthen) poderá alguém saciar estas pessoas de pães num lugar deserto?» (Marcos 8,4). Esse «Onde» (póthen) já tinha sido ouvido em João 1,48, quando Natanael pergunta a JESUS: «“De onde” (póthen) me conheces?». Será também ouvido em João 2,9, em que o narrador nos informa que o chefe-de-mesa «não sabia “de onde” (póthen) era» a água feita vinho. Da mesma forma, Nicodemos também não sabe, acerca do Espírito, «“de onde” (póthen) vem nem para onde vai» (João 3,8). Tal como a mulher samaritana não sabe «“de onde” (póthen) Jesus tira a água-viva (João 4,11). E as autoridades de Jerusalém confirmam que, «quando vier o Cristo, ninguém saberá “de onde” (póthen) Ele é» (João 7,27). E, mais à frente, em polémica com os fariseus, Jesus afirma: «Eu sei “de onde” (póthen) venho; vós, porém, não sabeis “de onde” (póthen) venho» (João 8,14). E na cena da cura do cego de nascença, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos “de onde” (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é espantoso: vós não sabeis “de onde” (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Na narrativa do IV Evangelho, tudo isto conflui para a questão posta por Pilatos: «“De onde” (póthen) és TU?» (João 19,9). E, no Evangelho de Lucas, Isabel também exclama: «“De onde” (póthen) a mim isto: “Que venha a mãe do meu Senhor ter comigo?”» (Lucas 1,43). E, no Evangelho de Marcos, como no de Mateus, os conterrâneos de JESUS, apontando as Suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares que, na mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa, exclamam acerca d’ELE: «“De onde” (póthen) a ESTE estas coisas, e que sabedoria é esta a ESTE dada, e os prodígios que pelas mãos d’ELE vêm?» (Marcos 6,2; cf. Mateus 13,54.56).

            Retornando à pergunta feita a Filipe: «Onde comparemos pão para que eles comam?» (João 6,5), o narrador anota outra vez com perspicácia que Jesus disse isto para pôr Filipe à prova (peirázô), pois bem sabia o que havia de fazer (João 6,6). Com esta anotação, o narrador deixa-nos declaradamente perante uma pergunta pedagógica, um teste, pelo que ficamos à espera de saber se Filipe reúne ou não competência para resolver o problema. E, enquanto temos os olhos postos em Filipe, e dado que se trata de um teste, também nós nos vamos perguntando: «E eu, será que saberei responder e resolver o teste?

            Não temos de esperar muito tempo. Filipe é rápido a fazer contas, e diz logo que duzentos denários (um denário corresponde ao salário de um dia) de pão não chegam para que cada um receba ainda que seja só uma migalhinha (João 6,7). O leitor atento, mas incauto, é com certeza levado a concordar com Filipe. Se a pergunta é: «Onde comprar pão», o leitor pensará logo certamente como Filipe no dinheiro e no shopping. E será também levado a concluir que, para tanta gente, feitas as contas em termos de mercado, pouco ou nada haverá a fazer. Mas o «leitor implícito» ou «leitor modelo», que a análise narrativa ou narratologia define como aquele que está apto a fazer as operações mentais e afetivas que o mundo do relato dele requer, terá certamente estranhado que Filipe se tenha deixado levar tão depressa pelo verbo «comprar» da pergunta de Jesus, dado que se trata de um verbo que Jesus não só não usa, como até recusa.

            André, que estava ali ao lado e que também terá ouvido a pergunta, passa a Jesus a informação preciosa de que havia ali um rapazito (paidárion) que tinha cinco pães de cevada e dois peixinhos, mas apressou-se logo a minar a utilidade do achado, dada a imensa desproporção entre tão pouco alimento e tanta gente (João 6,8-9). Se a lógica de mercado de Filipe o levou, e a nós com ele, a desistir rapidamente de apresentar uma solução positiva à pergunta de Jesus, a lógica de André levou-o, e a nós outra vez também com ele, a desvalorizar os dons que descobrimos nos outros, nomeadamente nos nossos irmãos mais pequeninos.

            Parece agora claro para o leitor que a pergunta de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?», não obteve de Filipe a resposta adequada, e que a ajuda de André tão-pouco se terá revelado satisfatória.

            Filipe ouviu a pergunta de Jesus. E André, pelos vistos, também a ouviu. Mas nem Filipe nem André sabiam que se tratava de uma prova, de um teste. Só o leitor o sabe, porque foi disso informado pelo narrador. E então a pergunta agora é: e eu e tu, leitores informados, será que sabemos resolver a questão que Filipe e André deixaram sem resposta? Ou será que preferimos prestar toda a nossa atenção ao desempenho de Jesus, dado que também fomos informados de que ele sabia bem o que havia de fazer? A ação de Jesus reclama a nossa atenção.

            Soberanamente, Jesus, que bem sabia o que havia de fazer, ordenou àqueles discípulos, com certeza estupefactos, que fizessem reclinar (anapíptô) as pessoas (ánthrôpoi) para comer (João 6,10). O verbo usado, anapíptô, implica mesmo dispor-se à mesa para comer. O narrador anota agora que «os homens (ándres) eram em número de cerca cinco mil», a que acrescenta a sugestiva anotação de que «havia muita erva (chórtos) naquele lugar» (João 6,10). Depois, Jesus, que preside à mesa, RECEBEU (lambánô) os pães, e TENDO DADO GRAÇAS (eucharistéô), DISTRIBUIU-OS (diadídômi) ele mesmo aos que estavam reclinados à mesa (anakeiménois), e o mesmo fez com os peixinhos, tanto quanto queriam (João 6,11). Ficámos a saber que Jesus recolheu a informação preciosa de André acerca dos pães e dos peixinhos do rapazito, e que, ao contrário de André, não os depreciou. E quando todos foram saciados (eneplêsthêsan), Jesus, que preside à mesa, deu ordens aos seus discípulos para que reunissem (synágô) os pedaços que sobraram (perisseúô). Note-se que o verbo usado para dizer «sobrar» é o verbo perisseúô, que implica o excesso que ultrapassa toda a medida e a abundância que transborda, tornando curtas todas as nossas normas, regras e medidas. É assim normal que o narrador nos informe de que, com os pedaços que sobraram, os discípulos encheram doze cestos (João 6,12-13), símbolo da plenitude transbordante e inesgotável.

            De notar que, aos olhos atónitos dos discípulos e dos nossos, Jesus não fez uma operação de «multiplicação» dos pães, mas de «divisão» e «com-divisão», «partilha» dos pães! O milagre de Jesus – aquilo que suscita surpresa e maravilha – não consiste em aumentar a quantidade do pão (que permanece a mesma), mas em abrir os olhos aos seus discípulos e a nós que, como cegos, só conhecemos e pensamos na lógica do mercado, do vender e do comprar, e não chegamos a saborear a lógica da gratuidade, que é a do nosso Pai celeste que faz nascer o sol para os bons e para os maus. Entrar nesta lógica é acreditar na força do dom, e ir por este mundo consumista, partindo o pão e dividindo-o, com a clara consciência de que onde isto acontecer, não só se instaura o necessário para todos («todos comeram e foram saciados»), mas instaura-se igualmente o «excesso», a superabundância da graça («os discípulos encheram doze cestos»).

            A multidão, porém, face ao sucedido, não viu o «excesso», a superabundância da graça (Romanos 5,20; 1 Timóteo 1,14), mas tornou-se apenas materialmente dependente de Jesus, procurando-o por toda a parte (João 6,24), como se de verdadeira fonte de rendimento se tratasse (velha lógica consumista). E, quando o encontra no «outro lado do mar» (João 6,25), é duramente recriminada por Jesus, com estas palavras solenes: «Em verdade, em verdade, vos digo: “vós procurais-me, não porque vistes sinais, mas porque comestes dos pães e vos enchestes (chortázô)”» (João 6,26). E continua: «Trabalhai, não pelo alimento que perece, mas pelo que permanece até à vida eterna» (João 6,27).

            Pouco depois, Jesus revelará: «Eu sou o pão da vida» (João 6,35 e 48) e «Eu sou o pão vivo descido do céu» (João 6,41 e 51), e retirará daí um rol de consequências em termos da sua carne e do seu sangue dados para a vida do mundo. Jesus compreende então que os judeus e os seus discípulos murmuravam por causa disso (João 6,61), e o narrador informa-nos que muitos deles se afastaram de Jesus (João 6,66). É então a hora decisiva de Jesus perguntar aos Doze: «Vós também quereis ir embora?» (João 6,67), ao que Simão Pedro responderá exemplarmente: «Senhor, a quem iremosTu tens palavras de vida eterna» (João 6,68).

            O leitor que seguiu atentamente tudo desde o princípio, desde a primeira pergunta pedagógica de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?», e que assistiu ao falhanço das respostas dos discípulos, e que terá, porventura, verificado a sua própria incapacidade para responder, e que prestou depois toda a atenção ao desempenho de Jesus, e que viu entretanto a deserção de judeus e discípulos dececionados, terá com certeza compreendido a última resposta de Simão Pedro: «Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna», como a verdadeira resposta à primeira pergunta pedagógica de Jesus. Com a resposta de Pedro, fica estabelecida a conjunção entre palavra e alimento. Mas falta ainda um agrafo que explique aquele estranho verbo comprar, estranhamente usado por Jesus. É um trabalho de casa que o leitor competente tem de fazer sozinho. E nem é difícil, pois ele sabe que é preciso conhecer as Escrituras. Percorrendo-as, encontrará esta passagem de Isaías:

«Todos vós, que tendes sede, vinde às águas! Vós, que não tendes dinheiro, vinde! Comprai (agorázô LXX) cereal e comei! Comprai cereal sem dinheiro, e sem pagar, vinho e leite. (…) Ouvi-me, ouvi-me, e comei o que é bom!» (Isaías 55,1-2).

            Está aqui o elo que faltava: o verbo comprar, significativamente não agrafado com dinheiro. Comprar cereal sem dinheiro. Mas esta lição de Isaías reforça ainda a conjunção entre palavra e alimento, com aquela proposta: «Ouvi-me, ouvi-me e comei!», que soa também a abrir o Livro do grande profeta: «Se vierdes e escutardes, o melhor da terra (tûb ha’arets) comereis» (Isaías 1,19), clarificada pelo confronto: «Mas se vos recusardes (ma’na) e vos rebelardes (marah), será a espada que vos comerá» (Isaías 1,20). Mas também sai esclarecida ainda aquela disjunção mostrada por Jesus entre «o alimento que perece» e «o que permanece até à vida eterna» (João 6,27). O que perece é a «erva» (ou «feno») (chórtos), seja ela qual for, que compramos com dinheiro e nos cala a boca e enche (chortázô) o estômago, fartando-nos como animais (cf. João 6,26). O que permanece é a palavra que Deus diz, e que é por nós ouvida, recebida e respondida. Mas esta disjunção, a que podemos agora acrescentar a sugestiva anotação de que «havia muita erva (chórtos) naquele lugar» (João 6,10), pode ainda ser mais bem explicitada se lermos outro texto de Isaías:

«(…) Toda a carne é erva (chórtos LXX), e toda a sua graça como a flor do campo. Seca a erva (chórtos LXX) e murcha a flor, mas a palavra do Senhor permanece para sempre» (Isaías 40,6 e 8).

            Os leitores que se julgam supercompetentes, mas que na verdade nada entendem, gostam de ver na anotação de que «havia muita erva naquele lugar» a evocação do Salmo 23,2:

«O Senhor é meu pastor, nada me falta: num lugar de ‘erva verde’ (tópos chlóês LXX) me faz repousar».

Nem reparam que o vocabulário não é o do Salmo. O leitor instruído nas Escrituras saberá agora responder à estranha pergunta de Jesus: «Onde compraremos pão para que eles comam?» É claramente em Deus. Também este cenário transborda de pedagogia. Jesus que, no cenário anterior (João 4), desceu ao nível da mulher da Samaria para ganhar a mulher da Samaria, desce agora ao nível dos discípulos para ganhar os discípulos (João 6). A iniciativa é sempre de Jesus. Os discípulos tinham ficado na linha do comprar (João 4). É aí que Jesus os vai buscar, formulando a pergunta: «Onde compraremos pão, para que eles comam?» (João 6,5). Vimos atrás que o verbo «comprar» é estranho na boca de Jesus, mas usual na dos discípulos. Usando agora o verbo «comprar», Jesus desce ao nível dos discípulos. Não, porém, simplesmente para dizer com eles, mas para os levar a dizer com ele. Depois de muitos mal-entendidos e deserções, uma última interpelação de Jesus acaba por lhes dar a oportunidade de se dizerem com Jesus. A multidão é levada pelo interesse meramente material, tornando-se dependente, no mau sentido, de Jesus. É duramente recriminada por Jesus. O leitor encontra, neste cenário, um jogo de muitas surpresas, de muitos olhares. E é o leitor o que mais tem a ganhar, se verdadeiramente entrar no jogo empenhativo do relato.

A narrativa do Segundo Livro dos Reis (4,42-44) reclama já as diferentes cenas de «multiplicação» dos pães presentes nos Evangelhos. Nos Evangelhos, é Jesus o protagonista. Em 2 Reis 4,42-44 é o profeta Eliseu que, com vinte pães de cevada alimenta até à saciedade cem pessoas. Claro que por detrás do profeta está sempre a Palavra de Deus que tudo orienta e clarifica: «Comerão e ainda sobrará» (2 Reis 4,43). E assim sucedeu. E assim sucederá ao longo das páginas da Escritura Santa. Experimente o leitor.

São Paulo lembra-nos, na lição da sua Carta aos Efésios 4,1-6, que a fome não é só de pão. É também de paz e de unidade. A matar esta fome que nos vai matando, lá está, reafirma Paulo, um só Senhor, um único Espírito, um só Deus e Pai de todos. Não há dúvida: uma comunidade unida e reunida sabe partilhar com alegria. E é assim que se resolvem todas as fomes, também a de pão.

Fica bem hoje cantar com alegria renovada o grande hino alfabético que é o Salmo 145, até que vibrem as cordas do nosso coração. E enquanto saboreamos as imensas riquezas que nos vêm de Deus: a sua graça, misericórdia, amor e bondade (Salmo 145,8-9), usando, para o efeito, toda a gama de sabores e todas as letras do alfabeto, continuemos a cantar: «Abris, Senhor, a vossa mão, e saciais a nossa fome!» (Salmo 145,16).

António Couto

ANEXOS:

Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024

Viver a Palavra

O Evangelho deste Domingo parece colocar-nos em sintonia com o tempo de férias que se avizinha. Poderia ser até um bom slogan para uma agência de viagens: «Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco». Contudo, não se trata da instituição bíblica das férias, nem uma canonização do nada fazer, mas a certeza de que Deus quer que todo o trabalhador conheça o merecido repouso e que todo aquele que se gasta possa descansar.

Os apóstolos regressam da sua primeira grande missão! Tinham sido enviados por Jesus com uma missão muito concreta e indicações precisas. Tinham partido dois a dois e, seguindo as instruções de Jesus, contemplaram maravilhas e milagres que, efetivamente, nunca tinham pensado realizar: «os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento, expulsaram muitos demónios, ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos» (Mc 6,12). Agora é hora de regressar a Jesus e começam a contar tudo quanto tinham feito e ensinado. Como foi bela esta partilha! Cada a um a seu modo a narrar as maravilhas que Deus tinha realizado através deles. Com certeza, acontecimentos e milagres tão diferentes, mas todos preenchidos pela alegria da missão, pela certeza de que é Deus quem opera através das suas frágeis mãos.

Jesus não é indiferente aos trabalhos e canseiras daqueles que são enviados em missão. Escutando paciente e atenciosamente a partilha que faz cada um deles, desafia-os a um tempo de repouso num lugar isolado. Jesus quer o nosso merecido repouso. Jesus deseja que cada um possa encontrar o merecido tempo de serenidade e tranquilidade para renovar as forças e partir de novo em missão. Mas, mais do que isso, que cada um saiba fazer do tempo de repouso um tempo privilegiado de encontro com Deus, nosso rochedo seguro onde podemos encontrar abrigo e conforto.

Diante da missão que o Senhor deposita em nossas mãos, é fácil e tentador deixarmo-nos levar por um ativismo estéril que cria em nós a ilusão de estarmos sempre em trabalho indispensável e imprescindível, esquecendo que o descanso é querido por Deus e condição necessária para a missão que realizamos: «devemos conceber a nossa vida como um serviço por amor. As vinte e quatro horas do nosso dia. Porque mesmo quando estamos a dormir estamos em serviço de Deus que depois do nosso trabalho quer o nosso merecido repouso» (Padre Virginio Rotondi). Descansar é um modo de servir o Senhor, quando o tempo de repouso é lugar para ganhar forças para o caminho e tempo privilegiado de encontro com Aquele que é o refúgio e conforto para as nossas fadigas e feridas.

Como seria belo se o nosso tempo de repouso e descanso pudesse ser tempo e lugar para contar a Jesus quanto temos feito e ensinado como fizeram os discípulos. Neste tempo de férias que se aproxima, poderia ser este o nosso compromisso: encontrar tempo para estar com Jesus, para reler a nossa vida à luz da Sua palavra e da Sua graça. Jesus conhece a nossa vida e sabe bem o que temos feito. Contudo, mais do que Ele, somos nós que precisamos de tomar consciência quais as prioridades da nossa vida, o que tem marcado o ritmo dos nossos dias, ao serviço de quem temos colocado as nossas forças…

Que o olhar compassivo de Jesus sobre as multidões que são como «ovelhas sem pastor» eduque o nosso olhar, afine o nosso coração e marque o ritmo da nossa existência. E nos dias mais exigentes e difíceis sintamos este olhar de Jesus ser derramado sobre nós e encontremos no Seu coração manso e humilde o alento e conforto de que precisamos. in Voz Portucalense

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Tempo de (FÉ) rias. «Vinde comigo para um lugar isolado e descansai um pouco». As palavras de Jesus no Evangelho deste Domingo são um bom mote para este período estival em que muitas famílias aproveitam para gozar um tempo de férias e descanso. Que as merecidas férias do trabalho e do frenesim diário não permitam um tempo de férias para a fé e para a nossa relação com Cristo. Pelo contrário, que este tempo possa ser uma ocasião privilegiada para um renovado encontro com Cristo quer a nível pessoal, quer em família e em comunidade. Descansar com Jesus, encontrar Nele descanso e como os discípulos aproveitar esse tempo para lhe dizer «tudo o que tinham feito e ensinado»: eis um bom programa para férias que em nada diminui o lazer e o descanso, mas que oferece novo sentido ao tempo. Que possa ser um tempo de reler a vida com Jesus e ganhar um novo folgo e entusiasmo para o regresso ao trabalho e aos afazeres quotidianos. in Voz Portucalense (adaptado)

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jeremias 23,1-6

Diz o Senhor:
«Ai dos pastores que perdem e dispersam
as ovelhas do meu rebanho!»
Por isso, assim fala o Senhor, Deus de Israel,
aos pastores que apascentam o meu povo:
«Dispersastes as minhas ovelhas
e as escorraçastes, sem terdes cuidado delas.
Vou ocupar-Me de vós e castigar-vos,
pedir-vos contas das vossas más ações
– oráculo do Senhor.
Eu mesmo reunirei o resto das minhas ovelhas
de todas as terras onde se dispersaram
e as farei voltar às suas pastagens,
para que cresçam e se multipliquem.
Dar-lhes-ei pastores que as apascentem
e não mais terão medo nem sobressalto;
nem se perderá nenhuma delas – oráculo do Senhor.
Dias virão, diz o Senhor,
em que farei surgir para David um rebento justo.
Será um verdadeiro rei e governará com sabedoria;
Há de exercer no país o direito e a justiça.
Nos seus dias, Judá será salvo e Israel viverá em segurança.
Este será o seu nome: ‘O Senhor é a nossa justiça’».

CONTEXTO

Jeremias, o profeta nascido em Anatot por volta de 650 a.C., exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C., até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é o reino do Sul (Judá), e sobretudo a cidade de Jerusalém.

A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei – preocupado em defender a identidade política e religiosa do Povo de Deus – leva a cabo uma grande reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. A mensagem de Jeremias, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à Aliança. No entanto, em 609 a.C., Josias é morto em Megido, em combate contra os egípcios. Depois de uns meses de instabilidade, o trono de Judá foi ocupado por Joaquim (609-597 a.C.).

Começa, por essa altura, a segunda fase da atividade profética de Jeremias. Com Joaquim no trono, a infidelidade de Judá à Aliança com Javé volta a estar na ordem do dia. Nesta fase, a voz profética de Jeremias denuncia as graves injustiças sociais, às vezes fomentadas pelo próprio rei, e o abandono de Javé. A infidelidade religiosa de Judá manifesta-se de forma particular nas alianças políticas que Joaquim procura fazer com outras nações: em lugar de confiar em Deus, Judá coloca a sua segurança em exércitos estrangeiros. Jeremias, convencido de que Judá já ultrapassou todas as medidas, anuncia a iminência de uma invasão babilónica, que irá castigar os pecados do Povo de Deus. De facto, as previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém. No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.).

A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante o reinado de Sedecias. Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Jeremias, uma vez mais, mostra o seu desacordo: a esperança de Judá deve estar em Javé e não em exércitos estrangeiros… Mas, nem o rei, nem os notáveis do país lhe prestam qualquer atenção à opinião do profeta. Considerado um amargo “profeta da desgraça”, Jeremias apenas consegue criar o vazio à sua volta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

Provavelmente, o texto que a liturgia deste décimo sexto domingo comum nos propõe como primeira leitura deve enquadrar-se no tempo que vai desde o primeiro exílio (após a primeira queda de Jerusalém, em 597 a.C.) ao segundo exílio (após a segunda tomada de Jerusalém pelos Babilónios, em 586 a. C.). É um tempo de desnorte nacional, em que Judá, sem líderes capazes, já perdeu as referências e a esperança no futuro. Pela voz de Jeremias, Deus denuncia a incompetência e a incúria dos “pastores” de Judá: com as suas políticas erráticas, eles dispersaram as ovelhas do rebanho. É, certamente, uma alusão ao exílio do Povo na Babilónia.

A utilização da imagem do “pastor” para falar dos líderes da nação é bastante frequente no Antigo Testamento. Aliás, a imagem adquiriu uma força especial na sequência de David, o pastor de Belém que Javé tirou da guarda do rebanho, ungiu e transformou em rei, encarregando-o de cuidar do rebanho do Povo de Deus. Aliás, na memória coletiva de Israel, David será sempre o pastor por excelência, que cuidou do seu Povo de acordo com as indicações recebidas de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O quadro de desorientação, de confusão e de abandono que os habitantes de Judá experimentaram no início do séc. VI a.C., é um quadro que não nos é completamente estranho. Também nós conhecemos momentos conturbados da nossa história (coletiva ou pessoal), em que nos sentimos órfãos, perdidos, traídos e abandonados ao sabor dos ventos e das marés… As catástrofes que afetam o mundo, os conflitos que dividem os povos, a miséria que toca a vida de tantos dos nossos irmãos, os perigos dos fundamentalismos, as mudanças vertiginosas que o mundo todos os dias sofre, a perda dos valores em que apostávamos, as novas e velhas doenças, as crises pessoais, os problemas laborais, as dificuldades familiares trazem-nos a consciência da nossa pequenez e impotência frente aos grandes desafios que a vida nos apresenta. Sentimo-nos, então, “ovelhas” sem rumo e sem destino, abandonadas à nossa sorte. A Palavra de Deus que nos chega neste domingo pela voz de Jeremias garante-nos que Deus é o “Pastor” que se preocupa connosco, que está atento a cada uma das suas “ovelhas”; Ele cuida das nossas necessidades e está permanentemente disposto a intervir na nossa história para nos conduzir por caminhos seguros e para nos oferecer a Vida e a paz. É n’Ele que temos de apostar, é n’Ele que temos de confiar. Esta constatação é, para nós que acreditamos na bondade, no amor e na solicitude de Deus, fonte de alegria, de esperança, de serenidade e de paz?
  • A cada passo Por vezes, no nosso desespero, apostamos em “pastores” humanos que, em lugar de nos conduzirem para a vida e para a felicidade, nos usam para satisfazer a sua ânsia de protagonismo e para realizar os seus projetos egoístas…
  • As palavras de Jeremias contra os “pastores” que se aproveitam do rebanho em benefício próprio talvez nos tenham levado a apontar imediatamente para alguns líderes humanos que conhecemos e que consideramos responsáveis por boa parte do sofrimento que desfeia o nosso mundo… Na verdade, a história humana – mesma a mais recente – está cheia de situações em que as pessoas encarregadas de cuidar da comunidade humana usam o “rebanho” em benefício próprio e magoam, torturam, roubam, assassinam, privam de vida e de felicidade as pessoas que Deus lhes confiam… Teremos alguma responsabilidade – pela nossa indiferença, pelo nosso comodismo, pela nossa instalação, pelo nosso receio de denunciar – em tudo isso? E nós próprios, como é que lidamos com aqueles cuja responsabilidade Deus nos confiou: na família, no emprego, na Igreja? Procuramos colocar o bem de cada pessoa que caminha ao nosso lado acima dos nossos interesses e projetos pessoais?
  • O nosso texto faz referência a “um rei” que Deus vai enviar ao encontro do seu Povo e que governará com sabedoria e justiça. Jesus é a concretização desta promessa. Ele veio propor ao “rebanho” de Deus a Vida plena e verdadeira… As propostas de Jesus encontram eco na nossa vida? Estamos sempre dispostos a acolher as indicações e os valores que Ele continuamente nos apresenta com as suas palavras, com os seus gestos, com a sua vida? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 22 (23)

Refrão: O Senhor é meu pastor: nada me faltará.

 

O Senhor é meu pastor: nada me falta.
Leva-me a descansar em verdes prados,
conduz-me às águas refrescantes
e reconforta a minha alma.

Ele me guia por sendas direitas por amor do seu nome.
Ainda que tenha de andar por vales tenebrosos,
não temerei nenhum mal, porque Vós estais comigo:
o vosso cajado e o vosso báculo me enchem de confiança.

Para mim preparais a mesa
à vista dos meus adversários;
com óleo me perfumais a cabeça,
e o meu cálice transborda.

A bondade e a graça hão de acompanhar-me
todos os dias da minha vida,
e habitarei na casa do Senhor
para todo o sempre.

LEITURA II – Efésios 2,13-18

Irmãos:
Foi em Cristo Jesus que vós, outrora longe de Deus,
vos aproximastes d’Ele, graças ao sangue de Cristo.
Cristo é, de facto, a nossa paz.
Foi Ele que fez de judeus e gregos um só povo
e derrubou o muro da inimizade que os separava,
anulando, pela imolação do seu corpo,
a Lei de Moisés com as suas prescrições e decretos.
E assim, de uns e outros,
Ele fez em Si próprio um só homem novo,
estabelecendo a paz.
Pela cruz reconciliou com Deus
uns e outros, reunidos num só Corpo,
levando em Si próprio a morte á inimizade.
Cristo veio anunciar a boa nova da paz,
paz para vós, que estáveis longe,
e paz para aqueles que estavam perto.
Por Ele, uns e outros podemos aproximar-nos do Pai,
num só Espírito.

CONTEXTO

Éfeso, cidade cosmopolita situada na costa da Jónia, na Ásia Menor (junto da atual Selçuk – Turquia), famosa pelo seu templo de Ártemis e pelo seu enorme teatro ao ar livre, era um dos principais centros comerciais e religiosos do mundo greco-romano. Durante o séc. I a.C. albergava uma população de cerca de 250.000 pessoas. No decurso da sua terceira viagem missionária, Paulo foi até Éfeso e permaneceu lá por cerca de dois anos (cf. At 19,10). Da pregação e da catequese de Paulo resultou uma comunidade viva, fervorosa, empenhada em dar testemunho de Jesus. No final dessa viagem missionária, antes de embarcar para Tiro, Paulo fez questão de chamar a Mileto os anciãos da Igreja de Éfeso, a fim de se despedir da comunidade (cf. At 20,17-38). Isso atesta a relação especial que havia entre Paulo e os cristãos de Éfeso.

Não conhecemos as circunstâncias que levaram Paulo a escrever a Carta aos Efésios. Mas, quando a escreveu, Paulo estava na prisão (em Roma? Em Cesareia Marítima?). O seu portador foi um tal Tíquico. Estamos, muito provavelmente, por volta dos anos 58/60.

No entanto, a carta não reflete a proximidade que Paulo tinha com os cristãos de Éfeso. Apresenta-se num tom impessoal, solene, desligado, que parece distante da forma como Paulo se costumava dirigir às comunidades a que se sentia especialmente ligado. Isso leva alguns a negar e sua autoria paulina, e outros a considerar que o texto que nos chegou com o título “carta aos efésios” poderá ser um dos exemplares de uma “carta circular” enviada por Paulo a várias Igrejas da Ásia Menor, incluindo a comunidade cristã de Éfeso. A questão permanece em aberto.

Considera-se, em geral, que a Carta aos Efésios apresenta uma espécie de síntese da teologia paulina, redigida numa altura em que Paulo sentia ter terminado a sua missão apostólica na Ásia. Prisioneiro por causa do Evangelho (cf. Ef 4,1), Paulo não sabe o que o futuro lhe reserva e entende deixar o seu testemunho às comunidades da Ásia Menor que tinha especialmente acompanhado.

O tema central da Carta aos Efésios é aquilo a que Paulo chama “o mistério”: o desígnio (ou projeto) salvador de Deus, definido desde toda a eternidade, oculto durante séculos aos homens, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos, desfraldado e dado a conhecer ao mundo na Igreja.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo sexto domingo comum integra a parte dogmática da carta. Depois de refletir sobre o papel de Cristo no projeto de salvação que Deus tem para os homens (cf. Ef 2,1-10), Paulo refere-se à reconciliação operada por Cristo, que com a sua doação uniu judeus e pagãos num mesmo Povo (cf. Ef 2,11-22). in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Domingo após domingo a palavra de Deus recorda-nos o projeto de salvação que Deus preparou em nosso favor. A repetição não incomoda: trata-se da questão mais decisiva quanto ao sentido da nossa vida, uma questão que deve estar sempre diante dos nossos olhos para dar sentido ao caminho que vamos percorrendo na história. No entanto, a segunda leitura deste décimo sexto domingo comum põe em relevo um aspeto essencial desse projeto: ele abrange todos os filhos e filhas de Deus, sem distinção de raças, de etnias, de diferenças sociais ou culturais, de experiências religiosas. Deus não faz aceção de pessoas, Deus não discrimina os seus filhos; a todos Ele quer salvar, a todos Ele quer reunir à sua volta. Nós, seres humanos, inventamos fronteiras para proteger as nossas possessões, criamos espaços onde só alguns privilegiados podem aceder, decidimos quem merece e não merece a nossa atenção e o nosso acolhimento; mas Deus enviou-nos o seu Filho Jesus para abolir as barreiras que nos separam, para destruir as velhas inimizades e para nos inserir numa única família, a família de Deus. Que implicações tem isto na nossa forma de ver Deus, de ver a vida e de ver os irmãos que caminham ao nosso lado?
  • A Igreja é a comunidade daqueles que aceitam a oferta de salvação que Deus faz; é uma comunidade de irmãos e de irmãs que Cristo, com a sua entrega, reconciliou e ensinou a viver no amor; é um “corpo”, formado por uma grande diversidade de membros, unidos em Cristo e entre si numa efetiva fraternidade; é a família de Deus, chamada a dar testemunho no mundo da bondade, do amor e da Vida de Deus. É essa, de facto, a experiência que temos do viver em Igreja? As nossas comunidades cristãs são espaços de fraternidade, de acolhimento, de partilha, de amor anunciado e vivido? Nas nossas comunidades cristãs todos os irmãos são acolhidos e amados, ou há pessoas que são marginalizadas, condenadas, tratadas com menos consideração e estima?
  • O fenómeno da globalização contribuiu para que nos aproximássemos dos outros homens e mulheres que partilham connosco esta casa comum que é o mundo. Ajudou-nos a conhecer o outro, a acolher a riqueza do outro, a aceitar com tolerância as diferenças. Contudo, subsistem muros – alicerçados nas diferenças rácicas, políticas, religiosas, sociais, afetivas – que impedem uma total experiência de fraternidade universal. Nós, os discípulos desse Cristo que veio reconciliar “judeus e gentios” e fazer de todos “um só povo”, temos o dever de dar testemunho de unidade e de lutar objetivamente contra tudo aquilo que impede os homens de caminharem de mãos dadas. Quais são, no séc. XXI, as principais barreiras que nos impedem de comunicar, de partilhar, de viver em fraternidade? Na nossa vida pessoal e na nossa experiência de caminhada comunitária, quais são os muros que nos dividem, que impedem o encontro e a comunhão? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 6,30-34

Naquele tempo,
os Apóstolos voltaram para junto de Jesus
e contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado.
Então Jesus disse-lhes:
«Vinde comigo para um lugar isolado
e descansai um pouco».
De facto, havia sempre tanta gente a chegar e a partir
que eles nem tinham tempo de comer.
Partiram, então, de barco
para um lugar isolado, sem mais ninguém.
Vendo-os afastar-se, muitos perceberam para onde iam;
e, de todas as cidades, acorreram a pé para aquele lugar
e chegaram lá primeiro que eles.
Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão
e compadeceu-Se de toda aquela gente,
que eram como ovelhas sem pastor.
E começou a ensinar-lhes muitas coisas.

CONTEXTO

Depois de narrar o envio dos Doze em missão (cf. Mc 6,6b-13), Marcos faz um compasso de espera, como se tivéssemos de dar tempo aos enviados de Jesus para cumprir a missão que lhes foi entregue. Marcos aproveita, enquanto esperamos o regresso dos Doze, para retomar a questão da identidade de Jesus; e conta-nos que Herodes se interroga sobre Jesus, vendo n’Ele um João Batista redivivo (cf. Mc 6,14-16). A propósito, Marcos julga necessário narrar-nos o martírio do Batista, mandado decapitar por Herodes (cf. Mc 6,17-29) enquanto estava prisioneiro em Maqueronte, a fortaleza herodiana situada a leste do Mar Morto. A sequência parece não ser por acaso: ao entrelaçar o ministério de João Batista, de Jesus e dos discípulos, Marcos está a sugerir que se trata de uma única e mesma missão. A morte violenta de João converte-se em sinal premonitório do que mais tarde acontecerá com Jesus e com os Doze.

Depois deste parêntesis, Marcos retoma o fio condutor do seu Evangelho, apresentando o regresso dos Doze da missão. Marcos chama-lhes, agora, “apóstolos” (“enviados”): é a única vez que a palavra aparece no Evangelho segundo Marcos. Não há, no texto, qualquer indicação do lugar onde a cena se teria desenrolado.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Em pleno séc. XXI, são muitos os homens e as mulheres que caminham pelo mundo perdidos e sem rumo, “como ovelhas sem pastor”. As “ovelhas” perdidas e sem rumo são, nos nossos dias, as vítimas sem rosto e sem voz da economia global, os que são colocados à margem da sociedade e da vida, os estrangeiros que buscam noutro país condições dignas de vida mas não encontram lugar, os doentes que não têm acesso a um sistema de saúde eficiente, os idosos abandonados pela família e que sofrem em silêncio, as crianças que crescem nas ruas e que são maltratadas e violentadas, os “diferentes” que são marginalizados pela sociedade e pelas igrejas, os que carregam culpas que não conseguem esquecer, os que a vida magoou e que ainda não conseguiram sarar as suas feridas, as vítimas de todas as guerras e de todas as violências… Como os vemos, como nos abeiramos deles? Olhamo-los com o mesmo olhar de Jesus e sentimos compaixão? Sentimo-nos responsáveis por eles? A nossa consciência sente-se tranquila e em paz quando não respondemos às necessidades dos nossos irmãos sofredores?
  • A Igreja será sempre a “casa de Jesus”, a casa onde Jesus a todos acolhe com amor. Muitos dos homens e mulheres que partilham connosco o caminho e que se sentem perdidos e desorientados “como ovelhas sem pastor” voltam-se para a comunidade cristã à procura de ajuda, de orientação, de compreensão, de acolhimento… Como é que a nossa comunidade cristã responde a essa procura? Com um elenco de normas, de obrigações, de mandamentos, de regras rígidas, de proibições, de discursos cheios de dogmas e de chavões teológicos, ou com o olhar compadecido e compreensivo de Jesus? As nossas comunidades cristãs são o “hospital de campanha” onde aqueles que a vida magoou podem curar as suas feridas e experimentar a compreensão, o amor, a ternura, a misericórdia de um Deus bom, que é pai e mãe para todos os seus filhos e filhas? A nossa Igreja é rosto de Jesus para os homens e mulheres do nosso tempo?
  • Hoje como ontem, a missão dos “enviados” não pode desenrolar-se à margem de Jesus. É de Jesus que eles partem e é a Jesus que eles voltam. É imprescindível que os discípulos, apesar de todas as solicitações que lhes são feitas, arranjem tempo para estar com Jesus, para escutar as suas indicações, para lhe contar as coisas bonitas que viram acontecer ou os obstáculos que encontraram no caminho. Por vezes, os discípulos, genuinamente comovidos com a situação das “ovelhas sem pastor”, mergulham num ativismo descontrolado e acabam por perder as referências; deixam de ter tempo e disponibilidade para se encontrar com Jesus, para confrontar as suas opções e motivações com o projeto de Jesus… E passam a “vender”, como verdade libertadora, soluções que são parciais e que geram dependência e escravidão (e que não vêm de Jesus); ou tornam-se funcionários mais ou menos eficientes, que resolvem problemas sociais pontuais, mas sem oferecerem às “ovelhas sem pastor” uma libertação verdadeira e global; ou, então, cansam-se e abandonam a atividade e o testemunho… Vemos Jesus como o princípio e o fundamento do nosso apostolado? Estamos conscientes de que é a comunhão sempre renovada com Ele que nos permite redescobrir o sentido das coisas e renovar o nosso empenho? Procuramos encontrar tempo para rezar, para escutar a Palavra, para aprofundar a nossa comunhão com Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é importante ter presente a mensagem que Jeremias dirige aos maus pastores em nome do Senhor Deus, mas deve evitar-se um tom exageradamente dramático e acusatório. Além disso, deve haver um especial cuidado na pronunciação da expressão «oráculo do Senhor». Deve ser dito num tom diferente, mas deve haver o cuidado de não parecer a conclusão final do texto, evitando que as pessoas respondam antes da conclusão da leitura.

Na segunda leitura, temos algumas frases mais longas, orações curtas, muitas vírgulas. Deste modo, este texto para ser bem proclamado deve ser preparado tendo em conta as diversas pausas e respirações que são fundamentais para a compreensão do texto

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS, A NOSSA ÚNICA REFERÊNCIA

O Evangelho deste Domingo XVI do Tempo Comum (Marcos 6,30-34) insere-se numa bela sequência de preciosos textos. Importante não perder de vista o fio de ouro (ou de sentido) que entretece os episódios que, com extrema habilidade, Marcos coloca diante dos nossos olhos. Em Marcos 6,1-6, Jesus é rejeitado na sua pátria, prolepse de tudo o que lhe vai acontecer. No episódio seguinte, Marcos 6,7-13, Jesus envia os «Doze» em missão. Envia-os dois a dois, leves, sem nada a que se agarrar ou distrair. A sua única bagagem é o Evangelho. Logo a seguir, em Marcos 6,14-29, é narrada a versão popular do martírio de João Batista, que difere da versão política de Flávio Josefo. Em Marcos 6,30, «os Apóstolos» (hoi apóstolloi) reúnem-se junto de Jesus, e narraram-lhe tudo o que tinham feito e ensinado.

De notar, em primeiro lugar, que a missão dos «Doze» aparece premonitoriamente colocada entre a rejeição de Jesus e o martírio de João Batista. Esta leitura sai ainda reforçada se tivermos em conta que o episódio do martírio de João Batista rasga em duas partes a missão dos «Doze», intrometendo-se entre o envio, a partida de junto de Jesus e o anúncio feito pelos «Doze» (Marcos 6,7-13), e o regresso de «os Apóstolos» a Jesus (Marcos 6,30).

De notar, em segundo lugar, a permanente referência a Jesus por parte dos «Doze». Na verdade, é Jesus que os envia, e envia-os dois a dois, é d’Ele que partem, é d’Ele que são arautos, mensageiros ou testemunhas, é a Ele que regressam, é a Ele que fazem a «relação» do acontecido.

Uma inteligência mais profunda do envio «dois a dois»: não vão em nome próprio, mas são apenas testemunhas daquele que os enviou. E, porque é de testemunho que se trata, para que este seja válido, requer-se a presença de duas ou três testemunhas (cf. Deuteronómio 19,15 e João 8,17). Neste caso, as testemunhas estão vinculadas a Jesus. Mas o vínculo a Jesus sai ainda reforçado neste «dois a dois», se tivermos em conta a palavra de Jesus: «Onde estão dois ou três reunidos em meu nome, ali estou Eu no meio deles» (Mateus 18,20).

Esta centralidade de Jesus na vida dos «Doze» está ainda referida no facto de regressarem a Ele e de a Ele apresentarem a «relação» de tudo o que aconteceu. Note-se que não fazem uma «relação» por alto, mas uma «relação» exaustiva: «de tudo». Tudo o que fizeram e ensinaram tinha, na verdade, Jesus como única referência.

Depois de noticiado este regresso a Jesus e da menção ao relatório exaustivo da missão, os «Doze» são, pela primeira vez, chamados «os Apóstolos» (hoi apóstoloi) (Marcos 6,30). E Jesus retoma agora a iniciativa, vinculando-os ainda mais, se assim se pode dizer, a si mesmo, convidando-os à comunhão com Ele («Vinde»), separando-os para o efeito da multidão que os apertava (Marcos 6,31). «E partiram na barca para um lugar deserto, à parte» (Marcos 6,32). No Evangelho de Marcos, a «barca» (tò ploîon) demarca um espaço privilegiado que Jesus partilha unicamente com os seus discípulos.

Fica-se unicamente pela barca a estreita comunhão de Jesus com os seus discípulos. É mesmo só a comunhão que sai realçada, pois nada nos é dito sobre nenhum particular assunto de conversa durante a viagem. Saídos na barca da pressão da multidão, ei-los que, ao sair da barca, estão de novo no meio da multidão. E o narrador lá está para nos dizer que «Ele viu» (eîden) (Marcos 6,34). É a quinta vez, neste Evangelho, que o narrador nos diz que Jesus «viu» (Marcos 1,10; 1,16; 1,19; 2,14; 6,34).  A primeira vez, «viu» os céus abertos e o Espírito a descer (Marcos 1,10). A segunda vez, «viu» Simão e André (Marcos,1,16). A terceira vez, «viu» Tiago e João (Marcos 1,19). A quarta vez, «viu» Levi (Marcos 2,14). Nestas quatro primeiras vezes, este «ver» de Jesus desencadeia um agir novo e decisivo. Também agora, na quinta vez, o olhar de Jesus abre para uma página de sublime misericórdia (esplagchnísthê) (Marcos 6,34), que leva Jesus a reunir e abraçar aquela multidão de ovelhas sem pastor, e a ensiná-las demoradamente, dando resposta plena à preocupação de Moisés no deserto, à entrada da Terra Prometida, pedindo a Deus um novo guia «para que a comunidade do Senhor não seja como um rebanho sem pastor» (Números 27,17). Depois, Jesus repartirá com eles o pão. Primeiro, ensiná-los-á demoradamente. Depois, repartirá com eles o pão. O grão do espírito precede o grão de trigo.

Jeremias 23,1-6 constitui um marco, traça uma fronteira entre um tempo velho e a cair de podre, marcado por aquele «Ai (hôy) dos pastores que perdem e dispersam as ovelhas» (Jeremias 23,1), que retoma aquele «Ai» que arrasa o tirano rei Joaquim (609-597), e o toma como paradigma dos maus pastores (Jeremias 22,11 e 18). O grande profeta de Anatôt vê bem a ruína dos poderosos, mas vê e sente na própria pele também a desgraça que se abate sobre os pobres, porque não há pastores bons e justos que lhes indiquem os caminhos a seguir. Jeremias, o profeta do ramo de amendoeira (Jeremias 1,11), não pode ficar com os olhos enterrados na lama, mas já vê vir, lá ao longe, um «Gérmen justo» (tsemah tsaddîq), um pastor bom e justo, que trará a salvação, e o seu nome será «YHWH, nossa justiça» (YHWH tsidqenû) (Jeremias 23,6). Este nome novo, no plural, atinge e condena também o rei Sedecias (tsidqiyah) (597-587), cujo nome significa «YHWH, minha justiça», no singular, e que, devido aos seus cambalachos políticos entre a Babilónia e o Egito, acarretou sobre o povo de Judá o desastre de 587. Mas é sobretudo notório que o «Gérmen justo», que receberá o nome de «YHWH, nossa justiça», da descendência de David e que salvará o seu povo, aponta já para Jesus, o Bom e Belo Pastor, que sente compaixão pelas suas ovelhas, como se vê no Evangelho de hoje.

Na lição da Carta aos Efésios 2,13-18, Paulo põe diante de nós todos, judeus e pagãos, a ação salvadora e unificadora de Jesus Cristo. Nele, na sua Cruz, no seu Corpo, novo Templo, não há mais lugar para separações, cai o muro que, no velho Templo, separava o átrio dos pagãos do átrio dos judeus. Jesus Cristo, aproximando-se de todos, aproximou-nos a todos, os de longe e os de perto, destruiu ódios e toda a espécie de barreiras, e estabeleceu a Paz entre nós. O Evangelho, que é Cristo, une, reúne, enlaça, entrelaça, gera fraternidade. Bem à vista no Evangelho de hoje.

Quanto ao mais, todo o tempo é tempo para nos deixarmos conduzir pela mão carinhosa e pela voz maternal e melodiosa do Bom e Belo Pastor, cantando o Salmo 23. Sim, Ele recebe bem os seus hóspedes: faz-nos uma visita guiada pelos seus prados muito verdes, cheios de águas muito azuis, unge com óleo perfumado a nossa cabeça, estende no chão do seu céu a «pele de vaca» (shulhan), que é a sua mesa, serve-nos vinhos generosos… É a alegria da nossa família reunida. Confessou o filósofo francês Henri Bergson: «As centenas de livros que li nunca me trouxeram tanta luz e conforto como os versos do Salmo 23».

Deixamos já aberta a página que se segue no Evangelho de Marcos: o pão, o pão, o pão! No texto grego, original, o nome «Jesus» aparece em Marcos 6,30, para reaparecer depois só, 89 versículos depois, em Marcos 8,27. Escritura sublime: desaparece o nome «Jesus» e a paisagem textual enche-se com o nome «pão» (21 vezes). Claríssimo convite a aprendermos a ver Jesus no pão! Mas nos próximos cinco Domingos (XVII a XXI), não leremos Marcos, mas João 6, que contém o grande discurso do pão da vida.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 (Jer 23, 1-6)
        2. Leitura II do Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 (Ef 2, 13-18)
        3. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XVI do Tempo Comum – Ano B – 21.07.2024 – Oração Universal
        5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024

7Chamou os Doze, começou a enviá-los dois a dois e deu-lhes poder sobre os espíritos malignos. Mc 6,7

Viver a Palavra

            Ser amado, escolhido e destinatário da predileção de alguém é sempre momento de um contentamento humano profundo e de uma alegria e felicidade que nos calam fundo no coração. Se nas nossas relações interpessoais esta experiência é consoladora e gratificante, bem maior deveria ser a nossa alegria e júbilo por tomarmos consciência de que somos homens e mulheres profundamente amados por Deus. Além disso, não somos amados por Deus como recompensa pelos nossos méritos, pelas nossas boas ações ou pela atenção que lhe dispensamos. O amor de Deus é infinito, gratuito e prévio a qualquer iniciativa da nossa parte.

            No belíssimo hino que a Liturgia da Palavra nos oferece na segunda leitura, S. Paulo recorda-nos que somos abençoados por Deus por meio de Jesus Cristo e que Nele fomos escolhidos antes da criação do mundo. Somos obra das mãos de Deus e fomos inscritos desde o início no Seu desígnio universal de salvação. Deus escolhe-nos como escolheu Amós, Maria, os Doze Apóstolos, Paulo e tantos outros ao longo da história, porém a Sua escolha e eleição não é uma imposição, mas uma escolha da nossa liberdade, da nossa vida prenhe de possibilidades e decisões.

            Deus escolhe a nossa liberdade, retira-nos de uma vida autocentrada e egocêntrica e desafia o nosso comodismo e as nossas seguranças. Convoca-nos para a missão porque livremente O aceitamos seguir, nos deixamos seduzir pelo Seu amor e fizemos a experiência do encontro único, íntimo e decisivo com a Sua misericórdia.

            Ele envia-nos dois a dois como enviou os Doze Apóstolos, libertando-nos de uma opção missionária autocentrada. S. Gregório Magno, no seu comentário aos Evangelhos, ensina-nos que os discípulos são enviados dois a dois, porque são dois os mandamentos da caridade e só o amor a Deus e aos irmãos entrelaçados como um único amor numa dupla direção, poderá ser protagonista da nossa missão. Na verdade, estando sozinho, o homem é levado a duvidar até de si próprio. Ao invés, caminhar juntos, percorrer unidos a mesma estrada e levar o mesmo Senhor no coração constitui a primeira e grande pregação. A comunhão e unidade constroem e estruturam a missão. O enviado não é um aventureiro isolado, mas um promotor da comunhão.

            As indicações de Jesus para o caminho são precisas e radicais: «ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias, e não levassem duas túnicas». Nestas palavras de Jesus encontramos a certeza que na missão evangelizadora o mais importante a levar não são os bens materiais ou as nossas seguranças, mas a Palavra de Jesus que antecede, acompanha e aponta a missão. Contudo, que o sentido espiritual deste envio de Jesus não impeça de ver a radicalidade que estas palavras encerram. Jesus envia os discípulos desprovidos não apenas do supérfluo, mas mesmo do essencial que poderia tornar a missão humanamente mais eficiente e produtiva: provisões de comida para o alforge ou dinheiro na bolsa para fazer frente a qualquer necessidade urgente. Jesus situa a missão cristã dentro do radicalismo evangélico que testemunha que a nossa única segurança e providência se encontra em Jesus Cristo.

            Amados, escolhidos e enviados como testemunhas do amor e da misericórdia do Pai só podemos proclamar como Paulo: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo».in Voz Portucalense

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            O Domingo XV do Tempo Comum será dia de ordenações presbiterais na Diocese do Porto. O dia de ordenações para uma diocese é sempre dia de louvor e ação de graças ao Senhor da Messe que não cessa de enviar pastores para a Sua seara e que continua a conduzir a Igreja através de homens escolhidos para serem para os seus irmãos sinal de Cristo Cabeça e Pastor. As comunidades cristãs são convidadas a unirem-se neste dia de júbilo e de festa através da oração. É imperioso e necessário preparar este dia em comunhão orante, invocando sobre os neo-presbíteros o dom do Espírito Santo, podendo realizar-se momentos de oração comunitária agradecendo o dom dos que serão ordenados e pedindo ao Senhor que continue a despertar no coração dos jovens a docilidade de coração para o seguirem no ministério ordenado. As comunidades cristãs, sobretudo nas atividades de encerramento do ano catequético, podem organizar momentos de reflexão e testemunho vocacional, que ajudem as crianças, adolescentes e jovens a conhecer os diversos caminhos que o Senhor propõe para o serviço da Igreja e do Mundo.

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Amós 7,12-15

Naqueles dias,
Amasias, sacerdote de Betel, disse a Amós:
«Vai-te daqui, vidente.
Foge para a terra de Judá.
Aí ganharás o pão com as tuas profecias.
Mas não continues a profetizar aqui em Betel,
que é o santuário real, o templo do reino».
Amós respondeu a Amasias:
«Eu não era profeta, nem filho de profeta.
Era pastor de gado e cultivava sicómoros.
Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse:
‘Vai profetizar ao meu povo de Israel’».

CONTEXTO

            Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C. (possivelmente, por volta de 762 a. C.), durante o reinado de Jeroboão II. É uma época de prosperidade económica e de estabilidade política: as conquistas de Jeroboão II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a entrada de tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e têxtil) desenvolveram-se significativamente… As habitações da burguesia urbana atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.

            A prosperidade e o bem-estar das classes favorecidas contrastavam, porém, com a miséria de uma parte significativa da população do país. O sistema de distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os direitos dos menos poderosos.

Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Mais ainda: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Javé misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé javista.

            É neste contexto que aparece o profeta Amós. Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é profeta de profissão; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra, o seu trabalho e a sua família e parte para o reino vizinho (Israel) para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época.

            O episódio que a primeira leitura deste décimo quinto domingo comum nos relata leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Trata-se de um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo com Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Javé. Mais tarde, Betel aparece como o local onde se reúne a assembleia de “todo o Israel” para “consultar Deus” (cf. Jz 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade (cf. Jz 20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz 21,2). Tudo isto reflete a importância cultual do lugar.

            Quando o Povo de Deus se dividiu em dois reinos, após a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do norte (Israel) potenciaram o culto em Betel, para impedir que os seus súbditos se deslocassem a Jerusalém, situada no reino inimigo do sul (Judá), para se encontrarem com Deus. Então, Betel transformou-se numa espécie de “santuário oficial” do regime, onde o culto era financiado, em grande parte, pelo próprio rei. O sacerdote que presidia ao culto era uma espécie de “funcionário real”, encarregado de zelar para que os interesses do rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos fiéis de Israel. Na época em que Amós exerce o seu ministério profético em Betel, o sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias.

Betel foi, portanto, um dos lugares onde se ouviu a denúncia profética de Amós. Aí o profeta criticou as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente; aí denunciou um culto que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas corruptos dos poderosos.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O nosso caminho de todos os dias está semeado de obstáculos que nos fazem tropeçar, que nos mergulham no medo, que nos roubam a esperança. Sentimo-nos, a cada passo, inseguros e desprotegidos, sem saber por onde vamos e que garantias temos de chegar a porto seguro. Nesses momentos lembramo-nos de Deus e perguntamo-nos por onde andará Ele… Será que Deus desistiu de nós? Será que Ele fica indiferente diante dos nossos pequenos e grandes dramas? Será que Deus se recusa a interferir na história dos homens e assiste às nossas escolhas erradas sem mexer um dedo? O fenómeno profético diz-nos que Deus não se alheou da história e da vida dos seres humanos. Através dos “profetas”, Ele continua a vir ao nosso encontro, a falar-nos, a indicar-nos caminhos, a tentar dissuadir-nos de escolher caminhos de violência e de morte, a apontar-nos o sem sentido dos nossos valores errados, a abrir-nos horizontes de esperança. Os profetas são a voz e o rosto da solicitude de Deus pelos seus queridos filhos e filhas que peregrinam na terra. Estamos dispostos a escutar os profetas que nos trazem as indicações e propostas de Deus, mesmo quando a mensagem que proclamam vai contra a corrente e exige de nós tomadas de posição incómodas?
  • O profeta é um homem de Deus. Escolhido por Deus, chamado por Deus, enviado por Deus, legitimado por Deus, o profeta tem Deus como a sua referência fundamental. Nenhuma pessoa se torna profeta por iniciativa própria ou para veicular propostas próprias. O profeta existe a partir de Deus e em função do serviço de Deus. Por isso, para ser um verdadeiro profeta, Ele deve manter uma ligação fundamental a Deus: deve escutar Deus e manter com Deus um diálogo permanente, a fim de conseguir discernir os projetos de Deus, antes de ir dizê-los aos homens. O profeta é, portanto, o homem da oração e da escuta da Palavra de Deus. Tem de manter uma ligação muito forte a Deus. Ora, nós crentes fomos constituídos profetas pelo Batismo. Foi-nos confiada a missão de dar testemunho de Deus e dos seus planos no mundo. Deus é a nossa referência? Encontramos tempo para falar com Ele, para escutar a sua Palavra, para tentar discernir os seus projetos?
  • Amasias é o homem comodamente instalado nos seus privilégios e benesses, que cala a voz da própria consciência porque tem muito a perder e não quer arriscar; Amós é o profeta livre da preocupação com os bens materiais, que não está preocupado com a defesa dos próprios interesses, mas sim com a defesa intransigente dos interesses dos pobres e marginalizados, que são os interesses de Deus. A diferença entre os dois é a diferença entre aquele para quem os valores materiais são a prioridade fundamental e aquele para quem os valores de Deus são a prioridade fundamental. O verdadeiro profeta não pode colocar os bens materiais como a sua prioridade fundamental; se isso acontecer, perderá a sua liberdade profética e tornar-se-á um escravo de quem lhe paga. Enquanto profetas, quais são as nossas prioridades? Os interesses materiais, a salvaguarda da nossa posição ou da nossa imagem, a vontade de não ferir suscetibilidades, o comodismo e a instalação alguma vez nos impediram de cumprir a nossa missão profética?
  • Este texto fala-nos também da promiscuidade entre a religião e o poder. Trata-se de uma combinação que não produz bons frutos (como, aliás, a história da Igreja tem demonstrado nas mais diversas épocas e lugares). A Igreja, para poder exercer com fidelidade a sua missão profética, tem de evitar colar-se aos poderosos e depender deles, sob pena de ser infiel à missão que Deus lhe confiou. Uma Igreja que está preocupada em não incomodar o poder para manter privilégios fiscais, ou para continuar a receber dinheiro para as instituições que tutela, será uma Igreja escrava, de mãos atadas, dependente, que está longe de Jesus Cristo e da sua proposta libertadora. Como vemos a missão profética que a Igreja é chamada a viver no mundo? Na nossa avaliação, essa missão vai-se cumprindo sem desvios nem transigências, na fidelidade radical ao Evangelho de Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)

Refrão 1: Mostrai-nos, Senhor, o vosso amor
e dai-nos a vossa salvação.

Refrão 2: Mostrai-nos, Senhor, a vossa misericórdia.

 

Deus fala de paz ao seu povo e aos seus fiéis
e a quantos de coração a Ele se convertem.
A sua salvação está perto dos que O temem
e a sua glória habitará na nossa terra.

Encontraram-se a misericórdia e a fidelidade,
abraçaram-se a paz e a justiça.
A fidelidade vai germinar da terra
e a justiça descerá do Céu.

O Senhor dará ainda o que é bom,
e a nossa terra produzirá os seus frutos.
A justiça caminhará à sua frente
e a paz seguirá os seus passos.

LEITURA II – Efésios 1,3-14

Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo,
que do alto dos Céus nos abençoou
com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo.
N’Ele nos escolheu, antes da criação do mundo,
para sermos santos e irrepreensíveis,
em caridade, na sua presença.
Ele nos predestinou, de sua livre vontade,
para sermos seus filhos adotivos, por Jesus Cristo,
para que fosse enaltecida a glória da sua graça,
com a qual nos favoreceu em seu amado Filho.
N’Ele, pelo seu sangue,
temos a redenção, a remissão dos pecados.
Segundo a riqueza da sua graça,
que Ele nos concedeu em abundância,
com plena sabedoria e inteligência,
deu-nos a conhecer o mistério da sua vontade:
segundo o beneplácito que n’Ele de antemão estabelecera,
para se realizar na plenitude dos tempos:
instaurar todas as coisas em Cristo,
tudo o que há nos Céus e na terra.
Em Cristo fomos constituídos herdeiros,
por termos sido predestinados,
segundo os desígnios d’Aquele que tudo realiza
conforme a decisão da sua vontade,
para servir à celebração da sua glória,
nós que desde o começo esperámos em Cristo.
Foi n’Ele que vós também,
depois de ouvirdes a palavra da verdade,
o Evangelho da vossa salvação,
abraçastes a fé e fostes marcados pelo Espírito Santo prometido,
que é o penhor da nossa herança,
para a redenção do povo que Deus adquiriu
para louvor da sua glória.

CONTEXTO

            A cidade de Éfeso, capital da Província romana da Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor, a cerca de três quilómetros a sudoeste da moderna Selçuk, na província de Esmirna (Turquia). Era um dos principais centros comerciais e religiosos do mundo antigo. O seu importante porto e a sua numerosa população faziam de Éfeso uma cidade florescente. Era famosa pelo templo de Artémis, considerado uma das sete maravilhas do mundo antigo, e pelo imponente teatro, que levava cerca de 25.000 pessoas.

            Paulo passou em Éfeso no final da sua segunda viagem missionária (cf. Act 18,19-21). Mas foi mais tarde, durante a sua terceira viagem missionária, que ele se deteve na cidade (cf. At 19,1). Encontrou lá alguns cristãos escassamente preparados. Paulo procurou instruí-los e dar-lhes uma adequada formação cristã. De acordo com o Livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano” (At 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23). Paulo viveu em Éfeso alguns momentos delicados, como o tumulto que se levantou contra ele quando foi acusado pelos comerciantes efésios de estar a destruir a fé em Artémis, pondo em causa o negócio de imagens da deusa (cf. Ef 19,23-40). Ainda de acordo com o autor dos Atos, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso.

            Curiosamente, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.

            Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60.

            Alguns veem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que Paulo considerava ter terminado a sua missão no oriente. O tema mais importante da carta aos Efésios é aquilo que o autor chama “o mistério”: trata-se do projeto salvador de Deus, definido e elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no mundo pela Igreja.

            O texto que nos é hoje proposto aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Pertence ao género da “bênção”, muito frequente na liturgia judaica. Expressa o louvor e o reconhecimento pelo maravilhoso projeto de salvação que Deus pôs em marcha. O hino tem uma estrutura trinitária: refere o projeto do Pai (cf. Ef 1,3-6), concretizada pelo Filho (cf. Ef 1,7-12), e selado do Espírito (cf. Ef 1,13-14).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Em pleno séc. XXI temos consciência, mais do que em qualquer outra época da história, das dimensões inabarcáveis deste universo, sempre em contínua expansão, onde Deus nos colocou. E nós, ao olhar para a imensidão do cosmos, sentimos especialmente a nossa pequenez de criaturas, finitas e limitadas; sentimo-nos pequenos grãos de pó perdidos num espaço cujos contornos nunca conseguiremos totalmente abarcar. Qual o nosso lugar e o nosso papel nesta fantástica arquitetura de Deus? Qual o nosso lugar no projeto de Deus para o universo? A propósito de tudo isto, o autor da Carta aos Efésios diz-nos algo muito belo e motivador: não somos um acidente de percurso na evolução inexorável do cosmos, nem somos imprestáveis grãos de pó perdidos na imensidão do universo; mas somos atores principais de uma história de amor que o nosso Deus sonhou e quis viver connosco… Deus “elegeu-nos” desde sempre, deu-nos um papel e um lugar centrais no seu projeto; e, ao longo da história, nunca se cansou de vir ao nosso encontro e de procurar relacionar-se connosco. No meio das nossas desilusões e dos nossos sofrimentos, da nossa finitude e do nosso pecado, dos nossos medos e dos nossos dramas, não esqueçamos que somos filhos amados de Deus, a quem Ele oferece continuamente a Vida definitiva, a verdadeira felicidade. Esta certeza alimenta a nossa peregrinação pela terra? Somos gratos a Deus por nos ter escolhido e amado, louvamo-l’O pela sua bondade e pelo seu amor?
  • De acordo com o autor da Carta aos Efésios, Deus “elegeu-nos… para sermos santos e irrepreensíveis”. Os “santos” são aqueles que pertencem ao Deus santo, são aqueles que Deus chamou e consagrou para o seu serviço. Ora, essa consagração a Deus tem sempre implicações práticas. Requer que vivamos atentos a Deus, procurando descobrir e acolher os projetos que Ele tem para nós e para o mundo; implica procurarmos concretizar esses projetos, com verdade, fidelidade e radicalidade… Caminhamos pela vida conscientes desse chamamento que nos é feito à santidade? No meio das solicitações do mundo e das exigências da nossa vida profissional, social e familiar, conseguimos encontrar tempo para Deus, para dialogar com Ele e para tentar perceber os seus projetos e propostas? Temos disponibilidade e vontade de concretizar a “obra de Deus”, mesmo quando ela não parece conciliável com os nossos interesses pessoais?
  • O hino da Carta aos Efésios que a liturgia deste domingo nos trouxe afirma a centralidade de Cristo nesta história de amor que Deus quis viver connosco… Jesus veio ao nosso encontro, mostrou-nos o amor que o Pai nos tem e deu-nos a conhecer o “mistério” da sua vontade. Ele apontou-nos o caminho que devemos percorrer para nos tornarmos “filhos de Deus”, herdeiros da Vida eterna. Cristo, o nosso irmão, o Deus que se fez um de nós e caminhou no meio de nós, é a nossa grande referência. Estamos conscientes disso e caminhamos atrás de Jesus, sem o perder de vista? As suas palavras e os seus gestos são para nós a suprema indicação do caminho que devemos percorrer? Aqueles que caminham pelo mundo ao nosso lado encontram nos nossos gestos e atitudes sinais vivos do amor de Deus revelado em Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 6,7-13

Naquele tempo,
Jesus chamou os doze Apóstolos
e começou a enviá-los dois a dois.
Deu-lhes poder sobre os espíritos impuros
e ordenou-lhes que nada levassem para o caminho,
a não ser o bastão:
nem pão, nem alforge, nem dinheiro;
que fossem calçados com sandálias,
e não levassem duas túnicas.
Disse-lhes também:
«Quando entrardes em alguma casa,
ficai nela até partirdes dali.
E se não fordes recebidos em alguma localidade,
se os habitantes não vos ouvirem,
ao sair de lá, sacudi o pó dos vossos pés
como testemunho contra eles».
Os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento,
expulsaram muitos demónios,
ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos.

CONTEXTO

            Desde os primeiros instantes do seu ministério apostólico, Jesus aparece rodeado de discípulos. Esses discípulos – alguns pescadores do lago de Tiberíades, um cobrador de impostos chamado Mateus, um zelote chamado Simão, entre outros – formavam um grupo bastante heterogéneo. Eram homens e mulheres de origens diversas que tinham abandonado, pelo menos durante algum tempo, as suas casas, as suas famílias, as suas profissões, para acompanhar Jesus na sua atividade de profeta itinerante, pelas aldeias e vilas da Galileia. Eles seguiam Jesus, partilhavam a Sua vida, escutavam a mensagem que Ele ia repetindo de terra em terra, admiravam-se com os gestos curadores que Ele fazia, surpreendiam-se com a forma como Ele acolhia os pecadores e aqueles que a sociedade condenava, ajudavam-no a acolher as multidões… No final de cada dia, depois de a multidão ter ido embora, eles sentavam-se com Jesus e conversavam longamente… Era com eles que Jesus partilhava, de forma mais próxima, o seu sonho do Reino de Deus.

            No entanto, estes discípulos não eram apenas os companheiros de jornada de Jesus na etapa da Galileia. Aos poucos, Jesus ia-os preparando para serem seus colaboradores na construção do Reino de Deus. Aliás, Ele tinha dito aos primeiros que O seguiram que contava com eles para serem “pescadores de homens” (Mc 1,17). A tarefa que lhes ia ser confiada consistia em libertar do mar do sofrimento, da opressão e da morte todos os homens e mulheres que aí estivessem mergulhados. Na verdade, tratava-se da mesma missão que o Pai do céu confiara a Jesus: proclamar a salvação de Deus a todos aqueles que necessitam de ser salvos.

            A dada altura, de entre todos os discípulos que O seguiam, Jesus escolheu um grupo especial de doze. Eram, de entre os discípulos, o núcleo mais importante, os mais chegados a Jesus. Jesus chamou-os “para estarem com Ele e para os enviar a proclamar, com autoridade para expulsar os demónios” (Mc 3,14-15). A esses doze Marcos chama “apóstolos” (“enviados”). O número doze é simbólico. Era o número das doze tribos de Israel. Ao constituir este grupo de doze apóstolos, Jesus estaria a sinalizar o nascimento de um novo Povo de Deus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A questão central, incontornável, no evangelho deste décimo quinto domingo comum é que Jesus associa os seus discípulos à missão que o Pai lhe confiou: anunciar, testemunhar, construir o Reino de Deus. Os discípulos que seguem Jesus e que o acompanham desde a Galileia a Jerusalém não são uma associação pia que se reúne de quando em quando para um momento de oração, mas são homens e mulheres com que Jesus conta e que Jesus envia para serem arautos de um mundo novo, de um mundo transformado. Trata-se de uma realidade que nós, discípulos de Jesus, não deveríamos esquecer. O nosso seguimento de Jesus concretiza-se na missão, uma missão que implica testemunho e intervenção no mundo. Como é que encaramos o nosso compromisso com Jesus e com o seu projeto? Somos cristãos de rituais, que se limitam a “espreitar” Jesus em certos momentos de oração e de celebração comunitária dentro dos espaços protegidos dos nossos templos, ou somos discípulos comprometidos, que aceitam ser enviados às periferias da vida para testemunhar e construir, com gestos concretos, o Reino de Deus?
  • Qual é a missão dos discípulos de Jesus? É libertar e curar; é lutar objetivamente contra tudo aquilo que escraviza o homem, que o impede de ser feliz, que lhe rouba a Vida. É uma missão sempre atual, sempre necessária. O nosso mundo mantém estruturas que geram guerra, violência, terror, morte: a missão dos discípulos de Jesus é desmontá-las; o nosso mundo aposta em “valores” – frequentemente apresentados como o “último grito” da moda, do avanço cultural ou científico, das conquistas civilizacionais – que produzem escravidão, alienação, sofrimento: a missão dos discípulos de Jesus é recusá-los e denunciá-los; o nosso mundo aceita esquemas de exploração – disfarçados de sistemas económicos geradores de bem estar – que criam miséria, marginalização, debilidade: a missão dos discípulos de Jesus é combatê-los; o nosso mundo pactua com ideologias desumanas, que potenciam o racismo, a exclusão, a indiferença: a missão dos discípulos de Jesus é contestá-las. Aceitamos estes desafios?
  • Jesus é a fonte, o inspirador e o modelo de ação dos seus enviados. É de Jesus que eles recebem autoridade para se apresentarem ao mundo como arautos do Reino. Eles devem atuar ao estilo de Jesus, com o amor e a solicitude de Jesus, dando testemunho, com gestos concretos, da ternura e da bondade de Deus para com todos os seus filhos. Eles não atuam em nome próprio nem proclamam as suas teorias pessoais, mas propõem o Evangelho de Jesus, o Evangelho do Reino. Ora, para que isso seja possível, esses enviados têm de manter-se vinculados a Jesus. Têm de manter com Ele uma relação viva, próxima, apaixonada, alimentada pelo encontro pessoal com Jesus. Se isso não acontecer, esses enviados facilmente se tornam gestores egoístas de projetos pessoais ou funcionários descomprometidos que executam um trabalho mecânico e sem alma. Nós, discípulos e enviados de Jesus, mantemo-nos ligados a Ele? Renovamos cada dia a nossa adesão a Ele e ao seu projeto? Confrontamo-nos com a sua Palavra e deixamo-nos questionar por ela? Encontramo-nos com Jesus e os outros irmãos da comunidade à mesa da Palavra e do Pão e acolhemos a Vida que Ele nos oferece e que somos convidados a levar ao mundo?
  • Jesus apenas autoriza os seus enviados a levarem para o caminho um cajado, sandálias e uma túnica. Ele considera que quanto mais livres e despojados os discípulos se apresentarem, mais convincentes serão como testemunhas do Reino de Deus. No entanto, esta lógica parece ainda não nos ter convencido… Vinte e um séculos depois de Jesus, continuamos a interessar-nos por postos e lugares que nos assegurem autoridade e poder; continuamos a agarrar títulos que possam dar-nos prestígio social; continuamos a montar estruturas e estratégias que nos proporcionem visibilidade e capacidade de intervenção; continuamos a procurar recursos económicos que financiem os nossos projetos e nos permitam combater os “filhos das trevas”. É evidente que vivemos neste mundo e temos de ser realistas… Mas, em última análise, a abundância de meios será útil ou será prejudicial para a causa do Reino de Deus? A preocupação com o “ter” não roubará aos discípulos espaço, disponibilidade e liberdade para se lançarem na aventura do anúncio do Reino? A preocupação com os bens materiais, com as honras e privilégios, não poderá levar os discípulos a calarem-se perante a maldade e a injustiça, a fim de preservarem os seus interesses económicos e os seus benefícios particulares?
  • O testemunho e a construção do Reino de Deus são o grande desafio que Jesus deixou aos seus seguidores. No entanto, todos nós, discípulos de Jesus, sabemos como é difícil que o nosso testemunho seja escutado e acolhido. Sentimos que temos uma ótima proposta para apresentar, mas que essa proposta nem sempre encontra o acolhimento que merece; parece que, por muito que nos esforcemos, o “mundo” não está interessado no testemunho que damos de Jesus. Porquê? A culpa é da sociedade e dos valores vigentes, ou é da forma como damos testemunho? O que é que torna pouco convincente e pouco credível aquilo que anunciamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura ter em atenção as palavras de mais difícil pronunciação e menos usuais: Amasias (deve ler-se: Amazias); Betel (deve ler-se: Betél) e Sicómoros (deve acentuar-se apenas a sílaba tónica: ).

            A segunda leitura é um hino litúrgico das primeiras comunidades cristãs de louvor e ação de graças. A sua proclamação deve ser feita com a solenidade de um hino, mas também com atenção às pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

EXCESSO DE MEIOS, MÍNGUA DE FINS

            O Evangelho deste Domingo XV do Tempo Comum, que narra o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13), situa-se estrategicamente entre a rejeição de Jesus na sua pátria (Marcos 6,1-6) e o martírio de João Batista (Marcos 6,14-29). O contexto é, pois, claro, intenso e dramático acerca do destino dos missionários: entre a rejeição e martírio. Mas este destino sai ainda acentuado se tivermos em conta que o martírio do João Batista (Marcos 6,14-29) está colocado entre o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13) e o seu regresso (Marcos 6,30). Dado o contexto, não é possível evitar o entrelaçamento de destinos de Jesus, João Batista e os missionários. Em todos os casos, a rejeição e o martírio derivam do facto de as pessoas (nós) não acreditarem que a missão (claríssimo no caso de Jesus) provém de Deus!

            Mas este envio em missão dos «Doze» também não pode deixar de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em que, do cimo da montanha, Jesus chama os que quer (fórmula de eleição), deles faz «Doze» (belíssima fórmula de criação), para estarem com Ele (fórmula de aliança e de assistência), e, finalmente, para Ele os enviar (fórmula de missão). Bem se vê que o texto deste Domingo torna operativo este último aspeto, sem anular, diminuir ou diluir aquele fortíssimo «estar com Ele». Na verdade, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (Marcos 6,30), que é assim apresentado como o marco e a referência fundamental da vida deles e da nossa.

            Quer através dos verbos narrativos, quer dos elocutivos, fica claro que a iniciativa da missão dos «Doze» é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão: é Ele que chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade para o serviço da missão (Marcos 6,7-8), que define a leveza do equipamento (Marcos 6,8-10) e o comportamento a assumir no serviço da missão (Marcos 6,10-11). Note-se bem aquelas levíssimas recomendações negativas: nada para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro (Marcos 6,8). É fácil de ver que estas disposições tornam os «Doze» mais pobres, materialmente falando, do que os destinatários a quem são enviados. Assumidamente, não é o volume das coisas a medida do mundo dos discípulos de Jesus.

            Este despojamento, ou empobrecimento, ou leveza, está na base da credibilidade da mensagem que devem transmitir. O narrador anota no final que os «Doze» cumpriram as diretivas de Jesus (Marcos 6,12-13). Bela maneira de testemunhar que o dizer de Jesus tem, sobre os missionários, carácter performativo: na verdade, não tendo nada de próprio para oferecer, limitam-se a desempenhar o encargo recebido e a transmitir a mensagem a eles confiada. O uso do verbo «anunciar» (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas ser simplesmente arautos ou mensageiros transparentes do seu Senhor, define os «Doze» como completamente dependentes de Jesus. E a exiguidade do equipamento é para realçar a absoluta importância da mensagem, e que não se podem ocupar de nenhum outro negócio.

            A lição do profeta Amós (7,12-15), que hoje temos também a graça de escutar, ilustra bem o Evangelho de hoje. Amós era provavelmente um importante criador de gado e agricultor bem-sucedido ao serviço do grande rei Ozias (787-736), sem dúvida o maior rei de Judá em termos de visão política e desenvolvimento, grande amante da terra e que em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver na descrição do Cronista (2 Crónicas 26,10). Amós seria, como diz a maioria dos estudiosos de hoje, um alto funcionário agrícola de Ozias. Mas quando Deus «pegou» nele, também Amós se despiu da riqueza da sua vida regalada e bem-sucedida, e foi para o Reino de Israel, do Sul para o Norte, equipado apenas com a mensagem que Deus o incumbiu de anunciar. Amós tinha, portanto, a sua profissão de grande agricultor e criador de gado, que lhe assegurava uma vida tranquila e sem percalços. Mas foi-lhe por Deus dada uma vocação e confiada uma missão. Nesse dia, acaba o profissional, o funcionário, e nasce o profeta. «Profeta» não é uma profissão, uma função ou uma herança. Não passa de pai para filho. É uma vocação e uma missão. E é a Palavra de Deus que, irrompendo sobre alguém, marca um final e um começo novo, constituindo-o profeta: «Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor…» (Amós 7,14-15).

            Também São Paulo é modelo insigne de quem se sabe amado e escolhido por Deus desde a eternidade, desde antes de antes (Efésios 1,3-14). Por isso, não resmunga, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir e amar de coração inteiro.

            João Batista, Jesus, os «Doze», Amós, Paulo, os missionários. São todos figuras em contracorrente de uma sociedade rica, insensível, anestesiada, medicada, dormente, autossuficiente, auto referente e indiferente. Porque sabe que é rica, é que se sente agora em crise! Estranha crise. Os textos de hoje ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de Deus. Só, de facto, Deus, Primeiro e Último, pode pôr em crise o segundo e penúltimo. Infelizmente, a crise que por aí anda parte do penúltimo e quer pôr em crise o Último. Edmund Pellegrino, médico e filósofo da medicina, recentemente falecido (2013), já nos tinha advertido seriamente que, no campo da medicina, há excesso de meios e míngua de fins. Mas podemos, sem medo de errar, alargar a análise de Edmund Pellegrino a todas as áreas da nossa sociedade de hoje, e dizer que vivemos na «noite do mundo», mergulhados numa cultura de excesso de meios e míngua de fins!

            Escutemos, por isso, mais um pequeno extrato da Palavra pertinente do Profeta de hoje: «Eis que virão dias, oráculo do Senhor, em que enviarei a fome à terra; não fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor. Cambalearão de um mar a outro mar, andarão errantes do Norte até ao nascente, à procura da Palavra do Senhor, mas não a encontrarão» (Amós 8,11-12).

            O Salmo 85 é um canto de júbilo pela restauração pós-exílica operada por Deus em favor do seu Povo maravilhado e agradecido. Com Deus, que vem viver e caminhar connosco, vem a paz, a justiça, a verdade, a fidelidade, a salvação, o bem. A nossa terra exulta. O nosso coração exulta. Mas também hoje podemos cantar esta ação maravilhosa de Deus, que sabe sempre renovar a nossa vida e a nossa história, mesmo quando, em pleno exílio, pouco vemos. O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), já nos lembrava, há uns anos, que «estamos a perder a capacidade de cantar». E o famoso poeta inglês John Milton (1608-1674) lerá assim os versos 9-14 do nosso Salmo 85 numa Ode natalícia, datada de 1629: «Sim, Fidelidade e Justiça, então, / voltarão para junto dos homens, / envoltas num arco-íris, e, gloriosamente vestida, / a Bondade sentar-se-á no meio…/ E o céu, como para uma festa, / escancarará as portas do seu palácio excelso». Em consonância com Isaías, que grita: «Destilai, céus, lá do alto, e que as nuvens façam chover a justiça, que se abra a terra e germine a salvação, e ao mesmo tempo faça brotar a justiça». E a assinatura: «Eu, o Senhor, criei isto!» (Isaías 45,8). Mundo novo à vista.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 (Am 7, 12-15)
        2. Leitura II do Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 (Ef 1, 3-14)
        3. Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XV do Tempo Comum – Ano B – 14.07.2024 – Oração Universal
        5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024

1E partiu dali. Foi para a sua terra, e os discípulos seguiam-no. 2Chegado o sábado, começou a ensinar na sinagoga. Os numerosos ouvintes enchiam-se de espanto e diziam: «De onde é que isto lhe vem e que sabedoria é esta que lhe foi dada? Como se operam tão grandes milagres por suas mãos? 3Não é Ele o carpinteiro, o filho de Maria e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E as suas irmãs não estão aqui entre nós?» E isto parecia-lhes escandaloso.
4Jesus disse-lhes: «Um profeta só é desprezado na sua pátria, entre os seus parentes e em sua casa.» 5E não pôde fazer ali milagre algum. Apenas curou alguns enfermos, impondo-lhes as mãos. 6Estava admirado com a falta de fé daquela gente. Mc 6, 1-6

Viver a Palavra

            Se há marca que perpassa todo o Evangelho ao longo dos séculos é a da estupefação. O evangelho que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe é exemplo acabado disso. Os habitantes de Nazaré estão admirados com tudo o que sai da boca de Jesus e com a novidade que brota do Seu ensinamento. Jesus espanta-se com a falta de fé daquela gente. E nós, dois mil anos depois, estamos estupefactos com a resistência de coração dos patrícios de Jesus e com a atitude do «carpinteiro, Filho de Maria» que devido à fala de fé daquela gente opera apenas algumas curas e segue o Seu caminho.

            O entusiasmo desvanece facilmente e, no itinerário crente, desafia à fidelidade que se constrói pela perseverança e pela capacidade de se deixar surpreender pelo devir dos dias e pela banalidade do nosso quotidiano. Os habitantes de Nazaré ao ouvirem Jesus não conseguem esconder o espanto pelas palavras que Ele dirige e, ao verem os Seus milagres, não conseguem ficar indiferentes aos prodígios por Ele realizados. Contudo, depressa passam do assombro ao menosprezo: «De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?».

            Jesus abre o Seu coração e manifesta o seu descontentamento: «Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa». Todo o desprezo e rejeição são difíceis gerir, porém, o desprezo daqueles que nós conhecemos, que viveram e conviveram connosco e que nos viram crescer, torna-se assim mais difícil de gerir.

            Mas Jesus é mesmo o «carpinteiro, filho de Maria», o «irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão» e «as suas irmãs estão aqui entre nós». Como é que algo de tão maravilhoso e espantoso pode acontecer na vida de quem conhecemos tão bem, de quem vimos crescer, até ajudamos a andar e pegamos Nele ao colo? É o espanto do mistério da incarnação! Deus faz-se homem, assume a nossa frágil humanidade e percorre os caminhos da nossa história. Em Jesus Cristo, Deus diz-se em linguagem humana e revela-se com mãos de carpinteiro, com sede e com fome, cansado e sofredor. Mas como é belo e consolador contemplar um Deus que toma a iniciativa de se dar a conhecer assumindo as alegrias e esperanças, os dramas e sofrimentos de cada homem e de cada mulher.

            É fácil ficar admirado e espantado com um Deus que põe os cegos a ver, os coxos a andar, que ressuscita os mortos, que manda calar os ventos e as tempestades… Contudo, o nosso caminho de fé, ainda que possa ter início com um evento marcante e surpreendente, alimenta-se, cresce e fortalece-se no encontro com Jesus Cristo no quotidiano da nossa existência.

            Amar e reconhecer a divindade de Jesus Cristo exige entrar no mistério da Sua humanidade. Mais, implica reconhecer que a nossa humanidade não é um obstáculo à graça de Deus e ao Seu amor mas o lugar concreto onde ela se revela e manifesta. Aqui está presente, muitas vezes, o conflito entre quotidiano e profecia. Que o profeta seja um homem extraordinário e carismático, já o esperávamos. Mas que o profeta tenha um passado que conhecemos bem, que essa profecia esteja plasmada de quotidiano e tenha habitado uma oficina de carpinteiro, isso já parece mais difícil.

            Creio que este é um dos maiores desafios para a nossa vida de fé: acolher a presença de Deus na banalidade dos dias e no quotidiano da nossa existência e ser capaz de fazer da nossa vida toda e de toda a nossa vida o lugar onde Deus se faz presente, vivo e atuante na história. in Voz Portucalense

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Ez 2,2-5

Leitura da Profecia de Ezequiel

Naqueles dias,
o Espírito entrou em mim e fez-me levantar.
Ouvi então Alguém que me dizia:
«Filho do homem,
Eu te envio aos filhos de Israel,
a um povo rebelde que se revoltou contra Mim.
Eles e seus pais ofenderam-Me até ao dia de hoje.
É a esses filhos de cabeça dura e coração obstinado
que te envio, para lhes dizeres:
‘Eis o que diz o Senhor’.
Podem escutar-te ou não
– porque são uma casa de rebeldes -,
mas saberão que há um profeta no meio deles».

CONTEXTO

            Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte dessa primeira leva de exilados que, em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilónia.
A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor e uma nova leva de exilados foi encaminhada para a Babilónia). Nesta fase, o profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Jahwéh por parte desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.

            A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrolou-se a partir de 586 a.C. e prolongou-se até cerca de 570 a.C. Instalados numa terra estrangeira, privados de Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados estavam desiludidos e duvidavam de Jahwéh e do compromisso que Deus tinha assumido com o seu Povo. Nessa fase, Ezequiel procurou alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador não tinha abandonado nem esquecido o seu Povo.

            O texto que nos é proposto hoje como primeira leitura faz parte do relato da vocação de Ezequiel (cf. Ez 1,1-3,27). Depois de descrever a manifestação de Deus, num quadro que apresenta todas as características especiais das teofanias (cf. Ez 1,1-28), o profeta apresenta um discurso no qual Jahwéh define a missão que lhe vai confiar (cf. Ez 2,1-3,15). O episódio é situado “no quinto ano do cativeiro do rei Joaquin”, “na Caldeia, nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2).

            Seria um erro interpretar este relato como informação biográfica… Trata-se, antes, de mostrar – com a linguagem da época e utilizando os processos típicos da literatura da época – que o profeta recebeu uma missão de Deus e que fala e atua em nome de Deus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Os “profetas” não são um grupo humano extinto há muitos séculos, mas são uma realidade com que Deus continua a contar para intervir no mundo e para recriar a história. Quem são, hoje, os profetas? Onde estão eles?
  • No Batismo, fomos ungidos como profetas, à imagem de Cristo. Cada um de nós tem a sua história de vocação profética: de muitas formas Deus entra na nossa vida, desafia-nos para a missão, pede uma resposta positiva à sua proposta. Temos consciência de que Deus nos chama – às vezes de formas bem banais – à missão profética? Estamos atentos aos sinais que Ele semeia na nossa vida e através dos quais Ele nos diz, dia a dia, o que quer de nós? Temos a noção de que somos a “boca” através da qual a Palavra de Deus se dirige aos homens?
  • O profeta é o homem que vive de olhos postos em Deus e de olhos postos no mundo (numa mão a Bíblia, na outra o jornal diário). Vivendo em comunhão com Deus e intuindo o projeto que Ele tem para o mundo, e confrontando esse projeto com a realidade humana, o profeta percebe a distância que vai do sonho de Deus à realidade dos homens. É aí que ele intervém, em nome de Deus, para denunciar, para avisar, para corrigir. Somos estas pessoas, simultaneamente em comunhão com Deus e atentas às realidades que desfeiam o nosso mundo? Em concreto, em que situações sou chamado, no dia a dia, a exercer a minha vocação profética?
  • A denúncia profética implica, tantas vezes, a perseguição, o sofrimento, a marginalização e, em tantos casos, a própria morte (Óscar Romero, Luther King, Gandhi…). Como lidamos com a injustiça e com tudo aquilo que rouba a dignidade dos homens? O medo, o comodismo, a preguiça, alguma vez nos impediram de ser profetas?
  • É preciso ter consciência, também, que as nossas limitações e indignidades muito humanas não podem servir de desculpa para realizar a missão que Deus quer confiar-nos: se Ele nos pede um serviço, dar-nos-á também a força para superar os nossos limites e para cumprir o que nos pede. As fragilidades que fazem parte da nossa humanidade não podem, em nenhuma circunstância, servir de desculpa para não cumprirmos a nossa missão profética no meio dos nossos irmãos. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 122 (123)

Refrão: Os nossos olhos estão postos no Senhor, até que Se compadeça de nós.

 

Levanto os olhos para Vós,
para Vós que habitais no Céu,
como os olhos do servo
se fixam nas mãos do seu senhor.

Como os olhos da serva
se fixam nas mãos da sua senhora,
assim os nossos olhos se voltam para o Senhor nosso Deus,
até que tenha piedade de nós.

Piedade, Senhor, tende piedade de nós,
porque estamos saturados de desprezo.
A nossa alma está saturada do sarcasmo dos arrogantes
e do desprezo dos soberbos.

LEITURA II – 2Cor 12,7-10

Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios

Irmãos:
Para que a grandeza das revelações não me ensoberbeça,
foi-me deixado um espinho na carne,
– um anjo de Satanás que me esbofeteia –
para que não me orgulhe.
Por três vezes roguei ao Senhor que o apartasse de mim.
Mas Ele disse-me: «Basta-te a minha graça,
porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder».
Por isso, de boa vontade me gloriarei das minhas fraquezas,
para que habite em mim o poder de Cristo.
Alegro-me nas minhas fraquezas,
nas afrontas, nas adversidades,
nas perseguições e nas angústias sofridas por amor de Cristo,
porque, quando sou fraco, então é que sou forte.

CONTEXTO

            A Segunda Carta de Paulo aos Coríntios espelha uma época de relações conturbadas entre Paulo e os cristãos de Corinto. As críticas de Paulo a alguns membros da comunidade que levavam uma vida pouco consentânea com os valores cristãos (Primeira Carta aos Coríntios) provocaram uma reação extremada e uma campanha organizada no sentido de desacreditar Paulo. Essa campanha foi instigada por certos missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo. Entre outras coisas, esses missionários afirmavam que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter convivido com Jesus e que a catequese apresentada por Paulo não estava em consonância com a doutrina da Igreja. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. Depois, bastante magoado, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar a reconciliação.
Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.

            Reconfortado, Paulo escreveu uma tranquila apologia do seu apostolado, à qual juntou um apelo em favor de uma coleta para os pobres da Igreja de Jerusalém. Esse texto é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Estamos no ano 56 ou 57.

            O texto que nos é proposto integra a terceira parte da carta (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Aí Paulo, num estilo apaixonado, às vezes cáustico, mas sempre levado pela exigência da verdade e da fé, defende a autenticidade do seu ministério frente a esses “super-apóstolos” que o acusavam.

            Como apóstolo, Paulo não se sente inferior a ninguém e muito menos aos seus detratores. Estes orgulhavam-se das suas credenciais e afirmavam por toda a parte os seus dons carismáticos… Paulo, se quisesse entrar no mesmo jogo, podia orgulhar-se de muitas coisas, nomeadamente das revelações que recebeu e das suas experiências místicas (cf. 2 Cor 12,1-4); mas ele quer apenas que o vejam como um homem frágil e vulnerável, a quem Deus chamou e a quem enviou para dar testemunho de Jesus Cristo no meio dos homens. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O caso pessoal de Paulo diz-nos muito sobre os métodos de Deus… Para vir ao encontro dos homens e para lhes apresentar a sua proposta de salvação, Deus não utiliza métodos espetaculares, poderosos, majestosos, que se impõem de forma avassaladora e que deixam uma marca de estupefação e de espanto na memória dos povos; mas, quase sempre, Deus utiliza a fraqueza, a debilidade, a fragilidade, a simplicidade para nos dar a conhecer os seus caminhos. Nós, homens e mulheres do séc. XXI, deixamo-nos, facilmente, impressionar pelos grandes gestos, pelos cenários magnificentes, pelas roupagens sumptuosas, por tudo o que aparece envolvido num halo cintilante de riqueza, de prestígio social, de poder, de beleza; e, por outro lado, temos mais dificuldade em reparar naquilo que se apresenta pobre, humilde, simples, frágil, débil… A Palavra de Deus que hoje nos é proposta garante-nos que é na fraqueza que se revela a força de Deus. Precisamos de aprender a ver o mundo, os homens e as coisas com os olhos de Deus e a descobrir esse Deus que, na debilidade, na simplicidade, na pobreza, na fragilidade, vem ao nosso encontro e nos indica os caminhos da vida.
  • A consciência de que as suas qualidades e defeitos não são determinantes para o sucesso da missão, pois o que é importante é a graça de Deus, deve levar o “profeta” a despir-se de qualquer sentimento de orgulho ou de autossuficiência. O “profeta” deve sentir-se, apenas, um instrumento humano, frágil, débil e limitado, através do qual a força e a graça de Deus agem no mundo. Quando o “profeta” tem consciência desta realidade, percebe como são despropositadas e sem sentido quaisquer atitudes de vedetismo ou de busca de protagonismo, no cumprimento da missão… A missão do “profeta” não é atrair sobre si próprio as luzes da ribalta, as câmaras da televisão ou o olhar das multidões; a missão do “profeta” é servir de veículo humano à proposta libertadora de Deus para os homens.
  • Como pano de fundo do nosso texto, está a polémica de Paulo com alguns cristãos que não o aceitavam. Ao longo de todo o seu percurso missionário, Paulo teve de lidar frequentemente com a incompreensão; e, muitas vezes, essa incompreensão veio até dos próprios irmãos na fé e dos membros dessas comunidades a quem Paulo tinha levado, com muito esforço, o anúncio libertador de Jesus. No entanto, a incompreensão nunca abalou a decisão e o entusiasmo de Paulo no anúncio da Boa Nova de Jesus… Ele sentia que Deus o tinha chamado a uma missão e que era preciso levar essa missão até ao fim, doesse a quem doesse… Frequentemente, temos de lidar com realidades semelhantes. Todos experimentámos já momentos de incompreensão e de oposição (que, muitas vezes, vêm do interior da nossa própria comunidade e que, por isso, magoam mais). É nessas alturas que o exemplo de Paulo deve brilhar diante dos nossos olhos e ajudar-nos a vencer o desânimo e a tentação de desistir.
  • Neste texto de Paulo (como, aliás, em quase todos os textos do apóstolo), transparece a atitude de vida de um cristão para quem Cristo é, verdadeiramente, o centro da própria existência e que só vive em função de Cristo… Nada mais lhe interessa senão anunciar as propostas de Cristo e dar testemunho da graça salvadora de Cristo. Que lugar ocupa Cristo na minha vida? Que lugar ocupa Cristo nos meus projetos, nas minhas decisões, nas minhas opções, nas minhas atitudes? in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 6,1-6

Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

Naquele tempo,
Jesus dirigiu-Se à sua terra
e os discípulos acompanharam-n’O.
Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga.
Os numerosos ouvintes estavam admirados e diziam:
«De onde Lhe vem tudo isto?
Que sabedoria é esta que Lhe foi dada
e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?
Não é ele o carpinteiro, Filho de Maria,
e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão?
E não estão as suas irmãs aqui entre nós?»
E ficavam perplexos a seu respeito.
Jesus disse-lhes:
«Um profeta só é desprezado na sua terra,
entre os seus parentes e em sua casa».
E não podia ali fazer qualquer milagre;
apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos.
Estava admirado com a falta de fé daquela gente.
E percorria as aldeias dos arredores, ensinando.

CONTEXTO

            O Evangelho de hoje fala-nos de uma visita à “terra” de Jesus. De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma pequena vila da Galileia situada a 22 Km a oeste do Lago de Tiberíades. Esta povoação tipicamente agrícola nunca teve grande importância no universo na história do judaísmo… O Antigo Testamento ignora-a completamente; Flávio Josefo e os escritores rabínicos também não lhe fazem qualquer referência. Os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf. Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus cresceu e onde reside a sua família.

            A cena principal que nos é relatada por Marcos passa-se na sinagoga de Nazaré, num sábado. Jesus, como qualquer outro membro da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e, fazendo uso do direito que todo o israelita adulto tinha, leu e comentou as Escrituras.

            O episódio que nos é proposto integra a primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Jesus é apresentado como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Na secção que vai de 3,7 a 6,6, contudo, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo face à proclamação de Jesus… À medida que o “caminho do Reino” vai avançando, vão-se multiplicando as oposições e incompreensões face ao projeto que Jesus anuncia. O nosso texto deve ser entendido neste ambiente.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O texto do Evangelho repete uma ideia que aparece também nas outras duas leituras deste domingo: Deus manifesta-Se aos homens na fraqueza e na fragilidade. Normalmente, Ele não se manifesta na força, no poder, nas qualidades que o mundo acha brilhantes e que os homens admiram e endeusam; mas, muitas vezes, Ele vem ao nosso encontro na fraqueza, na simplicidade, na debilidade, na pobreza, nas situações mais simples e banais, nas pessoas mais humildes e despretensiosas… É preciso que interiorizemos a lógica de Deus, para que não percamos a oportunidade de O encontrar, de perceber os seus desafios, de acolher a proposta de vida que Ele nos faz…
  • Um dos elementos questionantes no episódio que o Evangelho deste domingo nos propõe é a atitude de fechamento a Deus e aos seus desafios, assumida pelos habitantes de Nazaré. Comodamente instalados nas suas certezas e preconceitos, eles decidiram que sabiam tudo sobre Deus e que Deus não podia estar no humilde carpinteiro que eles conheciam bem… Esperavam um Deus forte e majestoso, que se havia de impor de forma estrondosa, e assombrar os inimigos com a sua força; e Jesus não se encaixava nesse perfil. Preferiram renunciar a Deus, do que à imagem que d’Ele tinham construído. Há aqui um convite a não nos fecharmos nos nossos preconceitos e esquemas mentais bem definidos e arrumados, e a purificarmos continuamente, em diálogo com os irmãos que partilham a mesma fé, na escuta da Palavra revelada e na oração, a nossa perspetiva acerca de Deus.
  • Para os habitantes de Nazaré Jesus era apenas “o carpinteiro” da terra, que nunca tinha estudado com grandes mestres e que tinha uma família conhecida de todos, que não se distinguia em nada das outras famílias que habitavam na vila; por isso, não estavam dispostos a conceder que esse Jesus – perfeitamente conhecido, julgado e catalogado – lhes trouxesse qualquer coisa de novo e de diferente… Isto deve fazer-nos pensar nos preconceitos com que, por vezes, abordamos os nossos irmãos, os julgamos, os catalogamos e etiquetamos… Seremos sempre justos na forma como julgamos os outros? Por vezes, os nossos preconceitos não nos impedirão de acolher o irmão e a riqueza que Ele nos traz?
  • Jesus assume-Se como um profeta, isto é, alguém a quem Deus confiou uma missão e que testemunha no meio dos seus irmãos as propostas de Deus. A nossa identificação com Jesus faz de nós continuadores da missão que o Pai Lhe confiou. Sentimo-nos, como Jesus, profetas a quem Deus chamou e a quem enviou ao mundo para testemunharem a proposta libertadora que Deus quer oferecer a todos os homens? Nas nossas palavras e gestos ecoa, em cada momento, a proposta de salvação que Deus quer fazer a todos os homens?
  • Apesar da incompreensão dos seus concidadãos, Jesus continuou, em absoluta fidelidade aos planos do Pai, a dar testemunho no meio dos homens do Reino de Deus. Rejeitado em Nazaré, Ele foi, como diz o nosso texto, percorrer as aldeias dos arredores, ensinando a dinâmica do Reino. O testemunho que Deus nos chama a dar cumpre-se, muitas vezes, no meio das incompreensões e oposições… Frequentemente, os discípulos de Jesus sentem-se desanimados e frustrados porque o seu testemunho não é entendido nem acolhido (nunca aconteceu pensarmos, depois de um trabalho esgotante e exigente, que estivemos a perder tempo?)… A atitude de Jesus convida-nos a nunca desanimar nem desistir: Deus tem os seus projetos e sabe como transformar um fracasso num êxito. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção que grande parte da leitura se encontra em discurso direto. Apesar de não ter nenhuma dificuldade aparente, nem palavras de difícil pronunciação, os leitores devem estar atentos à pontuação e às pausas para uma leitura articulada do texto.

            Na segunda leitura, deve começar-se por ter cuidado com a palavra «ensoberbeça», por ser uma palavra menos usual e de difícil pronunciação. Além disso, a proclamação da segunda parte do texto deve ser marcada pela dicotomia presente no texto entre a fraqueza da natureza humana e a força que brota do poder de Cristo

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

REJEIÇÃO DE JESUS

            O Evangelho deste Domingo XIV do Tempo Comum (Marcos 6,1-6) enlaça no do Domingo passado (XIII), pondo Jesus a sair de lá (ekeîthen) (Marcos 6,1), isto é, de Cafarnaum, da casa de Jairo (Marcos 5,35-43), e a dirigir-se para a sua pátria (pátris) (Marcos 6,1), ao encontro dos seus familiares e conterrâneos, sendo o sábado e a sinagoga (Marcos 6,2) o natural lugar desse encontro. Esta primeira ida de Jesus à sua pátria fica a marcar também, no Evangelho de Marcos, a última vez que Jesus ensina numa sinagoga (Marcos 1,21.23.29.30; 3,1; 6,2), e também o sábado será mencionado apenas mais uma vez, precisamente na manhã de Páscoa, escrevendo o narrador: «passado o sábado» (Marcos 16,1).

            E, portanto, tudo neste texto, neste encontro, assume um carácter decisivo. Desde logo a escolha do termo «pátria», que carrega consigo um significado mais intenso e mais amplo do que o mais habitual de «povoação». Com esta forma de dizer, este decisivo encontro com Jesus não fica apenas circunscrito a uma pequena região da Galileia, mas prefigura já o encontro de Jesus com o inteiro Israel, e a mesma rejeição que lhe será movida por este. São mesmo já visíveis desde aqui as resistências ao Evangelho radicadas no nosso coração, e que o Quarto Evangelho porá a claro: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11). Mas também esta última vez a ensinar na sinagoga, e este sábado que aponta para aquele último «passado o sábado» (Marcos 16,1), devem gravar em nós evocações e apelos decisivos. Tudo o que tem sabor a último carrega um particular peso específico.

            Aventurando-nos um pouco mais dentro do texto, não ficaremos certamente admirados por vermos que estes conterrâneos de Jesus estejam a par das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares que, na mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa. Notaremos ainda, sem grande espanto, que os conterrâneos de Jesus sabem, em termos anagráficos, muito mais do que o leitor, sobre Jesus: dele sabem indicar a família, a profissão, a residência. O que nos deve espantar, isso sim, é que aqueles conterrâneos de Jesus não saibam dizer «DE ONDE» (póthen) lhe vem aquela sabedoria única e aqueles divinos prodígios que realiza.

            Às vezes, por termos os olhos tão embrenhados na terra, nas coisas da terra, não conseguimos ver o céu! Veja-se a iluminante cena da cura do cego de nascença (João 9). Em diálogo com o cego curado, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos DE ONDE (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando, com evidente ironia, a cegueira deles: «Isso é “espantoso” (tò thaumastón): vós não sabeis DE ONDE (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! Tal como o cego, e fazendo uso da mesma linguagem, também Jesus “estava espantado” (ethaúmazen) com a falta de fé dos seus conterrâneos (Marcos 6,6). Note-se bem que a falta de fé aqui assinalada não é apenas a negação de Deus. É a rejeição de Jesus em nome de uma errada conceção de Deus. Podemos dizer mesmo: para salvar a honra de Deus! Veja-se bem até onde pode chegar a nossa cegueira! Sim, não é possível, pensam os compatriotas de Jesus, que um carpinteiro, filho de Maria e membro daquela família, que todos conhecem, diga o que diz e faça o que faz! De facto, às vezes, para salvar a honra de Deus, rejeitamos tanta gente humilde!

            Numa altura em que se continua a falar da «receção» do Concílio II do Vaticano, dado que ainda estamos na esteira da celebração dos 50 anos da sua realização (1962-1965), podemos falar também, com as devidas distâncias, da «receção» de Jesus e do seu Evangelho. O texto diz-nos que os seus conterrâneos não o receberam, não se deixaram atravessar por Ele, pelo Céu que Ele indicava e trazia consigo. Ponte para o próximo Domingo (XV), em que ouviremos o episódio que se segue imediatamente ao de hoje (Marcos 6,7-13). Aí, Jesus enviará os seus Doze Apóstolos, dois a dois, despojados de meios ou de equipamento, para ressaltar bem a importância do Anúncio do Evangelho. Mas a ponte entre os dois textos e respetivos Domingos está em que ouviremos Jesus dizer aos seus Apóstolos: «Qualquer lugar (tópos) que não vos “receba” (déxetai)…». Os livros dizem que, em Marcos, o verbo «receber» (déchomai) está sempre referido a Jesus. Trata-se de «receber», de «acolher» Jesus. É então também fácil ver qual é o «lugar» que não «recebeu» Jesus. Mas o problema é sempre este: e nós?

            A figura de Ezequiel, profeta frágil, mas que aponta para um «Deus que dá força» (etimologia do seu nome), por 93 vezes interpelado por Deus com a locução «Filho do Homem», é por Deus incumbido da missão difícil de ser sentinela (tsopeh) (Ezequiel 3,17; 33,7) da casa rebelde de Israel, junto do rio Cobar, em Tel ’Abîb (Ezequiel 1,1-3; 3,15), na Babilónia, uma espécie de «pároco dos exilados». Tel ’Abîb significa «colina da primavera» ou das «espigas». É um lugar duro de exílio, mas, porque lembra a primavera, é também um nome carregado de esperança. Os judeus deram este nome significativo a uma das primeiras colónias que fundaram na Palestina, junto da costa Mediterrânica, em finais do século XIX, onde se situa hoje a capital política de Israel. O rio Cobar é um canal de irrigação, hoje chamado Shatt Ennil, que parte do Eufrates para irrigar a cidade de Nippur, onde os Babilónios instalaram deportados oriundos de diferentes proveniências, entre os quais se contam os deportados de Judá. Na sua fragilidade e na rejeição que experimenta, o profeta Ezequiel ajuda a perceber e a «receber» melhor a figura de Jesus, o Deus feito homem, que a si mesmo se diz nos Evangelhos, por 82 vezes, «Filho do Homem».

            E São Paulo dá testemunho, na Segunda Carta aos Coríntios (12,7-10) da força nova de Cristo, que o habita: «Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que se manifesta a minha força» (2 Coríntios 12,9). E ainda: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Coríntios 12,10).

            O Salmo 123 mostra-nos a força do olhar através de uma série de olhares que se entrecruzam: os meus olhos, os olhos dos servos, os olhos da escrava, os nossos olhos. Os meus olhos e os nossos olhos estão postos em Deus; os dos servos nas mãos dos seus patrões; os da escrava nas mãos da sua patroa. Há, todavia, uma diferença entre as mãos de Deus e as dos patrões. As mãos dos patrões dão ordens. As mãos de Deus abençoam, dão, salvam, embalam com ternura, fazem graça. Portanto, o homem que reza neste Salmo não junta as mãos, mas abre-as para as de Deus, formando uma espécie de puzzle, para receber os dons de Deus; também não fecha os olhos, mas escancara-os para o céu; e tão-pouco se fecha no seu mundo interior, mas abre-se completamente para fora. O orante deste Salmo reza com as mãos e os olhos abertos, com a alma aberta.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 (Ez 2, 2-5)
        2. Leitura II do Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 (2 Cor 12, 7-10)
        3. Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 – Lecionário
        4. Domingo XIV do Tempo Comum – Ano B – 07.07.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024

41Tomando-lhe a mão, disse: «Talitha qûm!», isto é, «Menina, sou Eu que te digo: levanta-te!» 42E logo a menina se ergueu e começou a andar, pois tinha doze anos. Todos ficaram assombrados. Mc 5, 41-42

Viver a Palavra

Como é belo ver Jesus percorrer os caminhos do tempo e da história para que a vida de Deus se cruze com a vida da humanidade! Jesus é o Verbo Eterno que se faz carne e habita no meio de nós. É o Deus eterno que assume a fragilidade e a contingência da nossa natureza. Como nos escreve S. Paulo «Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa, para vos enriquecer pela sua pobreza». Não somos os mais fortes, mas somos filhos do Deus da força e somos enriquecidos pela poderosa força da mansidão e humildade revelados na carne de Jesus, o Messias chamado Cristo.

Jesus atravessa de barco para a outra margem, encontra-se com a multidão, detém-se à beira-mar e percorre com Jairo o caminho até sua casa, tocando e deixando-se tocar por aqueles que se cruzam com Ele no caminho. Deus visita-nos e coloca-se a caminho connosco.

«A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva». É este o surpreendente e desconcertante pedido de Jairo, um notável chefe de uma sinagoga, que se coloca de joelhos diante de Jesus, procurando uma última esperança para a sua filha que está em perigo. Jesus não perde tempo a aferir sobre a gravidade da situação, a questionar a idoneidade daquele homem e da sua família ou da pertinência e disponibilidade para ir a sua casa. Jesus coloca-se a caminho com Ele e acompanha-o uma imensa multidão.

Jesus não é indiferente às nossas dores e angústias, mas também não se limita a meras palavras de circunstância ou discursos mais ou menos compadecidos das mazelas e sofrimentos alheios. Jesus continua a Sua missão de descer ao encontro da humanidade, descendo ao concreto das nossas vidas cheias de bem, bondade e beleza, mas também sujeitas à dor e sofrimento. A prontidão de Jesus para acompanhar Jairo é para nós um desafio a vivermos de olhos e coração abertos sobre o mundo como sentinelas vigilantes e peregrinos da bondade e da ternura.

O ritmo acelerado dos dias e a panóplia de trabalhos e ocupações que nos absorvem não podem ser desculpa para uma vida indiferente ao mundo e aos outros. Só a revolução da ternura poderá inaugurar um tempo novo na história e tornar as nossas vidas um lugar mais belo e o mundo num lugar melhor e mais feliz.

No frenesim da nossa vida quotidiana, cruzamo-nos com uma multidão de pessoas, que tantas vezes não passa de uma massa indistinta que ocupa os lugares do comboio e do metro e me fazem ir de pé ou uma amálgama de viaturas que ocupam as vias de trânsito e que me atrasam ou até de um conjunto de anónimos que trabalham no mesmo espaço laboral que eu ocupo. Não é assim para Jesus! A multidão não é uma massa anónima: «Vês a multidão que Te aperta e perguntas: ‘Quem Me tocou?’». Para Jesus cada um de nós é único e irrepetível e, por isso, sujeito de uma atenção única e pessoal. Como seriam diferentes os nossos dias e como os desencontros quotidianos se poderiam tornar verdadeiros lugares de encontro se fossemos capazes de fazer de cada pessoa um irmão único e irrepetível que sou chamado a acolher, a amar e a cuidar.

Aquela mulher que sofre de uma perda de sangue há doze anos alimenta a esperança que tocando ao menos nas Suas vestes poderá ficar curada. Porventura, esta mulher desconhece que tocar é sempre um gesto recíproco e que tocar em alguém ou algo implica também ser tocado por aquilo que toco. Tocando Jesus, aquela mulher é tocada pelo Seu amor que salva, cura e oferece sentido para a vida. in Voz Portucalense

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No dia 29 de junho celebramos a Solenidade de S. Pedro e S. Paulo e no Domingo, dia 30 de junho, o diretório litúrgico oferece a indicação que em todas as dioceses de Portugal, os ofertórios se destinam à Santa Sé ou, como tradicionalmente é designado, o ofertório é para a Cadeira de S. Pedro. É importante recordar os fiéis da comunhão das igrejas que ela representa e, sobretudo, da caridade a que somos chamados alargando os nossos horizontes à Igreja universal. Celebrar S. Pedro e S. Paulo significa celebrar a unidade fé e a comunhão da Igreja que em Pedro e Paulo encontra duas fortes colunas. Na confissão da fé de Pedro e na força evangelizadora de Paulo, a Igreja encontra um poderoso testemunho para ser lugar da profissão de uma só fé e mãe de coração aberto que sai ao encontro dos seus filhos para que todos possam encontrar em Cristo a única e verdadeira fonte de salvação. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sabedoria 1, 13-15; 2,23-24

Não foi Deus quem fez a morte,
nem Ele Se alegra com a perdição dos vivos.
Pela criação deu o ser a todas as coisas,
e o que nasce no mundo destina-se ao bem.
Em nada existe o veneno que mata,
nem o poder da morte reina sobre a terra,
porque a justiça é imortal.
Deus criou o homem para ser incorruptível
e fê-lo à imagem da sua própria natureza.
Foi pela inveja do demónio que a morte entrou no mundo,
e experimentam-na aqueles que lhe pertencem.

CONTEXTO

O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento. Foi escrito na primeira metade do séc. I a. C., muito provavelmente. O seu autor terá sido um judeu piedoso, de língua grega, nascido e educado na Diáspora (fala-se, em concreto, de Alexandria como o “berço” deste escrito). Ele conhece bem a história e a fé de Israel; mas, por outro lado, também conhece as correntes filosóficas gregas e sabe a atração que elas exercem sobre os seus irmãos na fé. Inquieta-o a tentação da idolatria que ameaça os judeus das comunidades da Diáspora, seduzidos pelo brilho da cultura helénica. Pondo em diálogo a fé tradicional de Israel com a cultura grega, o autor deste escrito pretende mostrar a superioridade da sabedoria de Israel, que brota da fé ancestral do seu povo, em relação à sabedoria que inspira a cultura e o estilo de vida gregos.

Exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, o autor faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o justo e o ímpio no mais-além e descreve, com exemplos tirados da história do Êxodo, as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Javé). Aos seus compatriotas judeus, mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade, o autor convida a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; aos pagãos, convida, por outro lado, a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Javé, o verdadeiro e único Deus… Judeus e pagãos devem estar cientes de que só Javé garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste 13º domingo do tempo comum pertence à primeira parte do livro (cf. Sb 1-5). Aí, o autor do livro propõe uma reflexão sobre o destino do ímpio e o destino do justo. A sua finalidade é consolidar a fé dos judeus perseguidos, ensinando-lhes que as provas suportadas no tempo presente hão de conduzir, necessariamente, à imortalidade na vida que há de vir. Os versículos que compõem a nossa leitura não são contínuos… Mas, quer a primeira parte (Sb 1,13-15), quer a segunda parte (Sb 2,23-24) supõem a catequese exposta nos primeiros três capítulos do livro do Génesis: constituem um comentário e uma atualização do relato da criação e da queda do homem e da mulher. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Apesar das incríveis conquistas da ciência e da técnica, os seres humanos continuam presos à sua debilidade e finitude. Vimos do nada, mas criamos raízes nesta terra e apaixonamo-nos pela vida que conhecemos e construímos, montamos a nossa tenda precária com a ilusão de que ela é duradoura; sonhamos com eternidade, mas somos confrontados a cada instante com a realidade da nossa finitude e perguntamo-nos pelo sentido de uma vida sobre a qual paira sempre a sombra da morte… A morte parece-nos uma força cruel e maliciosa que põe fim aos nossos melhores sonhos e projetos. Quem a inventou? Quem lhe deu poder sobre nós? O “sábio” que redigiu o “Livro da Sabedoria” diz-nos que a morte não vem de Deus. Deus não nos criou para a morte, mas sim para a Vida. Deus, na sua imensa bondade e misericórdia, não quer os seus queridos filhos condenados à morte, mas sim a partilhar com Ele a Vida eterna, a felicidade sem fim. Deus, ao fazer-nos semelhantes a Ele, imprimiu em nós a marca da eternidade. Estamos destinados a viver para sempre com Deus. Acreditamos nisto? É com esta certeza que caminhamos? Esta certeza ilumina o nosso caminho de todos os dias com as cores da esperança?
  • No entanto, é certo que o nosso tempo nesta terra é um tempo limitado. Não somos daqui. O nosso corpo tem o seu ciclo de vida, desgasta-se com o tempo, o cansaço, a doença, e a certa altura termina o seu caminho. É a morte biológica que todos os seres criados, incluindo o homem, conhecerão. Contudo, a morte biológica não é a morte verdadeira, a morte que conta. Precisamos de passar por ela, precisamos de deixar este mundo imperfeito, limitado e precário para entrar na realidade de Deus, na Vida eterna. Custa-nos, naturalmente, despedir-nos daqueles que amamos e que terminam o seu caminho na terra; custa-nos, também, despedir-nos dos nossos projetos, das nossas conquistas, até mesmo das coisas materiais que juntamos… Mas a morte biológica é o passo imprescindível para aceder à Vida eterna, à Vida plena. Como lidamos com a morte biológica, a nossa ou a das pessoas que amamos? Somos capazes de encará-la como um nascimento para a Vida eterna?
  • O “sábio” que redigiu o “Livro da Sabedoria” diz que “foi pela inveja do demónio que a morte entrou no mundo, e experimentam-na aqueles que lhe pertencem”. É uma forma de dizer algo muito sério e muito verdadeiro: sempre que prescindimos de Deus e das suas indicações, sempre que escolhemos caminhos de autossuficiência e que ignoramos Deus, estamos a introduzir no mundo e nas nossas vidas mecanismos de morte. A verdadeira morte não é a morte biológica; é a “morte” de quem escolhe a violência, a injustiça, a exploração dos mais fracos, a ganância que priva de recursos os outros irmãos, a indiferença de quem escolhe ignorar os sofrimentos dos outros homens e mulheres. Quem vive assim, está “morto”. A sua vida deixou de fazer sentido; e o seu egoísmo gera morte e sofrimento à sua volta. Essa é a verdadeira morte, a morte que nunca abrirá as portas de Vida plena, da Vida eterna. Ora, no nosso mundo são muitos os mecanismos que geram morte e sofrimento. Conseguimos identificá-los? Seremos nós próprios, em alguma circunstância, promotores de morte? Que fazemos para combater os mecanismos de morte que desfeiam o mundo e que destroem a vida de tantos dos nossos irmãos e irmãs? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 29 (30)

Refrão: Eu Vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.

 

Eu Vos glorifico, Senhor, porque me salvastes
e não deixastes que de mim se regozijassem os inimigos.
Tirastes a minha alma da mansão dos mortos,
vivificastes-me para não descer ao túmulo.

Cantai salmos ao Senhor, vós os seus fiéis,
e dai graças ao seu nome santo.
A sua ira dura apenas um momento
e a sua benevolência a vida inteira.
Ao cair da noite vêm as lágrimas
e ao amanhecer volta a alegria.

Ouvi, Senhor, e tende compaixão de mim,
Senhor, sede Vós o meu auxílio.
Vós convertestes em júbilo o meu pranto:
Senhor meu Deus, eu Vos louvarei eternamente.

LEITURA II – 2 Coríntios 8, 7.9.13-15

Irmãos:
Já que sobressaís em tudo
– na fé, na eloquência, na ciência,
em toda a espécie de atenções
e na caridade que vos ensinámos –
deveis também sobressair nesta obra de generosidade.
Conheceis a generosidade de Nosso Senhor Jesus Cristo:
Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa,
para vos enriquecer pela sua pobreza.
Não se trata de vos sobrecarregar para aliviar os outros,
mas sim de procurar a igualdade.
Nas circunstâncias presentes,
aliviai com a vossa abundância a sua indigência
para que um dia
eles aliviem a vossa indigência com a sua abundância.
E assim haverá igualdade, como está escrito:
«A quem tinha colhido muito não sobrou
e a quem tinha colhido pouco não faltou».

CONTEXTO

As críticas deixadas por Paulo, na sua primeira carta aos coríntios, a alguns cristãos da cidade pela sua conduta pouco coerente com os valores do Evangelho, tinha criado um conflito grave entre o apóstolo e a comunidade. Na sequência, alguns pregadores cristãos de tendência judaizante, entretanto chegados a Corinto, aproveitaram a “onda” para ajustar contas com Paulo: acusaram-no de cuidar apenas dos seus próprios interesses e de pregar uma doutrina que não estava em consonância com o Evangelho anunciado pelos outros apóstolos. Ao saber disto, Paulo dirigiu-se a Corinto para enfrentar o problema; mas foi mal recebido e retirou-se da cidade bastante incomodado. No entanto, a relação entre Paulo e a comunidade de Corinto não podia terminar dessa forma. Por isso, Paulo enviou a Corinto o seu colaborador Tito, com a missão de acalmar os ânimos e de tentar a reconciliação. Quando Tito se reuniu novamente a Paulo, trazia notícias animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os Coríntios estavam, outra vez, em comunhão com o apóstolo.

Foi então que Paulo dirigiu uma nova carta aos cristãos de Corinto. Nessa carta, Paulo faz uma serena apologia do seu apostolado, apresentando aos seus amigos de Corinto as razões que o movem no seu testemunho e na sua entrega ao serviço do Evangelho (cf. 2 Cor 1,12-71,16). Também responde dos seus detratores, por vezes em tom polémico e mordaz, defendendo a autenticidade e a verdade do seu ministério (cf. 2 Cor 10,1-13,13). Há, ainda, na segunda carta de Paulo aos coríntios uma parte que é eminentemente prática e que se refere a uma questão bastante material e concreta: a uma coleta em favor dos cristãos de Jerusalém, e para a qual Paulo pede a atenção e a generosidade dos cristãos de Corinto (2 Cor 8,1-9,15). Há quem pense que este tema da coleta não fazia parte da segunda carta aos coríntios original, mas sim de uma carta autónoma, cujo texto foi mais tarde “colado” na segunda carta aos coríntios. Pode ser; mas a questão não parece relevante. Seja como for, a segunda leitura que a liturgia deste décimo terceiro domingo comum apresenta-nos palavras de Paulo sobre a coleta em benefício da igreja de Jerusalém.

A comunidade cristã de Jerusalém, hostilizada pelos judeus, não tinha uma vida fácil, inclusive em termos económicos. Além disso, a fome crónica sentida em vários pontos do império romano no tempo do imperador Cláudio, afetou especialmente a Judeia (cf. At 11,28-29) entre os anos 45 e 48, e deixou os cristãos dessa região em situação de grande carência. Paulo encarregou-se de promover uma coleta nas igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia para ajudar os “pobres” de Jerusalém. Essa campanha não tinha apenas o objetivo de mostrar solidariedade para com uma Igreja em situação económica débil; pretendia também fomentar nas novas Igrejas que estavam a surgir a comunhão com a Igreja-mãe de Jerusalém e criar um sentido de universalidade entre todas as comunidades nascidas de Jesus.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Os números da fome no mundo são avassaladores: cerca de 800 milhões de pessoas não têm comida ou não a têm em quantidade suficiente, com incidência especial em certas zonas do nosso planeta, afetadas pela pobreza extrema ou por períodos de colheitas deficientes. Em contrapartida, nas “sociedades do bem-estar”, comemos demasiado, esbanjamos alimentos, destruímos colheitas para manter os preços, potenciamos o consumismo para estimular a economia… Criamos um mundo desigual e desumano, onde o egoísmo se sobrepõe ao amor e à solidariedade. Este não é o “mundo bom” que Deus sonhou para os seus filhos e filhas. Os recursos que Deus colocou à nossa disposição não pertencem a alguns, mas devem chegar a todos. Estamos conscientes de que há muitos irmãos nossos que não têm o necessário para viver? Sentimos que isso nos diz respeito ou, ao contrário, que é algo que não nos tira o sono? Estamos disponíveis para um estilo de vida mais sóbrio, mais simples, menos consumista, menos frívolo, a fim de que os bens que Deus colocou à nossa disposição possam chegar a todos os nossos irmãos?
  • Percebe-se que a preocupação de Paulo, ao propor a coleta em favor da Igreja de Jerusalém, não se esgota numa ajuda material que permita minorar circunstancialmente a carência dos cristãos dessa comunidade. Paulo pretende, principalmente, que os discípulos de Jesus aprendam a viver de acordo com um dinamismo fraterno de partilha e de comunhão, que enriquece quem dá e quem recebe e que é pressuposto de uma nova ordem, de um novo relacionamento entre os homens. Os seguidores de Jesus aprenderam com o seu Mestre a partilha, a solidariedade, a fraternidade, a comunhão; aprenderam com Jesus que “os outros” não são concorrentes ou adversários, mas sim irmãos. Por isso, os seguidores de Jesus são, no mundo, arautos e testemunhas de uma nova ordem, da revolução do amor. Vemos os homens e mulheres que caminham ao nosso lado como irmãos por quem somos responsáveis? Sentimo-nos implicados na procura de soluções para que todos os nossos irmãos tenham uma vida digna? Fazemos o que está ao nosso alcance para criar uma nova ordem, um relacionamento mais fraterno e mais humano entre todos aqueles que partilham connosco esta “casa” que é o nosso mundo?
  • Paulo refere o exemplo de Cristo que, sendo rico se fez pobre, a fim de nos enriquecer pela sua pobreza. É uma expressão muito bela, que nos convida a olhar para o essencial. Cristo chegou até nós feito criança indefesa, sem manias de grandeza ou de importância; cresceu como menino pobre de uma aldeia desconhecida das montanhas da Galileia; fez-se profeta do reino de Deus, mas nem tinha sequer uma pedra onde reclinar a cabeça. Nunca comprou a nossa atenção distribuindo bens materiais; mas fez-se, nosso companheiro de caminho, solidarizou-se com as nossas dores e dificuldades, mostrou-nos em gestos simples e fraternos o amor de Deus Pai. Tornou-nos ricos com a sua pobreza. É possível que nós também não tenhamos bens materiais para partilhar. Mas, como Jesus, podemos fazer-nos companheiros de caminho dos nossos irmãos e irmãs, partilhar as suas dores e as suas alegrias, servir humildemente aqueles que necessitam do nosso cuidado e do nosso amor. Estamos dispostos, como Jesus, a enriquecer os outros com a nossa pobreza? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 5, 21-43

Naquele tempo,
depois de Jesus ter atravessado de barco
para a outra margem do lago,
reuniu-se grande multidão à sua volta,
e Ele deteve-Se à beira-mar.
Chegou então um dos chefes da sinagoga, chamado Jairo.
Ao ver Jesus, caiu a seus pés
e suplicou-Lhe com insistência:
«A minha filha está a morrer.
Vem impor-lhe as mãos,
para que se salve e viva».
Jesus foi com ele,
seguido por grande multidão,
que O apertava de todos os lados.
Ora, certa mulher
que tinha um fluxo de sangue havia doze anos,
que sofrera muito nas mãos de vários médicos
e gastara todos os seus bens,
sem ter obtido qualquer resultado,
antes piorava cada vez mais,
tendo ouvido falar de Jesus,
veio por entre a multidão
e tocou-Lhe por detrás no manto,
dizendo consigo:
«Se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei curada».
No mesmo instante estancou o fluxo de sangue
e sentiu no seu corpo que estava curada da doença.
Jesus notou logo que saíra uma força de Si mesmo.
Voltou-Se para a multidão e perguntou:
«Quem tocou nas minhas vestes?»
Os discípulos responderam-Lhe:
«Vês a multidão que Te aperta
e perguntas: ‘Quem Me tocou?’»
Mas Jesus olhou em volta,
para ver quem O tinha tocado.
A mulher, assustada e a tremer,
por saber o que lhe tinha acontecido,
veio prostrar-se diante de Jesus e disse-Lhe a verdade.
Jesus respondeu-lhe:
«Minha filha, a tua fé te salvou».
Ainda Ele falava,
quando vieram dizer da casa do chefe da sinagoga:
«A tua filha morreu.
Porque estás ainda a importunar o Mestre?»
Mas Jesus, ouvindo estas palavras,
disse ao chefe da sinagoga:
«Não temas; basta que tenhas fé».
E não deixou que ninguém O acompanhasse,
a não ser Pedro, Tiago e João, irmão de Tiago.
Quando chegaram a casa do chefe da sinagoga,
Jesus encontrou grande alvoroço,
com gente que chorava e gritava.
Ao entrar, perguntou-lhes:
«Porquê todo este alarido e tantas lamentações?
A menina não morreu; está a dormir».
Riram-se d’Ele.
Jesus, depois de os ter mandado sair a todos,
levando consigo apenas o pai da menina
e os que vinham com Ele,
entrou no local onde jazia a menina,
pegou-lhe na mão e disse:
«Talitha Kum»,
que significa: «Menina, Eu te ordeno: levanta-te».
Ela ergueu-se imediatamente e começou a andar,
pois já tinha doze anos.
Ficaram todos muito maravilhados.
Jesus recomendou-lhes insistentemente
que ninguém soubesse do caso
e mandou dar de comer à menina.

CONTEXTO

Depois da sua incursão no território pagão da Decápole (cf. Mc 5,1), Jesus atravessou de barco “para a outra margem”, o que significa que veio novamente para território judeu, na margem ocidental do Mar da Galileia. Marcos não identifica o local onde Jesus está (ele diz, apenas, que Jesus se encontrava “à beira-mar”); mas o mais provável é que se trate da cidade de Cafarnaum.

Na narrativa de Marcos, são referidos dois encontros com Jesus, entrelaçados um no outro. Num deles conta-se como um tal Jairo, “um chefe da sinagoga”, que vem ao encontro de Jesus para Lhe pedir ajuda para a sua filha, que está muito doente. Em Israel havia um chefe à frente de cada sinagoga. O titular do cargo era eleito entre os homens mais respeitados da comunidade. Estava encarregue de dirigir o serviço religioso sinagogal, escolher os que deviam recitar as orações e ler as escrituras, procurar pregadores adequados, cuidar de que tudo decorresse de acordo com o que estava definido, encarregar-se da manutenção do edifício sinagogal e da sua ornamentação. Era, portanto, um lugar de destaque na comunidade judaica local.

No outro relato, é uma mulher anónima que vem sozinha ao encontro de Jesus e que espera receber d’Ele a cura para o seu mal. Ora, o “mal” que a afligia, não era um “mal menor”: ela sofria de uma hemorragia incurável que, além de lhe causar um incómodo físico, a impedia de ter uma vida normal, quer em termos familiares, quer em termos sociais, quer em termos religiosos. Marcos guarda um silêncio discreto sobre a origem dessa hemorragia; mas essa descrição indica, provavelmente, que se trata de um qualquer transtorno menstrual. De acordo com a legislação levítica (cf. Lv 15,19-33), essa situação colocava a mulher num estado de “impureza” que a impedia de se aproximar de Deus e de manter contactos com as outras pessoas. Aquela mulher estava impedida pela Lei de ter vida. Sofre muito, física e moralmente. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A nossa precariedade manifesta-se a cada instante. As doenças físicas, a impotência que sentimos diante da violência e da maldade, os medos que nos paralisam, o cansaço que nos afoga, a debilidade que vem com o avançar da idade, a morte daqueles que amamos, fazem-nos sentir vulneráveis e frágeis. A par disso, subsiste em nós o desejo de Vida que não seja precária, de Vida verdadeira e eterna, de Vida que não seja derrotada pela morte. O Evangelho deste domingo garante-nos que o projeto que Deus tem para nós é um projeto de Vida. Foi para nos dar Vida que Deus nos enviou Jesus. Ele veio até nós para nos oferecer a salvação de Deus. Com palavras e com gestos concretos, Jesus mostrou-nos o caminho que vence a morte e que leva à Vida eterna. Estamos cientes de que esse é o projeto de Deus para nós? Vemos em Jesus “o Salvador”, aquele que veio de Deus para nos dar Vida?
  • As histórias da mulher curada de uma hemorragia e da ressurreição da filha de Jairo mostram a importância da fé nesse processo de aceder à Vida que Jesus oferece. É a fé que nos faz procurá-lo, é a fé que nos faz tocá-l’O, é a fé que nos faz ir atrás d’Ele, é a fé que nos faz aderir ao seu projeto, é a fé que nos faz segui-l’O no caminho do amor e da entrega da vida, é a fé que nos permite aderir incondicionalmente às suas propostas e adotar o seu estilo de vida. Sem essa fé, podemos andar à volta d’Ele, frequentar a igreja, ter responsabilidades na comunidade cristã, rezar, receber os sacramentos, mas nunca nos deixaremos transformar por Ele; e, se assim for, nunca haverá lugar no nosso coração para a Vida que Jesus pretende dar-nos. Como é e como vivemos a nossa fé? A nossa fé em Jesus traduz-se numa adesão incondicional à sua pessoa, às suas palavras, aos seus gestos? Estamos verdadeiramente dispostos a segui-l’O no caminho que Ele nos aponta?
  • A mulher que sofria de uma hemorragia fez a experiência dramática de se sentir rejeitada e ostracizada por causa do seu problema de saúde. Sentia-se impura, ignorada, sozinha, perdida, sem poder confiar a alguém aquilo que tanto a fazia sofrer; procurava compreensão, paz, consolação sem saber onde os encontrar; sentia-se suja e não conseguia encontrar maneira de viver uma vida nova e limpa. Não é uma experiência incomum. Há muitos homens e mulheres que, por vezes por razões pouco consistentes, se sentem indignos, impuros, malditos, pecadores, condenados por Deus, e vivem a sua vida num pesadelo de angústia e de culpa, sem saberem como romper a cadeia que as faz escravas. E nem sempre essas pessoas encontram na comunidade cristã, compreensão, acolhimento, testemunho do amor e da ternura de Deus. Alguma vez contribuímos, com a forma como falamos de Deus e da sua justiça, para manter alguém preso a essa cadeia de culpa e de angústia? Somos testemunhas do amor misericordioso de Deus junto dos nossos irmãos, nomeadamente junto daqueles que se sentem pecadores e malditos?
  • No Evangelho deste domingo Jesus ajuda e dá Vida a duas mulheres que sofrem. Ao contrário do que acontecia na sociedade palestina do seu tempo, quer a nível de legislação quer a nível de prática, Jesus não as discrimina nem as ignora; acolhe-as, valoriza-as, compreende-as, respeita-as na sua dignidade, coloca-as ao nível de filhas muito amadas de Deus. Na Igreja de Jesus, já aprendemos isto? Valorizamos suficientemente tudo aquilo que as mulheres fazem no sentido de construir a comunidade de Jesus? in Dehonianos

Para os leitores:

            A aparente facilidade na proclamação das leituras não deve levar os leitores a descurar a sua preparação. Sobretudo, na segunda leitura, é necessário um especial cuidado nas pausas e respirações, sobretudo nas frases mais longas. Uma ajuda na preparação do texto será prestar mais atenção à pontuação do que às quebras de linha que o texto apresenta.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

QUANDO JESUS ENTRA NA NOSSA VIDA

O Evangelho deste Domingo XIII do Tempo Comum (Marcos 5,21-43) oferece-nos dois milagres de Jesus, relatados de forma entrelaçada, um dentro do outro: o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia (Marcos 5,25-34), dentro do relato da chamada «ressuscitação» da filha, de doze anos de idade, de Jairo, um dos chefes da sinagoga (Marcos 5,22-24.35-43).

Aí está Jesus outra vez (pálin), e pela última vez, junto do mar e no meio da multidão, retomando e culminando as situações já anotadas em Marcos 3,7-10 e 4,1. Na multidão anónima, além de Jesus, em quem estão postos todos os olhares, também o do leitor, emerge agora também um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, que rasga a multidão e vem religiosamente prostrar-se aos pés de Jesus e implorar-lhe muito (pollá) que vá impor as mãos à sua filhinha (tygátrion: diminutivo de tygátêr), que está a morrer. E o narrador diz-nos que Jesus foi com ele (met’ autoû), sempre rodeado pela multidão.

Primeira grande verificação: Jesus é aquele que vai sempre connosco. Sobretudo com os que sofrem. Acompanhando-nos, partilha o nosso caminho e as nossas dores. Vai, portanto, Jesus com Jairo e a multidão que os cerca, a caminho da casa de Jairo, quando o narrador nos surpreende e fixa a objetiva nos movimentos e pensamentos de uma mulher anónima que sofria de uma hemorragia havia doze anos, situação física, social e religiosamente dolorosa e embaraçosa, pois a tornava impura e distante de Deus e das pessoas. Ei-la que, com toda a ousadia e fé e confiança, consegue chegar junto de Jesus e tocar-lhe por detrás, na fímbria do manto, de modo que nem Jesus se apercebesse. Fá-lo e fica curada.

A história do contacto desta mulher anónima com Jesus podia terminar aqui. A mulher conseguiu os seus objetivos. Aparentemente, ninguém notou nada. É Jesus quem faz a história avançar, trazendo esta mulher do escuro para a luz. Não quer que a situação desta mulher dolorosa fique apenas no domínio físico e, por assim dizer, impessoal. Olha à sua volta e pergunta: «Quem me tocou as vestes?» (Marcos 5,30). E indo além do descuidado, superficial e insensível dizer dos seus discípulos, que se limitam à mais óbvia das reações: «Então tu vês a multidão que te aperta e dizes: “Quem me tocou?”» (Marcos 5,31). Mas Jesus, senhor de toda a situação, «olhava à volta para ver aquela (tên) que lhe tinha tocado» (Marcos 5,32). É assim que a mulher sai do seu esconderijo, e confessa a Jesus toda a verdade (Marcos 5,33). E ouve de Jesus uma palavra única, única vez dita no Evangelho no feminino! carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade: «Minha filha (tygátêr), a tua fé te salvou!» (Marcos 5,34). Quanto caminho andado! Quanto amor condensado! Esta pobre mulher sofredora e humilhada é agraciada por Jesus e passa a fazer parte da sua família: «Minha filha!».

Mas estava uma menina de doze anos, moribunda, à espera da morte… ou de Jesus. O seu pai, Jairo, luta pela vida da sua filhinha, e veio buscar Jesus para ir a sua casa impor as suas mãos de bênção, portanto, de bem e de cura, sobre a sua filhinha. Todavia, enquanto caminham, chegam os seus criados, que trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus. Aquele pai fica certamente destroçado, como o estavam também os demais familiares e os vizinhos, que, em tais circunstâncias, apenas sabiam chorar e entoar lamentações, como era habitual fazer entre os judeus. E Jesus, que até aqui se tinha limitado a acompanhar Jairo, sem nada dizer, diz agora para Jairo a primeira palavra audível: «Não tenhas medo; tem apenas fé!» (Marcos 5,36).

Jesus nunca chega atrasado. Ele é o Senhor que pelo caminho se demora connosco. À chegada à casa de Jairo, vê prantos e lamentações. Os orientais são excessivos na expressão dos seus sentimentos, quer de alegria, quer de dor. Contra aqueles gritos desarticulados, uma vez mais Jesus diz uma palavra carregada de sentido: «A menina não morreu, mas dorme» (Marcos 5,39). Esta maneira de falar da morte como de um sono é linguagem habitual na Igreja primitiva (1 Tessalonicenses 4,13-15; 1 Coríntios 11,30; 15,6 e 20; Mateus 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje. Notemos que a nossa palavra «cemitério» deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente «dormitório». E, na liturgia, é habitual rezarmos pelos nossos irmãos que adormeceram em Cristo.

Jesus entra depois naquela casa e pega terna e soberanamente na mão da menina. Note-se o número pleno de sete pessoas presentes: Jesus, Pedro, Tiago e João, o pai e a mãe da menina, e a menina. A plenitude rasga a nossa planitude! Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Marcos 5,41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte, e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Sim, Jesus é o «Filho de Deus», o «Cordeiro de Deus», o «Servo de Deus», o «Pão de Deus». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta, ressuscita e levanta.    E a sua voz é mais fina do que o silêncio (1 Reis 19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Hebreus 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (Êxodo 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (Lucas 24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (Atos dos Apóstolos 2,3). É uma voz nova que quebra as nossas crostas, e, desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração. Palavra nova, absolutamente nova, que se capta só em alta-fidelidade, hi-fi, alta sintonia, alta frequência, que acorda até os que dormem nos sepulcros o sono da morte, e deles os retira (João 5,25 e 28).

Desta «ressuscitação» da menina, Jesus manda não dizer nada a ninguém (Marcos 5,43). Mas também se vê bem que esta «ressuscitação» da menina, da irmãzinha, aponta para a verdadeira e plena «ressurreição» de Jesus. E esta, a ressurreição de Jesus, não é para ser calada. É para ser anunciada aos quatro ventos, a todas as nações, a todos os corações.

Como se vê, trata-se de duas cenas únicas e belíssimas, cheias, plenas de humanidade e divindade. Passa, Senhor Jesus, à nossa porta, entra em nossa casa, veste o nosso dorido coração de festa. Faz-nos sentir que somos teus filhos e irmãos queridos. E que as nossas lágrimas de dor podem sempre transformar-se em lágrimas de amor! Porque o teu olhar carinhoso nos descobre sempre e nos faz sair dos nossos esconderijos, e a tua Palavra rasga inclusive o véu da morte!

É-nos hoje dada a graça de ler e de ouvir um pequeno extrato compósito do Livro da Sabedoria (1,13-15; 2,23-24). A Sabedoria exorciza e otimiza o mundo com a luz intensíssima da misericórdia de Deus. Este mundo exorcizado e otimizado por obra da misericórdia de Deus não pode conter em si nem a origem do pecado nem a morte. Por isso, é ao demónio, e não à mulher (cf. Ben-Sirá 25,24), nem sequer à cobra, que o autor do Livro da Sabedoria atribui a entrada do pecado no mundo (Sabedoria 2,24). Se afirma que nenhuma criatura é portadora de veneno, é para ilibar também a cobra (Sabedoria 1,14). Tudo vem de Deus. Tudo caminha para Deus.

A lição continuada da Segunda Carta aos Coríntios (8,7-15) abre-nos hoje uma janela para a teia de caridade tecida com delicadeza nas primeiras comunidades cristãs. À imagem e transparência de Jesus Cristo que, «sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9), S. Paulo, que é, no dizer de Bento XVI, «o maior missionário de todos os tempos», e, de acordo com S. Paulo VI, «modelo de cada evangelizador», regeu a sua missão pela bússola: «Nós só nos devíamos lembrar dos pobres» (Gálatas 2,10). Por isso, porque a atenção para com os pobres constitui o critério de validação da missão, S. Paulo empenhou-se naquela famosa Coleta (logeía), empenhando nela todas as Igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia. Esta Coleta intereclesial constitui, de facto, um verdadeiro «fenómeno único» (hápax phainómenon) no mundo antigo, e são-lhe atribuídos sobretudo os nomes de koinônía [= comunhão], diakonía [= serviço] e sobretudo cháris [= graça], «a graça (cháris) servida por nós», como refere exemplarmente S. Paulo (2 Coríntios 8,19). Aí está uma imensa provocação para as Igrejas de hoje.

O Salmo 30 é uma bela e sentida Ação de Graças a um Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de alegria, saúde, vida, dança e música de festa. O Deus aqui louvado é um Deus que muda as nossas situações difíceis e, por vezes, sem saída, em amplas avenidas floridas. É por isso que, como diz o próprio título «Cântico para a Dedicação do Templo», este Salmo anda ligado à Festa da Hanûkkah ou da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 164 e o fez purificar depois de um período de ocupação e paganização pelos selêucidas.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 ( Sab 1, 13-15;2,23-24)
        2. Leitura II do Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 (2 Cor 8, 7.9.13-15)
        3. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo XIII do Tempo Comum – Ano B – 30.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024

Viver a Palavra

Recentemente ao visitar uma família, quando nos preparávamos para rezar, um dos mais pequenos perguntou-me: «Padre Sérgio, como seria a nossa vida se Jesus não existisse?». Confesso que esta pergunta me tem acompanhado na oração nas últimas semanas, obrigando-me a descobrir novas razões sobre o lugar transformador da presença de Cristo nas nossas vidas. Não bastam como resposta os lugares-comuns que nos saem boca fora, nem as frases feitas sempre à medida para respostas inesperadas. É necessário entrar na oração e na vida quotidiana e descobrir o lugar decisivo que Jesus ocupa na nossa vida. Em primeiro lugar, é importante registar que não está em causa a existência de Deus e a Sua ação na nossa vida. A pergunta é precisamente que diferença haveria na nossa vida se não contássemos com a presença de Jesus que para aquele pequeno é clara e evidente.

  1. Paulo recorda-nos a radical diferença da vida que se constrói em Jesus Cristo: «se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram: tudo foi renovado». A vida em Jesus Cristo é nova e renovadora. A vida sem Cristo não seria apenas mais pobre ou com menos sentido. Na verdade, não seria vida, não teria o mesmo sabor e a mesma força, porque lhe faltaria Aquele que oferece vida verdadeira e prenhe de sentido. Jesus Cristo é o único capaz de dominar e ultrapassar os limites da nossa existência: Ele domina os ventos e marés, vence o pecado e a morte. Por isso, caminhar com Ele é fazer a experiência da força transformadora e renovadora do Seu amor.

Caminhar com Jesus, é, antes de tudo, seguir com Aquele que permanentemente nos desafia: «passemos à outra margem do lago». Como aos discípulos de outrora, Jesus conduz-nos mais longe, mais largo e mais alto. Jesus retira-nos da nossa mediocridade e aponta-nos sempre um horizonte maior e mais largo. Jesus não nos quer instalados e acomodados e ensina-nos a viver a arte de estarmos tranquilos enquanto estivermos inquietos, enquanto no nosso coração residir o desejo de progredir na estrada da santidade.

Atravessar o mar da vida implica largar as seguranças. O medo pode assolar-nos, mas dissipa-se se formos capazes de levar Jesus na nossa barca. Se é Ele que nos convoca e envia, também é Ele que nos precede e acompanha na missão. Por isso, não espanta que diante dos ventos contrários façamos a experiência do aparente sono de Deus. O medo sacode a barca ao ponto de nos fazer sentir totalmente desprotegidos e nem as seguranças de outras tempestades nem as palavras consoladoras que tantas vezes dirigimos a outros parecem fazer sentido: «Mestre, não Te importas que pereçamos?».

A mim surpreende-me sempre que diante daquela tempestade o primeiro instinto tenha sido acordar Jesus. Eles sabiam bem que Ele era o filho de José, o carpinteiro, e que sua mãe era Maria que viva em Nazaré. Não seria mais sensato gritar por Pedro ou André, Tiago ou João, pescadores acostumados às lides do mar? Jesus era aprendiz de carpinteiro na oficina de S. José… Contudo, os discípulos sabem bem que só Jesus conhece o segredo do mar e da tempestade. Sabem que muitas vezes é precisar gritar para acordar Jesus, ou melhor, para acordar dentro de nós a presença efetiva de Jesus.

Os ventos e os mares sopram e Jesus dorme. Diante da violenta força dos ventos e das ondas, a aparente fragilidade de um Deus que dorme. Caminhar com Jesus será sempre abraçar o horizonte maior e mais largo da cruz, onde diante de desafios e exigências que parecem maiores do que as nossas forças, se levanta o Deus forte que dissipa os nossos medos, afasta as nossas trevas e nos abre horizontes de esperança. in Voz Portucalense

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O texto do Evangelho proposto para este XII Domingo do Tempo Comum é um incisivo apelo à fé e à confiança no meio das adversidades do tempo e da história. Diante dos dramas hodiernos, com as sombras e dificuldades que nos envolvem, precisamos de continuar a sentir ressoar nos nossos corações a voz de Jesus que dissipa os nossos medos e renova a confiança e a esperança. Este texto evangélico foi a passagem escolhida pelo Papa Francisco para nos dirigir uma palavra de esperança, no dia 27 de março de 2020, naquele inesquecível momento extraordinário de oração na Praça de S. Pedro. A leitura deste texto é uma oportuna proposta de meditação para todos nós e ajudar-nos-á sempre a repensar a vida e as suas inerentes dificuldades e exigências, convidando-nos a recentrar a nossa vida em Jesus Cristo e no Seu infinito amor. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Job 38,1.8-11

O Senhor respondeu a Job do meio da tempestade, dizendo:
«Quem encerrou o mar entre dois batentes,
quando ele irrompeu do seio do abismo,
quando Eu o revesti de neblina
e o envolvi com uma nuvem sombria,
quando lhe fixei limites e lhe tranquei portas e ferrolhos?
E disse-lhe:
‘Chegarás até aqui e não irás mais além,
aqui se quebrará a altivez das tuas vagas’».

CONTEXTO

O Livro de Job é um clássico da literatura universal, não só pela sua extraordinária beleza literária, mas também pelas questões que aborda e que tocam o âmago da existência humana. A história de Job serve de pretexto para refletir sobre alguns dos grandes desafios que se colocam aos homens de todas as épocas, nomeadamente a questão do sofrimento do justo inocente, a situação do homem diante de Deus e a atitude de Deus face ao homem.

Apresenta-nos a história de um homem bom e justo (Job), repentinamente atingido por um vendaval de desgraças que lhe rouba a riqueza, a família e a própria saúde. No corpo central do livro (cf. Job 3,1-37,24), Job interroga-se acerca da origem do sofrimento que o atingiu e do papel de Deus no seu drama pessoal. Alguns dos amigos de Job procuram responder às suas questões, apresentando as explicações dadas pela teologia oficial: o sofrimento é sempre o resultado do pecado do homem; assim, se Job está a sofrer, é porque pecou… Com a veemência que vem de uma consciência em paz, Job recusa conclusões tão simplistas e demonstra a falência da doutrina oficial para explicar o seu drama pessoal. Com um apurado sentido crítico, Job vai desmontando os dogmas fundamentais da fé de Israel e recusando esse Deus “contabilista” que Se limita a registar as ações boas e más do homem para lhe pagar em conformidade. Deus não pode ser isso; e o caso concreto de Job prova-o.

Rejeitada a explicação tradicional para o drama do sofrimento, Job dirige-se diretamente àquele que lhe pode fornecer as respostas: o próprio Deus. No seu discurso, muito crítico, cruzam-se a animosidade, a violência, as queixas, o inconformismo, a dúvida, a revolta, com a esperança, a fé e a confiança em Deus. Quando, finalmente, Deus enfrenta Job, recorda-lhe o seu lugar de criatura, limitada e finita; mostra-lhe como só Ele conhece as leis que regem o universo e a vida, mostra-lhe a sua preocupação e o seu amor com cada ser criado; convida-o a não se pôr em bicos de pés, a ocupar o seu lugar de criatura e a não pôr em causa os desígnios de Deus para o mundo, já que esses desígnios ultrapassam infinitamente a capacidade de compreensão e de entendimento de qualquer criatura. Deus tem uma lógica, um plano, um projeto que ultrapassa infinitamente aquilo que cada homem (também Job) poderá entender.

A história termina com Job a perceber o seu lugar, a reconhecer a transcendência de Deus e a incompreensibilidade dos seus projetos, a entregar-se nas mãos de Deus com humildade e confiança.

O texto que nos é proposto faz parte do discurso com que Deus responde a Job (cf. Job 38,1-40,2). Nesse discurso, Deus coloca a Job uma série de questões sobre a terra, o mar, os grandes mistérios da natureza e da vida; a finalidade não é obter respostas de Job, mas levá-lo a perceber os seus limites, a sua ignorância, a sua incapacidade para entender o mistério insondável de Deus e os projetos que Deus tem para o mundo e para os homens.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Convivemos diariamente com realidades que são, para nós, fonte de inquietação: o terrorismo e a violência mergulham-nos num clima de ansiedade e de medo; as doenças, novas e velhas, geram angústia e sofrimento; as catástrofes naturais obrigam-nos a tomar consciência da nossa fragilidade e impotência diante das forças da natureza; as injustiças e arbitrariedades provocam revolta e descontentamento social; o desmoronamento de velhas estruturas políticas e sociais trazem insegurança e anarquia… E nós, movendo-nos neste cenário, sentimo-nos confusos e desorientados. Porque não existe ordem e harmonia no nosso mundo? Então, viramo-nos para Deus e atiramos-Lhe as nossas perguntas ou lançamos-Lhe à cara as nossas certezas. Por vezes, criticamos a sua indiferença face aos dramas do mundo; outras vezes, sentimos a tentação de Lhe mostrar, de forma clara e lógica, como é que Ele devia atuar para que o mundo fosse mais ordenado e harmonioso… Pomo-nos em bicos de pés, como se nos quiséssemos colocar no lugar de Deus e dar-Lhe lições. Estamos conscientes da omnipotência de Deus e dos nossos limites, enquanto seres humanos frágeis e limitados? Assumimos com humildade o nosso lugar de criaturas que não conseguem abarcar a grandeza e o sentido pleno dos projetos que Deus tem para o mundo e para os homens?
  • Na verdade, o Deus que criou tudo o que existe, que estabeleceu as leis que regem o universo, que conhece os segredos de cada uma das suas criaturas, que cuida de cada ser com cuidados de pai e de mãe, que mil vezes manifestou na história o seu amor e a sua bondade, não pode ignorar os problemas do homem, ou deixar que a humanidade chegue a um beco sem saída. Ele tem um projeto coerente, maduro, estável, irrevogável para o mundo e para os homens; Ele conduz-nos, através das armadilhas da história, ao encontro da realização plena, da Vida definitiva. Esta certeza deve colorir o nosso caminho de todos os dias com as cores da esperança. Somos homens e mulheres de esperança?
  • Mergulhados no mistério insondável desse Deus omnipotente, por vezes desconcertante e incompreensível, resta-nos entregarmo-nos nas suas mãos com humildade e confiança. Há desafios que Deus nos coloca e que parecem não fazer sentido à luz de uma lógica puramente humana; há caminhos que Deus nos aponta que subvertem absolutamente as nossas certezas e os nossos projetos pessoais ou comunitários; há situações da nossa vida para as quais não encontramos respostas nem sentido… Atrevemo-nos a saltar confiadamente para os braços de Deus, acreditando que Ele não nos deixa cair? É assim a nossa fé? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 106 (107)

Refrão 1: Dai graças ao Senhor, porque é eterna a sua misericórdia.

Refrão 2: Cantai ao Senhor, porque é eterno o seu amor.

 

Os que se fizeram ao mar em seus navios,
a fim de labutar na imensidão das águas,
esses viram os prodígios do Senhor
e as suas maravilhas no alto mar.

À sua palavra, soprou um vento de tempestade,
que fez encapelar as ondas:
subiam até aos céus, desciam até ao abismo,
lutavam entre a vida e a morte.

Na sua angústia invocaram o Senhor
e Ele salvou-os da aflição.
Transformou o temporal em brisa suave
e as ondas do mar amainaram.

Alegraram-se ao vê-las acalmadas,
e Ele conduziu-os ao porto desejado.
Graças ao Senhor pela sua misericórdia,
pelos seus prodígios em favor dos homens.

LEITURA II – 2 Coríntios 5,14-17

Irmãos:
O amor de Cristo nos impele,
ao pensarmos que um só morreu por todos
e que todos, portanto, morreram.
Cristo morreu por todos,
para que os vivos deixem de viver para si próprios,
mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles.
Assim, daqui em diante,
já não conhecemos ninguém segundo a carne.
Ainda que tenhamos conhecido a Cristo segundo a carne,
agora já não O conhecemos assim.
Se alguém está em Cristo, é uma nova criatura.
As coisas antigas passaram: tudo foi renovado.

CONTEXTO

Na Primeira Carta aos Coríntios, Paulo tinha criticado alguns membros da comunidade por viverem de forma pouco condizente com os valores cristãos. Ora, a crítica de Paulo provocara uma reação extremada de algumas pessoas da comunidade e uma campanha organizada no sentido de desacreditar o apóstolo. É provável que essa campanha tenha sido instigada por missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo (afirmavam, inclusive, que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter convivido com Jesus enquanto Ele andou pela Palestina com os seus discípulos). Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detratores. Depois, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar compor as coisas.

Paulo, entretanto, partiu para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.

Reconfortado, Paulo escreveu novamente aos coríntios, fazendo uma tranquila apologia do seu apostolado e apresentando os princípios que sempre nortearam o seu ministério apostólico. Juntou ainda, nesse escrito, um apelo a que os coríntios colaborassem numa coleta em favor dos pobres da Igreja de Jerusalém, que por essa altura viviam com bastante dificuldade. Além da ajuda económica, esse gesto solidário pretendia fomentar a unidade e a comunhão entre as Igrejas. Esse escrito é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Estamos nos anos 56/57.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste décimo segundo domingo comum integra a primeira parte da Carta (cf. 2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo analisa as suas relações com a comunidade de Corinto e explica os valores que ele sempre procurou seguir enquanto missionário e testemunha de Jesus. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Paulo convida-nos a olhar para a cruz e a contemplar o amor de Jesus. A cruz não pode apenas ser um enfeite de ouro que trazemos ao pescoço; mas tem de ser um programa de vida, um programa que o próprio Jesus nos deixou. Aquele Homem que está na cruz, que ama sem medida e que se dá completamente – até à última gota de sangue – para mudar as nossas vidas convida-nos a repensar o nosso estilo de vida, os nossos modelos de construção do mundo, os nossos valores… O “amor até ao extremo” que Jesus mostra na cruz é uma violenta denúncia da nossa indiferença diante dos desprezados, dos marginalizados, dos que não têm condições para viver com dignidade; o despojamento total de Jesus na cruz, por amor, questiona a nossa apatia diante de tantos nossos irmãos que não têm pão, nem casa, nem acesso à instrução ou à saúde; a entrega de Jesus “por todos” põe em causa o nosso egoísmo diante de tantos e tantos irmãos que olhamos sem ver e que todos os dias deixamos abandonados e perdidos nas estradas da vida… Quando contemplamos a cruz de Jesus, o que é que vemos? O que é que sentimos? O amor de Jesus de que a cruz fala tão eloquentemente, inspira-nos a amar, a cuidar, a salvar os nossos irmãos?
  • O objetivo de Deus é fazer aparecer o Homem Novo e a Nova Humanidade. Aos homens, é pedido que aceitem a proposta de Deus, que aceitem renunciar à vida velha do egoísmo e da escravidão e que aceitem nascer, livres e transformados, para o amor que nos torna livres. Como é que acolhemos esta proposta de Deus? Ela conta alguma coisa para nós?
  • Paulo, depois de ter encontrado Jesus, de ter aderido à sua proposta e de ter feito a experiência da liberdade e da Vida nova, tornou-se testemunha, diante dos homens, do projeto salvador e libertador de Deus para os homens. Cada homem e cada mulher que se encontra com Jesus e que faz a mesma experiência de Paulo, tem de tornar-se arauto das propostas de Deus e de anunciar aos seus irmãos, com gestos concretos, essa oferta de Vida nova e verdadeira que Deus nos faz. Nós, os que somos “de Jesus”, somos testemunhas, com palavras e gestos concretos, da Vida nova e da salvação de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 4,35-41

Naquele dia, ao cair da tarde,
Jesus disse aos seus discípulos:
«Passemos à outra margem do lago».
Eles deixaram a multidão
e levaram Jesus consigo na barca em que estava sentado.
Iam com Ele outras embarcações.
Levantou-se então uma grande tormenta
e as ondas eram tão altas que enchiam a barca de água.
Jesus, à popa, dormia com a cabeça numa almofada.
Eles acordaram-n’O e disseram:
«Mestre, não Te importas que pereçamos?»
Jesus levantou-Se,
falou ao vento imperiosamente e disse ao mar:
«Cala-te e está quieto».
O vento cessou e fez-se grande bonança.
Depois disse aos discípulos:
«Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?»
Eles ficaram cheios de temor e diziam uns para os outros:
«Quem é este homem,
que até o vento e o mar Lhe obedecem?»

CONTEXTO

Jesus está junto do Mar da Galileia (cf. Mc 4,1), talvez ao lado da cidade de Cafarnaum. Acabou de apresentar à multidão que o rodeia o seu anúncio, em parábolas, sobre o Reino de Deus (cf. Mc 4,2-34). Com o dia a terminar (“ao entardecer”), Jesus decidiu passar “à outra margem”. Do ponto de vista geográfico, a “outra margem” do Mar da Galileia é o território pagão da “Decápole”: era o nome dado a uma região situada na Palestina oriental, que se estendia desde Damasco, ao norte, até Filadélfia, ao sul. As “dez cidades” (“Decápole”) situadas nesse território (Damasco, Filadélfia, Rafana, Beth Shean, Gadara, Hipos, Diom, Pela, Gerasa e Canata) formavam uma confederação, constituída após a conquista da Palestina pelos romanos, no ano 63 a.C… Eram cidades de cultura grega, não sujeitas às leis judaicas. Estavam sob a administração direta do legado romano da Síria. Os judeus consideravam os habitantes da “Decápole” como pagãos, que viviam completamente à margem dos caminhos da salvação.

O episódio que Marcos nos narra, no Evangelho deste domingo, passa-se durante a travessia do “Mar da Galileia”. Na realidade, o designado “Mar da Galileia” não é um “mar”, mas antes um lago de água doce, alimentado sobretudo pelas águas do rio Jordão, com cerca de 12 quilómetros de largura e 21 quilómetros de comprimento. As tempestades que se levantavam neste “mar”, causadas pelo cruzamento dos ventos que vêm do Mar Mediterrâneo com os ventos que vêm do deserto, podiam aparecer subitamente e ser especialmente violentas.

Para entendermos melhor o que está em causa no episódio que hoje Marcos nos propõe, convém ter presente o que dissemos na primeira leitura a propósito do que o “mar” significava para a mentalidade judaica: era uma realidade assustadora, indomável, orgulhosa, desordenada, onde residiam os poderes caóticos que o homem não conseguia controlar e onde estavam os poderes maléficos que queriam destruir os homens… Só Deus, com o seu poder e majestade, podia pôr limites ao mar, dar-lhe ordens e libertar os homens dessas forças descontroladas do caos que o mar encerrava.

Mais do que uma crónica fiel de uma viagem de Jesus com os discípulos através do Mar da Galileia, a narração que Marcos nos apresenta deve ser vista como uma página de catequese. Usando elementos com uma forte carga simbólica (o mar, o barco, a tempestade, a noite, o sono de Jesus), Marcos apresenta-nos uma reflexão sobre a comunidade dos discípulos em marcha pela história. Marcos escreve numa época em que a Igreja de Jesus enfrenta sérias “tempestades” (perseguição de Nero, problemas internos causados pela diferença de perspetivas entre judeo-cristãos e pagano-cristãos, dificuldades sentidas pelas comunidades em encontrar o caminho para o futuro…); e propõe-se, com a sua narrativa, apresentar aos crentes indicações sobre a forma de viverem a sua fé e o seu compromisso com Jesus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A imagem de um barco onde os discípulos viajam, na companhia de Jesus, é uma bela e feliz imagem da Igreja. Há vinte e um séculos que a comunidade de Jesus viaja pela história; ao longo desta longa e atribulada viagem tem-se confrontado, permanentemente, com impérios hostis, com projetos contrários, com ideologias desafiantes, com a incompreensão do mundo… De vez em quando, ou por imperícia dos marinheiros, ou por falhas na navegação, ou porque as borrascas são especialmente violentas, parece que o barco de Jesus perdeu o rumo e vai naufragar… Mas Jesus vai nele, cuidando de tudo, presidindo a tudo e transmitindo aos discípulos que o acompanham a sua serenidade e a sua paz. Confiamos em Jesus e sentimos que Ele é mais forte do que todos os ventos e marés que temos de enfrentar? Viajamos tranquilos, com a certeza de que o barco de Jesus chegará a bom porto? Vemos e entendemos a Igreja como uma comunidade fraterna que avança na história conduzida por Jesus?
  • Esta imagem de uma viagem onde Jesus também vai poderá servir-nos para ler, ainda, as nossas “viagens” pessoais, durante as quais temos de enfrentar medos, conflitos, perseguições, incompreensões e vicissitudes de todo o tipo. Em certos momentos da “viagem” podemos enfrentar uma tremenda solidão, um medo paralisante, um desânimo angustiante, e perder a noção da presença de Jesus ao nosso lado. Perguntamo-nos, então, se Deus nos abandonou e se Jesus, o nosso companheiro de viagem, adormeceu e nos deixou entregues à nossa sorte… Ora, o Evangelho deste domingo garante-nos que Jesus nunca abandona os seus. O que talvez necessitemos é de tomar verdadeira consciência da presença d’Ele ao nosso lado. Na “viagem” da nossa vida encontramos tempo, espaço e disponibilidade para nos sentarmos ao lado de Jesus, para falarmos com Ele, para escutarmos as suas palavras, para acolhermos a paz que Ele nos oferece, ou só temos olhos e ouvidos para a voz do vento, o rugido do mar, a fúria da tempestade, o tumulto ensurdecedor de um mundo que nos rouba a paz?
  • Jesus convida os discípulos convida os discípulos a entrarem no barco com Ele e a irem até “à outra margem”, ao território dos pagãos que ainda não escutaram a Boa notícia da salvação de Deus. A comunidade que nasce de Jesus é uma comunidade missionária, cuja tarefa é ir ao encontro dos homens e mulheres prisioneiros do egoísmo e do pecado para lhes apresentar a Boa Nova da salvação. A “outra margem” de que Marcos fala no seu Evangelho é hoje qualquer lugar onde haja homens e mulheres abandonados, feridos, injustiçados, que necessitam de se encontrar com a proposta libertadora de Jesus; a “outra margem” é qualquer lugar onde haja pessoas que são violentadas nos seus direitos e na sua dignidade e que precisam que lhes seja aberta a porta da esperança; a outra margem é esse mundo indiferente e hostil que olha com desconfiança o testemunho que damos sobre Jesus, mas que necessita de se encontrar com a proposta de salvação de Deus. Estamos conscientes de que fazemos parte de uma Igreja “missionária”, que não se limita a celebrar liturgias solenes dentro de igrejas ou catedrais imponentes, mas que é enviada por Jesus às periferias da vida para aí testemunhar a salvação de Deus?
  • “Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?” – pergunta Jesus aos discípulos… Não, se eles estão com medo, é porque não confiam incondicionalmente em Jesus. Além disso, eles ainda estão na fase em que, diante das dificuldades, acham que a solução é pedir a Deus que faça uma intervenção milagrosa para os livrar dos perigos. Ainda não chegaram àquele “estado” (que é o da verdadeira fé), que os leva a dizer: “Senhor, entregamo-nos nas tuas mãos de Pai; que a tua vontade se realize, pois estamos disponíveis para a aceitar, seja ela qual for. Faça-se a tua vontade, cumpra-se o teu projeto”. Como é e como se expressa a nossa fé? Enfrentamos as crises da vida com total confiança no amor de Deus, dispostos a acolher com o coração em paz a vontade de Deus?
  • A intervenção de Jesus provoca o “temor” dos discípulos. No contexto do relato evangélico que escutamos neste domingo, o “temor” não significa o medo que paralisa, mas significa o reconhecimento de que Jesus é o Deus presente no meio dos homens e a quem os homens são convidados a aderir, a confiar, a obedecer com total entrega. Este “temor” é um “temor” bom, que é caminho para a fé. Também nós, como os discípulos que iam naquele barco, temos o coração tomado por esse santo “temor” que nos leva confiar totalmente em Jesus e a segui-l’O no caminho do amor até ao extremo, no caminho do dom da vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            Que a brevidade da primeira leitura não faça descurar a sua preparação, pois é um texto que requer bastante cuidado na sua proclamação. A leitura é constituída pela resposta do Senhor a Job e mais de metade do texto é composto por uma única interrogação. Pede-se o cuidado de não deixar a entoação interrogativa para o final da frase, mas ter presente logo no início na partícula interrogativa «quem».

A segunda leitura deve ser marcada por um tom exortativo com especial atenção para as pausas e respirações para uma leitura articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS, À POPA, DORMIA SOBRE UMA ALMOFADA

Vale a pena abrir a página com a serenidade do belíssimo episódio do Evangelho deste Domingo XII do Tempo Comum (Marcos 4,35-41):

«E diz-lhes naquele dia, à tardinha: “Passemos para a outra margem”. E tendo eles deixado a multidão, tomam-n’O consigo (paralambánousin autón), assim como estava (hôs ên), na Barca (en tô ploíô), e outras barcas estavam com ELE. E acontece uma grande tempestade de vento, e as ondas atiravam-se para dentro da Barca, de maneira a ficar cheia a Barca. E ELE estava à popa (prýmna), dormindo (katheúdôn) sobre a almofada (epì tô proskephálaion). E acordam-n’O e dizem-LHE: “Mestre, Tu não Te importas que pereçamos?”. E, tendo acordado, ordenou ao vento e disse ao mar: “Cala-te! Acalma-te!”. E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?”. E foram amedrontados (ephobêthêsan) de um medo grande (phóbos mégas), e diziam uns para os outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”».

Um Evangelho de excelência o deste Domingo XII do Tempo Comum. Um luxo. Em pleno mar da Galileia, os discípulos de Jesus lutam, aflitos, contra a tempestade que ameaça desfazer a pequena e frágil embarcação no meio do mar encapelado (Marcos 4,35-41). A arqueologia pôs a descoberto as pequenas embarcações de pesca do tempo de Jesus. Tinham cerca de 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, tornando-se, portanto, presa fácil das ondas. E em claro e sereno contraponto, narra o Evangelho, «Jesus, à popa, dormia deitado sobre uma almofada» (Marcos 4,38). Não nos esqueçamos que a popa, a traseira do barco, é o lugar de comando da embarcação. A dianteira é a proa. Jesus permanece, portanto, no comando da nossa barca, da nossa vida, ainda que muitas vezes nem nos apercebamos da serenidade da sua condução. A presença da almofada na pobre embarcação e do sono sereno de Jesus marcam bem o tom doce e tranquilo deste condutor diferente da nossa vida agitada. Não é a nossa agitação que conta. É o seu sono tranquilo. Ainda que algumas vezes nós caiamos na tentação, como, de resto, sucede com aqueles discípulos, de julgar o sono de Jesus como indiferença em relação a nós (Marcos 4,38).

Canta bem a Liturgia das Horas da Igreja:

«Se me colhe a tempestade,

                        E Jesus vai a dormir na minha barca,

                        Nada temo porque a Paz está comigo».

Senhor, Tu falas, tu fazes, tu chamas, tu ordenas. Todos os caminhos vêm de ti, vão para ti. És tu o Senhor de todos os chamados, de todos os reunidos, de todos os enviados. Tu és a casa, a mesa, o caminho, o vinho, o pão, o peixe. Velas por todos: pelos pais, pelos filhos, pelos irmãos, pelos desfilhados, pelos órfãos, pelos desirmanados. Vela por nós, Senhor, orienta a nossa barca, deita-te tranquilamente à popa (Marcos 4,38): o teu sono sereno há de certamente serenar as nossas tempestades.

Marcos descreve três travessias do mar da Galileia. Além da de hoje (Marcos 4,35-41), veja-se também Marcos 6,45-52 e 8,13-21. Carateriza-as sempre o facto de a precedê-las estar o afastamento das multidões. Por outro lado, estas travessias do mar na barca deixam Jesus a sós com os seus discípulos, possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. A barca (tò ploîon) demarca, de resto, um espaço privilegiado que Jesus partilha unicamente com os seus discípulos. Mais ninguém entra nessa barca, ainda que o solicite (veja-se Marcos 5,18).

Na travessia de hoje, levantou-se uma violenta tempestade, que encheu de água a pequena barca e de medo aqueles discípulos. Como Jesus dormia tranquilamente deitado sobre a almofada, os discípulos correram a acordá-lo, deixando no ar um certo tom acusatório por aquilo que julgavam ser o desinteresse de Jesus pela vida dos que seguiam com Ele: «Tu não te importas que pereçamos?» (Marcos 4,38).

Jesus levanta-se e mostra um modo novo de fazer, bem diferente dos seus discípulos. Dirige-se primeiro ao vento e ao mar, dando duas ordens: «Cala-te! Acalma-te!» (Marcos 4,39). E parou o vento, e fez-se bonança no mar (Marcos 4,39). Só depois disto, Jesus se dirige aos seus discípulos, não com duas ordens, mas com duas perguntas: «Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?» (Marcos 4,40). Os discípulos não responderam, mas expressam a sua reação perante tudo o que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer: «Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?» (Marcos 4,41).

Já lá atrás, em Cafarnaum, Jesus tinha dado ordens a um espírito impuro, e ele obedeceu (Marcos 1,26-27). Fica então claro que os espíritos impuros e as forças da natureza, que não reagem a palavras humanas, seguem à letra as ordens de Jesus. Os discípulos saem então de um temor para outro ainda maior. É o temor que resulta da experiência do poder divino, sobre humano (cf. Êxodo 14,31). Tal como o perigo, também a salvação do perigo é superior ao homem e vence a humana impotência. O temor novo daqueles discípulos mostra o sentido que começam a ver nascer do fazer divino de Jesus. Mas expressa também o seu espanto diante da pergunta de Jesus, que deixa supor que os devia habitar uma fé sem medida. Em relação a um homem, uma tal fé seria impossível e sem sentido. A pergunta que os discípulos se fazem entre si é, portanto, dupla: «Quem é este que faz tais coisas e que pede uma fé sem medida»? Esta pergunta não exprime dúvida, mas espanto sagrado e pesquisa nova. Acompanhá-los-á daqui para a frente no seu caminho com Jesus.

Note-se que, no episódio hoje diante de nós estendido, a iniciativa de entrar na Barca é de Jesus (Marcos 4,35), mas também é dito que os discípulos «pegam em Jesus, assim como estava, na Barca» (Marcos 4,36). Fica então claro que «nós pegamos nele assim como estava, do mesmo modo que Ele, que nos fez entrar na Barca, «pega em nós assim como estamos»: impotentes, desarmados, cheios de medo!

A lição do Livro de Job, de hoje (Job 38,1.8-11), faz boa companhia à soberba página do Evangelho. Antes de mais, mostra um Deus absolutamente soberano, incontrolável, que não surge na ponta das nossas perguntas ou pedidos. É um Deus absolutamente livre, que irrompe do seio da tempestade, isto é, do seio da liberdade, como nas antigas teofanias. Não vem para responder às muitas perguntas de Job. Vem, antes, para mostrar as maravilhas da criação que nos rodeiam, e fazer-nos perguntas, para as quais não temos resposta nenhuma. Apenas a adoração e o louvor. É assim que Deus faz passar diante de Job as páginas de um álbum repleto de maravilhas impenetráveis. E Job fica maravilhado, atónito, e reconhece que nada sabe, ou que apenas sabe decifrar um ou outro fragmento deste mapa deslumbrante. Uma das páginas deste álbum, a de hoje, é dedicada ao mar, de acordo com o Evangelho. As tintas são excecionais: o ventre de que irrompe, as faixas em que é envolvido como uma criança quando nasce, as portas e ferrolhos que o seguram… Só pode tudo isto ser afazer de Deus!

E aí está S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios (5,14-17), que continuamos a ter a graça de escutar. A chave da vida de Paulo e da nossa é o amor de Cristo por nós, que deve desencadear em nós o nosso amor por Cristo, de modo a vivermos, não já para nós mesmos, em clave egoísta, egocêntrica e autorreferencial, mas para Cristo que por nós morreu e ressuscitou. E aí está uma nova e bela criatura, nascida da graça, chamada a dar graças.

Hoje temos a graça de sermos postos a cantar o Salmo 107, que, na sua estrutura, se apresenta como que composto por quatro ex-votos de pessoas libertadas no meio das diferentes dificuldades que as assolavam. O primeiro ex-voto é de um viajante que se perde e é salvo no deserto (v. 4-9). O segundo vem de um prisioneiro, salvo das cadeias que o oprimiam (v. 10-16). O terceiro vem de um doente libertado das suas dores e da morte (vv. 17-22). O quarto e o mais original, que será a parte cantada hoje, vem de um marinheiro libertado no meio de uma tempestade. De forma significativa, Santo Agostinho, na sua exegese espiritual e alegórica, aplica esta última parte do Salmo aos timoneiros da barca da Igreja, isto é, aos pastores que, diz ele, «quanto mais honras têm, mais perigos têm». E eu digo: é de ter a peito esta leitura sapiencial e profunda, que perfura a superfície das coisas, e nos deixa ocupados num sério exame de consciência. Diga-se ainda, que o Salmo apresenta duas palavras dominantes: uma é a hesed divina, o amor de Deus sempre fiel; a outra é a tôdah humana, a humana gratidão a Deus pelos seus feitos maravilhosos em nosso favor. As duas formam um belo abraço.

Pega em nós, Senhor,
Pega em nós assim como somos,
Assim como estamos,
Perdidos e cansados
Neste mar imenso em que nos afogamos!
Concede-nos, Senhor Jesus,
Que neste tempo de dor e desalento,
Nos ajoelhemos aqui,
Nos refugiemos aqui,
Ao pé da tua Cruz de Luz,
À espera de encontrar algum alento.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 (Job 38, 1.8-11)
        2. Leitura II do Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 (2Cor 5, 14-17)
        3. Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo XII do Tempo Comum – Ano B – 23.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024

Viver a Palavra

Já todos fizemos a experiência de estar a escutar alguém e não conseguir perceber o alcance das suas palavras e o seguimento do seu raciocínio. É uma experiência exigente e desconcertante, pois muitas vezes é exigente para nós interpelar constantemente a pessoa para que se faça entender. Pelo contrário, todos guardamos na memória aquele professor que era capaz de descer ao nosso nível de entendimento, fazer-se entender mesmo quando falava das matérias mais complexas e profundas. A capacidade de se tornar percetível é sinal de empatia e da aptidão para sintonizar com a experiência e a realidade do outro, para que possamos ser eficazes na mensagem que queremos transmitir. Deste modo, esta missão só é possível através de um real interesse pela realidade concreta do nosso interlocutor e uma consciência acurada da importância da mensagem que queremos dirigir.

Assim nos aparece Jesus no evangelho deste Domingo! Ele conhece bem a realidade concreta dos seus interlocutores e está consciente da importância da mensagem que tem para lhes dirigir. Jesus é o Verbo Incarnado, o Rosto da Misericórdia do Pai, Deus eterno e omnipotente dito em carne humana. Vem ao encontro da humanidade para anunciar o Reino de Deus. Este é o centro de toda a Sua missão. Tudo aquilo que disse, fez e ensinou foi para instaurar no mundo o Reino do Pai. Esse Reino está já no meio de nós, mas ainda não se realizou em plenitude: «nós estamos sempre cheios de confiança, sabendo que, enquanto habitarmos neste corpo, vivemos como exilados, longe do Senhor, pois caminhamos à luz da fé e não da visão clara». Vemos este Reino ainda entre as trevas e sombras do tempo presente, mas vislumbrando e saboreando já o Reino que se faz semente a germinar, mesmo quando dormimos, pois, ele não é um reino a conquistar ou a merecer, mas um dom a saber acolher.

Jesus fala da profundidade e da beleza deste Reino por meio de linguagem parabólica, sapiencial e concreta. Jesus sabe dizer e dizer-se utilizando as palavras que o nosso entendimento pode acolher. Utiliza as imagens que o quotidiano dos Seus interlocutores está acostumado a contemplar e assim faz-se percetível, acolhido e compreendido. Jesus fala de Deus através do quotidiano concreto e não de um silogismo filosófico ou um exuberante e enigmático raciocínio teológico.

Como ainda temos tanto a aprender com Jesus…. Temos ainda tanta estrada a percorrer para entrar na verdadeira sabedoria da comunicação do Evangelho do amor! Quantas vezes nos fazemos detentores de um conhecimento profundo de Deus, comunicando-O de modo complexo, fazendo jus da profundidade dogmática e exegética do conhecimento teológico, falando dos mistérios do Reino de modo elevado e abstrato.

O Reino dos Céus é como uma semente, um pequeno grão de mostarda! O Reino de Deus diz-se na simplicidade e concretude de algo insignificante, banal e quotidiano. Assim há-de ser o nosso modo de falar de Deus: deve estar presente no mais insignificante e banal do nosso quotidiano. Na normal sucessão dos nossos dias, nos mais pequenos gestos e partilhas, na nossa vida concreta e real, sem malabarismos nem máscaras, dizer Deus que se faz presente nas nossas vidas quando criamos disponibilidade para que a semente do Evangelho possa germinar e crescer. Quando deixamos esta semente crescer e somos dóceis à ação de Deus em nós, a nossa vida alarga-se, rasgam-se novos horizontes e o arco da nossa vida torna-se uma frondosa árvore onde outros se podem acolher e saborear connosco a alegria de sermos profundamente amados por Deus e chamados a tomar parte na mesa do Seu Reino. in Voz Portucalense

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A proclamação e anúncio do Reino de Deus ocupa o centro da pregação de Jesus. O Reino de Deus não é apenas o Reino que se inaugura para lá da vida sobre esta terra, mas o Reino já inaugurado por Jesus Cristo, que somos chamados a construir no aqui e agora do tempo e da história, para que se realize em plenitude no céu. Este Domingo é a oportunidade para exortar os fiéis a se sentirem protagonistas ativos da construção eclesial e da transformação do mundo, para que o Reino dos Céus se comece a construir sobre a terra e, assim, os homens e mulheres possam experimentar já o desejo do céu e acolher a salvação que o Senhor lhes oferece. in Voz Portucalense

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Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Ezequiel 17, 22-24

Eis o que diz o Senhor Deus:
«Do cimo do cedro frondoso, dos seus ramos mais altos,
Eu próprio arrancarei um ramo novo
e vou plantá-lo num monte muito alto.
Na excelsa montanha de Israel o plantarei
e ele lançará ramos e dará frutos
e tornar-se-á um cedro majestoso.
Nele farão ninho todas as aves,
toda a espécie de pássaros habitará à sombra dos seus ramos.
E todas as árvores do campo hão de saber
que Eu sou o Senhor;
humilho a árvore elevada e elevo a árvore modesta,
faço secar a árvore verde e reverdeço a árvore seca.
Eu, o Senhor, digo e faço».

CONTEXTO

No ano de 609 a. C., o faraó Necao derrotou o rei Josias e colocou no trono de Judá Joaquim, que durante algum tempo foi vassalo do Egipto. Contudo, em 605 a.C., Nabucodonosor derrotou as tropas assírias e egípcias em Carquemish, prosseguiu a sua campanha em direção ao Egipto e assumiu o controlo da Síria e da Palestina. Joaquim ficou a pagar tributo aos babilónios. Quando, em 601, Nabucodonosor não conseguiu conquistar o Egipto, Joaquim julgou chegada a hora de se libertar do domínio babilónico. Contudo, Nabucodonosor reagiu sitiando Jerusalém, em 598 a. C., e Joaquim morreu durante o cerco, ou foi deportado para a Babilónia. Sucedeu-lhe Jeconias que, ao fim de três meses de resistência, se rendeu aos babilónios (597 a.C.).

Nabucodonosor instalou, então, no trono de Judá um tal Sedecias. Durante algum tempo, Judá manteve-se tranquilo, pagando pontualmente os tributos devidos aos babilónios; mas, ao fim de algum tempo, aproveitando a conjuntura política favorável, Sedecias aliou-se com os egípcios e deixou de pagar o tributo. Nabucodonosor enviou imediatamente um exército que cercou Jerusalém. Apesar do socorro de um exército egípcio, Jerusalém teve de se render aos babilónios (586 a.C.). Sedecias tentou fugir da cidade; mas foi feito prisioneiro, viu os seus filhos serem assassinados e ele próprio foi levado prisioneiro para a Babilónia, onde acabou os seus dias.

Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte do primeiro grupo de exilados que, em 597 a.C., foram levados para Babilónia, após a derrota de Jeconias.

A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor). Nesta fase, o profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Javé por parte desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.

É precisamente neste contexto que Ezequiel propõe uma parábola, que nos é apresentada ao longo do capítulo 17 do seu livro. Fala de uma “águia” (provavelmente o rei Nabucodonosor), que “veio do Líbano comer a ponta do cedro (a “casa de David”). Apanhou o ramo mais elevado” (o rei Jeconias) e levou-o “para o país dos comerciantes” (a Babilónia). Em seu lugar, plantou outra árvore (provavelmente Sedecias). Esta árvore, uma “videira”, não irá, contudo, prosperar, apesar das tentativas de aliança com o Egipto. Essa “videira” será, por sua vez, levada para a Babilónia, para o Exílio, e aí morrerá (Ez 17,16).

A parábola é dirigida aos exilados da primeira leva que, na Babilónia, se entusiasmam com as alianças políticas entre Sedecias e os egípcios. Convencidos de que os babilónios irão ser derrotados, eles esperam poder voltar muito em breve à sua terra. Ezequiel, que vê as coisas com mais realismo, convida-os a não terem ilusões: as jogadas políticas de Sedecias não significarão a liberdade dos exilados, mas, pelo contrário, conduzirão a uma nova deportação e à destruição de Jerusalém.

Estará então tudo terminado? Já não há esperança? Deus abandonou definitivamente o seu Povo e esqueceu as suas promessas de salvação?

É precisamente aqui que, subitamente, Ezequiel encaixa o oráculo de salvação que a primeira leitura deste domingo nos apresenta: não, apesar das dramáticas circunstâncias do tempo presente, Deus não abandonou o seu Povo; mas irá construir com ele uma história nova, de salvação e de graça. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Ezequiel, nas condições terríveis do Exílio, transmite ao seu Povo uma mensagem de esperança. Ele garante aos exilados que Deus não os abandonou nem esqueceu. Deus é o Senhor do Universo, que conduz a História humana de acordo com o seu projeto de salvação; Ele é o Deus fiel em quem podemos sempre colocar a nossa confiança, com a certeza de que não ficaremos desiludidos. Esta mensagem também é para nós, homens e mulheres do séc. XXI, que viajamos pela História sob a ameaça de guerras, de conflitos, de injustiças, de maldades, de egoísmos que ferem a nossa dignidade e a dignidade de tantos dos nossos companheiros de caminho… Não estamos abandonados à nossa sorte; Deus não desistiu desta humanidade que Ele ama e continua a querer salvar. A última palavra – uma palavra que não pode deixar de ser de salvação e de graça – será sempre de Deus. Ancorados nessa certeza, temos de vencer o medo e o pessimismo que, por vezes, nos paralisam e dar aos homens nossos irmãos um testemunho de esperança, de serena confiança. Confiamos em Deus, o Senhor da História, que tem um desígnio de salvação e de graça para todos os seus filhos e filhas? Cientes do amor e da fidelidade de Deus, somos testemunhas e arautos da esperança no meio dos irmãos que caminham ao nosso lado?
  • Ezequiel também lembra aos exilados que os modelos de intervenção de Deus na História não são exatamente coincidentes com os modelos e esquemas dos homens. Enquanto os homens apostam em intervenções “musculadas” e poderosas para levar em frente os seus planos, Deus serve-se do que é débil e frágil para concretizar os seus projetos de salvação. A lógica de Deus convida-nos a repensar a nossa forma de ver, de julgar, de atuar; convida-nos a mudar os nossos critérios de avaliação e a nossa atitude face ao mundo e face aos que nos rodeiam. Por um lado, ensina-nos a valorizar aquilo e aquelas pessoas simples e humildes que o mundo, por vezes, marginaliza ou despreza; ensina-nos, por outro lado, que as grandes realizações de Deus não estão dependentes das grandes capacidades dos homens, mas antes da vontade amorosa de Deus; ensina-nos ainda que o fundamental, para sermos agentes de Deus, não é possuir brilhantes qualidades humanas, mas uma atitude de disponibilidade humilde que nos leve a acolher os apelos e desafios de Deus. A nossa forma de “abordar” o mundo e a vida tem em conta essa “lógica de Deus”? Somos capazes de “ler” os sinais de Deus na simplicidade, na humildade, na pequenez que se faz dom a todos? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 91 (92)

Refrão: É bom louvar-Vos, Senhor.

É bom louvar o Senhor
e cantar salmos ao vosso nome, ó Altíssimo,
proclamar pela manhã a vossa bondade
e durante a noite a vossa fidelidade.

O justo florescerá como a palmeira,
crescerá como o cedro do Líbano;
plantado na casa do Senhor,
florescerá nos átrios do nosso Deus.

Mesmo na velhice dará o seu fruto,
cheio de seiva e de vigor,
para proclamar que o Senhor é justo:
n’Ele, que é o meu refúgio, não há iniquidade.

LEITURA II – 2 Coríntios 5, 6-10

Irmãos:
Nós estamos sempre cheios de confiança,
sabendo que, enquanto habitarmos neste corpo,
vivemos como exilados, longe do Senhor,
pois caminhamos à luz da fé e não da visão clara.
E com esta confiança, preferíamos exilar-nos do corpo,
para irmos habitar junto do Senhor.
Por isso nos empenhamos em ser-Lhe agradáveis,
quer continuemos a habitar no corpo,
quer tenhamos de sair dele.
Todos nós devemos comparecer perante o tribunal de Cristo,
para que receba cada qual o que tiver merecido,
enquanto esteve no corpo,
quer o bem, quer o mal.

CONTEXTO

Por volta de 56/57, chegam a Corinto missionários itinerantes que se apresentam como apóstolos e criticam Paulo, lançando a confusão na comunidade. Trata-se, provavelmente, de “judaizantes” que queriam impor aos pagãos convertidos as práticas da Lei de Moisés; ou então de cristãos que condenam a severidade de Paulo e que apoiam o laxismo da vida dos coríntios. Em qualquer caso, trata-se de gente que põe em causa a validade do ministério de Paulo. O apóstolo, informado do que estava a acontecer, dirige-se a toda a pressa para Corinto, disposto a enfrentar o problema. O confronto é violento e Paulo é gravemente injuriado por um membro da comunidade (cf. 2 Cor 2,5-11; 7,11). Na sequência, Paulo abandona Corinto e parte para Éfeso. Passado algum tempo, Paulo envia Tito a Corinto, a fim de tentar a reconciliação. Quando Tito regressa, traz notícias animadoras: o diferendo foi ultrapassado e os coríntios estão, outra vez, em comunhão com Paulo. É nessa altura que Paulo, aliviado e com o coração em paz, escreve esta Carta aos Coríntios, explicando os princípios que norteiam o seu trabalho apostólico.

O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (2 Cor 1,3-7,16), onde Paulo reflete sobre a grandeza e as dificuldades, os riscos e as compensações do ministério apostólico.

O trabalho pastoral é extremamente exigente e está marcado por grandes tribulações (cf. 2 Cor 4,7-12). Paulo está cansado; mas, como homem de fé, “acredita e por isso fala” (cf. 2 Cor 14,13-15). Considera que, apesar de tudo, vale a pena acolher os desafios de Deus: no final do caminho percorrido nesta terra, espera-nos uma vida nova, uma Vida plena e eterna. Para pintar o contraste entre a vida nesta terra e a Vida futura, Paulo utiliza (cf. 2 Cor 5,1-4) a imagem da tenda que se monta e desmonta (que representa a vida transitória e corruptível desta terra) e da casa solidamente construída (que representa a vida plena e eterna). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O quadro civilizacional em que nos inserimos está fortemente marcado por uma cultura do provisório, que dá prioridade ao que é efémero sobre as realidades perenes com a marca da eternidade. Tendemos a viver ao sabor do imediato e do momento, subalternizando as opções definitivas e os valores duradouros. É também uma cultura do bem-estar material: ao seduzir os homens com o brilho dos bens perecíveis, ao potenciar o reinado do “ter” sobre o “ser”, escraviza o homem e relativiza a sua busca de eternidade. É ainda uma cultura da facilidade, que ensina a evitar tudo o que exige esforço, sofrimento e compromisso: produz pessoas incapazes de lutar por objetivos exigentes e por realizar projetos que exijam esforço, fidelidade, compromisso, sacrifício. Neste contexto, a palavra de Paulo aos cristãos de Corinto soa a desafio profético: é necessário que tenhamos sempre diante dos olhos a nossa condição de “peregrinos” nesta terra e que aprendamos a dar valor àquilo que tem a marca da eternidade. É nos valores duradouros – e não nos valores efémeros e passageiros – que encontramos a Vida plena. O fim último da nossa existência não está nesta terra; o nosso horizonte e as nossas apostas devem apontar sempre para o mais além, para a Vida plena e definitiva. Como é que nos situamos perante a vida: como alguém que se limita a “aproveitar o momento”, ou como alguém que caminha de olhos postos na eternidade? Quais são as nossas prioridades?
  • No entanto, o facto de vivermos a olhar para o mais além não pode levar-nos a ignorar as realidades terrenas e os compromissos com a construção da cidade dos homens. O Reino de Deus – que atingirá a sua plena maturação quando tivermos ultrapassado o transitório e o efémero da vida presente – começa a ser construído nesta terra e exige o nosso compromisso pleno com a construção de um mundo mais justo, mais fraterno, mais verdadeiro, mais humano. Não há comunhão com Cristo se nos demitimos das nossas responsabilidades em testemunhar os gestos e os valores de Cristo. Sentimo-nos plenamente envolvidos na construção da “cidade” dos homens? As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo, como diz a Constituição Pastoral “Gaudium et Spes”, do Concílio Vaticano II. in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 4, 26-34

Naquele tempo,
disse Jesus à multidão:
«O reino de Deus é como um homem
que lançou a semente à terra.
Dorme e levanta-se, noite e dia,
enquanto a semente germina e cresce, sem ele saber como.
A terra produz por si, primeiro a planta, depois a espiga,
por fim o trigo maduro na espiga.
E quando o trigo o permite, logo mete a foice,
porque já chegou o tempo da colheita».
Jesus dizia ainda:
«A que havemos de comparar o reino de Deus?
Em que parábola o havemos de apresentar?
É como um grão de mostarda, que, ao ser semeado na terra,
é a menor de todas as sementes que há sobre a terra;
mas, depois de semeado, começa a crescer,
e torna-se a maior de todas as plantas da horta,
estendendo de tal forma os seus ramos
que as aves do céu podem abrigar-se à sua sombra».
Jesus pregava-lhes a palavra de Deus
com muitas parábolas como estas,
conforme eram capazes de entender.
E não lhes falava senão em parábolas;
mas, em particular, tudo explicava aos seus discípulos.

CONTEXTO

Estamos na Galileia, nas margens do lago de Tiberíades, certamente junto da cidade de Cafarnaum. Uma grande multidão está com Jesus, interessada em escutar os seus ensinamentos (cf. Mc 3,7.20.32; 4,1). Então, Jesus “sobe para um barco e senta-se nele”, ficando a multidão na margem, a escutá-l’O (Mc 4,1-2). Para que o anúncio do Reino de Deus chegue ao coração dos que O seguem, Jesus usa uma linguagem acessível, viva, interpeladora, concreta, pedagógica… As suas histórias curtas, incisivas, recamadas de imagens, podem ser catalogadas na categoria das “parábolas”.

As “parábolas” são uma linguagem habitual na literatura dos povos do Médio Oriente: o génio oriental gosta mais de falar e instruir através de imagens, de comparações, de alegorias, do que através de um discurso mais lógico, mais frio, mais racional. De resto, a linguagem parabólica tem várias vantagens em relação a um discurso mais racional e expositivo. Que vantagens?

Em primeiro lugar, é uma excelente arma de controvérsia. A linguagem figurada permite levar o interlocutor a admitir certos pontos que, de outro modo, nunca mereceriam a sua concordância. A parábola é, pois, um bom instrumento de diálogo, sobretudo em contextos polémicos (como era, quase sempre, o contexto em que Jesus pregava).

Em segundo lugar, a imagem ou comparação que caracteriza a linguagem parabólica é muito mais rica em força de comunicação e em poder de evocação, do que a simples exposição teórica. Talvez seja uma linguagem mais vaga e imprecisa, do ponto de vista racional; mas é mais profunda, mais carregada de sentido, mais evocadora e, por isso, “mexe” mais com os ouvintes.

Em terceiro lugar, porque a linguagem parabólica – muito mais do que outro tipo de linguagem – espicaça a curiosidade e incita à busca. Na sua simplicidade, torna-se um verdadeiro método pedagógico, que leva as pessoas a pensar por si, a medir os prós e os contras, a tirar conclusões, a interiorizar soluções e a integrá-las na própria vida. É uma linguagem que, mais do que injetar nas pessoas soluções feitas, as leva a refletir e a tirar daí as devidas consequências. Trata-se, pois, de linguagem altamente subversiva: ensina o povo a pensar, a ser crítico, a descobrir onde está a verdade. Ora, isso é altamente incómodo para os defensores do mundo velho e da ordem estabelecida.

Uma linguagem tão sugestiva não podia ser ignorada por Jesus no seu anúncio do reino de Deus. O evangelho deste décimo primeiro domingo do tempo comum apresenta-nos precisamente duas das mais conhecidas parábolas de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A cada instante os meios de comunicação social colocam à nossa disposição um volume considerável de informação. É uma boa coisa estarmos informados sobre o que acontece à nossa volta; mas, muitas vezes, aquilo que ouvimos e lemos traz-nos preocupação e angústia. Todos os dias somos submersos por uma avalanche de histórias de violência, de injustiça, de exploração dos mais fracos, de ganância, de orgulho, de ambição, de egoísmo. Perguntamo-nos, diante do quadro com que nos deparamos, se Deus perdeu o controle da História e se desistiu de nós… Ficamos com a impressão de que o nosso mundo é um barco desgovernado que caminha para um desastre anunciado. Jesus não tinha essa perspetiva das coisas. Ele achava que Deus semeou no mundo uma semente boa – a semente do Reino de Deus – e que essa semente está todos os dias a germinar, a crescer, a desenvolver-se, a dar fruto. E é verdade: os gestos de amor, de partilha, de serviço, de perdão que acontecem no nosso mundo são mil vezes mais do que os gestos de maldade, os gestos que causam sofrimento e dor. Como é que “lemos” aquilo que vemos acontecer à nossa volta? Como uma história de fracasso, ou como uma história de salvação onde Deus, sem dar nas vistas, está a atuar? Somos capazes de ver os sinais do Reino de Deus na vida e na história do nosso tempo?
  • Jesus veio lançar nos corações a semente do Reino de Deus. Fê-lo, com palavras e gestos, por toda a Galileia e Judeia, até dar a vida na cruz. Depois, quando voltou para o Pai, deixou aos seus discípulos a missão de continuarem a sementeira do Reino. Talvez não nos sejam pedidas coisas grandes capazes de transformar, de um instante para o outro a face do mundo; mas é-nos pedido que espalhemos à nossa volta pequenas sementes de Evangelho, que depois crescem e mudam o mundo e as vidas: um gesto amistoso dirigido a alguém que vive desorientado, um sorriso acolhedor oferecido a alguém que se sente abandonado, um sinal de proximidade acenado a alguém que está desesperado… Somos, de facto, “semeadores do Reino? As nossas palavras e os nossos gestos dão testemunho desse mundo novo que Jesus veio propor?
  • Os que, continuando a missão de Jesus, anunciam a Palavra (que lançam a semente) não devem preocupar-se com a forma como ela cresce e se desenvolve. Devem, apenas, confiar na eficácia da Palavra anunciada, conformar-se com o tempo e o ritmo de Deus, confiar na ação de Deus e no dinamismo intrínseco da Palavra semeada. Isso equivale a respeitar o crescimento de cada pessoa, o seu processo de maturação, a sua busca de caminhos de Vida e de plenitude. Não nos compete exigir que os outros caminhem ao nosso ritmo, que pensem como nós, que passem pelas mesmas experiências e exigências que para nós são válidas. Preocupamo-nos em respeitar a consciência e o ritmo de caminhada de cada homem ou mulher, como Deus sempre faz?
  • A referência à pequenez da semente (segunda parábola) convida-nos – como já o havia feito a primeira leitura deste domingo – a rever os nossos critérios de atuação e a nossa forma de olhar o mundo e os nossos irmãos. Os exemplos que a história da salvação nos revela não deixam margem para qualquer dúvida: é naquilo que é pequeno, débil e aparentemente insignificante que Deus Se revela. Deus está nos pequenos, nos humildes, nos pobres, nos que renunciaram a esquemas de triunfalismo e de ostentação; e é através deles que Deus transforma o mundo e faz acontecer a salvação. Sempre que nos deixamos levar por tentações de grandeza, de orgulho, de prepotência, de vaidade, estamos a ir em sentido contrário ao do Reino de Deus e estamos a frustrar o projeto de Deus. Temos consciência disto? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ler a frase inicial consciente de que ela abre e prepara o discurso que se segue – é Deus quem se dirige ao povo. Ter em atenção as expressões «Eu sou o Senhor» e «Eu, o Senhor, digo e faço». Estas expressões fazem parte do modo como Deus se apresenta e se identifica, por isso, deve ter-se em atenção a sua proclamação.

Na segunda leitura, deve ter-se presente o tom exortativo presente ao longo de todo o texto. Além disso, deve aproveitar-se a expressividade presente na repetição da conjunção disjuntiva «quer… quer».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UMA SEMENTE PEQUENINA

O Evangelho deste Domingo XI do Tempo Comum (Marcos 4,26-34) põe-nos na mão, nos olhos e no coração duas parábolas singulares: a da semente que germina e cresce sozinha (v. 26-29), e a do grão de mostarda (v. 30-32). As parábolas são pequenas, porque falam do que há de mais pequeno: a semente. A semente é a palavra (Marcos 4,14; Lucas 8,11). Ora, a semente – semente de planta, semente de animal, semente de homem – é a vida. Jesus ensina que é a palavra que semeia a vida, pois é o seu começo. Entenda-se por este prisma o começo da vida nova do Reino de Deus que pode sempre nascer em nós, quando temos a graça de ver chegar até nós a palavra do Evangelho, o próprio Evangelho em pessoa, Jesus Cristo, que nos faz nascer do alto e nos faz nascer de novo (ánôthen) (João 3,3).

Também pequeninos são os passarinhos que vêm abrigar-se nos ramos das árvores (Marcos 4,32). As coisas pequeninas – plantas, animais, crianças – requerem uma maior atenção. Toda a atenção, portanto, à palavra de Jesus, que nos é magistralmente repartida aos bocadinhos, como migalhas de pão.

Bem entendido, o texto das duas pequenas, mas belas parábolas hoje expostas diante de nós, vem depois da chamada «parábola do semeador» ou «da semente», que é narrada em Marcos 4,1-9, e explicada em Marcos 4,13-20, mas que devemos ter bem presente para compreendermos melhor as duas pequenas parábolas de hoje. A parábola do «semeador» ou da «semente» segue o esquema «3 + 1» [caminho, terreno pedregoso, espinhos + terra boa], que é já, de per si, ilustrativo, pois nos obriga a esperar até ao fim para ver o correto e lento percurso desde a sementeira [novembro/dezembro] até à colheita [abril/maio]. É mesmo dito, na parábola, pedagogicamente, que a semente que germina depressa também seca depressa (Marcos 4,5-6).

É notório que a semente é coisa bem pequenina. É o que há de mais pequeno. Mas contém inscrito no seu ADN um percurso semelhante ao de Jesus. De facto, uma vez caída à terra, dará o grão e o pão. Caída à terra, morre para nascer de outra maneira. É a Paixão. Da semente à Paixão e ao Pão: é todo o processo ou parábola de JESUS a passar diante dos nossos olhos atónitos! Portanto, se não entendemos a semente, o início do processo, pergunta Jesus, como entenderemos o inteiro processo e o seu final? (Marcos 4,13). Como entenderemos a glória sem a humildade?

De forma significativa, as duas parábolas de hoje, situadas ainda no cone de luz da parábola da «semente», só reclamam a ação humana em dois momentos distanciados no tempo: quando é lançada a semente à terra (Marcos 4,26), e quando chega o tempo da colheita (Marcos 4,29). Entre estes dois momentos, sucedem-se os dias e as noites, o homem dorme e acorda, e a semente lançada na terra germina, cresce e produz o seu fruto «automaticamente» (automátê), sem que o homem saiba «como» (Marcos 4,27-28). Não o sabia, e não o sabe, o homem simples, do campo, de então e de hoje, embora o saiba hoje a biogenética. Hoje, a ciência sabe o «como», mas também não sabe responder ao «porquê». Temos todos de começar mesmo pela atitude sublime da admiração!

E no que ao grão de mostarda diz respeito, a ação humana só é evocada quando o pequeno grão, que é a menor de todas as sementes, é semeado na terra (Marcos 4,31). Depois, só lhe é dado constatar que uma árvore cresce e deita grandes ramos, em que até os pássaros do céu se vêm abrigar (Marcos 4,32).

O que é que isto quer dizer? Quer dizer com certeza que o Reino de Deus tem o seu dinamismo próprio, e que é de crescimento. E mais do que querer saber qual é esse dinamismo, porventura para dele se apoderar e controlar e até empenhar-se no seu desenvolvimento, a reação do homem deve ser, antes de mais, de admiração, adoração, louvor e gratidão. Jesus, o Filho de Deus, Deus Ele mesmo, atravessa o nosso mundo na condição humilde da nossa humana natureza, utilizando a cultura hebraica em que nasceu, falando a língua então popular nessa cultura, o aramaico, servindo-se das imagens mais simples e próximas, ao alcance de todos: os campos, a semente, as árvores, as aves… Também passará pelo sofrimento e pela morte. Só depois virá a glória da ressurreição. E o Apóstolo Paulo dirá: o que aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós; como aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós! Dito por Jesus: a eles (v. 34a), aos de fora (v. 11b), tudo chega em parábolas, mas a vós (v. 11a), «aos próprios discípulos» (toîs idíois mathetaîs) (v. 34b), é dado o mistério do Reino de Deus (v. 11a), e explicava-lhes tudo (v. 34b). De notar que a expressão «os próprios discípulos» só se encontra nesta passagem, e mostra a particularíssima relação que os une a Jesus.

A parábola do pequeno rebento do cedro, apresentada por Ezequiel (17,22-24), está em perfeita sintonia com as parábolas do Evangelho de hoje. Um pequeno rebento plantado por Deus em Israel crescerá tanto que servirá de abrigo a todas as aves do céu. E além disso servirá ainda de aviso a todas as grandes árvores do campo, pois, na verdade, Deus derruba a árvore grande e exalta a pequena, seca a árvore verde e reverdece a seca. Esta pequena parábola ganha ainda mais relevo se posta em confronto com a parábola da videira luxuriante, que é o rei Sedecias, plantada por Nabucodonosor em 597, e que volta os seus ramos quer para a Babilónia quer para o Egito, as duas grandes águias, os dois senhores do tempo. Não terá sucesso Sedecias, pois será apanhada nas malhas da rede de Deus, e não vingará (Ezequiel 17,1-21). Na verdade, embora tendo fugido, é alcançado por Nabucodonosor perto de Jericó, em 587. Antes de lhe serem vazados os olhos e de ser levado cego para a Babilónia, terá de ver ainda, com os seus olhos, serem mortos os seus filhos e a sua mulher. Lição: assim caem as árvores grandes! Mas a árvore pequenina, plantada por Deus continuará a crescer sem sobressaltos e servirá de morada aos passarinhos!

O Apóstolo Paulo continua, na lição contínua ou semi-contínua da Segunda Carta aos Coríntios (5,6-10), a encorajar-nos a habitar sempre na Casa do Senhor, mesmo quando habitamos ainda neste corpo, aparentemente longe do Senhor. Os verbos a que Paulo mais recorre nestes poucos versículos são os verbos endêméô e ekdêméô (três vezes cada um). O termo chave, que explica as duas formas verbais, é dêmos [= povo], com as duas partículas en [= em] e ek [= fora de]. Endêméô significa então habitar junto do seu povo, sentir-se em casa, enquanto ekdêméô significa habitar fora do seu povo, distante de casa. A nossa casa verdadeira é estar em Casa com o Senhor. Mas enquanto estamos distantes dele, sabemos, pela fé, que é para a sua Casa que caminhamos.

O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o Cântico do dia de sábado (Salmo 92), Cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo!

Deita com ternura a semente na terra
É o seu berço natural
E adormece suavemente
Tu e a semente
A semente não erra
A semente não mente
Adormece na terra
Aparece depois um fiozinho de erva
Nasce e cresce
Uma flor floresce
Um fruto amadurece
Um pássaro desce
E reza e canta e dança e debica e agradece
Ao Senhor da messe.
Senhor Jesus,
Dá-me um coração puro e transparente
Como uma nascente,
Como uma semente,
E ensina-me a ser simples e leve
Como aquele pássaro que do céu desce,
E reza e canta e come e agradece.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitua I do Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024 (Ez 17, 22-24)
        2. Leitura II do Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024 (2Cor 5, 6-10)
        3. Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024- Lecionário
        4. Domingo XI do Tempo Comum – Ano B – 16.06.2024- Oração Universal
        5. A Homilia
        6. Anselmo Borges – A Eucaristia. A vida antes do dogma
        7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024

Viver a Palavra

«Onde estás?»: esta é a primeira pergunta que Deus dirige à humanidade. O primeiro casal humano, ouvindo os passos de Deus, depois de terem transgredido as ordens dadas pelo Criador, esconde-se pela vergonha de se sentirem nus. A nossa fragilidade e o nosso pecado despem as máscaras e adornos com que tantas vezes camuflamos o que verdadeiramente somos. Contudo, é necessário amadurecer a capacidade de integrar na nossa vida os nossos limites e fracassos e aprender a encontrar neles pontos de esforço onde somos chamados a investir para crescer na estrada da santidade.

            Evitar a pergunta decisiva – «onde estás?» – não nos permite amadurecer nem crescer porque nos bloqueia e nos faz ficar escondidos apenas a lamentar a nossa pobre condição. Somos barro frágil e débil que permanentemente precisa de ser visitado pelo Criador para se situar no tempo e na história, na relação com Deus e com os irmãos. O itinerário crente escreve-se no devir do tempo, percorrendo a estrada que nos conduz de onde estamos e daquilo que somos, para onde Deus nos quer e para aquilo que Ele nos chama a ser. Por isso, é necessário enfrentar os medos e a vergonha que nos paralisa e nos faz esconder, para que possamos caminhar com renovada confiança na mão firme e segura Daquele que nos aponta o caminho da verdadeira liberdade.

            É sempre tentador encontrar alguém a quem jogar a culpa e desculpabilizar o nosso erro: «a mulher que me destes por companheira deu-me do fruto da árvore e eu comi». Adão consegue culpabilizar a mulher, culpabilizando Deus de lha ter dado como companheira. Mas se, por um lado, é apetecível lançar fora a nossa culpa projetando-a em alguém, mais reconfortante e libertador é assumir a verdade do que somos, situar-nos no tempo e na história com as nossas mãos vazias e avançar cofiando na fragilidade que se faz força quando assumida e integrada com verdade.

            Contrasta com a figura de Adão e Eva o testemunho de Maria, aquela que diante da Sua pequenez se colocou diante de Deus disponível para o seu acontecer. A Virgem de Nazaré encontrou no cumprimento da Palavra de Deus o caminho que a fez avançar do receio e dos temores iniciais para a confiança e a ousadia da adesão total e disponível à vontade de Deus. Confrontado com a presença da sua mãe e dos seus irmãos, Jesus proclama a alta voz que Sua Mãe e Seus irmãos são aqueles que encontram na vontade de Deus a norma orientadora do Seu agir.

            Maria ensina-nos a responder à pergunta – «onde estás?» – com um sim pronto e disponível: «Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra». O cumprimento da Palavra de Deus e o seguimento da Sua vontade unificam a vida e transformam o coração, ao invés do pecado e da desconfiança que dão lugar à divisão e ruína: «se um reino estiver dividido contra si mesmo, tal reino não pode aguentar-se». O pecado fere a nossa relação com Deus e com os irmãos, destrói a harmonia e a comunhão e faz despontar a vergonha e o escondimento. Só a verdade nos liberta e só a vontade de Deus nos conduz à verdadeira liberdade. Efetivamente, a liberdade verdadeira não se define como um átrio largo e vasto onde todas as coisas nos são possíveis, mas na consciência de que sou verdadeiramente livre quando podendo fazer a escolha decisiva entre o bem e o mal, escolho o bem supremo que é Jesus Cristo e o Seu Evangelho.in Voz Portucalense

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            Este mês de junho é marcado pelas festas dos Santos Populares que enchem as nossas terras de alegria, música e comemorações típicas. Na verdade, a celebração das festas dos santos deve ser sempre marcada pela alegria e pela festa, pois recordamos o testemunho gaudioso daqueles que seguiram a Cristo de todo o coração. A Liturgia da Palavra deste Domingo recorda que o seguimento de Jesus se faz abraçando a nova lógica do Reino, assumindo as nossas fragilidades e limitações, encontrando no fiel cumprimento da vontade de Deus o caminho da verdadeira liberdade. in Voz Portucalense

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           Continuamos no ciclo – Ano B – do Ano Litúrgico. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 3,9-15

Depois de Adão ter comido da árvore,
o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe:
«Onde estás?»
Ele respondeu:
«Ouvi o rumor dos vossos passos no jardim
e, como estava nu, tive medo e escondi-me».
Disse Deus:
«Quem te deu a conhecer que estavas nu?
Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?»
Adão respondeu:
«A mulher que me destes por companheira
deu-me do fruto da árvore e eu comi».
O Senhor Deus perguntou à mulher:
«Que fizeste?»
E a mulher respondeu:
«A serpente enganou-me e eu comi».
Disse então o Senhor Deus à serpente:
«Por teres feito semelhante coisa,
maldita sejas entre todos os animais domésticos
e todos os animais selvagens.
Hás de rastejar e comer do pó da terra
todos os dias da tua vida.
Estabelecerei inimizade entre ti e a mulher,
entre a tua descendência e a descendência dela.
Ela há de atingir-te na cabeça
e tu a atingirás no calcanhar».

CONTEXTO

            Como indica a palavra Génesis (que significa «origem»), que intitula o primeiro livro da Sagrada Escritura, este é o livro das origens, não apenas porque narra o início da criação e do mundo (cf. Gn 1,1: «No princípio, Deus criou…»), mas porque vem ao encontro das perguntas existenciais de todos os homens e mulheres: «Quem sou eu? Donde venho? Para onde vou?». Assim, mesmo na divisão clássica em duas partes, o primeiro livro da Bíblia responde à pergunta sobre as origens: primeiro, as origens da criação e do ser humano (cf. Gn 1,1–11,26); depois, as origens de Israel, com os chamados ciclos dos patriarcas (cf. Gn 11,27–50,26).

            Sobretudo no que diz respeito à primeira parte, não se deve procurar uma história factual (cada vez mais, as traduções da Bíblia traduzem «’adam» como «homem», em vez de «Adão», mostrando como, naquele primeiro homem, está presente o drama de cada ser humano); deve ler-se aí uma história poético-simbólica, em que a poesia e o símbolo abraçam a realidade, mas ultrapassam-na. O autor sagrado condensa, com certeza, várias tradições que foram sendo transmitidas oralmente e que respondem à pergunta sobre as origens da criação, do ser humano na sua diferenciação e complementaridade homem-mulher, do mal, das várias línguas, etc.

            Esta primeira leitura faz parte do segundo relato da criação (cf. Gn 2,4b–3,24), o único a narrar a transgressão, não como um facto histórico, mas como um modo de perceber as origens do mal – que, como veremos, não se encontra em Deus, nem no ser humano, mas é externa – e da luta intrínseca dos homens e mulheres contra o autor do mal. Leva-nos até ao relato do encontro de Deus com o homem e a mulher, depois de estes terem comido do fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal (cf. Gn 3,1-7), transgredindo a ordem que lhes tinha sido expressamente dada, de não comer de duas árvores, da árvore do conhecimento do bem e do mal e da árvore da vida (cf. Gn 2,16-17).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O estilo do texto da primeira leitura, de diálogo entre Deus e os personagens deste relato, ajuda a colocar-se na narrativa, escutando as perguntas de Deus ao homem: «Onde estás?» (v. 9), «Terias tu comido dessa árvore, da qual te proibira comer?» (v. 11), e à mulher: «Que fizeste?» (v. 13). Uma vez que todas estas questões têm um sentido existencial, poderá ser bom voltar às origens, poder localizar-nos no espaço de Deus, responder pelas nossas ações e verificar se as nossas respostas diferem das dos personagens deste relato.
  • Diz-se que é comum a tendência para desculpabilizar, desresponsabilizar e autojustificar-se. Também neste relato se vê um contínuo passar da culpa para os outros personagens. Retomando as questões anteriores, poderá ser hora de assumir as nossas responsabilidades diante de Deus, sabendo que, como dirá o Salmo 129 (130), «no Senhor está a misericórdia e a abundante redenção». A autojustificação não é caminho; o caminho passa pela justificação trazida por Cristo na sua morte de cruz, para nos reconciliar com o Pai. Como lido com a culpa? Sou capaz de assumir a minha culpa diante de Deus, confiando na sua misericórdia?
  • A origem última de toda a complicação remonta ao facto de se ter dado ouvidos à serpente: «A serpente enganou-me e eu comi» (v. 13). Se este réptil é uma imagem do diabo e do poder do mal, é importante estar de sobreaviso diante da tentação do maligno. Como várias vezes tem ensinado o Papa Francisco: «Não se dialoga com o demónio». É ainda o Pontífice a dizer: «A vida cristã é uma luta permanente. Requer-se força e coragem para resistir às tentações do demónio e anunciar o Evangelho. […] Não pensemos que é um mito, uma representação, um símbolo, uma figura ou uma ideia. Este engano leva-nos a diminuir a vigilância, a descuidar-nos e a ficar mais expostos. O demónio não precisa de nos possuir. Envenena-nos com o ódio, a tristeza, a inveja, os vícios. E assim, enquanto abrandamos a vigilância, ele aproveita para destruir a nossa vida, as nossas famílias e as nossas comunidades, porque, “como um leão a rugir, anda a rondar-vos, procurando a quem devorar” (1Pd 5,8)» (Gaudete et Exsultate161). Como vivo a renúncia ao demónio e às suas seduções, prometida no ato do meu Batismo? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 129 (130)

Refrão:  No Senhor está a misericórdia e abundante redenção.

Ou:  No Senhor está a misericórdia,
no Senhor está a plenitude da redenção.

 

Do profundo abismo chamo por Vós, Senhor,
Senhor, escutai a minha voz.
Estejam os vossos ouvidos atentos
à voz da minha súplica.

Se tiverdes em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá salvar-se?
Mas em Vós está o perdão
para Vos servirmos com reverência.

Eu confio no Senhor,
a minha alma confia na sua palavra.
A minha alma espera pelo Senhor
mais do que as sentinelas pela aurora.

Porque no Senhor está a misericórdia
e com Ele abundante redenção.
Ele há de libertar Israel
de todas as suas faltas.

LEITURA II – 2 Coríntios 4,13–5,1

Irmãos:
Diz a Escritura: «Acreditei, por isso falei».
Com este mesmo espírito de fé,
também nós acreditamos, e por isso falamos,
sabendo que Aquele que ressuscitou o Senhor Jesus
também nos há de ressuscitar com Jesus
e nos levará convosco para junto d’Ele.
Tudo isto é por vossa causa,
para que uma graça mais abundante
multiplique as ações de graças de um maior número de cristãos
para glória de Deus.
Por isso, não desanimamos.
Ainda que em nós o homem exterior se vá arruinando,
o homem interior vai-se renovando de dia para dia.
Porque a ligeira aflição dum momento
prepara-nos, para além de toda e qualquer medida,
um peso eterno de glória.
Não olhamos para as coisas visíveis,
olhamos para as invisíveis:
as coisas visíveis são passageiras,
ao passo que as invisíveis são eternas.
Bem sabemos que,
se esta tenda, que é a nossa morada terrestre, for desfeita,
recebemos nos Céus uma habitação eterna,
que é obra de Deus
e não é feita pela mão dos homens.

CONTEXTO

            A Segunda Carta aos Coríntios é, em grande parte, uma apologia do Apóstolo Paulo em favor do seu ministério apostólico, diante de quem não o reconhece. Numa primeira apologia, em 2Cor 2,14–4,6, Paulo tinha-se baseado muito na autoridade do Antigo Testamento, para provar a verdade da sua atividade apostólica, tão gloriosa a ponto de ofuscar o ministério de Moisés. O nosso texto situa-se na segunda apologia de Paulo (2Cor 4,7–5,10), desta feita baseada não tanto sobre os textos sagrados do Antigo Testamento, mas sobre uma antropologia em perspetiva escatológica, que será bem visível no nosso texto. Esta segunda apologia responde a algumas questões que os seus adversários poderiam colocar-se: uma delas é perceber como é que o ministério apostólico, por ele defendido na primeira apologia, pode ser tão provado e atribulado (cf. 2Cor 4,8-9.17). A resposta apologética de Paulo pautar-se-á por uma estratégia muito particular de ler toda a situação presente, claramente marcada pelas tribulações, à luz do futuro, do mundo que há de vir, das coisas últimas (escatologia). Nesta releitura, Paulo acentuará a comunhão: a comunhão que o une a Jesus Ressuscitado e a comunhão com os crentes, incluídos muito provavelmente também os destinatários desta Carta.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A atitude de Paulo diante das tribulações serve de modelo para os cristãos de todos os tempos, como atitude a conservar diante das provas e tribulações, quer derivem do exercício dos diversos ministérios na comunidade eclesial, quer se refiram a tantas outras situações que derivam do próprio “ser cristãos” no mundo contemporâneo. É antes de mais uma atitude de fé e de confiança que tem a eternidade como fim bem visível. A ressurreição de Cristo abriu caminho, para mostrar que a vida humana não se confina à vida terrena, mas é chamada à vida de comunhão com Jesus ressuscitado, sentado à direita do Pai. A fé na vida eterna deve continuar a iluminar o momento presente dos cristãos. Que influência tem a fé na forma como olho o mundo?
  • A comunhão eclesial é certamente uma das marcas distintivas do que significa ser cristãos. Jesus dá forma a essa comunhão através do mandamento novo do amor e reza para que esta comunhão se mantenha e seja imagem da sua comunhão com o Pai. Paulo dá mostras de a viver, porque espera continuar unido aos cristãos, a quem se dirige, também na vida eterna. Além disso, todo o seu ministério apostólico se destina a gerar novos cristãos. Paulo é exemplo do desempenho do ministério como serviço à Igreja, não para a sua glória pessoal, não para se servir a si mesmo, mas estar verdadeiramente ao serviço dos outros. Que peso tem a comunhão eclesial na minha existência crente? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 3,20-35

Naquele tempo,
Jesus chegou a casa com os seus discípulos.
E de novo acorreu tanta gente,
de modo que nem sequer podiam comer.
Ao saberem disto, os parentes de Jesus
puseram-se a caminho para O deter,
pois diziam: «está fora de Si».
Os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam:
«Está possesso de Belzebu,
e ainda:
«É pelo chefe dos demónios que Ele expulsa os demónios».
Mas Jesus chamou-os e começou a falar-lhes em parábolas:
«Como pode Satanás expulsar Satanás?»
Se um reino estiver dividido contra si mesmo,
tal reino não pode aguentar-se.
E se uma casa estiver dividida contra si mesma,
essa casa não pode aguentar-se.
Portanto, se Satanás se levanta contra si mesmo e se divide,
não pode subsistir: está perdido.
Ninguém pode entrar em casa de um homem forte
e roubar-lhe os bens, sem primeiro o amarrar:
só então poderá saquear a casa.
Em verdade vos digo:
Tudo será perdoado aos filhos dos homens:
os pecados e blasfémias que tiverem proferido;
mas quem blasfemar contra o Espírito Santo
nunca terá perdão: será réu de pecado eterno».
Referia-Se aos que diziam:
«Está possesso dum espírito impuro».
Entretanto, chegaram sua Mãe e seus irmãos,
que, ficando fora, mandaram-n’O chamar.
A multidão estava sentada em volta d’Ele,
quando Lhe disseram:
«Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura».
Mas Jesus respondeu-lhes:
«Quem é minha Mãe e meus irmãos?»
E, olhando para aqueles que estavam à sua volta, disse:
«Eis minha Mãe e meus irmãos.
Quem fizer a vontade de Deus
esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe».

CONTEXTO

            Em Mc 3,6, tinha terminado a secção das várias controvérsias de Jesus com diversas instituições do mundo judaico. Não quer dizer que tenha terminado o confronto com essas instituições; o nosso texto será uma boa prova desse confronto. Dentro da grande secção de Mc 3,7–8,26, a perícope de Mc 3,7–6,6 em que se encontra o nosso texto será dominada pelo contraste entre a rejeição e a aceitação de Jesus como mestre e agente de ações miraculosas: por um lado, o grupo dos doze apóstolos (cf. 3,13-19) e todos os que aceitam e fazem a vontade do Pai (3,33-35); por outro, a dificuldade da família de Jesus (cf. 3,21), dos escribas (cf. 3,22) e dos habitantes de Nazaré (cf. 6,1-6) em aceitar o ministério de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O tema principal do texto do Evangelho deste domingo – sobre a identidade de Jesus – mostra que desde os inícios do cristianismo os cristãos sentiram necessidade de responder à pergunta: “Quem é Jesus?”. Ainda hoje, na ação pastoral da Igreja, sobretudo nas catequeses, é importante que todos os cristãos conheçam a identidade de Jesus, até mesmo para poderem estabelecer com ele uma relação personalizada. Que importância tem o conhecimento de Jesus na minha vida espiritual?
  • Fazer parte da família de Jesus é a vocação fundamental dos cristãos de todos os tempos. Por isso, são chamados a formar comunidade, que está centrada na pessoa de Jesus e que tem como única missão fazer a vontade de Deus em todas as circunstâncias da vida. É a isso que chama o Evangelho quando Jesus apresenta a sua verdadeira família: é quem faz a vontade de Deus e toma lugar ao redor de Jesus. Sinto que vivo em comunhão com Jesus? Quais os sinais dessa familiaridade?
  • O método para estabelecer uma relação de familiaridade com Jesus passa necessariamente por seguir o seu exemplo: é Ele o primeiro a fazer a vontade de Deus, mesmo quando isso acarreta incompreensão e rejeição do seu ministério. O cristão continua no mundo a missão de Jesus e tem como único horizonte fazer a vontade de Deus; esta é uma das petições do Pai Nosso, a oração que Jesus ensina a rezar: «Faça-se a tua vontade, assim na terra como no céu». De que modo deixo que a minha vida seja modelada pelo cumprimento da vontade de Deus?
  • Quando o cristão se decide a seguir Jesus, isso implica necessariamente que renuncie ao mal e ao demónio. Tal como Jesus estabelece uma clara separação entre o seu serviço e o poder de Satanás, desde o primeiro momento da vida cristã, os cristãos são chamados a renunciar a Satanás e a fazer a sua profissão de fé em Deus. Na vida ordinária, isso implica que se tenha claro que algumas práticas de bruxaria, feitiçaria e cartomancia não são práticas próprias de um cristão, mas aprisionam; Jesus vem libertar-nos desse aprisionamento de Satanás e é necessário deixar-se libertar. Na minha vida cristã há lugar para estas práticas dúbias? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter especial cuidado na articulação das diversas intervenções do diálogo entre Deus, Adão e a mulher, de modo particular, nas frases interrogativas.

            Na segunda leitura, encontramos frases longas com diversas orações intercaladas com frases muito curtas. Deve preparar-se a leitura com atenção às diversas pausas e respirações para uma leitura bem articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A VERDADEIRA FAMÍLIA DE JESUS

            É-nos dado neste Domingo X do Tempo Comum escutar o Evangelho de Marcos 3,20-35. É um texto considerado difícil, em que são facilmente identificáveis três cenas organizadas em crescendo. Primeira cena: Marcos 3,20-21: Jesus em «casa», em Cafarnaum (cf. Marcos 1,29.32; 2,1-2), procurado por todos, e sem tempo sequer para comer. Nestas condições, os «seus» (familiares), de Nazaré, saem para tomar conta dele, pois se dizia: «está fora de si» (exéstê). Segunda cena: Marcos 3,22-30: descem os escribas de Jerusalém para verem também o que se passa com Jesus. Ao verem as maravilhas que realiza, concluem que «está possuído por Belzebu» (Marcos 3,22) ou «por um espírito impuro» (Marcos 3,30), e que «é pelo príncipe dos demónios que Ele expulsa os demónios» (Marcos 3,22). Terceira cena: Marcos 3,31-35: o próprio Jesus indica quem são os seus verdadeiros familiares: não os que estão fora e de pé, mas os que estão dentro e sentados à sua volta.

            A primeira cena requer alguma atenção. A «casa» de que se fala é claramente a casa de Simão e de André, em Cafarnaum (Marcos 1,29). É aí que as multidões procuram Jesus (Marcos 3,20), como já tinha sido anotado antes em Marcos 1,33 e 2,2. Não eram, ao contrário do que algumas versões deixam entender, os familiares de Jesus, vindos de Nazaré, que «diziam: está fora de si», ou, por outras palavras, «enlouqueceu». Todo o problema reside em identificar o sujeito daquele «diziam». A forma verbal grega é élegon, que é um imperfeito impessoal, 3.ª pessoa do plural, do verbo légô. Deve, pois, traduzir-se, não que os familiares de Jesus diziam, mas que «se dizia», isto é, as pessoas diziam. Muda tudo na compreensão do texto. Os mais céticos podem sempre ver, acerca deste acerto exegético, M. Zerwich, M. Grosvenor, A Grammatical Analisis of vthe Greek New Testament, Roma, Biblical Institute Press, ed. rev., 1981, p. 109. E porque era isto que corria acerca de Jesus, os seus familiares são os primeiros que devem intervir (Deuteronómio 13,2-12; Zacarias 13,2-5).

            Na segunda cena, os escribas, representantes do saber oficial de Jerusalém, afirmam logo que Jesus faz o que faz, porque está em colaboração com as forças do mal. Este raciocínio viciado é completamente desmontado por Jesus, que faz ver aos escribas que se alguém luta contra si mesmo entra em dissolução, autodestruindo-se. Não pode, portanto, ser o mal a lutar e vencer o mal. O mal só pode ser vencido pelo bem (cf. Romanos 12,21). Só a cegueira de corações empedernidos pode recusar evidência tão evidente: de facto, quem estiver postado do lado do mal, não se porá a combater o mal, pois uma tal atitude equivaleria a destruir-se a si mesmo. Confundir a fonte do bem, operado por Jesus, com a fonte do mal, é não querer reconhecer a ação de Deus, e reconhecer o mal como único poder, único deus. E o mal não perdoa. Conta-se que Hillel, um dos grandes Mestres do judaísmo do tempo de Jesus, ao ver um cadáver a ser arrastado por uma corrente, sentenciou: «Foste morto porque mataste, mas quem te matou também será morto!». Portanto, o mal não perdoa, e funciona em cadeia. Prender Jesus, operador só do Bem, a este cadeado do mal, é contradizer a verdade reconhecida como tal. É confundir o Bem com o mal. É neste ponto preciso que não tem perdão o pecado contra o Espírito Santo.

            A terceira cena é uma bela cúpula do texto. Põe em contraponto a «casa» nova e a «casa» antiga. A casa antiga permanece vinculada ao velho livro anagráfico, que nos prende à terra, e não nos deixa ver o céu. Que nos enreda em laços familiares antigos ligados à casa antiga, e não nos deixa ver tantos novos irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas, que Deus nos dá. A família antiga, assente na terra e no sangue, fica fora e de pé. A família nova, assente no céu e na graça, fica dentro e sentada a escutar a Palavra de Jesus, para aprender a fazer a vontade de Deus.

            «Onde estás?» é a pergunta que Deus faz todos os dias a cada um de nós, e que abre hoje a narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. Vale a pena inserir aqui uma história guardada por Martin Buber nos seus escritos. Conta Buber que o Rabino Shneur Zalman foi levado pelos seus adversários para a prisão de S. Petersburgo. Um dia, enquanto aguardava o julgamento, o comandante da guarda entrou na cela do Rabino. Vendo o seu ar pensativo e sério, o comandante pôs-se a falar com ele, e aproveitou para lhe colocar algumas das perguntas que se tinham levantado no seu espírito ao ler a Escritura. Por fim, perguntou: «Como se deve interpretar que o Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás”» (Génesis 3,9). «Acredita o senhor», respondeu o Rabino, «que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todos os homens?». «Sim, acredito», respondeu o guarda. «Então», retomou o Rabino, «em cada tempo Deus interpela cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e anos que te foram atribuídos, já passaram muitos. Entretanto, até onde já chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Repara, já há quarenta e seis anos que estás nesta vida. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante teve dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabino, e exclamou: «Muito bem, muito bem!». Mas o coração estremecia-lhe.

            Depois da história incisiva que acabámos de transcrever, voltemos à narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta. «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados. A narrativa que hoje lemos, e que também nos lê, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus», porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão. É assim que chegamos a Cristo, que veio (e tinha que vir) por amor à nossa procura. À procura da ovelha perdida e escondida.

            É assim, continua S. Paulo na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,13-5,1), a afirmar que não seremos abandonados nesta tenda em ruínas, que é a nossa vida mortal. Deus vela por nós, e salva a nossa vida da ruína. É esta a experiência do orante do Salmo 116, a cuja fé e ação da fé Paulo se refere: «Também nós acreditamos, e por isso falamos (laléô) (2 Coríntios 4,13). Falar o Evangelho nunca sai de cor, mas da experiência da ação de Deus em nós. Por isso também não devemos fixar-nos na lama. Os olhos do nosso coração já devem estar postos na tenda nova e maior, no céu, onde Deus acolhe os seus filhos.

            Neste sentido, o Salmo 130 surge hoje como um grito desde o abismo profundo em que muitas vezes jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau ou degrau de profundidade está. Sim, este é um dos 15 Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações (120-134). É uma voz que se levanta e sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce, para nos ajudar a subir!

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I do Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 (Gen 3, 9-15)
        2. Leitura II do Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 (2Cor 4, 13-5,1)
        3. Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 – Lecionário
        4. Domingo X do Tempo Comum – Ano B – 09.06.2024 – Oração Universal
        5. A Homilia
        6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024

27E disse-lhes: «O sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado. 

28O Filho do Homem até do sábado é Senhor.» Mc 2, 27-28

 

Viver a Palavra

O descanso sabático é, por diversas vezes, objeto de discussão entre Jesus e os fariseus. Para os fariseus, o Sábado deve ser observado para lá de todas as necessidades e urgências. É o dia abençoado e santificado pelo Senhor no sétimo dia da criação e, por isso, nada nem ninguém o poderá diminuir ou subverter. Na verdade, como regista o livro do Génesis: «Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação» (Gn 2,3).

Imagem e semelhança de Deus, o homem e a mulher são chamados a viver o ritmo dos dias na sublime articulação entre o trabalho e o descanso, entre a ação e a contemplação. Como afirma Ermes Ronchi: «o Sábado é o dom mais precioso que Deus concedeu a todos os outros povos. Só a partir de então, se tornou norma para todos este ritmo de trabalho e de festa, o ritmo septenário do homem e de Deus, que articulam juntos, a vida de ambos».

O descanso, mais do que uma conquista, é um dom de Deus que resgata a humanidade do trabalho escravo que não conhece descanso, mas oferece um tempo para a comunhão com Deus e com os irmãos, para a vida em comunidade, em família e em sociedade.

Deste modo, os fariseus observando estritamente a lei herdada, fixaram o seu coração na letra da lei, ignorando que a lei deve servir o homem e que toda e qualquer lei que não respeite a dignidade humana e não a promova contradiz o desígnio do Criador. Jesus inscreve a vida humana na esteira da verdadeira liberdade, porque, para os fariseus, até o descanso era um lugar hermético e de escravidão.

Jesus vem para estabelecer um novo modo de ser e de estar, que se traduz num modo novo de servir e amar. Jesus vem para levantar a humanidade decaída e restabelecer-lhe uma nova dignidade e centralidade: «levanta-te e vem aqui para o meio». Jesus liberta e cura aquele homem, erguendo-o da sua condição e colocando-o no meio. Como cristãos, o nosso amor absolutamente centrado em Deus, deve viver-se num amor universalmente alargado aos irmãos. A verdadeira fé em Jesus Cristo não permite que ninguém seja relegado para segundo plano ou possa ficar à margem, muito menos se essa secundarização e marginalização acontecer seguindo um conjunto de regras ou preceitos que têm uma aparente capa religiosa, mas que não passam de regras rígidas que oferecem uma falsa garantia de segurança.

Aqueles que seguem Jesus Cristo libertam-se de quanto endurece o seu coração e os impede de viver a verdadeira liberdade. A verdadeira cura de coração opera-se pela capacidade de estender a mão em direção a Deus e aos irmãos. Aquele homem foi restabelecido da sua doença, estendendo a mão para Jesus: «ele estendeu-a e a mão ficou curada». Quando oferecemos a Deus tudo quanto temos e somos, mais seremos para os outros, porque na vida cristã o amor que devotamos a Deus transforma-se em amor oferecido, em gestos concretos de bondade e de ternura, para quantos se cruzam connosco na estrada da vida.

É certo que somos pecadores e como S. Paulo podemos afirmar «nós trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós». Contudo, quanto mais nos soubermos instrumentos nas mãos de Deus e deixarmos que a nossa fragilidade seja testemunho da misericórdia de Deus, tanto mais se manifestará a grandeza Daquele que atua em nós.in Voz Portucalense

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No dia 7 de junho, Sexta-feira depois do segundo Domingo depois do Pentecostes, celebramos a Solenidade do Sagrado Coração de Jesus. Neste dia, assinala-se também o Dia de Oração pela Santificação dos Sacerdotes. Esta solenidade está muito enraizada na devoção dos fiéis e em muitos lugares são diversas as formas de piedade popular que assinalam este mês e este dia. É importante lembrar as palavras do Papa Francisco, nos números 122-126 da Evangelii Gaudium, onde o Santo Padre apresenta a força evangelizadora da piedade popular e dinamizar este mês e este dia ajudando os fiéis a encontrar no Coração de Jesus Cristo a revelação do rosto misericordioso de Deus. in Voz Portucalense

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Continuamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deut 5,12-15
Leitura do Livro do Deuteronómio
Eis o que diz o Senhor:
«Guarda o dia de sábado, para o santificares,
como te mandou o Senhor, teu Deus.
Trabalharás durante seis dias
e neles farás todas as tuas obras.
O sétimo, porém, é o sábado do Senhor, teu Deus.
Não farás nele qualquer trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu escravo, nem a tua escrava,
nem o teu boi, nem o teu jumento,
nem nenhum dos teus animais,
nem o estrangeiro que mora contigo.
Assim, o teu escravo e a tua escrava
poderão descansar como tu.
Recorda-te que foste escravo na terra do Egipto
e que o Senhor, teu Deus, te fez sair de lá
com mão forte e braço estendido.
Por isso, o Senhor, teu Deus,
te mandou guardar o dia de sábado».

CONTEXTO
            O livro do Deuteronómio, mesmo que de redação posterior ao tempo da narração (que seria o tempo do caminho deserto, sob a guia de Moisés) e com notórias influências de textos extra-bíblicos de culturas vizinhas do Povo de Israel (nomeadamente dos tratados de vassalagem neo-assírios), é importante para as reformas de Ezequias (725-697 a.C.; cf. 2Rs 18,4.22) e sobretudo de Josias (640-609 a.C.; cf. 2Rs 23,4-20), uma vez que as centra no evento fundador de Israel como Povo, com a celebração da Aliança no Sinai-Horeb. Os elementos fundamentais que dão corpo às reformas são: o monoteísmo (um só Deus), a centralidade do curso num só lugar (Jerusalém), a Aliança de Deus-YHWH com o povo, que faz do Povo propriedade de Deus-YHWH e, portanto, a unidade do povo, demostrando a insensatez da constituição de dois reinos no período pós-salomónico e afirmando o ideal de regressar à unidade política das 12 tribos de Israel.

O livro do Deuteronómio é tradicionalmente dividido em três grandes secções, que corresponderiam a três grandes discursos de Moisés; o nosso texto situa-se no início do segundo discurso (cf. Dt 4,44 – 26,19), depois de uma breve introdução histórica que o situa no contexto da teofania do Sinai-Horeb (Dt 4,44 – 5,5) e é parte da versão deuteronómica do decálogo (Dt 5,6-21). Quanto à sua forma literária, sendo parte do decálogo (dez mandamentos), é um texto de carácter legislativo, sem perder, porém, a sua componente didática como se vê pelo início do discurso de Moisés. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Uma compreensão anárquica da realidade poderia relativizar os preceitos do Decálogo do Deuteronómio e, mais concretamente, de «guardar o dia de sábado para o santificar». Há que ter em conta que a Lei é sobretudo instrução paternal de Deus, uma oferta para o seu Povo, para regular as relações em sociedade. O texto da primeira leitura convida-nos a regressar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, tomando a sério o valor do verbo «santificar».
  • Destacámos para o sábado e podemos fazê-lo para o domingo cristão as duas fundamentações teológicas expressas no livro do Êxodo e do Deuteronómio, respetivamente, fazendo memória do repouso do Senhor, depois da obra da criação, e da sua obra de libertação da escravidão do Egito. É importante voltar aos fundamentos da celebração do Dia do Senhor, vivendo-o como memorial da libertação do Pecado na Páscoa de Cristo que atualiza a obra libertadora de Deus da escravidão do Egito.
  • Notámos que a celebração do Dia do Senhor – sábado para os judeus e domingo para os cristãos – tem uma grande dimensão social, sendo dia de descanso para todos, garantindo esse direito sobretudo aos pobres que se veem assim protegidos pela Lei divina. Como ensina o Catecismo da Igreja Católica: «O agir de Deus é o modelo do agir humano. Se Deus “descansou” no sétimo dia, o homem deve também “descansar” e deixar que os outros, sobretudo os pobres, “tomem fôlego”. O sábado faz cessar os trabalhos quotidianos e concede uma folga. É um dia de protesto contra as servidões do trabalho e o culto do dinheiro» (n. 2172).
  • O texto do Deuteronómio socorre-se de uma tradição antiga, que está na origem de Israel como Povo, para redefinir a própria identidade em tempo de crise, concretamente no tempo do exílio e pós-exílio. A celebração do Dia do Senhor pode ser um bom recurso para recuperar a identidade cristã. De facto, se no passado irmãos nossos deram a vida para defender o domingo («Não podemos passar sem o domingo», diziam diante do cônsul que os condenaria à morte, como quem diz, «sem nos reunirmos em assembleia ao domingo para celebrar a Eucaristia não podemos viver»). Como ensinou Bento XVI, a experiência dos mártires de Abitene pode ser paradigmática para nós cristãos do séc. XXI: «Precisamos do pão da vida para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do Senhor, é a ocasião propícia para haurir a força d’Ele, que é o Senhor da vida. Por conseguinte, o preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso sobre os nossos ombros. Ao contrário, participar na Celebração dominical, alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a comunhão dos irmãos e irmãs em Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e assim pode encontrar a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as semanas. Um caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na direção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão caminham juntas. Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para o homem realizar-se a si mesmo; perdê-la equivale a perder-se a si próprio.» in Dehonianos.

LEITURA II – 2Cor 4,6-11
Leitura da Segunda Epístola do apóstolo São Paulo aos Coríntios
Irmãos:
Deus, que disse: «Das trevas brilhará a luz»
fez brilhar a luz em nossos corações,
para que se conheça em todo o seu esplendor
a glória de Deus, que se reflete no rosto de Cristo.
Nós trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério,
para que se reconheça que um poder tão sublime
vem de Deus e não de nós.
Em tudo somos oprimidos, mas não esmagados;
andamos perplexos, mas não desesperados;
perseguidos, mas não abandonados;
abatidos, mas não aniquilados.
Levamos sempre e em toda a parte no nosso corpo
os sofrimentos da morte de Jesus,
a fim de que se manifeste também no nosso corpo
a vida de Jesus.
Porque, estando ainda vivos,
somos constantemente entregues à morte por causa de Jesus,
para que se manifeste também na nossa carne mortal
a vida de Jesus.

CONTEXTO
            A relação de Paulo com as comunidades cristãs por ele fundadas ou pelo menos solidificadas é semelhante à de um pai que se ocupa da educação dos filhos: ao verificar comportamentos pouco condizentes com a fé cristã, Paulo intervém indicando o caminho a seguir. Esta atitude não será certamente estranha a quem conhece a Primeira Carta aos Coríntios, em que o apóstolo das gentes individua vários comportamentos reprováveis e mostra o caminho a seguir, oferecendo também, normalmente, um fundamento teológico. A Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios insere-se nestas relações paternas de Paulo com aquela comunidade, que se fazem através de visitas presenciais e de correspondência epistolar. Uma vez que o seu ministério apostólico é posto em causa, muito provavelmente pelo grupo dos “Homens Espirituais” a que se refere a Primeira Carta aos Coríntios (cf. 2,6-16; 4,8-10) e nem sequer os seus cristãos vêm em sua defesa, Paulo faz a sua apologia, uma espécie de defesa do seu ministério apostólico, mostrando que nele se verificam os critérios que permitem identificar um verdadeiro apóstolo.

É neste contexto que se insere este texto proposto pela liturgia, que se esforça por demonstrar que o ministério apostólico de Paulo é condizente com o mistério de Cristo e, sobretudo, não o ofusca com pretensões de protagonismo, uma vez que é o conteúdo da mensagem transmitida por Paulo que assume o verdadeiro papel de protagonista na sua missão apostólica. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES
• São Paulo é um modelo de servidor do Evangelho para todos os que, na Igreja, se posicionam ao serviço humilde do Povo de Deus. Dele aprendemos que a grande característica do apostolado, mais que as ações pastorais inovadoras ou não, é a relação com Cristo, a ponto de trazer na própria vida as marcas dessa união, seja nas tribulações que se sofre por causa de Cristo e do Evangelho, seja porque se incarna na própria vida aquilo que se ensina.

  • Para se exercer um serviço na Igreja, mais concretamente ao serviço do anúncio e da evangelização, sem excluir nenhum dos outros serviços e ministérios, é necessário pôr de parte todo e qualquer desejo de ser protagonista, para dar protagonismo ao Evangelho, verdadeiro «tesouro» que transportamos «em vasos de barro», frágeis, da nossa fragilidade humana. Mesmo quando o Senhor fortalece a nossa fragilidade, é importante que seja claro para nós, como era para Paulo, que o verdadeiro tesouro é o Evangelho que não depende de nós, mas de Deus que no-lo deu a conhecer na pessoa de Jesus Cristo.
  • A vida do evangelizador deve conformar-se cada vez mais à vida de Cristo a ponto de se tornar um espelho de Cristo, um livro aberto do Evangelho, onde se pode ler os sinais da vida oferecida de Jesus. Só uma grande intimidade com Jesus Cristo, como a que teve Paulo, poderá dar-nos a possibilidade de sermos pessoas identificadas com o Evangelho que anunciamos. in Dehonianos.

EVANGELHO – Mc 2,23–3,6
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
Passava Jesus através das searas, num dia de sábado,
e os discípulos, enquanto caminhavam,
começaram a apanhar espigas.
Disseram-Lhe então os fariseus:
«Vê como eles fazem ao sábado o que não é permitido».
Respondeu-lhes Jesus:
«Nunca lestes o que fez David,
quando ele e os seus companheiros
tiveram necessidade e sentiram fome?
Entrou na casa de Deus,
no tempo do sumo sacerdote Abiatar,
e comeu dos pães da proposição,
que só os sacerdotes podiam comer,
e os deu também aos companheiros».
E acrescentou:
«O sábado foi feito para o homem
e não o homem para o sábado.
Por isso, o Filho do homem é também Senhor do sábado».
Jesus entrou de novo na sinagoga,
onde estava um homem com uma das mãos atrofiada.
Os fariseus observavam Jesus,
para verem se Ele ia curá-lo ao sábado
e poderem assim acusá-l’O.
Jesus disse ao homem que tinha a mão atrofiada:
«Levanta-te e vem aqui para o meio».
Depois perguntou-lhes:
«Será permitido ao sábado fazer bem ou fazer mal,
salvar a vida ou tirá-la?».
Mas eles ficaram calados.
Então, olhando-os com indignação
e entristecido com a dureza dos seus corações,
disse ao homem:
«Estende a mão».
Ele estendeu-a e a mão ficou curada.
Os fariseus, porém, logo que saíram dali,
reuniram-se com os herodianos
para deliberarem como haviam de acabar com Ele.

CONTEXTO
O texto evangélico deste domingo conclui a primeira secção do Evangelho de Marcos, que descreve a fase inicial do ministério de Jesus (cf. 1,14-3,6), e é a última das controvérsias de Jesus com os seus opositores acerca de algumas práticas rituais judaicas, no caso sobre o sábado judaico. É de notar que estes dois textos que formam Mc 1,23 – 3,6 são os únicos dois textos de Marcos em que Jesus se contrapõe ao sábado; no resto do Evangelho, tanto Jesus como quem está com Ele observam as práticas judaicas a respeito do mandamento de guardar o sábado. Recapitulando, Jesus tinha-se já confrontado com os escribas a respeito do perdão dos pecados ao paralítico (cf. 2,1-13), do estar à mesa com os publicamos e pecadores (cf. 2,14-17); depois, com os discípulos de João Batista e os fariseus sobre as práticas do jejum, não observado pelos discípulos de Jesus (cf. 2,18-22); confronta-se agora com os fariseus sobre o respeito pelo dia de sábado em dois episódios (2,23-28; 3,1-6), sendo que, neste último episódio, pela primeira vez os seus opositores se reuniam com os herodianos para encontrar maneira de condenar Jesus à morte (3,6), funcionando esta decisão como conclusão de todos os confrontos.
Será bom ter em conta o objetivo desta primeira secção do Evangelho de Marcos; o evangelista pretende mostrar a novidade trazida pelo movimento de Jesus, bem diferente do ambiente judaico e rabínico, mostrando o amor de Deus pelos que estavam marginalizados (os publicamos e pecadores), uma mensagem que toma corpo no perdão dos pecados (na cura do paralítico) e a total rejeição de leituras rigoristas da Lei de Moisés, demonstrando que o formalismo pode aniquilar a experiência de fé, que deve estar sempre orientada para o bem do outro. Como se verá o critério que Jesus deixa para interpretar o sábado judaico, mas também outros preceitos é o amor ao outro. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus ensina-nos a posicionar-nos com verdadeira liberdade diante da Lei de Moisés, ou melhor, diante da Lei de Deus, que nos chegou por Moisés, sem perder nunca de vista o seu objetivo de regular a nossa vida em sociedade e em Igreja, protegendo os mais frágeis e evitando toda e qualquer opressão por parte de quem exerce o poder. Interpretações rigoristas da Lei – como são as dos fariseus no nosso texto – cegam e não deixam ver as necessidades humanas que, na perspetiva de Jesus, são o verdadeiro critério para manter uma atitude livre diante da Lei.
  • O nosso texto não coloca em causa a celebração do culto no dia de sábado, mas reposiciona-a de modo que possa coabitar com o serviço dos necessitados, na pessoa dos discípulos com fome e de uma pessoa com uma mão atrofiada. A celebração do Dia do Senhor, ao domingo, pode ser cada vez mais expressão desta dupla faceta do sábado reinterpretado com Jesus que, em dia de sábado entra na sinagoga, lugar onde se realiza o culto, mas não pactua com a necessidade de quem sofre, indo em seu auxílio, dando conforto e, no caso, mesmo a cura. Se o cristão prolonga na existência a vida de Cristo, é importante que no dia maior, a Ele consagrado, não se perca de vista aqueles que foram os seus prediletos.
  • A regra hermenêutica que Jesus dá para saber o que se pode fazer ou não ao domingo pode ser transposta para outros campos da nossa vida: é importante saber que queremos estar ao serviço do bem e da salvação da vida humana, em linha com o desejo de Deus, tal como se manifesta na vida e mensagem de Jesus; a par disso, sabemos que as instituições, sejam elas religiosas ou civis, devem estar ao serviço da vida humana, para que possam realizar a missão para a qual nasceram. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em atenção o tom exortativo do texto, valorizando as formas verbais no imperativo. Além disso, o leitor deve dedicar especial cuidado à enumeração que aparece acompanhada pela partícula «nem».

Na segunda leitura, devem ser tidas em atenção as frases mais longas e com diversas orações que exigem uma acurada preparação nas pausas e respirações.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

É PERMITIDO AO SÁBADO FAZER O BEM OU FAZER O MAL?

O Evangelho deste Domingo IX do Tempo Comum faz-nos escutar as últimas duas (Marcos 2,23-3,6) das cinco controvérsias reunidas em Marcos 2,1-3,6. Depois do jejum e do Esposo (Marcos 2,18-22), que ocupa o centro da estrutura, e que são escutadas no Domingo VIII, eis-nos agora perante dois episódios que nos mostram Jesus como Senhor do sábado e sob o olhar acusador de fariseus e herodianos, que começam a tramar a forma como o hão de matar (Marcos 3,6).

O primeiro episódio (Marcos 2,23-28) mostra Jesus e os seus discípulos, em dia de sábado, a atravessar os campos. E dos discípulos de Jesus, diz-nos o narrador, que, atravessando os campos, colhiam espigas (Marcos 2,23), sob o olhar judicioso e acusador dos fariseus, que interrogam Jesus acerca deste incumprimento da Lei por parte dos seus discípulos (Marcos 2,24). Colher espigas em dia de sábado, naturalmente com o intuito de comerem os grãos, eis o que não era permitido fazer. Duplo, ou mesmo triplo, incumprimento da Lei. Ao sábado era proibido colher fosse o que fosse (Êxodo 34,21), bem como preparar qualquer tipo de refeição. E era apenas permitido percorrer, entre ida e volta 1892 metros. Dado que andavam pelos campos, é provável que também este último preceito estivesse a ser violado.

Jesus responde chamando a atenção dos fariseus para o episódio narrado no Primeiro Livro de Samuel 21,2-7. Aí, David, que andava fugido de Saul, que o perseguia, dirigiu-se a Aquimelec, sacerdote do santuário de Nob, e pediu-lhe cinco pães para si e para os combatentes que o acompanhavam. Aquimelec apenas dispõe dos chamados «Pães do Rosto» (lehem panîm), que são colocados, de sábado a sábado, diante do Rosto de Deus, em número de Doze, tantos quantas as tribos de Israel, dispostos em duas filas de seis sobre uma mesa revestida de ouro colocada diante do Santo dos Santos. Trata-se de pão consagrado a Deus, renovado todos os sábados. Ao sábado, colocavam-se sobre a mesa doze pães novos, e os doze pães antigos eram comidos ou consumidos apenas pelos sacerdotes e dentro do santuário. A mais ninguém era permitido comer aqueles pães (Levítico 24,5-9; cf. Êxodo 25,23-30). Todavia, dadas as condições de miséria e de fome de David e dos seus companheiros, Aquimelec dá-lhes para comer os pães consagrados. Esta remissão para a Escritura, este «Nunca lestes…», serve a Jesus para mostrar aos fariseus que o seu rigor está em contradição com as próprias Escrituras que querem citar a seu favor.

Mas há mais. Depois de referir aos fariseus este episódio (Marcos 2,25-26), Jesus dá por subentendido, tendo em conta a conhecida argumentação rabínica «do menor para o maior», que, se foi permitido a David e aos seus companheiros comer os pães consagrados, por causa da fome, quanto mais é permitido ao Filho de David e aos seus companheiros arrancar e comer espigas profanas. E quanto ao facto de as espigas terem sido colhidas em dia de sábado, Jesus aproveita a embalagem da subentendida argumentação rabínica, para declarar logo ali que «o sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sábado», e que, «portanto, o Filho do Homem é Senhor também do sábado» (Marcos 2,27-28).

Com estas declarações conclusivas, fica claro que Jesus tem do sábado uma noção bem diferente da que têm os fariseus. Estes também admitiam algumas exceções no que se refere à prática das prescrições sabáticas. Por exemplo, era permitido fugir para salvar a vida, ajudar uma pessoa em perigo de vida, ajudar uma mulher com dores de parto, ajudar a apagar um incêndio, e coisas semelhantes. Mas eram sempre vistas como exceções à regra. Em relação ao entendimento dos fariseus, Jesus não é apenas mais liberal, alargando, por assim dizer, o leque das exceções à regra. Não. Jesus muda própria a regra, apresentando uma diferente conceção de Deus e da reverência que lhe é devida. A diferença reside sobretudo nisto: o amor devido a Deus não colide com o bem do homem. Deus está do lado do homem. E não há mais um pedaço de tempo para dedicar a Deus e outro pedaço para dedicar ao homem. Agora, o tempo é todo de Deus, e é por ser todo de Deus, que é também todo para o homem.

A controvérsia sobre o sábado continua no segundo episódio do Evangelho de hoje (Marcos 3,1-6), em que Jesus assume todo o protagonismo. Entra na sinagoga, em dia de sábado. Não nos é dito de que sinagoga se trate: se da de Cafarnaum (cf. 1,21-28) ou de alguma das sinagogas da Galileia (cf. 1,39). Mas é-nos dito que na sinagoga em que Jesus entra está um homem (ánthrôpos) com uma mão paralisada (Marcos 3,1). E é-nos dito igualmente que estão lá outros a ver se Jesus o curaria em dia de sábado, para o poderem acusar (Marcos 3,2). Se o homem aparece apenas com a determinação genérica de «ser humano» (ántrôpos), os outros não passam de «eles», que estão lá apenas como observadores que desejam poder transformar-se em acusadores. Só Jesus tem nome. Só Jesus entra. O homem e «eles» já lá estão. O homem não pede nada; «eles» não perguntam nada. Só Jesus tem nome, só Jesus fala, só Jesus age. Ele é verdadeiramente o Senhor do Sábado.

Desenhado e preenchido o cenário, Jesus diz (légei), no presente, ao homem: «Levanta-te (egeírô), e vem para o meio!» (Marcos 3,3). E diz (légei), no presente, para «eles»: «É permitido, ao sábado, fazer o bem ou fazer o mal, salvar uma vida ou matá-la?» (Marcos 3,4a). Não é dito, no texto, que o homem se tenha movimentado, mas é dito que «eles» se calavam (esiôpôn: imperfeito de duração de siôpáô) (Marcos 3,4b).

Note-se bem a voz de Jesus a ecoar no presente e no silêncio. Note-se também a força da pergunta que formula, e que tem resposta demasiado óbvia. Na verdade, o bem deve fazer-se sempre, não apenas ao sábado, mas em todos os dias da semana! E o mal nunca se deve fazer, nem ao sábado nem em dia nenhum da semana! Quanto a matar, é proibido pela Lei sem mais detalhes (Êxodo 20,13). E, portanto, não salvar uma vida é violar a Lei, pois é demasiado óbvio que matamos sempre que não salvamos alguém da morte. Neste momento, o narrador mostra-nos um dos gestos mais fortes de Jesus: olha ao redor (periblépô) para «eles», com ira e tristeza, por causa da dureza do coração «deles» (Marcos 3,5a). E diz (légei), no presente, para o homem: «Estende a mão!». «Estendeu-a, e ficou restabelecida a sua mão» (Marcos 3,5b).

Esta é, nos Evangelhos, a única vez que Jesus opera uma cura por sua própria iniciativa. Note-se, porém, que «aqueles» que estavam lá para verificar se Jesus curaria ao sábado, ficaram sem nenhum registo no bloco-notas. Na verdade, Jesus nada fez que se visse no que à ação de curar diz respeito. Mas note-se agora também que Jesus tudo fez para que «eles» pudessem ver bem a sua soberania. Ao fazer vir o homem para o meio, deixou-o claramente à vista de todos. Não o tomou à parte, como referem outros relatos (cf. Marcos 7,33; 8,23). Ao dirigir-se ao homem por duas vezes (Marcos 3,3 e 5), Jesus quer que todos vejam que ele se interessa pessoalmente por aquele homem. Sim, Jesus é a transparência de Deus-Pai, que não quer nunca ficar confinado na lonjura e impessoalidade.

O texto do Deuteronómio 5,12-15, que hoje fica a retinir nos nossos ouvidos, constitui o contraponto ideal de quanto vimos e ouvimos no Evangelho. O sábado transporta consigo a memória da liberdade. Não para alguns, mas para todos: para ti, para os teus filhos e as tuas filhas, para o teu escravo e a tua escrava, para o teu boi, para o teu jumento, para todos os teus animais, para o estrangeiro que reside no teu meio. Extraordinária lição de liberdade! O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), via o Sábado como uma pérola de Israel oferecida a toda a humanidade, um Templo de tempo, e não de espaço. Israel constrói o tempo onde outros povos constroem o espaço. Novidade arquitetónica de Israel. Por isso, não se pode reduzir o sábado a um preceito. Digamos nós: o nosso Domingo não pode reduzir-se a um preceito sob pena de pecado.

E S. Paulo, na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,6-11), diz, com finura e verdade, que levamos este tesouro em vasos de barro. Ele é a Luz, faz luzir a luz, tudo alumia. A nossa luz é reflexa, e reside aí a sua beleza. Assim, não há motivo para vanglórias, mas fica claro que somos apenas (e tanto!) pura transparência de Cristo, deixando que se manifeste no nosso corpo a sua vida. Noutro lugar dirá: «Levo no meu corpo os estigmas de Jesus» (Gálatas 6,17). Belo programa de vida.

Entretanto, e sempre, ressoa no nosso pobre coração comovido e agradecido, o belo canto do Salmo 81. Sim, Deus colocou-se ao lado de Israel e ao nosso lado para nos aliviar das cargas pesadas que nos oprimem, desde o Egito até aos nossos dias.

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I da Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 (Ex 24, 3-8)
        2. Leitura II da Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 (Heb 9, 11-15)
        3. Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 – Lecionário
        4. Solenidade do Corpo de Deus – Ano B – 30.05.2024 – Oração Universal
        5. Leitura I do Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 (Deut 5, 12-15)
        6. Leitura II do Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 (2 Cor 4, 6-11)
        7. Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 – Lecionário
        8. Domingo IX do Tempo Comum – Ano B – 02.06.2024 – Oração Universal
        9. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Solenidade da Santíssima Trindade

Dia Diocesano da Família

Fim de semana da I Jornada Mundial das Crianças – Roma – 25 e 26.05.2024

 

Viver a Palavra

DEUS!

Com toda a certeza, esta é a palavra sobre a qual mais se escreveu ao longo da história: grandes tratados demonstrando a sua existência e inúmeros escritos que negam, quer a necessidade do divino, quer a necessidade de relação com ele. Mas como é Deus em si mesmo? Como é que Deus se relaciona connosco?

É inegável que no mais íntimo do coração humano reside um desejo de plenitude e de transcendência. Na verdade, como nos recorda S. Agostinho, o coração humano é um coração inquieto que não se satisfaz com nada menos do que Deus e é, precisamente assim, que se torna um coração que ama. O nosso coração vive inquieto por Deus e não pode ser doutro modo, ainda que hoje o ser humano procure de tantos modos libertar-se desta inquietação. Contudo, como afirmou o Papa Bento XVI na homilia da Solenidade da Epifania, a 6 de janeiro de 2012: «não somos só nós, seres humanos, que vivemos inquietos relativamente a Deus. Também o coração de Deus vive inquieto relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também Ele não descansa enquanto não nos tiver encontrado. O coração de Deus vive inquieto, e foi por isso que se pôs a caminho até junto de nós – até Belém, até ao Calvário, de Jerusalém até à Galileia e aos confins do mundo. Deus vive inquieto connosco!».

Este Deus inquieto, que nos ama com amor infinito, que nos criou por amor e, por amor, nos acompanha nos caminhos da história, revela-se em Jesus Cristo e, na força do Espírito Santo, dá-nos a conhecer o Seu rosto terno e misericordioso. Deste modo, a Solenidade da Santíssima Trindade é a oportunidade de olharmos o coração de Deus, de entrarmos no Seu mistério de amor e comunhão para nos deixarmos envolver por esta corrente de graça que transforma a vida e o coração humano. A missão dos Apóstolos foi precisamente esta: acolher a inquietação de Deus por cada homem e mulher e levar o próprio Deus ao coração dos homens. Como discípulos missionários, também nós hoje somos chamados a deixar-nos tocar por esta inquietação de Deus, a fim de que o anseio de Deus pelo homem possa ser satisfeito.

Para entrar neste dinamismo de amor é necessário como os discípulos regressar à Galileia. Impressiona-me sempre que em diferentes relatos da Ressurreição Jesus dê aos discípulos indicação de voltarem ali. Regressar à Galileia significa voltar ao encontro primeiro com Jesus, ao momento em que deixaram que o Seu coração fosse tocado pelo incisivo convite de Jesus para partirem com Ele. É verdade que apesar da experiência que fizeram de Jesus Ressuscitado «alguns ainda duvidaram», mas isso não foi impedimento para que Jesus lhes confiasse a missão de partir e anunciar o Evangelho a todos os povos. A última palavra não pertence às nossas dúvidas ou receios. Eles fazem parte do caminho e devermos aprender a enfrentá-los. A última palavra pertence a Jesus que nos garante: «Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos». Acompanhados por esta certeza, os nossos medos dissipam-se, as nossas dúvidas desvanecem e diante de nós rasgam-se horizontes de esperança que na força do Espírito nos permitem olhar o céu e invocar «Abá, Pai». in Voz Portucalense

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No Domingo da Santíssima Trindade somos convidados pela liturgia a viver como artífices da comunhão e da unidade. A Igreja é Povo de Deus reunido na unidade do Pai, Filho e Espírito Santo (LG 4) e, por isso, chamada a testemunhar esta comunhão de amor. Deste modo, ao celebrar esta solenidade, cada família e cada comunidade cristã são desafiadas a renovar o seu compromisso de ser testemunhas da alegria da comunhão e da beleza de caminhar juntos. No contexto desta celebração, podem ser apresentadas alguns desafios concretos e ações de saída missionária que em família ou em comunidade se podem levar a cabo para que a comunhão e unidade que somos chamados a testemunhar não sejam apenas um conjunto de boas intenções, mas uma realidade concreta na vida e na missão de cada batizado. in Voz Portucalense

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Estamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 4,32-34.39-40

Moisés falou ao povo, dizendo:
«Interroga os tempos antigos que te precederam,
desde o dia em que Deus criou o homem sobre a terra.
Dum extremo ao outro dos céus,
sucedeu alguma vez coisa tão prodigiosa?
Ouviu-se porventura palavra semelhante?
Que povo escutou como tu a voz de Deus
a falar do meio do fogo
e continuou a viver?
Qual foi o deus que formou para si
uma nação no seio de outra nação,
por meio de provas, sinais, prodígios e combates,
com mão forte e braço estendido,
juntamente com tremendas maravilhas,
como fez por vós o Senhor vosso Deus no Egipto,
diante dos vossos olhos?
Considera hoje e medita no teu coração
que o Senhor é o único Deus,
no alto dos céus e cá em baixo na terra,
e não há outro.
Cumprirás as suas leis e os seus mandamentos,
que hoje te prescrevo,
para seres feliz, tu e os teus filhos depois de ti,
e tenhas longa vida
na terra que o Senhor teu Deus te vai dar para sempre».

CONTEXTO

O Livro do Deuteronómio (“segunda Lei”) é o “livro da Lei” ou “livro da Aliança”, cujo achamento no Templo de Jerusalém, na época do rei Josias, é referido no segundo livro dos Reis (cf. 2 Re 22,3-13). Este livro teve origem no reino do Norte (Israel), em pleno séc. VIII a.C., quando alguns teólogos de Israel, descontentes com os cultos religiosos estrangeiros que pululavam por todo o lado, se dedicaram a uma reflexão sobre os compromissos de Israel no âmbito da Aliança. Dessa reflexão saiu a primeira versão do livro do Deuteronómio. Mais tarde, quando a Samaria estava para cair nas mãos dos Assírios (722/721 a.C.), esses teólogos refugiaram-se no sul (Reino de Judá) e levaram com eles as suas ideias religiosas. O livro do Deuteronómio, enquanto expressão dessas ideias, despertou algum interesse nos ambientes religiosos de Jerusalém; mas alguns decénios depois, na altura em que Judá foi governado pelos reis ímpios Manassés (687 a 642 a.C.) e Amon (642 a 640 a.C.), o livro do Deuteronómio foi retirado de circulação. Só em 622 a.C. foi encontrado em Jerusalém, a tempo de servir de motor à grande reforma religiosa levada a cabo pelo rei Josias (cf. 2 Re 23,1-14). A teologia deste livro gira à volta de algumas coordenadas fundamentais: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Javé. A partir das ideias e da teologia do livro do Deuteronómio constituiu-se uma “escola” de reflexão e de pensamento teológico, a que os modernos biblistas chamam “escola deuteronomista”. Diversos livros do Antigo Testamento nasceram a partir das ideias desta “escola”.

Literariamente, o livro do Deuteronómio apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes de o Povo atravessar o rio Jordão e entrar na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua Aliança com Javé.

O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro desses discursos (cf. Dt 1,6-4,43).  Moisés começa, no referido discurso, por fazer um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Nebo, na Transjordânia, em frente a Jericó (cf. Dt 1,6-3,29); depois, Moisés propõe ao Povo um resumo da Aliança e das suas exigências (cf. Dt 4,1-43). Os teólogos deuteronomistas pretendem sugerir, com esta sequência, que o compromisso pedido a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos.          A ação de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.

É provável que o capítulo quatro do Livro do Deuteronómio não fizesse parte das primeiras edições da obra. A maior parte dos estudiosos veem-no como um texto redigido na fase final do Exílio na Babilónia. Mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Javé e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo de Deus corria o risco de trocar Javé pelos deuses babilónicos. É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo, pela boca de Moisés, a olhar para a sua história, a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Javé e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • É frequente falar-se do nosso tempo, a propósito da proliferação de certas experiências religiosas, como um tempo de redescoberta do sagrado, de regresso do espiritual, de reencontro com o divino; e nós falamos disso com um certo ar de triunfo e de contentamento. Por detrás desse discurso está, muitas vezes, o nosso desejo de voltarmos a encher as nossas igrejas e de regressarmos ao tempo em que o fenómeno religioso era estruturante na construção do edifício social. Mas, será que todas as experiências religiosas ajudam a fazer uma descoberta positiva de Deus? Certas imagens de Deus apresentadas nos discursos das seitas religiosas são verdadeiramente libertadoras? O deus fundamentalista dos fanáticos, que exige que se mate em nome dele terá algo a ver com o Deus verdadeiro? O vago aroma espiritual que alguns encontram em determinadas experiências isotéricas conduzem a uma experiência profunda e verdadeira de Deus? A “onda espiritual” que nos dá tanta esperança não terá por base, em muitos casos, uma imagem profundamente deturpada de Deus? A Solenidade da Santíssima Trindade é, antes de mais, um convite a descobrirmos o verdadeiro rosto de Deus. Quem é Deus para nós? Como O vemos? Como O entendemos?
  • No texto do livro do Deuteronómio que hoje nos é proposto como primeira leitura, os catequistas de Israel referem-se a Javé, o Deus em quem acreditam, como um Deus compassivo, misericordioso, que vem ao encontro dos homens, que está permanentemente atento aos problemas dos homens, que intervém no mundo para libertar os seus filhos de tudo aquilo que os oprime, que nunca desiste de oferecer aos homens perspetivas de Vida plena e verdadeira. Como é que os catequistas de Israel chegaram a esta “definição” de Deus? Foi a partir da vida, da contemplação da ação de Deus na história. A forma de Deus atuar mostra, claramente, a sua essência, o seu ADN, o seu rosto, o seu coração: Javé é o Deus da Aliança, da relação, da comunhão, do amor nunca desmentido. Esta “retrato” de Deus que a catequese de Israel nos oferece diz-nos alguma coisa? Podemos confirmá-la a partir da nossa própria experiência?
  • Os catequistas de Israel garantem-nos que mais nenhum “deus” é capaz de fazer por alguém aquilo que Javé faz pelo seu Povo. Esta garantia convida-nos a refletir sobre o papel que outros “deuses” (bem mais falíveis, bem menos dignos de confiança) desempenham nas nossas apostas e no nosso percurso de vida. Em quem é que pomos a nossa esperança? Esses “deuses” que tantas vezes nos seduzem (o dinheiro, o poder, a fama, o sucesso, o reconhecimento social, os valores da moda), são verdadeiramente garantia de Vida e de felicidade? Esses “deuses” trazem-nos liberdade e esperança ou escravidão e alienação?
  • Os catequistas de Israel convidam o Povo a responder a Deus cumprindo as leis e os mandamentos que Ele propõe. Faz sentido: não servirá de muito que Deus se interesse por nós e que nos aponte caminhos de Vida e de felicidade se depois nós ignoramos as suas indicações e escolhemos caminhos de egoísmo e de autossuficiência que nos levam ao encontro de uma vida completamente falhada. Os mandamentos não são propostas destinadas a limitar a nossa liberdade e a prender-nos a um deus ciumento e castrador; mas são sugestões de um Deus que nos ama, que quer a nossa felicidade e que, no respeito absoluto pela nossa liberdade, não desiste de nos indicar o caminho para a verdadeira Vida. Estamos disponíveis para escutar as indicações de Deus e para conduzir a nossa vida na direção que Deus nos sugere? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)

Refrão: Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança.

 

A palavra do Senhor é reta,
da fidelidade nascem as suas obras.
Ele ama a justiça e a retidão:
a terra está cheia da bondade do Senhor.

A palavra do Senhor criou os céus,
o sopro da sua boca os adornou.
Ele disse e tudo foi feito,
Ele mandou e tudo foi criado.

Os olhos do Senhor estão voltados para os que O temem,
para os que esperam na sua bondade,
para libertar da morte as suas almas
e os alimentar no tempo da fome.

A nossa alma espera o Senhor:
Ele é o nosso amparo e protetor.
Venha sobre nós a vossa bondade,
porque em Vós esperamos, Senhor.

LEITURA II – Romanos 8,14-17

Irmãos:
Todos os que são conduzidos pelo Espírito de Deus
são filhos de Deus.
Vós não recebestes um espírito de escravidão
para recair no temor,
mas o Espírito de adoção filial,
pelo qual exclamamos: «Abba, Pai».
O próprio Espírito dá testemunho,
em união com o nosso espírito,
de que somos filhos de Deus.
Se somos filhos, também somos herdeiros,
herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo;
se sofrermos com Ele,
também com ele seremos glorificados.

CONTEXTO

A Carta aos Romanos é um texto sereno e amadurecido, escrito por Paulo por volta do ano 57/58, no final da sua terceira viagem missionária, e no qual o apóstolo apresenta uma síntese do seu pensamento teológico. O motivo invocado por Paulo para o envio desta carta é comunicar aos cristãos de Roma a sua próxima passagem pela cidade, a caminho de Espanha (cf. Rm 15,23-24): o apóstolo sente que terminou a sua missão no oriente e quer anunciar o Evangelho de Jesus no ocidente.

Muito provavelmente esse “motivo” é apenas um pretexto a que Paulo recorre para se dirigir aos Romanos e para lhes expor as suas ideias acerca da salvação. Na comunidade cristã de Roma – como, aliás, em quase todas as comunidades cristãs de então – havia divergências entre cristãos vindos do judaísmo e cristãos vindos do paganismo acerca do caminho cristão. Para os judeo-cristãos, a salvação dependia, além da fé em Cristo, da prática da Lei de Moisés; para os pagano-cristãos, a adesão a Cristo bastava. Cada um dos grupos evocava as suas raízes e considerava que o caminho que propunha era a única via para aceder à salvação. A uns e a outros, Paulo vai apresentar o essencial da mensagem cristã. Insiste, sobretudo, no facto de a salvação não ser uma conquista do homem (que resulta dos atos ou dos méritos do homem), mas um dom do amor de Deus. Na verdade, todos os homens – judeus e romanos – vivem mergulhados no pecado, pois o pecado é uma realidade universal (cf. Rm 1,18-3,20); mas Deus, na sua bondade, a todos “justifica” e salva (cf. Rm 3,1-5,11); e essa salvação é oferecida por Deus ao homem através de Jesus Cristo; ao homem, resta aderir a essa proposta de salvação, na fé (cf. Rm 5,12-8,39). Se os cristãos de Roma tiverem sempre isto em mente, não deixarão que as diferenças de perspetiva os ponham uns contra os outros.

O texto que hoje nos é oferecido como segunda leitura faz parte de um capítulo em que Paulo reflete sobre a Vida nova que Deus oferece ao batizado e à qual Paulo chama “a vida no Espírito”. O pensamento teológico de Paulo atinge, neste capítulo, um dos seus pontos culminantes, pois todos os grandes temas paulinos (o projeto salvador de Deus em favor dos homens; a ação libertadora de Cristo, através da sua vida de doação, da sua morte e da sua ressurreição; a nova vida que faz dos crentes Homens Novos e os torna filhos de Deus), se cruzam aqui.

Paulo procura, de forma especial, mostrar que os cristãos, libertos da Lei, do pecado e da morte por Jesus Cristo, deixaram a vida velha da “carne” (que é viver em oposição a Deus, numa vida de egoísmo, de autossuficiência, de orgulho, de fechamento) para viverem a vida nova do Espírito (que é viver em comunhão com Deus, escutando as suas propostas e acolhendo os seus projetos).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Paulo de Tarso era judeu. Conhecia bem a história do seu Povo e aquilo que a catequese de Israel contava sobre a ação libertadora e salvadora de Deus, concretizada na história em tantos gestos inesquecíveis. Ele, como os outros judeus piedosos, ouvira falar de Javé como o Deus da Aliança, da relação, da comunhão; e acreditava n’Ele. Mas, no texto da Carta aos Romanos que a liturgia deste dia nos propõe como segunda leitura, Paulo vai bem mais longe do que a fé tradicional do seu Povo e fala de Deus como um “Abbá”, um Pai querido, cheio de ternura e amor, preocupado em reunir à sua volta todos os seus filhos para lhes dar Vida. Provavelmente foi com Jesus que Paulo aprendeu a ver Deus como “Abbá”. Jesus e Paulo convidam-nos a olhar para Deus com a confiança, a familiaridade, o carinho, a admiração de uma criança pequenina que se sente profundamente amada, cuidada e protegida pelo seu pai. É deste jeito que nós vemos Deus? É desta forma que falamos de Deus aos nossos irmãos que O procuram?
  • Deus não se limitou a criar-nos. Ele continua a acompanhar-nos ao longo do caminho e a dar-nos Vida a cada instante. No entanto, não se impõe nem nos obriga a aceitar o seu dom; respeita sempre a nossa liberdade, as nossas opções. Cabe-nos a nós responder à oferta de Vida que Deus nos faz. É claro que, se preferirmos viver “segundo a carne” e trilhar caminhos de egoísmo, de orgulho e de autossuficiência, estamos a recusar os dons de Deus e a construir uma vida sem sentido e sem objetivo; mas se optarmos por viver “segundo o Espírito”, tornamo-nos herdeiros da vida eterna. Em que situação é que nos colocamos, perante a oferta de Vida que Deus nos faz?
  • Fazer parte de uma família que tem Deus como Pai, como “Abbá”, é frequentar a escola do amor. Com Deus aprendemos a amar os nossos irmãos, a amar sem condições, a amar de forma ilimitada. A relação que temos com os outros homens e mulheres que caminham connosco deve espelhar o amor, a ternura, a misericórdia, a bondade, o perdão, o serviço, que aprendemos com o nosso Pai do céu e com Jesus, nosso irmão mais velho. É isso que acontece? As nossas relações comunitárias refletem esse amor que é a marca da “família de Deus”?in Dehonianos.

EVANGELHO – Mateus 28,16-20

Naquele tempo,
os onze discípulos partiram para a Galileia,
em direção ao monte que Jesus lhes indicara.
Quando O viram, adoraram-n’O;
mas alguns ainda duvidaram.
Jesus aproximou-Se e disse-lhes:
«Todo o poder Me foi dado no Céu e na terra.
Ide e fazei discípulos de todas as nações,
batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo,
ensinando-as a cumprir tudo o que vos mandei.
Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos»

CONTEXTO

O texto situa-nos na Galileia, após a ressurreição de Jesus (embora não se diga se é muito ou pouco tempo após a descoberta do túmulo vazio). De acordo com Mateus, Jesus, pouco antes de ser preso, havia marcado encontro com os discípulos na Galileia (cf. Mt 26,32); e na manhã da Páscoa, tanto o anjo que apareceu às mulheres no sepulcro (cf. Mt 28,7), como o próprio Jesus, vivo e ressuscitado (cf. Mt 28,10), renovam o convite para que os discípulos se dirijam à Galileia, a fim de lá encontrar o Senhor.

A Galileia, território setentrional da Palestina, era uma região próspera e bem povoada, de solo fértil e bem cultivado. A sua situação geográfica fazia desta região o ponto de encontro de muitos povos; por isso, um número importante de pagãos fazia parte da sua população. A coabitação de populações pagãs e não pagãs fazia com que os judeus da Galileia vivessem a religião de uma maneira diferente dos judeus da Judeia, e de Jerusalém em particular: a presença diária dos pagãos levava os galileus a suavizar a sua prática da Lei e a interpretar de forma menos rígida as regras que se referiam, por exemplo, às impurezas rituais contraídas pelo contacto com os não judeus. No entanto, isto fazia com que os judeus de Jerusalém desprezassem os galileus e considerassem que da Galileia “não podia sair nada de bom”.

No entanto, foi na Galileia que Jesus começou a anunciar o Reino de Deus (cf. Mt 4,12-17); foi na Galileia que Ele reuniu à sua volta um grupo de discípulos (cf. Mt 4,12-22); foi na Galileia que Ele, ao longo de quase três anos, propôs o Reino com palavras e gestos. Depois, Jesus foi até Jerusalém para enfrentar as autoridades e para morrer; mas, vencida a violência do sistema e vencida a morte, voltou à Galileia para retomar o projeto do Reino. Ao atribuir esta centralidade à Galileia, Mateus está provavelmente a sugerir que o anúncio libertador de Jesus tem uma dimensão universal: destina-se a judeus e pagãos. De acordo com a conceção teológica de Mateus, é na Galileia e a partir da Galileia que o Evangelho de Jesus irá ao encontro do mundo.

O encontro final entre Jesus ressuscitado e os discípulos acontece num “monte que Jesus lhes indicara”. No entanto, Mateus não identifica o “monte” em questão. O “monte” é sempre, na cultura bíblica, o lugar onde Deus se revela aos homens. No entanto, o “monte” também aparece, nos Evangelhos sinóticos, como o lugar onde Jesus reúne os discípulos para lhes dar a sua “lei” ou para lhes apresentar as suas diretrizes, como aconteceu no “monte das Bem-aventuranças” (cf. Mt 5-7) ou no “monte da Transfiguração” (cf. Mt 17,1-13). Esse “monte” não identificado para onde Jesus ressuscitado convoca os discípulos será o “monte do Envio”: aqui os discípulos recebem o mandato de ir anunciar o Reino ao mundo inteiro.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Esta página final do Evangelho segundo Mateus, lida em contexto da celebração da Solenidade da Santíssima Trindade, tem um sabor especial. Convida-nos a levantar os olhos daquelas questões rasteiras e materiais que todos os dias atraem a nossa atenção e a contemplar aquilo que está no final do nosso caminho: a comunhão plena com Deus, a integração na família de Deus. Jesus veio ao nosso encontro, enviado pelo Pai, para nos convidar a integrar a família de Deus; e, quando concluiu a sua missão entre nós e voltou para o Pai, confiou aos seus discípulos a missão de levarem a todos os homens e mulheres esse mesmo convite. A proposta de Jesus também nos chegou; e nós aceitamos o convite que nos foi feito e fomos batizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ficamos vinculados à família trinitária. A nossa vida tem sido coerente com o compromisso que assumimos no momento do nosso batismo? Como é que sentimos, vivemos e testemunhamos esse privilégio de integrar a família de Deus?
  • O papel dos discípulos é continuar a missão de Jesus, testemunhar o amor de Deus pelos homens e convidar os homens a integrar a família de Deus. Os irmãos e irmãs com quem nos cruzamos diariamente recebem essa mensagem? As nossas palavras e os nossos gestos testemunham esse amor com que Deus ama todos os homens? As nossas comunidades são a imagem viva da família de Deus e apresentam um convite credível e convincente aos homens para que integrem a comunidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo?
  • A missão que Jesus confiou aos discípulos – introduzir todos os homens na família de Deus – é uma missão universal: as fronteiras, as raças, a diversidade de culturas, não podem ser obstáculo para a presença da proposta libertadora de Jesus no mundo. Todos os homens e mulheres, sem exceção, têm lugar na família de Deus. Temos consciência de que Jesus nos envia a todos os homens – sem distinção de raças, de etnias, de diferenças religiosas, sociais ou económicas – a anunciar-lhes o amor de Deus e a convocá-los para integrar a comunidade trinitária? As nossas comunidades cristãs são “casa de acolhimento” onde todos têm lugar e onde todos podem fazer a experiência de integrar a família de Deus?
  • Num mundo onde Deus nem sempre faz parte dos planos e das preocupações dos homens, testemunhar o amor de Deus e apresentar aos homens o convite para integrar a família de Deus é um enorme desafio. O confronto com um mundo indiferente a Deus gera muitas vezes, nos discípulos, desilusão, sofrimento, frustração e desencanto. Jesus sabia isso quando enviou os discípulos. Por isso garantiu-lhes: “Eu estarei convosco até ao fim dos tempos”. Estamos conscientes da presença vivificante e reconfortante de Jesus ao nosso lado nesses caminhos cheios de obstáculos que temos de percorrer? A certeza de que Jesus vai ao nosso lado sustenta o nosso testemunho e transparece nas nossas palavras e gestos?
  • A celebração da Solenidade da Trindade convida-nos a mergulhar no mistério de Deus. Fala-nos de um Deus que é amor. Diz-nos que Deus não é um ente solitário, afastado dos homens, apenas ocupado em dirigir a máquina do universo; mas é uma família onde o amor está sempre presente. Em Deus coexistem a unidade e a comunhão de pessoas. Nós dizemos, na nossa linguagem imperfeita, que Deus é um em três pessoas. Mas Deus escapa a todas as fórmulas dos teólogos para ser, apenas, um mistério de amor, uma família de três Pessoas em perfeita comunhão. E, melhor que tudo, Deus convida-nos a integrar essa comunidade de amor que Ele forma com o Filho e com o Espírito: a família de Deus, a Trindade, está sempre aberta para acolher novos filhos. Muitas vezes dizemos, pessoal e comunitariamente, “eu creio em Deus”: qual é e como é o Deus em que acreditamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é constituída pelo discurso de Moisés ao povo e, por isso, deve ser proclamada com tom solene. A maior dificuldade na proclamação desta leitura são as quatro interrogações presentes no texto, sobretudo a quarta interrogação, que é uma longa frase e com diversas orações. Na leitura das frases interrogativas deve dar-se a entoação interrogativa nas partículas interrogativas ou nas formas verbais, evitando deixar a entoação para o final da frase.

Na segunda leitura ter atenção a palavra «Abá» que deve ler-se «Ábá».

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

NÃO ADORES NUNCA NINGUÉM MAIS…

Mateus 28,16-20: última página do Evangelho de Mateus, que hoje, Solenidade da Santíssima Trindade, é solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho de Mateus, condensa-o e resume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes.

Algumas notas surpreendentes enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade (1); a missão universal confiada a uma Igreja discipular, toda reunida à volta de um único Mestre e Senhor (2); só nesta página é dito que os Discípulos devem, por sua vez, ensinar, não se tornando, todavia, Mestres, mas permanecendo Discípulos (3); não ensinam, por isso, nada de próprio nem por conta própria, mas apenas «tudo o que Ele mandou» (4); a Presença nova e permanente [= «todos os dias»] do Ressuscitado na comunidade dos discípulos (5).

A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Indo depressa, dizei aos seus discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, Jesus apresenta-se às mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, apontando para nós e envolvendo-nos num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, de acordo com o dizer de Jesus, e à montanha indicada por Jesus (Mateus 28,16), é ainda Jesus que toma a dianteira e se aproxima deles e de nós (Mateus 28,18). É sempre d’Ele a iniciativa. A montanha lembra e reúne em analepse todas as montanhas que atravessam o Evangelho de Mateus: a montanha da tentação (Mateus 4,8), a das bem-aventuranças (Mateus 5,1), a da oração (Mateus 14,23), a das curas (Mateus 15,29) e a da Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça e abre caminhos à nossa frágil humanidade.

Aquele «Indo (poreuthéntes), fazei discípulos (mathêteúsate) de todas as nações» (Mateus 28,19), é a missão sem fim que é colocada diante dos nossos olhos, pois todas as nações são todos os corações. E «Ir» é não ficar aqui ou ali à espera. É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se medida tem é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está connosco todos os dias. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho: «Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos» (Mateus 28,20). Note-se a intensidade e a beleza da sanduíche: «Eu convosco sou» (Egô meth’ hymôn eimi). É assim a abrir o Evangelho: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco”» (Mateus 1,23). Então é assim todo o Evangelho, como indica a figura da inclusão literária. Mas a inclusão literária em paralelismo ou em confronto vai ainda da Galileia (Mateus 4,12-17) à Galileia (Mateus 28,16), da visão (Mateus 2,11) à visão (Mateus 28,17), da adoração (Mateus 2,11; 4,9) à adoração (Mateus 28,17), do poder dado (Mateus 4,9) ao poder dado (Mateus 28,18).

E aquele «ensinando» (didáskontes) discipular, e não magistral, apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade. De resto, para evitar dúvidas e deixar tudo claro, lá está bem expresso o conteúdo deste ensinamento novo: «tudo o que Eu vos mandei» (Mateus 28,20). É só permanecendo Discípulos fiéis que se pode ensinar. Discípulo define o estilo de vida de quem segue com fidelidade o Senhor que nos preside e nos precede sempre.

Atente-se também neste discurso em dois tempos de Moisés no Livro do Deuteronómio (4,32-40), salientando a iniciativa gratuita de Deus e exortando-nos à verdadeira Sabedoria bíblica: SABE HOJE! Não se trata de um saber assente naquilo que fizemos, fazemos ou faremos, centrado em nós, mas naquilo que, por amor, nos foi feito, nos é feito e nos será feito. Páginas admiráveis, em que a consciência do homem não é a autoconsciência daquilo que eu fiz, mas a hétero-consciência daquilo que me é feito e que eu sou HOJE chamado a reconhecer: «SABE HOJE e volta-o no teu coração: sim, o Senhor, teu Deus, é o único Deus nos céus, no alto, e sobre a terra, em baixo, e não há outro» (Deuteronómio 4,39).

SABE hoje e VOLTA-O NO TEU CORAÇÃO! Outra Sabedoria, outro saber, outro sabor. À outra luz do coração, que é onde arde o dom de Deus, Sabedoria de Deus, escrita nova de Deus no coração, viagem de Jeremias 17,1 a Jeremias 31,33, lume novo no coração dos dois Discípulos de Emaús (Lucas 24,32), em todos os que estavam reunidos em Jerusalém (Atos 2,3), e que Paulo quer acender no coração de Timóteo e no nosso (2 Timóteo 1,6).

Mas também o Espírito Santo, ensina-nos Paulo na Carta aos Romanos 8,14-17, hoje lida, escutada e meditada, opera em nós, tornando-nos de tal modo participantes da vida do Filho, que nos capacita a tratar a Deus por ʼAbbaʼ, Pai, com a mesma intimidade de Jesus (Romanos 8,15). É a adoção filial, a hyiothesía, termo jurídico grego, desconhecido no mundo hebraico, com o qual Paulo quer indicar a graça divina que constitui o homem na dignidade de filho de Deus de modo totalmente imprevisível e gratuito. Oh admirável ciência do amor e da graça, que nos põe a nós, filhos acabados de nascer, a balbuciar o mais belo nome de Deus!

Enfim, o Salmo 33, que hoje cantamos, é um verdadeiro «canto novo» (shîr hadash) a fazer vibrar as fibras do nosso coração. Mas é também música sem palavras (terûʽah) (Salmo 33,2), jubilação, exultação, lalação de radical confiança da criança que em nós sorri e dança, porque Deus vela por nós.

E não nos esqueçamos que «adorar» é «orientar a vida toda para…». Adorar Jesus é orientar a vida toda para Jesus. Adoremos hoje o Pai e o Filho e o Espírito Santo, unidos no mesmo Nome (Mateus 28,19). Não adores nunca ninguém mais…

O Filho e o Espírito Santo são,
No dizer de Santo Ireneu de Lião,
As duas mãos do Pai,
Enviadas em missão
Para junto dos seus filhos de adoção.
À semelhança, claro,
Daquelas mãos de amor,
Que, no alvor da Criação,
Modelaram da terra pura o nosso coração,
E de misericórdia o vestiram.
Filhos no Filho, divina hyiothesía,
Hemorragia de graça e de alegria:
Jesus, o Filho, assume a nossa humana condição,
E dá-nos em herança a sua divina filiação.
E o Espírito, que une e distingue o Pai e o Filho,
Divina comunhão, sem confusão,
Toma conta do nosso coração de filhos recém-nascidos,
E faz circular em nós, já hoje, já esta manhã,
A mais bela lalação que há, o nome novo Ab-ba!

António Couto

ANEXOS:

        1. Leitura I da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 (Dt 4, 32-34.39-40)
        2. Leitura II da Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 (Rom 8, 14-17)
        3. Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 – Lecionário
        4. Solenidade da Santíssima Trindade – Ano B – 26.05.2024 – Oração Universal
        5. Mensagem Papa Francisco para I JORNADA MUNDIAL DAS CRIANÇAS – 25 e 26 maio 2024
        6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024

 

Viver a Palavra

Cinquenta dias depois da Páscoa os Apóstolos continuam fechados com medo. Não estão em isolamento social recomendado pelas autoridades sanitárias, mas como discípulos de Jesus de Nazaré que foi crucificado estão recolhidos em casa e, com certeza, começam a pensar o que farão para vencer o temor e avançar para o desconfinamento. Contudo, algo de surpreendente e inesperado acontece. No lugar onde se encontravam «fez-se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam».

Este grupo que estava fechado, amedrontado e barricado em casa, subitamente encontra a audácia para enfrentar a multidão e corajosamente sai para a rua, proclamando as maravilhas de Deus nas mais variadas línguas, conforme o Espírito lhes inspirava. Estes homens não estavam habituados a fazer discursos, nem eram profissionais da palavra. São homens simples que não apoiavam os seus discursos na eloquência humana, mas em qualquer coisa de novo e diferente que os fazia anunciar de modo apaixonado e desassombrado as maravilhas de Deus. É o Espírito Santo, o Paráclito que o Mestre prometera e que agora desce sobre eles para os enviar em missão. Cheios do Espírito Santo, o medo deu lugar à coragem e o silêncio e o recolhimento deram lugar à proclamação da Palavra na praça pública.

A primeira leitura situa estes acontecimentos no dia de Pentecostes, isto é, cinquenta dias após a Páscoa. Por seu lado, a narrativa evangélica situa a descida do Espírito Santo «na tarde daquele dia, o primeiro da semana», isto é, no dia de Páscoa. Na verdade, a aparente contradição na descrição temporal destes acontecimentos permite-nos unir a Páscoa e o Pentecostes, recordando que o Espírito Santo é dom de Jesus Ressuscitado à Sua Igreja para que iluminados e guiados pelo Seu Espírito possam continuar no tempo e na história a Sua obra redentora.

«Recebei o Espírito Santo». O Espírito Santo é dom gratuito do amor de Deus que nos faz participar na Sua obra de amor. Deste modo, o Espírito Santo é um dom a invocar e a agradecer. Mas juntamente com o Seu Espírito, o Ressuscitado concede também a Sua paz e envia os discípulos em missão para que sejam anunciadores da Boa Nova da Paz e da reconciliação. Jesus une à missão que o Pai lhe confiou a missão de cada um de nós: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».

Somos enviados tal como o Pai enviou o Seu Filho muito amado e unimo-nos assim à missão de Jesus para que o rosto de misericórdia e perdão do Pai continue a brilhar no mundo. Jesus envia os discípulos mostrando-lhes as mãos e o lado, confiando-lhes a missão de perdoar os pecados. Perdoar é dar através das feridas recebidas, é fazer do mal sofrido uma oportunidade para o amor e a reconciliação, é criar paz com uma superabundância de amor que vence o ódio e a violência sofridos.

Unido ao Espírito Santo, o perdão é um acontecimento muito mais escatológico do que ético, porque nos faz participar no aqui e agora do tempo e da história da comunhão e da paz que se viverá em plenitude no céu. Vinde Espírito Santo! Vinde e rasgai horizontes de esperançam e tornai-nos anunciadores da nova civilização do amor para que o mundo possa ser esse lugar que Deus sonhou para nós. in Voz Portucalense

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O Diretório Litúrgico indica que o Domingo de Pentecostes é Dia do Apostolado Organizado dos Leigos e do contributo para o mesmo Apostolado por decisão da Conferência Episcopal. Apesar da escassez de informação sobre esta efeméride indicada no diretório, é importante valorizar o apostolado dos leigos e, sobretudo, valorizar a diversidade de ministérios, dons e carismas que o Espírito Santo oferece à Igreja. Como afirmou o Papa Francisco: «na Igreja, a variedade, que é uma grande riqueza, sempre se funde na harmonia da unidade, como um grande mosaico onde todos os ladrilhos concorrem para formar o único grande desígnio de Deus». in Voz Portucalense

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Estamos num novo ciclo do Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 2,1-11

Quando chegou o dia de Pentecostes,
os Apóstolos estavam todos reunidos no mesmo lugar.
Subitamente, fez-se ouvir, vindo do Céu,
um rumor semelhante a forte rajada de vento,
que encheu toda a casa onde se encontravam.
Viram então aparecer uma espécie de línguas de fogo,
que se iam dividindo,
e poisou uma sobre cada um deles.
Todos ficaram cheios do Espírito Santo
e começaram a falar outras línguas,
conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem.
Residiam em Jerusalém judeus piedosos,
procedentes de todas as nações que há debaixo do céu.
Ao ouvir aquele ruído, a multidão reuniu-se
e ficou muito admirada,
pois cada qual os ouvia falar na sua própria língua.
Atónitos e maravilhados, diziam:
«Não são todos galileus os que estão a falar?
Então, como é que os ouve cada um de nós
falar na sua própria língua?
Partos, medos, elamitas,
habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia,
do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília,
do Egipto e das regiões da Líbia, vizinha de Cirene,
colonos de Roma, tanto judeus como prosélitos,
cretenses e árabes,
ouvimo-los proclamar nas nossas línguas
as maravilhas de Deus».

CONTEXTO

A obra de Lucas abarca dois “tempos” diferentes, duas etapas da “história da salvação”: o “tempo de Jesus” (Evangelho), e o “tempo da Igreja” (Atos dos Apóstolos). O “tempo de Jesus” é o “tempo” em que Jesus estava fisicamente presente no meio dos seus discípulos e andava com eles pelas vilas e aldeias da Palestina a anunciar o Reino de Deus; o “tempo da Igreja” é o tempo em que Jesus já voltou para o Pai e são os discípulos que assumem a missão de dar testemunho da salvação de Deus.

Os Atos dos Apóstolos situam-nos, portanto, no “tempo da Igreja”. O livro apresenta-nos os momentos principais dessa aventura missionária que leva a proposta de Jesus desde Jerusalém até aos confins do mundo (At 1,8). Os discípulos, no entanto, não percorrerão sozinhos este caminho: serão ajudados e orientados pelo Espírito Santo, conforme a promessa de Jesus (cf. At 1,5.8).

O “tempo da Igreja” começa em Jerusalém, logo depois da ressurreição/ascensão de Jesus. De acordo com o plano teológico de Lucas, foi em Jerusalém que a salvação de Deus irrompeu na história dos homens; e será a partir de Jerusalém que essa salvação se vai espalhar pelo mundo inteiro. O “pontapé de saída” nessa aventura que vai levar o Evangelho de Jesus ao encontro do mundo foi dado com a receção, pelos discípulos, do Espírito Santo.

No livro dos Atos, Lucas diz-nos que a comunidade de Jesus se encontrou com o Espírito Santo no dia em que os judeus celebravam a festa judaica do Pentecostes (em hebraico “Shavu’ot”). Essa festa (também chamada “festa das semanas” e “festa das primícias”) ocorria cinquenta dias após a Páscoa e era, antes de mais, uma festa agrícola: terminada a colheita dos cereais, os agricultores dirigiam-se ao Templo, ao som de música de flautas, para entregar a Deus os primeiros frutos da colheita (“bicurim”). Eram acolhidos com cânticos de boas-vindas, entravam no templo e entregavam nas mãos dos sacerdotes os cestos com os frutos que tinham trazido. Mais tarde, contudo, a tradição rabínica ligou esta festa à celebração da “aliança” e ao dom da Lei, no Sinai; e, no séc. I, esta dimensão tinha um lugar importante na celebração do Pentecostes.

No que diz respeito ao texto que nos é proposto neste domingo como primeira leitura e que descreve os acontecimentos do dia do Pentecostes, não existem dúvidas de que é uma construção artificial, criada por Lucas com uma clara intenção teológica. Para apresentar a sua catequese, Lucas recorre a imagens, a símbolos, à linguagem poética das metáforas. Temos de descodificar os símbolos para chegarmos à interpelação essencial que a catequese primitiva, pela palavra de Lucas, quis deixar-nos. Uma interpretação literal deste relato seria, portanto, uma boa forma de passarmos ao lado do essencial da mensagem; far-nos-ia reparar na roupagem exterior, no folclore, e ignorar o fundamental. O interesse fundamental de Lucas, o nosso catequista, é apresentar a Igreja como a comunidade que nasce de Jesus, que é assistida pelo Espírito e que é chamada a testemunhar aos homens o projeto libertador do Pai. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Hoje, para o bem e para o mal, toda a gente fala da “Igreja” e tem opinião sobre a vida da “Igreja”. O que é a “Igreja”? Qual é a essência, a “alma” dessa realidade a que chamamos “Igreja”? O que é que ela pretende? Qual o seu papel no mundo? Temos, nesta catequese sobre os acontecimentos do dia de Pentecostes, os elementos essenciais para responder a estas questões. Segundo o autor dos Atos, a Igreja é uma comunidade de homens e de mulheres convocados por Jesus, que aderiram a Jesus e à sua Boa Nova; são animados, sustentados e dirigidos pelo Espírito Santo ao longo de todo o caminho que percorrem na história; têm por missão continuar no mundo a obra de Jesus: anunciar o Reino de Deus, lutar contra o mal, curar os que sofrem, testemunhar em palavras e gestos o amor de Deus, levar a todos os cantos da terra a salvação de Deus. Da escuta e do acolhimento da proposta que, em nome de Jesus, a Igreja apresenta ao mundo, resulta a comunidade universal da salvação, que vive no amor e na partilha, apesar das diferenças culturais e étnicas. Sentimo-nos, efetivamente, membros desta família? Identificamo-nos com ela? A “Igreja” de que fazemos parte é uma comunidade de irmãos que se amam, apesar das diferenças? Está reunida por causa de Jesus e à volta de Jesus? Tem consciência de que o Espírito está presente e que a anima? Testemunha, de forma efetiva e coerente, a proposta libertadora que Jesus deixou?
  • O relato do autor dos Atos dos Apóstolos quer claramente afirmar que o Espírito Santo foi o responsável pela mudança de atitude dos discípulos em relação à tarefa que lhes foi confiada por Jesus. Antes do Pentecostes, o grupo dos discípulos estava fechado dentro de quatro paredes, incapaz de superar o medo e de arriscar, sem iniciativa e sem a coragem de dar testemunho; depois do Pentecostes, aparece-nos uma comunidade unida, sem medo, que ultrapassa as suas limitações humanas e testemunha bem alto a sua fé em Jesus ressuscitado. O Espírito clarifica as coisas, varre o medo, abre as portas, limpa as teias de aranha que a passagem do tempo deixa acumular, aponta os caminhos que devem ser percorridos, esbate as diferenças e apresenta ao mundo uma Igreja com um rosto belo, renovado e corajoso. As nossas comunidades cristãs têm consciência do papel do Espírito na construção e na animação da Igreja? Damos suficiente espaço à ação do Espírito, em nós e nas nossas comunidades?
  • A Igreja reúne na sua “casa” gente muito diversa, vinda de realidades culturais, políticas e sociológicas muito diversas. Essa diversidade nunca deve ser vista como um problema, mas sim como uma imensa riqueza. Para se tornar cristão, ninguém deve ser espoliado da própria cultura ou da sua identidade: nem os africanos, nem os europeus, nem os sul-americanos, nem os negros, nem os brancos; mas todos são convidados, com as suas diferenças, a acolher esse projeto libertador de Deus, que faz os homens deixarem de viver de costas voltadas, para viverem no amor. A Igreja de que fazemos parte é esse espaço de liberdade e de fraternidade? Nela todos encontram lugar e são acolhidos com amor e com respeito – mesmo os de outras raças, mesmo aqueles de quem não gostamos, mesmo aqueles que não fazem parte do nosso círculo, mesmo aqueles que a sociedade marginaliza e afasta? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 103 (104)

Refrão 1: Enviai, Senhor, o vosso Espírito, e renovai a face da terra.

Refrão 2: Mandai, Senhor, o vosso Espírito, e renovai a terra.

Refrão 3: Aleluia.

 

Bendiz, ó minha alma, o Senhor.
Senhor, meu Deus, como sois grande!
Como são grandes, Senhor, as vossas obras!
A terra está cheia das vossas criaturas.

Se lhes tirais o alento, morrem
e voltam ao pó donde vieram.
Se mandais o vosso espírito, retomam a vida
e renovais a face da terra.

Glória a Deus para sempre!
Rejubile o Senhor nas suas obras.
Grato Lhe seja o meu canto
e eu terei alegria no Senhor.

LEITURA II – 1 Coríntios 12,3b-7.12-13

Irmãos:
Ninguém pode dizer: «Jesus é o Senhor»,
a não ser pela ação do Espírito Santo.
De facto, há diversidade de dons espirituais,
mas o Espírito é o mesmo.
Há diversidade de ministérios,
mas o Senhor é o mesmo.
Há diversas operações,
mas é o mesmo Deus que opera tudo em todos.
Em cada um se manifestam os dons do Espírito
para o bem comum.
Assim como o corpo é um só e tem muitos membros,
e todos os membros, apesar de numerosos,
constituem um só corpo,
assim também sucede com Cristo.
Na verdade, todos nós
– judeus e gregos, escravos e homens livres –
fomos batizados num só Espírito,
para constituirmos um só Corpo.
E a todos nos foi dado a beber um único Espírito. 

CONTEXTO

O trabalho missionário de Paulo de Tarso, em meados do séc. I, levou o cristianismo ao encontro do mundo grego. Paulo, depois de um certo discernimento, tinha concluído que a proposta de Jesus era para todos os povos da terra e não exclusivamente para os judeus. No entanto, o contexto judaico – de onde o cristianismo era originário – e o contexto grego eram realidades culturais e religiosas bastante diferentes. Como é que a proposta cristã se aguentaria quando mergulhasse num mundo que funcionava com dinamismos que lhe eram estranhos? Iria a brilhante cultura grega absorver ou desvirtuar os valores cristãos? Como é que os cristãos de origem grega integrariam a sua fé na realidade cultural em que estavam inseridos? A comunidade cristã de Corinto sentiu toda esta problemática de forma especial. Na Primeira Carta aos Corintos, Paulo aborda diversas questões que lhe foram colocadas pelos cristãos de Corinto e onde, como “pano de fundo”, está a questão do encaixe dos valores cristãos nos valores da cultura grega.

Uma das questões onde esta problemática, de alguma forma, está presente é a questão dos “carismas”. A palavra “carisma” tem a sua origem no campo religioso cristão, especialmente na teologia paulina. Designa dons especiais do Espírito, concedidos a determinado indivíduo – independentemente do posto que ocupa na instituição eclesial – para o bem das pessoas, para as necessidades do mundo e, em particular, para a edificação da Igreja. Nas cartas de Paulo fala-se insistentemente em “carismas” que animavam a vida e o dinamismo das comunidades cristãs.

Alguns cristãos de Corinto, no entanto, influenciados por determinadas experiências religiosas que existiam na religião grega tradicional, entenderam os “carismas” de uma forma bem peculiar. Eles conheciam, por exemplo, os “oráculos”, através dos quais os deuses, servindo-se de intermediários humanos, transmitiam as suas indicações (santuário de Delfos, sacerdotisas de Dodona); conheciam também certos rituais em que os crentes, através do transe, de experiência orgiásticas, de excessos de vários tipos, se “fundiam” com o deus a quem prestavam culto (mistérios de Dionísio, culto de Cibele). Confundiram, portanto, os “carismas” cristãos com algumas dessas práticas pagãs; e, possivelmente, chegaram a fazer uso dos dons carismáticos em ambiente semelhante ao de certas cerimónias religiosas pagãs.

Mais ainda: considerando-se a si próprios “escolhidos de Deus”, alguns destes carismáticos reivindicavam um protagonismo que danificava a comunhão fraterna. Apresentando-se como “iluminados”, mensageiros incontestados das coisas divinas, assumiam atitudes de autoritarismo e de prepotência que não favoreciam a fraternidade; desprezavam os que não tinham sido dotados destes dons, considerando-os como “cristãos de segunda”, limitados a um lugar subalterno no contexto comunitário.

Tudo isto causou natural alarme na comunidade cristã de Corinto. Paulo, informado da situação, entendeu intervir para evitar abusos e mal-entendidos. Na Primeira Carta aos Coríntios, ele corrige, dá conselhos, mostra a incoerência destes comportamentos, incompatíveis com o Evangelho de Jesus. A sua intervenção neste campo aparece nos capítulos 12 a 14 da referida Carta. A nossa segunda leitura deste domingo insere-se neste contexto. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Todos aqueles que integram a comunidade cristã são membros de um único “corpo”, o “corpo de Cristo”; todos aqueles que são membros do “corpo de Cristo” vivem e alimentam-se do mesmo Espírito; todos aqueles que se alimentam do mesmo Espírito formam uma família de irmãos e de irmãs, iguais em dignidade. Podem, naturalmente, desempenhar funções diversas, como acontece com os membros de um corpo; mas todos eles são igualmente importantes enquanto membros do “corpo de Cristo”. Tudo isto parece incontestável, à luz da doutrina de Paulo. No entanto encontramos, com alguma frequência, cristãos com uma consciência viva da sua superioridade e da sua situação “à parte” na comunidade (seja em razão da função que desempenham, seja em razão das suas “qualidades” humanas), que gostam de se fazer notar e de afirmar a sua autoridade ou o seu “estatuto”. Às vezes, veem-se atitudes de prepotência e de autoritarismo por parte daqueles que se consideram depositários de dons especiais; por vezes, ficamos com a sensação de que a estrutura eclesial funciona em modelo piramidal, com uma elite que preside e toma as decisões instalada no topo, e um “rebanho” silencioso que obedece instalado na base. Isto faz algum sentido, à luz da doutrina que Paulo expõe? Como entendemos o nosso lugar e o nosso papel na comunidade cristã?
  • Os dons que o Espírito concede, por mais pessoais que sejam, são para servir o bem comum e para reforçar a vivência comunitária. Quem os recebe deve pô-los ao serviço de todos, com humildade e simplicidade. Não faz sentido escondermos os “dons” que recebemos, guardando-os só para nós e deixando que eles fiquem estéreis; também não faz sentido usar os “dons” que recebemos de tal forma que eles se tornem fator de conflitos ou de divisões. Os “dons” que nos foram concedidos são postos ao serviço da comunidade? São fonte de encontro, de comunhão, de partilha, de Vida, para a comunidade de que fazemos parte?
  • O Espírito Santo é uma presença imprescindível no caminho que a Igreja vai percorrendo todos os dias: é Ele que alimenta, que anima, que fortalece, que dá Vida ao Povo de Deus peregrino; é Ele que distribui os dons conforme as necessidades e que, com esses dons, continuamente recria a Igreja; é Ele que conduz a marcha, que indica os caminhos a percorrer, que ajuda a tomar as decisões que se impõem para que a “barca de Pedro” chegue a bom porto. Temos consciência da presença do Espírito, procuramos ouvir a sua voz e perceber as suas indicações?in Dehonianos.

 

SEQUÊNCIA DO PENTECOSTES

 

Vinde, ó santo Espírito,
vinde, Amor ardente,
acendei na terra
vossa luz fulgente.

Vinde, Pai dos pobres:
na dor e aflições,
vinde encher de gozo
nossos corações.

Benfeitor supremo
em todo o momento,
habitando em nós
sois o nosso alento.

Descanso na luta
e na paz encanto,
no calor sois brisa,
conforto no pranto.

Luz de santidade,
que no Céu ardeis,
abrasai as almas
dos vossos fiéis.

Sem a vossa força
e favor clemente,
nada há no homem
que seja inocente.

Lavai nossas manchas,
a aridez regai,
sarai os enfermos
e a todos salvai.

Abrandai durezas
para os caminhantes,
animai os tristes,
guiai os errantes.

Vossos sete dons
concedei à alma
do que em Vós confia:

Virtude na vida,
amparo na morte,
no Céu alegria.

EVANGELHO – João 20,19-23

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou,
também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».

CONTEXTO

Jesus foi crucificado na manhã de uma sexta-feira – dia da “preparação” da Páscoa – e morreu pelas três horas da tarde desse dia. Já depois de morto, um soldado trespassou-lhe o coração com uma lança; e do coração aberto de Jesus saiu sangue e água (cf. Jo 19,31-37). O evangelista João vê no sangue que sai do lado aberto de Jesus o sinal do seu amor dado até ao extremo (cf. Jo 13,1); e vê na água que sai do coração trespassado de Jesus o sinal do Espírito (cf. Jo 3,5), desse Espírito que Jesus “entregou” aos seus e que é fonte de Vida nova. Da água e do sangue, do batismo e da eucaristia, nascerá a nova comunidade, a comunidade da Nova Aliança. Contudo, os discípulos que tinham subido com Jesus a Jerusalém e que seriam o embrião dessa comunidade da Nova Aliança, desapareceram sem deixar rasto. Estão escondidos, algures na cidade de Jerusalém, paralisados pelo medo. O projeto de Jesus falhou?

No final da tarde dessa sexta-feira, o corpo morto de Jesus foi sepultado à pressa num túmulo novo, situado num horto ao lado do lugar onde se tinha dado a crucificação (cf. Jo 19,38-42). Depois veio o sábado, o último dia da semana, o dia da celebração da Páscoa judaica. Durante todo aquele sábado o túmulo de Jesus continuou cerrado.

A partir daqui a narração de João muda de tempo e de registo. Chegamos ao “primeiro dia da semana”. É o primeiro dia de um tempo novo, o tempo da humanidade nova, nascida da ação criadora e vivificadora de Jesus. “No primeiro dia da semana”, Maria Madalena, a mulher que representa a nova comunidade, vai ao túmulo e vem de lá confusa e desorientada porque o túmulo está vazio (cf. Jo 20,1-2). Logo depois, ainda “no primeiro dia da semana”, Pedro e outro discípulo correm ao túmulo e constatam aquilo que Maria Madalena tinha afirmado: Jesus já não está encerrado no domínio da morte (cf. Jo 20,3-10). A comunidade de Jesus começa a despertar do seu letargo; começa a viver um tempo novo. Mas é preciso mais qualquer coisa para que os discípulos vençam o medo e assumam o seu papel enquanto comunidade da Nova Aliança. O que falta? Ao entardecer do “primeiro dia da semana” (ou seja, ao concluir-se este primeiro dia da nova criação) Jesus encontra-se com toda a comunidade reunida na casa onde se escondiam.

O texto do evangelho que a liturgia da Solenidade do Pentecostes nos apresenta descreve esse encontro entre Jesus ressuscitado e a sua comunidade.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Nos relatos pascais aparece sempre, em pano de fundo, a convicção profunda de que a comunidade dos discípulos nunca estará sozinha, abandonada à sua sorte: Jesus ressuscitado, Aquele que venceu a morte, a injustiça, o egoísmo, o pecado, acompanhá-la-á em cada passo do seu caminho histórico. É verdade que os discípulos de Jesus não vivem num mundo à parte, onde a fragilidade e a debilidade dos humanos não os tocam. Como os outros homens e mulheres, eles experimentam o sofrimento, o desalento, a frustração, o desânimo; têm medo quando o mundo escolhe caminhos de guerra e de violência; sofrem quando são atingidos pela injustiça, pela opressão, pelo ódio do mundo; conhecem a perseguição, a incompreensão e a morte… Mas, apesar de tudo isso, não se deixam vencer pelo pessimismo e pelo desespero pois sabem que Jesus vai “no meio deles”, oferecendo-lhes a sua paz e apontando-lhes o horizonte da Vida definitiva. É com esta certeza que caminhamos e que enfrentamos as tempestades da vida? Os outros homens e mulheres que partilham o caminho connosco descobrem Jesus, vivo e ressuscitado, através do testemunho de esperança que damos?
  • O Espírito Santo é o grande dom que Jesus ressuscitado faz à comunidade dos discípulos. Ele é o sopro de Vida que nos recria e que nos transforma, a cada instante, em pessoas novas. Sem o Espírito, seremos barro inerte e não imagem viva de Deus; sem o Espírito, ficaremos paralisados pelos nossos medos e pelos nossos comodismos, incapazes de ter uma atitude construtiva e transformadora; sem o Espírito, ficaremos instalados no ceticismo e na desilusão, sem a audácia profética que transforma o mundo; sem o Espírito, esconder-nos-emos atrás de leis, de rituais, de doutrinas, e não passaremos de funcionários medíocres de uma religião sem alma e sem amor; sem o Espírito recairemos continuamente nos esquemas velhos e nos hábitos velhos, incapazes de nos deixarmos questionar pelos desafios sempre novos de Deus; sem o Espírito, ficaremos cada vez mais fechados dentro das paredes dos nossos templos, incapazes de ir ao encontro do mundo e de lhe levar a proposta de Jesus… Sem o Espírito, nunca teremos a coragem para continuar no mundo a obra de Jesus. No entanto, o Espírito só atua em nós se estivermos disponíveis para o acolher. Ele não se impõe nem desrespeita a nossa liberdade. Estamos disponíveis para acolher o Espírito? O nosso coração está aberto aos desafios que o Espírito constantemente nos lança?
  • São bem sugestivos os nomes com que Jesus, na última ceia, designa o Espírito prometido: “Espírito da Verdade” e “Paráclito”. Ele é “Espírito da Verdade” porque nos traz, a cada passo a Verdade de Deus, uma Verdade que o mundo precisa escutar e que os discípulos de Jesus devem testemunhar sem tibiezas; Ele é “Paráclito” (“aquele que consola ou conforta”; “aquele que encoraja”; “aquele que intercede”; “aquele que defende”) porque nos dá a força e a coragem para enfrentar as tempestades e as incompreensões do mundo. Não caminhamos “sem rede” e sem rumo, entregues à nossa sorte, tropeçando a cada passo na obscuridade e na incerteza; caminhamos com o Espírito que nos aponta a Verdade, que nos mostra o caminho, que nos encoraja e fortalece a cada passo. Confiamos no Espírito da Verdade que Jesus nos deixou e deixamo-nos guiar por Ele? Sentimo-nos confiantes e serenos no caminho, certos de que o Paráclito nos defenderá e nos dará a força para vencer a maldade e a morte?
  • A ação do Espírito Santo não se circunscreve às fronteiras institucionais da Igreja. Ele está presente nos corações de todos os homens e mulheres de boa vontade, crentes ou não crentes, que se dispõem a lutar por um mundo mais belo, mais justo e mais humano. Podemos perceber a presença e a ação do Espírito em tantos e tantos gestos de bondade, de amor, de partilha, de serviço, de perdão, de cuidado, de acolhimento que vão acontecendo por todo o lado e são sementes de um mundo novo. A contemplação desses gestos, sinais vivos do Espírito, deve ser, para nós, fonte de alegria e de esperança. Temos reparado nos sinais de vida nova que vão brotando por todo o lado e que sinalizam a presença e a ação do Espírito no mundo? Sentimo-nos gratos a Deus por tudo o que Ele vai fazendo no mundo, mesmo quando a sua ação se concretiza através de homens e mulheres que têm uma posição diferente da nossa quanto à fé ou quanto à forma de encarar a vida?in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura além de extensa possui palavras inusuais e de difícil pronunciação quando refere os diversos lugares de proveniência dos judeus residentes em Jerusalém: «Partos» deve ler-se «Pártos»; «medos» deve ler-se «médus»; «elamitas» deve ler-se «elamítas». As restantes devem seguir a acentuação colocada no texto.

A segunda leitura possui diversos pormenores a ter em atenção: a dualidade das frases introduzidas pelas expressões «Há diversidade» ou «há diversas»; a frase que possui as conjunções «assim». Nestas frases, as expressões e conjunções devem ser proclamadas de modo a explorar toda a expressividade do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O ESPÍRITO SANTO E NÓS!

O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir de entrar ou de sair, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!», Shalôm. Mostra-lhes, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aorde horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito Santo, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este vento, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

«Recebei o Espírito Santo» (João 20,22). É o Espírito Santo que nos faz «filhos de Deus», «filhos no Filho», irmãos de Jesus e seus contemporâneos, e impede que sejamos catalogados, como reza a história empírica, em simples continuadores de Jesus.

O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos o vento impetuoso do Espírito a recriar e renovar a nossa face e a face da terra, em duas vagas sucessivas: primeiro, no cenáculo, onde estávamos todos reunidos (v. 1-4); depois na rua, onde está a multidão das gentes oriundas do mundo inteiro (v. 5-11). Num e noutro lugar, em toda a parte, o vento impetuoso do Espírito varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e purifica os nossos corações com o seu fogo ardente. O Espírito, irrompendo em línguas como de fogo, não poisa, mas senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós (v. 3), Mestre novo dos tempos novos, que viria para orientar e guiar a nossa vida, como Jesus tinha prometido e anunciado, por cinco vezes, no Evangelho de João: 14,15-17; 14,25-26; 15,26; 16,7; 16,13-15. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna no seu sentido mais puro, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação, aquele balbuciar, repetindo sons, entre a mãe e o seu bebé. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!

É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –, do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).

A tradição situa no Cenáculo e à sua volta, em frequências cada vez mais alargadas, as duas cenas acima descritas (João 20,19-23 e Atos 2,1-11). É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.

Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio do fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».

O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74).

Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).

  1. Escrevendo aos Romanos (8,9-13) e a nós, S. Paulo adverte-nos que não é «na carne» (en sarkí), mas «no Espírito» (en pneúmati), que devemos viver. E ele insiste em dizer como é importante Cristo estar «em vós» (en hymîn), e o Espírito, Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos, habitar (oikéô) «em vós» (en hymîn). A carne tem a ver com o currículo, o status, a importância, a ganância… Para nossa instrução e mapa de vida, podemos sempre socorrer-nos do vasto elenco, sempre atualizado, das «obras da carne», que S. Paulo faz na Carta aos Gálatas: «São manifestas as obras da carne, que são: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, magia, inimizades, rixa, ciúme, iras, ambições, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, sobre as quais vos previno, como já preveni, que os que tais coisas fizerem não herdarão o Reino de Deus» (Gálatas 5,19-21). E podemos também ver o confronto que ele faz com os «frutos do Espírito», que são: «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).

O Salmo 104 põe-nos a contemplar hoje as obras maravilhosas de Deus, cheias do seu alento, que são a alegria de Deus (Salmo 104,31), e a alegria de Deus é a nossa alegria (Salmo 104,34). «A alegria de Deus é a nossa força» (Neemias 8,10). De notar que a temática de Deus que se alegra é muito rara na Escritura. Aparece hoje no meio deste mundo novo e maravilhoso. Tema, portanto, para recuperar, pois é também a fonte da nossa alegria!

Nós somos do tempo da missão do Espírito, Aquele que vem para nós da humanidade glorificada do Filho de Deus e de Maria, Jesus. Note-se a fortíssima e ousada vinculação: «O Espírito Santo e nós» (Atos 15,28).

Deus habitando em nós (João 14,24). Deus connosco (Apocalipse 21). Cidade nova, Consolação nova, Bênção nova, Paz nova, não com a medida do mundo, mas de Deus (João 14,27; Salmo 67).

Todas as tuas criaturas, Senhor,
respiram, vivem, sorriem,
cantam,
por causa do teu alento criador.
O teu pão de mil sabores
sacia todas as fomes e todas as dores,
a tua Palavra bela e plena de harmonia
a todos envolve e alumia,
irmana, aconchega e alivia.
Por isso,
ainda que espalhados pelos quatro cantos do mundo,
continuamos todos reunidos no Cenáculo,
a primeira Catedral da Igreja nascente,
mas com ramificações em todas as casas,
em todos os corações,
bem assente em quatro colunas:
o ensino dos Apóstolos,
a comunhão fraterna,
a fração do pão
e a oração.
Com a boca cheia de louvor,
os olhos de graça,
as mãos de paz e de pão,
as entranhas de misericórdia e de perdão,
a comunidade bela crescia, crescia, crescia.
Não admira.
era tão jovem, leve e bela,
que as pessoas lutavam por entrar nela!
Envia, Senhor,
sobre nós,
o teu vento,
o teu alento,
o teu Espírito,
e renova por favor,
renova por amor
a nossa face
e a face da terra.

António Couto

ANEXOS:

    1. Leitura I – Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 (Act 2, 1-11)
    2. Leitura II – Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 (1 Cor 12,3b-7.12-13)
    3. Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 – Lecionário
    4. Solenidade de Pentecostes – Ano B – 19.05.2024 – Oração Universal
    5. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
    6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VII da Páscoa – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024

58.º Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social.

 

Viver a Palavra

O Salmo deste Domingo convida-nos a entoar cheios de alegria «Ergue-Se Deus, o Senhor, em júbilo e ao som da trombeta». Parece paradoxal rejubilar e exultar porque vemos o Senhor partir. Contudo, bem sabemos que a ascensão do Senhor não é uma fuga nem um abandono porque os homens e mulheres não acolheram a Sua mensagem. A ascensão do Senhor atesta a verdade da Ressurreição e faz-nos compreender que Jesus vive agora na glória do Pai, revelando assim o sentido pleno da Páscoa como entrada no Reino dos Céus e como participação da vida nova e eterna que só Jesus e o Seu amor nos podem oferecer.

A Ascensão do Senhor recorda-nos, em primeiro lugar, a meta da nossa existência, tal como rezamos na oração coleta: «a ascensão de Cristo, vosso Filho, é a nossa esperança: tendo-nos precedido na glória como nossa Cabeça, para aí nos chama como membros do seu Corpo». A Ascensão de Cristo recorda que cada homem e cada mulher são chamados a peregrinar sobre a terra, mas de olhos fitos no céu onde reside a meta das suas vidas. Somos peregrinos a caminho do céu, percorrendo com alegria, coragem e radicalidade a estrada da santidade.

Celebrar esta solenidade não nos pode deixar apenas de olhos fitos no Céu, pasmados, a olhar esse Jesus que subiu aos Céus: «Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?». Caminhamos de olhar fito no Céu e com os pés bem assentes no caminho que o Senhor nos chama a percorrer. Cristo parte para o Céu, mas permanece muito vivo e atuante na história pela força do Seu Espírito e convoca-nos para a missão, recomendando a cada um de nós que sejamos continuadores da Sua obra de amor: «Ide por todo o mundo».

Celebrar a Ascensão do Senhor é tomar verdadeiramente consciência da nossa missão de cristãos: «sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra». Uma testemunha, tal como indica o dicionário da língua portuguesa, é uma «pessoa que presenciou ou ouviu algum fato ou dito e que dele pode dar pormenores». Ser testemunha significa ser portador da alegria da ressurreição pela experiência pessoal, íntima e decisiva de encontro com Jesus Cristo, apresentando os pormenores, isto é, narrando com a vida, em gestos concretos de amor e misericórdia, a ternura e a bondade de Deus.

Subindo ao Céu, Jesus recorda os Seus discípulos que eles terão de ser os continuadores da Sua obra redentora, que no mundo eles serão os braços que continuarão a abraçar como Jesus, que eles serão os pés que percorrerão com os homens as estradas da história, que eles serão os lábios portadores do Evangelho do amor, que eles serão presença e companhia junto de quantos estão sós e abandonados.

Por isso, dizia Jesus: «Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem: expulsarão os demónios em meu nome; falarão novas línguas; se pegarem em serpentes ou beberem veneno, não sofrerão nenhum mal; e quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados». Ainda que pareçam excessivas estas palavras são para nós: sempre que afastamos o mal da nossa vida e da vida daqueles que nos rodeiam estamos a expulsar os demónios que nos dividem e separam; sempre que com os nossos gestos e palavras anunciamos o amor, estamos a pronunciar com os nossos lábios e com a nossa vida a nova linguagem que Jesus nos veio ensinar; sempre que abraçamos as dificuldades e os desafios com coragem e ousadia, estamos a pegar em serpentes e beber veneno e a ser capazes de resistir com a força do Espírito Santo; sempre que visitamos os doentes e os reconfortamos com as nossas palavras e a nossa presença estamos a impor as mãos e a curar.

«Eles partiram a pregar por toda a parte e o Senhor cooperava com eles, confirmando a sua palavra com os milagres que a acompanhavam». Foi assim com os discípulos; há-de ser assim connosco sempre que formos capazes de disponibilizar o nosso coração para o acontecer de Deus. in Voz Portucalense

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No Domingo da Solenidade da Ascensão do Senhor celebramos o 58.º Dia Mundial dos Meios de Comunicação Social. O Papa Francisco em diversas ocasiões, sobretudo nas suas viagens apostólicas, faz questão de agradecer pessoalmente aos jornalistas e meios de comunicação social o seu trabalho e dedicação. No contexto atual, onde a informação é abundante e tantas vezes até excessiva e os meios de comunicação habitam diferentes plataformas, precisamos de uma comunicação que promova o bem comum, a dignidade humana e ajude cada homem e cada mulher a caminhar na verdade, num clima de harmonia social. Para este ano, o Papa Francisco escreveu uma mensagem intitulada: «Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana». Esta mensagem (ver anexo) pode ser um bom recurso para dinamizar alguma atividade ou iniciativa neste Domingo ou nesta semana.in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 1,1-11

No meu primeiro livro, ó Teófilo,
narrei todas as coisas que Jesus começou a fazer e a ensinar,
desde o princípio até ao dia em que foi elevado ao Céu,
depois de ter dado, pelo Espírito Santo,
as suas instruções aos Apóstolos que escolhera.
Foi também a eles que, depois da sua paixão,
Se apresentou vivo, com muitas provas,
aparecendo-lhes durante quarenta dias
e falando-lhes do reino de Deus.
Um dia em que estava com eles à mesa,
mandou-lhes que não se afastassem de Jerusalém,
mas que esperassem a promessa do Pai,
«da Qual – disse Ele – Me ouvistes falar.
Na verdade, João batizou com água;
vós, porém, sereis batizados no Espírito Santo,
dentro de poucos dias».
Aqueles que se tinham reunido começaram a perguntar:
«Senhor, é agora que vais restaurar o reino de Israel?»
Ele respondeu-lhes:
«Não vos compete saber os tempos ou os momentos
que o Pai determinou com a sua autoridade;
mas recebereis a força do Espírito Santo,
que descerá sobre vós,
e sereis minhas testemunhas
em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria
e até aos confins da terra».
Dito isto, elevou-Se à vista deles
e uma nuvem escondeu-O a seus olhos.
E estando de olhar fito no Céu, enquanto Jesus Se afastava,
apresentaram-se-lhes dois homens vestidos de branco,
que disseram:
«Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?
Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu,
virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu».

CONTEXTO

O livro dos “Atos dos Apóstolos” constitui a segunda parte da obra de Lucas. Depois de ter apresentado, na primeira parte (o “Evangelho de Jesus Cristo segundo Lucas”), “o tempo de Jesus”, Lucas completa a sua obra apresentando “o tempo da Igreja”: é o “tempo” em que a proposta de salvação de Deus é levada ao encontro do mundo pela comunidade de Jesus (a “Igreja”), animada e conduzida pelo Espírito Santo.

O livro dos Atos aparece algum tempo depois do terceiro Evangelho, nos últimos anos da década de 80 do primeiro século. Dirige-se a comunidades cristãs de língua grega, provavelmente comunidades que nasceram do trabalho missionário de Paulo de Tarso. São comunidades que, por essa altura, passam algumas dificuldades quanto ao compromisso com a fé: passou já a fase da expetativa pela vinda iminente do Cristo glorioso para instaurar o “Reino” e há uma certa desilusão porque essa vinda não se concretizou; as questões doutrinais causam confusões e conflitos internos; a monotonia favorece uma vida cristã pouco comprometida… Resultado: há já algum tempo que as comunidades cristãs se instalaram na mediocridade, falta-lhes o entusiasmo e o empenho na construção e no testemunho do Reino de Deus.

Nos Atos dos Apóstolos, Lucas procura deixar claro que o projeto de salvação que Jesus veio apresentar não pode ficar parado. Enquanto Jesus não volta, são os seus discípulos que têm de continuar a propor ao mundo a salvação de Deus. Eles devem, com alegria e entusiasmo, ser testemunhas de Jesus e do seu Evangelho em todos os cantos da terra. Foi essa a tarefa de que Jesus os incumbiu quando voltou para o Pai.

O texto que a liturgia do Domingo da Ascensão nos propõe como primeira leitura, é precisamente o início do livro dos Atos dos Apóstolos. Apresenta a despedida de Jesus, o seu regresso ao Pai, e a entrega da missão aos discípulos.

A despedida de Jesus teria acontecido em Jerusalém, após uma refeição com os discípulos (cf. At 1,4.9). No Evangelho, Lucas é ainda mais explícito: foi em Betânia, uma localidade situada no cimo do Monte das Oliveiras, mesmo em frente da cidade de Jerusalém, que Jesus se despediu dos discípulos e, à vista deles, subiu ao céu (cf. Lc 24,50). De acordo com o esquema teológico de Lucas, Jerusalém é o lugar onde a salvação irrompe (de acordo com a mentalidade judaica, é em Jerusalém que o Messias deve manifestar-se e que a sua proposta libertadora se há de concretizar na vida de Israel), e também o lugar de onde a salvação de Jesus parte para ir ao encontro do mundo.

Hoje, em Jerusalém, uma pequena capela em formato octogonal, situada no cimo do Monte das Oliveiras, faz memória da Ascensão de Jesus ao céu. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A ascensão de Jesus deve ser vista no contexto de toda a sua vida. Ele veio ao encontro dos homens, caminhou no meio deles, procurou viver na fidelidade ao projeto do Pai, pagou com a própria vida o seu compromisso com a construção do Reino de Deus. Mas Deus não aceitou que a maldade vencesse e libertou Jesus da escravidão da morte; e Jesus, glorificado por Deus, entrou definitivamente na glória do Pai. A ascensão de Jesus diz-nos qual é o destino final daqueles que, como Ele, vivem na fidelidade aos projetos de Deus: estão destinados à glorificação, à comunhão definitiva com Deus. Contemplando a ascensão de Jesus, percebemos qual é a meta do nosso caminho: a Vida plena junto do Pai. Isto dá um novo sentido à nossa vida, às nossas lutas, ao nosso compromisso, à nossa entrega à construção do Reino de Deus. Não caminhamos ao encontro do vazio, do nada, mas caminhamos ao encontro da Vida definitiva nos braços de Deus, como Jesus. Temos consciência disso? Essa consciência alimenta a nossa entrega, o nosso compromisso, a nossa fidelidade ao projeto de Deus?
  • É bem significativo que a “partida” de Jesus apareça associada ao envio dos discípulos. Jesus, terminada a sua missão, foi ter com o Pai; mas aquilo que Ele começou não está concluído. Agora a missão que o Pai tinha confiado a Jesus passa para as mãos dos seus discípulos. Como Jesus, eles têm a tarefa de ir pelo mundo curar, dar Vida, lutar contra o sofrimento e a morte, testemunhar com palavras e gestos a salvação de Deus. “Sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo” – disse-lhes Jesus ao partir para o Pai. A comunidade dos discípulos é uma comunidade “missionária”: todos os discípulos são “enviados” a dar testemunho de Jesus e do seu projeto, em todo o tempo e em todos os lugares. Sentimo-nos “missionários” de Jesus no nosso mundo, mensageiros da salvação de Deus em todos os lugares onde a vida nos leva?
  • Jesus garantiu aos discípulos que iriam receber uma força, a do Espírito Santo, que os capacitaria para serem testemunhas da salvação de Deus em toda a terra. Trata-se de uma “promessa” decisiva. Não estamos sozinhos, entregues à nossa sorte, às nossas decisões falíveis, aos nossos medos e contradições. Através do Espírito é o próprio Jesus que nos acompanha, que nos orienta, que nos dá força para levar para a frente a missão. Estamos conscientes da presença do Espírito nas nossas vidas e na vida das nossas comunidades cristãs? Procuramos escutar o Espírito e discernir os desafios de Deus que Ele nos traz?
  • “Porque estais assim a olhar para o céu?” – perguntam os “dois homens vestidos de branco” aos discípulos de Jesus, após a ascensão. É frequente ouvirmos dizer que os seguidores de Jesus passam muito tempo a olhar para o céu e negligenciam o seu compromisso com a transformação do mundo. Estamos, efetivamente, atentos aos problemas e às angústias dos homens, ou vivemos de olhos postos no céu, num espiritualismo alienado? Sentimo-nos questionados pelas inquietações, pelas misérias, pelos sofrimentos, pelos sonhos, pelas esperanças que enchem o coração dos que nos rodeiam? Sentimo-nos solidários com todos os homens, particularmente com aqueles que sofrem? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 46 (47)

Refrão 1:  Por entre aclamações e ao som da trombeta,
ergue-Se Deus, o Senhor.

 

Refrão 2: Ergue-se, Deus, o Senhor,
em júbilo e ao som da trombeta.

 

Povos todos, batei palmas,
aclamai a Deus com brados de alegria,
porque o Senhor, o Altíssimo, é terrível,
o Rei soberano de toda a terra.

Deus subiu entre aclamações,
o Senhor subiu ao som da trombeta.
Cantai hinos a Deus, cantai,
cantai hinos ao nosso Rei, cantai.

Deus é Rei do universo:
cantai os hinos mais belos.
Deus reina sobre os povos,
Deus está sentado no seu trono sagrado

LEITURA II – Efésios 1,17-23

Irmãos:
O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória,
vos conceda um espírito de sabedoria e de luz
para O conhecerdes plenamente
e ilumine os olhos do vosso coração,
para compreenderdes a esperança a que fostes chamados,
os tesouros de glória da sua herança entre os santos
e a incomensurável grandeza do seu poder
para nós os crentes.
Assim o mostra a eficácia da poderosa força
que exerceu em Cristo,
que Ele ressuscitou dos mortos
e colocou à sua direita nos Céus,
acima de todo o Principado, Poder, Virtude e Soberania,
acima de todo o nome que é pronunciado, não só neste mundo,
mas também no mundo que há de vir.
Tudo submeteu aos seus pés e pô-l’O acima de todas as coisas
como Cabeça de toda a Igreja, que é o seu Corpo,
a plenitude d’Aquele que preenche tudo em todos.

CONTEXTO

Éfeso era uma cidade situada na costa da Jónia, a cerca de três quilómetros da moderna Selçuk, província de Esmirna, na atual Turquia. Durante o período romano chegou a ser a segunda cidade do império, logo a seguir a Roma. Era famosa pelo Templo de Ártemis, uma das sete maravilhas do mundo antigo, e pelo seu enorme teatro, com capacidade para cerca de 25.000 espetadores. Era também conhecida pela excelência das suas escolas filosóficas, pela sua vida cultural e por ser o principal centro comercial do Mediterrâneo.

Paulo passou em Éfeso durante a sua terceira viagem missionária e permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10). Reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23); e assim, à volta da sua pregação e do seu testemunho, desenvolveu-se uma comunidade cristã numerosa e entusiasta. Foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso. Estranhamente, a Carta aos Efésios não reflete essa relação.

Na verdade, a carta está escrita num tom impessoal, sem referências a pessoas ou a circunstâncias concretas. Parece estranho que Paulo, depois de ter passado um tempo relativamente longo em Éfeso, escrevesse uma carta sem deixar transparecer a relação estreita que o unia aos Efésios. Alguns duvidam, por essa razão, da autenticidade paulina da Carta aos Efésios; mas outros consideram que o texto que chegou até nós com a designação de “Carta aos Efésios”, poderia ser um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor (também à Igreja de Éfeso), numa altura em que Paulo estava na prisão, talvez em Roma. Ora, uma carta desse tipo não poderia ser uma carta muito pessoal. Tíquico, o portador da carta, tê-la-ia distribuído pelas Igrejas da zona. Estaríamos, provavelmente, pelos anos 58/60.

O tema central da Carta aos Efésios é o projeto salvador de Deus (aquilo a que Paulo chama “o mistério”): definido desde toda a eternidade, permaneceu oculto ao entendimento dos homens durante séculos, até que foi dado a conhecer em Jesus e revelado aos apóstolos. O projeto salvador de Deus concretiza-se, agora, na Igreja, Corpo de Cristo, sacramento de salvação, onde judeus e pagãos se encontram e vivem em unidade.

O texto da Carta aos Efésios que nos é proposto como segunda leitura neste domingo da Ascensão, integra a primeira parte da carta, que reflete sobre o “Mistério” de Cristo e da Igreja (cf. Ef 1,3-3,21). Ao hino de louvor a Deus pelo seu plano de salvação, concretizado em Cristo (cf. Ef 1,3-14), segue-se uma ação de graças pela fé dos efésios e pela caridade que eles manifestam para com todos os irmãos na fé (cf. Ef 1,15-23). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • No dia em que celebramos a ascensão de Jesus ao céu, Paulo pede a Deus que “ilumine os olhos” do nosso coração para termos sempre presente “a esperança a que fomos chamados”. É um pedido que faz sentido. Curvados pelo cansaço do caminho, seduzidos pelos apelos de um mundo que vive “a prazo”, encandeados pelo brilho falso dos valores passageiros, podemos ceder à tentação de caminhar de olhos postos no chão, limitando-nos a seguir a corrente e a aproveitar algumas migalhas de felicidade efémera. Mas a ascensão de Jesus fala-nos de um projeto de vida com dimensão de eternidade e de plenitude. Qual o cenário de fundo que domina a nossa caminhada: o da terra, sempre muito rasteiro e limitado, ou o horizonte largo do mundo de Deus, de onde o nosso irmão Jesus nos chama?
  • É bela e sugestiva a imagem da Igreja como um “corpo” do qual Cristo é a “cabeça”. Todos nós, membros vivos desse “corpo”, estamos ligados a Cristo. É Ele o nosso “centro”, a nossa referência, a nossa fonte de Vida. A imagem também nos lembra a comunhão, a solidariedade, os laços fraternos que unem todos aqueles que integram esse “corpo”, apesar das diferenças e distâncias que possam existir entre nós. Estas duas coordenadas estão presentes na nossa experiência de fé? Procuramos manter permanentemente a nossa ligação a Jesus e fazer d’Ele o centro à volta do qual construímos toda a nossa existência? Sentimo-nos ligados aos nossos irmãos na fé e procuramos, com eles e junto deles, viver o mandamento do amor que Jesus nos deixou?
  • A Igreja é a “plenitude” de Cristo. Nela Cristo reside no mundo e nela Cristo continua a oferecer ao mundo a plenitude da salvação de Deus. Os homens e mulheres do nosso tempo, quando olham para a Igreja, encontram Cristo e a proposta de salvação que Cristo veio trazer? Nós, membros da Igreja, damos testemunho coerente e verdadeiro de Cristo e do Evangelho?

(Nota: em vez desta leitura, pode-se escolher a seguinte leitura facultativa: Ef 4,1-13). in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 16,15-20

Naquele tempo,
Jesus apareceu aos Doze e disse-lhes:
«Ide por todo o mundo
e pregai o Evangelho a toda a criatura.
Quem acreditar e for batizado será salvo;
mas quem não acreditar será condenado.
Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem:
expulsarão os demónios em meu nome;
falarão novas línguas;
se pegarem em serpentes ou beberem veneno,
não sofrerão nenhum mal;
e quando impuserem as mãos sobre os doentes,
eles ficarão curados».
E assim o Senhor Jesus, depois de ter falado com eles,
foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus.
Eles partiram a pregar por toda a parte
e o Senhor cooperava com eles,
confirmando a sua palavra
com os milagres que a acompanhavam.

CONTEXTO

Há consenso entre os biblistas em admitir que o texto original do Evangelho segundo Marcos terminava em 16,8 com a referência ao silêncio e ao medo das mulheres que, na manhã de Páscoa, encontraram vazio o túmulo de Jesus. Parece uma forma estranha de concluir a história de Jesus; mas, ao terminar o seu evangelho com este “final aberto”, Marcos estaria a deixar os seus leitores um convite implícito a que eles próprios completassem o relato com a sua própria experiência pessoal de adesão e de seguimento de Jesus ressuscitado.

A perícope de Mc 16,9-20, conhecida como “conclusão longa”, parece ter sido acrescentada posteriormente ao texto de Marcos. Apresenta um estilo e um vocabulário que a distinguem nitidamente do resto do evangelho. Aliás, essa “conclusão longa” não aparece nos manuscritos mais importantes e mais antigos, como sejam os códices Vaticano e Sinaítico.

Provavelmente, a forma como Marcos concluiu o seu evangelho deixou os seus leitores insatisfeitos e, rapidamente, apareceram tentativas de lhe dar um final mais satisfatório. Algumas dessas tentativas estão, aliás, atestadas em diversos documentos antigos que nos transmitiram o texto do segundo Evangelho. De entre os diversos “finais” que apareceram, houve um que se impôs aos outros. Trata-se de um texto de meados do séc. II, que apresenta um resumo das aparições de Jesus ressuscitado contadas por outros evangelistas. Assim, a aparição de Jesus ressuscitado aos Onze (cf. Mc 16,14) depende de Lc 24,36-43 e de Jo 20,19-29; a definição da missão dos apóstolos (cf. Mc 16,15-18) depende de Mt 28,16-20 e de Lc 24,44-49; o relato da Ascensão (cf. Mc 16,19) depende de Lc 24,50-53 e de At 1,4-11. Embora tardio e não redigido por Marcos, este “final” é, contudo, parte integrante da Escritura Sagrada. A Igreja reconhece-o como canónico, como inspirado por Deus e como Palavra de Deus.

O quadro traçado pelo autor dessa “conclusão longa” apresenta os discípulos a reagir de uma forma muito negativa ao facto de Jesus já não estar com eles. Na manhã da ressurreição, eles estavam “em luto e em pranto” (Mc 16,10); depois, receberam o testemunho das mulheres que encontraram Jesus ressuscitado com incredulidade e com um coração obstinado (cf. Mc 16,14). É uma comunidade que não ousa sair para enfrentar a hostilidade do mundo; prefere ficar dentro de portas, prisioneira dos seus medos, a “lamber as feridas”.

No entanto, depois de aparecer a Maria Madalena (cf. Mc 16,9) e a dois discípulos “que iam a caminho do campo” (cf. Mc 16,12), Jesus ressuscitado apresentou-se aos “onze” quando estes estavam à mesa (cf. Mc 16,14). É precisamente aqui que o evangelho proclamado na Solenidade da Ascensão do Senhor nos situa. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A partida de Jesus, a sua entrada definitiva no mistério do Pai, marca uma etapa nova na história da salvação. Nesse dia começa o tempo da Igreja, o tempo em que a responsabilidade de testemunhar a salvação de Deus fica nas mãos dos discípulos de Jesus. Eles acolheram o convite de Jesus, dispuseram-se a segui-l’O, ouviram as suas palavras, viram os seus gestos, aprenderam as suas lições, foram formados na sua “escola”. Conhecem o projeto de Jesus e adotaram-no como projeto de vida. É altura de se mostrarem adultos e responsáveis na vivência da fé. Não podem continuar “á boleia” de Jesus, à espera que Jesus faça tudo. Compete-lhes agora continuarem no mundo, com alegria, criatividade e compromisso, a obra libertadora e salvadora de Jesus. Sentimos esta responsabilidade? Somos capazes de vencer os nossos medos e as nossas hesitações, a nossa preguiça e o nosso comodismo, para nos assumirmos como testemunhas coerentes e comprometidas de Jesus e do seu projeto?
  • No Evangelho segundo Marcos Jesus define a missão dos discípulos como pregar o Evangelho, combater o mal que oprime os homens, curar os doentes e dar Vida a todos aqueles que sofrem. É a mesma tarefa que Jesus cumpriu, por mandato do Pai. O nosso anúncio é uma “boa notícia” que liberta do medo e que acende a esperança? Anunciamos e testemunhamos o amor misericordioso de Deus? Estamos empenhados em combater a injustiça, a violência, o egoísmo, a indiferença, tudo aquilo que gera escravidão e opressão? Os doentes, os prisioneiros, os que a todo o momento veem pisados os seus direitos e a sua dignidade, os que vivem ignorados e abandonados, os que são privados do acesso à saúde e à educação, os que são “marcados” e excluídos por serem “diferentes”, podem contar com a nossa solidariedade ativa, com o nosso amor, com o nosso esforço para lhes levar Vida?
  • A missão que Jesus confiou aos discípulos é uma missão universal: as fronteiras, as raças, as diferenças culturais, as diferenças ideológicas, as diferenças de estatuto social, as marcas da vida, os “acidentes” pessoais que tornam cada pessoa única e diferente, não podem ser obstáculos para a presença da proposta libertadora de Jesus no mundo. Temos consciência de que Jesus nos envia a todas as pessoas, independentemente daquilo que as torna diferentes, “estranhas”, singulares? Nas nossas comunidades cristãs há lugar para todos, sejam quais forem as situações de vida ou as feridas que cada um carrega?
  • De acordo com Jesus, o Evangelho é uma proposta libertadora não apenas para os seres humanos, mas para “toda a criatura”. A tradição bíblica ensina que Deus, depois de concluir a sua obra criadora, a confiou ao Homem (cf. Gn 1,28-30); mas o Homem, ferido pelo egoísmo e pela autossuficiência, tratou mal a natureza e os outros seres criados por Deus. Relacionou-se com o resto da criação com “tiques” de ambição, de cobiça, de ganância, tornando-a refém do seu egoísmo. Destruiu florestas, provocou o desaparecimento de espécies animais e vegetais, introduziu desequilíbrios na natureza, envenenou as terras e os rios, criou a poluição que mata, explorou de forma descontrolada os recursos naturais, potenciou a difusão de doenças, destruiu a harmonia desse “mundo bom” que Deus lhe tinha confiado. A terra, a natureza, os outros seres criados, precisam de ser libertados da escravidão que lhes vem do pecado do Homem. Sim, é verdade que o Evangelho é uma proposta libertadora para “toda a criatura”: se “curar” o coração do Homem, fará nascer um mundo novo, também no que à natureza e aos outros seres criados diz respeito. O nosso apreço pelo Evangelho e pela proposta de Jesus traduz-se, também, no respeito pela natureza e por todos os outros seres que Deus criou?
  • Jesus nunca se cansou de dizer aos seus discípulos que não os abandonaria, que não os deixaria sozinhos no mundo. Responsabilizou-os por dar testemunho da salvação de Deus; mas garantiu-lhes que os acompanharia e que os ajudaria a cada passo a discernir os caminhos que deveriam percorrer. De facto, Ele continua a caminhar ao nosso lado, a sentar-se à mesa connosco, a oferecer-nos a sua Palavra, a corrigir os nossos passos mal dados, a sustentar com a sua força as nossas indecisões, a levantar-nos depois das nossas quedas. Sentimos essa presença reconfortante de Jesus ao nosso lado no caminho de todos os dias? Notamos a sua presença quando nos reunimos com os outros irmãos à mesa da eucaristia? Procuramos manter a ligação com Ele? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, deve haver um especial cuidado nas frases mais longas e com diversas orações, tendo atenção às diversas pausa e respirações. No início da leitura, deve haver cuidado na pronunciação do vocativo «ó Teófilo». Na proclamação de um vocativo, não se deve empregar a mesma duração na pausa das vírgulas. A primeira deve ser praticamente omitida para que se faça a pausa na segunda de modo a não parecer existir uma interrupção no texto. Além disso, deve haver especial atenção com as frases em discurso direto e a sua articulação com todo o texto.

Na segunda leitura, insisto na extensão das frases que exige uma leitura pausada e articulada do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

ASCENSÃO DO SENHOR

Também hoje, Solenidade da Ascensão do Senhor, dada a riqueza e a delicadeza da filigrana do texto do Evangelho de Marcos 16,15-20, que constitui a sua conclusão, e que vamos ter a graça de escutar, parece-me importante começar por colocar o texto diante dos nossos olhos, começando com o v. 14:

«16,14Em último lugar fez-se ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham visto ressuscitado. 15E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura”. 16Quem acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. 17São estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, 18e, se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem.

19O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. 20Eles, então, tendo saído, anunciaram o Evangelho por toda a parte, enquanto o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Marcos 16,14-20).

Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente tardia, talvez do séc. II, mas grandiosa e imponente, e cheia de referências significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a abrir o Evangelho (1,14-15) e a fechar o Evangelho (16,15-16). Mas o anúncio do Evangelho a toda a criatura (16,15) reclama também o início da inteira Escritura, a página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Génesis 1,26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então o ser humano (Génesis 3,1-5), são agora dominadas (16,18), do mesmo modo que é o bem (kalôs), em vez da cura, que agora se estabelece sobre os doentes (16,18). É outra vez o eco intertextual da Criação, onde, no texto grego dos LXX, o bembom e belo (kalós) impregna por completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Génesis 1,4.8.10.12.18.21.25.31 LXX). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta nota com o termo tôb, que passa o mesmo significado de bembom e belo (Génesis 1,4.10.12.18.21.25.31).

«O Senhor Jesus» (ho Kýrios Iêsoûs) (16,19), única menção em todos os Evangelhos, enche a cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16,14), quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante a nossa incredulidade, e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16,15 e 20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e a prova somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.

Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho:

  1. a) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade;
  2. b) a missão total a nós confiada;
  3. c) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho;
  4. d) o envolvimento de todos;
  5. e) a Presença nova e sempre ativa e comprometida do Ressuscitado connosco.

a). A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16,17), mediante envio seu (16,15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16,20) e confirmante (bebaióô) (16,20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do verbo baínô, que significa «caminhar», e supõe terreno firme e sólido (bébaios) sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza.

b). A missão total a nós confiada, que deve envolver «todos, tudo e sempre» (Bento XVI, Mensagem para o 85.º Dia Missionário Mundial 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as expressões «indo por todo o mundo» (16,15), «anunciai o Evangelho a toda a criatura» (16,15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16,20). É a missão total, e não por etapas. Jesus não recomenda: «a começar pela rua tal, ou pela cidade tal…». Portanto, esta missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a decisão de Jesus em Marcos 1,38-39; Lucas 4,42-43). A ventania do Pentecostes ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de rentabilidade.

c). Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado, sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente transparência do Deus criador e senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Génesis 1,26-31). Até a cobra perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3,1-5, e mostra-se mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora, nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sabedoria 1,14), e a doença é vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à imagem de Deus, que enche este mundo de bem (kalôs LXX) (16,18), que é uma nota que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o verbo therapeúô (cf. Mateus 4,24; 8,16; 10,1.8; Marcos 1,34; 3,10; 6,13; Lucas 4,40; 6,18b; 9,1.6) ou iáomai (Marcos 5,29; Lucas 6,18a.19; 9,2). De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração, catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer,sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Coríntios 10,16). Celebrar a Eucaristia é, pois, sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom, que é a fonte da comunhão.

d). Nós já sabemos, são muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de Jesus compete a todos. É por natureza que a Igreja é missionária, diz-nos o Decreto Conciliar Ad gentes, n.º 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo VI, na feliz Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi, n.º 5; Bento XVI, Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2012). É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são realizados por todos os que acreditam (Marcos 16,17-18). Esta extraordinária «democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que acreditam serve para datar este texto do século II. No século I, estes prodígios estavam confinados aos Apóstolos, e, a partir do século III, será o clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do «Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.

e). Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos, ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16,19), sinal de proeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16,20). «Sair», hebraico yatsa՚, é o verbo clássico do Êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento. «Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii gaudium [2013], n.os 20.23.27.97.259.261. A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A Igreja existe para evangelizar» (Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o retira do nosso convívio, pois Ele continua connosco, cooperando e confirmando a missão da Evangelização que nos confiou.

O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambánodos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).

Tanto VER. Da panóplia de verbos registados (blépôatenízôhoráôemblépôtheáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que () procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que () estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. É, pois, importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.

Verificação. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença, descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).

Como se vê, há também um impressionante condensado de olhares a marcar este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáôatenízôblépôepéchôAtenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença. Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).

É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).

É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).

Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade-mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!

Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes diretamente no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [= «sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [= «lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [= «no Olival»], que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster, e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que corresponde a 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».

O texto de hoje da Carta aos Efésios 1,17-23 completa maravilhosamente as passagens da Escritura que já vimos. Depois do grande hino (v. 3-14), em que se bendiz o Pai, mediante o Filho, no Espírito Santo a nós dado, cantamos agora, guiados sempre por São Paulo, o primado da Humanidade do Senhor, obra admirável do Pai, para proveito nosso. E começamos com a epiclese ao Pai para que nos dê o dom do Espírito, que é a Sabedoria divina, o «conhecimento profundo» (epígnôsis) das Realidades divinas (v. 17). Tudo provém do único e omnipotente Acontecimento divino: Jesus Cristo Ressuscitado e Sentado à direita nos Céus (v. 19-20). É assim que, da sua Humanidade glorificada, vem para nós, por graça, o Espírito Santo, a verdadeira plenitude (v. 23).

O Salmo 47 é um Salmo da realeza de YHWH, que canta, com grande energia, a soberania de Deus sobre todos os povos (v. 1-3.7-10), sem deixar também de particularizar Israel (v. 4-5), «a mais bela entre todas as nações» (Ezequiel 20,6). Ajusta-se também perfeitamente, no mundo católico, à Festa da Ascensão do Senhor, sobretudo por causa do v. 6, em que lemos que «Deus se eleva por entre aclamações». Devido ao seu tom geral, Israel canta este Salmo sete vezes antes de soar o toque do shôphar para assinalar a entrada do Ano Novo.

Quando a Palavra de Deus,
Como uma enchente,
Encheu o tempo,
Dando ao homem a necessária oportunidade de ter de responder
E de não poder não responder,
O Filho de Deus,
Sem deixar de ser Deus,
Fez-se também filho de Maria,
Jesus,
Assumindo assim também a nossa frágil natureza humana.
Com a sua Ressurreição e Ascensão aos Céus,
É glorificada a humanidade do Filho de Deus e de Maria,
Jesus,
E é desta humanidade glorificada,
À direita de Deus sentada,
Que vem o Espírito Santo para nós.
É, portanto, do vosso interesse, diz Jesus, que Eu vá,
Pois se Eu não for,
O Espírito Santo não virá para vós.
Com a Ressurreição, a Ascensão e o Pentecostes,
Celebramos, pois, a humanidade glorificada de Jesus,
Da qual,
Por contágio sacramental,
Recebemos o Dom de Deus, o Espírito Santo.
Senhor Jesus,
Enche a nossa frágil humanidade da riqueza da tua divindade,
E derrama no nosso humano coração
O Espírito da consolação,
Da paz e da alegria.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VII do Tempo Pascal – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 (Act 1, 1-11)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo VII do Tempo Pascal – Solenidade da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 (Ef 1, 17-23)
  3. Domingo da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 – Lecionário
  4. Domingo da Ascensão do Senhor – Ano B – 12.05.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para o LVIII Dia Mundial das Comunicações Sociais – 12.05.2024 – Solenidade da Ascensão do Senhor
  6. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VI da Páscoa – Ano B – 05.05.2024
Dia da Mãe

 

Viver a Palavra

O Evangelho que escutamos neste Domingo é a resposta acabada àquilo que é a essência do cristianismo: o amor superabundante de Deus, revelado em Jesus Cristo, torna-se norma do nosso agir, pois a nossa missão como discípulos encontra-se unida à vida de Jesus, como Jesus está unido ao Pai: «assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei». Deste modo, podemos afirmar que a liturgia da Palavra deste Domingo é uma janela aberta com vista direta para o coração de Deus, pois como afirma S. João: «Deus é amor». Esta é a imagem de marca de Deus, esta é a essência da vida de Deus e configura o Seu modo de agir no mundo.

O amor corre sempre o risco de ser uma palavra banal da qual se usa e abusa e os discursos construídos a partir dele facilmente se convertem em discursos bem-intencionados, mas inconsequentes. Aquele que se encontra com Jesus Ressuscitado, Rosto da misericórdia do Pai, faz a experiência de que o amor não é mera afeição nem um sentimento fugaz ou banal, mas uma experiência de encontro que me faz sentir profundamente amado e chamado a construir a nova civilização do amor.

A verdadeira experiência de amar não é autorreferencial nem egocêntrica, mas alarga os meus horizontes, abre os meus olhos e o meu coração para que todos aqueles que se cruzam comigo façam a experiência de ser profundamente amados por Deus.

Deus ama-nos com um amor unilateral e assimétrico, pois Ele revelou o Seu amor enviando o Seu Filho unigénito que se entregou todo e para sempre por cada um de nós: «ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos». Na verdade, na vida cristã o verbo amar conjuga-se com o verbo dar e de modo particular e radical na sua forma reflexa «dar-se». Em Jesus Cristo, Deus não nos dá algo exterior a si próprio, mas o Seu próprio Filho. Se existe um princípio económico que afirma que uma determinada coisa vale o que estamos dispostos a dar por ela, então nós somos profundamente valiosos aos olhos de Deus, pois Ele esteve disposto a entregar o Seu único filho para a salvação de todos.

Este amor infinito de Deus eleva a nossa condição de servos e converte a nossa vida num lugar de experiência da amizade profunda que Deus tem por cada um de nós: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai». A nossa condição de fragilidade e pecado não tem mais a última palavra, porque Jesus Cristo, o Ressuscitado, nos faz Seus amigos e participantes da Sua vida divina. O amor que Deus derrama em nossos corações concede-nos a verdadeira alegria, que não se contenta com contentamentos fugazes, mas se abre à alegria verdadeira e completa que só o amor de Deus pode oferecer e garantir.

O amor de Deus revelado na vida de Jesus por meio de palavras e gestos intimamente ligados entre si (DV 2) deve manifestar-se também assim na vida de cada um de nós. Apesar dos nossos limites e fragilidades, somos convidados a seguir Jesus na escola da arte de amar. Escutando a Sua palavra, alimentados pelo Pão da Eucaristia e contemplando os Seus gestos cheios de ternura e bondade, somos chamados a construir uma nova humanidade que tem consciência que o amor não é mais uma coisa a fazer, mas o modo de fazer todas as coisas. in Voz Portucalense

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O primeiro Domingo de Maio é dedicado à celebração do Dia da Mãe. Para que este dia se possa também viver em comunidade e não fique refém da lógica comercial, na Eucaristia deste Domingo pode dirigir-se uma palavra especial a todas as mães, acompanhada de algum gesto que assinale este dia. Pode dirigir-se uma bênção especial às mães presentes na celebração, bem como um envolvimento da catequese e da pastoral familiar para que este dia seja valorizado como lugar de ação de graças pelo dom da maternidade. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 10,25-26.34-35.44-48

Naqueles dias,
Pedro chegou a casa de Cornélio.
Este veio-lhe ao encontro
e prostrou-se a seus pés.
Mas Pedro levantou-o, dizendo:
«Levanta-te, que eu também sou um simples homem».
Pedro disse-lhe ainda:
«Na verdade, eu reconheço
que Deus não faz aceção de pessoas,
mas, em qualquer nação,
aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável».
Ainda Pedro falava,
quando o Espírito desceu
sobre todos os que estavam a ouvir a palavra.
E todos os fiéis convertidos do judaísmo,
que tinham vindo com Pedro,
ficaram maravilhados ao verem que o Espírito Santo
se difundia também sobre os gentios,
pois ouviam-nos falar em diversas línguas e glorificar a Deus.
Pedro então declarou:
«Poderá alguém recusar a água do Batismo
aos que receberam o Espírito Santo, como nós?»
E ordenou que fossem batizados em nome de Jesus Cristo.
Então, pediram-lhe que ficasse alguns dias com eles.

CONTEXTO

O texto que a liturgia deste sexto domingo da Páscoa nos propõe como primeira leitura integra uma secção do livro dos Atos dos Apóstolos (cf. 9,32-11,18) cujo protagonista é o apóstolo Pedro. Essa secção refere a atividade missionária de Pedro no litoral da costa palestina, entre Jope e Cesareia Marítima, onde Pedro, assumindo o papel de pregador itinerante, vai visitando diversas comunidades cristãs.

O episódio que nos é proposto situa-nos em Cesareia Marítima, uma cidade construída por Herodes, o Grande, no séc. I a. C., num lugar antigamente designado por “Torre de Estraton”. Cesareia era a sede do poder romano na Palestina, pois era aí que residiam os procuradores romanos da Judeia. No centro da cena está um centurião romano, chamado Cornélio, que era “piedoso e temente a Deus” (At 10,2). Pedro estava em Jope (atual Jafa), um pouco mais a sul, hospedado em casa de Simão, o curtidor (cf. At 9,43); mas, convidado por Cornélio, vai até Cesareia, dirige-se à casa do centurião romano e, encontrando-o reunido com diversos familiares e amigos (cf. At 10,24), anuncia-lhes Jesus.

A atitude de Pedro deve ter gerado alguma polémica nas comunidades cristãs primitivas, particularmente na comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 11,2-3). Para os primeiros cristãos, oriundos do mundo judaico, não era claro que os pagãos pudessem entrar na comunidade cristã. O pagão era considerado um ser impuro, em casa de quem o bom judeu estava proibido de entrar, a fim de não se contaminar. Quereria Deus que a salvação fosse também anunciada aos pagãos?

Para o autor dos Atos dos Apóstolos, é perfeitamente claro que Deus também quer oferecer a salvação aos pagãos. Para deixar isso bem claro, ele põe Deus a dirigir toda a trama: é Deus que, numa visão, pede a Cornélio que mande chamar Pedro (cf. At 10,1-8); e é Deus que arrebata Pedro “em êxtase” e lhe sugere que poderá ir ao encontro de Cornélio sem ficar contaminado pelo contacto com um pagão (cf. At 10,9-23). A decisão de Pedro de apresentar a proposta de Jesus a uma família pagã será, pouco depois, aprovada pela Igreja de Jerusalém (cf. At 11,18).

Este episódio tem uma especial importância no esquema imaginado por Lucas para a expansão da Igreja… Cornélio é o primeiro pagão oficialmente admitido na comunidade de Jesus. A conversão de Cornélio marca uma viragem decisiva na proclamação do Evangelho que, a partir deste momento, se abre também aos pagãos.

A conversão de Cornélio será, basicamente, histórica; as “visões” e os detalhes são, provavelmente, o cenário que Lucas monta para apresentar a sua catequese. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Deus vê todos os homens e mulheres como seus filhos e suas filhas muito queridos. Ele não os discrimina pela cor da pele, pela raça, pela nação a que pertencem, pela posição de que disfrutam na sociedade: Ele ama a todos por igual, com um amor sem limites. O seu grande desejo é vê-los caminhar pela vida, livres e felizes, até ao encontro final com Ele. Por isso, Ele oferece-lhes a salvação: chama-os, fala-lhes, abraça-os, indica-lhes os caminhos que devem percorrer, apoia-os e sustenta-os ao longo da caminhada, mostra-lhes a meta a alcançar… A salvação que Ele oferece só não chega àqueles que se fecham no orgulho e na autossuficiência, recusando os dons de Deus. O Batismo foi, para todos nós, o momento do nosso “sim” a Deus e à sua oferta de salvação; mas é preciso que, em cada instante, renovemos esse primeiro “sim” e que vivamos numa permanente disponibilidade para acolher Deus, as suas propostas, os seus dons, o seu amor. Depois do nosso “sim” inicial, continuamos disponíveis para acolher a salvação que Deus nos oferece? Procuramos escutar as indicações que Ele nos dá e caminhar de acordo com elas? Acreditamos firmemente que as propostas de Deus nos conduzem na direção da Vida verdadeira, da Vida eterna, da felicidade sem fim?
  • A ideia de que Deus não exclui ninguém da salvação e não faz aceção de pessoas parece-nos um dado perfeitamente lógico e evidente. Mas, aceitar essa lógica, traz consequências à nossa vida, particularmente à forma como vemos os outros homens e mulheres com quem nos cruzamos nos caminhos da vida. O Deus que ama todos os seus filhos e filhas, sem exceção, convida-nos a acolher todos os irmãos – mesmo os “diferentes”, mesmo os incómodos – com bondade, com compreensão, com amor; o Deus que derrama sobre todos a sua salvação convida-nos a não discriminar “bons” e “maus”, “santos” e “pecadores” (frequentemente, os nossos juízos acerca da “bondade” ou da “maldade” dos outros falham redondamente); o Deus que convida cada homem e cada mulher a integrar a comunidade da salvação diz-nos que temos de acolher e amar todos, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua origem, da sua preparação cultural, do seu lugar na escala social. Não apenas em teoria, mas sobretudo nos nossos gestos concretos, somos chamados a anunciar esse mundo de Deus, sem exclusão, sem marginalização, sem intolerância, sem preconceitos. Como vemos e como lidamos com os “diferentes”? Nós, filhos amados de um Deus que não faz aceção de pessoas, alinhamos em preconceitos, em conclusões precipitadas, em juízos defeituosos, em posições ideológicas que dividem, que marginalizam, que segregam pessoas ou grupos humanos?
  • Quando Pedro chega a casa de Cornélio, este veio-lhe ao encontro e prostrou-se a seus pés… Mas Pedro disse-lhe imediatamente: “levanta-te, que eu também sou um simples homem” (vers. 25-26). A atitude humilde de Pedro faz-nos pensar como são ridículas e desprovidas de sentido certas tentativas de afirmação pessoal diante dos irmãos, certas poses de superioridade, a busca de privilégios e de honras, as lutas pelos primeiros lugares… Aqueles a quem, numa comunidade – civil ou religiosa – foi confiada a responsabilidade de presidir, de coordenar, de organizar, de animar, devem sentir-se “simples homens”, humildes instrumentos de Deus. A sua missão é servir, ajudar, cuidar, não procurar privilégios, honrarias, situações que satisfaçam as suas ambições pessoais. Quando sou chamado a uma determinada missão na comunidade, como a encaro? Como é que trato aqueles a quem devo servir no contexto da missão que me foi confiada? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)

Refrão 1: O Senhor manifestou a salvação a todos os povos.

Refrão 2: Diante dos povos manifestou Deus a salvação.

Cantai ao Senhor um cântico novo
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.

O Senhor deu a conhecer a salvação,
revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade
em favor da casa de Israel.

Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.

LEITURA II – 1 João 4,7-10

Caríssimos:
Amemo-nos uns aos outros,
porque o amor vem de Deus
e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.
Quem não ama não conhece a Deus,
porque Deus é amor.
Assim se manifestou o amor de Deus para connosco:
Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito,
para que vivamos por Ele.
Nisto consiste o amor:
não fomos nós que amámos a Deus,
mas foi Ele que nos amou
e enviou o seu Filho
como vítima de expiação pelos nossos pecados.

CONTEXTO

Como vimos nos domingos anteriores, a Primeira Carta de João é uma instrução escrita destinada a algumas Igrejas da Ásia Menor nascidas em contexto joânico (quer dizer, ligadas à figura do apóstolo João, que passou os últimos anos da sua vida em Éfeso, cidade situada na costa da Jónia, junto da moderna Selçuk, na atual Turquia). Combate as doutrinas heréticas de seitas pré-gnósticas que, pelo final do séc. I, lançavam a confusão nas comunidades cristãs; e define os princípios fundamentais da vida cristã autêntica.

Neste contexto de confronto com as heresias pré-gnósticas, uma das questões mais controversas (e à qual o autor da Primeira Carta de João dá uma importância fundamental) era a questão do amor ao próximo. Os hereges pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé residia na vida de comunhão com Deus e negligenciavam as realidades do mundo. Achavam que se podia descobrir “a luz” e estar próximo de Deus, mesmo odiando o próximo (cf. 1 Jo 2,9). Ora, de acordo com o autor da Primeira Carta de João, o amor ao próximo é uma exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele se não se deixou contagiar e embeber pelo amor.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte da carta (cf. 1 Jo 4,7-5,12). Aí, o autor estabelece como critério da vida cristã autêntica a relação entre o amor a Deus e o amor aos irmãos. É nessa dupla dimensão que os cristãos devem encontrar a sua identidade. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • “Deus é amor” – diz o autor da Primeira Carta de João. Não se trata de uma definição abstrata ou de uma tese académica; é uma constatação que se impõe a partir da contemplação das ações e das intervenções de Deus na história e na vida dos homens. Deus começou por criar o universo, o mundo e os seres humanos com amor e cuidado de artista. Depois, ao longo da história humana, Ele procurou sempre fazer-se presente no caminho dos seus filhos e dar-lhes o seu amor: revelou-lhes o seu rosto, comprometeu-se com eles numa aliança, indicou-lhes os caminhos que eles deviam percorrer para encontrar Vida, avisou-os repetidamente para não enveredarem por caminhos de morte…. Chegou mesmo a enviar o seu Filho Unigénito ao encontro dos homens para lhes oferecer a salvação. É verdade: a história da salvação é uma extraordinária história de amor que tem Deus como protagonista. E esta história não está terminada, pois o amor de Deus pelos seus filhos nunca se esgota. Nós continuamos hoje, a cada passo do caminho, a experimentar a realidade desse amor. E é com a certeza do amor sempre fiel de Deus que avançamos, enfrentando as crises, as incertezas, as tempestades e as vicissitudes que marcam a história do nosso tempo. Estamos conscientes disto? Sentimo-nos amparados pelo amor de Deus ao longo do caminho que todos os dias percorremos? Damos testemunho diante dos outros homens e mulheres que caminham ao nosso lado da nossa confiança inquebrantável num Deus que nos ama?
  • “Todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus”. É uma afirmação extraordinária, que talvez nos obrigue a rever alguns dos nossos esquemas mentais. Convida-nos a ver como nossos irmãos, membros da família de Deus, todos aqueles que, por amor, fazem o bem. Os seus nomes podem nem constar nos livros de registos dos batizados que guardamos nos nossos cartórios paroquiais; mas eles “conhecem a Deus”, estão muito próximos de Deus, são de Deus. Como vemos os nossos irmãos e irmãs que estão fora da comunidade cristã ou que levam vidas condenáveis do ponto de vista da moral vigente, mas que procuram servir, amar e cuidar os seres humanos que sofrem? Como consideramos aqueles que, dizendo-se ateus ou agnósticos, defendem os mais fracos, lutam pelos direitos e pela dignidade dos seus irmãos?
  • Se somos “filhos” desse Deus que é amor, “amemo-nos uns aos outros” com um amor igual ao de Deus – amor incondicional, gratuito, desinteressado. Ser “filho de Deus” não significa passar a vida a olhar para o céu, ignorando as dores, as necessidades e as lutas dos irmãos que caminham ao nosso lado; ser “filho de Deus” não é ter apreço pelas “coisas da religião” e ignorar os dramas dos pobres, dos oprimidos, dos marginalizados; ser “filho de Deus” não é tratar bem algumas pessoas que nos “calham bem” ou com as quais nos identificamos mais, e passar ao lado daqueles que não nos agradam ou com as quais não nos identificamos. A vida de Deus que enche os corações dos crentes deve manifestar-se em gestos concretos de solidariedade, de serviço, de dom, em benefício de todos os irmãos. É assim que eu vivo a minha filiação divina, amando todos, sem distinção, em gestos concretos de serviço, de entrega, de doação? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 15,9-17

Naquele tempo,
Disse Jesus aos seus discípulos:
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei.
Permanecei no meu amor.
Se guardardes os meus mandamentos,
permanecereis no meu amor,
assim como Eu tenho guardado os mandamentos de meu Pai
e permaneço no seu amor.
Disse-vos estas coisas,
para que a minha alegria esteja em vós
e a vossa alegria seja completa.
É este o meu mandamento:
que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei.
Ninguém tem maior amor
do que aquele que dá a vida pelos amigos.
Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando.
Já não vos chamo servos,
porque o servo não sabe o que faz o seu senhor;
mas chamo-vos amigos,
porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai.
Não fostes vós que Me escolhestes;
fui eu que vos escolhi e destinei,
para que vades e deis fruto
e o vosso fruto permaneça.
E assim, tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome,
Ele vo-lo concederá.
O que vos mando é que vos ameis uns aos outros».

CONTEXTO

O Evangelho do sexto domingo da Páscoa situa-nos, outra vez, em Jerusalém, numa noite de quinta-feira do mês de Nisan do ano trinta, um dia antes da celebração da Páscoa judaica. Jesus está à mesa com os seus discípulos, numa inolvidável ceia de despedida. É o mesmo cenário do Evangelho que escutamos no passado domingo.

Sobre Jesus e o seu grupo de discípulos paira a sombra da cruz. Nessa noite, após a ceia, Jesus atravessará o Vale do Cedron, a oriente da cidade, e dirigir-se-á ao Getsemani (“lagar de azeite”), um jardim situado no sopé do Monte das Oliveiras, onde estará alguns momentos em oração. Aí será preso pelos soldados do Templo. Durante essa noite comparecerá diante do Sinédrio, será julgado e condenado à morte. Na manhã do dia seguinte, depois de a sentença ser confirmada pelo governador romano, será crucificado.

Enquanto convive, à mesa, com os discípulos, Jesus está perfeitamente consciente do que o espera nas próximas horas. Não está preocupado com o que lhe vai acontecer: quando aceitou o projeto do Pai e começou a anunciar o Reino, Ele sabia os riscos que iria correr; mas preocupa-se com aqueles discípulos que estão com Ele à mesa nessa noite de quinta-feira… Que será deles quando o seu Mestre lhes for tirado? Poderão, sem Jesus a mostrar-lhes o caminho a cada passo, levar para a frente o projeto do Reino? Saberão discernir, no meio das crises e tempestades que terão de enfrentar, o que é importante e o que é secundário? Conseguirão manter-se em relação com Jesus?

Depois da ceia, Jesus fala longamente com os discípulos e deixa-lhes as suas últimas indicações. Relembra-lhes o essencial da mensagem que procurou transmitir-lhes enquanto percorria com eles os caminhos da Galileia e da Judeia; anima-os com a promessa do Espírito; diz-lhes como é que poderão, pelo tempo fora, manter a ligação a Ele e continuar a receber d’Ele Vida. Tudo o que foi dito nessa noite, à volta da mesa, soa a “testamento final”. Os discípulos nunca mais esquecerão aquilo que Jesus disse nessa ceia de despedida. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A primeira grande certeza que fica para os discípulos na sequência do que Jesus lhes disse naquela memorável ceia de despedida é que eles não vão andar sozinhos na sua marcha pela história. Jesus acompanhá-los-á em cada pedaço do caminho, sustentando-os com o seu amor, com a sua presença amiga, com as suas palavras luminosas e reconfortantes. Não é fácil para nós, homens e mulheres do séc. XXI, fazermos caminho carregando às costas o fardo pesado dos desafios e dos obstáculos que o nosso tempo nos traz; não é fácil, num contexto hostil e crítico, sentirmo-nos um “pequeno rebanho”, sem influência e sem poder, ignorados pelo mundo e aparentemente incapazes de mudar o rumo da história… Mas há uma coisa que não podemos esquecer: Jesus caminha ao nosso lado, dando-nos coragem e esperança, lutando connosco para vencer as forças da opressão, da injustiça, da violência e da morte. Sentimos que Jesus, vivo e ressuscitado, nos acompanha no caminho e alimenta a nossa esperança? Sentimo-nos pessoalmente ligados a Ele e alimentados pelo seu amor?
  • “É este o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, como Eu vos amei” – disse Jesus aos discípulos ao despedir-se deles. Jesus deu testemunho do amor de Deus em cada gesto que fez e diante de cada homem ou mulher que com Ele se cruzou; por amor aos seus irmãos, Jesus lutou contra tudo aquilo que os fazia sofrer e os impedia de ter Vida; por amor a todos os homens e mulheres de ontem, de hoje e de amanhã, Jesus deu a vida até à última gota de sangue… Ele amou “até ao extremo”, numa doação total. Quem é “de Jesus” é convidado a viver do mesmo jeito, amando e doando a própria vida como Ele fez. É isto que fazemos, é assim que vivemos? Os homens e as mulheres que se cruzam connosco na estrada da vida veem brilhar em nós o amor de Jesus? As nossas comunidades, nascidas do amor de Jesus, são, realmente, cartazes vivos que anunciam e testemunham o amor, ou são espaços de conflito, de divisão, de luta pelos próprios interesses, de realização de projetos egoístas? As pessoas feridas e magoadas que se aproximam das nossas comunidades cristãs são acolhidas com o amor que aprendemos de Jesus, ou são tratadas com indiferença e arrogância?
  • Há quem ache que o caminho apontado por Jesus aos seus discípulos é um caminho de renúncia, de sofrimento, de sacrifício, que obriga a viver alheado de tudo aquilo que é belo, interessante e agradável. Mas não é assim. Tudo o que Jesus propôs aos discípulos vai no sentido de os ajudar a serem felizes: “Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós e a vossa alegria seja completa” – disse-lhes Ele. Segundo Jesus, a verdadeira alegria não está nos bens efémeros, nos valores fúteis que não matam a sede de felicidade do ser humano; mas está no dom de si mesmo, no serviço simples e humilde aos irmãos, no cuidado dos mais frágeis, na vida oferecida por amor. Acreditamos nisto? Já fizemos a comparação entre a alegria titubeante que resulta dos valores efémeros e a alegria profunda e duradoura que brota de gestos autênticos de doação, de serviço, de cuidado aos irmãos?
  • Os discípulos são os “amigos” de Jesus. Jesus escolheu-os, chamou-os, partilhou com eles o conhecimento e o projeto do Pai, associou-os à sua missão; estabeleceu com eles uma relação de confiança, de proximidade, de intimidade, de comunhão. A comunidade cristã é uma comunidade de “amigos” reunidos à volta de Jesus. Pode ter irmãos a quem foi confiado o serviço da autoridade; mas não é uma comunidade de “senhores” e de “servos”, de “gente que manda” e “gente que obedece”, de “superiores” e de “súbditos”. É a comunidade dos “amigos” de Jesus, uma comunidade de “iguais”. E Jesus continua, apesar de tudo, a ser o centro e a referência, à volta da qual se constrói a comunidade dos discípulos. A Igreja de Jesus funciona realmente como uma família de “amigos” que se amam, que se ajudam mutuamente no caminho, que partilham projetos e ideais? A Igreja é uma comunidade de “irmãos”, onde todos têm voz, onde a opinião de todos conta e onde todos colaboram na descoberta dos caminhos apontados pelo Espírito? Jesus é, de facto, o centro à volta do qual se articula a vida dos seus “amigos”? Como é que no dia a dia nós, amigos de Jesus, desenvolvemos e aprofundamos o nosso encontro e a nossa comunhão com Ele?
  • “Fui eu que vos escolhi e destinei, para que vades e deis fruto e o vosso fruto permaneça” – disse Jesus aos discípulos. Jesus não chamou os discípulos para os fechar nas sacristias; mas chamou-os para que dessem testemunho no mundo do projeto salvador de Deus. Os “amigos” de Jesus são chamados a mostrar em gestos concretos que Deus ama cada homem e cada mulher – e de forma especial os pobres, os marginalizados, os débeis, os pequenos, os oprimidos; os “amigos” de Jesus são convidados a eliminar o sofrimento, o egoísmo, a miséria, a injustiça, tudo o que oprime e escraviza os irmãos e desfeia o mundo; os “amigos” de Jesus são desafiados a ser arautos da justiça, da paz, da reconciliação, do amor; os “amigos” de Jesus têm como tarefa denunciar os pseudovalores que oprimem e escravizam os homens… Os membros da comunidade do Reino de Deus, transformados em Homens Novos pelo amor de Jesus, têm como missão testemunhar esse mundo novo que Deus quer oferecer aos homens e que Jesus anunciou na sua pessoa, nas suas palavras e nos seus gestos. Estamos, de facto, disponíveis para colaborar com Jesus nessa missão? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, devem ter em atenção as diversas intervenções em discurso direto. Sem dramatizar exageradamente devem respeitar a forma dialógica do texto.

A segunda leitura apesar de breve e sem palavras de maior exigência na sua pronunciação, requer um especial cuidado devido às frases curtas. É necessária uma boa articulação das diferentes frases para evitar uma leitura telegráfica.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

COMO EU VOS AMEI

Sendo o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 15,9-17) a continuação imediata do Evangelho do Domingo V (João 15,1-8), e porque a sua rede terminológica continua a ser finíssima, vamos começar também por observar atentamente a sua paisagem textual:

«Como me amou (agapáô) o Pai, também eu vos amei. Permanecei no meu amor (agápê). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Falei-vos (laléô) estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêróô).

É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (títhêmi) a sua vida (tên psychên autoû) pelos seus amigos (phíloi). Vós sois meus amigos, se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (gnôrízô). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros» (João 15,9-17).

As notas mais vezes ouvidas nesta melodia são: «Amar/Amor» (9 vezes), «mandar/mandamento» (5 vezes), «Pai» (4 vezes), «permanecer» (4 vezes), «amigos» (3 vezes), «alegria» (2 vezes), «fruto» (2 vezes). Mas a raiz, o tronco e a seiva do texto, isto é, a sua verdadeira linha melódica, reside na rede exposta do amor: a fonte do amor é o Pai, que o comunica ao Filho, o qual, por sua vez, o comunica aos seus discípulos e amigos (João 15,9-10), para que estes o vivam e, por contágio, a outros o comuniquem, fazendo-o frutificar (João 15,16). O modo é sempre o mesmo e único: guardar os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (João 15,10), e entrega o seu mandamento aos seus discípulos fiéis: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15,12; cf. 13,34), para que estes o guardem também (João 15,10.14).

Ainda se define claramente em que consiste este amor: amar assim é dar a própria vida (tên psychên autoû) (João 15,13). Este «dar» aparece no texto grego expresso com o verbo títhêmi, «pôr», «apostar» a vida. Tudo fica ainda mais claro se lermos com atenção o grande dito de Jesus no contexto do Bom e Belo Pastor: «Por isto o Pai me ama: porque Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para de novo a receber (lambánô). Ninguém ma retira (aírô) de mim; sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim mesmo. Tenho autoridade de a pôr (títhêmi), e tenho autoridade de a receber (lambánô) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (lambánô) do meu Pai» (João 10,17-18). Sem qualquer equívoco agora: amar é dar a própria vida. E este amor novo, que consiste em dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.

Pode parecer estranho, à primeira vista, que o Amor seja objeto de um mandamento. Mas prestando um pouco mais de atenção, acabamos por perceber que amar não é estar apaixonado. E estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) têm a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor (agôn tês ágapês), do amor novo, que não é contra alguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Neste sentido, o amor (agápê) verdadeiro é agónico. Implica luta (agôn), porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. No mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte; está, antes, no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra» (leb ha՚eben), oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).

É, portanto, tudo o que Jesus, o Filho, faz por nós. E nos manda fazer também, dado que nos manda amar como Ele nos amou (João 13,34; 15,12), nova e paradoxal, desmesurada medida do amor, que plenifica e subverte a antiga equação nivelada: «Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Levítico 19,18). Para tanto, dá-nos a conhecer, por graça, tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio, habilitando-nos assim a rezar ao Pai (João 15,16).

O Apóstolo reforça, na sua Primeira Carta (1 João 4,7-10), a insistência no horizonte novo do amor, repetindo que «quem ama, nasceu de Deus, e conhece-o (ginôskô) (1 João 4,7), ao contrário de quem não ama, que não conhece Deus (1 João 4,8). Se Deus é amor (1 João 4,8 e 16), e se «só o semelhante conhece o semelhante», é decisivo que este amor chegue até nós, para que, sendo feitos por amor semelhantes a Deus, possamos também conhecer Deus. E expõe de novo a rede do amor, desde a sua fonte, que é o Pai, que nos amou e enviou o seu Filho Unigénito para nos dar a vida mediante a oferta propiciatória (hilasmós) da sua vida pelos nossos pecados, que Ele absorve e absolve (1 João 4,9-10).

Atenção, porém, que o amor de Deus não é um património restrito e limitado, um exclusivo só acessível a alguns privilegiados, mediante inscrições, quotas pagas, registos, determinadas raças ou grupos. Chega a todos aqueles que o acolhem. Também esses nascem de Deus. O amor é de Deus; não é sequer prerrogativa dos discípulos de Jesus. Se quem ama nasceu de Deus, foi gerado por Deus (gennáô), então o amor não é nosso; é de Deus. Esta imensa afirmação implica que nunca nos podemos julgar donos do amor, pois não é nossa a patente do amor. Tem outro registo. Apenas nos é dado humildemente reconhecer que «é gerado por Deus» quem já vive no amor. Aí está, a prová-lo, na leitura de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos 10,25-48, o pagão Cornélio a entrar de pleno direito na comunidade dos filhos de Deus, perante o espanto dos judeo-cristãos de Jerusalém, que julgavam que Deus e o Amor de Deus eram só para eles!

É sempre importante que tomemos consciência de que temos o dever de entregar este amor a outros, e não de nos fecharmos dentro de uma cerca, ainda que de rosas seja a cerca! Escreveu bem e rezou bem, em «As idades da vida espiritual», o conhecido teólogo ortodoxo russo Pavel Evdokimov (1901-1970): «Não permitas, Senhor, que o teu Amor e a tua Palavra sejam na minha vida como um santuário, que uma vedação separa da casa e da estrada». Um tal fechamento seria pecar contra o Amor.

Levantar-se-á sempre, desde o santuário do nosso coração emocionado, o hino coral e universal, que é o Salmo 98. Tudo e todos são chamados a formar uma bela orquestra, que nunca deixe de cantar os louvores de Deus. Desde o Templo (harpa, cítara, shôphar) até à inteira criação: mar e terra, rios (que são os braços e as mãos do mar, e, por isso, batem palmas), montes e colinas.

Passa também no ano em curso, neste Domingo VI da Páscoa, o Dia da Mãe. Sobre esta terra dorida, mas também anestesiada e tantas vezes indiferente, uma Mãe verdadeira ainda é o ícone mais belo deste amor imenso e sem pauta nem medida, que não é meu, nem é teu, nem é nosso. É de Deus. Nós sabemos isso. Mas uma Mãe sabe isso melhor. É por isso que é fácil, neste Dia da Mãe, ver cair pelo rosto de cada Mãe uma lágrima de tristeza ou de alegria! Melhor assim, Mulher e Mãe: sentirás, com certeza, a mão carinhosa de Deus a afagar o teu rosto e a enxugar essa lágrima, de acordo com a lição da Leitura do Livro do Apocalipse 21,4

António Couto

Mensagem para o Dia da Mãe

Comissão Episcopal do Laicado e Família

No primeiro Domingo deste mês de maio celebramos o Dia da Mãe. A todas as Mães levamos o nosso apreço e a nossa gratidão.

Para nós cristãos católicos, o Dom da Maternidade surge do coração de Deus, Ele que é Pai e Mãe, e modelou na Virgem Maria de Nazaré toda a beleza e ternura da Maternidade Divina. Através d’Ela, Deus tornou-se próximo de cada um de nós, fez-se um de nós. Por isso, na maternidade de cada mulher podemo-nos encontrar com a nascente da vida e com o autor da Vida. No Amor de cada Mãe aproximamo-nos de modo eloquente do Amor de Deus por cada um de nós. Não duvidamos que o Amor de Mãe é a mais perfeita metáfora do Amor de Deus.

Celebrar o Dia da Mãe, no mês de maio, mês das flores e do coração, é lembrar Maria, aquela que acolheu sempre as preces de todas as Mães sofridas pelos desgostos da vida – dias de sal – ou exultantes pelas alegrias que ao longo do caminho surgem como flores de Esperança – dias de sol! Todas as Mães têm direito ao apoio de todos. Se tivéssemos de sublinhar o acréscimo de apoio a algumas Mães, evidenciaríamos as mais pobres, as mais sós, aquelas que têm de ser mãe e pai.

Como não admirar as Mães que tiveram de enfrentar todas as dificuldades sem a presença responsável e comprometida dos Pais? Como não valorizar a Mães que por adoção deram vida por filhos não biológicos, mas de coração? Como não exaltar a heroicidade das Mães que pela morte de seu cônjuge ou companheiro, enfrentaram na solidão a criação e educação dos seus filhos? Em tempos de Paz frágil ou mesmo de países em guerra, lembramos com intensa solidariedade, todas as Mães em territórios exacerbados de violência, em campos de refugiados, em fugas de emergência, em migração forçada e, pior ainda, em luto por filhos perdidos neste contexto desumano.

Ao celebrarmos os cinquenta anos da “Revolução dos Cravos”, com todas a Mães crentes, agradecemos a Deus, por meio da Mãe de Jesus, pelo Dom da Paz que continuamos a experimentar no nosso País. Que as Mães renovem nos corações valores de respeito, tolerância e Paz, e que nos demostrem pelo seu exemplo e afeto que todos somos filhos, portanto, irmãos. Que prossigam na defesa da dignidade de cada Ser Humano na riqueza das suas diferenças e na diversidade das suas raças, culturas, credos e talentos.

A todas as Mães a nossa renovada gratidão. Pedimos à Mãe das Mães a sua intercessão a fim de as auxiliar na grandeza da sua Missão e para que em todos os filhos desperte a correspondência do reconhecimento e do compromisso no Bem das suas extremosas Mães.

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 (Act 10, 25-26.34-35.44-48)
  2. Leitura II do Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 (1 Jo4, 7-10)
  3. Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 – Lecionário
  4. Domingo VI do Tempo da Páscoa – Ano B – 05.05.2024 – Oração Universal
  5. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V da Páscoa – Ano B – 28.04.2024

 

Viver a Palavra

Liberdade e comunhão, entrega e fecundidade são coordenadas fundamentais da vida cristã. A adesão livre e libertadora à vontade de Deus abre o meu coração à comunhão com Deus e os irmãos e desafia-me a uma entrega fecunda que difunde ao longe e ao largo a suave fragrância do amor de Deus. Jesus Cristo é a «a verdadeira vide» que nos revela o coração misericordioso do Pai, «agricultor» paciente que semeia, cuida e espera o tempo da fecunda frutificação.

Fascina-me sempre ver Jesus apresentar o Pai como agricultor. Na verdade, é a única profissão que vemos Jesus atribuir ao Pai: «Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor». Tendo nascido num ambiente rural e tendo sido habituado a ver os meus avós trabalhar a terra, compreendo bem a força destas palavras de Jesus. O agricultor tem um amor apaixonado à terra que lhe está confiada, trabalha afincada e esforçadamente, vive atento aos perigos e adversidades que podem ameaçar a sementeira e procura defendê-la e protegê-la dos perigos que a assaltam, não se resigna a um horário das nove às cinco, mas labuta incansavelmente de sol a sol. O agricultor poda, arranca as ervas e sacha o terreno, uma e outra vez, para que a sementeira possa germinar e crescer.

Por isso, como é belo poder ver Deus como um agricultor que ama e cuida de mim com paciência e desvelo, com uma atenção, cuidado e proteção permanentes para que eu possa crescer e frutificar. Zeloso pela obra das suas mãos, este Agricultor «corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto e limpa todo aquele que dá fruto, para que dê ainda mais fruto». Quem faz a experiência de ver uma vinha abandonada e não podada percebe como é assaltada pelas ervas e silvas, emaranha-se sobre si própria e adoece, os seus ramos tornam-se cada vez mais esguios e enredados, dá pouquíssimas uvas e de fraco sabor e as folhas desbotam. Bem diferente é a vide podada e cuidada que se tona bela e viçosa, com frutos abundantes e de delicioso sabor.

A Palavra que Deus nos dirige limpa os nossos ramos, a seiva que a união com Cristo nos comunica fortalece e dá vida e assim podemos crescer firmes e fortes, prontos e disponíveis para frutificar e encher o mundo da alegria e da felicidade que só o amor de Jesus nos pode oferecer e garantir.

Permanecer é imperativo para que possamos dar fruto. Estar unidos a Jesus e, por Ele e Nele, aos nossos irmãos é condição fundamental para que a nossa vida se liberte da autorreferencialidade e alargue os nossos horizontes à comunhão, partilha e fraternidade que converte a vida num lugar mais fecundo e generoso.

Se Jesus é a verdadeira vide à qual a nossa vida se une como os ramos à videira, unidos a Cristo estamos também unidos aos irmãos que se alimentam da mesma seiva e se nutrem da mesma vida. A diversidade daquilo que somos e realizamos muitas vezes cria dificuldades e resistências na comunhão que estabelecemos. Na primeira leitura, vemos a dificuldade da comunidade de Jerusalém em acolher Paulo, vendo nele um adversário e uma ameaça. Sempre que olhamos para o outro como uma ameaça e um concorrente a comunhão rompe-se e a unidade torna-se impossível. Como ramos unidos à videira que é Cristo, somos chamados a cultivar uma atitude de acolhimento e disponibilidade, capaz de instaurar no mundo uma nova fraternidade que rasga horizontes de paz e esperança. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 9,26-31

Naqueles dias,
Saulo chegou a Jerusalém e procurava juntar-se aos discípulos.
Mas todos os temiam, por não acreditarem que fosse discípulo.
Então, Barnabé tomou-o consigo, levou-o aos Apóstolos
e contou-lhes como Saulo, no caminho,
tinha visto o Senhor, que lhe tinha falado,
e como em Damasco tinha pregado com firmeza
em nome de Jesus.
A partir desse dia, Saulo ficou com eles em Jerusalém
e falava com firmeza no nome do Senhor.
Conversava e discutia também com os helenistas,
mas estes procuravam dar-lhe a morte.
Ao saberem disto, os irmãos levaram-no para Cesareia
e fizeram-no seguir para Tarso.
Entretanto, a Igreja gozava de paz
por toda a Judeia, Galileia e Samaria,
edificando-se e vivendo no temor do Senhor
e ia crescendo com a assistência do Espírito Santo.

CONTEXTO

A secção de At 9,1-30 é dedicada a um acontecimento que marcará a história do cristianismo: a vocação/conversão de Paulo. Foi depois de se encontrar com Jesus ressuscitado que Paulo, convertido à Boa Nova de Jesus, abraçou a missão de levar a Boa Nova da salvação ao encontro de outras culturas e realidades; e o projeto de Jesus “viajou” com Paulo desde as fronteiras do mundo judaico até ao coração do mundo greco-romano.

De acordo com At 9,1 Paulo, pouco depois da morte do diácono Estevão, pôs-se a caminho de Damasco, mandatado pelo Sinédrio, para prender e trazer algemados para Jerusalém os membros da comunidade judaica que tivessem aderido a Jesus; mas, no caminho, viu-se “envolvido por uma luz intensa” e fez a experiência do encontro com Jesus ressuscitado. Percebeu, então, que estava a perseguir o próprio Jesus. Isso abalou todas as suas certezas e levou-o a questionar o caminho que estava a seguir (cf. At 9,1-9). Entrando em Damasco, Paulo encontrou-se com Ananias, membro da comunidade cristã dessa cidade, que o ajudou a situar as coisas, a esclarecer as dúvidas que tinha e a posicionar-se face a Jesus (cf. At 9,10-19a). Paulo ficou em Damasco, integrado na comunidade cristã, dando testemunho de Jesus (cf. At 9,20-22); mas, ao fim de algum tempo, os judeus da cidade conspiraram para o matar e Paulo teve que fugir (cf. At 9,23-25). Dirigiu-se, então, para Jerusalém, indo apresentar-se à comunidade cristã da cidade.

Pensa-se que a conversão de Paulo terá acontecido por volta do ano 36 e que ele permaneceu em Damasco cerca de três anos. O regresso de Paulo a Jerusalém deve ter acontecido, portanto, por volta do ano 39 (cf. Gal 1,18).

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste quinto domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, logo após o regresso do regresso de Paulo. Inclui, além disso, num versículo final, um breve sumário da vida da Igreja: é um dos tantos sumários típicos de Lucas, através dos quais o autor dos Atos faz um balanço da situação e prepara os temas que vai tratar nas secções seguintes.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A comunidade cristã de Jerusalém colocou algumas reticências ao acolhimento de Paulo. Trata-se de uma “precaução” que podemos compreender, considerando o historial de Paulo. Mas a verdade é que a comunidade cristã não é um condomínio fechado, com direito de admissão reservado; mas é uma casa de portas abertas, onde todos podem entrar, onde todos são acolhidos como irmãos e onde todos podem fazer uma experiência de encontro com Jesus ressuscitado. Como é a nossa comunidade cristã? É uma comunidade fechada, pouco acolhedora, cheia de preconceitos, criadora de exclusão, ou é uma comunidade aberta, fraterna, solidária, disposta a acolher?
  • Paulo, mal chega a Jerusalém, procura imediatamente a comunidade cristã. Já tinha, então, percebido, que a vivência da fé é uma experiência comunitária. É no diálogo e na partilha com os irmãos que a nossa fé nasce, cresce e amadurece; é na comunidade, unida por laços de amor e de fraternidade, que a nossa vocação se realiza plenamente; é na comunidade e sempre em referência comunitária que celebramos ritualmente a fé. Como é que nós vivemos a fé? Como experiência isolada (“eu cá tenho a minha fé”), ou como experiência comunitária? Consideramos que a comunidade, apesar das tensões e conflitos que possa ter, é a “casa de família” onde nos sentimos bem e onde podemos fazer, de forma privilegiada, a experiência do encontro com o nosso irmão Jesus?
  • Barnabé assume, na comunidade cristã de Jerusalém, o papel de questionar os preconceitos, o fechamento, a atitude defensiva da comunidade em relação a Paulo. Faz-nos pensar no papel que Deus reserva a cada um de nós, no sentido de ajudarmos a nossa comunidade cristã a crescer, a sair de si própria, a viver com mais coerência o seu compromisso com Jesus Cristo e com o Evangelho. Nenhum membro da comunidade é detentor de verdades absolutas; mas todos os membros da comunidade devem sentir-se responsáveis para que a comunidade dê, no meio do mundo, um verdadeiro testemunho de Jesus e do seu projeto de salvação. Somos, nas nossas comunidades cristãs, pessoas envolvidas e comprometidas, que questionam, que propõem caminhos, que colaboram na procura comum da verdade de Deus e do Espírito?
  • O encontro com Jesus ressuscitado no caminho de Damasco foi um momento transformador. A partir desse encontro, Paulo tornou-se o arauto entusiasta e imparável do projeto libertador de Jesus. A perseguição dos judeus, a oposição das autoridades, a indiferença dos não crentes, a incompreensão dos irmãos na fé, os perigos dos caminhos, as incomodidades das viagens, não conseguiram desencorajá-lo e desarmar o seu testemunho. O exemplo de Paulo recorda-nos que ser cristão é dar testemunho de Jesus e do Evangelho. A experiência que fazemos de Jesus e do seu projeto libertador não pode ser calada ou guardada apenas para nós; mas tem de se tornar um anúncio libertador que, através de nós, chega a todos os nossos irmãos. Procuramos assumir, no dia a dia, este papel de “missionários” (“enviados”), de testemunhas da Boa Notícia de Jesus?
  • A Igreja é uma comunidade formada por homens e mulheres e, portanto, marcada pela debilidade e fragilidade; mas é, sobretudo, uma comunidade que marcha pela história assistida, animada e conduzida pelo Espírito Santo. O “caminho” que percorremos como Igreja pode ter avanços e recuos, infidelidades, quedas e vicissitudes várias; mas é um caminho que conduz a Deus, à Vida definitiva à salvação. A presença do Espírito dirigindo a caminhada dá-nos essa garantia. Confiamos na ação do Espírito? Acreditamos que a Igreja, apesar da fragilidade dos seus membros, será sempre “sacramento universal de salvação”, pois é conduzida pelo Espírito de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)

Refrão 1: Eu Vos louvo, Senhor, na assembleia dos justos.

Refrão 2: Eu Vos louvo, Senhor, no meio da multidão.

Cumprirei a minha promessa na presença dos vossos fiéis.
Os pobres hão de comer e serão saciados,
louvarão o Senhor os que O procuram:
vivam para sempre os seus corações.

Hão de lembrar-se do Senhor e converter-se a Ele
todos os confins da terra;
e diante d’Ele virão prostrar-se
todas as famílias das nações.

Só a Ele hão de adorar
todos os grandes do mundo,
diante d’Ele se hão de prostrar
todos os que descem ao pó da terra.

Para Ele viverá a minha alma,
Há de servi-l’O a minha descendência.
Falar-se-á do Senhor às gerações vindouras
e a sua justiça será revelada ao povo que há de vir:
«Eis o que fez o Senhor».

LEITURA II – 1 João 3,18-24

Meus filhos,
não amemos com palavras e com a língua,
mas com obras e em verdade.
Deste modo saberemos que somos da verdade
e tranquilizaremos o nosso coração diante de Deus;
porque, se o nosso coração nos acusar,
Deus é maior que o nosso coração
e conhece todas as coisas.
Caríssimos, se o coração não nos acusa,
tenhamos confiança diante de Deus
e receberemos d’Ele tudo o que Lhe pedirmos,
porque cumprimos os seus mandamentos
e fazemos o que Lhe é agradável.
É este o seu mandamento:
acreditar no nome de seu Filho, Jesus Cristo,
e amar-nos uns aos outros, como Ele nos mandou.
Quem observa os seus mandamentos
permanece em Deus e Deus nele.
E sabemos que permanece em nós
pelo Espírito que nos concedeu.

CONTEXTO

Já vimos, nos domingos anteriores, que a Primeira Carta de João é um escrito dirigido às Igrejas joânicas da Ásia Menor, destinado a intervir na controvérsia levantada por hereges pré-gnósticos a propósito de pontos fundamentais da teologia cristã. Nesse contexto, o autor da Carta procura fornecer aos cristãos (algo confusos diante das proposições heréticas) uma síntese da vida cristã autêntica.

Uma questão que tem um tratamento desenvolvido na Primeira Carta de João é a questão do amor ao próximo. Os hereges pré-gnósticos afirmavam que o essencial da fé residia na vida de comunhão com Deus; mas, ocupados a olhar para o céu, negligenciavam o amor ao próximo (cf. 1 Jo 2,9). Ora, de acordo com o autor da Primeira Carta de João, o amor ao próximo é uma exigência central da experiência cristã. A essência de Deus é amor; e ninguém pode dizer que está em comunhão com Ele se não se deixou contagiar e embeber pelo amor. Jesus demonstrou isso mesmo ao amar os homens até ao extremo de dar a vida por eles, na cruz; e exigiu que os seus discípulos O seguissem no caminho do amor e do dom da vida aos irmãos (cf. 1 Jo 3,16). Em última análise, é o amor aos irmãos que decide o acesso à Vida: só quem ama alcança a Vida verdadeira e eterna (cf. 1 Jo 3,13-15). A realização plena do homem depende da sua capacidade de amar os irmãos.

O texto que a liturgia deste quinto domingo da Páscoa nos apresenta como segunda leitura pertence a uma secção que poderíamos intitular “viver como filhos de Deus” (3,1-24). Conclui a reflexão sobre o tema do amor aos irmãos, que é apresentado como consequência da filiação divina. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O autor da primeira Carta de João define a vida cristã autêntica como “acreditar no Nome” de Jesus Cristo e amar os irmãos “como Jesus nos mandou”. Aliás, parece evidente que uma coisa não “vai” sem a outra. É possível “acreditar” em Jesus e aceitar a marginalização dos “diferentes”, dos que não têm voz nem vez no nosso mundo? É possível “acreditar” em Jesus e não nos sentirmos profundamente comovidos quando encontramos alguém caído e abandonado na berma da estrada (cf. Lc 10,33)? É possível “acreditar” em Jesus sem nos dispormos a servir, com simplicidade e humildade, os nossos irmãos (cf. Jo 13,13-17)? É possível “acreditar” em Jesus e recusar o perdão a quem fez opções erradas, mas busca uma vida nova, um recomeço (cf. Lc 19,8-10)? É possível “acreditar” em Jesus e vivermos fechados na nossa vida cómoda, ignorando a sorte daqueles que têm fome, ou que não conseguem garantir uma vida digna aos seus filhos? A minha adesão a Jesus traduz-se em gestos semelhantes aos que Ele fazia e que levavam Vida e esperança aos pobres, aos doentes, aos abandonados, aos condenados que Ele encontrava pelos caminhos da Galileia e da Judeia? Como é que vivemos o mandamento do amor? Com declarações inconsequentes de boas intenções, ou com ações concretas que dão significado às vidas?
  • Por vezes, apesar do nosso esforço e da nossa vontade em acertar, sentimo-nos indignos e longe de Deus. Como é que sabemos se estamos no caminho certo? Qual é o critério para avaliarmos a força da nossa relação e da nossa proximidade com Deus? A vida de uma árvore vê-se pelos frutos que ela dá… Se realizamos obras de amor, se os nossos gestos de bondade e de solidariedade curam o sofrimento dos nossos irmãos, se a nossa ação torna o mundo um pouco melhor, é porque estamos em comunhão com Deus e a vida de Deus circula em nós. O nosso amor a Deus vê-se nos nossos gestos? Os nossos gestos reproduzem e anunciam o amor e a bondade de Deus na vida daqueles que caminham ao nosso lado?
  • Muitas vezes somos testemunhas de espantosos gestos proféticos realizados por pessoas que fizeram opções religiosas diferentes das nossas ou até por parte de pessoas que assumem uma aparente atitude de indiferença face a Deus… No entanto, não tenhamos dúvidas: onde há amor, aí está Deus. O Espírito de Deus está presente até fora das fronteiras da Igreja e atua no coração de todos os homens de boa vontade. De resto, certos testemunhos de amor e de solidariedade que vemos surgir nos mais variados quadrantes constituem uma poderosa interpelação aos crentes, convidando-os a uma maior fidelidade a Jesus e ao seu projeto. Sou capaz de reconhecer e de agradecer o “toque” de Deus nos gestos de amor, de bondade, de misericórdia que vejo acontecer à minha volta? Deixo-me interpelar pelo exemplo e testemunho daqueles que procuram tornar o mundo mais belo e mais humano, mesmo quando se trata de pessoas que não se consideram membros da minha Igreja ou da minha família cristã? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 15,1-8

Naquele tempo,
disse Jesus aos seus discípulos:
«Eu sou a verdadeira vide e meu Pai é o agricultor.
Ele corta todo o ramo que está em Mim e não dá fruto
e limpa todo aquele que dá fruto,
para que dê ainda mais fruto.
Vós já estais limpos, por causa da palavra que vos anunciei.
Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós.
Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo,
se não permanecer na videira,
assim também vós, se não permanecerdes em Mim.
Eu sou a videira, vós sois os ramos.
Se alguém permanece em Mim e Eu nele,
esse dá muito fruto,
porque sem Mim nada podeis fazer.
Se alguém não permanece em Mim,
será lançado fora, como o ramo, e secará.
Esses ramos, apanham-nos, lançam-nos ao fogo e eles ardem.
Se permanecerdes em Mim
e as minhas palavras permanecerem em vós,
pedireis o que quiserdes e ser-vos-á concedido.
A glória de meu Pai é que deis muito fruto.
Então vos tornareis meus discípulos».

CONTEXTO

O Evangelho do quinto domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, numa noite de quinta-feira, um dia antes da celebração da Páscoa judaica, por volta do ano 30. Jesus está reunido com os seus discípulos à volta de uma mesa. Consciente de que os dirigentes judaicos tinham decidido dar-Lhe a morte e que a cruz estava no seu horizonte próximo, Jesus organizou uma ceia especial de despedida. Queria preparar os seus discípulos para os acontecimentos dramáticos que se avizinhavam. Não queria que a sua morte lançasse os discípulos num desespero sem esperança. Naquela hora, de certeza que algumas perguntas pairavam no ar… Que iria acontecer àquele grupo de discípulos quando Jesus lhes fosse tirado? O projeto do Reino seria viável sem Jesus? Os discípulos conseguiriam, sozinhos no mundo, viver e testemunhar aquilo que tinham aprendido enquanto caminhavam atrás de Jesus? Como é que os discípulos poderiam manter uma ligação a Jesus e continuar a receber d’Ele a Vida de que necessitavam para continuar o caminho?

Nessa noite, Jesus conversou longamente com os discípulos e deu-lhes indicações para o caminho… Lembrou-lhes que deviam ser sempre uma comunidade de serviço (cf. Jo 13,3-17), recomendou-lhes que colocassem no centro de tudo o mandamento do amor (cf. Jo 13,33-35), deixou-lhes a promessa do Espírito (cf. Jo 14,15-6. 25-26; 15,26-27; 16,5-15), transmitiu-lhes a sua paz (cf. Jo 14,27-31), prometeu-lhes que nunca os abandonaria e que não os deixaria órfãos (cf. Jo 14,18-21), pediu-lhes que continuassem unidos a Ele (cf. Jo 15,1-8). Os gestos e as palavras de Jesus, nessa noite, foram o seu “testamento”. No Quarto Evangelho, o “discurso de despedida” de Jesus vai de 13,1 a 17,26.

O texto que a liturgia deste domingo nos propõe integra esse “discurso de despedida”. É designado como a “alegoria da videira e dos ramos”. Diz aos discípulos o que devem fazer para que, pelo tempo fora, se mantenham em comunhão com Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus é “a verdadeira videira”; é n’Ele e nas suas propostas que os homens podem encontrar a Vida. Ele permanece sempre no centro, como nossa referência fundamental, como fonte inesgotável de Vida; e nós dispomo-nos à volta d’Ele, atentos à suas palavras, aos seus gestos, às suas indicações. À nossa volta ecoam, a cada instante, mil e uma outras propostas que nos oferecem acesso rápido ao sucesso, à realização, aos triunfos humanos, à concretização de todos os nossos sonhos e anseios… Mas, quase sempre, essas outras propostas deixam-nos frustrados e insatisfeitos: são efémeras e fúteis e não matam a nossa sede de Vida autêntica. O Evangelho deste domingo, através da alegoria da videira e dos ramos, garante-nos: na nossa busca de uma vida com sentido, é para Cristo que devemos olhar. Temos consciência de que é em Cristo que podemos encontrar uma proposta de Vida autêntica? Ele é, para nós, a verdadeira “árvore da Vida”, ou preferimos trilhar caminhos de autossuficiência e colocamos a nossa confiança e a nossa esperança noutras “árvores”, noutras propostas, noutras sugestões?
  • Hoje Jesus, “a verdadeira videira”, continua a oferecer ao mundo e aos homens os seus frutos; e fá-lo através dos seus discípulos. A missão da comunidade de Jesus é produzir esses mesmos frutos de justiça, de amor, de verdade, de paz, de reconciliação que Ele produzia quando andava pela Galileia a proclamar a Boa Nova do Reino e a curar os que sofriam. Jesus não criou um gueto fechado onde os seus discípulos podem viver tranquilamente sem “incomodarem” os outros homens e mulheres; mas criou uma comunidade viva e dinâmica, que tem como missão testemunhar em gestos concretos o amor e a salvação de Deus. Se ficamos indiferentes diante das injustiças, se não procuramos curar as feridas dos que sofrem, se não abraçamos aqueles que a sociedade abandonou e condenou, se não somos arautos da paz e da reconciliação, se não defendemos a verdade contra todas as formas de mentira e de manipulação, se não lutamos com todas as nossas forças para construir um mundo mais são e mais humano, estamos a trair Jesus e a missão que Ele nos confiou. A Vida de Jesus – essa Vida de que se alimentam os que estão unidos a Ele – transparece nos nossos gestos, nas nossas causas, nas nossas apostas, na nossa vida?
  • No entanto, o discípulo só pode produzir bons frutos se permanecer unido a Jesus. No dia do nosso Batismo, optámos por Jesus e assumimos o compromisso de O seguir no caminho do amor e da entrega; quando celebramos a Eucaristia, acolhemos e assimilamos a vida de Jesus – vida partilhada com os homens, feita entrega e doação total por amor, até à morte. O cristão identifica-se com Jesus, vive em comunhão com Ele, segue-O a cada instante. Nunca interrompe a sua ligação a Jesus. O cristão vive de Cristo, vive com Cristo e vive para Cristo. Reavivamos e alimentamos a cada passo a nossa união a Cristo através da escuta da Palavra, da oração, dos sacramentos?
  • A comunidade cristã é o lugar privilegiado para o encontro com Cristo, “a verdadeira videira” da qual somos os “ramos”. É no âmbito da comunidade que celebramos, experimentamos e acolhemos – no Batismo, na Eucaristia, na Reconciliação – a Vida nova que brota de Cristo. A comunidade cristã é o Corpo de Cristo; e um membro amputado do Corpo é um membro condenado à morte… Por vezes, a comunidade cristã, com as suas misérias, fragilidades e incompreensões, dececiona-nos e magoa-nos; por vezes sentimos que a comunidade segue caminhos onde não nos revemos… Sentimos, então, a tentação de nos afastarmos e de vivermos a nossa relação com Cristo à margem da comunidade. Contudo, não é possível continuar unido a Cristo e a receber vida de Cristo, em rutura com os nossos irmãos na fé. É a mesma Vida de Cristo que nos alimenta a todos e que nos une a todos. Como é que sentimos e vivemos a ligação à comunidade cristã de que fazemos parte?
  • O que é que pode interromper a nossa união com Cristo e tornar-nos ramos secos e estéreis? Tudo aquilo que nos impede de responder positivamente ao desafio de Jesus no sentido do O seguir provoca em nós esterilidade e privação de Vida: o egoísmo, a autossuficiência, o orgulho, a vaidade, a arrogância, a preguiça, o comodismo, a ganância, a instalação, o amor ao dinheiro ou aos aplausos… O que é que, na minha maneira de ser ou no meu estilo de vida constitui obstáculo para que eu permaneça unido a Jesus?
  • A escuta da Palavra de Deus tem um papel decisivo no processo (de conversão) destinado a eliminar tudo aquilo que impede a nossa união com Cristo. Precisamos de escutar a Palavra de Jesus, de a meditar, de confrontar a nossa vida com ela, de olhar para os desafios que ela nos deixa… Então, por contraste, vão tornar-se nítidas as nossas opções erradas, os valores falsos e essas mil e uma pequenas infidelidades que nos impedem de ter acesso pleno à Vida que Jesus oferece. Que espaço é que tem na minha vida a escuta da Palavra de Deus? Ela é, para mim, critério para afinar e redimensionar as minhas opções e apostas? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção o carácter descritivo do texto, esforçando-se para que a proclamação se torne fluída e evite a transmissão de um conjunto de informações telegráficas.

Na segunda leitura, o leitor deve ter presente o carácter exortativo do texto expresso nas formas verbais no imperativo, bem como o tom de esperança que permeia toda a leitura e deve estar presente na proclamação do texto.

I Leitura: (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A VIDEIRA VERDADEIRA

Embora, neste espaço, não o possamos fazer sempre, é sempre oportuno visitar e revisitar o texto do Evangelho, vê-lo, lê-lo, acariciá-lo, saboreá-lo. Hoje, Domingo V da Páscoa, entramos por aí:

«Eu sou (Egô eimi) a videira (hê ámpelos), a verdadeira (hê alêthinê), e o meu Pai é o agricultor. Todo o ramo (tò klêma) em mim (en emoí) não dando fruto (mê phérô karpós), ele corta-o, e todo o que dá fruto, limpa-o, para que dê mais fruto. Vós já estais limpos pela palavra que vos falei (laléô). Permanecei (ménô) em mim, e eu em vós (en hymîn). Como o ramo não pode dar fruto por si mesmo, se não permanecer na videira, assim também vós, se não permanecerdes em mim. Eu sou a videira; vós os ramos. Aquele que permanece em mim e eu nele, esse dá muito fruto, porque sem mim não podeis fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, é lançado fora, como o ramo, e seca, e recolhem-nos, e lançam-nos no fogo, e arde. Se permanecerdes em mim, e as minhas palavras permanecerem em vós, pedi o que quiserdes, e ser-vos-á feito. Nisto é glorificado o meu Pai: que deis muito fruto e vos torneis meus discípulos» (João 15,1-8).

Servindo-se da estratégia da repetição, e articulando muito bem, numa rede finíssima, vocábulos e locuções, o Evangelho deste Domingo V da Páscoa (João 15,1-8) serve-nos a vida verdadeira, divina comunhão, que, do Pai, mediante o Filho, no Espírito, vem até nós, e nos é oferecida e dada. A rede terminológica é imponente: «permanecer» (7 vezes), «em mim» (6 vezes), «dar fruto» (6 vezes), «ramo» (4 vezes), «videira» (3 vezes).

O cenário do Evangelho do passado Domingo (João 10,11-18) era a Festa da Dedicação (hanûkkah), perfeitamente ajustada ao amor dedicado do Bom e Belo Pastor. O cenário do Evangelho de hoje (João 15,1-8) é a Festa da Páscoa (desde João 13,1-2), do Fruto novo a nós dado, da Vida nova a nós dada, da passagem de Jesus deste mundo para o Pai, do vinho novo do Reino a chegar. Aí está, portanto, em sintonia e em primeiro plano, «a videira, a verdadeira», que é Jesus (João 15,1). Note-se bem o adjetivo «verdadeira», com artigo (he alêthinê), colocado enfaticamente no final da afirmação inicial. Esta afirmação remete analepticamente para tantas passagens do Antigo Testamento que apresentavam Israel como a videira com carinho transplantada do Egito para a Terra Prometida, tratada sempre com amor, mas depois abandonada e queimada no fogo (Salmo 80,9-17), amada e cantada, mas depois entregue aos animais para que a devastassem (Isaías 5,1-7), guardada, regada, cuidada, mas depois pisada e queimada (Isaías 27,2-4; Jeremias 2,21; Ezequiel 19,10-14). Videira antiga, fracassada, que dá lugar à Videira nova, a verdadeira, que é Jesus. Salta à vista que a única solução para esta videira brava, que é Israel e que somos nós também, passa por uma enxertia em «a videira, a verdadeira», que é Jesus. E pela poda ou limpeza levada a cabo pela Palavra de Jesus (João 15,2-3).

A videira que era Israel produziu uvas azedas em vez de uvas boas e doces, porque abandonou o Deus verdadeiro, para ir atrás dos ídolos. Mas «a videira, a verdadeira», que é Jesus, está agora plantada no meio de nós. E nós podemos ser os seus ramos, enxertados nele, e dar assim uvas boas e doces, Bom e Belo fruto. Basta, para tanto, «permanecer» nele, que é «a videira, a verdadeira», e deixar a sua vida, a sua seiva, vivificar os ramos. Trata-se, para nós, de permanecer em Jesus, como ele permanece em nós (João 15,4), pois veio habitar em nós (João 14,23). Ele habita «em homem», em nós, pela sua incarnação; nós somos chamados a habitar nele.

Habitar nele é fazer dele a nossa casa, o nosso chão, a nossa porta, as nossas janelas, a nossa mesa, o lugar em que nos alimentamos, repousamos, amansamos, depois das nossas agitações complicadas, deceções, fracassos, lutas e incompreensões. O lugar onde nos reunimos, para repartir e saborear o pão e o vinho da alegria, para partir depois com nova alegria e energia ao encontro de mais irmãos. Boa Nova em movimento. Seara ondulante ao sabor do vento do Espírito.

É Jesus o único indispensável para que haja fruto: «Sem mim, nada podeis fazer» (João 15,5). É bom e belo que a Igreja inteira compreenda bem que a segurança, a paz e os frutos não nascem de técnicas cada vez mais apuradas nem de mecanismos político-económicos cada vez mais sofisticados, mas do seu abandono seguro na Palavra de Deus, aprendendo a viver, por assim dizer, «dentro da Palavra, para se deixar guardar e nutrir dela como de um ventre materno», belo dizer de S. João Paulo II, Pastores gregis [2003], n.º 15, retomado por Bento XVI, Verbum Domini [2010], n.º 79. Só assim, nutridos pela Palavra de Deus, pela vida de Deus, que corre na Videira e nos seus ramos, daremos fruto abundante, que é a missão missionária de que somos incumbidos. «Dar fruto» é uma locução que se repete por seis vezes no texto do Evangelho de hoje. Claramente para vincar a sua importância. Esta referência ao fruto só se encontra em mais duas circunstâncias do IV Evangelho, sempre com pendor missionário: João 4,36-38 e 12,24.

A lição do Livro do Atos dos Apóstolos, hoje recebida (9,26-31), e que nos faz bem saborear, aviva as tintas do retrato de família da Igreja primitiva, que vivia ao sabor da Palavra de Deus, da comunhão, da fração do pão e da oração, e que, não obstante os problemas, que sabia delicadamente resolver, «vivia em paz, edificando-se e caminhando no temor do Senhor, e crescia com a consolação do Espírito Santo» (9,31). Forte provocação para também nós, Igreja de hoje, tirarmos o nosso retrato de família, pondo os dois lado-a-lado, e retirarmos daí as lições que se impõem.

A Primeira Carta de S. João, no extrato hoje lido (3,18-24), volta a insistir, retomando a rede terminológica do Evangelho, na importância do mútuo permanecer: de nós em Deus, e de Deus em nós. São esta a fonte e o modo da verdadeira fecundidade do Evangelho. Não se trata de técnicas, mas de vida. E do manto de afeto de que se deve revestir qualquer verdadeira comunidade cristã: «Meus filhos», é assim, em acentuada toada familiar, que abre a lição de hoje.

Nem podia ser de outra maneira, pois nós sabemos bem que «o seu jugo é suave e a sua carga é leve» (Mateus 11,30). Se nos parecer pesada, então é porque lhe estamos a pegar mal! Reflitamos e rezemos, pois, para podermos entender ainda melhor esta melodia de «a videira, a verdadeira», os ramos sadios e viçosos, a Casa onde moramos, a Mesa onde comemos, as uvas Boas e Belas carregadas de Alegria. E, em confronto, também se entende melhor a secura, os ramos secos, a vinha abandonada, a vida ao abandono.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo V do Tempo da Páscoa – Ano B – 28.04.2024 (Act 9, 26-31)
  2. Leitura II do Domingo V do Tempo da Páscoa – Ano B – 28.04.2024 (1 Jo 3, 18-24)
  3. Domingo V do Tempo da Páscoa – Ano B – 28.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo V do Tempo da Páscoa – Ano B – 28.04.2024 – Oração Universal
  5. Uma reflexão sobre a transmissão online da Missa
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IV da Páscoa – Ano B – 21.04.2024

Domingo do Bom Pastor

 

Viver a Palavra

Em cada ano, no IV Domingo da Páscoa, somos convidados a colocar o nosso olhar em Jesus, Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. A imagem bucólica do pastor fazia parte do quotidiano dos que escutavam Jesus e manifestava a solicitude, o desvelo, a dedicação e o cuidado do pastor para com o seu rebanho. Hoje, nos nossos ambientes mais industrializados e urbanizados, esta imagem pode perder a sua força evangelizadora. Na verdade, a figura do pastor transmitia uma proximidade e atenção desconcertantes que contrasta com o mercenário que não sente as ovelhas como suas e quando vê abeirar-se o perigo, coloca-se em fuga. Não se pode ser pastor de segunda a sexta, com folgas e feriados. Ser pastor implica uma disponibilidade e atenção constantes, uma ternura e desvelo que cuida, ama, conhece, nutre e protege.

Jesus é «o Bom Pastor». Ele não se apresenta apenas como um pastor, mas «o bom» Pastor. A bondade é marca característica do Seu ser e agir. De olhar fixo em Jesus, Bom e Belo Pastor, também nós queremos aprender a arte de ser «bom», tomando consciência que a bondade não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas.

«Conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas conhecem-Me». O verdadeiro pastor não cuida do rebanho em abstrato nem trata das ovelhas como uma massa indiscriminada, mas dá a cada uma um nome, conhece as suas qualidades e limites e protege-as de acordo com as suas necessidades e carências. Como recorda o biblista Raymond E. Brown no seu comentário ao Evangelho de João, os rebanhos que pastavam nas montanhas da Judeia pertenciam a diversos proprietários e, assim, cada pastor fazia-se reconhecer junto das suas ovelhas através da sua voz e pelo nome com que as chamava.

Mesmo que o rebanho possa já ser numeroso, o pastor não descansa enquanto não reunir todas as ovelhas e, por isso, escutamos Jesus afirmar: «tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir». Para Jesus, ninguém é dispensável, nem é admissível desistir seja de quem for, pois cada um de nós é precioso e necessário para que o rebanho possa estar completo. Acolher, procurar e ir ao encontro é palavra de ordem numa Igreja que queira ser fiel ao mandato de Jesus Cristo e que caminha animada pela força do Espírito Santo.

«Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamarmos filhos de Deus». Somos filhos muito amados de Deus e, por isso, irmãos uns dos outros. Pertencemo-nos porque somos pertença de Deus pela filiação divina. Filiação e fraternidade caminham indissociavelmente e impelem-nos a construir uma cultura da ternura e do cuidado. É muito curioso que apesar de Jesus sublinhar esta atenção e cuidado no conhecimento das suas ovelhas, chamando cada uma pelo seu nome, os evangelhos falam sempre de rebanhos e não de ovelhas isoladas. Quando se fala de uma ovelha sozinha ou separada é para descrever uma situação negativa de uma ovelha perdida que se afastou do rebanho, que deixou de seguir o pastor e ouvir a sua voz.

Não podemos permitir que ninguém se possa perder, ficar à margem ou ser descartado. Podemos e devemos respeitar a liberdade e as opções de cada um, mas temos de oferecer sempre o acolhimento e o acompanhamento que não deixa ninguém para trás, apontando sempre Jesus Cristo e o Seu Evangelho como único caminho de salvação.

Mas até onde deve ir a nossa entrega e dedicação? Jesus é muito claro: «Eu dou a vida pelas minhas ovelhas». Enquanto não dermos tudo, damos muito pouco. Enquanto não oferecermos a nossa vida toda, a nossa entrega estará incompleta.in Voz Portucalense (adaptado)

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O dia 21 de abril, IV Domingo da Páscoa, é o Dia Mundial de Oração pelas Vocações e Domingo do Bom Pastor. Neste Domingo, as comunidades cristãs são convidadas a rezar pelas vocações, pedindo ao Senhor que cada homem e cada mulher, fazendo a experiência do infinito amor com que Deus os cumula, respondam afirmativamente ao chamamento que o Senhor lhes dirige. No site da Comissão Episcopal Vocações e Ministérios estão disponíveis diversos materiais para a dinamização desta semana (http://www.ecclesia.pt/cevm/). Contudo, a proposta vocacional feita a todos através de diversas dinâmicas e iniciativas, não pode deixar descurar o acompanhamento pessoal e personalizado que a tarefa vocacional exige. Esta é uma missão de todos, em especial dos pastores, catequistas e demais agentes evangelizadores. Ver, em anexo, Mensagem do Papa Francisco para este dia, (in Voz Portucalense – adaptado).

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 4,8-12

Naqueles dias,
Pedro, cheio do Espírito Santo, disse-lhes:
«Chefes do povo e anciãos,
já que hoje somos interrogados
sobre um benefício feito a um enfermo
e o modo como ele foi curado,
ficai sabendo todos vós e todo o povo de Israel:
É em nome de Jesus Cristo, o Nazareno,
que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos,
é por Ele que este homem
se encontra perfeitamente curado na vossa presença.
Jesus é a pedra que vós, os construtores, desprezastes
e que veio a tornar-se pedra angular.
E em nenhum outro há salvação,
pois não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens,
pelo qual possamos ser salvos».

CONTEXTO

O testemunho sobre Jesus e sobre a libertação que Ele veio oferecer aos homens, manifestado nos gestos (cura de um paralítico junto da Porta Formosa, à entrada do Templo de Jerusalém – cf. At 3,1-11) e nas palavras de Pedro (discurso à multidão, no Pórtico de Salomão – cf. At 3,12-26), provoca a imediata reação das autoridades judaicas e a consequente prisão de Pedro e de João. É a reação lógica dos líderes judaicos, ainda convencidos de que podiam silenciar a proposta libertadora de Jesus.

No dia seguinte, Pedro e João são conduzidos diante do Sinédrio – a autoridade que superintendia à organização da vida religiosa, jurídica e económica dos judeus. Presidido pelo sumo-sacerdote em funções, o Sinédrio era constituído por 70 membros, oriundos das principais famílias do país. Na época de Jesus, o Sinédrio era, ao que parece, dominado pelo grupo dos saduceus, os quais negavam a ressurreição. No Sinédrio havia, também, um grupo significativo de fariseus, os quais aceitavam a ressurreição… No entanto, os dois grupos vão pôr de lado as suas divergências particulares para fazerem causa comum contra os discípulos de Jesus. Referem-se, neste contexto, duas figuras sacerdotais: Caifás e Anás. Josefo ben Caifás era o sumo-sacerdote em exercício à data dos factos narrados neste episódio (exerceu o sumo-sacerdócio entre os anos 18 e 36); Anás ben Sete tinha exercido o sumo-sacerdócio algum tempo antes (anos 6 a 15), era sogro de Caifás, e continuava a ser uma figura muito influente nos círculos sacerdotais de Jerusalém. Um e outro tinham estado na primeira linha no processo de condenação de Jesus à morte (cf. Mt 26,57; Jo 18,12-14.19-24).

A pergunta posta aos apóstolos pelos membros do Sinédrio é: “com que poder ou em nome de quem fizestes isto?” (At 4,7). O texto que a nossa primeira leitura nos apresenta é a resposta de Pedro à questão que lhe foi posta.

É mais do que provável que o episódio assente, em geral, em bases históricas… O testemunho sobre esse Messias crucificado pouco antes pelas autoridades constituídas devia aparecer como uma provocação e provocar uma natural reação dos líderes judaicos. No entanto, o episódio, tal como nos é apresentado, sofreu retoques de Lucas, empenhado em demonstrar que a reação negativa do “mundo” não pode nem deve calar o testemunho dos discípulos de Jesus.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • De acordo com o testemunho de Pedro, Jesus é o único salvador, já que “não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos”. Nós, discípulos de Jesus, sabemos isso; mas, apesar de tudo, somos frequentemente convidados a correr atrás de líderes humanos que se apresentam como “salvadores” e que acabam por se revelar amargas deceções. Mais ainda: muitas vezes as propostas que esses líderes humanos nos apresentam estão em flagrante contradição com as propostas e os valores de Jesus. Na hora de optar, não esqueçamos que a proposta de Jesus tem o selo de garantia de Deus; não esqueçamos que o caminho proposto por Jesus (e que, tantas vezes, à luz da lógica humana, parece um caminho de fracasso e de derrota) é o caminho que nos conduz ao encontro da Vida plena e definitiva. Onde está a nossa melhor hipótese de encontrar a salvação? Em Jesus, ou nos nossos falíveis líderes humanos? Em quem tenho eu apostado, na minha incessante procura de Vida?
  • Mesmo depois de dois mil anos de cristianismo, parece que a proposta de Jesus ainda não se tornou decisiva na construção da história do nosso tempo. O verniz cristão de que revestimos a nossa civilização ocidental não tem impedido a corrida aos armamentos, os genocídios, os atos bárbaros de terrorismo, as guerras religiosas, a exploração dos mais fracos, o desprezo pelos direitos e pela dignidade dos seres humanos, o abandono dos que não têm voz ou influência, a indiferença face à sorte de tanta gente que não tem a possibilidade de satisfazer as suas necessidades básicas… Os critérios que presidem à construção do mundo estão, demasiadas vezes, longe dos valores do Evangelho. Porque é que isto acontece? Podemos dizer que Cristo é, para os cristãos, a referência fundamental? Nós cristãos fizemos d’Ele, efetivamente, a “pedra angular” sobre a qual construímos a nossa vida e a história do nosso tempo?
  • Através do exemplo de Pedro, Lucas sugere que o testemunho dos discípulos deve ser desassombrado, mesmo em condições hostis e adversas. A preocupação dos discípulos não deve ser apresentar um testemunho politicamente correto, que não incomode os poderes instituídos e não traga perseguições à comunidade do Reino; mas deve ser um discurso corajoso e coerente, que tem como preocupação fundamental apresentar com fidelidade a proposta de salvação que Jesus veio fazer. Como é o nosso testemunho? É um testemunho de “meias tintas”, calculado, que não incomoda nem agita, ou é um discurso corajoso, verdadeiro, profético?
  • Os discípulos de Jesus não estão sozinhos, entregues a si próprios, nessa luta contra as forças que oprimem e escravizam os homens. O Espírito de Jesus ressuscitado está com eles, ajudando-os, animando-os, protegendo-os em cada passo desse caminho que Deus lhes mandou percorrer. Nos momentos de crise, de desânimo, de frustração, os discípulos devem tomar consciência da presença amorosa de Deus a seu lado e retomar a esperança. Sinto a presença do Espírito e sinto-me confortado por essa presença?
  • Os líderes judaicos são, mais uma vez, apresentados como modelos de cegueira e de fechamento face aos desafios de Deus. São “maus pastores”, preocupados com os seus interesses pessoais e corporativos, que impedem que o seu Povo adira às propostas de salvação que Deus faz. O seu exemplo mostra-nos como a autossuficiência, os preconceitos, o comodismo, levam o homem a fechar-se aos desafios de Deus e a recusar os dons de Deus. Independentemente do papel que desempenhamos na sociedade ou na Igreja, alguma vez deixamos que os nossos interesses pessoais ou de grupo tenham sido obstáculo ao projeto de Deus para o mundo e para os homens? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular.

Refrão 2: Aleluia.

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.
Mais vale refugiar-se no Senhor,
do que fiar-se nos homens.
Mais vale refugiar-se no Senhor,
do que fiar-se nos poderosos.

Eu Vos darei graças porque me ouvistes
e fostes o meu Salvador.
A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.

Bendito o que vem em nome do Senhor,
da casa do Senhor nós vos bendizemos.
Vós sois o meu Deus: eu Vos darei graças.
Vós sois o meu Deus: eu Vos exaltarei.
Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

LEITURA II – 1 João 3,1-2

Caríssimos:
Vede que admirável amor o Pai nos consagrou
em nos chamarmos filhos de Deus.
E somo-lo de facto.
Se o mundo não nos conhece,
é porque não O conheceu a Ele.
Caríssimos, agora somos filhos de Deus
e ainda não se manifestou o que havemos de ser.
Mas sabemos que, na altura em que se manifestar,
seremos semelhantes a Deus,
porque O veremos tal como Ele é.

CONTEXTO

A primeira Carta de João é, como já dissemos nos domingos anteriores, um escrito polémico, dirigido a comunidades cristãs nascidas no mundo joânico, provavelmente situadas à volta de Éfeso, na parte ocidental da Ásia Menor.

Numa altura em que as heresias pré-gnósticas começavam a lançar a confusão entre os crentes e ameaçavam subverter a identidade cristã, um “presbítero” (“ancião”) ligado à escola joânica (constituída à volta da figura e da teologia do apóstolo João), decidiu escrever às comunidades cristãs da sua zona, denunciando as doutrinas heréticas e reavivando a fé da Igreja.

As principais questões postas pelos hereges eram de ordem cristológica e ética. Em termos de doutrina cristológica, negavam que o Filho de Deus tivesse encarnado através de Maria e que tivesse morrido na cruz: Jesus era um simples homem, de quem o Cristo celeste se tinha apropriado, na altura do Batismo, para levar a cabo a revelação; mas, imediatamente antes da paixão, o Cristo celeste tinha-se retirado (porque não podia padecer), deixando o homem Jesus enfrentar sozinho a Paixão e a morte. Do ponto de vista ético e moral, esses hereges não cumpriam os mandamentos e desprezavam especialmente o mandamento do amor ao irmão.

O texto que nos é proposto como segunda leitura neste terceiro domingo da Páscoa integra a segunda parte da carta (cf. 1 Jo 3,1-24). Aí, o autor lembra aos crentes a sua condição de filhos de Deus e exorta-os a viver no dia a dia de forma coerente com essa filiação. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O autor da primeira Carta de João garante que Deus ama-nos com um amor “admirável”, um amor que se traduz no dom da Vida nova e que nos coloca na situação de filhos queridos de Deus. Neste 4º Domingo da Páscoa, o Domingo do Bom Pastor, somos, portanto, convidados a contemplar a bondade, a ternura, a misericórdia, o amor de um Deus apostado em levar os seres humanos a superarem a sua condição de debilidade, a fim de chegarem à Vida nova e eterna, à plenitudização das suas capacidades, até se tornarem “semelhantes” ao próprio Deus. Isso corresponde, afinal, ao grande objetivo que todos nós temos: encontrar a felicidade, a Vida verdadeira… E tudo isso é um dom de Deus, um dom que não depende dos nossos méritos mas que é fruto exclusivo do amor que Deus tem por nós. Sentimo-nos, verdadeiramente, filhos queridos e amados de Deus? Que impacto tem isso na nossa forma de encarar a vida? Sentimo-nos gratos a Deus pelo seu amor e por tudo aquilo que Ele faz no sentido de nos proporcionar Vida em abundância?
  • Como é que os “filhos de Deus” respondem ao dom que Deus lhes faz? No texto que nos é hoje proposto, esta questão não é desenvolvida; contudo, outras passagens da primeira Carta de João lembram que ser “filho de Deus” significa viver de forma coerente com as propostas de Deus (cf. 1 Jo 5,1-3), cumprindo os mandamentos e amando os irmãos, a exemplo de Jesus Cristo. Como é que se processa a nossa resposta ao amor de Deus? Como “filhos de Deus”, procuramos conduzir a nossa vida de acordo com os valores e as propostas de Deus?
  • O autor da carta avisa também os cristãos para o inevitável choque com a incompreensão do “mundo”. Viver como “filho de Deus” implica fazer opções que, muitas vezes, estão em contradição com os valores que o mundo considera prioritários; por isso, os crentes são frequentemente objeto do desprezo, da irrisão, dos ataques daqueles que não estão dispostos a acolher os valores e propostas de Deus. Jesus Cristo conheceu e enfrentou a mesma realidade; mas viveu sempre na obediência ao Pai e nunca se deixou condicionar pela opinião do “mundo”. Como Jesus, aguentamos os embates do mundo e mantemo-nos coerentes com a nossa condição de “filhos de Deus”? O que é que “dirige” e condiciona a nossa forma de viver: as propostas de Deus, ou as propostas do “mundo”? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 10,11-18

Naquele tempo, disse Jesus.
«Eu sou o Bom Pastor.
O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas.
O mercenário, como não é pastor, nem são suas as ovelhas,
logo que vê vir o lobo, deixa as ovelhas e foge,
enquanto o lobo as arrebata e dispersa.
O mercenário não se preocupa com as ovelhas.
Eu sou o Bom Pastor:
conheço as minhas ovelhas
e as minhas ovelhas conhecem-Me,
do mesmo modo que o Pai Me conhece e Eu conheço o Pai;
Eu dou a minha vida pelas minhas ovelhas.
Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil
e preciso de as reunir;
elas ouvirão a minha voz
e haverá um só rebanho e um só Pastor.
Por isso o Pai Me ama:
porque dou a minha vida, para poder retomá-la.
Ninguém Ma tira, sou Eu que a dou espontaneamente.
Tenho o poder de a dar e de a retomar:
foi este o mandamento que recebi de meu Pai».

CONTEXTO

O capítulo 10 do 4º Evangelho é dedicado à catequese do “Bom Pastor”. O autor utiliza esta imagem para propor uma catequese sobre a missão de Jesus: a obra do “Messias” consiste em conduzir o homem às pastagens verdejantes e às fontes cristalinas de onde brota a Vida em plenitude.

A imagem do “Bom Pastor” não foi inventada pelo autor do 4º Evangelho. Literariamente falando, este discurso simbólico está construído com materiais provenientes do Antigo Testamento. Em especial, este discurso tem presente o texto de Ez 34, onde se encontra a chave para compreender a metáfora do “pastor” e do “rebanho”. Falando aos exilados da Babilónia, Ezequiel constata que os líderes de Israel foram, ao longo da história, maus “pastores”, que conduziram o Povo por caminhos de sofrimento, de injustiça e de morte; mas – diz também Ezequiel – o próprio Deus vai agora assumir a condução do seu Povo; Ele irá colocar à frente do seu “rebanho” um “Bom Pastor” (o “Messias”), que o livrará da escravidão e o conduzirá à Vida. A catequese que o 4º Evangelho nos oferece sobre o “Bom Pastor” sugere que a promessa de Deus – veiculada por Ezequiel – se cumpre em Jesus.

De acordo com o Evangelho de João, Jesus teria pronunciado o “discurso do Bom Pastor” (cf. Jo 10) em Jerusalém, em contexto da “festa da Dedicação do Templo” (cf. Jo 10,22). Esta festa (chamada, em hebraico, “Hanûkkah”) celebra a purificação do Templo de Jerusalém (164 a.C.), por Judas Macabeu, depois de o rei selêucida Antíoco IV Epifânio o ter profanado (167 a.C.), construindo um altar em honra de Zeus dentro do espaço sagrado. É a festa da Luz. O símbolo por excelência dessa festa é um candelabro de oito braços (“hanûkkiyyah”), que vão sendo progressivamente acesos durante os oito dias que a festa dura. Jesus tinha, pouco antes, curado um cego de nascença, assumindo-se como “a Luz” que veio para iluminar as trevas do mundo (cf. Jo 8,12; 9,1-41).

Apesar do ambiente festivo, a relação entre Jesus e os líderes judaicos é de grande tensão (cf. Jo 9,40; 10,19-21.24.31-39). Depois de ver a pressão que esses líderes colocaram sobre um cego de nascença para que ele não abraçasse a luz (cf. Jo 9,1-41), Jesus denuncia a forma como eles tratam a comunidade: estão apenas interessados em proteger os seus interesses pessoais e usam o Povo em benefício próprio; são, pois, “ladrões e salteadores” (Jo 10,1.8.10), que tomaram de assalto o rebanho que lhes foi confiado e roubam ao Povo a oportunidade de encontrar Vida.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Todos nós temos os nossos heróis, os nossos mestres, os nossos modelos. São figuras que consideramos como referências, figuras que respeitamos e de quem esperamos orientações, figuras cujas opiniões acolhemos e seguimos. Os povos antigos, ainda muito ligados a contextos agrários e pastoris, facilmente designavam uma figura dessas como “o Pastor” (nós hoje utilizamos outras palavras: “presidente”, “rei”, “diretor”, “superior”, “chefe”, “professor”, “guru”…). Será que todas essas figuras que admiramos e cujas opiniões seguimos merecem a nossa confiança? Todas elas estarão interessadas no nosso bem?
  • O Evangelho deste domingo diz-nos que, para o cristão, o “Pastor” por excelência é Jesus. É n’Ele que devemos confiar, é à volta d’Ele que nos devemos juntar, são as suas indicações e propostas que devemos seguir. O nosso “Pastor” é, de facto, Cristo, ou temos outros “pastores” que nos arrastam e que são as referências fundamentais à volta das quais construímos a nossa existência? Quem é que nos dita os caminhos em que andamos e os valores em que apostamos: Jesus Cristo? O patrão que nos paga o salário? O presidente do nosso partido político ou da nossa equipa desportiva? Um qualquer líder da moda ou um qualquer “influencer”? O herói mais bonito da telenovela? A conta bancária? O comodismo e a instalação? O êxito e o triunfo profissional a qualquer custo?
  • No cumprimento da sua missão de “Pastor”, Jesus não atua por interesse, mas por amor. Ele não foge quando as ovelhas estão em perigo, mas defende-as e até é capaz de dar a vida por elas; Ele preocupa-se com as suas ovelhas e mantém com cada uma delas uma relação única, especial, pessoal; Ele não se serve das suas ovelhas, mas serve-as e condu-las onde há alimento em abundância; Ele cuida de cada uma delas, particularmente das mais frágeis e necessitadas. Ora, esta forma de atuar de Jesus deve ser uma referência para aqueles que têm responsabilidades na condução e animação da comunidade, quer em âmbito civil, quer em âmbito religioso. Quando somos chamados à missão de presidir a um grupo, de animar uma comunidade, de exercer o serviço da autoridade, cumprimos a nossa missão no dom total, no amor incondicional, no serviço desinteressado, a exemplo de Jesus?
  • No “rebanho” de Jesus, não se entra por convite especial, nem há um número restrito de vagas a partir do qual mais ninguém pode entrar. A proposta de salvação que Jesus faz destina-se a todos os homens e mulheres, sem exceção. O que é decisivo para entrar a fazer parte do rebanho de Deus é “escutar a voz” de Jesus, aceitar as suas indicações, tornar-se seu discípulo… Isso significa, concretamente, ir atrás de Jesus, aderir ao projeto de salvação que Ele veio apresentar, percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu, na entrega total aos projetos de Deus e na doação total aos irmãos. Atrevemo-nos a seguir o nosso “Pastor” (Jesus) no caminho exigente do dom da vida, ou estamos convencidos que esse caminho é apenas um caminho de derrota e de fracasso, que não leva aonde nós pretendemos ir?
  • O nosso texto acentua a identificação total de Jesus com a vontade do Pai e a sua disponibilidade para colocar toda a sua vida ao serviço do projeto de Deus. Garante-nos também que é dessa entrega livre, consciente, assumida, que resulta Vida eterna, verdadeira e definitiva. O exemplo de Jesus convida-nos a aderir, com a mesma liberdade, mas também com a mesma disponibilidade, às propostas de Deus e ao cumprimento do projeto de Deus para nós e para o mundo. Procuramos, como Jesus, discernir a vontade do Pai e obedecer ao projeto que Ele tem para nós, mesmo que isso signifique abandonar os nossos esquemas pessoais, as nossas conveniências, os nossos caminhos particulares?
  • Nas nossas comunidades cristãs, temos pessoas que presidem e que animam, pessoas a quem foi confiado o serviço da autoridade. Podemos aceitar, sem problemas, que elas receberam essa missão de Jesus e da Igreja, apesar dos seus limites e imperfeições. Mas convém igualmente ter presente que o único “Pastor verdadeiro”, aquele que nunca falha, aquele que somos convidados a escutar e a seguir sem condições, é Jesus. Procuremos escutar e acolher, com humildade, mas também com consciência crítica, as indicações que nos são dadas pelos líderes das nossas comunidades; mas não nos esqueçamos de as confrontar, para aquilatar da sua validade, com as indicações que nos foram deixadas por Jesus, o Bom Pastor, o nosso único Pastor. Como me posiciono diante daqueles a quem foi confiado, na comunidade cristã, o serviço da autoridade?
  • Para que distingamos a “voz” de Jesus de outros apelos, de propostas enganadoras, de “cantos de sereia” que não conduzem à vida plena, é preciso um permanente diálogo íntimo com “o Pastor” (Jesus), um confronto permanente com a sua Palavra e a participação ativa nos sacramentos onde se nos comunica essa vida que “o Pastor” nos oferece. Procuro manter um diálogo frequente com Jesus, a fim de ter sempre vivas as suas indicações? in Dehonianos

Para os leitores:

            A brevidade das duas leituras e a inexistência de palavras mais incomuns não pode permitir descurar a preparação dos textos. Ambos os textos exigem uma acurada preparação nas pausas e respirações e ambos são marcados por um tom alegre e jubiloso pela ressurreição de Jesus Cristo (1.ª leitura) e pela boa notícia de que em Jesus Cristo somos filhos muito amados de Deus (2.ª leitura).

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

BOM PASTOR

Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico tôb, que qualifica o nome Pastor. Por isso, hoje é também o Dia do Bom e Belo Pastor, e Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são sempre um dom do amor de Deus à sua Igreja e ao mundo.

O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,11-18, que surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (ver João 10,22). Situemo-nos. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Isto aconteceu em 167 a. C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, em 164 a. C., Judas Macabeu procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2021, corresponde ao nosso dia 29 de novembro.

A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista, paganismos modernos, escuro), não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais. Mais luz.

Como este simbolismo é importante para os dias de hoje e para o tempo que atravessamos! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é sempre o segredo maior do Dia Mundial de Oração pelas Vocações.

O resto é a força e a beleza da imagem do Bom Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, que as ama, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem. Maravilhosa Comunhão. Música encantatória.

A figura do Pastor Bom e Belo como que salta da página selada, para surgir em pessoa à nossa frente. Ao dizer «Eu sou», está também, ao mesmo tempo, a dizer «vós sois». Está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade, confiança e intimidade connosco, bem expressa, de resto, pelas articulações verbais «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «dar a vida». Note-se que, no mundo bíblico, o «conhecimento» não exprime teoria ou teorias, mas é a expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso. O bocadinho da Primeira Carta de S. João, hoje lido (3,1-2), mostra também a maravilha deste conhecimento novo, que faz de nós «filhos de Deus» (tékna Theoû) e «semelhantes a Ele» (hómoioi autô). Em boa verdade, «só o semelhante conhece o semelhante». Por isso e para isso, Deus se fez primeiro semelhante a nós, homem verdadeiro, para nos tornar depois semelhantes a Ele, «deuses por graça» (cf. João 10,34-35). Por isso também, Jesus, o Filho, nos dá a conhecer tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio. E se, na inteira história humana, se pode afirmar, como faz a Escritura Santa, que «nunca ninguém viu Deus» (João 1,18; cf. 6,46), essa visão, em versão transformante, fica, todavia, em aberto, para o cume da nossa vida de filhos de Deus, como diz o Apóstolo, hoje: «semelhantes a Ele seremos, porque o veremos como Ele é» (1 João 3,2).

Mas esta vida livre, verdadeira, plena e bela, assente na verdade e na confiança, sem mentiras nem imposturas nem malabarismos, deixa ver em expresso contraponto o seu oposto. É que também saltam da página os ladrões, os salteadores, os mercenários que, em vez de conjugarem os verbos acima indicados para traduzir a relação do Pastor Bom e Belo com o seu rebanho, conjugam antes os verbos «roubar», «matar», «destruir», «abandonar», «fugir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,11-18 lê e desvenda os tempos de hoje! Pedro já tinha montado este cenário no Sinédrio (Atos 4,8-12), apresentando outra vez aos chefes do povo e anciãos (Atos 4,8), membros do Sinédrio, este Jesus, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos (Atos 4,10), como o único em que há salvação (Atos 4,12). Ele é o Bom e Belo Pastor, dador de vida, face ao qual os membros do Sinédrio fazem claramente a figura de mercenários, impostores e ladrões! Mas esta história seriada vem já da primeira página do Génesis, desde aquele fruto a nós dado (Génesis 1,29), ou por nós furtado (cf. Génesis 3,6) – fruto de um furto! –, história que emerge novamente nas últimas páginas de Mateus, que nos mostram ainda melhor o verdadeiro fruto a nós dado na Eucaristia (Mateus 26,26-29) e no Ressuscitado, Fruto novo que deve ser dado a toda a gente (Mateus 28,1-10.16-20), vendo-se, todavia, já no escuro, em contraluz, os impostores que congeminam e propagam, para tentar anular a força daquele Fruto, a lenda de um furto (Mateus 27,62-66; 28,11-15). Leitura admirável, mas também implacável.

Mas o texto grandioso de João 10,11-18 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo latino «aprire»] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos pelo pastor.

Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se também que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas. É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo e o alimento bom que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite!

Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez, / nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a alegria que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar faz-nos olhar para Jesus, pedra rejeitada pelos construtores, que veio a tornar-se, na verdade, pedra angular na construção do edifício espiritual, novo, que se constrói a partir do cume, e não à nossa maneira, desde baixo, sobre pesados alicerces. Ele é o nosso único Salvador. Por isso, este grande Salmo transborda de Ação de Graças.

Concede-nos, Senhor, Belo e Bom Pastor, que nunca nos tresmalhemos do teu imenso amor, e que saibamos sempre levar o tom e o sabor da tua voz que chama e ama a cada irmão perdido em casa ou numa estrada de lama.

Senhor Jesus Cristo, / Único Senhor da minha vida, / Bom Pastor dos meus passos inseguros/ E do silêncio inquieto do meu coração, / Cheio de sonhos, anseios, dúvidas, inquietações. //

Senhor Jesus, / Faz ressoar em mim a tua voz de paz e de ternura. / Eu sei que pronuncias o meu nome com doçura, / E me envias ao encontro daquele meu irmão que Te procura. //

Fico contigo sentado junto ao poço. / Alumia o meu pobre coração. / Vejo que, de toda a parte, chega gente de cântaro na mão. / Dispõe de mim, Senhor, / Nesta hora de Nova Evangelização. //

Que eu saiba, Senhor, / Interpretar bem a tua melodia. / Que eu saiba, Senhor, / Dizer sempre SIM como Maria.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.202 (Act 4, 8-12)
  2. Leitura II do Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 (1 Jo 3, 1-2)
  3. Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV do Tempo da Páscoa – Ano B – 21.04.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem Papa Francisco para o LXI Dia Mundial de Oração pelas Vocações – 21.04.2024
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III da Páscoa – Ano B – 14.04.2024

 

Viver a Palavra

            Apesar da liturgia da Semana Santa e mais concretamente do Tríduo Pascal nos oferecerem um relato detalhado de todo o processo da paixão e crucifixão de Jesus, a ressurreição de Jesus acontece durante o silêncio da madrugada, na intimidade de Jesus com o Pai. Deste modo, o testemunho da ressurreição de Jesus não chega até nós pela descrição do modo como ela aconteceu, mas pelo testemunho daqueles que se encontraram com o ressuscitado. Um testemunho cheio de força e entusiasmo, de convicção e ousadia que contrasta com o medo que os assaltou durante o processo da condenação e crucifixão de Jesus. Basta pensar no testemunho destemido de Pedro, na primeira leitura deste Domingo. Pedro corajosamente diante da multidão proclama a boa notícia da ressurreição. Acusando a multidão de ter agido por ignorância no processo da morte de Jesus, convida-os ao arrependimento e à conversão para que também eles confessem a sua fé em Jesus Ressuscitado e se tornem também testemunhas da alegria da Páscoa.

            Como contrasta este discurso de Pedro com as palavras titubeantes com que negava conhecer Jesus no pátio da casa do Sumo Sacerdote! O encontro com o ressuscitado transforma de tal modo a vida e o coração que nada nem ninguém os fará recuar e temer no anúncio da vida nova que Jesus ressuscitado oferece.

            A novidade da ressurreição de Jesus irrompe no tempo e na história como garantia de que o bem trinfa sobre o mal e que pela ressurreição de Jesus também a nossa vida se inscreve no horizonte de vida e ressurreição que a Páscoa de Jesus nos oferece. Como é sempre belo e reconfortante ler as palavras do Papa Francisco na exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit: «Contempla Jesus feliz, transbordando de alegria. Alegra-te com o teu Amigo que triunfou. Mataram o Santo, o Justo, o Inocente, mas Ele venceu. O mal não tem a última palavra. Também na tua vida, o mal não terá a última palavra, porque o teu Amigo, que te ama, quer triunfar em ti. O teu Salvador vive» (CV 126).

            A afirmação de que a ressurreição de Jesus se vive e experimenta como encontro íntimo e pessoal com Aquele que por mim se entregou à morte e ressuscitou glorioso, não me desliga da comunidade nem me permite uma experiência isolada da fé, mas recorda-me como o ressuscitado se faz presente no meio dos discípulos e lhes comunica o seu amor e a sua paz: «A paz esteja convosco». A experiência pascal é comunitária e o testemunho da ressurreição ganha consistência, força e concretização na alegria e na beleza de caminhar juntos, estabelecendo laços fraternos e comunitários que permitem ver, tocar e comer juntos.

            Na verdade, para dissipar os medos e as dúvidas, Jesus pronuncia os verbos mais simples e familiares: vede, tocai, comamos juntos… Os discípulos rendem-se à evidência da ressurreição não pelos sinais teofânicos mais espetaculares, mas pela contemplação das marcas da paixão, por poder tocar o corpo do ressuscitado e saborearem juntos uma refeição. Jesus entra na nossa vida, não como uma ideologia ou uma formulação intelectual e abstrata, mas plasmando a nossa vida concreta: a nossa ação, o nosso toque, a nossa comunhão e partilha fraterna.

            Somos convidados a continuar hoje a experiência de Jesus ressuscitado vendo o rosto de tantos irmãos nossos que atravessam o limiar da dor e do sofrimento, tocando as suas feridas que nos recordam as marcas da paixão do ressuscitado e participando da mesa da comunhão e da partilha que perpetua no tempo e na história a presença Daquele que por nós morreu e ressuscitou.in Voz Portucalense (adaptado)

                                              + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           No terceiro Domingo da Páscoa, dia 14 de abril, tem início a 61.ª Semana de Oração pelas Vocações, celebrando-se no dia 21 de abril o Dia Mundial de Oração pelas Vocações. Para este ano, o Santo Padre escreveu uma mensagem intitulada: Chamados a semear a esperança e a construir a paz. Ficará em anexo nesta e próxima semana. in Voz Portucalense (adaptado)

                                               + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 3,13-15.17 -19

Naqueles dias, Pedro disse ao povo:
«O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus de nossos pais,
glorificou o seu Servo Jesus,
que vós entregastes e negastes na presença de Pilatos,
estando ele resolvido a soltá-I’O.
Negastes o Santo e o Justo
e pedistes a libertação dum assassino;
matastes o autor da vida,
mas Deus ressuscitou-O dos mortos, e nós somos testemunhas disso.
Agora, irmãos, eu sei que agistes por ignorância,
como também os vossos chefes.
Foi assim que Deus cumpriu
o que de antemão tinha anunciado pela boca de todos os Profetas:
que o seu Messias havia de padecer.
Portanto, arrependei-vos e convertei-vos,
para que os vossos pecados sejam perdoados».

 CONTEXTO

            A primeira leitura do terceiro Domingo da Páscoa situa-nos em Jerusalém, na “Porta Formosa”, uma porta situada no lado oriental da cidade, que dava acesso ao Templo para quem vinha do Monte das Oliveiras.

            Pedro e João (esta “dupla” aparece, frequentemente associada na primeira parte do Livro dos Atos dos Apóstolos – cf. At 4,7-8.13.19) tinham subido ao Templo para a oração da “hora nona” (três horas da tarde). Junto da Porta Formosa estava um homem, coxo de nascença, a mendigar. As portas que davam acesso ao Templo eram consideradas “sítios estratégicos” pelos mendigos, uma vez que um crente que ia encontrar-se com Deus tinha tendência para ser generoso com os que solicitavam ajuda. O homem dirigiu-se a Pedro e a João e pediu-lhes esmola. Pedro avisou-o de que não tinha “ouro nem prata” para lhe dar; mas, “em nome de Jesus Cristo Nazareno”, curou-o. “Cheia de assombro e estupefacta”, as pessoas que tinham testemunhado o acontecimento reuniram-se “sob o chamado pórtico de Salomão” (espaço coberto, situado a leste, no pátio externo do Templo) para ouvir da boca de Pedro uma explicação (cf. At 3,1- 11). O “assombro” e a “estupefação” traduzem o estado daqueles que testemunham a ação de Deus manifestada através dos apóstolos; é a mesma reação com que as multidões acolheram os gestos libertadores realizados por Jesus. A ação dos apóstolos aparece, assim, na continuidade da ação de Jesus. O nosso texto é parte do discurso que, segundo o autor dos Atos, Pedro teria feito à multidão (cf. At 3,12-26).

            Nas figuras de Pedro e João, é-nos apresentado o testemunho da primitiva comunidade de Jerusalém, apostada em continuar a missão de Jesus e em apresentar aos homens o projeto salvador de Deus. O autor dos Atos está convencido de que esse testemunho se concretiza, não só através da pregação, mas também da ação dos apóstolos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Para os cristãos, Jesus não é uma figura do passado, que a morte venceu e que ficou sepultado no museu da história; mas é alguém que continua vivo, sempre presente nos caminhos do mundo, oferecendo aos homens uma proposta de Vida verdadeira, plena, eterna. Como é que os nossos irmãos que caminham ao nosso lado podem descobrir que Jesus está vivo e fazer uma experiência de encontro com Cristo ressuscitado? Para o autor dos Atos, o fator decisivo para que os homens descubram que Cristo está vivo é o testemunho dos discípulos. Jesus está vivo e apresenta-se aos homens do nosso tempo nos gestos de amor, de partilha, de solidariedade, de perdão, de acolhimento que os cristãos são capazes de fazer; Jesus está vivo e atua hoje no mundo, quando os cristãos se comprometem na luta pela paz, pela justiça, pela liberdade, pelo nascimento de um mundo mais humano, mais fraterno, mais solidário; Jesus está vivo e continua a realizar aqui e agora o projeto de salvação de Deus, quando os seus cristãos oferecem aos coxos a possibilidade de avançar em direção a um futuro de esperança, aos que vivem nas trevas a capacidade de encontrar a luz e a verdade, aos prisioneiros a possibilidade de ter voz e de decidir livremente o seu futuro. Os meus gestos anunciam aos irmãos com quem me cruzo nos caminhos deste mundo que Cristo está vivo?
  • A existência humana é uma busca incessante de Vida. Essa busca, contudo, nem sempre se desenrola em caminhos fáceis e lineares. Por vezes é cumprida num caminho onde o homem tropeça com equívocos, com falhas, com opções erradas. Aquilo que parece ser garantia de vida gera morte; e aquilo que parece ser fracasso e frustração é, afinal, o verdadeiro caminho para a Vida. Pedro garante-nos, no seu testemunho, que a proposta que Jesus veio apresentar é uma proposta geradora de vida, apesar de passar pelo aparente fracasso da cruz. Acredito firmemente que é da doação, da entrega, do amor total a Deus e aos irmãos, a exemplo de Jesus, que brota a Vida eterna e verdadeira para mim e para aqueles que caminham ao meu lado?
  • O apelo ao arrependimento e à conversão que aparece no discurso de Pedro lembra-nos essa necessidade contínua de reequacionarmos as nossas opções, de deixarmos os caminhos de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de autossuficiência em que, por vezes, se desenrola a nossa existência. É preciso que, em cada instante da nossa vida, nos convertamos a Jesus e aos seus valores, numa disponibilidade total para acolhermos os desafios de Deus e a sua proposta de salvação. Procuro viver em estado de conversão permanente? Esforço-me, ao longo do meu caminho, por recentrar continuamente a minha vida em Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 4

Refrão: Fazei brilhar sobre nós, Senhor, A luz do vosso rosto.

Quando Vos invocar, ouvi-me, ó Deus de justiça.
Vós que na tribulação me tendes protegido,
compadecei-vos de mim
e ouvi a minha súplica.

Sabei que o Senhor faz maravilhas pelos seus amigos,
o Senhor me atende quando O invoco.
Muitos dizem: «Quem nos fará felizes?»

Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz da vossa face.
Em paz me deito e adormeço tranquilo,
porque só Vós, Senhor, me fazeis repousar em segurança.

LEITURA II – 1 João 2,1-5a

Meus filhos,
escrevo-vos isto, para que não pequeis.
Mas se alguém pecar,
nós temos Jesus Cristo, o Justo, como advogado junto do Pai.
Ele é a vítima de propiciação pelos nossos pecados,
e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo inteiro.
E nós sabemos que O conhecemos,
se guardamos os seus mandamentos.
Aquele que diz conhecê-l’O
e não guarda os seus mandamentos
é mentiroso e a verdade não está nele.
Mas se alguém guardar a sua palavra,
nesse o amor de Deus é perfeito.

 CONTEXTO

            Já vimos no passado domingo que este escrito de tom polémico – destinado provavelmente às comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor – procura combater doutrinas heréticas pré-gnósticas e apresentar aos cristãos o caminho da autêntica vida cristã.

            O autor da carta, logo depois de um prólogo inicial (cf. 1 Jo 1,1-4) que faz lembrar o do Quarto Evangelho, retoma um tema eminentemente joânico para expor a realidade de Deus: “Deus é luz”; n’Ele não há qualquer espécie de treva, de mentira ou de erro (cf. 1 Jo 1,5). A luz de Deus brilha e orienta os homens no caminho que eles são chamados a percorrer. Quem é de Deus deixa-se iluminar pela luz de Deus, adere a Jesus e à sua proposta e vive em comunhão com os irmãos (cf. 1 Jo 1,7). Mas os adeptos das heresias, que espalham a confusão nas comunidades cristãs, não são de Deus e não se deixam guiar pela luz de Deus. Dizem que estão em comunhão com Deus; mas, na realidade, andam nas trevas, pois mentem e não praticam a verdade (cf. 1 Jo 1,6); dizem que não têm pecados (cf. 1 Jo 1,8.10); mas, ao fazê-lo enganam-se a si mesmos e fazem de Deus um mentiroso. Que necessidade teria Deus de enviar ao mundo o seu Filho com uma proposta de salvação, se o pecado não fosse uma realidade universal (cf. 1 Jo 1,8-10)? Esses hereges andam nas trevas; o seu caminho não é, decididamente, o caminho da vida autêntica. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Uma das questões que o nosso texto coloca é a da coerência de vida. No momento da nossa opção por Deus, dispusemo-nos a viver na luz e comprometemo-nos a acolher as indicações de Deus, seguindo os passos de Jesus; renunciámos a optar por caminhos de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de indiferença face a Deus e às suas propostas. No entanto, ao longo da viagem, o cansaço, a monotonia do caminho, o arrefecimento do entusiasmo, a desilusão, a acomodação, os apelos do mundo que nos rodeia, podem ter minado as nossas convicções e afetado a seriedade do nosso compromisso. Na minha vida procuro viver, com coerência e honestidade, os meus compromissos com Deus e com os meus irmãos, ou deixo-me levar ao sabor da corrente, das situações, das oportunidades?
  • Viver de forma coerente significa, também, reconhecer a fragilidade e a debilidade que são inerentes à nossa condição humana. Para o crente, o pecado não é algo “normal” (o pecado é sempre um “não” a Deus e às suas propostas e isso deve ser visto pelos crentes como uma “anormalidade”); mas é uma realidade que o crente reconhece e que sabe que está sempre presente ao longo da sua caminhada pela vida. O autor da Carta de João convida-nos a tomar consciência da nossa condição de pecadores, a acolher a salvação que Deus nos oferece, a confiar em Jesus, o “advogado” que nos entende (porque veio ao nosso encontro, partilhou a nossa natureza, experimentou a nossa fragilidade) e que nos defende. Reconhecer a nossa realidade pecadora não pode levar-nos ao desespero; tem de levar-nos a abrir o coração aos dons de Deus, a acolher humildemente a sua salvação e a caminhar com esperança ao encontro do Deus da bondade e da misericórdia que nos ama e que nos oferece, sem condições, a vida eterna. Reconheço a minha condição de pecador, que por vezes diz “não” a Deus e opta por caminhos de egoísmo e de autossuficiência? Estou disposto a aproximar-me novamente de Deus e a acolher as suas propostas?
  • A coerência que o autor da primeira Carta de João nos pede deve manifestar-se, também, na identificação entre a fé e a vida. A nossa fé não é uma bela teoria que caminha separada da vida concreta. Mentimos quando dizemos que amamos a Deus e depois, na vida concreta, abraçamos valores que contradizem de forma absoluta a lógica de Deus. Um crente que diz amar Deus e, no dia a dia, cria à sua volta injustiça, conflito, opressão, sofrimento, vive na mentira; um crente que diz “conhecer Deus” e fomenta uma lógica de guerra, de ódio, de intransigência, de intolerância, está bem distante de Deus; um crente que diz ter “a sua fé” e recusa o amor, a partilha, o serviço, a comunidade, está muito longe dos caminhos onde se revela a vida e a salvação de Deus; um crente que se preocupa em oferecer a Deus muitas rezas e solenes rituais litúrgicos, mas não se compadece dos filhos e filhas de Deus feridos e abandonados nas bermas da estrada da vida, não sabe nada de Deus. A minha vida concreta, as minhas atitudes para com os irmãos que me rodeiam, os sentimentos que enchem o meu coração, os valores que condicionam as minhas ações, são coerentes com a minha fé? in Dehonianos.

EVANGELHO – Lucas 24,35-48

Naquele tempo,
os discípulos de Emaús
contaram o que tinha acontecido no caminho
e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão.
Enquanto diziam isto,
Jesus apresentou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Espantados e cheios de medo, julgavam ver um espírito.
Disse-lhes Jesus:
«Porque estais perturbados
e porque se levantam esses pensamentos nos vossos corações?
Vede as minhas mãos e os meus pés: sou Eu mesmo;
tocai-Me e vede: um espírito não tem carne nem ossos,
Como vedes que Eu tenho».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e os pés.
E como eles, na sua alegria e admiração,
não queriam ainda acreditar, perguntou-lhes:
«Tendes aí alguma coisa para comer?»
Deram-Lhe uma posta de peixe assado,
que Ele tomou e começou a comer diante deles.
Depois disse-lhes:
«Foram estas as palavras que vos dirigi, quando ainda estava convosco:
‘Tem de se cumprir tudo o que está escrito a meu respeito
na Lei de Moisés, nos Profetas e nos Salmos’».
Abriu-lhes então o entendimento
para compreenderem as Escrituras
e disse-lhes:
«Assim está escrito que o Messias havia de sofrer
e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia,
e que havia de ser pregado em seu nome
o arrependimento e o perdão dos pecados
a todas as nações, começando por Jerusalém.
Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».

CONTEXTO

            O episódio que Lucas nos relata no Evangelho deste terceiro domingo do tempo pascal situa-nos em Jerusalém, pouco depois da ressurreição. Os onze discípulos estão reunidos; já conhecem uma aparição de Jesus a Pedro (cf. Lc 24,34), bem como o relato do encontro de Jesus ressuscitado com os discípulos de Emaús (cf. Lc 24,35). Mas é bem provável que, apesar das notícias que lhes chegaram nas últimas horas sobre as aparições de Jesus, se sintam com medo, confusos, perturbados e cheios de dúvidas. Afinal, a maior parte deles ainda não tinha feito a experiência do encontro pessoal com Jesus ressuscitado.

            O evangelista Lucas, nestes relatos pós-pascais, procura mostrar como os discípulos descobrem, progressivamente, Jesus vivo e ressuscitado. Não lhe interessa fazer uma descrição jornalística e fotográfica das aparições de Jesus aos discípulos, mas interessa-lhe, sobretudo, afirmar aos cristãos que Cristo continua vivo e presente, acompanhando a sua Igreja, e que os discípulos de todas as épocas, reunidos em comunidade, podem fazer uma experiência de encontro verdadeiro com Jesus ressuscitado. Estamos no âmbito da catequese, mais do que no âmbito da descrição pormenorizada de acontecimentos reais.

            De acordo com Lucas, os onze não estão sozinhos; com eles estão “outros companheiros” (Lc 24,33). Lucas estará a referir-se a nós? Estará a convidar-nos para nos reunirmos aos onze para fazermos, com eles, a experiência de encontro com Jesus ressuscitado?

            Para a sua catequese, Lucas vai utilizar diversas imagens que não devem ser tomadas à letra nem absolutizadas. Elas são, apenas, o invólucro que apresenta a mensagem. O que devemos procurar, neste texto, é algo que está para além dos pormenores, por muito reais que eles pareçam: é a catequese da comunidade cristã primitiva sobre a sua experiência de encontro com Jesus vivo e ressuscitado. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Jesus ressuscitou verdadeiramente, ou a ressurreição é fruto da imaginação dos discípulos? Como é possível ter a certeza da ressurreição? Como encontrar Jesus ressuscitado? Lucas diz-nos que nós, como os primeiros discípulos, temos de percorrer o nem sempre claro caminho da fé, até chegarmos à certeza da ressurreição. Não se chega lá através de deduções lógicas, de construções de carácter intelectual ou de teorias vagas e etéreas; mas chega-se à descoberta de Jesus ressuscitado quando se faz a experiência de um verdadeiro encontro com Ele e se sente a sua presença viva ao nosso lado. Essa experiência, essa descoberta, pode ter uma dimensão pessoal; mas acontece, de forma privilegiada, em âmbito comunitário. Jesus, vivo e ressuscitado, está sempre presente “no meio” da comunidade quando os irmãos se reúnem em seu nome; é a referência fundamental desse grupo de irmãos e de irmãs que é a nossa comunidade cristã. Ele manifesta-se no encontro comunitário, no diálogo com os irmãos que partilham a mesma fé, na escuta comunitária da Palavra de Deus, no amor partilhado em gestos de fraternidade e de serviço. O que é que isto me diz? Tenho feito esta experiência da presença de Jesus, ressuscitado e cheio de vida, no caminho que vou percorrendo? Como é que a minha comunidade cristã me tem ajudado a fazer esta experiência?
  • A catequese de Lucas põe Jesus ressuscitado no meio dos discípulos, como centro vital da comunidade. Os discípulos estão reunidos à volta de Jesus pois Ele é, para eles, a referência fundamental, a fonte de Vida onde todos vão beber. Qual é o centro vital, a referência fundamental nas nossas comunidades cristãs? Estamos todos voltados para Jesus, ou andamos distraídos com outras pessoas, outras figuras, outros temas, outros interesses, outras prioridades, outros valores?
  • O “documento” que Jesus apresenta para que os discípulos o identifiquem é as mãos e os pés marcados pelos sinais da crucificação. Aquelas feridas são o sinal da sua entrega e da sua vida dada em favor dos seus irmãos. Naquelas marcas está o ser profundo de Jesus, aquilo que o identifica. A nós, discípulos de Jesus, o que é que nos identifica? A verdade profunda da nossa vida está na forma como servimos, como cuidamos, como perdoamos, como praticamos o amor que Jesus nos ensinou? Reconhecemos os sinais de Jesus ressuscitado nos gestos de amor e de bondade que vemos acontecer à nossa volta, mesmo quando são praticados por pessoas que não pertencem à comunidade cristã?
  • Jesus ressuscitado abriu aos discípulos “o entendimento para compreenderem as Escrituras”. Quando a comunidade se reúne para escutar a Palavra, Ele está presente e fala-nos; através da Palavra, Ele oferece-nos a Boa Notícia de Deus, questiona-nos sobre as nossas opções, aponta-nos caminhos, deixa-nos desafios, abre-nos horizontes novos… Não sentimos, tantas vezes, a presença de Cristo a indicar-nos caminhos de Vida nova e a encher o nosso coração de esperança quando escutamos, lemos e meditamos a Palavra de Deus?
  • Na presença dos discípulos, Jesus tomou uma posta de peixe assado e “começou a comer diante deles”. O catequista Lucas pretende que este gesto seja, para os discípulos, uma “prova de vida”: Ele não é um fantasma, mas esse mesmo Jesus que tantas vezes se tinha sentado com os discípulos à mesa para aquelas refeições inolvidáveis que anunciavam e antecipavam o Reino de Deus. Mas podemos também ver neste gesto uma indicação de que o Ressuscitado continuará, pelo tempo fora, a “sentar-se à mesa” com os seus discípulos, a estabelecer laços com eles, a partilhar as suas inquietações, anseios, dificuldades e esperanças, sempre solidário com os seus. Não sentimos a presença viva de Jesus, de forma especial, quando nos sentamos com Ele à mesa da eucaristia?
  • Jesus deixa aos discípulos a missão de serem “testemunhas de todas estas coisas” junto de “todos os povos, começando por Jerusalém”. A comunidade de Jesus é precisamente isto: uma comunidade de testemunhas. Isto significa, apenas, que os cristãos devem ir contar a todos os homens, com lindas palavras, com raciocínios lógicos e inatacáveis que Jesus ressuscitou e está vivo? O testemunho que Cristo nos pede passa pelo nosso estilo de vida, pelos nossos valores, pela forma como amamos e servimos, pela forma como vemos o mundo. A minha vida, os meus gestos, os meus valores dão testemunho de que Jesus está vivo e a dar Vida ao mundo? A minha vida é, como foi a de Jesus, uma luta contra o egoísmo, a maldade, a violência, o pecado? A minha vida é, como foi a de Jesus, uma luta pela justiça, pela verdade, pela dignidade dos meus irmãos, especialmente dos mais frágeis e desprezados? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é constituída por um discurso em que Pedro proclama a ressurreição e acusa os que o ouvem de terem agido por ignorância no processo da condenação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom alegre e jubiloso da proclamação da ressurreição e ter um especial cuidado para evitar um severo tom acusativo e condenatório.

            A brevidade da segunda leitura não deve permitir descurar a sua preparação e requer sobretudo uma acurada preparação das pausas e respirações, sobretudo na articulação entre as diversas frases que iniciam com a conjugação adversativa, «mas» ou copulativa «e».

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

JESUS: SURPRESA PERMANENTE

            É-nos dada hoje, Domingo III da Páscoa, a graça de escutar a página sublime do Evangelho de Lucas 24,35-48, em que Jesus Ressuscitado se faz ver aos seus discípulos reunidos, que não são apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), dissipa as suas dúvidas e os seus medos, e lhes indica o sentido da Escritura, enquanto abre diante dos seus olhos o sentido obrigatório da missão. Podem assaltar-nos questões como estas: a) o que terá acontecido àqueles discípulos depois da morte de Jesus?; b) como chegaram ao ponto de afirmar a sua ressurreição?; c) terão sido vítimas de alguma desmedida ilusão?; d) autoconvenceram-se de que a obra de Jesus não podia terminar com aquela morte?; e) é a partir de si mesmos que chegam à fé na ressurreição, e que começam a anunciar convictamente que Jesus está vivo? A página do Evangelho de hoje ajuda-nos a compreender melhor os acontecimentos.

            Ainda os dois discípulos de Emaús faziam exegese demorada (exegoûnto: impf. de exêgéomai) das coisas acontecidas no caminho e de como Jesus se deu a conhecer (egnôsthê: aor. pass. de ginôskô) a eles (autoîs), dativo do beneficiário, no partir do pão (en tê klásei toû ártou) (Lucas 24,35), quando o próprio Ressuscitado irrompeu e ficou de pé no MEIO deles (o lugar da presidência), e saudou-os, dizendo: «A Paz convosco!» (Lucas 24,36). O leitor estaria à espera de uma receção apoteótica, do rebentamento de recalcadas emoções, de incontidos gritos de júbilo e de alegria. E, em vez disso, assistimos ao extravasar de medos, perturbação e dúvidas, pois o que pensavam estar a ver diante deles, no MEIO deles, era um espírito, um fantasma! (Lucas 24,37 e 39).

            Esta reação é importante, e manifesta que estes discípulos de Jesus, após aquela morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam dele (Lucas 24,21). Qualquer novo início só poderia vir de fora, só poderia vir de Deus. Naqueles discípulos não se vislumbrava nenhuma réstia de esperança, nenhuma acha ainda fumegava. Tudo cinza do mais cinzento que há. É a maneira de a Bíblia inteira realçar a intervenção de Deus. Deus não intervém como consequência de um pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou projeções mais insistentes. É sempre pura iniciativa sua, do nosso lado impensável, imprevisível e incontrolável. Ao mostrar as coisas desta maneira, a Bíblia, toda a Bíblia, antecipa-se em muitos séculos aos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud) e dissolve avant la lettre a sua denúncia de um Deus produzido ou projetado pelos nossos anseios e desejos. É, portanto, de assinalar que estes discípulos de Jesus deem o “dossier Jesus”, que os encantou, por encerrado, e comecem às apalpadelas a planear à sua maneira o “pós-Jesus”, mais ou menos como nós vamos estudando e planeando agora o pós-pandemia. Como se Jesus não estivesse aqui, no MEIO de nós! E como se não houvesse mais nenhuma surpresa para engolir! Não nos esqueçamos da verdade escondida aos olhos dos dois discípulos de Emaús: «Tu és o único que não sabe as coisas que aconteceram em Jerusalém nestes dias?» (Lucas 24,18). Sim, Ele é o único que não sabe aquelas coisas, estas coisas, como nós as sabemos!

            É assim que Jesus vem sem ser esperado e sem se fazer anunciar. E porque não era possível, da nossa parte, acreditar que fosse Ele, Ele tem mesmo de se identificar, coisa estranha. Para o fazer, não exibe, porém, qualquer fotografia ou documento. Mostra as mãos e os pés (Lucas 24,39-40), como em João 20,20 e 27 mostra as mãos e o lado, que levam a reconhecer o Ressuscitado como o Crucificado, sendo as mãos e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada. Note-se uma vez mais que não é pelo rosto que identificamos Jesus Ressuscitado. Senão aqueles discípulos, que com Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora. É a sua maneira de ser que diz Quem Ele é. E a sua maneira de ser é dar a vida. Maneira de ser e de estar connosco. No meio de nós (Lucas 24,36) e à nossa frente (Lucas 24,43), presidindo-nos e precedendo-nos e surpreendendo-nos.

            Sintomático que aqueles discípulos, vendo o que veem, nada digam. Permanecem mudos. Eles que antes estavam cheios de palavras… Mas Jesus continua a ser, é sempre, não o simples orador à maneira dos escribas, mas Aquele que fala com autoridade (Marcos 1,22). Ele é a Palavra criadora de mundos novos e de corações novos (João 1,3). Quando Ele surge, um mundo novo começa a acontecer. Dentro e fora de nós. E como é que podemos falar se ainda estamos a nascer?! Portanto, Ele fala (laléô): «É necessário (deî) que se cumpram todas as coisas escritas (gegramména) na Lei de Moisés e nos Profetas e nos Salmos acerca de mim (perì emoû). […] Assim foi escrito (gégraptai) que o Cristo havia de sofrer (1) e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia (2) e de ser anunciada (kêrýssô) (3) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações» (Lucas 24,44-47). E acrescenta com autoridade: «Vós sois testemunhas (mártyres) destas coisas» (Lucas 24,48).

            A partir deste luminoso falar revelatório (laléô) de Jesus fica claro, para nós, que a Missão do anúncio do Evangelho não é facultativa, mas insere-se na necessidade do plano de Deus, ao mesmo nível da morte e da ressurreição de Jesus. De forma clara, o cristão é batizado na morte de Cristo e vive a vida nova da Ressurreição de Cristo, mas tem de viver também do/e para o anúncio do Evangelho. É este o único lugar do Novo Testamento que guarda esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus (1), ressurreição de Jesus (2), anúncio do Evangelho a todas as nações (3). Nos outros lugares do Novo Testamento, esta necessidade afeta apenas as duas primeiras realidades.

            Esta necessidade teológica fica registada no uso do verbo grego deî e das coisas para sempre escritas em todas as Escrituras. O para sempre escritas fica gravado no uso dos dois perfeitos (gegramména e gégraptai, respetivamente particípio perfeito passivo e perfeito passivo do verbo gráphô). Se o uso do perfeito indica o «para sempre», o uso da forma passiva aponta para Deus, tratando-se, como é usual classificar-se, de um passivo divino ou teológico.

            Importa ainda precisar que este necessário anúncio do Evangelho não afeta apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), entenda-se, todos os discípulos de Jesus, pois é perante todos [«os Onze e os outros com eles»] – não há mudança de cenário – que Jesus pronuncia o luminoso falar revelatório de Lucas 24,44-47. Sem equívocos então: esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de todos os tempos. Fica ainda claro que o anúncio (kêrygma) do Evangelho não decorre por conta e risco do anunciador (kêryx), que não o faz em seu próprio nome; antes, apresenta-se sempre vinculado a Jesus Cristo, pois o anúncio é feito «em seu nome» (Lucas 24,47), é Ele que envia o anunciador. E este anúncio do Evangelho não fica circunscrito a um horizonte limitado, paroquial, diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são «todas as nações» (Lucas 24,47), «todos os lugares», todos os corações.

            Bem se vê que é, neste ponto preciso e nesta necessidade, que S. Paulo, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (S. Paulo VI), enxerta a sua vida e se entende a si mesmo, pois confessa: «Evangelizar não é para mim um título de glória, mas uma necessidade que se me impõe desde fora (epíkeitai). Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Coríntios 9,16).

            Impõe-se ainda uma anotação sobre aquela importante afirmação final de Jesus, que nos designa como testemunhas (mártyres). É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. No mundo de hoje, tal como o conhecemos, falar de testemunhas é falar de alguém que, tendo presenciado um acidente ou um crime, se compromete depois, no tribunal, a apresentar o seu ponto de vista sobre o sucedido. Alguém, portanto, que é chamado a comprometer-se com uma história que não é a dele. Para evitar chatices, acabamos muitas vezes por dizer logo à partida que não vimos nada. Mas, aqui, é Jesus que nos designa como testemunhas. Convenhamos que esta designação dos cristãos como testemunhas não tem sido nem é habitual. A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Jesus Cristo. Aquando da necessária substituição de Judas no colégio apostólico, Pedro traça assim os requisitos necessários que devem presidir à escolha do novo membro que venha a entrar no grupo dos Doze: «É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor Jesus, tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que Ele foi arrebatado (anelêmphthê) diante de nós, um destes se torne connosco testemunha (mártys) da sua Ressurreição» (Atos 1,21-22). Somos, portanto, chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa, para a transmitir aos outros, não com discursos inflamados ou esgotados, mas com a vida! Sim, aquela história e aquela vida são a nossa história e a nossa vida. Aí está o estilo da testemunha e do evangelizador.

            Aí está, então, o importante acerto com a narrativa do Livro dos Atos dos Apóstolos (3,13-19), que nos mostra Pedro no papel de testemunha (mártys) (v. 15) envolvendo-se e envolvendo outros na história «deste Jesus, que vós entregastes» (v. 13), «mas que Deus ressuscitou dos mortos» (v. 15). E a Primeira Carta de S. João (1,1-5) mostra-nos Jesus Cristo como nosso Advogado (paráklêtos) e vítima de expiação (hilasmós) pelos pecados de todos.

            O canto sereno, à serena luz da vela, do Salmo 4, que é um canto noturno, enche-nos de paz e de confiança e ensina-nos a viver serenamente, dia e noite, na companhia daquele Deus que se envolveu e envolve na nossa história e na nossa vida, realizando prodígios e reduzindo a fumo os ídolos e as insensatas e orgulhosas manobras humanas. O poeta francês Paul Claudel, que muitas vezes passeava pela Bíblia, parafraseou assim: «Há em mim esta paz que me leva ao sono. Há em mim este tesouro da esperança que me deste».

Senhor Jesus,/ há tanta gente que Te procura à pressa e Te quer ver./ Mas quando dizem que Te querem ver,/ não é para Te conhecer./ É o teu rosto, a cor dos teus olhos e cabelos,/ a tez da tua pele, a tua forma de vestir que os atrai e contagia./ Querem ver-te como se fosse numa fotografia.//

Mas Tu, Senhor Jesus Ressuscitado,/ quando Te dás a conhecer a nós,/ não mostras o rosto,/ uma fotografia,/ o cartão de cidadão./ Se fosse assim,/ mal seria que os teus amigos Te não reconhecessem.//

E o facto é que,/ quando surges no meio deles,/ não Te reconhecem./ E em vez do rosto,/ são, afinal, as mãos e o lado,/ ou as mãos e os pés que apresentas./ Entenda-se: é a tua maneira de viver que nos queres fazer ver./ Na verdade, a tua identidade é dar a vida,/ é dar a mão e o coração./ É essa a tua lição,/ a tua paixão,/ a tua ressurreição.//

Senhor, dá-nos sempre desse pão!//

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 (Act 3, 13-15.17-19)
  2. Leitura II do Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 (1 Jo 2, 1-5a)
  3. Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo III do Tempo da Páscoa – Ano B – 14.04.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem Papa Francisco para o LXI Dia Mundial de Oração pelas Vocações – 21.04.2024
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II da Páscoa – Ano B – 07.04.2024

 

Viver a Palavra

            O Evangelho deste Domingo situa-se: «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Os discípulos estavam reunidos com medo dos judeus, mas Jesus coloca-se no meio deles e saúda-os com a Sua Paz, mostra-lhes as marcas da Paixão e concede-lhes o dom do Espírito Santo para que eles sejam sinal de reconciliação e de paz junto daqueles a quem são enviados.

Mas Tomé, aquele a quem chamavam Dídimo, não estava com o grupo neste momento e, tendo regressado, afirma que só acreditará se vir com os seus próprios olhos e tocar com as suas mãos. Por isso, Jesus volta a aparecer aos Seus discípulos e o Evangelho indica que tudo isto aconteceu «oito dias depois».

As indicações temporais que o Evangelho nos apresenta não são apenas as anotações jornalísticas para situar a ação descrita. Nestas indicações temporais encontramos o ritmo da vida da Igreja: «o primeiro da semana» e «oito dias depois». Este é o ritmo da assembleia cristã que hebdomadariamente, isto é, semanalmente, se reúne, Domingo após Domingo, para celebrar a sua fé e proclamar a certeza de que o Ressuscitado acompanha a Sua Igreja, oferecendo-lhe a Sua Paz e concedendo-lhe o dom do Espírito.

Por isso, cada Domingo é o Dia do Senhor, dia de festa e de alegria, onde a comunidade cristã reunida à volta da mesa do altar, escutando a Palavra do Senhor e partilhando o Seu pão, renova a certeza desse amor maior que se faz entrega total e plena na Cruz. Ninguém está dispensado desta reunião festiva dos filhos de Deus. A aventura da Fé não é uma aventura isolada à qual nos propomos sozinhos. Como Tomé, quando nos afastamos da comunidade, o desafio de acreditar torna-se mais difícil e exigente. Aquele que se afasta da comunidade afasta-se da experiência comunitária de Jesus, do lugar privilegiado onde Deus se revela e manifesta como Rosto da misericórdia do Pai.

O Evangelho apresenta Tomé como Dídimo, isto é, gémeo. Na verdade, Tomé não está sozinho. Também nós duvidamos, vacilamos e titubeamos, sobretudo quando nos propomos a caminhar sozinhos, quando nos afastamos da comunidade ou quando ferimos a comunhão e unidade pelas divisões e discórdias que nos afastam dos outros e que afastam os outros. O melhor testemunho que a Igreja pode oferecer ao mundo é a sua comunhão e unidade, com comunidades acolhedoras, geradoras de relações fraternas, para que guiadas e iluminadas pelo Espírito Santo se tornem lugares da Paz que só o Ressuscitado e o Seu infinito amor podem oferecer e garantir.

«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». O Ressuscitado identifica-se diante dos discípulos mostrando-lhes «as mãos e o lado». As marcas da paixão identificam Jesus e revelam que o Ressuscitado é Aquele que oferece a Sua vida por nós. Mas também hoje, Jesus continua a revelar as marcas da Sua paixão e do Seu sofrimento nas chagas dolorosas dos que se cruzam connosco. Confessar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado é viver atento ao sofrimento dos irmãos e procurar responder com gestos concretos de proximidade e misericórdia.

Somos discípulos missionários. Somos enviados ao jeito de Jesus, para que as nossas vidas se tornem feliz anúncio da misericórdia de Deus. Não basta sermos crentes, precisamos ser credíveis, proclamando com a vida aquilo que os nossos lábios professam.in Voz Portucalense (adaptado)

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No ano 2000, o Papa S. João Paulo II canonizou Santa Faustina e declarou que daquele dia em diante, o segundo Domingo da Páscoa seria também designado como Domingo da Misericórdia. Além disso, S. João Paulo II «estabeleceu que o citado Domingo seja enriquecido com a Indulgência Plenária, para que os fiéis possam receber mais amplamente o dom do conforto do Espírito Santo e desta forma alimentar uma caridade crescente para com Deus e o próximo e, obtendo eles mesmos o perdão de Deus, sejam por sua vez induzidos a perdoar imediatamente aos irmãos» (Decreto da Penitenciaria Apostólica, 2002). Que este momento peculiar da história que estamos a atravessar nos estimule a recordar a misericórdia infinita do Pai, revelada em Jesus Cristo na força do Espírito Santo. Neste Domingo da Misericórdia aliada à prática das diversas devoções deixadas por Santa Faustina como o Terço da Misericórdia, poderá ser oportuna a meditação em família de uma das Parábolas da Misericórdia. Além disso, podemos usar as redes sociais e os nossos meios de comunicação à distância para agradecer àqueles que são para nós sinal próximo da misericórdia de Deus. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 4,32-35

A multidão dos que haviam abraçado a fé
tinha um só coração e uma só alma;
ninguém chamava seu ao que lhe pertencia,
mas tudo entre eles era comum.
Os Apóstolos davam testemunho da ressurreição do Senhor Jesus
com grande poder
e gozavam todos de grande simpatia.
Não havia entre eles qualquer necessitado,
porque todos os que possuíam terras ou casas
vendiam-nas e traziam o produto das vendas,
que depunham aos pés dos Apóstolos.
Distribuía-se então a cada um conforme a sua necessidade.

CONTEXTO

O livro dos Atos dos Apóstolos, logo depois da introdução inicial (cf. At 1,1-11), oferece-nos um conjunto de histórias sobre a comunidade cristã de Jerusalém (cf. At 1,12-6,7). Mas o objetivo primordial de Lucas, o autor dos Atos, não é fornecer-nos um relato real e pormenorizado dos primeiros dias do cristianismo, após a ascensão de Jesus ao céu; o que ele pretende é propor-nos uma catequese sobre a forma como a Igreja de Jesus se deve estruturar e apresentar ao mundo. A comunidade cristã de Jerusalém é, de certo modo, a mãe e o modelo de todas as Igrejas. Lucas, ao falar dela, vai idealizá-la e “embelezá-la”, a fim de que ela funcione como exemplo para todas as Igrejas que depois irão surgir.

Nesses capítulos dedicados à apresentação da Igreja de Jerusalém Lucas insere, a certa altura, três breves sumários que põem em relevo dimensões particularmente importantes da vida eclesial. No primeiro desses sumários sublinha-se especialmente a unidade, a fidelidade à oração e ao ensino dos apóstolos, o espírito fraterno e o testemunho que a comunidade dava aos habitantes de Jerusalém (cf. At 2,42-47); no segundo (e que é exatamente o texto que nos é proposto como primeira leitura neste segundo domingo do tempo pascal) a ênfase é posta na partilha dos bens e na solidariedade dos membros da comunidade (cf. At 4,32-35); no terceiro, realça-se a atividade curadora dos apóstolos, que despertava o interesse da cidade e atraía novos membros à comunidade (cf. At 5,12-16).

Para entendermos todo o alcance da reflexão de Lucas precisamos de ter em conta a situação das comunidades cristãs no final da década de 80 do primeiro século. O entusiasmo inicial dos cristãos estava um tanto diluído: Jesus ainda não tinha vindo para instaurar definitivamente o “Reino de Deus” e, em contrapartida, posicionavam-se no horizonte próximo as primeiras grandes perseguições. Muitos dos crentes tinham-se instalado numa fé “morna” e inconsequente. Havia desleixo, falta de entusiasmo, acomodação, divisão, conflitos e confusão (até porque começavam a aparecer falsos mestres, com doutrinas estranhas e pouco cristãs). Neste contexto, Lucas recorda o essencial da experiência cristã e traça o quadro daquilo que a comunidade deve ser e testemunhar.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A comunidade cristã é uma “multidão” que abraçou a mesma fé – quer dizer, que aderiu a Jesus, aos seus valores, à sua proposta. A Igreja não é um grupo unido por uma ideologia, ou por uma mesma visão do mundo, ou pela simpatia pessoal dos seus membros; mas é uma comunidade que reúne pessoas de diferentes raças e culturas à volta de Jesus e do seu projeto de vida. Que lugar e que papel Jesus e as suas propostas ocupam na minha vida pessoal? Jesus é uma referência distante e pouco real, ou é uma presença constante que me questiona e que me aponta caminhos? Que lugar ocupa Jesus na vida e na programação da minha comunidade cristã? Ele é o centro, a referência a partir da qual se articula a liturgia, a vida sacramental, a catequese, a caridade da comunidade cristã onde eu faço a minha caminhada de fé?
  • A comunidade cristã é uma família unida, onde os irmãos têm “um só coração e uma só alma”. Tal facto resulta da adesão a Jesus: seria um absurdo aderir a Jesus e ao seu projeto e, depois, conduzir a vida de acordo com mecanismos de divisão, de fechamento, de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência… A minha comunidade cristã é uma comunidade de irmãos que vivem no amor, ou é um grupo de pessoas isoladas, em que cada um procura defender os seus interesses, mesmo que para isso tenha de magoar e de espezinhar os outros? No que me diz respeito, esforço-me por amar todos, por respeitar a liberdade e a dignidade de todos, por potenciar os contributos e as qualidades de todos?
  • A comunidade cristã é uma comunidade de partilha. No centro dessa comunidade está o Cristo do amor, da partilha, do serviço, do dom da vida… O cristão não pode, portanto, viver fechado no seu egoísmo, indiferente à sorte dos outros irmãos. Em concreto, o nosso texto fala na partilha dos bens… Uma comunidade onde alguns esbanjam os bens e onde outros não têm o suficiente para viver dignamente, será uma comunidade que testemunha, diante dos homens, esse mundo novo de amor que Jesus veio propor? Será cristão aquele que, embora indo à igreja, só pensa em acumular bens materiais, recusando-se a escutar os dramas e sofrimentos dos irmãos mais pobres? Será cristão aquele que, embora contribuindo com donativos para as necessidades da paróquia, comete injustiças ou explora os seus servidores?
  • A comunidade cristã é uma comunidade que testemunha o Senhor ressuscitado. Como? Através de teorias bem elaboradas ou de discursos teológicos bem construídos, mas que passam ao lado da vida e dos problemas dos homens? Através de rituais solenes e majestosos, mas estéreis e vazios? O testemunho mais impressionante e mais convincente será sempre o testemunho de vida dos discípulos de Jesus… Se conseguirmos criar verdadeiras comunidades fraternas, que vivam no amor e na partilha, que sejam sinais no mundo dessa vida nova que Jesus veio propor, estaremos a anunciar que Jesus está vivo, que está a atuar em nós e que, através de nós, continua a apresentar ao mundo uma proposta de vida verdadeira. As nossas comunidades cristãs são lugares onde se sente pulsar, ao vivo e a cores, a Vida nova de Jesus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

Refrão 2: Aclamai o senhor, porque Ele é bom:
o seu amor é para sempre.

Refrão 3:  Aleluia.

Diga a casa de Israel:
é eterna a sua misericórdia.
Diga a casa de Aarão:
é eterna a sua misericórdia.
Digam os que temem o Senhor:
é eterna a sua misericórdia.

A mão do Senhor fez prodígios,
A mão do Senhor foi magnífica.
Não morrerei, mas hei de viver,
para anunciar as obras do Senhor.
Com dureza me castigou o Senhor,
mas não me deixou morrer.

A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.
Este é o dia que o Senhor fez:
exultemos e cantemos de alegria.

LEITURA II – 1 João 5,1-6

Caríssimos:
Quem acredita que Jesus é o Messias,
nasceu de Deus,
e quem ama Aquele que gerou
ama também Aquele que nasceu d’Ele.
Nós sabemos que amamos os filhos de Deus
quando amamos a Deus e cumprimos os seus mandamentos,
porque o amor de Deus
consiste em guardar os seus mandamentos.
E os seus mandamentos não são pesados,
porque todo o que nasceu de Deus vence o mundo.
Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé.
Quem é o vencedor do mundo
senão aquele que acredita que Jesus é o Filho de Deus?
Este é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo;
não só com a água, mas com a água e o sangue.
É o Espírito que dá testemunho,
porque o Espírito é a verdade.

CONTEXTO

A opinião tradicional atribuía a autoria da primeira Carta de João (como também a segunda e a terceira) ao apóstolo João, irmão de Tiago; no entanto, essa hipótese foi praticamente descartada pelos biblistas. Discute-se se o seu autor será o mesmo autor do Quarto Evangelho, atendendo à semelhança de vocabulário, de estilo e de doutrina entre os dois documentos; mas nem isso é consensual. Há ainda quem se questione se o autor desta carta (e das outras: a segunda e a terceira) não será um tal “João, o Presbítero” (cf. 2 Jo 1,1; 3 Jo 1,1), conhecido da tradição primitiva e que, aparentemente, era uma personagem distinta do “João, o apóstolo”. Seja como for, o autor da primeira Carta de João é alguém que pertence ao mundo joânico e que conhece bem a teologia joânica.

Também não há, na primeira Carta de João, qualquer referência a um destinatário (pessoa ou comunidade) concreto. A missiva parece dirigir-se a um grupo de igrejas ameaçadas pelo mesmo problema: as heresias. Trata-se, provavelmente, de igrejas da Ásia Menor (à volta de Éfeso), onde estão a ser difundidas doutrinas incompatíveis com a revelação cristã, que ameaçam comprometer a pureza da fé.

Quem são os autores dessas doutrinas heréticas? O autor da Carta chama-lhes “anticristos” (1 Jo 2,18.22; 4,3), “profetas da mentira” (1 Jo 4,1), “mentirosos” (1 Jo 2,22). Diz que eles “são do mundo” (1 Jo 4,5) e deixam-se levar pelo espírito do erro (1 Jo 4,6). Até há pouco tempo pertenciam à comunidade cristã (1 Jo 2,19); mas agora saíram e procuram desencaminhar os crentes que permaneceram fiéis (cf. 1 Jo 2,26; 3,7). Muito provavelmente são pessoas ligadas a grupos pré-gnósticos, cujas ideias começavam a circular, no final do séc. I, e a causar confusão e divisão nas comunidades joânicas. Estes “profetas da mentira” pretendiam “conhecer Deus” (1 Jo 2,4) e viver em comunhão com Deus (1 Jo 2,3); mas apresentavam uma doutrina e uma conduta em flagrante contradição com a revelação cristã. Recusavam-se a ver em Jesus o Messias (cf. 1 Jo 2,22) e o Filho de Deus (cf. 1 Jo 4,15), recusavam a encarnação (cf. 1 Jo 4,2) e ensinavam que o Cristo celeste tinha-Se apropriado do homem Jesus de Nazaré na altura do Batismo (cf. Jo 1,32-33), tinha-o utilizado para levar a cabo a revelação e tinha-o abandonado antes da paixão, porque o Cristo celeste não podia padecer. O comportamento moral destes hereges não era menos repreensível: pretendiam não ter pecados (cf. 1 Jo 1,8.10) e não guardavam os mandamentos (cf. 1 Jo 2,4), em particular o mandamento do amor fraterno (cf. 1 Jo 2,9).

O autor da Primeira Carta de João adverte os cristãos contra as pretensões destes pregadores heréticos e explica-lhes os critérios da vida cristã autêntica.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Amar a Deus significa cumprir os seus mandamentos – diz-nos o autor da primeira Carta de João. O amor a Deus não se diz em belas declarações, em palavras cheias de elevação, em solenes afirmações de princípios; diz-se, muito simplesmente, acolhendo as indicações de Deus e pautando por elas o nosso caminho de vida. Amamos a Deus quando o vemos como um Pai que nos ama e que só quer o nosso bem; amamos a Deus quando o levamos tão a sério que estamos dispostos a fazer a sua vontade, mesmo que isso afete os nossos projetos; amamos a Deus quando tudo o que vem dEle “conta” para nós; amamos a Deus quando caminhamos confiantes no caminho que Ele nos aponta, certos de que chegaremos a um porto seguro e feliz. É desta forma que eu amo a Deus?
  • De acordo com o autor da primeira Carta de João, amar a Deus implica amar também Jesus, o Filho de Deus. Também neste caso o nosso amor expressa-se mais em atitudes do que em palavras. Amamos a Jesus quando respondemos ao seu convite, tornamo-nos seus discípulos, acolhemos a sua Palavra, seguimo-Lo incondicionalmente no caminho do amor, do serviço, do dom da vida; amamos a Jesus quando, como Ele, lutamos contra tudo aquilo que suja o mundo e destrói a vida. É desta forma que eu amo Jesus?
  • Amar a Deus e aderir a Jesus implica amar os irmãos. Quem não ama os irmãos, não cumpre os mandamentos de Deus e não segue Jesus. Como Jesus, somos chamados a testemunhar o amor de Deus a todos os que caminham ao nosso lado, especialmente aos mais pobres, aos mais humildes, aos mais frágeis, aos que a sociedade e a religião condenam, aos que os senhores do mundo e da história humilham e desvalorizam. O amor total e sem fronteiras, o amor que nos leva a oferecer integralmente a nossa vida aos irmãos, o amor que se revela nos gestos simples de serviço, de perdão, de solidariedade, de doação, de atenção, de cuidado, está no nosso programa de vida?
  • Quem nasce de Deus e confia em Deus, quem acredita em Jesus e O segue – diz o autor da primeira Carta de João – “vence o mundo”. Os cristãos não se conformam com a lógica de egoísmo, de ódio, de injustiça, de violência que governa o mundo; a esta lógica, eles contrapõem a lógica do amor, a lógica de Jesus. O amor é um dinamismo que vence tudo aquilo que oprime o homem e que o impede de chegar à vida verdadeira e definitiva, à felicidade total. Ainda que o amor pareça, por vezes, significar fragilidade, debilidade, fracasso, frente à violência dos poderosos e dos senhores do mundo, a verdade é que o amor terá sempre a última e definitiva palavra. Só ele assegura a vida verdadeira e eterna, só ele é caminho para o mundo novo e melhor com que os homens sonham. Conformo-me com o mundo e os seus valores efémeros, ou sou dos que têm a ousadia de dar testemunho dos valores de Deus e de Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 20,19-31

Na tarde daquele dia, o primeiro da semana,
estando fechadas as portas da casa
onde os discípulos se encontravam,
com medo dos judeus,
veio Jesus, colocou-Se no meio deles e disse-lhes:
«A paz esteja convosco».
Dito isto, mostrou-lhes as mãos e o lado.
Os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem o Senhor.
Jesus disse-lhes de novo:
«A paz esteja convosco.
Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Dito isto, soprou sobre eles e disse-lhes:
«Recebei o Espírito Santo:
àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhe-ão perdoados;
e àqueles a quem os retiverdes serão retidos».
Tomé, um dos Doze, chamado Dídimo,
não estava com eles quando veio Jesus.
Disseram-lhe os outros discípulos:
«Vimos o Senhor».
Mas ele respondeu-lhes:
«Se não vir nas suas mãos o sinal dos cravos,
se não meter o dedo no lugar dos cravos e a mão no seu lado,
não acreditarei».
Oito dias depois,
estavam os discípulos outra vez em casa,
e Tomé com eles.
Veio Jesus, estando as portas fechadas,
apresentou-Se no meio deles e disse:
«A paz esteja convosco».
Depois disse a Tomé:
«Põe aqui o teu dedo e vê as minhas mãos;
aproxima a tua mão e mete-a no meu lado;
e não sejas incrédulo, mas crente».
Tomé respondeu-Lhe:
«Meu Senhor e meu Deus!»
Disse-lhe Jesus:
«Porque Me viste acreditaste:
felizes os que acreditam sem terem visto».
Muitos outros milagres fez Jesus na presença dos seus discípulos,
que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram escritos
para acreditardes que Jesus é o Messias, o Filho de Deus,
e para que, acreditando, tenhais a vida em seu nome.

CONTEXTO

Jesus foi crucificado na manhã de uma sexta-feira – dia da “preparação” da Páscoa – e morreu pelas três horas da tarde desse dia. Já depois de morto, um soldado trespassou-lhe o coração com uma lança; e do coração aberto de Jesus saiu sangue e água (cf. Jo 19,31-37). O evangelista João vê no sangue que sai do lado aberto de Jesus o sinal do seu amor dado até ao extremo (cf. Jo 13,1): do amor do pastor que dá a vida pelas suas ovelhas (cf. Jo 10,11), do amor do amigo que dá a vida pelos seus amigos (cf. Jo 15,13); e vê na água que sai do coração trespassado de Jesus o sinal do Espírito (cf. Jo 3,5), desse Espírito que Jesus “entregou” aos seus e que é fonte de Vida nova. Da água e do sangue, do batismo e da eucaristia, nascerá a nova comunidade, a comunidade da Nova Aliança. Contudo, os discípulos que tinham subido com Jesus a Jerusalém e que seriam o embrião dessa comunidade da Nova Aliança, desapareceram sem deixar rasto. Estão escondidos, algures na cidade de Jerusalém, paralisados pelo medo. O projeto de Jesus falhou?

No final da tarde dessa sexta-feira, o corpo morto de Jesus foi sepultado à pressa num túmulo novo, situado num horto ao lado do lugar onde se tinha dado a crucificação (cf. Jo 19,38-42). Depois veio o sábado, o último dia da semana, o dia da celebração da Páscoa judaica. Durante todo aquele sábado o túmulo de Jesus continuou cerrado.

A partir daqui a narração de João muda de tempo e de registo. Chegamos ao “primeiro dia da semana”. É o primeiro dia de um tempo novo, o tempo da humanidade nova, nascida da ação criadora e vivificadora de Jesus. “No primeiro dia da semana”, Maria Madalena, a mulher que representa a nova comunidade, vai ao túmulo e vem de lá confusa e desorientada porque o túmulo está vazio (cf. Jo 20,1-2). Logo depois, ainda “no primeiro dia da semana”, Pedro e outro discípulo correm ao túmulo e constatam aquilo que Maria Madalena tinha afirmado: Jesus já não está encerrado no domínio da morte (cf. Jo 20,3-10). A comunidade de Jesus começa a despertar do seu letargo; começa a viver um tempo novo. “Ao entardecer do primeiro dia da semana” (“ou seja, ao concluir-se este primeiro dia da nova criação) a comunidade dos discípulos faz a experiência do encontro com Jesus, vivo e ressuscitado (cf. Jo 20,19-29).in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Nos relatos pascais aparece sempre, em pano de fundo, a convicção profunda de que a comunidade dos discípulos nunca estará sozinha, abandonada à sua sorte: Jesus ressuscitado, Aquele que venceu a morte, a injustiça, o egoísmo, o pecado, acompanhá-la-á em cada passo do seu caminho histórico. É verdade que os discípulos de Jesus não vivem num mundo à parte, onde a fragilidade e a debilidade dos humanos não os tocam. Como os outros homens e mulheres, eles experimentam o sofrimento, o desalento, a frustração, o desânimo; têm medo quando o mundo escolhe caminhos de guerra e de violência; sofrem quando são atingidos pela injustiça, pela opressão, pelo ódio do mundo; conhecem a perseguição, a incompreensão e a morte… Mas, apesar de tudo isso, não se deixam vencer pelo pessimismo e pelo desespero pois sabem que Jesus vai “no meio deles”, oferecendo-lhes a sua paz e apontando-lhes o horizonte da Vida definitiva. É com esta certeza que caminhamos e que enfrentamos as tempestades da vida? Os outros homens e mulheres que partilham o caminho connosco descobrem Jesus, vivo e ressuscitado, através do testemunho de esperança que damos?
  • O Espírito Santo é o grande dom que Jesus ressuscitado faz à comunidade dos discípulos. É Ele que nos transforma, que nos anima, que faz de nós pessoas novas, que nos capacita para sermos testemunhas e sinais da Vida de Deus; é Ele que nos dá a coragem e a generosidade para continuarmos no mundo a obra de Jesus. No entanto, o Espírito só atua em nós se estivermos disponíveis para o acolher. Ele não se impõe nem desrespeita a nossa liberdade. Estamos disponíveis para acolher o Espírito? O nosso coração está aberto aos desafios que o Espírito constantemente nos lança?
  • A comunidade cristã gira em torno de Jesus, é construída à volta de Jesus e é de Jesus que recebe Vida, amor e paz. Sem Jesus, seremos um rebanho de gente assustada, incapaz de enfrentar o mundo e de ter uma atitude construtiva e transformadora; sem Jesus, seremos um grupo de gente que se apoia em leis, que vive de ritos, que defende doutrinas e não a comunidade que vive e testemunha o amor de Deus; sem Jesus, estaremos divididos, mergulhados em conflitos estéreis, e não seremos uma comunidade de irmãos e de irmãs; sem Jesus, cairemos facilmente em caminhos errados e iremos beber a fontes que não matam a nossa sede de Vida… Na nossa comunidade, Cristo é verdadeiramente o centro? É para Ele que tudo tende e é d’Ele que tudo parte? Escutamos as suas palavras, alimentamo-nos d’Ele, vivemos d’Ele, estamos ligados a Ele como os ramos estão ligados à videira?
  • Não é em experiências pessoais, íntimas, fechadas, egoístas, que encontramos Jesus ressuscitado; mas encontramo-l’O sempre que nos reunimos em seu nome, em comunidade. É no diálogo comunitário, na Palavra partilhada, no pão repartido, no amor que une os irmãos em comunidade de vida, que fazemos a experiência da presença de Jesus vivo no meio de nós. O que é que a comunidade cristã significa para mim? Sinto-me bem a caminhar em comunidade, ou a minha experiência de fé é uma experiência isolada, à margem da riqueza e dos desafios que a comunidade me oferece? E, neste âmbito, o que é que significa, para mim, a participação na celebração da Eucaristia, no “primeiro dia da semana”, o dia do encontro comunitário à volta da mesa de Jesus?
  • É nos gestos de amor, de partilha, de serviço, de encontro, de fraternidade, que encontramos Jesus vivo, a transformar e a renovar o mundo; é com gestos de bondade, de misericórdia, de compaixão, de perdão que testemunhamos diante do mundo a Vida nova do Ressuscitado. Quem procura Cristo ressuscitado, encontra-O em nós? O amor de Jesus – amor total, universal e sem medida – transparece nos nossos gestos e na nossa vida? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é a descrição da vitalidade e comunhão vivida na comunidade nascente. A proclamação desta leitura deve ter presente o tom narrativo, mas também o entusiasmo e a maravilha do modo como cresciam em número e santidade os primeiros cristãos.

A segunda leitura é um hino de ação de graças ao Pai pela salvação revelada em Jesus Cristo. Ao tom de louvor e ação de graças que deve caracterizar a proclamação desta leitura, junta-se a recomendação de uma acurada preparação das pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

TOMÉ, CHAMADO «GÉMEO»

Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), que o Papa João Paulo II, em 30 de abril do ano 2000, consagrou como «Domingo da Divina Misericórdia». Os discípulos estão em um lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, Vida vivente e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou derreter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «Shalôm!», «A paz convosco!».

Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, a Bondade deste “Bom-Dia”, que ressoa desde a Criação, entra em nós, enche-nos de Bondade e de Alegria, e faz-nos encontrar um modo novo de encarar a vida. Esta Saudação, este Shalôm, esta Paz, este “Bom-Dia” estabelece connosco uma relação nova e boa, e inverte por completo a nossa velha maneira de ver e de viver. Na verdade, estamos habituados a pensar, a decidir e a escolher o que vamos fazer, comprar ou vender. Sou eu que penso, decido, escolho. Como se o mundo inteiro começasse em mim e a partir de mim. Como se eu fosse (porque penso que sou) o senhor do mundo. Ora, o imenso texto do Evangelho de hoje, como, de resto, a Escritura inteira, começa com Alguém que vem de fora do meu alcance, e me surpreende, e me saúda, deixando-me na condição nova e inédita, não de senhor que pensa e escolhe, mas de respondedor que é pensado e acolhe. Quando «eu penso», decido e escolho, escolho sempre um alter ego, isto é, algo ou alguém igual a mim, que venha ao encontro do meu mundo desiderativo e projetual, e o encha e satisfaça. Quando «eu sou pensado» e escolhido e saudado, cabe-me acolher aquela Saudação, aquela «Paz», aquele Shalôm, e responder, responder, responder. O “Bom-Dia” precede o cogito. Precede, inverte e investe.

Jesus mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para outras passagens, nomeadamente para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.

A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.

O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).

Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado! Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre! Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.

Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.

A lição do Livro dos Atos dos Apóstolos (4,32-35, mas ver também 2,42-47 e 5,12-16) deste Domingo II da Páscoa é outra vez soberba. Trata-se de uma visita guiada ao Cenáculo, a primeira Catedral da Igreja nascente, mas com ramificações em todas as casas, em todos os corações, bem assente em quatro colunas: o ensino dos Apóstolos (1), a comunhão fraterna (2), a fração do pão (3) e a oração (4). Com a boca cheia de louvor, os olhos de graça, as mãos de paz e de pão, as entranhas de misericórdia, a comunidade bela crescia, crescia, crescia. Não admira. Era tão jovem, leve e bela, que as pessoas lutavam por entrar nela!

Nascer de Deus, amar a Deus e o Filho Unigénito de Deus, amar no Filho os filhos de Deus, é a lição da Primeira Carta de São João 5,1-6. O critério é: se nascemos de Deus, então somos filhos de Deus, e, sendo filhos de Deus, somos irmãos. E, se nascemos de Deus, também o amor que nos vincula aos irmãos é de Deus. Amar a Deus é, então, o critério último da fé e da caridade. A vida de Deus em nós, amar como Deus nos ama, permanece, portanto, o único critério verdadeiro. Na Primeira Carta de São João 4,20-21, tínhamos anotado o critério de que o nosso amor a Deus é verificável no nosso amor ao próximo. Mas São Paulo adverte-nos com sabedoria que o amor ao próximo pode fingir-se, pois podemos dar todos os nossos bens aos pobres, e não ter a caridade verdadeira (1 Coríntios 13,3). Neste sentido, diz acertadamente São Máximo Confessor (580-662) que «a Páscoa gera a fé e a fé gera o amor». A misericórdia é a chama divina com que devemos acender e purificar o nosso coração.

Cantemos por isso o Salmo 118, que é o último canto do chamado «Pequeno Hallel da Páscoa» (113-118), mas que era seguramente cantado noutras festividades de Israel, nomeadamente na Festa das Tendas, tendo em conta o seu teor processional, e até a sua distribuição por coros. Este Salmo levanta-se do meio da alegria própria da Festa («Este é o dia que o Senhor fez,/ nele nos alegremos e exultemos!»: v. 24) e eleva ao Deus sempre fiel uma grande Ação de Graças por todas as maravilhas que Ele tem realizado em favor do seu povo. Sim, toda a nossa energia e toda a melodia que nos habita é o próprio Senhor, conforme o belíssimo v. 14: «Minha força e meu canto YAH!», que soa assim em hebraico: ‘azzî wezimrat YAH. Além do nosso Salmo, a expressão densa e impressiva encontra-se ainda em Êxodo 15,2 e Isaías 12,2. YAH está por YHWH. O refrão que vamos cantar aparece a abrir e a fechar este grande Salmo, e constitui como que o envelope onde guardamos a bela melodia que cantamos. Soa assim: «Louvai o Senhor porque Ele é bom, / porque para sempre é o seu amor!» (v. 1 e 29).

Em tudo e sempre nos precede o nosso bom Deus com a iniciativa do seu amor primeiro e misericordioso.

«O lugar para onde Eu vou,
Vós sabeis o caminho para lá», diz Jesus.
«Nós não sabemos para onde vais,
Como podemos saber o caminho para lá?»,
Retorquiu Tomé.
Tomé é como nós:
Não sabe trabalhar sem metas e objetivos.
E é em função das metas e objetivos,
Que escolhe caminhos e metodologias.
Deus disse a Abraão: «Vai do teu país
Para o país que Eu te fizer ver».
E o narrador diz-nos que «Abraão foi».
Para onde? Para qual país?
Não interessa.
Interessa é saber que uma mão segura nos guia,
E que o caminho que trilhamos nos conduz sempre ao destino.
É assim que faz Jesus também.
Não nos indica no mapa o lugar do destino,
Mas mostra-nos o caminho para chegar lá.
Por isso nos diz: «Vinde atrás de Mim…».
É assim a procissão e a peregrinação.
Ele vai connosco e à nossa frente.
Ele é o caminho, a mão segura,
A água pura,
O pão de trigo.
Ensina-nos, Senhor,
A caminhar contigo.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 (Act 4, 32-35)
  2. Leitura II do Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 (1 Jo 5, 1-6)
  3. Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 – Lecionário
  4. Domingo II do Tempo da Páscoa – Ano B – 07.04.2024 – Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Páscoa da Ressurreição do Senhor – Ano B – 31.03.2024

Missa do Dia

 

Viver a Palavra

            «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».

            É madrugada! Está escuro lá fora, mas também no coração de Maria Madalena. Porém, nem a penumbra da noite nem a tristeza que invade o seu coração a detêm. Sai de manhãzinha e vai apressadamente ao sepulcro. Testemunhou com os seus olhos os milagres e prodígios do Mestre, contemplou a força dos Seus braços que levantavam os caídos e ressuscitavam os mortos, maravilhou-se com tantas vidas transformadas pela suave ternura da Sua palavra doadora de sentido que não se conforma com a Sua morte. Como escreveu Gabriel Marcel: «amar é dizer: tu não morrerás!».

            Ao contrário das narrativas de Marcos e de Lucas que indicam que as mulheres que se dirigem ao sepulcro levam perfumes e aromas, seguindo assim as tradições funerárias próprias da sua cultura, nesta narrativa, Maria Madalena nada leva consigo. No crepúsculo daquela jornada que marcará indelevelmente o curso da história, ela dirige-se ao sepulcro, transportando apenas a história de libertação e de vida que o crucificado lhe ofereceu quando outrora a acolheu e renovou no seu coração a esperança e a confiança. Como pode morrer Aquele que lhe ofereceu um horizonte novo de vida? Como pode estar ausente Aquele cuja presença transformou o seu coração e a sua história?

            Chegada ao sepulcro e vendo a pedra removida, dirige-se apressadamente ao encontro de Pedro e do discípulo amado e, como anota Ermes Ronchi, não afirma que levaram o corpo do Senhor, mas apenas «levaram o Senhor do sepulcro», como se Ele ainda estivesse vivo. Maria Madalena entrevê desde já o cumprimento das palavras do Cântico dos Cânticos: «o amor é mais forte do que a morte» (Ct 8,6). Maria sabe que um amor maior não pode morrer e que os gestos e palavras de Jesus preenchiam de eternidade os limites e fragilidades da humanidade.

            As multidões que seguiam Jesus, bem como os Seus discípulos e seguidores mais próximos, ficaram presos ao fracasso da Sua paixão e crucifixão e esqueceram rapidamente as palavras que Jesus lhes houvera dito: «O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar» (Lc 9,22). Ouviram que Ele haveria de morrer, sofrer e ser crucificado, mas não escutaram nem compreenderam que Ele haveria de ressuscitar. Prenderam o seu coração ao provisório e esqueceram o que é pleno e definitivo. Na vida de Jesus, como na vida de quantos O seguem, a morte e o sofrimento têm carácter de transitoriedade e de provisoriedade porque só a ressurreição e a vida nova que brota da Sua Páscoa é verdadeiramente plena e definitiva.

            Jesus ressuscitou e a boa notícia que brotou do sepulcro vazio, mas cheio de sinais, ecoa de geração em geração renovando o coração e a vida de quantos se deixam iluminar pela luz nova e plena da Páscoa. Diante das trevas e sombras que pairam no nosso tempo, a Igreja é chamada a ser portadora da luminosa notícia da manhã de Páscoa para que o mundo saiba e acredite que o amor venceu a morte, que a graça venceu o pecado e que a cruz de Cristo nos abriu as portas da eternidade. As dificuldades, os desafios e até os sofrimentos, que tantas vezes assolam a nossa vida, são provisórios e transitórios como provisória e transitória foi a paixão e morte de Jesus. Plena e definitiva é a glória. Total e duradoira é a ressurreição e a vida nova que Jesus Ressuscitado nos oferece. Por isso, caminhemos com renovada esperança os trilhos da história fazendo ecoar no coração de cada homem e de cada mulher a mais bela notícia: «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».in Voz Portucalense (adaptado)

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           A alegria que brota da Ressurreição do Senhor prolonga-se ao longo de cinquenta dias na celebração do Tempo Pascal. Os diversos sinais litúrgicos, como o círio pascal, os ritos da aspersão, entre outros sinais e gestos, favorecem a tomada de consciência de que o Tempo Pascal se prolonga até ao Pentecostes. Porém, ao contrário do Tempo Quaresmal onde se propõem tantas atividades e dinâmicas, frequentemente o Tempo Pascal aparece desprovido de uma proposta de reflexão e vivência além da Eucaristia Dominical. Por isso, seria de grande proveito para os fiéis, a valorização deste tempo com a proposta de momentos de oração e reflexão como a Via Lucis, as Catequeses ou celebrações mistagógicas, entre outras propostas criativas e dinâmicas, em jeito de saída missionária, que estimulem a comunidade a testemunhar a alegria do Ressuscitado.in Voz Portucalense

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           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Atos dos Apóstolos 10,34.37-43

Naqueles dias,
Pedro tomou a palavra e disse:
«Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia,
a começar pela Galileia,
depois do batismo que João pregou:
Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
que passou fazendo o bem
e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio,
porque Deus estava com Ele.
Nós somos testemunhas de tudo o que Ele fez
no país dos judeus e em Jerusalém;
e eles mataram-n’O, suspendendo-O na cruz.
Deus ressuscitou-O ao terceiro dia
e permitiu-Lhe manifestar-Se, não a todo o povo,
mas às testemunhas de antemão designadas por Deus,
a nós que comemos e bebemos com Ele,
depois de ter ressuscitado dos mortos.
Jesus mandou-nos pregar ao povo
e testemunhar que Ele foi constituído por Deus
juiz dos vivos e dos mortos.
É d’Ele que todos os profetas dão o seguinte testemunho:
quem acredita n’Ele
recebe pelo seu nome a remissão dos pecados.

CONTEXTO

            Todos os anos a liturgia propõe-nos, ao longo dos domingos do tempo pascal, a leitura dos Atos dos Apóstolos. Obra de Lucas (que também foi o autor do 3.º Evangelho), os Atos é o livro “pascal” por excelência: conta-nos como os discípulos, depois de terem feito a experiência de encontro com o Ressuscitado e animados pelo Espírito que lhes foi enviado, abriram as portas da casa onde se encontravam escondidos e tornaram-se testemunhas de Jesus e do seu projeto. Deram assim cumprimento ao mandato que Jesus lhes tinha deixado quando se despediu deles e partiu ao encontro do Pai (cf. At 1,8).

            O “tempo” dos Atos é o “tempo” da Igreja (a comunidade que nasceu de Jesus e que continua a viver de Jesus) e o “tempo” do Espírito. Nesta nova fase da história da salvação, compete aos discípulos, animados e conduzidos pelo mesmo Espírito que ungiu Jesus e o acompanhava na sua missão, levarem ao mundo a salvação de Deus. Os discípulos são nesta nova fase, como Jesus o tinha sido enquanto andou pelas aldeias e vilas da Galileia, o rosto visível do Deus salvador e libertador. O seu testemunho deve percorrer um “caminho” que vai de Jerusalém – no Antigo Testamento, o lugar onde devia manifestar-se definitivamente a salvação de Deus – até “aos confins da terra”. É esse, precisamente, o “percurso” que o livro dos Atos nos apresenta.

            A execução de Estevão (um dos diáconos da Igreja de Jerusalém) e a perseguição que se abateu, logo depois, sobre os cristãos de Jerusalém fez com que diversos membros da comunidade saíssem da cidade e buscassem refúgio nas regiões vizinhas (cf. At 8,1). Assim, o Evangelho de Jesus chegou à Samaria, a Damasco e a Antioquia da Síria. Mais tarde, sobretudo por ação de Paulo, a Boa Nova de Jesus foi anunciada na Ásia Menor e na Grécia. Os Atos terminam com Paulo a chegar a Roma: o anúncio da salvação de Deus tinha alcançado o coração do mundo gentio; era uma proposta de salvação para todos os homens e mulheres que a quisessem acolher.

            Um dos episódios importantes desta saga missionária aconteceu em Cesareia Marítima (cf. At 10,24-48), a cidade da costa mediterrânica que era a sede do poder romano na Palestina. Os protagonistas desse episódio foram o apóstolo Pedro e um centurião romano chamado Cornélio. Pedro, convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20) e respondendo a um pedido de Cornélio (cf. At 10,22), foi a Cesareia, entrou em casa do centurião, expôs-lhe o essencial da fé cristã e batizou-o, bem como a toda a sua família (cf. At 10,23b-48). Cornélio foi o primeiro pagão a ser acolhido na Igreja de Jesus. É a primeira vez que um dos membros proeminentes da comunidade cristã (Pedro) admite que o Evangelho de Jesus é uma Boa Notícia destinada a todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas.

            O texto que, neste dia de Páscoa, nos é proposto como primeira leitura, é parte da “instrução” de Pedro a Cornélio e sua família. Trata-se de uma composição de Lucas onde aparecem os elementos fundamentais do kerigma cristão sobre Jesus.in Dehoniano

INTERPELAÇÕES

  • A ressurreição de Jesus é a consequência de uma vida gasta a “fazer o bem e a libertar os oprimidos”. Isso significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se esforça por vencer o egoísmo, a mentira, a injustiça e por fazer triunfar o amor, está a ressuscitar; significa que, sempre que alguém – na linha de Jesus – se dá aos outros e manifesta, em gestos concretos, a sua entrega aos irmãos, está a construir vida nova e plena. Estamos a ressuscitar, porque caminhamos pelo mundo fazendo o bem e libertando os oprimidos, ou a nossa vida é um repisar os velhos esquemas do egoísmo, do orgulho, do comodismo?
  • A ressurreição de Jesus significa também que o medo, a morte, o sofrimento e a injustiça deixam de ter poder sobre a pessoa que ama, que se dá, que partilha a vida. Ela tem assegurada a Vida plena – essa Vida que os poderes do mundo não podem destruir, atingir ou restringir. Ela pode, assim, enfrentar o mundo com a serenidade que lhe vem da fé. Estamos conscientes disto, ou deixamo-nos dominar pelo medo, sempre que temos de agir para combater aquilo que rouba a vida e a dignidade, a nós e a cada um dos nossos irmãos?
  • Aos discípulos pede-se que sejam as testemunhas da ressurreição. Nós não vimos o sepulcro vazio; mas fazemos, todos os dias, a experiência do Senhor ressuscitado, que está vivo e caminha ao nosso lado nos caminhos da história. A nossa missão é testemunhar essa realidade; no entanto, o nosso testemunho será oco e vazio se não for comprovado pelo amor e pela doação, as marcas da vida nova de Jesus. O nosso testemunho da ressurreição é coerente e credível e traduz-se em gestos concretos de amor, de partilha, de serviço? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)

Refrão 1: Este é o dia que o Senhor fez:
exultemos e cantemos de alegria.

 

Refrão 2: Aleluia.

Dai graças ao Senhor, porque Ele é bom,
porque é eterna a sua misericórdia.

Diga a casa de Israel:
é eterna a sua misericórdia.

A mão do Senhor fez prodígios,
a mão do Senhor foi magnífica.
Não morrerei, mas hei de viver
para anunciar as obras do Senhor.

A pedra que os construtores rejeitaram
tornou-se pedra angular.
Tudo isto veio do Senhor:
é admirável aos nossos olhos.

LEITURA II – Colossenses 3,1-4

Irmãos:
Se ressuscitastes com Cristo,
aspirai às coisas do alto,
onde está Cristo, sentado à direita de Deus.
Afeiçoai-vos às coisas do alto e não às da terra.
Porque vós morrestes
e a vossa vida está escondida com Cristo em Deus.
Quando Cristo, que é a vossa vida, Se manifestar,
também vós vos haveis de manifestar com Ele na glória.

CONTEXTO

            Colossos era uma cidade da antiga Frígia (Ásia Menor), situada a cerca de cento e oitenta quilómetros de Éfeso, a dezasseis de Laodiceia e a vinte de Hierápolis. Pertencia à Província romana da Ásia. Em tempos recuados tinha sido cidade rica e populosa; mas no tempo de Paulo tinha perdido o seu esplendor e importância.

Não foi Paulo que evangelizou Colossos. Durante a longa estadia de Paulo em Éfeso, no decurso da sua terceira viagem, Epafras, discípulo de Paulo e colossense de origem (cf. Col 4,12), fundou a comunidade (cf. Col 1,7), enquanto as de Hierápolis e Laodiceia (cf. Col 4,13). A maior parte dos membros da comunidade cristã de Colossos tinham vindo do paganismo; mas havia também um bom grupo de judeo-cristãos.

            Quando escreveu a Carta aos Colossenses, Paulo estava na prisão (em Roma?). Epafras visitou-o e falou-lhe da “crise” por que estava a passar a Igreja de Colossos. Alguns doutores locais ensinavam doutrinas estranhas, que misturavam elementos cristãos, judaicos e pagãos: especulações acerca dos anjos (cf. Col 2,18), práticas ascéticas, rituais legalistas, prescrições sobre os alimentos e a observância de determinadas festas (cf. Col 2,16.21). Tudo isso deveria (na opinião desses “mestres”) completar a fé em Cristo, comunicar aos crentes um conhecimento superior de Deus e dos mistérios cristãos e possibilitar uma vida religiosa mais autêntica. Contra este sincretismo religioso, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo: Ele é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda a criatura, o mediador da Criação, aquele que Deus enviou para reconciliar todas as coisas, a cabeça do Corpo que é a Igreja, o Senhor de todos os poderes e dominações (cf. Cl 1,15-20).

            O texto que a liturgia deste domingo de Páscoa nos propõe como segunda leitura é a introdução à reflexão moral da carta (cf. Col 3,1-4,6). Depois de apresentar a centralidade de Cristo no projeto salvador de Deus (cf. Col 1,13-2,23), Paulo recorda aos cristãos de Colossos que é preciso viver de forma coerente e verdadeira o compromisso assumido com Cristo. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O Batismo introduz-nos numa dinâmica de comunhão com Cristo ressuscitado. A partir do Batismo, Cristo passa a ser o centro e a referência fundamental à volta da qual se constrói toda a vida do crente. Qual o lugar que Cristo ocupa na nossa vida? Temos consciência de que o nosso Batismo significou um compromisso com Cristo e uma identificação com Cristo?
  • A identificação com Cristo implica o assumir uma dinâmica de Vida nova, despojada do pecado e feita doação a Deus e aos irmãos. O cristão torna-se então, verdadeiramente, alguém que “aspira às coisas do alto” – quer dizer, alguém que, embora vivendo nesta terra e desfrutando das realidades deste mundo, tem como referência última os valores de Deus. Não se pede ao crente que seja um alienado, alguém que viva a olhar para o céu e que se demita do compromisso com o mundo e com os irmãos; mas pede-se-lhe que não faça dos valores do mundo a sua prioridade, a sua referência última. A nossa vida tem sido uma caminhada coerente com essa dinâmica de Vida nova que começou no dia em que fomos batizados? Esforçamo-nos, realmente, por nos despojarmos do “homem velho” e por nos revestirmos do “Homem Novo”, do homem que se identifica com Cristo e que vive no amor, no serviço, na doação aos irmãos?
  • Paulo, a partir do exemplo de Cristo, garante-nos que esse caminho de despojamento do “homem velho” não é um caminho de derrota e de fracasso; mas é um caminho de glória, no qual se manifesta a realidade da Vida eterna, da Vida verdadeira. Neste dia de Páscoa, diante do túmulo vazio e da certeza de que Jesus triunfou da morte e do pecado, reconhecemos a verdade do testemunho de Paulo?
  • Quando, de alguma forma, estou envolvido na preparação ou na celebração do sacramento do Batismo, tenho consciência – e procuro passar essa mensagem – de que o sacramento não é um ato tradicional ou social (que, por acaso, até proporciona fotografias bonitas), mas um compromisso sério e exigente com Cristo? in Dehonianos.

SEQUÊNCIA PASCAL

À Vítima pascal
ofereçam os cristãos
sacrifícios de louvor.

O Cordeiro resgatou as ovelhas:
Cristo, o Inocente,
reconciliou com o Pai os pecadores.

A morte e a vida
travaram um admirável combate:
Depois de morto,
vive e reina o Autor da vida.

Diz-nos, Maria:
Que viste no caminho?

Vi o sepulcro de Cristo vivo
e a glória do Ressuscitado.
Vi as testemunhas dos Anjos,
vi o sudário e a mortalha.

Ressuscitou Cristo, minha esperança:
precederá os seus discípulos na Galileia.

Sabemos e acreditamos:
Cristo ressuscitou dos mortos:
Ó Rei vitorioso,
tende piedade de nós.

EVANGELHO – João 20,1-9

No primeiro dia da semana,
Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro
e viu a pedra retirada do sepulcro.
Correu então e foi ter com Simão Pedro
e com o discípulo predileto de Jesus
e disse-lhes:
«Levaram o Senhor do sepulcro
e não sabemos onde O puseram».
Pedro partiu com o outro discípulo
e foram ambos ao sepulcro.
Corriam os dois juntos,
mas o outro discípulo antecipou-se,
correndo mais depressa do que Pedro,
e chegou primeiro ao sepulcro.
Debruçando-se, viu as ligaduras no chão, mas não entrou.
Entretanto, chegou também Simão Pedro, que o seguira.
Entrou no sepulcro
e viu as ligaduras no chão
e o sudário que tinha estado sobre a cabeça de Jesus,
não com as ligaduras, mas enrolado à parte.
Entrou também o outro discípulo
que chegara primeiro ao sepulcro:
viu e acreditou.
Na verdade, ainda não tinham entendido a Escritura,
segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos.

CONTEXTO

            O Quarto Evangelho (cf. Jo 4,1-19,42) apresenta duas partes. Na primeira, João descreve a atividade criadora e vivificadora do Messias, no sentido de dar vida e de criar um Homem Novo – um homem livre da escravidão do egoísmo, do pecado e da morte (para João, o último passo dessa atividade destinada a fazer surgir o Homem Novo foi, precisamente, a morte na cruz: aí, Jesus apresentou a última e definitiva lição – a lição do amor total, que não guarda nada para si, mas faz da vida um dom radical ao Pai e aos irmãos). Na segunda parte do Evangelho (cf. Jo 20,1-31), João apresenta o resultado da ação de Jesus e mostra essa comunidade de Homens Novos, recriados e vivificados por Jesus, que com Ele aprenderam a amar com radicalidade e a quem Jesus abriu as portas da Vida definitiva. Trata-se dessa comunidade de homens e mulheres que se converteram e aderiram a Jesus e que, em cada dia – mesmo diante do sepulcro vazio – são convidados a manifestar a sua fé no Filho de Deus que “ergueu a sua tenda no meio dos homens” para lhes dar Vida em abundância.

            Jesus tinha sido crucificado na manhã de sexta-feira (por volta das nove horas) e tinha morrido na cruz por volta das três horas da tarde desse mesmo dia. No final da tarde, o seu corpo morto tinha sido descido da cruz e depositado, à pressa, num “túmulo novo”, situado num horto, perto do lugar da crucificação (cf. Jo 19,41). Como era habitual, na tradição judaica, uma pedra redonda tinha sido rolada para tapar a entrada do sepulcro. Os rituais fúnebres não tinham sido observados em pormenor, uma vez que nesse dia, ao pôr do sol, começava o sábado e também a celebração da Páscoa judaica (cf. Jo 19,42). Aqueles que lidaram com o sepultamento de Jesus queriam voltar a casa, rapidamente, porque queriam “comer a Páscoa”, nessa noite, em família. Precisavam de se afastar do corpo morto de Jesus para não ficarem “impuros” e serem ritualmente impedidos de celebrar a Páscoa.

            Passado o dia festivo da Páscoa, no “yom rishon”, o primeiro dia da semana, Maria Madalena – uma das mulheres que tinha seguido Jesus desde a Galileia até Jerusalém e que tinha estado junto da cruz de Jesus até à sua morte – dirigiu-se ao túmulo. Presumivelmente levava perfumes para ungir o corpo morto de Jesus (cf. Mc 16,1). Perguntava-se como iria conseguir afastar a enorme pedra que tinha sido rolada, na sexta-feira, para tapar a entrada do sepulcro de Jesus. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A ressurreição de Jesus é a resposta de Deus aos que pretenderam, de forma injusta e criminosa, calar Jesus e banir da história o seu projeto do Reino de Deus. Deus não permitiu que o mal vencesse; Deus não permitiu que a violência, a injustiça, a maldade e a morte tivessem a última palavra; Deus não aceitou que o mundo ficasse refém daqueles que queriam continuar a viver na escuridão. Ao ressuscitar Jesus, Deus deu-Lhe razão; afirmou, alto e bom som, que o caminho proposto por Jesus – o do amor que se dá até às últimas consequências, o do serviço simples e humilde aos irmãos, o do perdão sem limites – é o caminho que leva à Vida. Neste dia de Páscoa, diante do túmulo de Jesus vazio, tenho alguma dúvida em abraçar tudo aquilo que Jesus me disse, com as suas palavras e com os seus gestos, sobre a forma de chegar à Vida definitiva, à Vida eterna?
  • A vitória de Jesus sobre o egoísmo, a violência, a maldade e a morte muda a nossa perspetiva sobre a forma de encarar tudo aquilo que, de forma objetiva, faz sofrer os homens e mulheres que caminham ao nosso lado. Ficar do lado dos que são magoados e crucificados, combater a injustiça e a opressão nas suas mil e uma formas, gastar a vida a servir os mais frágeis e abandonados, recusar um mundo que se constrói sobre violência e prepotência, lutar até ao dom da própria vida para vencer tudo o que gera morte não é algo absurdo. É, segundo Deus, o caminho que fará com que a nossa vida valha a pena e tenha pleno sentido. Talvez essa opção nos deixe cheios de feridas e cicatrizes; mas serão feridas e cicatrizes que Deus curará. Estamos dispostos a dar a vida para que outros tenham Vida? Estamos dispostos a correr riscos para levar a libertação ao mundo e aos nossos irmãos? Cremos firmemente, com toda a nossa alma e com todas as nossas forças, que uma vida gasta a servir não é uma vida fracassada, mas é uma vida que termina em ressurreição?
  • Pedro parece ter sentido dificuldade, diante do túmulo vazio, em “acreditar” que Jesus estivesse vivo e que aquele caminho de cruz tivesse conduzido à Vida. Na verdade, em muitos passos do caminho que percorreu com Jesus, Pedro manifestou dificuldade em sintonizar com Jesus e com a sua lógica. Ele estava habituado a funcionar de acordo com outros valores e padrões, numa lógica muito “do mundo”. Os interesses de Pedro nem sempre coincidiam com a visão de Jesus. Parece estranho, para alguém que andava com Jesus? Teoricamente, sim. Na prática, talvez reconheçamos, nas hesitações e recusas de Pedro, as nossas indecisões, a nossa dificuldade em arriscar, a nossa dificuldade em abandonarmos os critérios “do mundo” para abraçarmos a lógica de Deus. Será assim? O que podemos fazer para sermos menos “Pedro” e mais discípulos que vão, sem hesitar, atrás de Jesus?
  • A fotografia que o evangelista João nos apresenta do “discípulo predileto” é a fotografia de um discípulo que vive em comunhão com Jesus, que se identifica com Jesus e com os seus valores, que interiorizou e absorveu a lógica da entrega incondicional, do dom da vida, do amor total. Por isso, não tem qualquer problema em aceitar que o caminho seguido por Jesus conduz à ressurreição, à Vida nova. Ele “acredita” em Jesus. Revemo-nos nesta figura? Vemo-la como uma proposta com a qual gostaríamos de nos identificar? O que podemos fazer para sermos verdadeiramente “discípulo predileto”?
  • A ressurreição de Jesus é a vitória da Vida sobre a morte, da verdade sobre a mentira, da esperança sobre o desespero, da justiça sobre a injustiça, da alegria sobre a tristeza, da luz sobre as trevas. Abre-nos perspetivas completamente novas e garante-nos o triunfo de Deus sobre as forças que querem destruir o mundo e os homens. Nós, que acreditamos e celebramos a ressurreição de Jesus, somos testemunhas da vitória da Vida junto dos nossos irmãos paralisados pelo medo e pelo pessimismo? A mensagem que levamos ao mundo é uma mensagem de alegria e de esperança que tem as cores da manhã de Páscoa? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é um longo discurso de Pedro em casa de Cornélio. A proclamação deste discurso deve ter em conta o tom alegre e jubiloso do anúncio da vitória de Cristo sobre a morte.

            Para a segunda leitura existem duas possibilidades. Ambas as possibilidades são breves, mas a brevidade do texto não deve fazer descurar a sua preparação. Deve ter-se em atenção as pausas e respirações. Na Carta aos Colossenses deve haver um especial cuidado com as formas verbais no imperativo que oferecem ao texto um caracter exortativo e na Primeira Carta aos Coríntios ter em atenção a entoação da frase na forma interrogativa.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O SENHOR RESSUSCITOU. ALLELUIAH!

            «Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, deci­frando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a meto­nímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início). Par­ticularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a «caminhada» quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Efésios 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos (com a Chará, a alegria grande da Páscoa), pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Atos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Atos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico todo, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redi­mida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do al­tar, do ambão, do batistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, donde emerge continuamente a mensagem da Ressurreição. Aleluia!

            O Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-10, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentou-se sobre ela (Mateus 28,2), impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4), dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4), as faixas de linho no chão e o sudário enrolado noutro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram uma presença nova que somos convidados a descobrir.

            O texto imenso de João 20,1-10 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não:

            A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) que até causa aflição a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus(João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece contraponto com a pedra por algum tempo retirada (aoristo de aírô) pelos homens do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41). Cega pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (êran: aor. de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende ou dá bom resultado. A oposição luz – trevas atravessa de lés-a-lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos, que nada pescam de noite (João 21,3) e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido na noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).

            A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e o «discípulo amado». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madale­na vai ao túmulo, e vê (blépô) a pedra (da morte) retirada. 2) O outro discípulo, «o discípulo amado», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e vê (blépô) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o discípulo amado», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo-Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim! Deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, o «discípulo amado» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR o «discípulo amado», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!

            Pedro, que corria juntamente com o «discípulo amado», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que o «discípulo amado» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e vê (theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada tão em ordem! Por isso, Pedro vê com o olhar de quem fica a pensar no que se terá passado… Talvez seja coisa de Deus… Com a indica­ção preciosa de que o véu foi cuidadosamente retirado do seu Rosto, a Revelação convida agora a contemplar o Rosto divino no Rosto humano do Ressuscitado: vendo‑o a Ele, vê‑se o Pai (cf. João 14,9).

            «O discípulo amado» entrou, viu com um olhar histórico (tempo aoristo) de quem vê por dentro a identidade (verbo grego ideîn), e acreditou (v. 8). É o olhar de quem vê o inefável, verdadeiro clímax do relato: anote‑se a passagem do verbo ver do presente para o aoristo, e de fora para dentro: «o discípulo amado» viu na história a identidade dos «sinais»: toda a Economia divina realizada! O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde.

            A narrativa de João 20 abre com a Madalena, que vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. Conforme a grandiosa narrativa, a Madalena tem diante dos olhos o inefável. Mas cega como está pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Não é de admirar, dado que a Madalena anda pelo escuro, e, no IV Evangelho, quem anda no escuro ou na noite, não vê a Luz.

            Ainda que não faça parte do Evangelho deste Dia Grande, vale a pena, para que não fique perdido, acostar aqui o percurso que a Madalena continua a fazer em João 20,11-18. Mudou de olhar. Aparece agora junto do túmulo a chorar, inclina-se e vê, agora também (como Pedro) com um ver que dá que pensar (verbo grego theôréô), dois anjos vestidos de branco (cor divina), estrategicamente colocados no túmulo, como sinais. Perguntam à Madalena: «Mulher, por que choras?». Na verdade, ela ainda está do lado da morte, do escuro, da dor, da tristeza. A paisagem em que se move ou a página que a move ainda é o Capítulo 19 de João, daquele Jesus morto por mãos humanas retirado (João 19,38), daquele Rei por mãos humanas retirado (João 19,15[2x]), ou até daquela pedra por mãos humanas retirada do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41) – em todos os casos o verbo aírô no aoristo –, não sabendo ainda ler a pedra para sempre retirada por Deus, de João 20,1. É ainda à procura de um corpo morto que ela anda. De um corpo morto a que ela se acha com direito de posse. Talvez seja este o preconceito que lhe tolhe o olhar e a impede de ver o inefável. Na verdade, responde assim à pergunta feita pelos dois anjos: «Retiraram o meu Senhor, e não sei onde o puseram» (João 20,13). Note-se outra vez o aoristo do verbo aírô, e note-se agora também o possessivo «meu» afeto a Senhor.

            Voltando-se para o jardim, vê, outra vez com um ver que dá que pensar (theôréô), um homem de pé, que ela pensa ser o jardineiro, mas que, na verdade, é Jesus, que a deixa espantada com a segunda pergunta que lhe faz: «Mulher, por que choras? (normal, pois ela continuava a chorar); a quem procuras?». Esta segunda pergunta desvenda a Madalena, retirando-a dos preconceitos que a cegam. Precedendo-a, antecipando-se a ela, adivinhando-a com aquela pergunta direita ao coração, Jesus dá-se a conhecer à Madalena, deixando-a a pensar mais ou menos assim: «E como é que este desconhecido sabe que eu ando à procura de alguém neste jardim?». Compreendendo-se compreendida, a Madalena começa a sair aqui da sua cegueira, mas ainda precisa de algum tempo para mudar de paisagem, de margem, de página, do Capítulo 19 para o Capítulo 20. A resposta que dá é elucidativa: «Se foste tu que o levaste, diz-me onde o puseste, e eu o retirarei» (João 20,15).

            Ao responder com um pronome três vezes repetido, que esconde o nome, vê-se bem que a Madalena sabe que aquele desconhecido bem sabe quem ela procura. E confessa aqui o intento que desde aquela madrugada, ainda escuro, a movia: retirar para si aquele corpo morto! Manifesta que anda ainda perdida no Capítulo 19, quando responde «em hebraico» (hebraïstí) a Jesus que acabava de pronunciar o nome dela: «Maria!» (João 20,16). A locução adverbial «em hebraico» (hebraïstí) é uma ponte para João 19,13 e 17. Equivocada como anda, ainda quer reter o Ressuscitado, mas não pode: aprende ainda que nada nem ninguém pode reter o Ressuscitado, aquela vida nova, aquele modo novo de estar presente! Leva tempo até passar da margem da morte para a margem da vida verdadeira! E finalmente vai anunciar aos discípulos, que Jesus significativamente chama «meus irmãos» (João 20,17), enviada pelo Ressuscitado: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18). Nova mudança de olhar. O que ela diz agora é: Vi e continuo a ver o Senhor! É o que significa o verbo grego horáô, no tempo perfeito. É o olhar da testemunha que vê o inefável! Aqui termina a Madalena o seu longo e belo percurso, e sai de cena.

            Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-138) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A atual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasis e Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.

            Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Atos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exatamente para dar teste­munho. Viram e testemunham o Batismo de Jesus, a execução da sua missão filial batismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurrei­ção Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.

            O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida batismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coi­sas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exorta­ção que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».

            Em alternativa a Colossenses 3,1-4, pode ler-se e escutar-se 1 Coríntios 5,6-8. A sua linguagem é da cor da Páscoa (grego páscha, hebraico pesah). O Novo Testamento usa o termo grego páscha [= Páscoa] por 28 vezes, assim distribuídas: 24 vezes nos Evangelhos + Atos 12,4 e Hebreus 11,28, todas em referência exclusiva à Páscoa hebraica do Antigo Testamento; as duas menções que faltam são precisamente 1 Coríntios 5,7 e Lucas 22,15, esta com o precioso lógion de Jesus: «Desejei ardentemente esta Páscoa (toûto tò páscha) comer convosco». Em 1 Coríntios 5,7, lemos a expressão tò páscha hêmôn etýthê Christós, cuja tradução não pode ser «Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado», como se vê habitualmente, mas «durante a nossa Páscoa (hebraica), foi imolado Cristo». Os motivos são gramaticais (tò páscha hêmôn é um acusativo adverbial) e teológicos: o cordeiro da Páscoa não é um sacrifício imolado; não é queimado sobre o altar; não é oferecido ao Senhor (só o que é oferecido ao Senhor é sacrifício); é convivialmente comido em família. Sacrifício da Páscoa era a ʽôlat-tamid, o holocausto perpétuo, diário, o sacrifício de dois cordeiros, filhos de um ano, um de manhã e outro de tarde, conforme Êxodo 29,38-42 e Números 28,3-8, e que, sendo diário, precedia qualquer celebração festiva. Só depois deste sacrifício quotidiano, se procedia, em dias de festa, como é a Páscoa, ao sacrifício da festa propriamente dito, sacrifício suplementar, e que, na Páscoa, consistia num «sacrifício de ovelhas e bois», este sim, «Páscoa imolada para o Senhor» (Deuteronómio 16,2). De notar também que o Novo Testamento desconhece em absoluto o adjetivo «pascal», de que nós fazemos uso indiscriminado, e não pensado. A restante linguagem da cor da Páscoa que 1 Coríntios 5,6-8 mostra é o fermento (hamets) e os pães ázimos (matstsôt). Servem os termos para Paulo reclamar dos cristãos vida nova (pães ázimos), sem malícia (fermento velho).

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo de Páscoa – Missa do Dia – Ano B – 31.03.2024 (Act 10, 34.37-43)
  2. Leitura II do Domingo de Páscoa – Missa do Dia – Ano B – 31.03.2024 (Col 3, 1-4)
  3. Tríduo Pascal e Páscoa da Ressurreição – Ano B – 28, 29, 30 e 31 Março 2024
  4. Tríduo Pascal e Páscoa da Ressurreição – Ano B – 28, 29,30 e 31 Março 2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024

 

Viver a Palavra

Continuamos a contar os 40 dias da Quaresma desde a Quarta-Feira de Cinzas até à Páscoa. Mas ao Domingo não é Quaresma. É Páscoa.

Com a celebração do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor damos início à Semana Santa onde somos convidados a fixar o nosso olhar na Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A Semana Santa inicia e termina com um evangelho de festa, marcado pela alegria. Iniciamos a celebração deste Domingo com a proclamação do Evangelho que narra a entrada de Jesus em Jerusalém onde é aclamado com brados de alegria e de júbilo que ainda hoje repetimos na celebração da Eucaristia: «Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!» e na soleníssima noite de Páscoa haveremos de escutar o solene anúncio da Ressurreição gloriosa. Contudo, esta moldura de alegria e de festa encerra no seu interior a paixão e morte, o duro caminho da paixão que escutamos no Evangelho da missa.

O sofrimento e a morte, a paixão e a crucifixão não têm a última palavra. Com Jesus somos chamados a percorrer o caminho da Cruz mas conscientes que caminhamos do transitório para o pleno e definitivo. Só a Ressurreição de Jesus é plena e definitiva! Apesar da inevitabilidade do sofrimento e da morte na nossa peregrinação terrena, tomamos consciência de que o sofrimento e a morte têm carácter de provisoriedade, enquanto a ressurreição e a vida eterna se revestem de plenitude e eternidade.

O nosso Deus não é indiferente às nossas dores e angústias, dores e sofrimentos, mas assumiu a nossa condição humana fazendo suas as dores da humanidade: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz».

Nunca será demais ler, meditar e contemplar estas palavras da Carta de S. Paulo aos Filipenses. Em Jesus Cristo, Deus cheio de amor vem ao nosso encontro, assume a nossa frágil humanidade para nos elevar com Ele à glória da divindade. Assume a natureza frágil e provisória para nos fazer tomar parte da promessa total, plena e definitiva.

Deus desce para que juntos possamos subir. O caminho quaresmal que percorremos é expressão concreta deste caminho como nos recorda o Papa Francisco: «Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor».

Contemplando o caminho da cruz entramos nesta nova lógica da vida cristã: a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos outros; a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Um novo modo de ser e de estar que se traduz numa nova forma de servir e amar. O pão partido e repartido e o cálice partilhado à volta da mesa perpetuam no tempo e na história a entrega da cruz e, por isso, reunidos para celebrar a Eucaristia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor celebramos a paixão e morte de Jesus, mas aclamando a glória da Ressurreição. Como aquela multidão de outrora, queremos sair à rua para acolher e aclamar Jesus que continua a visitar-nos no rosto sofredor dos nossos irmãos, em tantas situações de carência e debilidade que silenciosamente continuam a gritar e a reclamar a nossa presença. in Voz Portucalense (adaptado)

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Com o Domingo de Ramos na Paixão do Senhor iniciamos a Semana Santa. Acolhendo o desafio à conversão e à penitência, devemos ter presente que a conversão pessoal a que somos chamados na contemplação da morte e ressurreição de Cristo nos deve conduzir a uma saída missionária que se manifeste de modo concreto na nossa vida quotidiana.

Este Domingo deve ser marcado pelo convite à participação no Tríduo Pascal, centro de todo o ano litúrgico. Não nos devemos limitar a um anúncio dos horários e locais da celebração, mas, por exemplo, elaborar um pequeno folheto com uma apelativa descrição de cada uma das celebrações. Além disso, pode apontar-se como ação missionária para esta semana o convite aos vizinhos e amigos para a participação nas diversas celebrações pascais. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Isaías 50, 4-7

O Senhor deu-me a graça de falar como um discípulo,
para que eu saiba dizer uma palavra de alento
aos que andam abatidos.
Todas as manhãs Ele desperta os meus ouvidos,
para eu escutar, como escutam os discípulos.
O Senhor Deus abriu-me os ouvidos
e eu não resisti nem recuei um passo.
Apresentei as costas àqueles que me batiam
e a face aos que me arrancavam a barba;
não desviei o meu rosto dos que me insultavam e cuspiam.
Mas o Senhor Deus veio em meu auxílio,
e, por isso, não fiquei envergonhado;
tornei o meu rosto duro como pedra,
e sei que não ficarei desiludido.

CONTEXTO

No livro do Deutero-Isaías (Is 40-55), encontramos quatro poemas (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que se diferenciam um tanto da temática desenvolvida pelo profeta no resto do livro. Referem-se a uma figura enigmática, que o próprio Deus apresenta como “o meu Servo” (Is 42,1). O nome “servo de Javé” é, na Bíblia, um título honorífico. Refere-se, habitualmente, a alguém a quem Deus chama a colaborar no seu projeto salvador. De facto, o “servo de Javé” que nos é apresentado pelo Deutero-Isaías, foi eleito por Deus e recebeu de Deus uma missão (cf. Is 42,1a; 49,1.5). Essa missão tem a ver com a Palavra de Deus e tem carácter universal, pois deve concretizar-se no meio das nações (cf. Is 42,1b; 49,6); será vivida pelo “servo” na humildade, no sofrimento e na obediência incondicional ao projeto de Deus (cf. Is 42,2-3). Apesar de a missão terminar num aparente insucesso (cf. Is 53,2-3.7-9), a dor do profeta não foi em vão: ela tem um valor expiatório e redentor; do seu sofrimento resulta o perdão para o pecado do Povo (cf. Is 53,6.10). Deus aprecia o sacrifício do profeta e recompensá-lo-á, elevando-o à vista de todos, fazendo-o triunfar dos seus detratores e adversários (cf. Is 53,11-12).

Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura coletiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.

O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Javé”. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Não sabemos, efetivamente, quem é este “servo de Javé”; no entanto, os primeiros cristãos vão utilizar este texto como grelha para interpretar o mistério de Jesus: Ele é a Palavra de Deus feita carne, que oferece a sua vida para trazer a salvação/libertação aos homens… A vida de Jesus realiza plenamente esse destino de dom e de entrega da vida em favor de todos; e a sua glorificação mostra que uma vida vivida deste jeito não termina no fracasso, mas na ressurreição que gera Vida nova. No entanto, talvez esta conceção da vida nos pareça estranha e incongruente face àquilo que vemos acontecer todos os dias à nossa volta… Como é que me situo face a isto? Acredito que uma vida gasta como a de Jesus ou a do profeta/servo da primeira leitura deste domingo é uma vida com sentido e que conduz à Vida nova?
  • O profeta/servo que, sem hesitar, põe a sua palavra e a sua vida ao serviço da libertação dos seus irmãos – mesmo que isso implique para si próprio sofrimento, perseguição e humilhação – deixa-nos um desafio que não podemos ignorar… Vivemos cercados por ilhas de miséria e de dor onde tantos e tantos irmãos nossos permanecem prisioneiros; passamos a cada passo por homens e mulheres abandonados, esquecidos, atirados para as margens da história, privados dos seus direitos e dignidade; assistimos diariamente à crucifixão de tanta gente que luta contra os sistemas de opressão e de morte… O que fazemos? Permanecemos indiferentes e viramos a cara para outro lado para não ver e para não sermos incomodados, ou levantamos a voz para denunciar o egoísmo, a violência, a injustiça, as mil formas de maldade que desfeiam o mundo e destroem a Vida?
  • Temos consciência de que a nossa missão profética passa por sermos Palavra viva de Deus que ecoa no mundo dos homens? Nas nossas palavras, nos nossos gestos, no nosso testemunho, a proposta libertadora de Deus alcança o mundo e o coração dos homens?
  • O profeta/servo da nossa leitura garante-nos que nunca desistirá da missão que lhe foi confiada porque confia em Deus: sabe que Deus estará sempre com ele e que nunca o desiludirá. Que fantástica expressão de confiança e de fé! Seremos capazes de dizer, com convicção, a mesma coisa? Acreditamos que Deus nunca nos desiludirá? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)

Refrão: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?

Todos os que me veem escarnecem de mim,
estendem os meus lábios e meneiam a cabeça:
«Confiou no Senhor, Ele que o livre,
Ele que o salve, se é meu amigo».

Matilhas de cães me rodearam,
cercou-me um bando de malfeitores.
Trespassaram as minhas mãos e os meus pés,
posso contar todos os meus ossos.

Repartiram entre si as minhas vestes
e deitaram sortes sobre a minha túnica.
Mas Vós, Senhor, não Vos afasteis de mim,
sois a minha força, apressai-Vos a socorrer-me.

Hei de falar do vosso nome aos meus irmãos,
Hei de louvar-Vos no meio da assembleia.
Vós, que temeis o Senhor, louvai-O,
glorificai-O, vós todos os filhos de Jacob,
reverenciai-O, vós todos os filhos de Israel.

LEITURA II – Filipenses 2, 6-11

Cristo Jesus, que era de condição divina,
não Se valeu da sua igualdade com Deus,
mas aniquilou-Se a Si próprio.
Assumindo a condição de servo,
tornou-Se semelhante aos homens.
Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais,
obedecendo até à morte e morte de cruz.
Por isso Deus O exaltou
e Lhe deu um nome que está acima de todos os nomes,
para que ao nome de Jesus todos se ajoelhem
no céu, na terra e nos abismos,
e toda a língua proclame que Jesus Cristo é o Senhor,
para glória de Deus Pai.

CONTEXTO

A cidade de Filipos, situada na Macedónia oriental, era uma cidade próspera, com uma população constituída maioritariamente por veteranos romanos do exército. Organizada à maneira de Roma, estava fora da jurisdição dos governantes das províncias locais e dependia diretamente do imperador. Gozava dos mesmos privilégios das cidades de Itália e os seus habitantes tinham cidadania romana. Paulo chegou a Filipos pelo ano 49 ou 50, no decurso da sua segunda viagem missionária, acompanhado de Silvano, Timóteo e Lucas (cf. At 16,1-40). Da sua pregação nasceu a primeira comunidade cristã em solo europeu.

A comunidade cristã de Filipos era uma comunidade entusiasta, generosa, comprometida, sempre atenta às necessidades de Paulo e do resto da Igreja (como no caso da coleta em favor da Igreja de Jerusalém – cf. 2 Cor 8,1-5). Paulo nutria pelos cristãos de Filipos um afeto especial; e os filipenses, por seu turno, tinham Paulo em grande apreço. Apesar de tudo, a comunidade cristã de Filipos não era perfeita: os altivos patrícios romanos de Filipos tinham alguma dificuldade em assumir certos valores como o desprendimento, a humildade e a simplicidade.

Paulo escreve aos Filipenses numa altura em que estava na prisão (não sabemos se em Cesareia, em Roma, ou em Éfeso). Os filipenses tinham-lhe enviado, por um membro da comunidade chamado Epafrodito, uma certa quantia em dinheiro, a fim de que Paulo pudesse prover às suas necessidades. Na carta, Paulo agradece a preocupação dos filipenses com a sua pessoa (cf. Fl 4,10-20); exorta-os a manterem-se fiéis a Cristo e a incarnarem os valores que marcaram a vida de Cristo (“tende entre vós os mesmos sentimentos que estão em Cristo Jesus” – Fl 2,5).

O texto que a liturgia do domingo de Ramos nos apresenta como segunda leitura é o texto mais notável da carta aos filipenses. Trata-se de um antigo hino, provavelmente pré-paulino, que era recitado nas celebrações litúrgicas cristãs (há quem fale, a propósito deste hino, na catequese primitiva de Simão Pedro, conservada na comunidade cristã de Antioquia da Síria). Lembra aos cristãos de Filipos o exemplo de Cristo, a sua humildade e despojamento.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Não há mesmo volta a dar: a lógica de Deus funciona em sentido contrário à nossa lógica humana. Quanto mais nos despojamos da nossa superioridade, quanto mais renunciamos à capa da importância, quanto mais gastamos a nossa vida a fazer o bem, quanto mais nos fazemos “servos” dos nossos irmãos, quanto mais amamos sem esperar nada em troca, mais subimos na “escala” de Deus. Deus disse-nos isto, com todas as letras, através do seu Filho Jesus. De forma inequívoca, de forma irrefutável, com uma linguagem que só não entende quem não quer. Porque é que, depois de dois mil anos a olhar para a cruz de Jesus, isto ainda não é claro para nós? O que mais tem Deus de fazer para nos mostrar o caminho que conduz à Vida verdadeira?
  • Estamos a chegar ao fim deste caminho quaresmal. Este caminho foi efetivamente, para nós, um caminho de conversão, de mudança, de nascimento para uma vida nova? Ao longo deste caminho em direção à Páscoa transformamos a arrogância em humildade, a atitude de superioridade em respeito pelo outro, o orgulho em simplicidade, a soberba em delicadeza?
  • Este hino constitui uma excelente chave de leitura para interpretar, sentir e viver, na “Semana Maior” em que estamos a entrar, os acontecimentos centrais da nossa fé. Ao “som” deste belíssimo hino podemos compreender o caminho de Jesus, o significado das suas opções, o sentido da sua vida, da sua paixão, morte e ressurreição. Iremos procurar, nesta semana, acompanhar os passos de Jesus? E, ao revivermos o seu amor e a sua entrega, renovaremos a nossa adesão a Ele e ao caminho que Ele propõe? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 14, 1 – 15,47

N   Faltavam dois dias para a festa da Páscoa e dos Ázimos
e os príncipes dos sacerdotes e os escribas
procuravam maneira de se apoderarem de Jesus à traição
para Lhe darem a morte.
Mas diziam:

R  «Durante a festa, não,
para que não haja algum tumulto entre o povo».

N   Jesus encontrava-Se em Betânia,
em casa de Simão o Leproso,
e, estando à mesa,
veio uma mulher que trazia um vaso de alabastro
com perfume de nardo puro de alto preço.
Partiu o vaso de alabastro
e derramou-o sobre a cabeça de Jesus.
Alguns indignaram-se e diziam entre si:

R   «Para que foi esse desperdício de perfume?
Podia vender-se por mais de duzentos denários
e dar o dinheiro aos pobres».

N   E censuravam a mulher com aspereza.
Mas Jesus disse:

J    «Deixai-a. Porque estais a importuná-la?
Ela fez uma boa ação para comigo.
Na verdade, sempre tereis os pobres convosco
e, quando quiserdes, podereis fazer-lhes bem;
Mas a Mim, nem sempre Me tereis.
Ela fez o que estava ao seu alcance:
ungiu de antemão o meu corpo para a sepultura.
Em verdade vos digo:
Onde quer que se proclamar o Evangelho, pelo mundo inteiro,
dir-se-á também em sua memória, o que ela fez».

N   Então, Judas Iscariotes, um dos Doze,
foi ter com os príncipes dos sacerdotes
para lhes entregar Jesus.
Quando o ouviram, alegraram-se
e prometeram dar-lhe dinheiro.
E ele procurava uma oportunidade para entregar Jesus.
No primeiro dia dos Ázimos,
em que se imolava o cordeiro pascal,
os discípulos perguntaram a Jesus:

R    «Onde queres que façamos os preparativos
para comer a Páscoa?»

N   Jesus enviou dois discípulos e disse-lhes:

J     «Ide à cidade.
Virá ao vosso encontro um homem com uma bilha de água.
Segui-o e, onde ele entrar, dizei ao dono da casa:
‘O Mestre pergunta: Onde está a sala,
em que hei de comer a Páscoa com os meus discípulos?’
Ele vos mostrará uma grande sala no andar superior,
alcatifada e pronta.
Preparai-nos lá o que é preciso».

N   Os discípulos partiram e foram à cidade.
Encontraram tudo como Jesus lhes tinha dito
e prepararam a Páscoa.
Ao cair da tarde, chegou Jesus com os Doze.
Enquanto estavam à mesa e comiam,
Jesus disse:

J     «Em verdade vos digo:
Um de vós, que está comigo à mesa, há de entregar-Me».

N   Eles começaram a entristecer-se e a dizer um após outro:

R    «Serei eu?»

N   Jesus respondeu-lhes:

J     «É um dos Doze, que mete comigo a mão no prato.
O Filho do homem vai partir,
como está escrito a seu respeito,
mas ai daquele por quem o Filho do homem vai ser traído!
Teria sido melhor para esse homem não ter nascido».

N   Enquanto comiam, Jesus tomou o pão,
recitou a bênção e partiu-o,
deu-o aos discípulos e disse:

J     «Tomai: isto é o meu Corpo».

N   Depois tomou um cálice, deu graças e entregou-lho.
E todos beberam dele.
Disse Jesus:

J     «Este é o meu Sangue, o Sangue da nova aliança,
derramado pela multidão dos homens.
Em verdade vos digo:
Não voltarei a beber do fruto da videira,
até ao dia em que beberei do vinho novo no reino de Deus».

N   Cantaram os salmos e saíram para o Monte das Oliveiras.
Disse-lhes Jesus:

J     «Todos vós Me abandonareis, como está escrito:
‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’.
Mas depois de ressuscitar,
Irei à vossa frente para a Galileia».

N   Disse-Lhe Pedro:

R    «Embora todos te abandonem, eu não».

N   Jesus respondeu-lhe:

J     «Em verdade te digo:
Hoje, esta mesma noite, antes do galo cantar duas vezes,
três vezes Me negarás».

N   Mas Pedro continuava a insistir:

R    «Ainda que tenha de morrer contigo, não Te negarei».

N   E todos afirmaram o mesmo.
Entretanto, chegaram a uma propriedade chamada Getsémani
e Jesus disse aos seus discípulos:

J     «Ficai aqui, enquanto Eu vou orar».

N   Tomou consigo Pedro, Tiago e João
e começou a sentir pavor e angústia.
Disse-lhes então:

J     «A minha alma está numa tristeza de morte.
Ficai aqui e vigiai».

N   Adiantando-Se um pouco, caiu por terra
e orou para que, se fosse possível,
se afastasse d’Ele aquela hora.
Jesus dizia:

J     «Abba, Pai, tudo Te é possível:
afasta de Mim este cálice.
Contudo, não se faça o que Eu quero,
mas o que Tu queres».

N   Depois, foi ter com os discípulos, encontrando-os dormindo
e disse a Pedro:

J     «Simão, estás a dormir? Não pudeste vigiar uma hora?
Vigiai e orai, para não entrardes em tentação.
O espírito está pronto, mas a carne é fraca».

N   Afastou-Se de novo e orou, dizendo as mesmas palavras.
Voltou novamente e encontrou-os dormindo,
porque tinham os olhos pesados
e não sabiam que responder.
Jesus voltou pela terceira vez e disse-lhes:

J     «Dormi agora e descansai…
Chegou a hora:
o Filho do homem vai ser entregue às mãos dos pecadores.
Levantai-vos. Vamos.
Já se aproxima aquele que Me vai entregar».

N   Ainda Jesus estava a falar,
quando apareceu Judas, um dos Doze,
e com ele uma grande multidão, com espadas e varapaus,
enviada pelos príncipes dos sacerdotes,
pelos escribas e os anciãos.
O traidor tinha-lhes dado este sinal:
«Aquele que eu beijar, é esse mesmo.
Prendei-O e levai-O bem seguro».
Logo que chegou, aproximou-se de Jesus e beijou-O, dizendo:

R    «Mestre».

N   Então deitaram-Lhe as mãos e prenderam-n’O.
Um dos presentes puxou da espada
e feriu o servo do sumo sacerdote, cortando-lhe a orelha.
Jesus tomou a palavra e disse-lhes:

J     «Vós saístes com espadas e varapaus para Me prender,
como se fosse um salteador.
Todos os dias Eu estava no meio de vós,
a ensinar no templo,
e não Me prendestes!
Mas é para se cumprirem as Escrituras».

N   Então os discípulos deixaram-n’O e fugiram todos.
Seguiu-O um jovem, envolto apenas num lençol.
Agarraram-no, mas ele, largando o lençol, fugiu nu.

N   Levaram então Jesus à presença do sumo sacerdote,
onde se reuniram todos os príncipes dos sacerdotes,
os anciãos e os escribas.
Pedro, que O seguira de longe,
até ao interior do palácio do sumo sacerdote,
estava sentado com os guardas, a aquecer-se ao lume.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes e todo o Sinédrio
procuravam um testemunho contra Jesus
para Lhe dar a morte,
mas não o encontravam.
Muitos testemunhavam falsamente contra Ele,
mas os seus depoimentos não eram concordes.
Levantaram-se então alguns,
para proferir contra Ele este falso testemunho:

R    «Ouvimo-l’O dizer:
‘Destruirei este templo feito pelos homens
e em três dias construirei outro
que não será feito pelos homens’».

N   Mas nem assim o depoimento deles era concorde.
Então o sumo sacerdote levantou-se no meio de todos
e perguntou a Jesus:

R    «Não respondes nada ao que eles depõem contra Ti?»

N   Mas Jesus continuava calado e nada respondeu.
O sumo sacerdote voltou a interrogá-l’O:

R    «És Tu o Messias, Filho do Deus Bendito?»

N   Jesus respondeu:

J     «Eu Sou. E vós vereis o Filho do homem
sentado à direita do Todo-poderoso
vir sobre as nuvens do céu».

N   O sumo sacerdote rasgou as vestes e disse:

R    «Que necessidade temos ainda de testemunhas?
Ouvistes a blasfémia. Que vos parece?»

N   Todos sentenciaram que Jesus era réu de morte.
Depois, alguns começaram a cuspir-Lhe,
a tapar-Lhe o rosto com um véu
e a dar-Lhe punhadas, dizendo:

R    «Adivinha».

N   E os guardas davam-Lhe bofetadas.

N   Pedro estava em baixo, no pátio,
quando chegou uma das criadas do sumo sacerdote.
Ao vê-lo a aquecer-se, olhou-o de frente e disse-lhe:

R    «Tu também estavas com Jesus, o Nazareno».

N   Mas ele negou:

R    «Não sei nem entendo o que dizes».

N   Depois saiu para o vestíbulo e o galo cantou.

A    criada, vendo-o de novo, começou a dizer aos presentes:

R    «Este é um deles».

N   Mas ele negou segunda vez.
Pouco depois, os presentes diziam também a Pedro:

R    «Na verdade, tu és deles, pois também és galileu».

N   Mas ele começou a dizer imprecações e a jurar:

R    «Não conheço esse homem de quem falais».

N   E logo o galo cantou pela segunda vez.
Então Pedro lembrou-se do que Jesus lhe tinha dito:
«Antes do galo cantar duas vezes,
três vezes Me negarás».
E desatou a chorar.

N   Logo de manhã,
os príncipes dos sacerdotes reuniram-se em conselho,
com os anciãos e os escribas e todo o Sinédrio.
Depois de terem manietado Jesus,
foram entregá-l’O a Pilatos.
Pilatos perguntou-Lhe:

R    «Tu és o Rei dos judeus?»

N   Jesus respondeu:

J     «É como dizes».

N   E os príncipes dos sacerdotes
faziam muitas acusações contra Ele.
Pilatos interrogou-O de novo:

R    «Não respondes nada? Vê de quantas coisas Te acusam».

N   Mas Jesus nada respondeu,
de modo que Pilatos estava admirado.

N   Pela festa da Páscoa,
Pilatos costumava soltar-lhes um preso à sua escolha.
Havia um, chamado Barrabás, preso com os insurretos,
que numa revolta tinham cometido um assassínio.
A multidão, subindo,
começou a pedir o que era costume conceder-lhes.
Pilatos respondeu:

R    «Quereis que vos solte o Rei dos judeus?»

N   Ele sabia que os príncipes dos sacerdotes
O tinham entregado por inveja.
Entretanto, os príncipes dos sacerdotes incitaram a multidão
a pedir que lhes soltasse antes Barrabás.
Pilatos, tomando de novo a palavra, perguntou-lhes:

R    «Então, que hei de fazer d’Aquele
que chamais o Rei dos judeus?»

N   Eles gritaram de novo:

R    «Crucifica-O!».

N   Pilatos insistiu:

R    «Que mal fez Ele?»

N   Mas eles gritaram ainda mais:

R    «Crucifica-O!».

N   Então Pilatos, querendo contentar a multidão,
soltou-lhes Barrabás
e, depois de ter mandado açoitar Jesus,
entregou-O para ser crucificado.
Os soldados levaram-n’O para dentro do palácio,
que era o pretório,
e convocaram toda a coorte.
Revestiram-n’O com um mando de púrpura
e puseram-Lhe na cabeça uma coroa de espinhos
que haviam tecido.
Depois começaram a saudá-l’O:

R    «Salvé, Rei dos judeus!»

N   Batiam-lhe na cabeça com uma cana, cuspiam-Lhe
e, dobrando os joelhos, prostravam-se diante d’Ele.
Depois de O terem escarnecido,
tiraram-Lhe o manto de púrpura
e vestiram-Lhe as suas roupas.
Em seguida levaram-n’O dali para O crucificarem.

N   Requisitaram, para Lhe levar a cruz,
um homem que passava, vindo do campo,
Simão de Cirene, pai de Alexandre e Rufo.
E levaram Jesus ao lugar do Gólgota,
quer dizer, lugar do Calvário.
Queriam dar-Lhe vinho misturado com mirra,
mas Ele não o quis beber.
Depois crucificaram-n’O.
E repartiram entre si as suas vestes,
tirando-as à sorte, para verem o que levaria cada um.
Eram nove horas da manhã quando O crucificaram.
O letreiro que indicava a causa da condenação tinha escrito:
«Rei dos Judeus».
Crucificaram com Ele dois salteadores,
um à direita e outro à esquerda.
Os que passavam insultavam-n’O
e abanavam a cabeça, dizendo:

R    «Tu que destruías o templo e o reedificavas em três dias,
salva-Te a Ti mesmo e desce da cruz».

N   Os príncipes dos sacerdotes e os escribas
troçavam uns com os outros, dizendo:

R    «Salvou os outros e não pode salvar-se a Si mesmo!
Esse Messias, o Rei de Israel, desça agora da cruz,
para nós vermos e acreditarmos».

N   Até os que estavam crucificados com ele o injuriavam.
Quando chegou o meio-dia,
as trevas envolveram toda a terra até às três horas da tarde.
E às três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte:

J     «Eloí, Eloí, lamá sabachtháni?»

N   que quer dizer:
«Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonastes?»

N   Alguns dos presentes, ouvindo isto, disseram:

R    «Está a chamar por Elias».

N   Alguém correu a embeber uma esponja em vinagre
e, pondo-a na ponta duma cana, deu-Lhe a beber e disse:

R    «Deixa ver se Elias vem tirá-l’O dali».

N   Então Jesus, soltando um grande brado, expirou.

N   O véu do templo rasgou-se em duas partes de alto a baixo.
O centurião que estava em frente de Jesus,
ao vê-l’O expirar daquela maneira, exclamou:

R    «Na verdade, este homem era Filho de Deus».

N   Estavam também ali umas mulheres a observar de longe,
entre elas Maria Madalena,
Maria, mãe de Tiago e de José, e Salomé,
que acompanhavam e serviam Jesus,
quando estava na Galileia,
e muitas outras que tinham subido com ele a Jerusalém.
Ao cair da tarde
– visto ser a Preparação, isto é, a véspera do sábado –
José de Arimateia, ilustre membro do Sinédrio,
que também esperava o reino de Deus,
foi corajosamente à presença de Pilatos
e pediu-lhe o corpo de Jesus.
Pilatos ficou admirado de Ele já estar morto
e, mandando chamar o centurião,
ordenou que o corpo fosse entregue e José.
José comprou um lençol,
desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol;
depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha
e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro.
Entretanto, Maria Madalena e Maria, mãe de José,
observavam onde Jesus tinha sido depositado.

CONTEXTO

Ao iniciarmos a Semana Santa, a Semana Maior, a liturgia convida-nos a escutar o impressionante relato da Paixão e Morte de Jesus. O relato, inegavelmente fundamentado em acontecimentos concretos, não é uma simples reportagem jornalística da condenação à morte de um inocente; mas é, sobretudo, uma catequese destinada a apresentar Jesus como o Filho de Deus que aceita cumprir o projeto do Pai, mesmo quando esse projeto passa por um destino de cruz. Marcos pretende que os crentes a quem a catequese se destina concluam, como o centurião romano que está junto da cruz e que vê como Jesus cumpriu o plano do Pai até à última gota de sangue: “na verdade, este homem era Filho de Deus” (Mc 15,39). Fica assim demonstrada a tese que Marcos, desde o início do Evangelho (cf. Mc 1,1), se propôs apresentar: Jesus, o Messias que anunciou o Reino de Deus e que os homens mataram na cruz, é o Filho de Deus.

Betânia (onde Jesus foi ungido com perfume por uma mulher e de onde saiu para se dirigir a Jerusalém), o Cenáculo (o edifício com “uma grande sala no andar de cima, mobilada e pronta”, onde Jesus fez com os discípulos aquela inolvidável ceia de despedida), o Getsémani (o nome significa “lagar de azeite” e designava o jardim cheio de oliveiras para onde Jesus, após a última ceia, se retirou para rezar, e onde foi preso pelos guardas do Templo), o palácio do sumo-sacerdote Caifás (onde Jesus foi julgado, condenado pelo Sinédrio e ficou preso o resto da noite antes de ser levado diante das autoridades romanas), o pretório romano da Torre Antónia (onde estava a guarnição romana que vigiava o Templo, onde Jesus, na manhã de sexta-feira, foi torturado e coroado de espinhos e onde o governador Pilatos confirmou a sua condenação à morte), as ruas da cidade de Jerusalém (por onde Jesus passou, carregando com a trave transversal da cruz, segundo o ritual próprio das crucifixões), o Gólgota o (“lugar do crânio”, a pequena colina, fora da cidade onde Jesus, por volta das 9 horas de sexta-feira, foi crucificado), e o túmulo novo (situado num jardim ao lado do Gólgota, onde o corpo morto de Jesus foi depositado antes do pôr do sol de sexta-feira) são os cenários onde se desenrola a ação que o Evangelho deste dia nos apresenta.

Em que data e em que contexto ocorreram os acontecimentos narrados no relato da paixão de Jesus? Todos os evangelistas concordam que Jesus celebrou uma ceia depois do pôr do sol de uma quinta-feira (quando, segundo o calendário religioso judaico já era sexta-feira) e que morreu na cruz por volta das três horas da tarde dessa sexta-feira. Para Marcos, Mateus e Lucas, contudo, essa sexta-feira era o dia da celebração da festa judaica da Páscoa. Assim, a última ceia de Jesus com os discípulos teria sido uma Ceia Pascal. João, no entanto, considera que a sexta-feira (dia em que Jesus morreu) não foi dia de Páscoa, mas sim o dia da preparação da Páscoa (o dia de Páscoa, nesse ano, começou na sexta-feira ao pôr do sol, quando Jesus já tinha morrido na cruz). Nesse caso, a última ceia de Jesus com os discípulos não teria sido uma Ceia Pascal, mas sim uma ceia de despedida. É difícil aceitar o calendário dos sinóticos, pois não parece provável que, em pleno dia de Páscoa, os judeus desenvolvessem o processo contra Jesus, o levassem pelas ruas de Jerusalém até ao Gólgota e o crucificassem. Sendo assim, Jesus teria sido crucificado na véspera da celebração da Páscoa judaica. Estaríamos, muito provavelmente, na primavera do ano 30. Jesus teria, então, 35-37 anos. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Celebrar a paixão e a morte de Jesus é abismar-se na contemplação de um Deus a quem o amor tornou frágil… Por amor, Ele veio ao nosso encontro, assumiu os nossos limites e fragilidades, experimentou a fome, o sono, o cansaço, conheceu a mordedura das tentações, experimentou a angústia e o pavor diante da morte; e, estendido no chão, esmagado contra a terra, atraiçoado, abandonado, incompreendido, continuou a amar, até ao último suspiro, até à última gota de sangue. Esta é a mais espantosa história de amor que é possível contar; ela é a boa notícia que enche de alegria o coração dos crentes. É esse amor ilimitado e inacreditável que vemos quando olhamos para a cruz de Jesus? E o amor de Jesus, expresso na cruz, torna-se lição que nós acolhemos e que transformamos em gestos concretos de dom e de serviço aos que “viajam” connosco?
  • Contemplar a cruz onde se manifesta o amor e a entrega de Jesus significa assumir a mesma atitude que Ele assumiu e solidarizar-se com aqueles que são crucificados neste mundo: os que sofrem violência, os que são explorados, os que são excluídos, os que são privados de direitos e de dignidade. Olhar a cruz de Jesus significa denunciar tudo o que gera ódio, divisão, medo, em termos de estruturas, valores, práticas, ideologias; significa evitar que os homens continuem a crucificar outros homens; significa aprender com Jesus a entregar a vida por amor… Viver deste modo pode conduzir à morte; mas o cristão sabe que amar como Jesus é viver a partir de uma dinâmica que a morte não pode vencer: o amor gera vida nova e introduz na nossa carne os dinamismos da ressurreição. A contemplação da cruz de Jesus leva-nos ao compromisso com a transformação do mundo? A contemplação da cruz de Jesus faz com que nos sintamos solidários com todos os nossos irmãos que todos os dias são crucificados e injustiçados? A contemplação da cruz de Jesus dá-nos a coragem para lutarmos contra tudo aquilo que gera sofrimento e morte, mesmo que isso implique correr riscos, ser incompreendido e condenado?
  • Um dos elementos mais destacados no relato marciano da paixão é a forma como Jesus Se comporta ao longo de todo o processo que conduz à sua morte… Ele nunca Se descontrola, nunca recua, nunca resiste, mas mantém-Se sempre sereno e digno, enfrentando o seu destino de cruz. Tal não significa que Jesus seja um herói inconsciente a quem o sofrimento e a morte não assustam, ou que Ele Se coloque na pele de um fraco que desistiu de lutar e que aceita passivamente aquilo que os outros Lhe impõem… A atitude de Jesus é a atitude de quem sabe que o Pai Lhe confiou uma missão e está decidido a cumprir essa missão, custe o que custar. Temos a mesma disponibilidade de Jesus para escutar os desafios de Deus e a mesma determinação que Jesus tinha para concretizar esses desafios no mundo?
  • A “angústia” e o “pavor” de Jesus diante da morte tornam-n’O muito “humano”, muito próximo das nossas debilidades e fragilidades. Dessa forma, é mais fácil identificarmo-nos com Ele, confiar n’Ele, segui-l’O no seu caminho do amor e da entrega. A humanidade de Jesus mostra-nos, também, que o caminho da obediência ao Pai não é um caminho impossível, reservado a super-heróis ou a deuses, mas é um caminho de homens frágeis, chamados por Deus a percorrerem, com esforço, o caminho que conduz à vida definitiva. Quais são as fragilidades que sentimos e que são obstáculo no nosso seguimento de Jesus? Deixamos que as limitações – reais ou imaginárias – que sentimos sejam decisivas quando chega a hora de optarmos?
  • A solidão de Jesus diante do sofrimento e da morte anuncia já a solidão do discípulo que percorre o caminho da cruz. Quando o discípulo procura cumprir o projeto de Deus, recusa os valores do mundo, enfrenta as forças da opressão e da morte, recebe a indiferença e o desprezo do mundo e tem de percorrer o seu caminho na mais dramática solidão. O discípulo tem de saber, no entanto, que o caminho da cruz, apesar de difícil, doloroso e solitário, não é um caminho de fracasso e de morte, mas é um caminho de libertação e de vida plena. Estamos conscientes de que, quanto mais somos fiéis a Jesus e ao seu projeto, mais teremos de remar contra a corrente e de experimentar a solidão, o abandono e até a incompreensão dos que nos rodeiam? Estamos determinados, apesar disso, a seguir o caminho que Jesus nos aponta?
  • A figura do jovem que, no jardim das Oliveiras, deixou o lençol que o cobria nas mãos dos soldados e fugiu pode ser figura do discípulo que, amedrontado e desiludido, abandonou Jesus. Já alguma vez virámos as costas a Jesus e ao seu projeto, seduzidos por outras propostas? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação. Requer uma leitura pausada e atenta que exprima toda a densidade e intensidade dramática do texto. A última frase exige uma especial atenção para que se possa transmitir a confiança e esperança que o auxílio de Deus oferece.

A segunda leitura é um hino litúrgico e poético e apresenta duas partes distintas: uma primeira mais dramática e uma segunda mais jubilosa e marcada pela exaltação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ter presente todos estes elementos. A narrativa evangélica da Paixão do Senhor, na ausência de diáconos, pode ser lida por mais dois leitores, reservando a parte de Cristo ao sacerdote. Tendo em conta os diversos diálogos e a dimensão do texto, aqueles que participam na leitura devem fazer uma acurada preparação das diversas intervenções ao longo do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

UM REI NOVO NOS NOSSOS CAMINHOS

Domingo de Ramos: Is 50,4-7, Sl 22; Fl 2,6-11; Mc 14,1-15,47

Batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lucas 12,49‑50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós, porque única Fonte da Vida Eterna verdadeiramente Dada (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). De facto, não se alcança através da nossa planificação. As coisas supremas não são planificáveis. Já estão prontas para receber. A missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, batizados na sua Morte (Romanos 6,3), e, com Ele, fomos  com‑sepultadoscom‑ressuscitadoscom‑vivificados e com‑sentados na G1ória! (Efésios 2,5‑6; Colossenses 2,12‑13: tudo ver­bos cunhados por Paulo e postos em aoristo histórico!). For­mamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Efésios 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Efésios 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portan­to, a esposa bela, a nova Jerusalém (Apocalipse 19,7‑9; 21,2.9-27) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Apocalipse 22,17).

O tom deste Domingo de Ramos é dado pela página preciosa de Marcos 11,1-10, que nos mostra o Rei messiânico a tomar posse da sua Cidade, a «Cidade do Grande Rei» (Salmo 45,5; 47,2-3; Tobias 13,11; Mateus 5,35), a Esposa bela que nascerá do seu Sangue: Esposa cúmplice da Morte do Esposo, e beneficiária da Morte do Esposo! Esposa, portanto, e no entanto! Que ao encontro do Esposo desce em vestido de noiva, não de viúva! (Apocalipse 21,2). O Rei messiânico toma posse da sua Cidade, a Filha de Sião, a Esposa; vem montado sobre o jumento da paz, e não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9. De notar que Zacarias escreveu esta página deslumbrante de um Rei diferente, pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente espetáculo do grande Alexandre Magno, porventura o maior imperador que algum dia o mundo conheceu, quando este, em finais do século IV a. C., descia a costa palestinense a caminho do Egito, com todo o seu arsenal de riqueza e de prepotência militar! Estendem-se as capas e ramos de árvores no caminho: assim se procedia quando era ungido o rei e como tal aclamado, como se pode ver no caso de Jeú (cf. 2 Reis 9,13). A multidão canta «Hossana» [= «Salva, por favor!»] (Salmo 118,5), saudando o Rei-que-Vem, «Aquele-que-Vem» (título divino) (Salmo 118,26), com o Reino de David, o novo David!

Dado o insólito da situação, não é possível não reparar que Jesus não entra em Jerusalém como Peregrino ou Mestre ou Taumaturgo. Mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias 9,9. Por isso, nesta última etapa do seu caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até à Cidade de Jerusalém, Jesus não vai a pé, como sempre andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando se tratava de atravessar o mar da Galileia. Agora, neste último troço da sua viagem, Jesus faz questão de o percorrer, não a pé, mas montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Marcos 11,2): o Rei é o primeiro em tudo! E toda a temática relativa ao jumento montado por Jesus torna-se tão evidente, que não pode passar despercebida a ninguém. Basta reparar na distribuição dos dez versículos desta passagem (Marcos 11,1-10): sete ocupam-se com a meticulosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta!

Ainda hoje, no domingo de Ramos, não obstante o ambiente abertamente hostil aos cristãos que se respira, se faz, desde Betfagé, uma pequena aldeia hoje totalmente muçulmana com um pequeno santuário à guarda dos Franciscanos, uma impressionante procissão e manifestação de fé que, descendo o Monte das Oliveiras, termina na Igreja de Santa Ana, junto da porta de Santo Estêvão (ou dos Leões).

O Evangelho que enche este Domingo de Ramos na Paixão do Senhor é o imenso e impressionante relato da Paixão de Marcos 14,1-15,47 (note-se que o texto soma 119 dos 677 versículos que contabiliza o inteiro Evangelho de Marcos), que marca o ritmo da «Semana Santa», que as Igrejas do Oriente chamam «Semana Grande», e que o antigo rito da Igreja de Milão conhecia por «Semana Autêntica». Somos nós, portanto, carregando os nossos ódios, raivas, mentiras, invejas e violências, seguindo a par e passo o Rei manso e obediente que a nós e por nós se entrega por amor, absorvendo, absolvendo e dissolvendo assim o nosso lado sombrio e pecaminoso. Momentos decisivos em que a Esposa bela, por graça tornada bela, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Marcos 14,3-9), a Ceia Primeira (e não última!) (Marcos 14,12-31), o abismo do Getsémani (Marcos 14,32-42), a prisão (Marcos 14,43-52): todos o abandonam (Marcos 14,50); Jesus fica sozinho, verdadeiro «Resto de Israel», os processos e a condenação (Jesus afirma‑se como «o Bendito», «o Filho de Deus», «o Messias», «o Rei»), a en­trega à morte de cruz por Pilatos (Marcos 15,15), mas, na verda­de, por Deus (1 Coríntios 11,23: paredídeto: passivo divino!), a coroa de espinhos, a Cruz santa e gloriosa, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais cruci­ficados: «salva‑te a ti mesmo», «desce da cruz» (Marcos 15,29‑32), a oração do Salmo 22 (todo): começa «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», e termina «esta é a obra do Senhor!», a ago­nia e a Morte precedida do grande grito (Marcos 15,33 e 37), que indica a Vitória de Deus, enfim, a sepultura. Proclamação da máxima Obra de Deus no mundo, a indizível Economia divina na vida terrena do Filho de Deus! A proclamação deve seguir‑se com a conversão do coração, e, sobretudo, com o louvor no coração.

Quem atravessa com extremosa atenção este imenso texto, há de por força reparar no silêncio prolongado de Jesus perante testemunhas e acusações falsas. Este silêncio aparece condensado e referido em dois momentos, que são também os únicos em que Jesus quebra o silêncio para responder a duas perguntas. Primeira anotação: «Levantando-se então o sumo-sacerdote no meio deles, interrogou Jesus, dizendo: “Nada respondes a estes que testemunham contra ti?”. Ele, porém, ficou calado, e nada respondeu. O sumo-sacerdote interrogou-o de novo: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito?”. Então Jesus disse: “Eu sou!”» (Marcos 14,60-62). Segunda anotação: «Pilatos interrogou-o: “Tu és o Rei dos judeus?”. Ele então respondeu e disse-lhe: “Tu o dizes!”. E acusavam-no os sumo-sacerdotes de muitas maneiras. Então Pilatos interrogou-o novamente e disse-lhe: “Não respondes nada? Vês de quantas coisas te acusam!”. Jesus, porém, nada mais respondeu» (Marcos 15,2-5). Vê-se bem que Jesus apenas quebra o silêncio por duas vezes, para responder a duas perguntas sobre a sua identidade.

Vendo bem, somos todos levados a percorrer e a reviver as últimas decisivas vinte e quatro horas de Jesus, sensivelmente desde as 15h00 de Quinta-Feira Santa até perto das 18h00 de Sexta-Feira Santa:

15h00 = Preparação da Ceia

                               18h00 = Ceia Primeira!

                               21h00 = Getsémani

                               24h00 = Prisão de Jesus

                               03h00 = Pedro nega e o galo canta

                               06h00 = Jesus diante de Pilatos

                               09h00 = Crucifixão de Jesus

                               12h00 = as trevas em vez da Luz!

                               15h00 = Morte de Jesus

                               18h00 = Sepultamento de Jesus

Note-se que, na cronologia dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), esta Quinta-Feira é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal logo após o pôr-do-sol (no calendário religioso hebraico já é Sexta-Feira, dado que o dia começa com o pôr-do-sol). Como se vê, esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os seus Discípulos uma Ceia Pascal. Também de acordo com esta cronologia, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em Sexta-Feira, Dia da Páscoa dos judeus, o que seria muito estranho! O Evangelho de S. João apresenta outra cronologia, hoje defendida pela maioria dos estudiosos, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em Quinta-Feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em Sexta-Feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que João coloca no Sábado, e não na Sexta-Feira. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende também esta cronologia joanina. De resto, as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinóticos: por isso, a nossa Eucaristia é com pão Ázimo, derivado do ritual da Ceia da Páscoa dos judeus. Por seu lado, as Igrejas do Oriente seguem a cronologia joanina, sendo a sua Eucaristia com pão comum, dado não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.

O Antigo Testamento serve-nos hoje o chamado «terceiro canto do Servo» (Isaías 50,4-7). Gerado na dor de Israel como verdadeiro filho do milagre (Isaías 49,21), ergue-se esta singular figura de «Servo» (‘ebed), totalmente nas mãos de Deus, desde a sua predestinação desde o seio materno (Isaías 49,1 e 5), passando pela sua entrega à morte (Isaías 53,12), até à sua exaltação e glorificação (Isaías 52,13), de tal modo que Deus o pode chamar «meu Servo» (‘abdî). Na lição de hoje, o «Servo» é um Discípulo a quem Deus abre os ouvidos até ao coração, para ouvir bem a música de Deus, e poder levar uma palavra de consolo aos dela necessitados. «Tornando o seu rosto duro como uma pedra» (Isaías 50,7), apresenta-se como um Servo, não insensível e indiferente, mas decidido a levar até ao fim a missão que lhe é confiada. A mesma expressão será dita acerca de Jesus em Lucas 9,51, quando toma a decisão inabalável de se dirigir para Jerusalém. O Novo Testamento passa por aqui!

Em claro paralelismo com o «Servo», cantado por Isaías, aí está Jesus apresentado por Paulo aos Filipenses (2,6-11). Mas aqui, o «Servo» tem um Rosto e um Nome: Jesus recebeu, na sua Humanidade, o Nome divino (ver também Hebreus 1,1-4), Nome incomparável (Filipenses 2,9). Por isso, agora, todos os seres criados adoram o Nome-Jesus (Filipenses 2,10), e «toda a língua», isto é, todo o ser humano racional, professa: «Senhor é Jesus Cristo!». Notar a ordem dos três termos, errada nas versões modernas: Senhor, isto é, Deus eterno, é o Homem-Jesus Cristo. O acento cai, pois, sobre Senhor. O fim em vista: a Glória do Pai com o Espírito (Filipenses 2,11). É quanto Deus operou na Cruz e semeou no nosso coração.

Voltamos à música do Salmo 22, uma oração que nasce na Paixão e termina na Páscoa! É belo tomarmos consciência de que Jesus nos pediu estas palavras emprestadas, para no-las devolver a transbordar de sentido. Já se sabe que aquele «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», que Jesus reza na Cruz, e que são as primeiras palavras do Salmo, implica, segundo a praxe judaica, a recitação do Salmo inteiro, que tem uma primeira parte de fortíssima lamentação (v. 2-22), passando logo para uma segunda parte que expressa consolação por ver Deus ao nosso lado, tão próximo de nós (v. 23-27), e terminando em verdadeira exultação (v. 28-32). O grande pregador francês Jacques Bossuet (1627-1704) declarava bem-aventurados aqueles que, recitando este Salmo, se encontram com Jesus, tão santamente tristes e tão divinamente felizes!

Senhor Jesus,
Senhor dos Passos
Serenos e seguros no caminho da vida e da Paixão,
Da ressurreição.
Senhor Jesus,
Senhor dos Passos
Sossegados e firmes,
Resolutos,
Até à porta do meu coração.
Senhor Jesus,
Senhor dos Passos,
Dos meus e dos teus,
Finalmente harmonizados,
Finalmente lado a lado:
Os meus, imprecisos, indecisos,
Atravessados pelo teu Perdão;
Os teus, sossegados e firmes,
Sincronizados pelo pulsar do meu coração.
Sim,
Eu sei que foi por mim que desceste a este chão
Pesado, íngreme, irregular,
De longilíneas lajes em que é fácil escorregar.
Mas os teus braços sempre abertos ajudam-me a levantar.
Senhor Jesus,
Deixa-me chegar um pouco mais junto de ti,
Chega-te tu também mais junto de mim.
Segura-me.
Dá-me a tua mão firme, nodosa e corajosa.
Agarro-me.
Sinto sulcos gravados nessa mão.
Sigo-os com o dedo devagar.
Percebo que são as letras do meu nome.
Foi então por mim que desceste a este chão.
O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
Senhora das Dores, Maria, minha Mãe,
Que seguiste até ao fim os passos do teu Filho,
Acompanha e protege os meus passos também.
Obrigado, Senhor Jesus,
Meu Senhor, meu Irmão e companheiro.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 (Is 50, 4-7)
  2. Leitura II do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 (Filip 2, 6-11)
  3. Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo de Ramos na Paixão do Senhor – Ano B – 24.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024

 

Viver a Palavra

A fama de Jesus estendia-se ao longe e ao largo e a notícia dos milagres, sinais e prodígios que realizava difundia-se por toda a região. Jesus não era mais um profeta que falava das coisas de Deus, mas na Sua pregação palavras e gestos, intimamente ligados entre si, falavam de Deus e irrompiam no tempo e na história revestidos de uma novidade que a todos desconcertava. Deste modo, não nos surpreende que as multidões acorram a Jesus e que de toda a parte surjam homens e mulheres que querem ver com os seus próprios olhos tudo quanto se diz deste Jesus de Nazaré.

O Evangelho que escutamos neste quinto Domingo da Quaresma apresenta «alguns gregos» que tendo vindo a Jerusalém se aproximam de Filipe para lhe fazer um pedido: «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Analisando o grego em que este texto foi escrito, encontramos o verbo ideîn (ver) que é muito mais que um ver físico e curioso, mas a procura da verdadeira identidade de Jesus. Estes homens não querem apenas ver Jesus, mas sobretudo ver quem é Jesus. Este conhecimento está para lá de uma visão exterior ou de uma análise comportamental, porque implica uma relação de intimidade que permite ir para lá do que vêem os olhos e do que ouvem os ouvidos, para entrar no conhecimento íntimo e pessoal Daquele que veio para revelar o rosto misericordioso do Pai.

É curioso o modo como o desejo daqueles gregos chega a Jesus: vão ter com Filipe, Filipe vai ter com André e os dois juntos vão ter com Jesus. É a dinâmica eclesial do encontro com Jesus Cristo. Os discípulos que seguem e acompanham Jesus são interpelados por aqueles que O procuram e estes, por sua vez, procuram que aconteça o verdadeiro encontro com Jesus. Filipe poderia fazer uma breve apresentação de Jesus, falar-lhes daquilo que o Mestre diz e faz, comunicando a mensagem que Ele veio trazer. Contudo, Filipe opera de modo diverso. Em primeiro lugar, não age sozinho, pois a resposta à pergunta e ao pedido «quem é Jesus?» não se responde isoladamente, cada um por si, mas em comunhão e comunidade. Filipe e André, que levam a Jesus os pedidos daqueles homens, são figura da Igreja, chamada a viver e a caminhar na unidade e na comunhão, levando a Jesus os pedidos e intenções da humanidade inteira e fazendo presente no tempo e na história o rosto misericordioso de Jesus Cristo que revela o amor e a ternura do Pai.

Jesus poderia limitar-se a uma apresentação sumária da sua biografia ou a um belo discurso sobre a sua missão. Contudo, Jesus escolhe fazer a revelação da Sua mais plena e verdadeira identidade: o grão de trigo lançado à terra e o crucificado elevado da terra que atrairá todos a si. Jesus não pretende um conhecimento fugaz que faz acumular conhecimentos e informações, mas uma relação íntima e pessoal que transforma a vida e ensina um novo modo de relação dos homens e mulheres entre si e deles todos juntos com Deus.

Tantos séculos depois continuamos a dizer como os gregos «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Queremos conhecer a Sua verdadeira identidade e entrar em relação com Ele. Conhecer alguém apenas por aquilo que dizem dela, ainda que possa ser um bom ponto de partida, é sempre insuficiente, pois conhecer implica relação, proximidade e encontro.

Encontramos a verdadeira identidade de Jesus numa vida feita grão de trigo lançada à terra que germina, cresce e dá fruto, pois a vida, quanto mais se dá, mais se recebe e quanto mais se entrega aos outros, mais se torna nossa e de Deus: a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. in Voz Portucalense

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O Evangelho proposto para este Domingo apresenta o desejo de alguns gregos de ver Jesus. São muitos os homens e mulheres e hoje que querem ver Jesus, ainda que o modo de expressar esse desejo se manifeste nas suas mais diversas formas. A Semana Santa e o Tríduo Pascal que vamos viver são um lugar privilegiado para o encontro com Jesus. Percorrer os passos de Jesus desde a Sua entrada triunfal em Jerusalém até à Sua paixão, morte e ressurreição permite ver Jesus que por amor oferece a sua vida para nossa salvação. Como agentes evangelizadores, somos chamados a convidar quantos querem e precisam ver Jesus a participar nas celebrações da Semana Santa. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jeremias 31, 31-34

Dias virão, diz o Senhor,
em que estabelecerei com a casa de Israel e com a casa de Judá
uma aliança nova.
Não será como a aliança que firmei com os seus pais,
no dia em que os tomei pela mão
para os tirar da terra do Egipto,
aliança que eles violaram,
embora Eu exercesse o meu domínio sobre eles, diz o Senhor.
Esta é a aliança que estabelecerei com a casa de Israel,
naqueles dias, diz o senhor:
Hei-de imprimir a minha lei no íntimo da sua alma
e gravá-la-ei no seu coração.
Eu serei o seu Deus e eles serão o meu povo.
Não terão já de se instruir uns aos outros,
nem de dizer cada um a seu irmão:
«Aprendei a conhecer o Senhor».
Todos eles Me conhecerão,
desde o maior ao mais pequeno, diz o Senhor.
Porque vou perdoar os seus pecados
e não mais recordarei as suas faltas.

CONTEXTO

Jeremias exerceu a sua missão profética desde 627/626 a.C. até depois da destruição de Jerusalém pelos Babilónios (586 a.C.). O cenário da atividade do profeta é, em geral, o reino de Judá e, sobretudo, a cidade de Jerusalém.

A primeira fase da pregação de Jeremias abrange parte do reinado de Josias. Este rei leva a cabo, a partir de 632 a.C., uma reforma religiosa destinada a banir do país os cultos aos deuses estrangeiros. Jeremias empenha-se nesta reforma. A sua mensagem, neste período, traduz-se num constante apelo à conversão, à fidelidade a Javé e à Aliança.

No entanto, em 609 a.C., Josias é morto, em combate contra os egípcios. Joaquim sucede-lhe no trono. A segunda fase da atividade profética de Jeremias abrange o tempo de reinado de Joaquim (609-597 a.C.). É um tempo de desgraça e de pecado para Judá. Nesta fase, o profeta aparece a criticar as injustiças sociais e a infidelidade religiosa (a aliança política que Joaquim faz, por esta altura, com os egípcios significa que Judá confia mais num exército estrangeiro do que em Javé). Convencido de que Judá ultrapassou todas as marcas, Jeremias anuncia a iminência de uma invasão babilónica que irá castigar os pecados do Povo. As previsões funestas de Jeremias concretizam-se: em 597 a.C., Nabucodonosor invade Judá e deporta para a Babilónia uma parte da população de Jerusalém.

No trono de Judá fica, então, Sedecias (597-586 a.C.). A terceira fase da missão profética de Jeremias desenrola-se, precisamente, durante este reinado. Após alguns anos de calma submissão à Babilónia, Sedecias volta a experimentar a velha política das alianças com o Egipto. Jeremias não está de acordo que se confie em exércitos estrangeiros mais do que em Deus; mas nem o rei nem os notáveis prestam atenção à opinião do profeta.

Em 587 a.C., Nabucodonosor põe cerco a Jerusalém; no entanto, um exército egípcio vem em socorro de Judá e os babilónios retiram-se. Nesse momento de euforia nacional, Jeremias anuncia o recomeço do cerco e a destruição de Jerusalém (cf. Jr 32,2-5). Acusado de traição, o profeta é encarcerado (cf. Jr 37,11-16) e corre, inclusive, perigo de vida (cf. Jr 38,11-13). Enquanto Jeremias continua a pregar a rendição, Nabucodonosor apossa-se, de facto, de Jerusalém, destrói a cidade e deporta a sua população para a Babilónia (586 a.C.).

É impossível dizer com segurança em qual destes períodos de atividade do profeta encaixa o texto que a primeira leitura deste domingo nos apresenta. Para alguns, tratar-se de um oráculo da primeira fase da atividade profética de Jeremias (reinado de Josias), dirigido aos israelitas do Reino do Norte. Seria uma mensagem de esperança, destinada a animar esse povo que há cerca de cem anos tinha perdido a independência e estava sob o domínio assírio. Para outros, contudo, este texto será da época de Sedecias, algures entre a primeira e a segunda deportação do Povo para a Babilónia (597-586 a.C.). É a época em que Jeremias descobre perspetivas teológicas novas e começa a refletir sobre um tempo novo que Deus irá oferecer ao seu Povo: após a catástrofe, será possível recomeçar tudo, pois Deus tem em mente fazer uma nova Aliança com Judá. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Detenhamo-nos na palavra “Aliança”. Ela serviu aos teólogos de Israel para expressar o compromisso de Deus com o seu Povo, a sua decisão de descer ao encontro do seu Povo, de o acompanhar em cada passo da história e de lhe oferecer a Vida e a salvação. Esse Deus que faz “Aliança” com os homens é o Deus da comunhão e da relação, que olha para nós com amor, que nos convida a fazer parte da sua família e que nunca desiste de nós. É verdade: não andamos à deriva e sem rumo por caminhos sombrios, não somos criaturas sem valor perdidas num universo cujos contornos nos escapam, não somos seres “descartáveis” que podem ser deixados para trás e triturados pela história; somos criaturas que Deus conhece pessoalmente, por quem Deus se interessa infinitamente, que Deus acompanha e cuida com ternura de pai e de mãe. Que impacto tem esta “boa notícia” na nossa vida?
  • O profeta Jeremias revela que Deus, fiel ao seu amor e à sua decisão de nos levar ao encontro da Vida plena, se dispõe a gravar as suas propostas diretamente nos nossos corações. Ali, na raiz do nosso ser, as indicações de Deus tocarão os nossos sentimentos, as nossas decisões e as nossas ações, fazendo com que a nossa vida seja um reflexo da vida e dos valores de Deus. Conduzidos pelo Espírito de Deus age em nós, seremos dotados da capacidade de escolher o Bem, a Verdade, a Justiça, o Amor. Esta iniciativa de Deus refletirá, uma vez mais, o apreço que Ele tem por nós. Da nossa parte, estamos disponíveis para acolher o dom de Deus, para abraçar os seus desafios, para nos deixarmos transformar pelo seu Espírito? Estamos dispostos, neste tempo de Quaresma, a dar mais tempo ao encontro com Deus, ao diálogo com Deus, à escuta de Deus, ao acolhimento das suas propostas?
  • Essa Nova Aliança que Jeremias anunciou começa a concretizar-se em Jesus. Com a sua vida, com os seus gestos, com as suas palavras, com o seu amor, Ele veio inscrever nos nossos corações as propostas de Deus; e deixou-nos o seu Espírito, aquele “alento de Vida” que nos transforma, que nos renova e que nos capacita para viver segundo Deus. Somos verdadeiramente discípulos que seguem Jesus, que se deixam tocar pela sua Palavra e que aceitam o seu convite para integrar a comunidade da Nova Aliança? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 50 (51)

Refrão: Dai-me, Senhor, um coração puro.

Compadecei-Vos de mim, ó Deus, pela vossa bondade,
pela vossa grande misericórdia, apagai os meus pecados.
Lavai-me de toda a iniquidade
e purificai-me de todas as faltas.

Criai em mim, ó Deus, um coração puro
e fazei nascer dentro de mim um espírito firme.
Não queirais repelir-me da vossa presença
e não retireis de mim o vosso espírito de santidade.

Dai-me de novo a alegria da vossa salvação
e sustentai-me com espírito generoso.
Ensinarei aos pecadores os vossos caminhos
e os transviados hão-de voltar para Vós.

LEITURA II – Hebreus 5, 7-9

Nos dias da sua vida mortal,
Cristo dirigiu preces e súplicas,
com grandes clamores e lágrimas,
Àquele que O podia livrar da morte
e foi atendido por causa da sua piedade.
Apesar de ser Filho,
aprendeu a obediência no sofrimento
e, tendo atingido a sua plenitude,
tornou-Se para todos os que Lhe obedecem
causa de salvação eterna.

CONTEXTO

A Carta aos Hebreus é um escrito (alguns preferem dizer “um sermão”) de autor anónimo e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus” provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um património comum, assumido por todos os cristãos, quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo. Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… São, também, cristãos que facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o fervor inicial e que cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para isso, ele expõe o mistério de Cristo (apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança) e recorda a fé tradicional da Igreja.

O texto que nos é hoje proposto como segunda leitura deste quinto domingo da Quaresma é parte de uma longa reflexão (cf. Heb 3,1-9,28) sobre o sacerdócio de Cristo. Em concreto, a perícope de Heb 5,1-10 desenvolve o tema do sacerdócio de Cristo por comparação com o sumo-sacerdote do Antigo Testamento, apresentando uma série de aspetos semelhantes e opostos. Começa por apontar três aspetos que definem a missão do sumo-sacerdote: o sumo-sacerdote é um homem que, pela sua fragilidade, é capaz de entender as fragilidades (pecado) dos seus irmãos (vers. 2); o sumo-sacerdote tem como missão oferecer sacrifícios a Deus, a fim de refazer a comunhão entre Deus e o homem (vers. 3); o sumo-sacerdote desempenha esta missão por escolha de Deus, tal como aconteceu com o sacerdote Aarão (vers. 4).

Ora, estes três elementos também estão bem patentes no sumo-sacerdócio de Cristo.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus desceu até nós, “vestiu” a nossa humanidade, conheceu as nossas fragilidades, partilhou as nossas dores, medos e incertezas, experimentou as dificuldades do caminho que temos de fazer todos os dias. Tornou-se, verdadeiramente, nosso irmão. Pôde, assim, compreender as fraquezas dos homens e propor-lhes uma forma de as superar. Com a sua própria vida, com a sua entrega completa nas mãos do Pai, com o seu testemunho de uma vida dada por amor até ao extremo, Ele mostrou-nos como derrotar tudo aquilo que nos impede de aceder à Vida plena, à Vida verdadeira. Dispomo-nos a seguir Jesus nesse caminho, sem hesitações nem desculpas, confiando completamente n’Ele?
  • A oração, o diálogo com o Pai, é uma dimensão sempre presente na vida de Jesus. Os Evangelhos contam que, após jornadas intensas de anúncio do Reino, Ele retirava-se para lugares isolados para falar com o Pai. Era nesse diálogo que Ele discernia a vontade de Deus e encontrava a força para concretizar os planos do Pai. Foi também no diálogo sempre renovado com o Pai que Ele aprendeu a fazer de toda a sua vida um dom, uma entrega ao Pai e aos homens. Na nossa vida, temos espaço para dialogar com o Pai, para perceber os seus projetos para nós e para o mundo, para escutar os desafios que Deus nos faz? A nossa vida cumpre-se na indiferença para com Deus e para com os seus projetos, ou numa procura sincera e empenhada da vontade de Deus? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 12, 20-33

Naquele tempo,
alguns gregos que tinha vindo a Jerusalém
para adorar nos dias da festa,
foram ter com Filipe, de Betsaida da Galileia,
e fizeram-lhe este pedido:
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
Filipe foi dizê-lo a André;
e então André e Filipe foram dizê-lo a Jesus.
Jesus respondeu-lhes:
«Chegou a hora em que o Filho do homem vai ser glorificado.
Em verdade, em verdade vos digo:
Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só;
mas se morrer, dará muito fruto.
Quem ama a sua vida, perdê-la-á,
e quem despreza a sua vida neste mundo
conservá-la-á para a vida eterna.
Se alguém Me quiser servir, que Me siga,
e onde Eu estiver, ali estará também o meu servo.
E se alguém Me servir, meu Pai o honrará.
Agora a minha alma está perturbada.
E que hei de dizer? Pai, salva-Me desta hora?
Mas por causa disto é que Eu cheguei a esta hora.
Pai, glorifica o teu nome».
Veio então uma voz do céu que dizia:
«Já O glorifiquei e tornarei a glorificá-l’O».
A multidão que estava presente e ouvira
dizia ter sido um trovão.
Outros afirmavam: «Foi um Anjo que Lhe falou».
Disse Jesus:
«Não foi por minha causa que esta voz se fez ouvir;
foi por vossa causa.
Chegou a hora em que este mundo vai ser julgado.
Chegou a hora em que vai ser expulso o príncipe deste mundo.
E quando Eu for elevado da terra,
atrairei todos a Mim».
Falava deste modo,
para indicar de que morte ia morrer.

CONTEXTO

O evangelho que a liturgia do 5.º Domingo da Quaresma nos propõe situa-nos em Jerusalém, talvez no próprio dia da entrada solene de Jesus na cidade santa (cf. Jo 12,12-19). As multidões “que tinham chegado para a Festa” haviam aclamado Jesus como o rei/messias, encenando um rito de entronização e aclamando-o como aquele “que vem em nome do Senhor, o rei de Israel” (Jo 12,12-13). No entanto, no horizonte próximo paira a sombra da cruz: aproxima-se a “hora” há muito anunciada e esperada (cf. Jo 2,4; 7,30; 8,20), a “hora” do dom da vida até ao extremo, a “hora” da passagem deste mundo para o Pai, a “hora” da glorificação de Jesus.

O evangelista João coloca em cena “alguns gregos” que “tinham subido a Jerusalém para adorar” e que queriam ver Jesus. “Gregos” significa, provavelmente, “não judeus”. Podem ser prosélitos (estrangeiros convertidos ao judaísmo) ou simples simpatizantes do judaísmo. Esses “gregos” dirigem-se a Filipe. Filipe, por sua vez, vai apresentar a questão a André. Os dois tinham nomes gregos e os dois eram naturais de Betsaida (que significa “casa da pesca”), uma povoação situada na tetrarquia de Herodes Filipe, já fora do território judeu propriamente dito, a nordeste do Mar da Galileia. Filipe e André decidem levar a Jesus a pretensão dos “gregos”. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • A primeira leitura deste domingo dá conta da preocupação de Deus em oferecer aos homens uma nova Aliança, capaz de fazer nascer um Homem Novo. Como é que chegamos a essa realidade do Homem Novo, de coração transformado, isto é, com um coração que sente, que decide e que age segundo os esquemas e a lógica de Deus? O Evangelho responde: é olhando para Jesus, identificando-nos com Ele, aprendendo com Ele a pôr a nossa vida ao serviço do projeto de Deus, seguindo-O no caminho da cruz. Jesus é o modelo, a referência, o exemplo para quem quer aceitar o desafio de Deus e viver na comunidade da nova Aliança. Estamos verdadeiramente decididos a conhecer Jesus, a abraçar as suas propostas, a caminhar atrás d’Ele, como discípulos, no caminho do amor, do serviço, do dom da vida?
  • O caminho que Jesus nos aponta – o caminho da obediência a Deus, do amor até ao extremo, da entrega total da própria vida ao serviço de Deus e dos irmãos – parece, em pleno séc. XXI, um caminho pouco atraente, pouco lógico, pouco moderno, desligado da realidade do mundo, que nos coloca à margem dos valores e realizações que marcam a história do nosso tempo. Sentimo-nos com coragem para remar contra a maré e para dar testemunho – com as nossas palavras, com os nossos gestos, com a nossa vida – do caminho de Jesus? Somos capazes de afirmar, mesmo que nos ridicularizem, persigam e condenem, a nossa profunda convicção de que a proposta de Jesus faz sentido e pode fazer nascer um mundo mais humano, mais justo, mais fraterno, mais são, mais feliz?
  • Jesus rejeita absolutamente o caminho da autossuficiência, do fechamento em si próprio, do egoísmo estéril, dos valores efémeros. Ele sabe bem que, na lógica de Deus, esse caminho é um caminho que produz vidas vazias e sem sentido, sofrimento e frustração, desilusão e desânimo. Quem vive exclusivamente para si próprio, quem se preocupa apenas em defender os seus interesses e perspetivas, quem se apega excessivamente a uma realização pessoal cumprida em circuitos fechados, “compra” uma existência infecunda e que não vale a pena ser vivida. Perde a oportunidade de chegar ao Homem Novo, à realização plena, à vida verdadeira, à ressurreição, à salvação. Nesta “janela de conversão” que é o tempo quaresmal, que temos de mudar na nossa vida, nos nossos valores, nos nossos comportamentos, na nossa história, para estarmos plenamente alinhados com as propostas de Jesus?
  • Filipe e André, homens nascidos na “casa da pesca” e chamados por Jesus a serem “pescadores de homens”, servem de intermediários entre Jesus e os “gregos” que o querem conhecer. É através da comunidade dos discípulos que os homens “veem Jesus”, descobrem o seu projeto, encontram esse caminho de amor e de doação que conduz à vida nova do Homem Novo, à salvação. Isto recorda-nos a nossa responsabilidade de testemunhas de Jesus e da sua salvação no meio dos homens do nosso tempo… Aqueles irmãos que se cruzam connosco nos caminhos da vida descobrem no nosso testemunho o rosto de Jesus? Todos aqueles que vêm ao encontro de Jesus à procura da vida plena encontram na forma como nos doamos, como servimos e como amamos a proposta libertadora que, através de nós, Jesus quer passar a todos os homens? Somos realmente a ponte entre Jesus e aqueles que O querem “conhecer”? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação, contudo, deve ler-se com um tom alegre e feliz como quem anuncia uma bela e boa notícia.

A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a sua preparação. Apesar de breve, apresenta dois parágrafos com diversas orações, pelo que é essencial uma preparação das pausas e respirações do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O MUNDO VEIO ATRÁS DELE!

Domingo V da Quaresma: Jeremias 31,31-34; Salmo 51; Hebreus 5,7-9; João 12,20-33

A «caminhada» quaresmal aproxima‑se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa, onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus por nós. Nesta altura do percurso (supõe‑se que encetámos uma subida «espiritual»: entenda‑se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa Luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo para nós (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escru­tínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Batismal.

O Evangelho deste Domingo V da Quaresma (João 12,20-33) apresenta-nos o último discurso e a última aparição de Jesus em público, aos olhos da «multi­dão» (João 12,29 e 34), antes da narrativa da Ceia e da Paixão. Pouco depois, o evangelista diz‑nos que «Jesus se retirou e se escondeu deles» (João 12,36). A nós, porém, foi‑nos dado conhecer o Mistério deste escondimento, que o não é senão para se vir a manifestar (leia­‑se de novo inteligentemente o lógion de Jesus no Evange­lho de Marcos: «nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,22), e que esclarece o Mistério da Luz-que-vem (!), que é Ele, no versículo anterior). Em boa verdade, este Jesus que agora se esconde da multidão manifestar-se-á definitivamente, aos olhos de todos (também aos nossos!), na Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a esta geração (Mateus 12,39‑40; 1 Coríntios 1,20‑24): «olharão para aquele que trespassaram» (João 19,37).

É neste contexto que «uns gregos» (João 12,20) querem ver (ideîn) Jesus (João 12,21). São gregos de nascimento (hellênes), mas já não são pagãos. São «prosélitos» ou «tementes a Deus», que receberam o dom do «temor de Deus» (cf. At 10,2.22.35; 13,16.26), e se converteram dos ídolos ao Deus único, aderindo ao monoteísmo de Israel e à prática dos mandamentos. Tão-pouco são os chamados «helenistas» (hellênistai), hebreus na diáspora, que falavam a língua grega e tinham aderido à cultura grega. Note-se, desde já, o verdadeiro alcance deste desejo de ver, formulado com o verbo ideîn. De ideîn deriva, em português, ideia e identidade. A formulação deste ver com o verbo ideîn implica, portanto, que aqueles gregos não são movidos por mera curiosidade, não pretendem ver apenas Jesus por fora, isto é, ver o aspeto ou o rosto de Jesus. Eles pretendem ver a identidade de Jesus, ou seja, pretendem ver quem é Jesus. Ora, ver quem é Jesus não se resolve em cinco minutos, num simples relance de olhos. Implica uma longa e intensa convivência com Jesus.

Comunicam este seu desejo a Filipe, o qual, por sua vez, o comunica a André. Filipe e André são conterrâneos, naturais de Betsaida Julia (João 1,44), situada nos confins da Galileia e no limiar do mundo helénico, e são os dois únicos Apóstolos com nome claramente grego. Contam-se também entre os primeiros discípulos que, querendo saber quem era Jesus, se dirigiram a Ele, e que logo comunicaram a sua experiência a outros, e os conduziram a Jesus (cf. João 1,35-46). Pelos vistos, não se cansaram nem esqueceram esse jeito de fazer, e é assim que os vemos no episódio de hoje a desempenhar com diligência o seu papel de fazer de ponte entre a humanidade e Jesus. Os dois levam a mensagem a Je­sus (João 12,22). E Jesus marca a hora da entrevista: desde agora e pa­ra sempre. É este o sentido do a hora veio (João 12,23). Veio (elêluthen: perf2 de érchomai) e fica para sempre: assim o indica o perfeito usado no texto grego. Esta hora que veio é a hora da morte, ressurreição, glorificação (um único acontecimento), é a hora da Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a «judeus» e a «gregos», portanto, a todos. A entrevista começou e não termina mais, pois o futuro anunciado do discípulo é o presente do Mestre, a Glória celestial em que está: «onde eu estou (eimí), aí estará (éstai) também o meu servo» (João 12,26).

Para o leitor atento do IV Evangelho, esta hora (hôra) de Jesus de há muito era esperada, dado que, em episódios sucessivos, Jesus e o narrador vão orientando para ela o olhar dos seus discípulos. Acontece logo nas bodas de Caná, quando Jesus diz: «ainda não chegou a minha hora» (João 2,4). E, em Jerusalém, no decurso da Festa das Tendas, o narrador informa-nos por duas vezes que os judeus bem queriam prendê-lo, mas não o fazem «porque ainda não tinha chegado a sua hora» (João 7,30; 8,20). Sempre durante a Festa das Tendas, o próprio Jesus enche esta hora com conteúdo novo e significativo, quando diz: «O meu tempo (kairós) ainda não chegou» (João 7,6). Kairós não é o mero tempo cronológico, mas o tempo grávido da Palavra de Deus, verdadeira enchente da Palavra de Deus a que temos de responder, e não podemos não responder, dado que a Palavra de Deus se apodera de nós até transbordar. Sem Deus e a sua Palavra primeira e criadora, que está antes das coisas e do homem, antes de nós, que faz acontecer as coisas e o homem, não há kairós nem chrónosChrónos é o segmento de tempo que nos é dado viver. Kairós é este segmento de tempo com relevo, o tempo grávido de amor novo e pleno, que exige a nossa resposta.

Aí está a inaudita história nova do grão de trigo: «Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz (phérô) muito fruto» (João 12,24). É fácil ver neste único grão de trigo, e neste grão de trigo único, e na sua história de produção nova e incalculável, o próprio Jesus. Sim, esta é a sua história, mas vê-se também, olhando em contraluz o grão de trigo e o seu percurso, a inteira história humana, em que do abaixamento, do sangue inocente, da humildade e da humilhação, brota sempre vida nova. Paradoxal: a morte a produzir fruto abundante! A morte a produzir a vida! O v. 25, logo a seguir, esclarece e amplia este paradoxo, com Jesus a dizer bem alto: «quem se agarra à sua vida, perde-a». Portanto, é forçoso que o discípulo de Jesus olhe para o chão, e aprenda a lição do grão de trigo semeado. Mas é igualmente necessário, e em simultâneo, olhar para o céu, para o alto, para o cume, para a Cruz, para poder ser, por graça, arrastado por Jesus (v. 32). Só assim se pode perceber e receber a vida eterna (zôê aiônios, e não bíos) (v. 25), a vida divina. Fora deste paradigma, nada. Apenas agarrar-se a esta vida (bíos) e «receber glória uns dos outros» (João 5,44).

Aquele «veio a hora» enche o tempo, leva-o e eleva-o à sua plenitude, e vê-se toda a latitude aberta diante dos nossos olhos atónitos. É a hora da Cruz Gloriosa, avenida para sempre aberta entre Deus e o nosso mundo. Graça a transbordar. Tempo novo. É importante acentuar que são «uns gregos», também os gregos, que querem ver Jesus (João 12,20-21). Cenário grandioso, muito para além do imaginado, mas que mostra bem a largueza da ambiência desta hora e da audiência que segue Jesus para escutar esta cena altíssima da Revelação de Jesus acerca da chegada da sua hora, que é a Cruz Gloriosa. Jesus terminará a suprema Revelação desta hora, dizendo: «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkôtodos a mim» (João 12,32). E os próprios fariseus tinham confessado imediatamente antes do início do nosso texto: «O mundo (ho kósmos) veio atrás dele (opísô autoû)!» (João 12,19).

Para fazer acorde musical com o imenso texto do Evangelho de hoje, aí está a escolha perfeita: a «aliança nova» de Jeremias 31,31-34. É a aliança nova prometida para os últimos tempos, e realizada neste Jesus que Deus ressus­citou, o qual «recebeu do Pai o Espírito Santo prometido e o derramou» (Atos 2,32‑33). Este Jesus é, portanto, a úni­ca Fonte do Espírito Santo para nós, a Vida nova de Deus derramada nos nossos corações (Romanos 2,29; 5,5; 7,6; 8,14‑27; 2 Coríntios 3,6; Gálatas 3,14; 4,6; Efésios 1,13…), com o dom do Jubileu divino do perdão dos pe­cados (João 20,19‑23). Deus «peca» sempre por excesso: é anu­lada até a «memória divina dos pecados»! Deus tinha antes escrito no nosso coração os nossos pecados (Jeremias 17,1). Eis que apaga agora essa escrita, para escrever no nosso coração o perdão, não apenas repetido ou indefinido, mas infinito, sem causa nem motivo nem suporte, que é a chave que abre todas as avenidas do humano coração (Jeremias 31,33-34).

Outra música igualmente intensa vem hoje da Carta aos Hebreus 5,7-9, para ajudar a compor a linha melódica que Deus toca diante de nós e dentro de nós, nas cordas mais sensíveis do nosso coração. É um dos passos mais densos do Novo Testamento. O próprio Cristo, sendo embora o Filho de Deus, Deus Ele mes­mo, enquanto Homem verdadeiro, treme perante a Morte. Porém, no momento central da sua vida (central para ele e para nós), ele aceita a morte, submetendo a sua vontade humana à sua – e do Pai e do Espírito Santo – Vontade divina (conferir a Oração do Getsémani e do «Pai Nosso»). On­de toda a Humanidade, desde Adam, fracassou, ele venceu, ofe­recendo a Deus incondicionalmente a sua liberdade e a nós a graça do amor e do perdão. Por isso, o Pai pode levá‑lo à perfeição, verbo teleióô, que não in­dica perfeição moral (!), mas «ser feito sacerdote, perfei­to no serviço sacerdotal», por nossa causa. Perante tanta e quase insuportável riqueza, não nos resta senão cair de joe­lhos e adorar em silêncio «no Espírito e na Verdade».

Cantamos hoje o Salmo 51, a súplica penitencial por excelência, que constitui a ossatura espiritual de Agostinho, de Charles de Foucauld, de Joana D’Arc, que inspirou a pena de muitíssimos Padres da Igreja, e ecoa na música de Bach, Lulli, Donizetti, Honegger… Hoje é a nossa vez de nos sentarmos um pouco a trautear a música que nos atravessa e nos põe de pé. Está aqui a letra e a música do homem, de qualquer homem, seja ele quem for, de que raça for, de que religião for. Enxerto aqui as palavras preciosas que constituem a introdução: «Faz-me graça, ó Deus, segundo o Teu amor! Segundo a multidão das Tuas misericórdias, apaga as minhas transgressões! Lava-me e relava-me da minha iniquidade, e do meu pecado purifica-me!» (Salmo 51,3-4). Quem é Deus? Graça, amor, misericórdias. Quem sou eu? Transgressões, iniquidade, pecado. Quem sairá vencedor desta luta: serei eu ou será Deus? Claro que é Deus. Deixo aqui, a fechar, as palavras altíssimas da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, de seu nome: «Um homem disse a Rabiʽa: “Cometi muitos pecados e muitas transgressões; se me arrepender, Deus perdoar-me-á?”. Disse Rabiʽa: “Não. Tu arrepender-te-ás, se Ele te perdoar”» (I detti di Rabiʽa, XII, 2).

Ainda agora abri a página em branco do deve-e-haver
Desta última etapa da Quaresma.
Não sei ainda os registos que nela se farão,
Mas já sei que, ao terminar o dia,
A página agora aberta transbordará de perdão e de alegria.
 

É essa a lição que se recebe do grande Salmo deste dia:
«Faz-me graça, ó Deus, segundo o teu amor,
Segundo a multidão das tuas misericórdias!
Apaga as minhas transgressões,
Lava-me e relava-me da minha iniquidade,
E do meu pecado purifica-me!».
 

Graça, amor, misericórdias:
É a tua bondade aqui três vezes dita.
Transgressõesiniquidadepecado:
É a minha maldade aqui também três vezes repetida.
 

Tu e eu sempre frente-a-frente,
Sempre lado-a-lado:
Teu é o amor, meu é o pecado.
Mas vê-se bem que esta luta tem um vencedor antecipado:
Sim, o teu amor acaba sempre por vencer o meu pecado!
 

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 (Jer 31, 31-34)
  2. Leitura II do Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 (Heb 5, 7-9)
  3. Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo V da Quaresma – Ano B – 17.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024

 IV Domingo da Quaresma designado como Domingo Laetare (Domingo da Alegria)

 

Viver a Palavra

Continuamos a contar os 40 dias da Quaresma desde a Quarta-Feira de Cinzas até à Páscoa. Mas ao Domingo não é Quaresma. É Páscoa.

«O que é a Quaresma?». Esta é uma pergunta frequente que os catequistas gostam de dirigir aos seus catequizandos. Com a exceção de um ou outro comentário mais destabilizador afirmando ser um conhecido jogador de futebol, a resposta das crianças, adolescentes ou jovens é unânime: «a Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa». Na verdade, a Quaresma é o tempo que nos conduz à celebração da Páscoa da Ressurreição e, por isso, tempo de preparação para a celebração da mais importante solenidade do calendário litúrgico. Contudo, é tempo de preparação para a verdadeira Páscoa, aquela que nos liberta do pecado e da morte e nos faz entrar na vida nova e ressuscitada que Jesus nos oferece.

Deste modo, a Quaresma é tempo de conversão e penitência e abre o nosso coração para a alegria nova da renovação de vida e transformação do coração. A Quaresma é o tempo feliz de experimentar o amor superabundante de Deus que envia o Seu Filho não para condenar o mundo, mas para o redimir, salvar e levar à sua plena realização.

Muitas vezes a Quaresma parece um «puxar a fita atrás» e percorrer o caminho da condenação, paixão e crucifixão de Jesus até à ressurreição. Contudo, a Quaresma não é um recuar no tempo para reviver o sofrimento e entrega de Jesus. A Quaresma que atravessamos para chegar à celebração da Páscoa faz-se sempre depois da Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele ressuscitou e está vivo e, por isso, vivemos a Quaresma como tempo alegre e feliz da presença do Ressuscitado que nos convida à conversão.

Neste itinerário de penitência e renovação de vida, emerge o IV Domingo da Quaresma, Domingo Laetare, que sublinha a alegria que a conversão oferece à vida e com as palavras de Isaías cantamos na antífona de entrada: «Alegra-te, Jerusalém; rejubilai, todos os seus amigos. Exultai de alegria, todos vós que participastes no seu luto e podereis beber e saciar-vos na abundância das suas consolações».

A Liturgia da Palavra deste Domingo sublinha a estreita relação entre alegria e amor, recordando que a verdadeira alegria nasce da certeza de que Deus nos ama e nos chama a participar da Sua vida divina entrando neste dinamismo de amor. Como recorda o Segundo Livro das Crónicas, Deus envia sem cessar os Seus mensageiros para recordar o amor de Deus que converte e quer salvar o homem e a mulher do seu mau caminho. Este amor revelado de modo pleno e definitivo em Jesus Cristo, como nos recorda S. Paulo, «restituiu-nos à vida com Cristo».

Nas noites escuras da nossa existência, onde o medo e a vergonha tantas vezes nos invadem como aconteceu com Nicodemos, podemos sentir a voz de Jesus que dissipa o medo e afasta o temor: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». O mundo e a criação, cada homem e cada mulher são desmedidamente amados por Deus, ao ponto de Ele lhe enviar o Seu único Filho para o redimir e salvar.

Esta graça que Deus nos concede, fazendo de cada um de nós filhos muito amados de Deus, desafia-nos a entrar neste dinamismo de amor, fazendo de cada um de nós verdadeiros instrumentos e sinais de que o mundo não é para ser julgado e condenado, mas amado, salvo e redimido e, por isso, como afirmou o Padre Virginio Rotondi: «o mundo amado apaixonadamente por Deus não pode deixar de ser amado por nós». in Voz Portucalense (adaptado)

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O IV Domingo da Quaresma é designado como Domingo Laetare (Domingo da Alegria). Esta designação é retirada da primeira palavra da antífona de entrada da missa: «Laetare, Ierusalem, et conventum facite omnes qui diligites eam». (Alegra-te Jerusalém! Reuni-vos, vós todos que a amais). Este Domingo deve recordar os fiéis que o tempo da Quaresma é «tempo de cantar a alegria do perdão» (Ir. Roger). Deste modo, a celebração eucarística deste Domingo é a oportunidade de uma reflexão sobre a alegria cristã e que está tão ligada ao magistério do Papa Francisco (Evangelii GaudiumAmoris LaetitiaGaudete et Exsultate), onde podemos encontrar belíssimos textos e contributos sobre a alegria do Evangelho, a alegria do amor que se vive na família ou a alegria de percorrer a estrada da santidade. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 2 Crónicas 36,14-16.19-23

Naqueles dias,
todos os príncipes dos sacerdotes e o povo
multiplicaram as suas infidelidades,
imitando os costumes abomináveis das nações pagãs,
e profanaram o templo
que o Senhor tinha consagrado para Si em Jerusalém.
O Senhor, Deus de seus pais,
desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros,
pois queria poupar o povo e a sua própria morada.
Mas eles escarneciam dos mensageiros de Deus,
desprezavam as suas palavras e riam-se dos profetas,
a tal ponto que deixou de haver remédio,
perante a indignação do Senhor contra o seu povo.
Os caldeus incendiaram o templo de Deus,
demoliram as muralhas de Jerusalém.
Lançaram fogo aos seus palácios
e destruíram todos os objetos preciosos.
O rei dos caldeus deportou para Babilónia
todos os que tinham escapado ao fio da espada;
e foram escravos deles e de seus filhos,
até que se estabeleceu o reino dos persas.
Assim se cumpriu o que o Senhor anunciara pela boca de Jeremias:
«Enquanto o país não descontou os seus sábados,
esteve num sábado contínuo,
durante todo o tempo da sua desolação,
até que se completaram setenta anos».
No primeiro ano do reinado de Ciro, rei da Pérsia,
para se cumprir a palavra do Senhor,
pronunciada pela boca de Jeremias,
o Senhor inspirou Ciro, rei da Pérsia,
que mandou publicar, em todo o seu reino,
de viva voz e por escrito,
a seguinte proclamação:
«Assim fala Ciro, rei da Pérsia:
O Senhor, Deus do Céu, deu-me todos os reinos da terra
e Ele próprio me confiou o encargo
de Lhe construir um templo em Jerusalém, na terra de Judá.
Quem de entre vós fizer parte do seu povo ponha-se a caminho
e que Deus esteja com ele».

CONTEXTO

O Livro das Crónicas (dividido em duas partes) é uma obra de um autor anónimo, que se propõe contar a história de Israel, desde a criação do mundo, até à época do Exílio. O livro faz parte de um bloco com alguma unidade (em conjunto com os livros de Esdras e de Neemias) que se costuma designar como “Obra do Cronista”.

O autor privilegia, na sua obra, a história do reino do Sul (Judá), dando um especial destaque ao rei David e seus descendentes. Também dá algum relevo à tribo de Levi, pelo facto de esta tribo estar ligada às questões de âmbito litúrgico. Em contrapartida, ignora deliberadamente a história do reino do Norte (Israel).

Os estudiosos não estão de acordo no que diz respeito à datação da obra do Cronista. No entanto, muitos falam de um processo de redação em várias etapas: por volta de 515 a.C. teria aparecido uma primeira edição da obra, com a finalidade de legitimar o culto no “segundo Templo” (isto é, no Templo reconstruído pelos judeus regressados do Exílio na Babilónia); entre 400 e 375 a.C., teria aparecido uma segunda edição, destinada a sublinhar a autoridade de Esdras como legislador e intérprete da Tora; entre 350 e 300 a.C., teria aparecido uma terceira edição, destinada a animar e a fortalecer e a consolidar a comunidade judaica frente à hostilidade dos vizinhos, particularmente dos samaritanos. O objetivo fundamental do autor parece ser o de propor a fidelidade a Deus e à Aliança. Essa fidelidade deve manifestar-se, segundo o Cronista, no cumprimento da Lei e no ritual do culto do Templo de Jerusalém.

O texto que nos é proposto como primeira leitura neste quarto domingo da Quaresma aparece na parte final do segundo volume do Livro das Crónicas. Neste texto, o Cronista refere dois factos históricos separados por quase 50 anos: a queda de Jerusalém nas mãos de Nabucodonosor (586 a.C.) e a autorização dada pelo rei persa Ciro para o regresso dos exilados a Jerusalém, após a queda da Babilónia (538 a.C.). Pelo meio, o Povo de Deus conheceu a dramática experiência do Exílio na Babilónia.

Contudo, o autor está muito mais interessado em dar-nos uma interpretação teológica dos factos do que em oferecer-nos uma descrição pormenorizada dos acontecimentos históricos. Não é um historiador ou um analista político a falar, mas sim um crente preocupado em ler a história à luz da fé e em tirar daí as conclusões que se impõem.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Embora usando elementos teológicos e formas de expressão típicas da sua época, o Cronista recorda-nos algo que é indesmentível: quando a pessoa prescinde de Deus e escolhe caminhos de egoísmo e de autossuficiência, está a construir um futuro sem horizontes e sem esperança. Na verdade, a nossa experiência de todos os dias mostra como a indiferença da pessoa face a Deus e às suas propostas gera violência, opressão, exploração, exclusão, solidão, sofrimento. Então, a culpa de muitos dos males que nos afligem não é de Deus, mas sim das opções erradas que fazemos. Estamos conscientes disto? Estamos disponíveis, neste tempo de Quaresma, para fazer um caminho de “conversão” que nos leve de regresso a Deus, dispostos a escutá-l’O e a acolher as indicações que Ele nunca desiste de nos dar?
  • A perspetiva de que a libertação do cativeiro é comandada por Deus e de que Deus oferece ao seu Povo a oportunidade de um novo começo aponta no sentido da esperança. Deus nunca desiste dos seus filhos. Ele abomina o pecado que destrói o nosso mundo e as nossas vidas, mas continua a amar-nos, apesar das nossas opções erradas. Dá-nos a possibilidade, continuamente renovada, de recomeçar, de refazer tudo, de reconstruir as nossas vidas. A certeza do amor de Deus deve iluminar cada instante da nossa vida nesta terra; e deve também ser um incentivo a abraçarmos uma vida nova: mais livre, mais fraterna, mais solidária, mais humana. Confiamos no amor de Deus? Estamos dispostos a aceitar, neste caminho que estamos a percorrer em direção à Páscoa, as oportunidades de renovação que esse amor nos oferece? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 136 (137)

Refrão:  Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua.

Sobre os rios de Babilónia nos sentámos a chorar,
com saudades de Sião.
Nos salgueiros das suas margens,
dependurámos nossas harpas.

Aqueles que nos levaram cativos
queriam ouvir os nossos cânticos
e os nossos opressores uma canção de alegria:
«Cantai-nos um cântico de Sião».

Como poderíamos nós cantar um cântico do Senhor
em terra estrangeira?
Se eu me esquecer de ti, Jerusalém,
esquecida fique a minha mão direita.

Apegue-se-me a língua ao paladar,
se não me lembrar de ti,
se não fizer de Jerusalém
a maior das minhas alegrias.

LEITURA II – Efésios 2, 4-10

Irmãos:
Deus, que é rico em misericórdia,
pela grande caridade com que nos amou,
a nós, que estávamos mortos por causa dos nossos pecados,
restituiu-nos à vida em Cristo
– é pela graça que fostes salvos –
e com Ele nos ressuscitou
e nos fez sentar nos Céus com Cristo Jesus,
para mostrar aos séculos futuros
a abundante riqueza da sua graça
e da sua bondade para connosco, em Cristo Jesus.
De facto, é pela graça que fostes salvos, por meio da fé.
A salvação não vem de vós: é dom de Deus.
Não se deve às obras: ninguém se pode gloriar.
Na verdade, nós somos obra sua, criados em Cristo Jesus,
em vista das boas obras que Deus de antemão preparou,
como caminho que devemos seguir.

CONTEXTO

A cidade de Éfeso estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. Era uma cidade grande e próspera, capital da Província Romana da Ásia. O seu porto de mar ligava o interior da Ásia Menor com todas as cidades do Mediterrâneo.

Quando Paulo chegou a Éfeso (cf. At 19,1), durante a sua terceira viagem missionária, encontrou alguns cristãos escassamente preparados. Paulo procurou instruí-los e dar-lhes uma adequada formação cristã. De acordo com o Livro dos Atos dos Apóstolos, Paulo permaneceu na cidade durante um longo período (mais de dois anos, segundo At 19,10), ensinando na sinagoga e, depois, na “escola de Tirano” (At 19,9). Assim, reuniu à sua volta um número considerável de pessoas convertidas ao “Caminho” (At 19,9.23). Ainda de acordo com o autor dos Atos, foi aos anciãos da Igreja de Éfeso que Paulo confiou, em Mileto (cf. At 20,17-38), o seu testamento espiritual, apostólico e pastoral, antes de ir a Jerusalém, onde acabaria por ser preso. Tudo isto faz supor uma relação muito estreita entre Paulo e a comunidade cristã de Éfeso.

Curiosamente, a carta aos Efésios é bastante impessoal e não reflete essa relação. Alguns dos comentadores dos textos paulinos duvidam, por isso, que esta carta venha de Paulo. Outros, porém, acreditam que o texto que chegou até nós com o nome de “Carta aos Efésios” é um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, inclusive à comunidade cristã de Éfeso.

Em qualquer caso, a Carta aos Efésios apresenta-se como uma carta escrita por Paulo, numa altura em que o apóstolo está na prisão (em Roma?). O seu portador teria sido um tal Tíquico. Estamos por volta dos anos 58/60. Trata-se de um texto com uma grande riqueza temática, de uma reflexão amadurecida e completa onde o autor apresenta uma espécie de síntese da teologia paulina.

O texto que a liturgia deste quarto domingo da Quaresma nos propõe como segunda leitura integra a parte dogmática da carta (cf. Ef 1,3-3,21). Propõe uma reflexão sobre o papel de Cristo na salvação do homem. O autor começa por constatar a situação de pecado em que o homem vive e da qual, por si só, não pode sair (cf. Ef 2,1-3). O homem estará, portanto, condenado à escravidão do pecado e à morte?in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A vida do ser humano sobre a terra está marcada pela debilidade, pela finitude, pelas limitações inerentes à nossa condição humana. A doença, o sofrimento, o egoísmo, o pecado são realidades que acompanham a nossa existência, que nos mantêm prisioneiros e que nos roubam a esperança. Parece que, por nós próprios, nunca conseguiremos superar os nossos limites e alcançar essa realidade de vida plena, de felicidade total com que permanentemente sonhamos. Por isso, certos filósofos contemporâneos referem-se à futilidade da existência, à náusea que acompanha a vida da pessoa, à inutilidade da busca da felicidade, ao fracasso que é a vida condenada à morte… Este quadro seria desesperante se não existisse o amor de Deus. É precisamente isso que o autor da Carta aos Efésios nos recorda: Deus ama-nos com um amor total, incondicional, desmedido; e é esse amor que nos levanta da nossa condição, que nos faz vencer os nossos limites, que nos oferece esse mundo novo de vida plena e de felicidade sem fim a que aspiramos. Não somos pobres criaturas derrotadas, condenadas ao fracasso, limitadas por um horizonte sem sentido, mas somos filhos amados a quem Deus oferece a vida plena, a salvação. Nós, crentes, que conhecemos e confiamos no amor de Deus, somos capazes de oferecer aos nossos irmãos – cansados, desiludidos e magoados pelas feridas da vida – um testemunho de esperança?
  • Segundo o autor da Carta aos Efésios, Deus introduziu na nossa realidade humana dinamismos de superação e de vida nova que apontam para o Homem Novo, livre das limitações, da debilidade e da fragilidade. Aqueles homens e mulheres que acolheram o dom de Deus são chamados a dar testemunho de um mundo novo, livre do sofrimento, da injustiça, do egoísmo, do pecado. Por isso, os crentes têm de anunciar e de construir um mundo mais justo, mais fraterno, mais humano. Eles são testemunhas, nesta terra, de uma realidade nova de felicidade sem fim e de vida eterna. Nós, discípulos de Jesus, procuramos ser arautos desse mundo novo?
  • A vida nova de Deus manifesta-se nas nossas palavras, nos nossos gestos de partilha e de serviço, nas nossas atitudes de tolerância e de perdão, na nossa solidariedade com os irmãos esquecidos e abandonados, nos nossos esforços para construir pontes de entendimento e de diálogo… Convém, no entanto, não esquecer este facto essencial: é Deus que, através de nós, age no mundo e na vida dos homens. O mérito das coisas boas que fazemos não é nosso, mas sim de Deus. Temos consciência de que somos apenas os instrumentos frágeis através dos quais Deus manifesta ao mundo e aos homens a sua misericórdia e o seu amor? in Dehonianos.

EVANGELHO – João 3, 14-21

Naquele tempo,
disse Jesus a Nicodemos:
«Assim como Moisés elevou a serpente no deserto,
também o Filho do homem será elevado,
para que todo aquele que acredita
tenha n’Ele a vida eterna.
Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito,
para que todo o homem que acredita n’Ele
não pereça, mas tenha a vida eterna.
Porque Deus não enviou o Filho ao mundo
para condenar o mundo,
mas para que o mundo seja salvo por Ele.
Quem acredita n’Ele não é condenado,
mas quem não acredita já está condenado,
porque não acreditou no nome do Filho Unigénito de Deus.
E a causa da condenação é esta:
a luz veio ao mundo
e os homens amaram mais as trevas do que a luz,
porque eram más as suas obras.
Todo aquele que pratica más ações
odeia a luz e não se aproxima dela,
para que as suas obras não sejam denunciadas.
Mas quem pratica a verdade aproxima-se da luz,
para que as suas obras sejam manifestas,
pois são feitas em Deus.

CONTEXTO

Jesus tinha ido a Jerusalém para a celebração da Páscoa (cf. Jo 2,13). Foi lá que se encontrou e conversou com um fariseu chamado Nicodemos, que era “uma autoridade entre os judeus” (Jo 3,1).

Dizer que Nicodemos era fariseu é dizer que ele era um homem da Lei. Os fariseus distinguiam-se pela sua adesão e fidelidade à Lei de Moisés. Os membros deste partido tinham grande influência entre o povo pela sua fama de observância e de prática religiosa. Mas João diz-nos também que Nicodemos era uma autoridade entre os judeus. Isso significa, provavelmente, que era membro do Sinédrio, um representante do judaísmo oficial. O encontro de Nicodemos com Jesus dá-se “de noite”. A indicação pode significar que ele não queria ser visto com Jesus para não prejudicar a sua posição, ou pode ter a ver com o hábito que os fariseus tinham de estudar a Lei à noite. Também pode significar que, nessa altura, Nicodemos ainda está às escuras, pois ainda não foi iluminado pela luz de Jesus. É bem possível que Nicodemos fizesse parte de um grupo, dentro do judaísmo erudito, que se interessava por Jesus e que queria compreendê-lo. Nicodemos aparecerá, mais tarde, a defender Jesus, perante os chefes dos fariseus (cf. Jo 7,50-52). Também estará presente na altura em que Jesus foi descido da cruz e colocado no túmulo (cf. Jo 19,39).

A conversa daquela noite entre Jesus e Nicodemos apresenta três momentos significativos. No primeiro (cf. Jo 3,1-3), Nicodemos reconhece a autoridade de Jesus, graças às obras poderosas que Ele faz; mas Jesus acrescenta que isso não é suficiente, pois o essencial é reconhecê-l’O como o enviado do Pai, como aquele que veio do alto para revelar Deus. No segundo (cf. Jo 3,4-8), Jesus explica a Nicodemos que, para entender a proposta que Ele traz, é preciso “nascer de Deus”; e explica-lhe que esse novo nascimento é o nascimento “da água e do Espírito”. No terceiro (cf. Jo 3,9-21), Jesus descreve a Nicodemos o projeto de salvação de Deus: é uma iniciativa do Pai, tornada presente no mundo e na vida dos homens através do Filho e que se concretizará pela cruz/exaltação de Jesus. O extrato da conversa que escutamos neste quarto domingo da Quaresma pertence a esta terceira parte. É um texto carregado de densidade teológica. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • João é o evangelista abismado na contemplação do amor de um Deus que não hesitou em enviar ao mundo o seu Filho, o seu único Filho, para apresentar aos homens uma proposta de felicidade plena, de vida definitiva. O Evangelho deste domingo convida-nos a contemplar, com João, esta incrível história de amor e a espantar-nos com o peso que nós – seres limitados e finitos, pequenos grãos de pó na imensidão das galáxias – adquirimos nos esquemas, nos projetos e no coração de Deus. Temos consciência desse amor, estamos gratos por esse amor, aceitamos que esse amor nos indique o caminho que devemos percorrer e a forma como devemos viver?
  • O amor de Deus traduz-se na oferta ao homem de Vida plena e definitiva. É uma oferta gratuita, incondicional, absoluta, válida para sempre e que não discrimina ninguém. Aos homens – dotados de liberdade e de capacidade de opção – compete decidir se aceitam ou se rejeitam o dom de Deus. Às vezes, os homens acusam Deus pelas guerras, pelas injustiças, pelas arbitrariedades que trazem sofrimento e morte que pintam as paredes do mundo com a cor do desespero… O texto, contudo, é claro: Deus ama a pessoa e oferece-lhe a vida. O sofrimento e a morte não vêm de Deus, mas são o resultado das escolhas erradas feitas pelo ser humano que se obstina na autossuficiência e que prescinde dos dons de Deus. Temos consciência de que alguns dos males do nosso mundo poderão resultar do nosso egoísmo, do nosso orgulho, do nosso comodismo, dos nossos preconceitos, da nossa recusa em ouvir Deus e em seguir caminhos que Ele nos aponta? O que é que precisamos de mudar, nas nossas vidas, para sermos sinais e arautos do amor de Deus?
  • O evangelista João define claramente o caminho que todo o homem deve seguir para chegar à vida eterna: trata-se de “acreditar” em Jesus. “Acreditar” em Jesus não é uma mera adesão intelectual ou teórica a certas verdades da fé; mas é escutar Jesus, acolher a sua mensagem e os seus valores, segui-l’O no caminho do amor e da entrega ao Pai e aos irmãos. “Acreditar” significa olhar para aquele homem levantado na cruz e aprender com Ele o amor até ao extremo, o amor que ultrapassa todo o egoísmo e é dom total. Jesus é para nós essa referência fundamental, que procuramos seguir a cada instante e que nos aponta o caminho? Estamos dispostos a confiar incondicionalmente n’Ele, mesmo quando as suas indicações parecem estar contra a cultura ambiente, os ditames da moda, as doutrinas vigentes, ou as regras do socialmente correto?
  • Alguns cristãos vivem obcecados e assustados com esse momento final em que Deus vai julgar a pessoa, depois de pesar na balança as suas ações boas e as suas ações más… João garante-nos que Deus não é um contabilista, a somar os débitos e os créditos da pessoa para lhes pagar em conformidade… O cristão não vive no medo, pois ele sabe que Deus é esse Pai cheio de amor que oferece a todos os seus filhos a vida eterna. Não é Deus que nos condena; somos nós que escolhemos entre a vida eterna que Deus nos oferece ou a eterna infelicidade. Vivemos no medo de Deus, ou temos consciência de que somos nós que, com liberdade, fazemos as nossas opções? E, quando optamos, sabemos o que estamos a construir e para onde caminhamos? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura exige uma acurada preparação quer pela extensão do texto, quer por algum vocabulário menos usual. Além disso, é necessário ter em atenção as frases longas com diversas orações.

Este mesmo cuidado deve ser tido em conta na preparação da segunda leitura, onde é necessário preparar bem as pausas e respirações para uma proclamação mais eficaz do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A LUZ VEIO AO MUNDO

Domingo IV da Quaresma: 2 Crónicas 36,14-16.19-23; Salmo 137; Efésios 2,4-10; João 3,14-21

Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, bati­zados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batis­mal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium, n.º 109), que têm neste IV Domingo da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «cha­mada» para a Liberdade.

O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (João 3,14-21) mostra-nos a toda a luz o «Filho do Homem», que deve (deîser levantado [= crucificado/exaltado/glorificado] como o verda­deiro «Servo do Senhor» (Isaías 52,13), logo identificado com Cristo Jesus (Filipenses 2,9), o Filho Unigénito de Deus, «a Luz que veio ao mundo» (João 3,19; 12,46), para dar a Vida ao mun­do (João 1,4; 3,15‑16). Veio (elêlythen: perf2 de érchomai) ao mundo e permanece acesa no mundo, como indica o perfeito usado no texto grego. Marcos recorre à crueza da linguagem para nos fazer compreender melhor o Mistério desta Luz-que-vem: «Vem a Luz (!) para ser colocada debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não, antes, para ser colo­cada sobre o candelabro? Na verdade, nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,21‑22). Tendo vindo na humildade da condição humana, esta Luz foi entronizada na Cruz onde arde para sempre: suprema manifestação do infinito, insondável, impenetrável, incompreensível, indi­zível amor de Deus: «Deus amou (êgápêsen: aoristo históri­co!) tanto o mundo»! (João 3,16). Assim manifestada na Cruz Gloriosa, esta Luz dá a Vida verdadeira a quem para ela olhar como a imagem da cobra levantada no deserto (Números 21,8‑9). «Hão‑de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (João 12,32). «Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou”» (título divino) (João 8,28).

Quanto à força daquele arrasto operado por Jesus, continua Jesus a ensinar-nos, em outra lição, que também pode ser levado a cabo pelo Pai: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (hélkô)» (João 6,44). Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento, nomeadamente Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere textualmente, pondo Deus a falar: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; hélkô LXX) com carinho (hesed TM; oiktírêmôn LXX)». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então, se Deus nos der a graça e o dom do entendimento, que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho! Tomar consciência desta realidade: estupendo programa quaresmal!

Para ter a Vida verdadeira, é necessário ver [= acre­ditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Atos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (cf. João 3,5), claríssima alusão ao batismo, a grande iluminação que abre os nossos olhos para o divi­no (Hebreus 6,4‑5: texto espantoso!) e nos faz «filhos da luz», operadores das «obras da luz», que não têm parte com as «obras das trevas» (Efésios 5,8‑14).

            Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós, a imagem do pecado que está em nós; 2) ali passa também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça, única maneira de a absorver, dissolver e absolver. A cura não é mágica. Exibida a imagem da cobra escondida que há em nós e que de nós se alimenta como um parasita ou um ídolo – de facto, alimenta-se de nós, vive à nossa custa: leia-se, com o dom do entendimento, Génesis 3,14, em que se lê que a cobra se alimenta de pó [ՙaphar], sendo que só o homem é modelado do «pó da terra» (Génesis 2,7) –, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali posto bem diante dos nossos olhos: é o amor subversivo!

A grande «teologia da história» expressa no 2 Livro das Crónicas 36,14-23 deixa bem claro que, abandonando a Palavra de Deus, que é a nossa luz (Salmo 119,105) e a nossa vida (Deuteronómio 32,47), caímos inevitavelmente nas trevas e na morte de um «exílio» qualquer. Porém, o caminho é reversível: aproximando‑nos de Deus e da sua Palavra, podemos recuperar de novo a luz e a vida. É, na verdade, «a tua Palavra, Senhor, que tudo cura» (Sabedoria 16,12).

O extrato da Carta de S. Paulo aos Efésios (2,4-10) acentua hoje o nosso movimento da morte para a vida em Cristo Je­sus: movimento batismal (da morte para a vida) e fórmula batismal («em Cristo Jesus»). Nisto se manifestou «o gran­de amor com que Deus nos amou» (êgápêsen: de novo o inaudi­to aoristo histórico!) (Efésios 2,4). Mas há muito mais «coisas» inauditas de que Paulo tem de se socorrer, inovando até o vocabulário grego (!), num esforço supremo para tentar tra­duzir este indizível «grande amor» de Deus por nós: com Cristo nos com-vivificou (Efésios 2,5), nos com‑ressuscitou e nos com­‑sentou nos Céus (Efésios 2,6). Tudo aoristos históricos!!! Com­preenda‑se, portanto, o incompreensível: tudo isto  nos aconteceu! Somos, de facto, obra de Deus! (Efésios 2,10). Demos Graças a Deus!

A grande e sentida súplica que atravessa o Salmo 137 atravessa também as nossas mãos, língua, céu da boca, voz, mente, alegria, lágrimas. Não é possível cantar na Babilónia. Os Cânticos de Sião não são folclore, mas oração a ferver saída das entranhas! Não se dão naquele «lá» (sham) estrangeiro e inóspito da Babilónia. A pátria da música e da alegria é o «lá» (sham) de Jerusalém, cidade-mãe, que faz de Deus-Pai, Casa materna e paterna, onde reina a liberdade e a fraternidade, e não a escravidão e a tirania. No decurso da segunda guerra mundial, o poeta italiano Salvatore Quasimodo glosou assim este imenso Salmo: «E como podíamos nós cantar/ com o pé estrangeiro sobre o coração,/ entre os mortos abandonados nas praças,/ sobre a erva dura do gelo,/ com o lamento de cordeiro das crianças,/ com o urlo negro da mãe/ que ia ao encontro do filho/ crucificado sobre o poste do telégrafo?/ Nos ramos dos salgueiros, por voto,/ também as nossa harpas estavam dependuradas:/ oscilavam leves sob o vento triste».

Mas nós, que atravessamos a Quaresma, sabemos bem que todo o gelo glaciar é derretido pelo sopro do amor que até nós vem daquele que está naquela Cruz erguido!

Irei, Senhor,
Em procissão de amor,
Beijar a tua Cruz.
 

E quando eu olhar para ti,
Para o teu rosto ferido e desfigurado,
Para as tuas muitas chagas a sangrar,
Dá-me a graça de aí ver bem o meu pecado.
 

E quando Tu, Senhor, olhares para mim,
Com esse meigo olhar de serena compaixão,
Dá-me a graça de aí ver o teu perdão nunca poupado,
E de sair com o coração transfigurado.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 (2 Cr 36, 14-16.19-23)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 (Ef 2, 4-10)
  3. Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV da Quaresma – Ano B – 10.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024

Viver a Palavra

Quem é este Jesus de que nos fala o Evangelho? Onde está o Jesus manso e humilde, doce e compassivo a que nos habituamos? Tendo subido a Jerusalém, na proximidade da Páscoa judaica, Jesus entrou no templo e indignou-se com tudo aquilo que viu: «os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas».

Acredito que algumas pessoas, se tivessem oportunidade, retirariam esta passagem dos Evangelhos. Nela encontramos um Jesus frontal, bem diferente do Jesus que proclamou sobre o monte «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» ou se dirigia aos mais pequenos, dizendo «Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino do Céu». Porventura, outros aproveitam esta passagem para justificar os seus atos mais violentos. Contudo, qualquer uma das atitudes será sempre abusiva e desproporcionada.

O mercado de ovelhas e bois, bem como os cambistas facilitava a vida daqueles que vinham ao tempo apresentar as suas ofertas. Não era prático, sobretudo para os que vinham de mais longe, trazer as ovelhas, as pombas, os cordeiros ou os bois que desejavam oferecer a Deus. Um outro problema era a questão da moeda: as pessoas traziam consigo as suas moedas locais e no templo a moeda que se usava era o siglo. Deste modo, a presença dos cambistas facilitava a vida daqueles que desejavam deixar a sua oferta no templo.

Em primeiro lugar, importa pensar que quer na nossa vida pessoal, quer na vida comunitária devemos ter cuidado com a absolutização do critério do mais prático. Se absolutizamos o pragmatismo, pode haver muitas coisas importantes que se perdem e outras que se pervertem. A vida cristã implica abraçar o caminho exigente da relação íntima e pessoal com o Deus revelado em Jesus Cristo. Evidentemente que não estou a afirmar a necessidade de optar sempre pelo caminho mais difícil ou por aquilo que é mais exigente por capricho ou masoquismo, pois, em diversas circunstâncias da nossa história, a vida é já suficientemente difícil e exigente pelas dificuldades e sofrimentos do caminho.

Jesus é frontal, mas não é violento. Jesus toma um chicote de cordas, mas não bate em ninguém nem em nenhum animal. Deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas, mas não feriu ninguém. Jesus assumiu, neste acontecimento, um gesto profético na linha do profetismo de Israel. Um gesto profético é uma ação simbólica que transmite uma mensagem clara que atinge o coração de cada homem e cada mulher.

Esta frontalidade de Jesus, num gesto profético tão radical e ousado, convida-nos a viver também esta frontalidade na nossa vida: frontais connosco mesmos na luta contra o pecado; frontais com situações à nossa volta que estão erradas e não devemos pactuar; frontais com aqueles que se cruzam connosco, abraçando com ternura a dureza das relações humanas. Seguir Jesus, implica seguir a radicalidade e a verdade que o Evangelho reclama das nossas vidas.

«Não façais da casa de meu Pai casa de comércio!». Como é urgente e necessário fazer ecoar estas palavras de Jesus. Quantas vezes a nossa relação com Deus e os irmãos se faz na lógica comercial dos ganhos a obter e dos bens a alcançar. A relação com Deus e os outros será tanto mais verdadeira quanto mais se contruir na lógica da gratuidade que rasga novos horizontes de esperança e transforma o coração de cada homem e de cada mulher num lugar de bondade, ternura e misericórdia. in Voz Portucalense

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O dia 8 de março é dedicado pela sociedade civil à celebração do Dia Internacional da Mulher. Enquanto comunidade eclesial que habita o tempo e a história e procura iluminar os diversos âmbitos da vida humana, a Igreja não deve ficar à margem da comemoração deste dia. Cada comunidade pode pensar um modo criativo de assinalar este dia. A mulher assume um papel fundamental na sociedade e na vida da Igreja e este dia pode ser a ocasião para o reconhecer e valorizar. Contudo, como recorda o Papa Francisco na sua exortação apostólica pós-sinodal Querida Amazónia, é necessário pensar o lugar da mulher na Igreja sem o reduzir ao funcionalismo, mas no horizonte da corresponsabilidade eclesial onde cada um tem lugar na edificação da comunidade e na ação evangelizadora da Igreja. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Êxodo 20,1-17

Naqueles dias, Deus pronunciou todas estas palavras:
«Eu sou o senhor teu Deus,
que te tirei da terra do Egipto, dessa casa da escravidão.
Não terás outros deuses perante Mim.
Não farás para ti qualquer imagem esculpida,
nem figura do que já existe lá no alto dos céus
ou cá em baixo na terra ou nas águas debaixo da terra.
Não adorarás outros deuses nem lhes prestarás culto.
Eu, o senhor teu Deus, sou um Deus cioso:
castigo a ofensa dos pais nos filhos
até à terceira e quarta geração daqueles que Me ofendem;
mas uso de misericórdia até à milésima geração
para com aqueles que Me amam
e guardam os meus mandamentos.
Não invocarás em vão o nome do Senhor teu Deus,
porque o Senhor não deixa sem castigo
aquele que invoca o seu nome em vão.
Lembrar-te-ás do dia de sábado, para o santificares.
Durante seis dias trabalharás
e levarás a cabo todas as tuas tarefas.
Mas o sétimo dia é o sábado do Senhor teu Deus.
Não farás nenhum trabalho,
nem tu, nem o teu filho, nem a tua filha,
nem o teu servo nem a tua serva,
nem os teus animais domésticos,
nem o estrangeiro que vive na tua cidade.
Porque em seis dias
o Senhor fez o céu, a terra, o mar e tudo o que eles contêm;
mas no sétimo dia descansou.
Por isso, o Senhor abençoou e consagrou o dia de sábado.
Honra pai e mãe,
a fim de prolongares os teus dias
na terra que o Senhor teu Deus te vai dar.
Não matarás.
Não cometerás adultério.
Não furtarás.
Não levantarás falso testemunho contra o teu próximo.
Não cobiçarás a casa do teu próximo;
não desejarás a mulher do teu próximo,
nem o seu servo nem a sua serva, o seu boi ou o seu jumento,
nem coisa alguma que lhe pertença».

CONTEXTO

O texto que hoje nos é proposto como primeira leitura faz parte de um conjunto de tradições sobre uma Aliança entre Deus e os hebreus libertados da escravidão do Egito (cf. Ex 19-40). De acordo com o livro do Êxodo, essa Aliança teria sido celebrada num monte, algures no deserto do Sinai, o mesmo monte onde Javé se tinha revelado a Moisés.

No texto bíblico não há indicações geográficas suficientes para conseguirmos identificar o “monte da Aliança”. Em si, o nome “Sinai” designa uma enorme península de forma triangular, com mais ou menos 420 quilómetros de extensão norte/sul, estendendo-se entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A norte, junto do Mediterrâneo, o Sinai apresenta uma faixa arenosa de cerca de 25 quilómetros de largura; mas à medida que se desce para sul, o território torna-se mais acidentado, com montanhas que chegam a atingir 2400 metros de altura. A península inteira é um deserto árido; não há, praticamente, vegetação (exceto em alguns pequenos oásis) e as comunicações são difíceis. Nesta enorme extensão de areia e rochas, é difícil situar o “monte da Aliança”. Contudo, uma tradição cristã tardia (séc. IV) identifica o “monte” com o Jebel Musa (o “monte de Moisés”), um monte com 2244 metros de altitude, situado a sul da península sinaítica. Embora a identificação do “monte da Aliança” com este lugar levante problemas, o Jebel Musa é, ainda hoje, um lugar de peregrinação para judeus e cristãos.

A Aliança entre Javé e Israel, celebrada no Sinai, vai ser apresentada pelos catequistas de Israel através de uma estrutura literária que é muito semelhante aos formulários jurídicos conhecidos no mundo antigo para apresentar os acordos políticos entre duas partes, nomeadamente entre um “senhor” e o seu “vassalo”. Nesses formulários, depois de recordar ao “vassalo” a sua ação, a sua generosidade, os seus benefícios, o “senhor” apresentava as “cláusulas da Aliança” – isto é, a lista das obrigações que o “vassalo” assumia para com o seu “senhor” (obrigações que o “vassalo” devia cumprir fielmente).

De entre as “cláusulas da Aliança” do Sinai, sobressai um bloco especial, onde são apresentadas as dez obrigações fundamentais que Israel vai assumir diante do seu Deus: os “dez mandamentos” ou as “dez palavras”. É esse texto que a primeira leitura deste domingo nos apresenta. Aí está, verdadeiramente, o coração da Aliança; aí se define o caminho que Israel deve percorrer para ser o Povo de Deus.

A lista dos “dez mandamentos” é uma lista irregular, com mandamentos enunciados com brevidade e secura, sem nenhuma justificação (“não matarás”; não roubarás”) e outros mais desenvolvidos, contendo um comentário explicativo (cf. Ex 20,4.17), uma motivação (cf. Ex 20,7) ou uma promessa (cf. Ex 20,12). Por vezes Deus fala em primeira pessoa (cf. Ex 20,2.5-6); noutras, fala-se de Deus em terceira pessoa (cf. Ex 20,7.11.12). Dois mandamentos são formulados positivamente (cf. Ex 20,8: “lembra-te”; Ex 20,12: “honra”); todos os outros são formulados negativamente (“não matarás”; “não roubarás”). Estas irregularidades significam que o “decálogo” sofreu, através dos séculos, por motivos pastorais e catequéticos, retoques, acrescentos, comentários, modificações.

É bastante provável que Moisés tenha uma certa relação com estas leis que estão no centro da Aliança entre Deus e o seu Povo; mas o texto, na sua forma atual, não vem de Moisés. É, certamente, um texto muito trabalhado, que sofreu muitas elaborações ao longo dos séculos. Ainda que esta lista de preceitos possa lembrar algumas listas de proibições encontradas na Babilónia e no Egipto, ocupa um lugar à parte no conjunto dos formulários legais dos povos do Crescente Fértil: é um núcleo legal sóbrio e equilibrado, despojado de tudo aquilo que nos outros povos é magia, superstição ou “tabu”.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Os mandamentos do Decálogo que se referem à relação do homem com Deus sublinham a centralidade que Deus deve assumir no coração e na vida dos seus filhos. No entanto, nem sempre Deus tem lugar determinante na vida dos homens e mulheres do nosso tempo… Para muitos dos nossos contemporâneos, Deus é uma realidade que os deixa indiferentes. Não aquece nem arrefece; não conta para nada. O que os move é o dinheiro, o poder, os afetos humanos, a realização profissional, o reconhecimento social, os projetos pessoais, as ideologias, os valores da moda, as coisas materiais que tornam a vida mais cómoda e mais fácil. Esta opção, no entanto, mais cedo ou mais tarde, vai trazer vazio, insatisfação, frustração e desencanto. Não podemos sufocar indefinidamente essa sede de infinito que está viva no mais profundo do nosso ser. Por outro lado, quando optamos por prescindir de Deus e escolher caminhos de autossuficiência, acabamos facilmente por privilegiar soluções egoístas, que geram sofrimento e infelicidade para nós e para aqueles que caminham ao nosso lado… Neste tempo de Quaresma, interroguemo-nos: que lugar ocupa Deus na nossa vida? Há na nossa vida “deuses” que ocuparam o lugar de Deus e que condicionam as nossas tomadas de posição e as nossas opções?
  • Os mandamentos do Decálogo que se referem à forma de tratarmos os nossos irmãos convidam-nos a banir das nossas relações qualquer tipo de violência, de egoísmo, de agressividade, de cobiça, de intolerância, de escravidão, de indiferença. Dizem-nos que tudo aquilo que atenta contra a vida, a dignidade e os direitos daqueles que caminham ao nosso lado subverte o projeto de Deus para o mundo e para os homens. Contudo, todos os dias vemos multiplicarem-se no nosso mundo as situações de injustiça, de violência e de maldade que mergulham milhões de homens e mulheres numa noite sem saída e sem esperança. O que podemos fazer para que os valores de Deus prevaleçam sobre a maldade dos homens? O que é que, nos nossos gestos, nas nossas atitudes, nos nossos valores, é gerador de injustiça, de sofrimento, de exploração, de escravidão, de morte, para nós e para todos aqueles que nos rodeiam?
  • Há quem considere os “mandamentos” propostas de uma moral obsoleta e antiquada, fórmulas inventadas pela religião e destinadas a impor aos crentes comportamentos religiosamente corretos, ou até mesmo diretrizes para limitar a nossa liberdade e autonomia… No entanto, para aqueles que têm Deus como referência, os “mandamentos” são indicações de Deus para sermos mais felizes e para construirmos um mundo mais humano, mais fraterno, mais solidário. Não são uma prisão, mas uma porta para a verdadeira liberdade. Como é que eu vejo e acolho essas indicações de Deus? Levo-as a sério e aceito que elas definam as fronteiras do meu caminho? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)

Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.

 

A lei do Senhor é perfeita,
ela reconforta a alma;
as ordens do Senhor são firmes,
dão sabedoria aos simples.

Os preceitos do Senhor são retos
e alegram o coração
os mandamentos do Senhor são claros
e iluminam os olhos.

O temor do senhor é puro
e permanece para sempre;
os juízos do Senhor são verdadeiros,
todos eles são retos.

São mais preciosos que o ouro,
o ouro mais fino;
são mais doces que o mel,
o puro mel dos favos.

LEITURA II – 1 Coríntios 1,22-25

Irmãos:
Os judeus pedem milagres
e os gregos procuram a sabedoria.
Quanto a nós, pregamos Cristo crucificado,
escândalo para os judeus e loucura para os gentios;
mas para aqueles que são chamados,
tanto judeus como gregos,
Cristo é poder e sabedoria de Deus.
Pois o que é loucura de Deus
é mais sábio do que os homens
e o que é fraqueza de Deus
é mais forte do que os homens.

CONTEXTO

No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca de 18 meses (anos 50-52). Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. De uma forma geral, a comunidade era viva, fervorosa e empenhada; no entanto, não era imune aos valores da cultura ambiente, que nem sempre coincidiam com os valores de evangelho de Jesus.

Em Corinto, cidade cosmopolita e com pretensões culturais, estavam representadas todas as escolas filosóficas da Grécia antiga. Cada uma delas contava com os seus mestres e os seus fiéis adeptos. As rivalidades entre mestres e escolas traduziam-se, frequentemente, em conflitos e divisões que, extravasando para as ruas da cidade, punham em causa a coesão e a paz social. Ora, os cristãos de Corinto transplantaram para a vida da comunidade cristã esses modelos. Viam determinadas figuras proeminentes do cristianismo como mestres de uma doutrina e aderiam a essas figuras, esperando encontrar nelas uma proposta filosófica credível, que os conduzisse à plenitude da sabedoria e da realização humana. É de crer que os adeptos desses vários mestres se confrontassem na comunidade, procurando demonstrar a excelência e a superior sabedoria da sua figura de referência. Paulo soube isto no decurso da sua terceira viagem missionária, quando estava em Éfeso (por volta do ano 56). Tomou então a decisão de escrever aos coríntios avisando-os de que isto era bastante grave, pois punha em causa a unidade da fé. A reflexão de Paulo sobre esta questão aparece em 1 Co 1,10-4,21.

Na sua reflexão, Paulo vai demonstrar aos coríntios que entre os cristãos não há senão um mestre, que é Jesus Cristo; e a experiência cristã não é a busca de uma filosofia coerente, brilhante, elegante, que conduza à sabedoria, entendida à maneira dos gregos. Quem procura na mensagem cristã um sistema lógico, coerente, inquestionável à luz da lógica humana, é porque não percebeu nada do Evangelho e do dinamismo da salvação. O texto da segunda leitura deste terceiro domingo da Quaresma deve ser enquadrado neste cenário. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Andamos há dois mil anos a olhar para a cruz e a meditar naquilo a que Paulo chamou “a loucura de Deus”. No entanto, ainda não interiorizamos plenamente a lógica de Deus. Ainda achamos que a nossa plena realização passa pela acumulação de bens materiais, pelos triunfos humanos, pelas conquistas da ciência ou da técnica, pela força das ideologias, pelas palavras sedutoras dos nossos líderes, pelos aplausos daqueles que viajam connosco…. Usamos a cruz como enfeite ou como distintivo de um grupo religioso, mas esquecemo-nos do crucificado e de tudo aquilo que Ele nos disse ao entregar a vida até à morte, por amor. Talvez esta Quaresma seja uma oportunidade para nos aproximarmos de Jesus, para irmos com Ele, para aprendermos com Ele que só o amor salva; talvez este caminho de Quaresma que estamos a percorrer nos ajude a libertar do orgulho, da vaidade, da autossuficiência, dos valores estéreis, para acolhermos a sabedoria de Deus e para fazermos da nossa vida um dom de amor a Deus e aos nossos irmãos, particularmente aos mais frágeis e esquecidos… Estamos conscientes que é na sabedoria de Deus, expressa no amor e na entrega do Crucificado, que está a nossa realização plena, a nossa salvação?
  • Segundo Paulo, a força e a sabedoria de Deus manifestam-se na fragilidade, na pequenez, na pobreza, na humildade, na vida entregue por amor… Sendo assim, não nos parecem ridículas, descabidas e pretensiosas as nossas poses de importância, de autoridade, de protagonismo, de êxito humano, que tantas vezes magoam e humilham os irmãos e irmãs com quem nos cruzamos?
  • Paulo, enquanto testemunha de Jesus, recusa-se a “dourar a pílula” e a suavizar as exigências do Evangelho. Ele prega “Cristo crucificado, escândalo para os judeus e loucura para os gentios”. Nós, discípulos de Jesus, que temos a responsabilidade de anunciar o Evangelho, fazemo-lo com verdade e radicalidade, renunciando à tentação de suavizar a Palavra, de a tornar menos radical e interpelativa? Às vezes o invólucro “brilhante” com que envolvemos a Palavra pode torná-la mais atrativa, mas também menos questionante e, portanto, menos transformadora. in Dehonianos.

EVANGELHO – João 2, 13-25

Estava próxima a Páscoa dos judeus
e Jesus subiu a Jerusalém.
Encontrou no templo
os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas
e os cambistas sentados às bancas.
Fez então um chicote de cordas
e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois;
deitou por terra o dinheiro dos cambistas
e derrubou-lhes as mesas;
e disse aos que vendiam pombas:
«Tirai tudo isto daqui;
não façais da casa de meu Pai casa de comércio».
Os discípulos recordaram-se do que estava escrito:
«Devora-me o zelo pela tua casa».
Então os judeus tomaram a palavra e perguntaram-Lhe:
«Que sinal nos dás de que podes proceder deste modo?»
Jesus respondeu-lhes:
«Destruí este templo e em três dias o levantarei».
Disseram os judeus:
«Foram precisos quarenta e seis anos para se construir este templo
e Tu vais levantá-lo em três dias?»
Jesus, porém, falava do templo do seu corpo.
Por isso, quando Ele ressuscitou dos mortos,
os discípulos lembraram-se do que tinha dito
e acreditaram na Escritura e nas palavras que Jesus dissera.
Enquanto Jesus permaneceu em Jerusalém pela festa da Páscoa,
muitos, ao verem os milagres que fazia,
acreditaram no seu nome.
Mas Jesus não se fiava deles, porque os conhecia a todos
e não precisava de que Lhe dessem informações sobre ninguém:
Ele bem sabia o que há no homem.

CONTEXTO

O evangelho deste terceiro domingo da Quaresma integra a secção introdutória do Evangelho de João (cf. Jo 1,19-3,36). É nessa secção que João nos apresenta Jesus e as grandes linhas programáticas do seu ministério.

O episódio decorre no Templo de Jerusalém. Trata-se do majestoso Templo construído pelo rei Herodes para “comprar” a benevolência dos judeus. A construção do Templo herodiano iniciou-se em 19 a.C. e ficou essencialmente pronta no ano 9 d.C. (embora os trabalhos só tivessem sido concluídos em 63 d.C.). No ano 27 d.C., efetivamente, o Templo estava a ser construído há 46 anos e ainda não estava terminado, conforme a observação que os dirigentes judeus fizeram a Jesus (cf. Jo 2,20).

João situa o episódio nos dias que antecedem a festa da Páscoa. Era a época em que as grandes multidões se concentravam em Jerusalém para celebrar a festa principal do calendário religioso judaico. Jerusalém, que normalmente teria à volta de 55.000 habitantes, chegava a albergar cerca de 125.000 peregrinos nesta altura. No Templo sacrificavam-se cerca de 18.000 cordeiros, destinados à celebração pascal.

Neste ambiente, o comércio relacionado com o Templo sofria um enorme incremento. Três semanas antes da Páscoa, começava a emissão de licenças para a instalação dos postos comerciais à volta do Templo. O dinheiro arrecadado com a emissão dessas licenças revertia para o sumo-sacerdote. Havia tendas de venda que pertenciam, diretamente, à família do sumo-sacerdote. Vendiam-se os animais para os sacrifícios e vários outros produtos destinados à liturgia do Templo. Havia também as tendas dos cambistas que trocavam as moedas romanas correntes por moedas judaicas (os tributos dos fiéis para o Templo eram pagos em moeda judaica, pois não era permitido que moedas com a efígie de imperadores pagãos conspurcassem o tesouro do Templo). Este comércio constituía uma mais-valia para a cidade e sustentava a nobreza sacerdotal, o clero e os empregados do Templo.

Vai ser neste contexto que Jesus vai realizar o seu gesto profético. in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • Como é que podemos encontrar Deus e chegar até Ele? Como podemos perceber as propostas de Deus e descobrir os seus caminhos? O Evangelho deste domingo responde: é olhando para Jesus. Nas palavras e nos gestos de Jesus, Deus revela-Se aos homens e manifesta-lhes o seu amor, faz-Se companheiro de caminhada dos homens e aponta-lhes caminhos de salvação. Neste tempo de Quaresma – tempo de conversão, de renovação, de caminhada em direção ao Homem Novo – somos convidados a olhar para Jesus, a aproximar-nos dele, a ir atrás dele, a descobrir nas suas indicações, no seu anúncio, no seu “Evangelho” essa proposta de vida nova que Deus nos quer apresentar. É isso que acontece connosco?
  • Jesus é, agora, o Novo Templo onde Deus reside e onde os homens podem encontrar Deus e a sua proposta de salvação. E os cristãos, membros do Corpo de Cristo, são pedras vivas desse Templo. Esta realidade supõe, para os discípulos de Jesus, uma grande responsabilidade… Os homens do nosso tempo têm de ver no rosto dos cristãos o rosto bondoso e terno de Deus; têm de experimentar, nos gestos de partilha, de solidariedade, de serviço, de perdão dos cristãos, a vida nova de Deus; têm de encontrar, na preocupação dos cristãos com a justiça e com a paz, o anúncio desse mundo novo que Deus quer oferecer a todos os homens. Talvez o facto de Deus parecer tão ausente da vida, das preocupações e dos valores dos homens do nosso tempo tenha a ver com a tibieza do nosso testemunho. O nosso testemunho pessoal é um sinal de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado? A vida das nossas comunidades dá testemunho da Vida de Deus? A Igreja – comunidade dos discípulos de Jesus – é essa “casa de Deus” de portas sempre abertas onde qualquer pessoa, sem distinção de raça, de estatuto social, de estado civil, de opção sexual, pode encontrar a proposta de libertação e de salvação que Deus oferece a todos?
  • Qual é o verdadeiro culto que Deus espera? Evidentemente, não são os ritos solenes e pomposos, mas vazios, estéreis e balofos. O culto que Deus aprecia é uma vida vivida na escuta das suas propostas e traduzida em gestos concretos de doação, de entrega, de serviço simples e humilde aos irmãos. Quando somos capazes de sair do nosso comodismo e da nossa autossuficiência para ir ao encontro do pobre, do marginalizado, do estrangeiro, do doente, estamos a dar a resposta “litúrgica” adequada ao amor e à generosidade de Deus para connosco.
  • Ao gesto profético de Jesus, os líderes judaicos respondem com incompreensão e arrogância. Consideram-se os donos da verdade e os únicos intérpretes autênticos da vontade divina. Instalados nas suas certezas e preconceitos, nem sequer admitem que a denúncia que Jesus faz esteja correta. A sua autossuficiência impede-os de ver para além dos seus projetos pessoais e de descobrir os projetos de Deus. Trata-se de uma atitude que, mais uma vez, nos questiona… Estamos conscientes de que, quando nos barricamos atrás de certezas absolutas e de atitudes intransigentes, podemos estar a fechar o nosso coração aos desafios e à novidade de Deus?
  • Como aqueles vendedores e cambistas que transformaram o Templo de Deus numa casa de comércio, também nós podemos, quase sem nos darmos conta, estar a converter toda a nossa vida num negócio, onde tudo é pesado em favor do nosso interesse e do nosso ganho. Até a nossa relação com Deus pode tornar-se uma troca comercial, em que cumprimos os ritos para termos Deus a nosso favor, “pagamos missas” ou “promessas” para obter algum benefício, evitamos o pecado para que Deus não tenha razões para nos condenar… O gesto profético de Jesus no Templo de Jerusalém denuncia o sem sentido de uma vida vivida em registo de ganância e de lucro egoísta; lembra-nos que Deus é amor, amor que não se compra nem vende e que é puro dom; lembra-nos a importância dos gestos gratuitos de amor, da partilha solidária, da fraternidade desinteressada, do dom sem recompensa; lembra-nos que devemos dar testemunho, com a nossa vida, de um Deus que ama os seus filhos – todos – com um amor sem limites e “a fundo perdido”. Estou consciente de tudo isto? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, ter em atenção a extensão do texto na proclamação da forma longa. Além disso, deve haver um especial cuidado nas diversas repetições no início de cada frase, sobretudo da conjunção coordenativa correlativa «nem» e do advérbio «não».

A segunda leitura, apesar da sua brevidade, reclama uma especial atenção com as frases mais longas e com diversas orações.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

O NOVO SANTUÁRIO QUE É JESUS

Domingo III da Quaresma: Ex 20,1-17; Sl 19; 1 Cor 1,22-25; Jo 2,13-25

No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batis­mal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúme­nos: primeira «chamada» para a liberdade.

O texto do Evangelho deste Domingo III da Quaresma constitui uma importante passagem no tecido do IV Evangelho (João 2,13-25). Jesus apresenta-se como tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o PAI, nova paginação e compreensão das Escrituras. Da Páscoa dos judeus (A) à Páscoa de Jesus (A’), do Templo antigo (B) ao Santuário novo (B’), tendo no meio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos de Jesus (C), como podemos constatar no texto a seguir transcrito:

                               «2,13E estava próxima a Páscoa dos judeus, e JESUS subiu a Jerusalém. (A)

                                               14E ENCONTROU no TEMPLO (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. 15E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do TEMPLO (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, 16e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da CASA DO MEU PAI (oíkos toû patrós mou) CASA de COMÉRCIO (oíkos emporíou)”. (B)

                                               17Recordaram-se os discípulos d’ELE que está escrito: “O zelo da tua CASA (toû oíkou sou) me devorará”. (C)

                                               18Responderam então os judeus e disseram-LHE: “Que sinal nos mostras de que podes fazer estas coisas?” 19Respondeu JESUS e disse-lhes: “Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)”. 20Disseram então os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este SANTUÁRIO (naós), e tu em três dias o levantarás (egeírô)?” (B’)

                                               21Isto, porém, dizia do SANTUÁRIO do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). 22Quando, pois, foi ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se os discípulos d’ELE que tinha dito isto, e acreditaram na Escritura e na palavra que JESUS tinha dito» (João 2,13-22). (A’)

O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma FESTA é, na tradição bíblica, um ENCONTRO marcado (mô‘ed), plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro]. Um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros. Sendo um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a FESTA é de peregrinação, como é a PÁSCOA, aqui referida [as outras duas são as SEMANAS ou PENTECOSTES e as TENDAS], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que FESTA de peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar], e deriva de hûg, que significa “círculo”, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida.

ENCONTRO, filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por JESUS que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz CASA (oíkos) – com particular afeto, CASA DO MEU PAI –, sendo a CASA paterna o lugar do ENCONTRO e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56,7, JESUS fala do Templo usando a expressão forte «A MINHA CASA» (ho oîkós mou) (Mateus 21,13; Marcos 11,17; Lucas 19,46).

É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas CASAS. Do Templo para as CASAS (Atos 2,46). Não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão.

Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que JESUS ENCONTROU filhos e irmãos, mas que ENCONTROU vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14,21, que refere que «Não haverá mais vendedor na CASA de YHWH dos exércitos naquele dia». «A CASA DO MEU PAI», «A MINHA CASA», por um lado, e o MERCADO, por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço.

No texto que estamos cuidadosamente a ler, o Templo é dito com três vocábulos diferentes – hierónoíkos e naós – com significações diferentes: edifício de pedra, casa familiar, santuário (ou lugar da presença de Deus).

Quando, num dos típicos “mal-entendidos” do IV Evangelho, JESUS diz: «Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)» (João 2,19), os judeus não conseguem distinguir entre o naós pessoal que JESUS levantará em três dias e o hierón feito de pedra que demorou 46 anos a construir (João 2,20). Em claro contraponto, o narrador explica bem, num genitivo epexegético, que JESUS «dizia isto do SANTUÁRIO do seu corpo» (toû naoû toû sômatos autoû) (João 2,21). Entenda-se: do SANTUÁRIO que é o seu corpo. Com esta explicação do narrador, fica claro que é JESUS o «lugar» da adoração de Deus, a verdadeira «Casa de Deus» (cf. João 1,51), o SANTUÁRIO de Deus.

A anotação do narrador, em João 2,22, faz-nos ver ainda que foi também assim que entenderam os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus. Lição para os leitores: num tempo em que já não há Templo em Jerusalém, os leitores crentes do IV Evangelho experimentam a PRESENÇA de JESUS Ressuscitado como o seu verdadeiro «Templo».

O Livro do Êxodo (20,1-17) serve-nos hoje a Palavra de Deus que alimenta a vida nova dos seus filhos. O texto abre assim: «E falou Deus todas estas palavras dizen­do» (Êxodo 20,1). Estas palavras constituem o Decálogo, um con­junto de mandamentos que cobrem todo o âmbito da ação moral. É de privilegiar o nome “mandamento”, em detrimento da mais vulgar “lei”. É fácil perceber a razão: o mandamento supõe um rosto, neste caso o rosto de Deus, um Deus com rosto, que me chama e ama e ordena e suplica, e me institui; de modo diferente, a lei supõe um legislador sem rosto, que nada tem a ver com o Deus do Livro do Êxodo e da Escritura Santa. Saí­dos diretamente da boca de Deus, estas palavras constituem o alimento de que deve nutrir‑se o Povo santo de Deus do Antigo Testamento (Deuteronómio 8,3), mas também o Povo santo dos batizados (Mateus 4,4) que, à luz da Ressurreição, faz anamnese da vida his­tórica de Jesus e acredita na Palavra da Escritura [= Antigo Testamento] e do Evangelho. Palavra que há que guardar sábia e amorosa­mente, pois ela é a nossa vida (Deuteronómio 32,47).

E São Paulo continua esta lição sobre a nova Sabedoria (1 Coríntios 1,22-25). Enquanto os judeus pedem sinais (João 2,18;1 Coríntios 1,22) e os gregos procuram a sabedoria des­te mundo (1 Coríntios 1,22), os batizados, confirmados, chamados, continuam de olhos postos no único sinal da Cruz Gloriosa, sem dúvida a mais bela página que Deus escreveu na história dos homens, embora a letra seja ainda ilegível para muita gente!

O Salmo 19 é uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida nos seus mandamentos dados.

O caminho da Quaresma leva-nos à cripta,
Ao miolo,
Àquele lugar íntimo e íntegro, inteiro,
Onde eu sou verdadeiro,
Sem dolo
Nem tijolo
Nem roupeiro.
 

Chegar lá implica desfazer-se do barulho
E do entulho,
Arredar a caliça e o reboco,
Aprender com os pássaros do céu,
Com os lírios do campo,
Ir até ao fundo,
Até ao toco,
E deixar Deus a trabalhar no fundo desse poço,
Onde só Ele sabe semear semente santa,
Que depois há de florir e dar fruto
A seu tempo e a seu campo.
 

Que rebento pode brotar de um toco seco?
Que sucesso pode ter uma semente
Na aridez do deserto semeada?
É mesmo só com Deus essa empreitada.
E Jesus explica bem,
No meio do sermão da montanha,
Que são também assim
A esmola, a oração e o jejum,
Frutos que só Deus pode fazer brotar em mim.
 

A Quaresma é tempo de deixar de fazer tantas coisas
Por mim e ao meu jeito,
E para mim e em meu proveito,
Nas ruas,
Nas praças,
Nas igrejas,
Só para que as pessoas vejam e aplaudam.
 

A Quaresma é tempo de deixar Deus
Fazer nascer
Dentro de mim
Um jardim,
Uma maneira nova de viver.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 (Ex 20, 1-17)
  2. Resto Leitura I e Leitura II do Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 (1 Cor 1, 22-25)
  3. Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 – Lecionário
  4. Domingo III da Quaresma – Ano B – 03.03.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024

Viver a Palavra

Continuamos a caminhar com Jesus rumo à Páscoa. Depois de termos ido com Ele ao deserto, somos agora convidados a subir com Ele ao monte: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles». Com Jesus, somos conduzidos ao Pai que pela força do Espírito nos faz entrar nesta comunhão de amor que envolve as Pessoas da Trindade.

O cimo do monte, as vestes resplandecentes, Moisés e Elias, a nuvem que os cobre e a voz vinda do céu proporcionam a Pedro, Tiago e João uma verdadeira teofania que os faz ver cumpridas as promessas veterotestamentárias e lhes antecipa a glória do Ressuscitado. Hoje a humanidade também se sente envolvida por um tempo de incerteza e escuridão que clama pela luz do Ressuscitado e faz de nós testemunhas de que mesmo diante das trevas e inseguranças do nosso tempo, a luz de Jesus Cristo continua a brilhar.

Por isso, subamos ao monte com Jesus!

O monte é na longa tradição bíblica lugar de encontro com Deus, até porque subir a um lugar elevado faz-nos estar geograficamente mais próximos do Céu. Desde a antiguidade que os sítios geograficamente elevados eram assinalados como lugar de espiritualidade e encontro com o divino. Além disso, subir a um lugar elevado também permite olhar a planície e o vale de um modo novo e diferente. Deste modo, ao subirmos com Jesus ao monte, somos convidados a olhar a nossa vida, o mundo e os outros de um modo renovado. Olhar o tempo e a história com o olhar de Jesus permite-nos adquirir um novo horizonte de esperança, pois somos capazes de libertar o nosso olhar do imediatismo do nosso metro quadrado para uma visão maior e mais larga da história que tende e caminha para a plenitude da eternidade.

Contemplamos Moisés e Elias que atestam como Jesus é o enviado do Pai para cumprir as promessas da antiga aliança. Moisés e Elias ainda que entre sombras puderam ver a Deus: Moisés contemplou o Senhor revelado na saraça ardente (Ex 3,1-4,17) e Elias, escondido na caverna foi convidado a ver o Senhor passar na brisa suave (1 Rs 19,9-18). Junto de Jesus no monte, eles testemunham que o Transfigurado é a revelação plena e definitiva do Pai.

A nuvem que os envolve com a sua sombra faz ressoar uma voz vinda do céu: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». As nuvens que tantas vezes nos cobrem continuam a trazer dentro de si a certeza de que as dificuldades e as tribulações do tempo e da história não têm a última palavra, pois a única palavra plena e definitiva é a Palavra de Jesus que o Pai nos convida a escutar. É certo que a fragilidade da nossa existência e a contingência do tempo que atravessamos nos abala e nos faz tantas vezes vacilar. Por isso, nunca nos podemos cansar de escutar as palavras que S. Paulo dirigiu aos romanos e que hoje dirige a cada um de nós: «Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?».

Subamos com Jesus ao monte! Percorramos com esperança este tempo da Quaresma, e façamos dele um tempo de alegre conversão. Como os discípulos, ainda somos aprendizes sobre o que significa ressuscitar dos mortos, mas a luz resplandecente do Ressuscitado rasga para nós horizontes de esperança e conduz-nos à verdade plena e definitiva que só o Senhor Jesus nos pode revelar.in Voz Portucalense

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No dia 14 de fevereiro, com a celebração da Quarta-feira de Cinzas, demos início ao sagrado tempo da Quaresma. O Irmão Roger, fundador da comunidade de Taizé, recordava em cada ano aos seus irmãos que a Quaresma é «tempo de cantar a alegria do perdão». Esta consciência deve animar a vida das comunidades cristãs e ajudar a preparar os fiéis para viverem o tempo quaresmal como oportunidade de conversão e proposta alegre de renovação de vida. Os três exercícios espirituais próprios da Quaresma – oração, jejum e esmola – devem ser propostos em cada ano com renovada criatividade para levar a uma renovada prática. O Papa Francisco escreveu para esta Quaresma uma mensagem intitulada: «Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade». A meditação e aprofundamento desta mensagem é uma oportunidade para viver e celebrar melhor este tempo da Quaresma.in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 22,1-2.9a.10-13.15-18

Naqueles dias,
Deus quis pôr à prova Abraão e chamou-o:
«Abraão!»
Ele respondeu: «Aqui estou».
Deus disse: «Toma o teu filho,
o teu único filho, a quem tanto amas, Isaac,
e vai à terra de Moriá,
onde o oferecerás em holocausto,
num dos montes que Eu te indicar.
Quando chegaram ao local designado por Deus,
Abraão levantou um altar e colocou a lenha sobre ele.
Depois, estendendo a mão, puxou do cutelo para degolar o filho.
Mas o Anjo do Senhor gritou-lhe do alto do Céu:
«Abraão, Abraão!»
«Aqui estou, Senhor», respondeu ele.
O Anjo prosseguiu:
«Não levantes a mão contra o menino,
não lhe faças mal algum.
Agora sei que na verdade temes a Deus,
uma vez que não Me recusaste o teu filho, o teu único filho».
Abraão ergueu os olhos
e viu atrás de si um carneiro, preso pelos chifres num silvado.
Foi buscá-lo e ofereceu-o em holocausto, em vez do filho.
O Anjo do Senhor chamou Abraão do Céu pela segunda vez
e disse-lhe:
«Por Mim próprio te juro – oráculo do Senhor –
já que assim procedeste
e não Me recusaste o teu filho, o teu único filho,
abençoar-te-ei e multiplicarei a tua descendência
como as estrelas do céu e como a areia das praias do mar,
e a tua descendência conquistará as portas das cidades inimigas.
Porque obedeceste à minha voz,
na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».

CONTEXTO

A primeira leitura de hoje faz parte de um bloco de textos a que se dá o nome genérico de “tradições patriarcais” (cf. Gn 12-36). Trata-se de um conjunto de relatos singulares, originalmente independentes uns dos outros, sem grande unidade e sem carácter de documento histórico. Nesses capítulos aparecem, de forma indiferenciada, “mitos de origem” (descreviam a “tomada de posse” de um lugar pelo patriarca do clã), “lendas cultuais” (narravam como um deus tinha aparecido nesse lugar ao patriarca do clã), indicações mais ou menos concretas sobre a vida dos clãs nómadas que circularam pela Palestina durante o segundo milénio e reflexões teológicas posteriores destinadas a apresentar aos crentes israelitas modelos de vida e de fé.

O relato do sacrifício de Isaac (Gn 22) é aquilo a que os biblistas chamam uma “lenda cultual”. Nasceu, provavelmente, num santuário do sul do país, muito antes de os patriarcas bíblicos se terem instalado na zona. A lenda primitiva contava como num lugar sagrado o deus aí adorado tinha salvo uma criança destinada a ser oferecida em sacrifício (no mundo dos cananeus, os sacrifícios humanos eram frequentes). A partir daí, nesse lugar, os sacrifícios de crianças tinham sido substituídos por sacrifícios de animais. Foi essa a primeira etapa da tradição.

Numa segunda fase, esta história primitiva foi aplicada à figura de Abraão, quando o clã de Abraão se instalou na zona. O pai cananeu da primitiva história, que levava o filho para ser oferecido em sacrifício, foi identificado com o patriarca Abraão. A tradição acabou por englobar um clã ligado ao de Abraão, o clã de Isaac. Isaac tornou-se, assim, o filho destinado ao sacrifício de que falava a velha lenda pré-israelita.

Numa terceira fase (talvez por volta do séc. VIII a.C.), os teólogos de Israel pegaram na antiga lenda cultual e utilizaram-na para ilustrar a catequese que queriam apresentar. Serviu para dizer que o crente ideal é aquele que, como Abraão, não hesita em acolher a vontade e os desafios de Deus.

Por fim, um redator posterior acrescentou ao texto outros elementos de carácter teológico. Foi ele que ligou a lenda do sacrifício de Isaac com o monte santo dos sacrifícios do Templo de Jerusalém; foi ele, também, que acrescentou à história a ideia de que o comportamento de Abraão para com Deus mereceu uma recompensa e que essa recompensa iria, no futuro, derramar-se sobre todos os descendentes de Abraão.in Dehonianos

INTERPELAÇÕES

  • O comportamento de Abraão nesta “crise” revela, antes de mais, o lugar absolutamente central que Deus ocupa na sua existência. Deus é, para Abraão, o valor máximo, a prioridade fundamental; por isso, Abraão mostra-se disposto a fazer a Deus um dom total de si próprio, da sua família, do seu futuro, dos seus sonhos, das suas aspirações, dos seus projetos, dos seus interesses. Para Abraão, nada mais conta quando estão em jogo os planos de Deus… Na vida do homem do séc. XXI, contudo, nem sempre Deus ocupa o lugar que Lhe é devido. Com frequência, o dinheiro, o poder, a carreira profissional, o reconhecimento social, o sucesso, a influência dos líderes de opinião, ocupam o lugar de Deus e determinam as nossas opções, os nossos interesses, os valores que priorizamos. À luz da figura de Abraão, procuramos, nesta Quaresma, rever as nossas prioridades e a dar a Deus, no cenário da nossa vida, o lugar que Ele merece?
  • Na sua relação com Deus, o crente Abraão manifesta uma vasta gama de “qualidades” – a reverência, o respeito, a humildade, a disponibilidade, a obediência, a confiança, o amor, a fé – que o definem como o crente “ideal”, o modelo para os crentes de todas as épocas. Neste tempo de preparação para a Páscoa (para a Vida nova), são estas “qualidades” que nos são propostas, também. Estamos disponíveis para concretizar um processo de conversão que nos torne cada vez mais atentos e disponíveis para acolher e para viver na fidelidade aos planos de Deus?
  • O crente Abraão ensina-nos, ainda, a confiar em Deus, mesmo quando tudo parece cair à nossa volta e quando os caminhos de Deus se revelam estranhos e incompreensíveis. Quando os nossos projetos se desmoronam, quando as nuvens negras da guerra, da violência, da opressão, se acastelam no horizonte da nossa existência, quando o sofrimento nos leva ao desespero, é preciso continuar a caminhar serenamente, confiando nesse Deus que é a nossa esperança e que tem um projeto de Vida plena para nós e para o mundo. Deus é, para nós, esse rochedo firme que nos suporta nas crises e vicissitudes com que a vida, tantas vezes, nos surpreende?
  • Quando os catequistas de Israel põem Deus a dizer que a obediência de Abraão é fonte de vida para ele, para a sua família e para “todas as nações da terra”, estão a afirmar a validade do caminho que Abraão escolheu. Fazemos de Deus o centro da própria existência e renunciamos aos próprios critérios e interesses para cumprir os planos de Deus, não como uma escravidão que coarta a liberdade do homem, mas como uma opção que nos abre novas e que nos proporciona o acesso à Vida plena e verdadeira? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)

Refrão 1:  Andarei na presença do Senhor sobre a terra dos vivos.

Refrão 2: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.

Confiei no Senhor, mesmo quando disse:
«Sou um homem de todo infeliz».
É preciosa aos olhos do Senhor
a morte dos seus fiéis.

Senhor, sou vosso servo, filho da vossa serva:
quebrastes as minhas cadeias.
Oferecer-Vos-ei um sacrifício de louvor,
invocando, Senhor, o vosso nome.

Cumprirei as minhas promessas ao Senhor
na presença de todo o povo,
nos átrios da casa do Senhor,
dentro dos teus muros, Jerusalém.

LEITURA II – Romanos 8,31b-34

Irmãos:
Se Deus está por nós, quem estará contra nós?
Deus, que não poupou o seu próprio Filho,
mas O entregou à morte por todos nós,
como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?
Quem acusará os eleitos de Deus?
Deus, que os justifica?
E quem os condenará?
Cristo Jesus, que morreu, e mais ainda, que ressuscitou
e que está à direita de Deus e intercede por nós?

CONTEXTO

Quando Paulo escreve aos Romanos, está a terminar a sua terceira viagem missionária e prepara-se para partir para Jerusalém. Tinha terminado a sua missão no oriente (cf. Rm 15,19-20) e queria levar o Evangelho ao ocidente. Dirigindo-se por carta aos cristãos de Roma, Paulo aproveita para estabelecer laços com eles e para lhes apresentar os principais problemas que o ocupavam (entre os quais sobressaía a questão da unidade, um problema bem presente na comunidade cristã de Roma, afetada por alguns problemas de relacionamento entre judeo-cristãos e pagano-cristãos). Estamos no ano 57 ou 58.

Na primeira parte da Carta (cf. Rm 1,18-11,36), Paulo vai fazer notar aos cristãos divididos que o Evangelho é a força que congrega e que salva todo o crente, sem distinção de judeu, grego ou romano. Embora o pecado seja uma realidade universal, que afeta todos os homens (cf. Rm 1,18-3,20), a “justiça de Deus” dá vida a todos, sem distinção (cf. Rm 3,1-5,11); e é em Jesus Cristo que essa vida se comunica e que transforma o homem (cf. Rm 5,12-8,39). Batizados em Cristo, os cristãos morrem para o pecado e nascem para uma vida nova. Passam a ser conduzidos pelo Espírito e tornam-se filhos de Deus; libertados do pecado e da morte, produzem frutos de santificação e caminham para a Vida eterna.

É depois de desenvolver esta reflexão que Paulo entende celebrar o amor salvador de Deus com um hino (cf. Rm 8,31-39): é nesse amor que os filhos e filhas de Deus podem fundamentar a sua esperança no triunfo final.

A segunda leitura deste dia é parte desse hino (Rm 8,31b-34).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Para Paulo, há uma constatação incrível, que não cessa de o espantar: Deus ama-nos com um amor profundo, total, radical, que nada nem ninguém consegue apagar ou eliminar. Esse amor veio ao nosso encontro em Jesus Cristo, atingiu a nossa existência e transformou-a, capacitando-nos para caminharmos ao encontro da vida eterna. Ora, antes de mais, é esta descoberta que Paulo nos convida a fazer… Nos momentos de crise, de desilusão, de perseguição, de orfandade, quando parece que todo o mundo está contra nós e que não entende a nossa luta e o nosso compromisso, a Palavra de Deus grita: “não tenhais medo; Deus ama-vos”. Esta certeza reside no nosso coração e anima todos os nossos passos?
  • Descobrir o amor de Deus por nós dá-nos a coragem necessária para enfrentar a vida com serenidade, com tranquilidade e com o coração cheio de paz. O crente é aquele homem ou mulher que não tem medo de nada porque está consciente de que Deus o ama e que lhe oferece, aconteça o que acontecer, a vida em plenitude. Procuramos entregar a nossa vida como dom, correr riscos na luta pela paz e pela justiça, enfrentar os poderes da opressão e da morte, porque confiamos no Deus que nos ama e nos salva? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 9,2-10

Naquele tempo,
Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João
e subiu só com eles
para um lugar retirado num alto monte
e transfigurou-Se diante deles.
As suas vestes tornaram-se resplandecentes,
de tal brancura que nenhum lavadeiro sobre a terra
as poderia assim branquear.
Apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus.
Pedro tomou a palavra e disse a Jesus:
«Mestre, como é bom estarmos aqui!
Façamos três tendas:
uma para Ti, outra para Moisés, outra para Elias».
Não sabia o que dizia, pois estavam atemorizados.
Veio então uma nuvem que os cobriu com a sua sombra
e da nuvem fez-se ouvir uma voz:
«Este é o meu Filho muito amado: escutai-O».
De repente, olhando em redor,
não viram mais ninguém,
a não ser Jesus, sozinho com eles.
Ao descerem do monte,
Jesus ordenou-lhes que não contassem a ninguém
o que tinham visto,
enquanto o Filho do homem não ressuscitasse dos mortos.
Eles guardaram a recomendação,
mas perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos.

CONTEXTO

Marcos situa o episódio da transfiguração num momento charneira da atividade de Jesus. Estamos na fase final da etapa da Galileia, antes de Jesus se dirigir para Jerusalém. É um momento decisivo para o projeto do Reino.

Depois do êxito inicial da sua pregação, Jesus vinha sentindo cada vez mais resistência, por parte dos líderes religiosos locais, ao seu anúncio. Pouco antes do episódio da transfiguração, os fariseus e alguns doutores da Lei tinham criticado a liberdade de Jesus face às tradições religiosas judaicas; e, em resposta, Jesus tinha-os acusado de se preocuparem com ritos externos e de não terem em conta o essencial (cf. Mc 7,1-23). Depois, os fariseus tinham exigido que Jesus lhes desse um sinal de que atuava em nome de Deus; e Jesus tinha recusado (cf. Mc 8,11-13). Parecia cada vez mais claro que o judaísmo oficial nunca iria aceitar Jesus e o seu projeto.

Para os discípulos de Jesus, isto levantava questões inquietantes… Eles viam Jesus como “o Messias” que Israel esperava ansiosamente (cf. Mc 8,29-30); mas as autoridades judaicas estavam contra Ele e não lhe davam crédito. Teriam os discípulos feito um erro de cálculo quando acreditaram em Jesus e se dispuseram a andar com Ele?

As coisas ficaram ainda mais complicadas quando Jesus comunicou aos discípulos a sua decisão de se dirigir para Jerusalém e os avisou de que lá iria sofrer muito e ser morto pelas autoridades (Ele tinha acrescentado que iria ressuscitar depois de três dias; mas, nessa altura, os discípulos não sabiam bem o que é que isso queria dizer – cf. Mc 8,31). Pedro atreveu-se a contestar a decisão de Jesus; e Jesus convidou-o a pôr-se no seu lugar de discípulo e a não ser obstáculo ao projeto de Deus (cf. Mc 8,32-33). Mais ainda: antes de começar a caminhar para Jerusalém, Jesus convidou os discípulos a renegar-se a si mesmos, a “tomar a cruz” e a segui-l’O no caminho do dom da vida até à morte (cf. Mc 8,34-38). Valeria a pena seguir um Mestre que só tinha a cruz para oferecer?

Face a este estado de coisas, Jesus achou que tinha chegado a hora de revitalizar o ânimo dos discípulos. Chamou, então, Pedro, Tiago e João – o “núcleo duro” daquele grupo – e convidou-os a subir com Ele a um monte. Nesse dia e nesse monte eles iriam ser confrontados com o princípio e o fundamento do caminho proposto por Jesus.

O texto não identifica o “monte elevado” para onde Jesus, Pedro, Tiago e João se dirigiram. Contudo, a tradição fala do Monte Tabor, uma montanha com 588 metros de altura, situada no meio da planície de Jezreel, coberta de carvalhos, pinheiros, ciprestes, aroeiras e plantas silvestres. O Tabor tinha sido, nos tempos antigos, um lugar sagrado para os povos cananeus.

            Literariamente, a narração da transfiguração é uma teofania – quer dizer, uma manifestação de Deus. Portanto, o autor do relato vai colocar no quadro todos os ingredientes que, no imaginário judaico, acompanham as manifestações de Deus (e que encontramos quase sempre presentes nos relatos teofânicos do Antigo Testamento): o monte, as aparições, as vestes brilhantes, a nuvem, a voz que vem do céu e mesmo o medo e a perturbação daqueles que presenciam o encontro com o divino. Isto quer dizer o seguinte: não estamos diante de um relato exato de acontecimentos, mas de uma catequese (construída de acordo com o imaginário judaico) destinada a confirmar a verdade da proposta de Jesus.in Dehonianos

Transfiguração (Ícone)

Transfiguração – Teofania da divindade de Cristo e da Santíssima Trindade

Segundo os relatos neotestamentários (Mt 17,1-9; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36; e 2 Pe 1,16-19), as personagens deste ícone aparecem já no mosaico que ornamenta o quarto de esfera da abside da basílica justiniana do monte Sinai (ano 565-566), reproduzido na revista Bíblica, nº 375, p. 45/93.

O nosso ícone (cerca de 1403) é atribuído ao célebre iconógrafo bizantino, ativo na Rússia, Teófano ou Teófanes o grego – Theophánēs, em grego; Feofán, em russo –, ou a um dos seus alunos. Esta pintura sobre madeira foi realizada para a catedral da Transfiguração do Nosso Salvador, em Pereslávlh-Zalésskiy (principado de Moscovo); trazida para Moscovo em 1923, encontra-se desde 1930 na Galeria do Estado Tretiakóv, em Moscovo (Rússia).

A composição é formada por três zonas horizontais de altura desigual. A mais alta é a superior, onde se representa Jesus transfigurado, ladeado por dois personagens ligeiramente inclinados para Ele: Moisés à sua esquerda e Elias à sua direita; os quais foram transportados por anjos sobre nuvens (segundo uma antiga tradição mantida sobretudo em ambiente eslavo), como se figura, nos cantos superiores, dentro de dois ‘quadrinhos’ redondos em forma precisamente de nuvem.

            Jesus, ao centro da zona superior, todo Ele é luz (cf. Jo 1, 4), iluminando todo o ícone. Por trás dele, veem-se dois círculos luminosos sobrepostos, que representam os céus, o de fora semeado de pequenas estrelas. O interior do círculo mais pequeno é escuro, e representa a «luz inacessível», em que Deus habita (cf. prefácio da Oração Eucarística IV). Nos ícones russos desta época é habitual figurar um triângulo em forma de ponta lança, cuja base é substituída por outras três pontas do mesmo formato, simbolizando a Santíssima Trindade, dirigindo-se as três pontas da base em direção a cada um dos três apóstolos escolhidos.

No nosso ícone, aparece a duplicação deste género de triângulo (um para cima e outro para baixo), que se interpenetram, formando uma estrela de seis pontas (cf. Ap 22,16), tendo três pontas dirigidas para o alto, para os seres angélicos e celestes, e três pontas dirigidas para baixo, para o mundo e os seres terrestres; sobrepondo Jesus o losango central de interceção dos dois triângulos, significando as suas duas naturezas, divina e humana.

            Moisés, à nossa direita, é figurado como jovem (cf. Dt 34, 7) e sustenta nas mãos o códice da Lei (Torah), cujas pontas inferiores se sobrepõem aos dois círculos luminosos. O círculo interior está descentrado em relação ao exterior, tendo o centro na mão esquerda de Jesus, a qual sustenta um rolo – Jesus vem dar pleno cumprimento à lei antiga, levando-a à perfeição (cf. Mt 5,17).

O profeta Elias, com longos cabelos e barbas, cruza os braços, formado um T (cf. Mt 5, 18: ῖ = iota e til), designando com a mão direita o Salvador. Aliás, a Festa da transfiguração (a 6 de agosto) foi colocada 40 dias antes da Festa da Exaltação da Santa Cruz (a 14 de setembro), que fora instituída antes.

Na zona inferior, um pouco mais pequena em altura, estão figurados os três apóstolos que tiveram a visão; da esquerda para a direita: Pedro, João e Tiago. Três raios azuis partem de Cristo em direção a estes, indicando que a transfiguração (em grego, metamórphosis) não foi tanto de Cristo como dos olhos dos apóstolos (ver, a este propósito, o meu artigo “Metamorfose do olhar”, na revista Brotéria, vol. 142, pp.413-424).

Os discípulos caem por terra. Despertando, Pedro, ajoelhado, dirige a Jesus o seu discurso errado, pois não se devem fazer tendas distintas – a Lei, os Profetas e o Evangelho –, mas, porque todas fazem par-te da Revelação divina consignada na mesma Sagrada Escritura, são guardadas na mesma tenda, que é a Igreja de Deus [cf. Orígenes].

Na zona intermédia, de altura mais pequena, vê-se, dentro de ‘quadrinhos’ em forma de grutas, Jesus seguido pelos três apóstolos escolhidos, a subir e a descer o monte, respetivamente à nossa esquerda e à nossa direita. «Contemplar e transmitir as coisas contempladas» (S. Tomás de Aquino) é o ideal do Pregador. A oração está na base do anúncio integral do Evangelho, com a vida, as palavras e ações poderosas (cf. Mt 5,16; Mc 9,29).

Pela graça todos nós podemos ser divinizados, ou seja, metamorfoseados na imagem de Cristo, pela ação do Espírito Santo (cf. 2 Cor 3,18).

frei António-José d’Almeida, OP / Convento de Cristo Rei, Porto
in 
revista Bíblica 377 (julho-agosto 2018), pp. 40-41.

INTERPELAÇÕES

  • Neste segundo domingo da Quaresma façamos, também nós, a experiência de subir com Jesus ao monte… Enquanto subimos, podemos conversar com Ele e, com toda a sinceridade, dizer-Lhe as nossas dúvidas e inquietações. Podemos dizer-Lhe que, por vezes, nos sentimos perdidos e desanimados diante da forma como o nosso mundo se constrói; podemos dizer-lhe que o caminho que Ele aponta é duro e exigente e que não sabemos se teremos a coragem de o percorrer até ao fim; podemos até dizer-lhe, talvez com alguma vergonha, que às vezes duvidamos dele e corremos atrás de outras apostas, mais cómodas, mais atraentes e menos arriscadas… E, depois de lhe dizermos isso tudo, deixemos que Jesus nos fale, nos explique o seu projeto, nos renove o seu desafio… E vamos, também, prestar atenção à voz de Deus que nos garante: “olhem que esse Jesus que Eu enviei ao vosso encontro é o meu Filho amado, aquele a quem Eu entreguei o projeto de um mundo mais humano e mais fraterno… Confirmo a verdade do caminho que Ele vos propõe. Escutai-O, ide com Ele, acolhei as suas propostas e indicações, mesmo que tenhais de remar contra a maré. O caminho que Ele vos aponta pode passar pela cruz, mas conduz à Vida verdadeira, à ressurreição”. É com estas atitudes que somos seguidores de Jesus Cristo?
  • “Este é o meu Filho amado. Escutai-o”. É verdade: precisamos de escutar Jesus mais e melhor. Quando o “escutamos” – quer dizer, quando ouvimos o que Ele nos diz, quando acolhemos no coração as suas indicações e quando procuramos concretizá-las na vida – começamos a ver tudo com uma luz mais clara. Começamos a perceber qual é a maneira mais humana de enfrentar os problemas da vida e os males do nosso mundo; damos conta dos grandes erros que os seres humanos podem cometer e descobrimos as soluções que Deus nos aponta… Escutar Jesus pode curar-nos das nossas cegueiras seculares, dos preconceitos que nos impedem de acolher a novidade de Deus, dos medos que nos paralisam; escutar Jesus pode libertar-nos de desalentos e cobardias, e abrir o nosso coração à esperança. A escuta de Jesus está no centro da nossa experiência de fé? Nas nossas comunidades cristãs damos espaço suficiente à escuta de Jesus?
  • O tempo de Quaresma é um tempo favorável de conversão, de transformação, de renovação. Traz-nos um convite a questionarmos a nossa forma de encarar a vida, os valores que priorizamos, as opções que vamos fazendo, as nossas certezas e apostas, os nossos interesses e projetos… O que é que eu, pessoalmente, necessito de mudar, na minha forma de pensar e de agir, a fim de me tornar um discípulo coerente e comprometido, que segue Jesus no caminho do amor levado até às últimas consequências, até ao dom total de si próprio?
  • É verdade que, para muitos dos nossos contemporâneos, o caminho proposto por Jesus não parece muito entusiasmante… Não assegura bem-estar, nem bens materiais, nem triunfos, nem reconhecimento, nem fama, nem poder, nem tranquilidade, nem qualquer outro valor que muitos dos homens e mulheres do nosso tempo consideram fundamentais para que as suas vidas tenham algum sentido. Contudo, nós, discípulos de Jesus, acreditamos que só o amor – o amor vivido como serviço, como dom de si próprio, ao estilo de Jesus – dá sentido à vida; acreditamos que a construção de um mundo novo – mais humano, mais são, mais verdadeiro – depende de acolhermos e vivermos as propostas de Jesus. O que poderemos fazer para contagiar os nossos irmãos e irmãs com o nosso entusiasmo por Jesus e pelo seu projeto de um mundo novo?
  • Pedro, Tiago e João, testemunhas da transfiguração de Jesus, parecem não ter muita vontade de “descer à terra” e de enfrentar o mundo e os problemas dos homens. Propõem fazer três tendas e ficar no cimo daquele monte, onde tudo parece tão fácil e tão indolor. Representam aqueles que vivem de olhos postos no céu, alheados da realidade concreta do mundo, sem vontade de intervir para o renovar e transformar. No entanto, ser seguidor de Jesus obriga-nos a “regressar ao mundo” para testemunhar aos homens, mesmo contra a corrente, que a realização autêntica está no dom da vida; obriga a atolarmo-nos no mundo, nos seus problemas e dramas, a fim de dar o nosso contributo para o aparecimento de um mundo mais justo e mais feliz. Assumimos a nossa ligação a Deus, não como uma droga que nos adormece, mas como compromisso com Deus que se concretiza no esforço de construirmos um mundo mais justo, mais humano, mais cheio de amor? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura deve ter-se em conta as várias intervenções em discurso direto que dominam todo o texto. Os diversos diálogos devem ser bem articulados para uma melhor compreensão do texto.

A segunda leitura, apesar da sua brevidade, exige uma acurada preparação uma vez que é composta apenas por frases interrogativas. Deve evitar-se dar a entoação interrogativa unicamente no final das frases, aproveitando as partículas interrogativas e as formas verbais.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

A SOLENE EXPOSIÇÃO DO FILHO

Batizado com o Espírito Santo (Marcos 1,9-10), chamado pelo Pai «o Filho meu», «o Amado» (Marcos 1,11), tentado durante quarenta dias no nosso deserto, mas superando a prova, dominando pela doçura os animais e a nossa selvagem animalidade, Jesus, totalmente vinculado ao Pai, pois d’Ele é o Filho, o Amado, vincula-se também à nossa humana condição e vincula-nos a Si («Vamos» [ágômen]: o mesmo dizer vinculativo em Marcos 1,38, na hora da Missão, e Marcos 14,42, na hora da Paixão), refazendo os nossos caminhos há muito por nós abandonados. O seu caminho filial batismal é agora também o nosso caminho.

O Evangelho de Marcos refere, de facto, que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Marcos 1,37), e nos levou consigo, na hora da Missão, a Anunciar o Evangelho de Deus pelos caminhos da Galileia (Marcos 1,38), prolepse fantástica da inteira vida cristã, discipular e apostólica: com Jesus nos caminhos da sua Missão, que passam também pelo caminho da sua Paixão (Marcos 14,42). A locução «no caminho» (en tê hodô), usada sobretudo na importante secção do seguimento de Jesus «no caminho» (Marcos 8,27-10,52), fazendo-se aí ouvir por cinco vezes (Marcos 8,27; 9,33.34; 10,32.52), ajuda-nos a compreender ainda melhor que o discípulo de Jesus deve aprender a «dizer vigorosamente não» (apernéomai) a si mesmo (Marcos 8,34), expressão fortíssima empregada no texto grego de Isaías para dizer «desfazer-se dos seus ídolos de ouro e prata» (Isaías 31,7), para fazer completamente seu o mesmo caminho de Jesus.

É assim que chegamos ao Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Marcos 9,2-10), em que nos é mostrada, no meio do caminho de Jesus, a cena extraordinária da Transfiguração de Jesus. A iniciativa começa por ser de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tigo e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto, mas passa logo para Deus com o passivo divino ou teológico «foi transfigurado» (metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Marcos 9,2). É a segunda vez que Jesus toma consigo apenas Pedro, Tiago e João (a primeira foi aquando da ressuscitação da filha de Jairo: 5,35-43). O facto de os levar para um monte alto, significa que o que se vai passar cai fora da agitação da vida quotidiana; a transfiguração de Jesus não se realiza na praça pública ou perante uma grande multidão. Não é narrada a figura de Jesus transfigurado. Apenas se fala das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Marcos 9,3). Fala-se também da «aparição» de Elias com Moisés (Marcos 9,4). A «aparição» de Moisés e Elias faz-nos compreender que Jesus não surge de improviso, mas se insere numa longa história que retrata a solicitude de Deus com o seu povo. «Aparição»: literalmente «fez-se ver» (ôpthê: aoristo passivo de horáô) «a eles» (autoîs). Trata-se de um passivo intransitivo, isto é, são Moisés e Elias que se fazem ver a eles, isto é, a Pedro, Tiago e João, e não são estes que veem Moisés e Elias. De per si, os nossos olhos não têm capacidade de ver tanto. Por isso também aquele «a eles» é gramaticalmente chamado um dativo do beneficiário. Eles beneficiam desta visão. É também desta maneira que são apresentadas as aparições de Deus no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.

Em Marcos 9,5, Pedro reage a tanto ver. Mas o seu dizer não se ajusta ao contexto, é manifestamente desapropriado. Tendas terrenas não podem abrigar seres celestes. Por isso, certeiramente nos diz o narrador que «não sabia o que dizia» (Marcos 9,6).

E eis o clímax do relato, com a introdução de dois elementos divinos: a nuvem e a voz, símbolos respetivamente da presença velada de Deus e da sua transcendência (Êxodo 24,16). Da nuvem uma voz, a voz de Deus, o único que sabe dizer bem o que se passa: «Este é o Filho meu, o Amado» (Marcos 9,8). Notem-se duas pequenas diferenças em relação ao cenário do Batismo. Aí, a voz de Deus provém do céu (não da nuvem), e dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: «Tu és o Filho meu, o Amado» (Marcos 1,11). Aqui, a voz provém da nuvem, e dirige-se a nós, em 3.ª pessoa. É, portanto, a apresentação que Deus nos faz do Seu próprio Filho. Tanto que, acrescenta logo o imperativo: «Escutai-O» (Marcos 9,8). Com este divino dizer, o Pai vincula a Si o Seu Filho do modo mais profundo: Deus não se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos a nós também ao Seu Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar todos os dias, a Pessoa a quem devemos prestar atenção todos os dias. Note-se que o Filho é, antes de mais, aquele que recebe a vida, e só depois aquele que tem uma missão para cumprir. Está aqui o escândalo da revelação: Deus não se qualifica apenas como Criador e Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe, para a dar!

Eis-nos, portanto, outra vez a sós com Jesus (Marcos 9,8), que põe a Transfiguração em linha com a Ressurreição, abrindo-nos já proleticamente os caminhos da Missão depois da Ressurreição. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem dada por Jesus ao descer do monte de «A ninguém narrarem (diêgéomai) o que viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos» (Marcos 9,9).

Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical pausa e bemol. Na verdade, não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor e independentemente da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar, porque nós falamos sempre antes do tempo! Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos conduzirem, entregando-vos, não vos preocupeis com o que ides falar (laléô); mas o que vos for dado (dothê: conj. aor. pass. de dídômi) nessa hora, isso falai (laléô); na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas o ESPÍRITO SANTO» (Marcos 13,11). Falar, com o verbo laléô, é linguagem de revelação e ultrapassa os níveis da nossa competência!

A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Marcos 9,2), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e as suas vestes tornaram-se resplandecentes, grandemente brancas» (Marcos 9,2-3). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).

A Lição do Livro do Génesis 22,1-18 apresenta-nos a figura de Abraão, também ele vencedor da prova da sempre idolátrica posse que se apega a nós e a que nós nos apegamos. Na verdade, há ainda uma última posse de que Abraão tem de ser libertado: em relação a Abraão, o narrador insiste em chamar a Isaac «seu» filho (Génesis 22,3.6.9.10.13), e o próprio Abraão diz para Isaac «meu» filho (Génesis 22,7 e 8). Um refrão os reúne por duas vezes: «E iam os dois juntos» (Génesis 22,6 e 8). Ora, Isaac é o filho da promessa, é um dom, e um dom não é para se reter ou possuir. Segundo o dizer autorizado do anjo do Senhor que se faz ouvir dos céus por duas vezes, Abraão passa a prova exatamente porque «não retiveste o teu filho, o teu único, longe de mim» (Génesis 22,12 e 16). Abraão não o reteve. Deu-o. Desapossou-se dele. Deu-o a Deus e deu-se a Deus na sua paternidade, «fazendo subir em holocausto», não um cordeiro (seh) (Génesis 22,7-8), mas um carneiro (ʼayil) (Gn 22,13). Neste episódio imenso, intenso e nebuloso, nós podemos, todavia, compreender que, em vez de sacrificar Isaac, Abraão deverá sacrificar a sua vontade de o possuir como propriedade: é esta vontade que é mortal. Procedendo assim, Abraão é o anti-Adam. É preciso testemunhas desta libertação imensa, incrível, dramática, divina. São os dois jovens depositários do dizer de Abraão: «Vamos lá acima adorar, e voltaremos para vós» (Génesis 22,5. Importante dizer, dado que, após a ação de adoração lá em cima, o narrador dirá: «Voltou Abraão para os jovens» (Génesis 22,19). Depositários de um dizer que afirmava o regresso de Abraão e Isaac, as duas testemunhas podem constatar agora, não o regresso dos dois, mas somente de Abraão. Lição de insuperável liberdade.

Outro imenso texto de São Paulo atravessa este Domingo II da Quaresma: Romanos 8,31‑34. «Deus entregou o seu Filho por nós» (Romanos 8,32). Eis o Desígnio (Mistério) de Deus anunciado no Antigo Testamento, realizado em Cristo, batizado para a Morte, confirmado para a Morte, entregue por Deus à Morte. Nesta Morte Gloriosa fomos nós batizados e confirmados com o Espírito Santo e com o fogo, e foi‑nos dado a conhecer esse Desígnio (Mistério conhecido!) (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑l0; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). Desígnio (Mistério)de Deus anunciado, realizado, e dado a conhecer. A nossa missão filial batismal é proclamá‑lo e testemunhá‑lo como o Apóstolo o proclama e testemunha.

O Salmo 116 é o quarto canto do chamado «Hallel Pascal», que reúne os Salmos 113-118. O Salmo 116 enche de música e de cor a Ceia Pascal hebraica. Na verdade, neste Salmo, canta-se a liberdade e a alegria confiante de vermos a nossa vida segura nas mãos de Deus, que nos retira do esquecimento do túmulo, e reacende a chama que se extingue. Entre os admiradores deste Salmo conta-se, com algum espanto nosso, o filósofo francês Voltaire (1694-1778), que privilegiava o v. 12: «Como restituirei (heshîb) ao Senhor por todos os seus benefícios (gemûlôt) que me deu?». O Salmo fornece logo a seguir a resposta: «O cálice da salvação erguerei,/ e o Nome do Senhor invocarei./ Os meus votos ao Senhor cumprirei,/ diante de todo o seu povo» (vv. 13-14). Este cálice erguido e partilhado assinala, no ritual (seder) da Ceia Pascal hebraica, o momento em que ia passando entre os comensais a terceira taça de vinho, a da Ação de Graças. De resto, o orante sabe bem que não pode «restituir» a Deus. Por isso, no Saltério, o sujeito do verbo «restituir» (heshîb: hiphil de shûb) é, por norma, Deus (21 sobre 28 vezes). Mas o orante pode sempre agradecer a Deus e anunciar a todos que Deus atua em favor do seu povo, ação de evangelização.

A Quaresma é uma estrada
Entrecortada
Por estações de serviço de paz e de perdão,
Uma avenida
Florida
De oração,
Uma praça
De graça
E contemplação.
 

A Quaresma é uma escada,
Que do céu desce,
Trazendo até nós a mão de Deus,
E ao céu se eleva,
Levando até Deus a nossa prece.
 

A Quaresma é um caminho
Direitinho
Ao coração.
É preciso limpá-lo
De todo o lixo acumulado.
É preciso entregá-lo a Deus,
Limpo e cultivado.
 

Senhor desta estrada deserta,
Que vai de Jerusalém a Gaza,
Mantém a minha alma sempre alerta,
Conduz nesta viagem os meus passos,
Pegada a pegada,
Até ao limiar da tua casa
Iluminada.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 (Gen 22, 1-2.9a.10-13.15-18)
  2. Leitura II do Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 (Rom 8, 31b-34)
  3. Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo II da Quaresma – Ano B – 25.02.2024 – Oração Universal
  5. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  6. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024

Viver a Palavra

«O Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto». No início deste tempo da Quaresma, o Evangelho convida-nos a contemplar Jesus que é impelido para o deserto, onde será tentado por Satanás. Jesus é o Homem Novo na plenitude do Espírito. Ungido pela força do Espírito de Deus vem para cumprir a vontade do Pai.

Batizados em Cristo, também nós somos enviados pela força do Espírito para percorrer os caminhos da missão. Parece sempre paradoxal e até estranho que o Espírito conduza Jesus ao deserto para ser tentado. Recordando o caminho percorrido pelo Povo de Israel a caminho da terra da promessa, percebemos como o deserto é lugar de tribulação e provação. Quantas vezes o Povo se afastou da Lei de Deus, se revoltou contra o Senhor e até adorou outras divindades. Contudo, também sabemos como foram tantas as manifestações da solicitude e do poder de Deus ao logo do caminho do deserto e como Deus, apesar da infidelidade do Povo, saciou a sua sede com a água que jorrou do rochedo, lhes fez chegar o maná e a carne para comer, lhes ofereceu a Lei, os acompanhou durante o dia numa coluna de nuvem e de noite numa coluna de fogo para os iluminar.

Deste modo, o deserto pode ser um lugar de perdição e afastamento de Deus, mas pode ser também uma oportunidade para um renovado encontro com o Senhor. As tentações são isto mesmo! São lugares de confronto com a nossa fragilidade e liberdade e o importante é fazer de cada tentação a oportunidade para renovar o nosso sim a Deus e à Sua vontade. Conduzido pelo Espírito ao deserto e sendo tentado por Satanás, Jesus mantém-se firme na fidelidade ao projeto do Pai. Cada batizado, diante de cada tentação, revestido da força do Espírito, é chamado a renovar a Sua opção por Deus e pelo Seu amor.

Porém, o deserto, tal como as tentações da nossa vida são um lugar provisório, por isso, depois da prisão de João, Jesus partiu para a Galileia e iniciou a Sua pregação, fazendo ecoar as Suas primeiras palavras: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

Sempre que escuto as palavras de Jesus «cumpriu-se o tempo», não consigo deixar de pensar como tantas vezes empregamos esta expressão para falar sobre o final do tempo da gravidez e o momento de uma mulher dar à luz. Efetivamente, o anúncio do Reino é anúncio alegre e jubiloso de uma vida nova que está a despontar. O Reino de Deus está próximo e já se pode saborear na presença terna e amorosa de Jesus Cristo. Por isso, é tempo de arrependimento e de conversão, tempo da alegre transformação do coração que torna a vida num lugar mais belo e o mundo num lugar mais feliz.

A conversão e o arrependimento só se podem conjugar com a plena e consciente adesão ao Evangelho. Aquele que se encontrou com Jesus e acolheu o Seu Evangelho como Palavra de Vida abraça uma nova forma de ser e de estar que se caracteriza por um modo novo de servir e amar. Assim, a conversão transforma-se num lugar feliz de aperfeiçoamento permanente, que nos permite reconhecer na nossa fragilidade e no nosso pecado uma oportunidade de crescimento e de renovação do coração e da vida. A vida de quantos entram neste dinamismo de conversão transforma-se num arco-íris luminoso que continua a irradiar no tempo e na história a certeza de que Deus não nos abandona. in Voz Portucalense

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O diretório litúrgico oferece duas indicações importantes para o primeiro Domingo da Quaresma: «No caso de não o ter recordado na Quarta-Feira de Cinzas, lembrar aos fiéis que, em união com a Paixão do Senhor e em espírito de penitência mais visível, nas sextas-feiras da Quaresma se deve escolher uma alimentação simples e pobre, que poderá concretizar-se na abstenção de carne» e «Lembrar-lhes também a finalidade das Renúncias Quaresmais deste ano, proposta pelo Bispo da Diocese». Deste modo, neste Domingo, deve recordar-se os fiéis da importância de fazer deste tempo da Quaresma um tempo diferente, marcando o tempo e o ritmo dos dias com o apelo à conversão que abre à renovação de vida. Além disso, deve comunicar-se a finalidade das renúncias quaresmais, recordando como penitência e caridade estão unidas. in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Génesis 9,8-15

Deus disse a Noé e a seus filhos:
«Estabelecerei a minha aliança convosco,
com a vossa descendência
e com todos os seres vivos que vos acompanham:
as aves, os animais domésticos,
os animais selvagens que estão convosco,
todos quantos saíram da arca e agora vivem na terra.
Estabelecerei convosco a minha aliança:
de hoje em diante
nenhuma criatura será exterminada pelas águas do dilúvio
e nunca mais um dilúvio devastará a terra».
Deus disse ainda:
«Este é o sinal da aliança que estabeleço convosco
e com todos os animais que vivem entre vós,
por todas as gerações futuras:
farei aparecer o meu arco sobre as nuvens
e aparecer nas nuvens o arco,
recordarei a minha aliança convosco
e com todos os seres vivos
e nunca mais as águas formarão um dilúvio
para destruir todas as criaturas».

CONTEXTO

Os primeiros onze capítulos do Livro do Génesis apresentam um conjunto de tradições sobre as origens do mundo e dos homens. A intenção dos autores destes textos (os teólogos de Israel) nunca foi apresentar factos históricos concretos ocorridos na aurora da humanidade, mas sim expor as suas convicções e descobertas sobre Deus, sobre o mundo e sobre os seres humanos. Recorreram, para o efeito, a uma linguagem própria, comum aos povos da região do denominado “Crescente Fértil” (a zona geográfica que se estende desde a planície Mesopotâmia até ao Egipto, tornada fértil pelos rios Tigre e Eufrates a norte, e o Nilo a sul). É por isso que estes relatos bíblicos apresentam notáveis semelhanças literárias com certas lendas e mitos de outros povos da zona, nomeadamente os da Mesopotâmia.

O texto que a liturgia deste domingo da Quaresma nos apresenta como primeira leitura faz parte de uma secção que abrange Gn 6,1-9,17. É a história de um cataclismo de águas, que teria eliminado toda a humanidade, exceto Noé e a sua família. Como terá aparecido esta história?

Alguns estudiosos consideram que o dilúvio bíblico poderia estar relacionado com o fim da era glaciar, quando a fusão dos gelos provocou notáveis avalanchas de água que invadiram as terras habitadas e deixaram profundos sinais na memória coletiva dos povos. Mas o mais provável é que o dilúvio descrito no livro do Génesis (e que é contado em moldes semelhantes em certos textos mesopotâmicos) se refira a uma das inúmeras inundações dos rios Tigre e Eufrates… A arqueologia dá, aliás, conta de várias inundações especialmente catastróficas nessa parte do mundo entre 4000 e 2800 a.C… É provável que o texto bíblico evoque essa realidade. Não se tratou, evidentemente, de um dilúvio que submergiu a terra inteira; mas a fantasia popular, a partir de uma das inúmeras inundações registadas na planície mesopotâmica, expandiu as dimensões do acontecimento e apresentou-o como um “castigo” que atingiu toda a humanidade.

Os catequistas de Israel quiseram dizer ao seu Povo que Deus não fica de braços cruzados quando os homens se lançam por caminhos de corrupção e de pecado… Com esse propósito, lançaram mão da velha lenda mesopotâmica do dilúvio, apresentando essa catástrofe como um castigo enviado por Deus para punir o pecado dos homens… Mas, porque Deus não castiga às cegas bons e maus, justos e injustos, os autores vão propor a história do justo Noé e da sua família, salvos por Deus da catástrofe.

O texto que hoje nos é proposto situa-nos na fase imediatamente posterior ao dilúvio, quando já tinha deixado de chover e quando Noé e a sua família já tinham desembarcado em terra seca. Os sobreviventes construíram um altar e ofereceram holocaustos sobre o altar. Por sua vez, Deus comprometeu-Se a não mais castigar os seres vivos de forma tão radical (cf. Gn 8,13-22), abençoou Noé e a sua família e entregou-lhes o cuidado da criação (cf. Gn 9,1-7). Noé e a sua família são a nova humanidade, nascida da água purificadora do dilúvio. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Todos os dias vemos a maldade que desfeia o mundo… E esta não é uma realidade só deste nosso tempo, mas é uma realidade de sempre. Deus fica indiferente diante do egoísmo, do ódio, da violência, da injustiça, do orgulho, da prepotência que destroem a vida dos seus filhos e que estragam esse mundo bom e belo que Ele nos encarregou de continuamente recriar? Deus finge que não vê tudo aquilo que atenta contra o seu projeto de um mundo onde os homens e as mulheres podem viver felizes e em paz? Há 2600 anos os catequistas de Israel, recorrendo a velhas, mas expressivas linguagens, quiseram dizer que o pecado é algo incompatível com Deus e com os projetos de Deus para o mundo e para o homem. Fizeram-no através da história de um dilúvio purificador, que limpou o mundo de toda a maldade. Esta catequese recorda-nos, no início da nossa caminhada quaresmal, que o pecado não é uma realidade que possa coexistir com essa vida nova que Deus nos quer oferecer e que é a nossa vocação fundamental. O pecado, nas suas mil e uma formas, destrói a vida e arruína a felicidade do homem; por isso, tem de ser combatido em cada passo. Estamos disponíveis para lutar contra tudo aquilo que, dentro ou fora de nós, potencia o domínio do pecado?
  • Deus odeia o pecado, mas não odeia os seus filhos pecadores. Conscientes disso, os catequistas de Israel falaram-nos de um Deus que vem ao encontro dos homens, abençoa-os e abraça-os, mesmo quando eles, no seu egoísmo e autossuficiência, teimam em trilhar caminhos de pecado e de infidelidade. Nesta Quaresma, procuramos fazer esta experiência de um Deus que nos ama apesar das nossas infidelidades e deixar que o amor de Deus nos transforme e nos faça renascer para a vida nova?
  • A lógica do amor de Deus – amor incondicional, total, universal, que se derrama até sobre os que o não merecem – convida-nos a repensar a nossa forma de abordar a vida e de tratar os nossos irmãos. Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando utilizamos uma lógica de vingança, de intolerância, de incompreensão perante as fragilidades e limitações dos irmãos? Podemos sentir-nos filhos deste Deus quando respondemos com uma violência maior àqueles que consideramos maus e violentos? Procuramos viver este tempo de Quaresma como tempo propício para repensarmos as nossas atitudes e para nos convertermos à lógica do amor incondicional, à lógica de Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

Refrão:  Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade
para os que são fiéis à vossa aliança.

Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.

Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.

O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer a sua aliança

LEITURA II – 1 Pedro 3,18-22

Caríssimos:
Cristo morreu uma só vez pelos pecados
– o Justo pelos injustos –
para vos conduzir a Deus.
Morreu segundo a carne,
mas voltou à vida pelo Espírito.
Foi por este Espírito que Ele foi pregar
aos espíritos que estavam na prisão da morte
e tinham sido outrora rebeldes,
quando, nos dias de Noé, Deus esperava com paciência,
enquanto se construía a arca,
na qual poucas pessoas, oito apenas,
se salvaram através da água.
Esta água é figura do Batismo que agora vos salva,
que não é uma purificação da imundície corporal,
mas o compromisso para com Deus de uma boa consciência;
ele vos salva pela ressurreição de Jesus Cristo,
que subiu ao céu e está à direita de Deus,
tendo sob o seu domínio os Anjos,
as Dominações e as Potestades.

CONTEXTO

A Primeira Carta de Pedro é uma carta dirigida aos cristãos de cinco províncias romanas da Ásia Menor (a carta cita explicitamente a Bitínia, o Ponto, a Galácia, a Ásia e a Capadócia – cf. 1 Pe 1,1). O seu autor apresenta-se com o nome do apóstolo Pedro; no entanto, a análise literária e teológica não confirma que Pedro seja o autor deste texto: em termos literários, a qualidade literária da carta não corresponde à maneira de escrever de um pescador pouco instruído, como seria o caso de Pedro; a teologia apresentada demonstra uma reflexão e uma catequese bem posteriores à época de Pedro; e o “ambiente” descrito na carta corresponde, claramente, à situação da comunidade cristã no final do séc. I, quando Pedro já tinha desaparecido (Pedro, muito provavelmente, foi morto em Roma durante a perseguição de Nero, por volta do ano 67). O autor da carta será, portanto, um cristão anónimo – provavelmente um responsável de alguma comunidade cristã –, culto e que conhece profundamente a situação das comunidades cristãs da Ásia Menor. Ele escreve em finais do séc. I (nunca antes dos anos 80), provavelmente a partir de uma comunidade cristã não identificada da Ásia Menor.

As comunidades a que esta carta se destina são comunidades rurais que vivem à margem das grandes cidades. A maioria dos seus membros são pastores ou camponeses que trabalham propriedades que não lhes pertencem; mas também há entre eles alguns pequenos proprietários de terras. Trata-se, em geral, de gente economicamente débil, vulnerável a um ambiente que começa a manifestar uma crescente hostilidade para com o cristianismo.

O autor da carta conhece as provações que estes cristãos sofrem todos os dias. Exorta-os, no entanto, a manterem-se fiéis à sua fé, apesar das dificuldades. Convida-os a olharem para Cristo, que passou pela experiência da paixão e da cruz, antes de chegar à ressurreição; e exorta-os a manterem a esperança, o amor, a solidariedade, vivendo com alegria, coerência e fidelidade a sua opção cristã.

O texto que nos é proposto é a parte final de uma perícope (cf. 1 Pe 3,13-4,11) na qual o autor da carta explica qual deve ser a atitude dos crentes, confrontados com as provocações, as injustiças e a hostilidade do mundo. Depois de pedir aos crentes que mesmo no meio do sofrimento não se cansem de fazer o bem (cf. 1 Pe 3,13-17), o autor da carta apresenta a razão fundamental pela qual os crentes devem agir desta forma tão “ilógica”: esse foi o exemplo que Cristo deixou. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, “o justo”, depois de uma vida cumprida em modo de dom e entrega ao Pai e aos homens, foi preso, julgado, torturado, condenado e morto na cruz. Talvez aqueles que o viram atravessar as ruas de Jerusalém com a cruz às costas a caminho do calvário, tenham pensado que Ele tinha fracassado e que toda a sua luta tinha sido em vão. No entanto, Deus ressuscitou-O; e, ao ressuscitá-l’O, deu-lhe razão. Ao ressuscitar Jesus, Deus garantiu-nos que uma vida feita dom e serviço, mesmo que termine numa morte injusta, não é uma vida fracassada ou sem sentido. Empenhamo-nos na luta pela justiça, pela verdade e pela paz, quando somos confrontados com a incompreensão, a maledicência, a crítica, a provocação, talvez até o ódio de alguns dos nossos irmãos?
  • Diante dos ataques – às vezes incoerentes e irracionais – daqueles que não se reveem nos valores de Jesus, como reagimos? Com a mesma agressividade com que nos tratam? Com a mesma intolerância dos nossos adversários? Fechando janelas de diálogo e de entendimento com o mundo que nos rodeia e ao qual devemos anunciar o Evangelho?
  • Quando fomos batizados, escolhemos Jesus e fomos vivificados pelo Espírito. Assumimos a responsabilidade de caminhar com Jesus e de sermos semente de uma humanidade nova. Temos vivido com coerência esse compromisso? As nossas palavras e os nossos gestos são anúncio e testemunho, ao vivo e a cores, daquilo que aprendemos com Jesus? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,12-15

Naquele tempo,
o Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto.
Jesus esteve no deserto quarenta dias
e era tentado por Satanás.
Vivia com os animais selvagens
e os Anjos serviam-n’O.
Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a pregar o Evangelho, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo
e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».

CONTEXTO

O Evangelho de Marcos começa com uma introdução (cf. Mc 1,2-13) destinada a apresentar Jesus. Essa introdução aparece em forma de tríptico. No primeiro quadro (cf. Mc 1,2-8), João Batista, “a voz que clama no deserto”, testemunha que Jesus é Aquele que vem “batizar no Espírito Santo” (cf. Mc 1,2-8); no segundo quadro (cf. Mc 1,9-11), é Deus que apresenta Jesus como o Seu “Filho amado”, sobre quem repousa o Espírito; no terceiro quadro, é Marcos, o nosso catequista, que nos fala de Jesus como o Messias que enfrenta e vence o mal, criando as condições para o nascimento de um mundo novo (cf. Mc 1,12-13).

A primeira parte do Evangelho deste primeiro domingo da Quaresma apresenta-nos, precisamente, o terceiro destes quadros. Situa-nos num “deserto” não identificado, mas não longe do lugar onde Jesus foi batizado por João Batista. É o momento em que Jesus faz a sua opção fundamental.

Mas o texto evangélico deste dia tem uma segunda parte. Aí Marcos apresenta-nos um “sumário-anúncio” da pregação inaugural de Jesus sobre o “Reino” (cf. Mc 1,14-15). Agora já não estamos “no deserto”, mas sim na Galileia, região setentrional da Palestina, terra em permanente contato com o mundo pagão e, portanto, considerada à margem da história da salvação. Mas é precisamente aí que a proposta de Deus ecoa no mundo dos homens. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, ao longo do caminho que percorreu entre nós, foi confrontado com opções. Ele desceu ao terreno movediço onde a vida de cada dia acontece e teve de escolher entre viver na fidelidade aos projetos do Pai, ou frustrar os planos de Deus e enveredar por um caminho de egoísmo, de poder, de autossuficiência. Mas Jesus escolheu viver – de forma total, absoluta – na obediência às propostas do Pai. Nem o espectro da cruz lhe tirou o ânimo para percorrer o caminho que Deus lhe apontava. Nós, discípulos de Jesus, somos confrontados a todos os instantes com as mesmas opções. Qual tem sido a nossa resposta? Na hora crítica de optar, têm prevalecido os nossos interesses pessoais, o nosso desejo de uma vida cómoda e instalada, a nossa vontade de realização e de triunfos, os nossos medos paralisantes, ou a vontade de Deus a nosso respeito?
  • Ao dispor-se a cumprir integralmente o projeto de salvação que o Pai tinha para os homens, Jesus começou a construir um mundo novo, de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava “Reino de Deus”. Nós aderimos a esse projeto e comprometemo-nos com ele no dia em que escolhemos ser seguidores de Jesus. O nosso empenho na construção do “Reino de Deus” tem sido coerente e consequente? Mesmo contra a corrente, temos procurado ser profetas do amor, testemunhas da justiça, servidores da reconciliação, construtores da paz?
  • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. “Converter-se” é renunciar a caminhos de egoísmo e de autossuficiência e recentrar a própria vida em Deus, de forma que Deus e os seus projetos sejam sempre a nossa prioridade máxima. Implica, naturalmente, modificar a nossa mentalidade, os nossos valores, as nossas atitudes, a nossa forma de encarar Deus, o mundo e os outros; exige que sejamos capazes de renunciar ao egoísmo, ao orgulho, à autossuficiência, ao comodismo e que voltemos a escutar Deus e as suas propostas. O que é que temos de “converter” – quer em termos pessoais, quer em termos institucionais – para que aconteça, realmente, esse mundo novo tão esperado?
  • A construção do “Reino de Deus” exige, também, o “acreditar” no Evangelho. “Acreditar” não é, na linguagem neotestamentária, a aceitação de certas verdades afirmadas pelo discurso teológico ou a concordância com um conjunto de definições a propósito de Deus, de Jesus ou da Igreja; mas é, sobretudo, uma adesão total à pessoa de Jesus e ao seu projeto de vida. Com a sua pessoa, com as suas palavras, com os seus gestos e atitudes, Jesus propôs aos homens – a todos os homens – uma vida de amor total, de doação incondicional, de serviço simples e humilde, de perdão sem limites. Nós “acreditamos” em Jesus, incondicionalmente, e estamos dispostos a ir atrás dele no “caminho do discípulo”?
  • O chamamento a integrar a comunidade do “Reino” não é algo reservado a uma elite privilegiada, a pessoas que têm uma missão especial no mundo e na Igreja; mas é algo que Deus dirige a cada homem e a cada mulher, sem exceção. Todos os batizados são chamados a ser discípulos de Jesus, a “converter-se”, a “acreditar no Evangelho”, a seguir Jesus nesse caminho de amor e de dom da vida. Aceitamos que o “Reino” se torne o valor fundamental, a grande prioridade, o principal objetivo da nossa vida?
  • O “Reino” é uma realidade que Jesus começou e que já está, decisivamente, implantada na nossa história. Não tem fronteiras materiais e definidas; mas está a acontecer e a concretizar-se através dos gestos de bondade, de serviço, de doação, de amor gratuito que acontecem à nossa volta (muitas vezes, até fora das fronteiras institucionais da “Igreja”) e que são um sinal visível do amor de Deus nas nossas vidas. Sabemos olhar para o mundo com olhos de ver e conseguimos reconhecer, nos gestos de bondade e de amor que não cessam de acontecer, os sinais da presença do “Reino” na vida e na história dos homens? A presença do “Reino” neste mundo onde a nossa vida se cumpre é para nós fonte de alegria e de esperança? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, Deus dirige-se ao povo estabelecendo uma aliança. A proclamação desta leitura deve ser marcada pela alegria que nasce da certeza de que Deus não abandona o Seu povo. Além disso, deve ter-se em atenção as longas frases com diversas orações que requerem uma acurada preparação nas pausas e respirações.

O mesmo cuidado deve ser tido na segunda leitura, pois algumas das quebras do texto no lecionário não correspondem às pausas e respirações

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

DESERTO, LUGAR DE PROVA E DE GRAÇA

Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressur­reição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressusci­tado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenti­camente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escri­turas e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo bati­zado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Trans­figuração / Confirmação no Tabor, até à Cruz eà Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «pre­param‑se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.

O Evangelho deste Domingo I da Quaresma (Marcos 1,12-15) oferece-nos a figura de Jesus, acabado de apresentar pelo Pai como «o Filho meu, o amado, em quem está o meu comprazimento» (Marcos 1,11), como sintetizador perfeito da vida do povo de Israel e da nossa. Eis, portanto, Jesus impelido pelo Espírito no deserto, durante quarenta dias tentado por satanás, em harmonia com os animais selvagens, servido pelos anjos (Marcos 1,12-13). Excelente analepse em que o narrador faz Jesus descer ao chão de Israel, para assumir as suas fragilidades, elevando a dura realidade do pecado do povo no deserto, e do nosso pecado, a um registo de salvação. O deserto foi lugar de tentação e de queda para o povo de Israel durante quarenta anos, o tempo de uma geração, uma vida inteira, o tempo todo. Mas o deserto era também o lugar da graça, pois era Deus que no deserto conduzia o seu povo, como se recita no velho «credo» de Israel. Esquecendo a graça de Deus que nos conduz, facilmente nos atolamos na areia do deserto, e não se passa a prova. Eis, então, que Jesus desce a esse chão arenoso, ao nosso chão, experimenta a nossa condição. Atravessa e supera a prova, impelido pelo Espírito da graça. Novo aceno. O homem, eu e tu, nós, recebemos de Deus o mandato do domínio manso da terra e dos animais (Génesis 1,26 e 28). Sem sucesso. Mas também aqui, neste chão da criação, Jesus desce ao nosso nível, e salva o nosso fracasso, soberanamente convivendo com os animais selvagens. Mensagem de Paz e Harmonia. O texto de Marcos não perde tempo a descrever o conteúdo das tentações, nem a ação dos atores, como vemos em Mateus (4,1-11) e Lucas (4,1-13). Marcos apenas faz descer o Filho de Deus ao nosso chão arenoso e escorregadio, mostrando bem a sua comunhão connosco e o seu domínio manso, novo e seguro. Do mesmo modo que, pouco depois, estando nós atarefados e aflitos em pleno mar encapelado, filmará Jesus a dormir serenamente na nossa barca, à popa (lugar de comando), com a cabeça suavemente deitada numa almofada (Marcos 4,35-41).

Note-se também que o «deserto» bíblico, mencionado no texto, não se ajusta ao que dizem os dicionários ou enciclopédias. Até contradiz esses dizeres. Na verdade, não é um lugar geográfico, mas teológico, pois é apresentado com muita água (João 3,23), cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Mateus 11,7; Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39), cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19. É um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Mateus 3,1-3), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Mas é um lugar provisório, onde estamos de passagem, e não definitivo, para se habitar lá (à maneira dos Essénios). Sendo um lugar provisório e de passagem, aponta para o definitivo, que é a Terra Prometida, onde Deus fará habitar e descansar o seu povo fiel. Este deserto é uma metáfora da nossa vida, onde sabemos que estamos de passagem. O deserto é todo igual: não tem pontos de referência nem marcos de sinalização. Quer dizer que só podemos prosseguir rumo à Terra Prometida e à Vida verdadeira, se tivermos um bom guia. Aí está o deserto como lugar onde temos de saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler atentamente o mapa da sua Palavra. Agora temos a companhia do Filho, que veio em nosso auxílio.

Mas, atenção. Depois do pequeno, mas consolador filme a que acabámos de assistir, em que vimos Jesus a descer ao nosso chão, assumindo e salvando os nossos fracassos, preparemo-nos para ouvir pela primeira vez a sua voz. Sendo os seus primeiros dizeres, são, naturalmente, prolépticos e programáticos para o inteiro Evangelho de Marcos.

Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos, portanto, também os nossos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros, são constituídos mensageiros, isto é, são pessoas enviadas e estreitamente vinculadas a quem as envia, em nome de quem anunciam em voz alta e clara a mensagem de que são incumbidos. A clara vinculação a quem os envia e nos envia é mesmo mais importante do que a mensagem a transmitir. E é dito o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações de Jesus, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança, entenda-se, da Palavra amante de Deus que, entrando em nós, reclama a nossa resposta amante que transforma a nossa vida. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.

Após o drama do dilúvio (Génesis 9,8-15), Deus fala a Noé e aos seus filhos (Génesis 9,8), portanto, a toda a humanidade, anunciando que vai estabelecer a sua aliança de PAZ, não apenas com Noé e os seus filhos, mas também com todo o universo criado (Génesis 9,9-11), inclusive com os animais selvagens (Génesis 9,10): grandiosa abertura para o Evangelho de hoje. Com os animais selvagens, mas também com as aves e os animais domésticos. Sinal desta nova era de paz: Deus depõe o seu «arco-de-guerra» (arco-íris) nas nuvens (Génesis 9,12-17). O Desígnio de Deus anunciado será inexoravelmente cumprido. A paz para todos e para sempre, inaugurada em Cristo e sempre presente no seu programa filial batismal, tem de estar igualmente presente no programa filial batismal de cada batizado. O texto do Génesis que hoje cai nos nossos ouvidos contém por duas vezes «E Deus disse!». Conta-se que um discípulo de um rabino hassídico, sempre que ouvia o seu mestre ler na Bíblia «E Deus disse», ficava de tal modo entusiasmado, que saía da escola e dançava a gritar: «E Deus disse! E Deus disse!». Aí está um bom motivo para estarmos mais atentos à Bíblia, mas também a tantos homens e mulheres em cuja boca se vai ouvindo: «E Deus disse!». Mas compreendamos ainda que, na Bíblia, este «E Deus disse!» não é apenas coisa de Deus e dos homens. Também dos anjos, das aves, dos animais domésticos e selvagens, todos parceiros de Deus na sua aliança, como hoje ouvimos, mas também das plantas e das árvores (Deuteronómio 20,19), dos passarinhos nos seus ninhos (Deuteronómio 22,6-7), do cabrito no leite da sua mãe (Êxodo 23,10), e até da carismática burra de Balaão (Números 22,25.28).

«Na fé todos estes morreram, sem terem obtido a realização da promessa. Mas viram-na e acenaram-lhe de longe» (Hebreus 11,13). Belíssimo cenário de esperança! Todo o Antigo Testamento acena para Cristo, sua esperança, sua vida espiritual (zoê, e não bíos) (1 Pedro 3,18) e salvação (1 Pedro 3,20). E como Deus não desilude, Cristo acena agora a todo o Antigo Testamento, levando a salvação de Deus a todos os homens e a todos os lugares, iluminando também a até então impenetrável região da morte (1 Pedro 3,18-20). Verdadeiramente acreditar em Cristo é sermos seus contemporâneos e seus irmãos, «filhos no Filho», obra do Espírito em nós, que faz de nós filhos, e não netos, contemporâneos e irmãos do Ressuscitado, e não meros continuadores. Todos: os de ontem, os de hoje e os de amanhã, para que «sem nós» não se chegue à perfeição (Hebreus 11,40). Pedro dá testemunho desta força do Evangelho e da Ressurreição de Cristo que nos constitui em «nova criação» pelo Batismo (1 Pedro 3,21-22).

Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia – caminhos intransitivos, entenda-se –, que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo santuário da alma, aquilo que Ele deseja».

Ao entrarmos no tempo santo da Quaresma,
Devemos ter a coragem de atravessar a poeira dos caminhos
Intransitivos do nosso coração,
Isto é, de limpar as mentiras, ódios, raivas, violências, banalidades,
Que tantas vezes preenchem os nossos dias.
 

A Quaresma é tempo de nos expormos
Ao vendaval criador e purificador do Espírito,
Sem termos a pretensão de o querer transformar em ar condicionado.
 

Toma em tuas mãos, Senhor,
A nossa terra ardida.
Beija-a.
Sopra nela outra vez o teu alento,
A tua aragem,
E veremos nela outra vez impressa a tua imagem.

António Couto

ANEXOS:

  1. Quarta-feira de Cinzas – Ano B – 14.02.2024 – Lecionário
  2. Leitura I do Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 (Gn 9, 8-15)
  3. Leitura II do Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 (1 Pe 3, 18-22)
  4. Domingo I da Quaresma – Ano B – 18.02.2024 – Lecionário
  5. Quarta-feira Cinzas e Domingo I da Quaresma – Ano B – 14.02 e 18.02.2024 – Oração Universal
  6. Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma de 2024
  7. Mensagem Bispos do Porto para Quaresma 2024
  8. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024

XXXII DIA MUNDIAL DO DOENTE

Viver a Palavra   

            Ao ler os textos que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe, recordei-me de um episódio narrado pelo Padre Ermes Ronchi numa visita a um leprosário na Amazónia. Quando estavam na Eucaristia e cada um colocava as suas intenções, um dos leprosos pediu o seguinte: «peçamos ao Senhor que ajude o padre Ermes, porque na Europa é muito difícil manter a fé». O padre Ermes não conseguiu ficar indiferente àquele homem que ao invés de pedir por si próprio, pediu pela Europa e pela evangelização que ele era chamado a fazer. Curioso com a fé daquele homem, no final da Eucaristia foi falar com ele e perguntou-lhe: «quando te encontrares com o Senhor, vais perguntar-lhe por que razão eras leproso?» e eles respondeu-lhe: «não lhe vou perguntar nada, porque sempre confiei Nele».

Surpreendentemente, os tempos difíceis e exigentes de provação e doença são muitas vezes uma ocasião para renovar a confiança em Deus e encontrar um sentido para a vida. A doença que atingia aquele homem não era capaz de lhe retirar a sua fé nem fazer vacilar a confiança que depositava em Deus. Sabemos que este processo não é imediato e muitas vezes requer um caminho de aprofundamento e amadurecimento da fé.

O leproso que se abeira de Jesus no Evangelho deste Domingo acredita que Jesus o pode curar: «Se quiseres, podes curar-me». Contudo, aquele homem é ainda um aprendiz na arte de compreender a vontade de Deus e acredita que essa pode não ser a Sua vontade. Creio que muitas vezes também nós estamos ainda longe de compreender que a vontade de Deus a nosso respeito é algo de bom e de belo, que Deus nos ama e quer o nosso bem. Recordo que na minha infância me surpreendia ouvir, diante da morte de alguém que partia inesperadamente ou até vítima de uma catástrofe: «foi a vontade de Deus». A vontade de Deus não pode ser o bode expiatório para aquilo que não compreendemos e, na verdade, como afirma S. Paulo, a vontade de Deus é «que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade».

Jesus quer que aquele homem se cure e, mais do que isso, fá-lo voltar ao convívio social. Como escutamos na primeira leitura aquele que contraía a lepra devia afastar-se e ficar isolado de todos. Com Jesus aquele homem restabelece a saúde do corpo e integra-se de novo na vida social.

Se as marcas da lepra o faziam afastar-se de todos, a marca que Jesus deixou na vida daquele homem fazem-no partir para comunicar a todos o que Jesus lhe fez. O encontro com Jesus gera uma felicidade que é de tal modo transbordante que nos impele a partir para levar a todos a força transformadora do Seu amor.

Deste modo, a ação missionária da Igreja só será verdadeiramente frutuosa e fecunda quando estiver revestida desta alegria libertadora que Jesus oferece. Quando anunciamos Jesus não somos meramente portadores de uma doutrina ou moral, mas comunicamos a vida de Jesus, que está vivo e que se faz presente e atuante na história. Por isso, aquilo que temos para comunicar não é algo exterior a nós, mas a experiência alegre e libertadora que fizemos Dele: «todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros» (EG 121). in Voz Portucalense

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No dia 11 de fevereiro, memória de Nossa Senhora de Lourdes, celebra-se o Dia Mundial do Doente. Para este ano, o Santo Padre deixou-nos uma mensagem intitulada «‘Não é conveniente que o homem esteja só’. Cuidar do doente, cuidando das relações». Este dia é uma oportunidade para as comunidades para uma celebração ou algum momento de convívio com os doentes da comunidade, ou qualquer outro gesto de proximidade com quantos se encontram numa situação de fragilidade. Inspirados nas palavras do Papa Francisco será importante sensibilizar os fiéis para uma renovada cultura do cuidado: «o primeiro cuidado de que necessitamos na doença é uma proximidade cheia de compaixão e ternura. Por isso, cuidar do doente significa, antes de mais nada, cuidar das suas relações, de todas as suas relações: com Deus, com os outros – familiares, amigos, profissionais de saúde –, com a criação, consigo mesmo». in Voz Portucalense

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso….

Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Levítico 13,1-2.44-46

O Senhor falou a Moisés e a Aarão, dizendo:
«Quando um homem tiver na sua pele
algum tumor, impigem ou mancha esbranquiçada,
que possa transformar-se em chaga de lepra,
devem levá-lo ao sacerdote Aarão
ou a algum dos sacerdotes, seus filhos.
O leproso com a doença declarada
usará vestuário andrajoso e o cabelo em desalinho,
cobrirá o rosto até ao bigode e gritará:
‘Impuro, impuro!’
Todo o tempo que lhe durar a lepra,
deve considerar-se impuro
e, sendo impuro, deverá morar à parte,
fora do acampamento».

CONTEXTO

O Livro do Levítico trata, sobretudo, de questões relacionadas com o culto (que era incumbência dos sacerdotes, considerados membros da tribo de Levi). Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de discursos que Javé teria proferido diante de Moisés no Sinai e nos quais teria explicado ao Povo o que este deveria fazer para viver sempre em comunhão com Deus, no âmbito da Aliança.

Na realidade, o livro apresenta um conjunto de leis, de preceitos, de ritos de épocas e proveniências diversas, reunidos ao longo de vários séculos e reelaborados pelos teólogos da “escola sacerdotal” (uma “escola” que, sobretudo a partir da época do Exílio na Babilónia, se empenhou em coligir e ordenar diversos materiais da tradição religiosa de Israel, particularmente os que diziam respeito à área de intervenção da classe sacerdotal). A grande maioria dessas leis, ritos e preceitos dizem respeito à vida cultual e pretendem ensinar os israelitas a viver como Povo de Deus e a responder, de forma adequada, ao amor e à solicitude do Deus da Aliança. Fundamentalmente, o Levítico preocupa-se em instilar na consciência dos fiéis que a comunhão com o Deus vivo é a verdadeira vocação do homem.

O texto que nos é proposto pertence à terceira parte do Livro do Levítico (cf. Lv 11-16), conhecida como “lei da pureza”. Aí, apresentam-se os vários géneros de “impureza” que impedem o homem de se aproximar do santuário, bem como os ritos destinados a “purificar” o homem.

A noção de “impureza” que aparece no Livro do Levítico está muito próxima da noção de “tabu” que os especialistas da história das religiões conhecem bem. Supõe-se que o homem deseja a sua vida balizada por regras bem definidas, que o protejam da angústia e do risco do desconhecido. Ora, nesta compreensão da existência, tudo o que é excecional, anormal, insólito, misterioso, é considerado como algo suscetível de libertar forças incontroláveis que o homem não domina e que podem destruir a harmonia e o equilíbrio pretendidos. Portanto, o mais seguro é erguer uma barreira que mantenha o homem afastado dessas realidades.

Desde tempos imemoriais, certos “tabus” interditavam aos israelitas o contacto com determinadas realidades (o sangue, um cadáver, certos tipos de alimentos, etc.). Se o homem entrava em contacto com elas, ficava “impuro”. O contacto com a “impureza” não era pecado; mas o homem devia “limpar” a “impureza” contraída, logo que possível, a fim de reencontrar o equilíbrio e a harmonia. Só depois de purificado (isto é, de eliminado o estado de indignidade em que se encontrava), podia voltar a aproximar-se do Deus santo e a estabelecer comunhão com Ele.

O caso mais grave de “impureza” era causado por uma doença – a lepra. É a essa realidade que o texto se refere. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A legislação levítica sobre os leprosos e a forma de lidar com eles mostra como o medo ou a repulsa podem gerar mecanismos de indiferença e de afastamento face a irmãos que, em contexto de doença e fragilidade, necessitam de amor e cuidado. Como lido com as pessoas doentes, idosas ou de qualquer outro modo feridas de fragilidade, que Deus colocou no meu caminho? Procuro que o amor que lhes devo fale mais alto do que o meu medo, a minha repugnância, o meu comodismo, o meu egoísmo, na hora de lhes prestar os cuidados de que necessitam?
  • A legislação religiosa de Israel determinou, em nome de Deus e da santidade de Deus, a exclusão e a marginalização de pessoas sem culpa especial. Marcou-as, cortou-lhes o acesso à comunidade, determinou que elas eram malditas à face de Deus, condenou-as à morte em vida. A nós, homens e mulheres do séc. XXI, formados na escola de Jesus, esse quadro deixa-nos inquietos. Mas talvez essa inquietação seja um bom ponto de partida para repensarmos algumas das nossas atitudes e comportamentos face aos nossos irmãos. Não será possível que os nossos preconceitos, a nossa preocupação com o legalismo, a nossa obsessão pelo politicamente correto estejam a criar marginalização e exclusão para alguns “diferentes” que se cruzam connosco? Não pode acontecer que, em nome de Deus, dos “sãos princípios”, da “verdadeira doutrina”, das exigências de radicalidade, estejamos a afastar as pessoas, a condená-las, a catalogá-las, a impedi-las de fazer uma verdadeira experiência de Deus e de comunidade?
  • Embora de forma indireta, o texto denuncia a atitude daqueles que, instalados nas suas certezas e seguranças, constroem um Deus à medida da pessoa e que atua segundo uma lógica humana, injusta, prepotente, criadora de exclusão e de marginalização. Não faz qualquer sentido criarmos um Deus que atue de acordo com os nossos esquemas mentais, com as nossas lógicas e preconceitos. Percebemos e acolhemos verdadeiramente a lógica de Deus na nossa vida in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)

Refrão:  Sois o meu refúgio, Senhor;
dai-me a alegria da vossa salvação.

Feliz daquele a quem foi perdoada a culpa
e absolvido o pecado.
Feliz o homem a quem o Senhor não acusa de iniquidade
e em cujo espírito não há engano.

Confessei-vos o meu pecado
e não escondi a minha culpa.
Disse: Vou confessar ao Senhor a minha falta
e logo me perdoastes a culpa do pecado.

Vós sois o meu refúgio, defendei-me dos perigos,
fazei que à minha volta só haja hinos de vitória.
Alegrai-vos, justos, e regozijai-vos no Senhor,
exultai, vós todos os que sois retos de coração

LEITURA II – 1 Coríntios 10,31-11,1

Irmãos:
Quer comais, quer bebais, ou façais qualquer coisa,
fazei tudo para glória de Deus.
Portai-vos de modo que não deis escândalo
nem aos judeus, nem aos gregos, nem à Igreja de Deus.
Fazei como eu, que em tudo procuro agradar a toda a gente,
não buscando o próprio interesse, mas o de todos,
para que possam salvar-se.
Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo.

CONTEXTO

A segunda leitura que a liturgia deste 6.º domingo comum nos propõe é a conclusão do ensinamento de Paulo sobre o consumo da carne dos animais sacrificados nos santuários religiosos de Corinto (cf. 1 Cor 8-10).

A propósito da segunda leitura do passado domingo, já vimos a definição da questão: uma parte da carne dos animais imolados em honra dos deuses, nos templos pagãos da cidade, era comercializada. Os cristãos, bem como os outros cidadãos de Corinto, compravam essa carne e usavam-na na alimentação do dia a dia. No entanto, alguns dos membros da comunidade cristã sentiam escrúpulos quanto a isto: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos?

Vimos também a resposta de Paulo: dado que os ídolos não são nada, comer dessa carne é indiferente; contudo, deve-se evitar escandalizar os mais débeis na fé. Se houver o perigo de ofender os sentimentos de algum irmão, evite-se comer da carne sacrificada nos santuários pagãos, a fim de não faltar à caridade.

Na conclusão da sua reflexão sobre o tema, Paulo retoma e enuncia os elementos que apresentou anteriormente. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • “Fazei tudo para a glória de Deus” – pede Paulo aos cristãos de Corinto; mas logo acrescenta que a “glória de Deus” exige que façamos tudo para o bem dos filhos e filhas de Deus que caminham ao nosso lado. Santo Ireneu de Lião resumia admiravelmente tudo isto quando dizia: “a glória de Deus é o homem vivo”. Estou consciente de que a minha resposta de amor ao Deus que me ama passa pelo respeito, pelo cuidado, pelo amor aos meus irmãos, particularmente aos mais desgraçados? Estou convicto de que o meu melhor ato de culto é “pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, vestir os nus e não desprezar nenhum irmão” (Is 58,6-7)?
  • Paulo revela aos coríntios que aquele Jesus que lhe apareceu no caminho de Damasco é a sua referência suprema. A grande preocupação do apóstolo, na hora de decidir as suas prioridades, é imitar aquele que não viveu para si, mas fez da sua vida um dom de amor ao Pai e aos homens, até ao dom total da vida. Cristo é a minha referência? Na hora crítica das escolhas, para onde me inclino: para o exemplo de Cristo, ou para os meus interesses e projetos pessoais? Procuro ter sempre diante dos meus olhos aquilo que Jesus disse e fez, mesmo quando as suas propostas vão contra a corrente e são ridicularizadas pelos modernos “influencers”? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,40-45

Naquele tempo,
veio ter com Jesus um leproso.
Prostrou-se de joelhos e suplicou-Lhe:
«Se quiseres, podes curar-me».
Jesus, compadecido, estendeu a mão, tocou-lhe e disse:
«Quero: fica limpo».
No mesmo instante o deixou a lepra
e ele ficou limpo.
Advertindo-o severamente, despediu-o com esta ordem:
«Não digas nada a ninguém,
mas vai mostrar-te ao sacerdote
e oferece pela tua cura o que Moisés ordenou,
para lhes servir de testemunho».
Ele, porém, logo que partiu,
começou a apregoar e a divulgar o que acontecera,
e assim, Jesus já não podia entrar abertamente
em nenhuma cidade.
Ficava fora, em lugares desertos,
e vinham ter com Ele de toda a parte.

CONTEXTO

Jesus anda a percorrer as vilas e aldeias da Galileia, a propor o Reino de Deus (cf. Mc 1,39). No seu vaivém cruza-se com todo o tipo de pessoas e conhece todo o tipo de homens e mulheres com vidas fragilizadas. Muitos vivem marginalizados e esquecidos, pelas razões mais diversas. Para esses, o anúncio da proximidade do Reino de Deus é uma “Boa Notícia” que acende a esperança numa vida mais humana e mais feliz.

No episódio que o Evangelho deste domingo nos propõe, Jesus cruza-se com um leproso. Não se identifica o homem pelo nome, nem se diz o lugar onde se desenrola a cena. É como se aquele leproso sem nome e sem ligação geográfica fosse o protótipo de todos os marginalizados que Jesus encontrou ao percorrer os caminhos da Galileia.

Pela primeira leitura deste domingo, já conhecemos a situação social e religiosa dos leprosos. Para a ideologia oficial, o leproso era um pecador e um maldito, vítima de um particularmente doloroso castigo de Deus. A sua condição excluía-o da comunidade e impedia-o de frequentar a assembleia do Povo de Deus. Tinha que viver isolado, apresentar-se andrajoso e avisar, aos gritos, o seu estado de impureza, a fim de que ninguém se aproximasse dele. Não tinha acesso ao Templo, nem sequer à cidade santa de Jerusalém, a fim de não conspurcar, com a sua impureza, o lugar sagrado. O leproso era o protótipo do marginalizado, do excluído, do segregado. A sua condição afastava-o, não só da comunidade dos homens, mas também do próprio Deus. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Jesus, profundamente comovido diante daquele leproso abandonado pela sociedade e pela religião, revela-nos que Deus tem um coração de mãe, um coração que transborda de amor pelos seus filhos magoados e esmagados pelos acidentes da vida. O amor maternal de Deus não exclui, não condena, não sente repulsa; o amor de Deus purifica, cura as feridas, humaniza, salva. O Deus que Jesus revela nas suas palavras e nos seus gestos, não é o Deus intolerante, severo, distante, incapaz de compreender os limites e as fragilidades dos seres humanos; é o Deus do amor nunca desmentido, do amor que ultrapassa todos os limites, do amor excessivo que tudo cura e tudo purifica. Qual é o Deus em que acreditamos: o Deus de Jesus que é amor e misericórdia, ou o Deus intransigente e severo que alguns teimam em propor?
  • A atitude de Jesus em relação ao leproso (bem como a outros excluídos da sociedade do seu tempo) é uma atitude de proximidade, de solidariedade, de aceitação, de acolhimento. Jesus não está preocupado com o que é política ou religiosamente correto, ou com a indignidade da pessoa, ou com o perigo que ela representa para uma certa ordem social… Ele apenas vê em cada pessoa um irmão que Deus ama e a quem é preciso estender a mão e amar, também. Como é que lidamos com os excluídos da sociedade ou da Igreja? Procuramos integrar e acolher os estrangeiros, os marginais, os pecadores, os “diferentes” ou, com a nossa intransigência, ajudamos a perpetuar os mecanismos de exclusão e de discriminação?
  • O gesto de Jesus de estender a mão e tocar o leproso é um gesto provocador, verdadeiramente profético, que denuncia uma Lei iníqua, geradora de discriminação, de exclusão e de sofrimento. Com a autoridade de Deus, Ele retira qualquer valor a essa Lei e garante que Deus não discrimina ninguém. Apesar de todos os nossos progressos civilizacionais, continuamos a ter leis (umas escritas nos nossos códigos legais civis ou religiosos, outras que não estão escritas mas que são consagradas pela moda, pelo politicamente correto ou até por uma ideia deturpada da santidade de Deus) que são geradoras de marginalização, de exclusão e de sofrimento. Como discípulos de Jesus, temos feito tudo o que está ao nosso alcance para construir, a nível da legislação e dos comportamentos, a civilização do amor e não a civilização do egoísmo, da exclusão, da condenação dos “diferentes”?
  • Mais uma vez, o Evangelho deste domingo propõe à nossa consideração a atitude dos líderes judaicos. Comodamente instalados no alto das suas certezas e preconceitos, eles perpetuam, em nome de Deus, um sistema religioso que gera sofrimento e miséria e não se deixam questionar nem desafiar pela novidade de Deus. Estão tão seguros e convictos das suas verdades particulares que fecham totalmente o coração a Jesus e não se reveem nas suas propostas. Estamos sempre em alerta para a necessidade de nos desinstalarmos e de abrirmos o coração aos desafios de Deus?
  • O leproso, apesar da proibição de Jesus, “começou a apregoar e a divulgar o que acontecera”. Marcos sugere, desta forma, que o encontro com Jesus transforma de tal forma a vida da pessoa que ela não pode calar a alegria pela novidade que Cristo introduziu na sua vida e tem de dar testemunho. Somos capazes de testemunhar, no meio dos nossos irmãos, a libertação que Cristo nos trouxe? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é necessário ter em atenção as diversas frases em discurso direto, bem como as frases que as introduzem. Além disso, deve ter-se em conta a correta pronunciação das palavras menos usuais como: «esbranquiçada» e «andrajoso».

A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a preparação do texto. Deve ter-se em atenção o tom exortativo do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

IMITADORES DE CRISTO

O Evangelho de Marcos 1,40-45, que neste Domingo VI do Tempo Comum temos a graça de ver e de escutar, continua a mostrar que Jesus, que é «o Reino de Deus em pessoa» (autobasileía, como bem refere Orígenes [185-254], insigne mestre das escolas de Alexandria e de Cesareia Marítima), Aquele que se fez nosso próximo para sempre (Marcos 1,15), continua a passar pelos nossos caminhos, a cruzar-se com as nossas dores e a assumi-las sobre si, curando a nossa pele chagada e o nosso esclerosado coração. Sim, o Evangelho de hoje não é apenas para ouvir. É também para ver atenta e demoradamente, pois oferece aos nossos olhos, sobretudo ao olhar do coração, o cenário extraordinário de um leproso ajoelhado aos pés de Jesus, que provoca a comoção visceral de Jesus, entenda-se o amor maternal de Jesus, levando-o a estender a sua mão soberana sobre o leproso, como fez Deus em ação de condescendência e de libertação no Livro do Êxodo, e a tocar no leproso sem receio de qualquer contágio.

A cena evangélica é comovente e surpreendente, desarmante, como é sempre, para a pobre e aplanada esquadria do nosso olhar, para os nossos trejeitos e preconceitos, a notícia ousada, boa e feliz que se chama Evangelho. Contra todas as regras estabelecidas, que impunham aos leprosos o isolamento e a distância de Deus (não podiam frequentar o Templo ou a sinagoga) e dos homens (não podiam entrar nas povoações), a que se associava o facto de terem de andar com o rosto escondido por qualquer trapo de miséria, e ainda o grito de «impuro, impuro», que deviam trazer sempre nos lábios (Levítico 13,45), para que as pessoas ditas boas e saudáveis, ao ver um homem sem rosto e ao ouvir o seu grito, dele se pudessem distanciar o mais possível, pondo-se a seguro do impuro. Deixando tudo isto na penumbra, eis hoje um leproso que ousa aproximar-se de Jesus e colocar-se de joelhos diante dele, implorando dele a cura (Marcos 1,40). É, nos Evangelhos, o único doente que se coloca de joelhos diante de Jesus, implorando a sua cura. O gesto é o seu verdadeiro pedido, que as palavras que diz apenas iluminam. Ele sabe que a sua cura só pode ser um dom de Deus.

Um leproso, diziam os rabinos, era como um morto em vida. Separado de Deus e da comunidade do louvor de Deus, isto é, da comunhão de vida com Deus, o leproso em tudo se assemelhava aos mortos, que também estavam separados de Deus e fora do louvor de Deus, que é a verdadeira nascente da vida (Salmo 6,6; 88,6; Isaías 38,18). Neste sentido, o Livro de Job define a lepra como o «primogénito entre os mortos» (Job 18,13). Tanto assim era que uma eventual cura da lepra suscitava então o mesmo efeito, o mesmo espanto, de uma ressuscitação da morte!

As vísceras maternais de Jesus comovem-se (splagchnízomai) quando vê o estado miserável deste seu filho (Marcos 1,41). O verbo splagchnízomai indica o desarranjo interior, nas vísceras (splágchna), e vísceras maternais (hebraico rahamîm). Por isso, Jesus não pode repelir o seu filho necessitado. Pelo contrário, estende a sua mão sobre ele, gesto de divina condescendência e soberania (Êxodo 3,20; 7,5; Salmo 138,7), e toca-lhe na pele chagada, e estabelece comunicação com ele, falando para ele (Marcos 1,41). Para Jesus, não há gente para acolher, e gente para evitar ou repelir. A todos acolhe, sobretudo aos piores e aos que estão em pior estado. Tocando-lhe, Jesus assume sobre si a lepra daquele pobre homem. É assim que o salva e nos salva. Jesus não passa por nós apenas à distância ou à tangente; desce ao nosso mundo, ao nosso fundo, e assume e paga a conta por inteiro. Nunca deixemos de cravar os olhos naquela Cruz, até percebermos bem que aquelas chagas são as nossas chagas, e que aquelas dores são as nossas dores, umas e outras assumidas, e, por isso, salvas, como lembram os antigos Padres da Igreja.

Com este seu comportamento de radical proximidade física e afetiva e salutar, Jesus diz-nos que nos devemos abeirar de todas as pessoas, nomeadamente dos doentes e marginalizados ou descartados, sempre incluindo e nunca excluindo, com uma atitude próxima, compassiva, calorosa e familiar, no polo oposto de qualquer comportamento indiferente, cético ou assético.

«Quero, fica limpo!», diz Jesus (Marcos 1,41), e nasce um homem novo, com o rosto destapado, por Deus descoberto, para ser visto e admirado, saído das mãos puras de Deus e da sua Palavra mansa e criadora (Génesis 1; João 15,3). Um grito se calou: «impuro, impuro!». Um novo grito nasceu: o do ANÚNCIO (kêrýssô) do Evangelho (Marcos 1,45). É o terceiro ANUNCIADOR, depois de João Batista (Marcos 1,4.7) e de Jesus (Marcos 1,14.38.39). Outros se seguirão (Marcos 3,14; 5,20; 6,12; 7,36; 16,15). Também nós. Sim, é aí que nos enxertamos nós também, porque também nós estamos depois do milagre em nós realizado. Por isso, temos, antes de mais, de entender que a mão estendida, soberana e carinhosa de Deus tocou em nós, e nos curou, e nos levantou, e rebentou os nossos odres velhos, ressequidos, carcomidos, e nos enviou com uma notícia ousada, boa e feliz, ardente, explosiva, comovente.

Atirai fora os odres, velhos e novos. Há muito que acabaram os almocreves! A notícia boa e feliz, isto é, o Evangelho, não se leva em vasilha nenhuma. Levai-o nas entranhas, nos pés, nas mãos, no rosto, no coração. Ah!, antes que me esqueça: atirai também fora o ouro, a prata, o cobre, a outra túnica, o bastão, as sandálias. E aproveitai para virar também os bolsos do avesso! Deve haver por lá algum cotão!

Quanto ao mais, aceitai a provocação de Paulo, na sua lição de hoje aos Coríntios (1 Cor 10,31-11,1). Sede imitadores (mimêtês) de Cristo (1 Coríntios 11,1); sede «mimos» (mîmos) de Cristo, fazei como Cristo fez e faz, como vistes hoje Cristo fazer!

O texto do Livro do Levítico 13,1-2.44-46, que serve de pano de fundo ao Evangelho de hoje, mostra-nos o caminho estreito e triste do leproso, que abre, todavia, para a larga e feliz avenida do Evangelho deste dia.

O Salmo 32 não é uma abstrata lição de moral, mas o testemunho autobiográfico de um convertido, que canta a felicidade do perdão. A liturgia cristã colocou este Salmo, desde o século VI, na lista dos sete «Salmos penitenciais» (juntamente com os salmos 6; 38; 51; 102; 103; 143). Logo no primeiro versículo, o Salmo diz admiravelmente: «Feliz aquele a quem foi retirada (nasaʼ) a culpa,/ coberto (kasah) o pecado» (Salmo 32,1). «Retirada a culpa» alude à imagem de um fardo, de um peso, de que somos aliviados, para podermos respirar de alívio. «Coberto o pecado»: Lutero, comentando a Carta aos Romanos 4,7, que cita o versículo do Salmo que estamos a apresentar, serviu-se deste verbo (kasah, cobrir) para argumentar que o pecado não é perdoado, mas apenas «coberto» pela justificação pela graça. Em boa verdade, o valor simbólico do «cobrir» bíblico traduz, sem qualquer dúvida, a anulação efetiva e eficaz do pecado por parte de Deus. Biblicamente falando, «cobrir» ou «perdoar» o pecado não significa simplesmente «esquecer» o pecado, passar por cima do pecado, mas, mais intensamente, «arrancar» o homem ao pecado, o que constitui um milagre só ao alcance do poder de Deus. Santo Agostinho tinha em grande apreço este Salmo. Afixou uma cópia na parede do seu quarto, diante do seu leito. E lia-a entre lágrimas, o que lhe trazia grande paz e conforto, sobretudo durante os últimos tempos da sua doença de que veio a falecer.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024 (Lev 13, 1-2.44-46)
  2. Leitura II do Domingo VI do Tempo Comum – Ano B – 11.02.2024 (1 Cor 10, 31-11,1)
  3. Domingo VI do TEMPO COMUM – ANO B – 11.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo VI do TEMPO COMUM – ANO B – 11.02.2024 – Oração Universal
  5. XXXII DIA MUNDIAL DO DOENTE – 11 fevereiro 2024
  6. Mensagem do Papa Francisco para o XXXII Dia Mundial do Doente – 11.02.2024
  7. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024

29Saindo da sinagoga, foram para casa de Simão e André, com Tiago e João. 30A sogra de Simão estava de cama com febre, e logo lhe falaram dela. 31Aproximando-se, tomou-a pela mão e levantou-a. A febre deixou-a e ela começou a servi-los. Mc 1, 29-31

Viver a Palavra   

            O tempo é um dom precioso que Deus coloca em nossas mãos e geri-lo bem é um grande desafio para cada um de nós. Quantas vezes fazemos a experiência de chegar ao final do dia e sentir que devíamos ter aproveitado melhor o tempo, dedicado mais atenção a alguns aspetos que foram descurados e ter saboreado a oportunidade de mais um dia que o Senhor nos deu a viver.

            A nossa vida e o frenesim do nosso quotidiano muitas vezes envolvem-nos de tal maneira que nos impedem de viver e aproveitar convenientemente cada momento. Contudo, importa impor ritmos e tempos que nos ajudem a aproveitar e a saborear a beleza da vida. O tempo e a história são o lugar no qual se inscreve a nossa breve existência e, por isso, diante de nós coloca-se o desafio de viver o tempo aproveitando-o como oportunidade única de encontro e reencontro. Cada dia, cada semana, cada ano são uma nova oportunidade de ser mais, de ser melhor, de fazer diferente, saboreando aquilo que a vida nos oferece e transformando o lugar em que vivemos, trabalhamos ou nos divertimos naquilo que o Senhor sonhou para nós.

            No Evangelho deste Domingo acompanhamos uma jornada típica de Jesus. S. Marcos apresenta-nos o ritmo de um dia da vida de Jesus com as suas diversas ocupações, prioridades e encontros. Jesus, o Verbo Eterno, habita o nosso tempo e faz dele lugar da manifestação do amor do Pai. A consciência de que o Seu alimento é fazer a vontade Daquele que O enviou, imprime no Seu quotidiano um ritmo e uma marca diferente. Jesus não se deixa levar pelo ativismo das muitas coisas a fazer, nem se demora na análise e programação estéril das várias coisas a realizar. Jesus articula sabiamente contemplação e ação, proximidade e encontro, anúncio e missão. Faz e ensina a fazer, realiza com as Suas próprias mãos e convida a colaborar na Sua obra. Parte ao encontro de todos e acolhe os que Dele se aproximam, mas também tem necessidade de se recolher na intimidade com o Pai para renovar a consciência da missão e dar sentido aos passos percorridos.

            Jesus, procurado por todos, procura a intimidade com o Pai e ao romper da jornada retira-se para um lugar ermo para rezar. Como é inspirador e salutar começar a jornada, não com o corre-corre de quem vai atrasado e tem tantas coisas para fazer, mas com a serenidade do encontro com o Pai que dá sentido e plenitude aos nossos dias e aos nossos afazeres.

            Jesus cura aqueles de quem se aproxima, realiza milagres, oferece a saúde corporal e aponta caminhos de plenitude e totalidade. Não se deixa confinar e parte, fazendo-nos partir com Ele: «vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».

            Nos relatos das curas e milagres de Jesus há sempre um aspeto que me impressiona: a capacidade de Jesus de nos erguer da nossa situação de vítimas para nos tornar protagonistas. Nesta passagem vemos a sogra de Pedro, que uma vez restabelecida, levanta-se e começa a servi-los. Ser protagonista e construtor ativo da nova civilização do amor é o caminho que somos chamados a encetar, contudo, tantas vezes, a vitimização impede-nos de progredir, crescer e chegar mais alto. Por isso, como Paulo queremos assumir a urgência da evangelização e dizer com a nossa vida: «fiz-me tudo para todos, a fim de ganhar alguns a todo o custo. E tudo faço por causa do Evangelho, para me tornar participante dos seus bens».in Voz Portucalense

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            No dia 2 de fevereiro celebramos a Festa da Apresentação do Senhor e o Dia do Consagrado. Em Roma, este ano, o Santo Padre irá presidir à celebração da Santa Missa, enriquecida pela presença dos participantes do Encontro Internacional de consagradas e consagrados em preparação para o Jubileu de 2025. De 1 a 4 de fevereiro, cerca de trezentos representantes das diferentes formas de vida consagrada se reunirão em Roma para refletir sobre o tema «Peregrinos de esperança no caminho da paz». Este dia constitui-se como uma oportunidade privilegiada para recordar a importância dos consagrados na vida da Igreja mas também para apresentar a vida consagrada como proposta vocacional para quantos se interrogam acerca do projeto de Deus para as suas vidas.in Voz Portucalense

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           Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

        E faremos isso….

        Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Job 7,1-4.6-7

Job tomou a palavra, dizendo:
«Não vive o homem sobre a terra como um soldado?
Não são os seus dias como os de um mercenário?
Como o escravo que suspira pela sombra
e o trabalhador que espera pelo seu salário,
assim eu recebi em herança meses de desilusão
e couberam-me em sorte noites de amargura.
Se me deito, digo: ‘Quando é que me levanto?’
Se me levanto: ‘Quando chegará a noite?’
e agito-me angustiado até ao crepúsculo.
Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear
e desvanecem-se sem esperança.
– Recordai-Vos que a minha vida não passa de um sopro
e que os meus olhos nunca mais verão a felicidade». 

CONTEXTO

            O Livro de Job, uma das pérolas da literatura universal, apresenta uma reflexão sobre algumas das grandes questões que se colocam aos seres humanos: qual o sentido da vida? Qual a situação do homem diante de Deus? Qual o papel de Deus na vida e nos dramas do ser humano? Qual o sentido do sofrimento?

            Job, a figura principal deste livro, é apresentado como um homem piedoso, bom, generoso e cheio de “temor de Deus”. Possuía muitos bens e uma família numerosa… Mas, repentinamente, viu-se privado de todos os seus bens, perdeu a família e foi atingido por uma grave doença.

            O drama de Job, apresentado em pormenor nos dois primeiros capítulos do livro, serve para introduzir uma reflexão sobre um dos grandes dogmas da fé israelita: o dogma da retribuição. Para a catequese tradicional de Israel, Javé recompensava os bons pelas suas boas obras e castigava os maus pelas injustiças e arbitrariedades que praticavam. A justiça de Deus era linear, lógica, imutável. De acordo com os teólogos de Israel, Javé é um Deus previsível, que Se limita a fazer a contabilidade das ações do homem e a pagar-lhe em consequência.

            No entanto, a vida nem sempre confirmava esta visão de Deus e da sua forma de atuar. Constatava-se, com frequência, que os maus possuíam bens em abundância e viviam vidas longas e felizes, enquanto os justos eram pobres e sofriam por causa da injustiça e da violência dos poderosos. Mais ainda: o dogma não respondia ao problema do sofrimento do inocente. Se um homem bom, piedoso, que teme o Senhor e que vive na observância dos mandamentos sofre, como explicar esse sofrimento?

            Job discorda da teologia tradicional e, a partir da sua própria experiência, denuncia uma fé instalada em preconceitos e em teorias que não têm nada a ver com a vida. Ele não aceita as falsas imagens de Deus fabricadas pelos teólogos de Israel, para quem Deus não passa de um comerciante que paga conforme a qualidade da mercadoria que recebe.

            Como não pode aceitar esse deus falso, Job parte em demanda do verdadeiro rosto de Deus. Numa busca apaixonada, emotiva, dramática, temperada pelo sofrimento, marcada pela rebeldia e, às vezes, pela revolta, Job chega ao “face a face” com Deus. Descobre um Deus omnipotente, desconcertante, incompreensível, que ultrapassa infinitamente as lógicas humanas; mas que ama, com amor de Pai, cada uma das suas criaturas. A Job nada resta senão reconhecer a sua pequenez e finitude, a sua incapacidade para compreender os projetos de Deus, a vacuidade da sua pretensão de julgar Deus e de entendê-l’O à luz da lógica dos homens. Job decide, finalmente, trilhar o único caminho que faz sentido: vai entregar-se totalmente nas mãos desse Deus incompreensível, mas cheio de amor, e vai confiar plenamente n’Ele.

            O texto que a liturgia deste dia nos propõe como primeira leitura integra o corpo central do livro (Jb 3,1 -31,40). Aí encontramos um diálogo entre Job (o crente inconformado, polémico, contestatário) e quatro “amigos” (os defensores da teologia tradicional). Nesse diálogo, Job vai desfazendo os argumentos da catequese oficial de Israel; e vai, também, derramando a sua insatisfação e revolta, num desafio a esse deus falso que os amigos lhe apresentam e que Job se recusa a aceitar. O primeiro dos “amigos” a falar é um tal Elifaz de Teman (Jb 4,1-5,27); Job responde-lhe com uma reflexão sobre o sentido da vida (Jb 6,1-7,21).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • O sofrimento – sobretudo o sofrimento do inocente – é o drama mais inexplicável que atinge o homem ao longo da sua caminhada pela história. Que razões há para o sofrimento de uma criança ou de uma pessoa boa e justa? Porque é que algumas vidas estão marcadas por um sofrimento atroz e sem esperança? Como é que um Deus bom, cheio de amor, preocupado com a felicidade dos seus filhos, Se situa face ao drama do sofrimento humano? A única resposta honesta é admitir que não temos explicações definitivas para realidades que nos ultrapassam absolutamente. O “sábio” autor do livro de Job lembra-nos, a este propósito, a nossa pequenez, os nossos limites, a nossa finitude, a nossa incapacidade para entender os mistérios e os caminhos de Deus; mas deixa-nos também uma certeza fundamental: dê a vida as voltas que der, Deus ama-nos com amor de pai e de mãe e quer conduzir-nos ao encontro da vida verdadeira e definitiva, da felicidade sem fim… O nosso mundo está cheio de dramas que nos deixam sem palavras… Talvez nem sempre sejamos capazes de entender os caminhos de Deus; mas, mesmo quando as coisas não fazem sentido do ponto de vista da nossa lógica humana, resta-nos confiar no amor e na bondade do nosso Deus e entregarmo-nos confiadamente nas suas mãos. Como é que lidamos com as questões que nos ultrapassam e põem em causa a nossa visão do mundo e da vida? Somos capazes de confiar em Deus, a fundo perdido, mesmo quando não compreendemos a lógica das suas decisões?
  • Ao longo do livro de Job, multiplicam-se os desabafos magoados de um homem a quem o sofrimento tornou duro, exigente, amargo, agressivo, inconformado, revoltado até. No entanto, Deus nunca condena o seu amigo Job pela violência das suas críticas e das suas exigências… Deus sabe que as vicissitudes da vida podem levar o homem ao desespero; por isso, entende o seu drama e não leva demasiado a sério as suas expressões menos próprias e menos respeitosas. A atitude compreensiva e tolerante de Deus convida-nos a uma atitude semelhante face aos lamentos de revolta e de incompreensão vindos do coração daqueles irmãos que a vida maltratou… Que ressonância tem no nosso coração o lamento sentido dos nossos irmãos, mesmo quando esse lamento assume expressões mais contundentes e mais chocantes?
  • Job é, também, o crente honesto e livre, que não aceita certas imagens pré-fabricadas de Deus, apresentadas pelos profissionais do sagrado. Recusa-se a acreditar num Deus construído à imagem dos esquemas mentais do ser humano, que funciona de acordo com a lógica humana da recompensa e do castigo, que Se limita a fazer a contabilidade do bem e do mal do ser humano e a responder com a mesma lógica. Com coragem, correndo o risco de não ser compreendido, Job recusa esse Deus e parte à procura do verdadeiro rosto de Deus – esse rosto que não se descobre nos livros ou nas discussões teológicas abstratas, mas apenas no encontro “face a face”, na aventura da procura arriscada, na novidade infinita do mistério. Estamos dispostos, também nós, a percorrer esse caminho de descoberta e de encontro com Deus? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)

Refrão:  Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.

Louvai o Senhor, porque é bom cantar,
é agradável e justo celebrar o seu louvor.
O Senhor edificou Jerusalém,
congregou os dispersos de Israel.

Sarou os corações dilacerados
e ligou as suas feridas.
Fixou o número das estrelas
e deu a cada uma o seu nome.

Grande é o nosso Deus e todo-poderoso,
é sem limites a sua sabedoria.
O Senhor conforta os humildes
e abate os ímpios até ao chão.

LEITURA II – 1 Coríntios 9,16-19.22-23

Irmãos:
Anunciar o Evangelho não é para mim um título de glória,
é uma obrigação que me foi imposta.
Ai de mim se não anunciar o Evangelho!
Se o fizesse por minha iniciativa,
teria direito a recompensa.
Mas, como não o faço por minha iniciativa,
desempenho apenas um cargo que me está confiado.
Em que consiste, então, a minha recompensa?
Em anunciar gratuitamente o Evangelho,
sem fazer valer os direitos que o Evangelho me confere.
Livre como sou em relação a todos,
de todos me fiz escravo,
para ganhar o maior número possível.
Com os fracos tornei-me fraco,
a fim de ganhar os fracos.
Fiz-me tudo para todos,
a fim de ganhar alguns a todo o custo.
E tudo faço por causa do Evangelho,
para me tornar participante dos seus bens.

CONTEXTO

            No mundo grego, os templos eram os principais matadouros de gado. Os animais eram oferecidos aos deuses e imolados nos templos. Uma parte do animal era queimada e outra parte pertencia aos sacerdotes. Havia ainda sobras, que o pessoal do templo comercializava. Essas sobras encontravam-se à venda nas bancas dos mercados, eram compradas pela população e entravam na cadeia alimentar. No entanto, tal situação não deixava de suscitar algumas questões aos cristãos: comprar essas carnes e comê-las – como toda a gente fazia – não seria, de alguma forma, comprometer-se com os cultos idolátricos? E que fazer quando se recebia um convite para comer em casa de um amigo e eram servidas carnes que provinham dos templos pagãos?

            Paulo foi questionado pelos coríntios sobre estas questões; e respondeu-lhes em 1 Cor 8-10. Concretamente, a resposta de Paulo aparece em vinte versículos (cf. 1 Cor 8,1-13 e 10,22-29): dado que os ídolos não existem, comer dessa carne não tem qualquer problema; contudo, o mais importante é não escandalizar os mais débeis. Se houver esse perigo, evite-se comer a carne de animais imolados aos ídolos, a fim de não faltar à caridade.

            Contudo, Paulo vai mais além da questão concreta posta pelos coríntios e enuncia um princípio geral que vale para este caso e vale em qualquer outra situação: o que é fundamental não é o que eu tenho o direito de fazer (aqui, em concreto, comer da carne imolada aos ídolos), mas é que os meus comportamentos sejam guiados pelo amor. Ora, o amor pode, em certas circunstâncias, exigir que eu renuncie aos meus direitos e à minha liberdade, em benefício de um bem maior. Para ilustrar esta “doutrina”, Paulo dá o seu próprio exemplo: ele renunciou muitas vezes aos seus direitos, por causa do amor aos irmãos. Em concreto, Paulo foi escolhido por Deus para ser apóstolo e, como apóstolo, podia reivindicar viver à custa do Evangelho… Mas nunca exigiu nada porque o que o preocupa, mais do que tudo, é o benefício das comunidades e dos irmãos (cf. 1 Cor 9,1-15). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Para Paulo, o valor realmente absoluto e ao qual tudo o resto se deve subordinar é o amor. Só assim seremos dignos filhos desse Deus que, por amor, desceu ao encontro dos homens, partilhou as suas dores, enfrentou as forças do ódio e da injustiça, e até sofreu morte maldita numa colina fora da cidade santa de Jerusalém. No concreto do nosso dia a dia, é o amor – vivido ao jeito de Jesus, como renúncia ao egoísmo, como entrega total, como serviço simples e humilde – que conduz as nossas opções? E isso traduz-se no respeito pela vida, pela dignidade, pelos direitos dos nossos irmãos e irmãs?
  • A nossa sociedade é muito sensível aos direitos individuais e valoriza muito a liberdade. Trata-se, sem dúvida, de uma das dimensões mais significativas e mais positivas da cultura do nosso tempo… Contudo, a afirmação intransigente dos próprios direitos e da própria liberdade pode, por vezes, traduzir-se em prejuízo para os outros irmãos… Quando está em jogo o bem dos meus irmãos, onde começa e onde acaba a nossa liberdade?
  • A expressão “ai de mim se não anunciar o Evangelho” traduz a atitude de quem descobriu Jesus Cristo e a sua proposta e sente a responsabilidade por passar essa proposta libertadora aos outros homens. Implica o dom de si, o esquecimento dos seus interesses e esquemas pessoais, para fazer da própria vida um dom a Cristo, ao Reino e aos outros irmãos. Que eco é que esta exigência encontra no nosso coração? O amor a Cristo e aos irmãos sobrepõe-se aos nossos esquemas e programas pessoais e obriga-nos a sentirmo-nos comprometidos com o Evangelho e com o testemunho do Reino?
  • O serviço do Evangelho e dos irmãos não pode ser, nunca, uma instalação numa vida fácil, descomprometida, cómoda, pouco exigente. Aquele que dedica a sua vida ao serviço do Reino não é um mero funcionário que resolve os problemas “burocráticos” que a “profissão” exige e que se retira comodamente para o seu mundo isolado, em paz com a sua consciência… Mas é alguém que põe o amor aos irmãos e à comunidade acima de tudo, que está sempre disponível para servir, que é capaz de renunciar até aos seus tempos de descanso para acompanhar os irmãos, para os escutar, para os acolher. Como discípulos de Jesus, o amor está sempre acima dos nossos próprios interesses e faz da nossa vida dom, serviço, entrega total? in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,29-39

Naquele tempo,
Jesus saiu da sinagoga
e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André.
A sogra de Simão estava de cama com febre
e logo Lhe falaram dela.
Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a.
A febre deixou-a e ela começou a servi-los.
Ao cair da tarde, já depois do sol-posto,
trouxeram-Lhe todos os doentes e possessos
e a cidade inteira ficou reunida diante da porta.
Jesus curou muitas pessoas,
que eram atormentadas por várias doenças,
e expulsou muitos demónios.
Mas não deixava que os demónios falassem,
porque sabiam qual Ele era.
De manhã, muito cedo, levantou-Se e saiu.
Retirou-Se para um sítio ermo
e aí começou a orar.
Simão e os companheiros foram à procura d’Ele
e, quando O encontraram, disseram-Lhe:
«Todos Te procuram».
Ele respondeu-lhes:
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas,
a fim de pregar aí também,
porque foi para isso que Eu vim».
E foi por toda a Galileia,
pregando nas sinagogas e expulsando os demónios.

CONTEXTO

            Estamos na primeira parte (cf. Mc 1,14-8,30) do Evangelho segundo Marcos. Nesta parte, Jesus é apresentado como o Messias que proclama o “Reino de Deus”.

            No texto do Evangelho que escutamos no passado domingo (Mc 1,21-28), Marcos tinha-nos levado até à sinagoga de Cafarnaum, num sábado de manhã, para testemunharmos como Jesus curou “um homem com um espírito impuro”, deixando as pessoas presentes a questionar-se sobre a origem da sua autoridade. Agora Marcos propõe-se descrever o seguimento desse dia (Mc 1,29-39). Convida-nos, antes de mais, a acompanhar Jesus até à casa de Pedro onde está preparada, para Ele, a refeição de sábado. A casa de Pedro ficava a uns 40 metros da sinagoga de Cafarnaum, segundo os dados arqueológicos. Mas, na “agenda” de Jesus para esse dia, ainda havia mais um “compromisso”: já ao anoitecer, Ele encontra-se com “a cidade inteira”, reunida “à porta” da “casa de Pedro”. Estes diversos quadros fazem parte do que se convencionou chamar “a jornada de Cafarnaum” (Mc 1,21-39): é a descrição de um dia típico de Jesus, no cumprimento da missão que o Pai lhe confiou. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A presença de Jesus na nossa história, as suas palavras e os seus gestos libertadores atestam, até ao infinito, a preocupação de Deus com a vida e a felicidade dos seus filhos. É verdade: os dias de Jesus foram preenchidos, de fio a pavio, com a luta contra tudo aquilo que destrói e desumaniza os filhos e filhas de Deus. Deus sonhou, para nós, um mundo de onde estão ausentes o sofrimento, a maldição e a exclusão, e onde cada pessoa tem acesso à vida verdadeira, à felicidade definitiva, à salvação. Talvez nem sempre entendamos o sentido do sofrimento que nos espera em cada esquina da vida; talvez nem sempre sejam claros, para nós, os caminhos por onde se desenrolam os projetos de Deus… Mas Jesus veio garantir-nos absolutamente o empenho de Deus na felicidade e na libertação do homem. Resta-nos confiar em Deus e entregarmo-nos ao seu amor. É essa a perspetiva que nós, discípulos de Jesus, temos de Deus e do seu projeto salvador?
  • O encontro com Jesus e com o “Reino” é sempre uma experiência libertadora. Pedro, André, Tiago e João fizeram essa experiência. Aceitar o convite de Jesus para O seguir e para se tornar “discípulo” significa a rutura com as cadeias de egoísmo, de orgulho, de comodismo, de autossuficiência, de injustiça, de pecado que impedem a nossa felicidade e que geram sofrimento, opressão e morte nas nossas vidas e nas vidas dos nossos irmãos. Quem se encontra com Jesus, escuta e acolhe a sua mensagem, assume o compromisso de conduzir a sua vida pelos valores do Evangelho e passa a viver no amor, no perdão, na tolerância, no serviço aos irmãos. Na perspetiva da catequese que o Evangelho de hoje nos apresenta, é um “levantar-se”, um ressuscitar para uma vida nova e eterna. Nós que nos encontramos com Jesus e decidimos segui-l’O, temos procurado viver e testemunhar os valores do Reino?
  • O exemplo da sogra de Pedro que, depois de ter sido curada da sua enfermidade, “começou a servir” os que estavam na casa, lembra-nos que do encontro libertador com Jesus deve resultar o compromisso com a libertação dos nossos irmãos. Quem encontra Jesus e aceita inserir-se na dinâmica do “Reino” compromete-se com a transformação do mundo: com generosidade, põe-se ao serviço dos irmãos frágeis, necessitados, abandonados, perseguidos e leva-lhes a ternura e a bondade de Deus em gestos concretos de amor e cuidado. Os nossos gestos são sinais da vida de Deus para os irmãos que caminham ao nosso lado?
  • Na multidão que se concentra à porta da “casa de Pedro”, podemos ver a imensa multidão de seres humanos que, à nossa volta, todos os dias grita a sua frustração pela guerra, pela violência, pela injustiça, pela miséria, pela exclusão, pela solidão, pela falta de amor… A Igreja de Jesus Cristo (a “casa de Pedro”) tem nas mãos a proposta libertadora que recebeu do próprio Jesus e que deve ser oferecida a todos estes irmãos que vivem prisioneiros de um sofrimento sem esperança. O que é que nós, discípulos de Jesus, temos feito no sentido de transformar as existências sofridas desses nossos irmãos e irmãs? Ao olhar para a Igreja de Jesus, os imigrantes clandestinos que chegam às nossas praias, os homens e as mulheres vítimas do preconceito e da condenação social ou religiosa encontram solidariedade, ajuda, fraternidade, preocupação real com os seus dramas e misérias, ou apenas discursos teológicos abstratos e virados para o céu? Os nossos irmãos idosos, doentes, esquecidos encontram nos nossos gestos o amor libertador de Jesus que dá esperança e que aponta no sentido de um mundo mais fraterno e mais humano, ou encontram egoísmo, indiferença, solidão, abandono?
  • O exemplo de Jesus mostra que o aparecimento do “Reino de Deus” está ligado a uma vida de comunhão e de diálogo com Deus. Rezar não é fugir do mundo ou alienar-se dos problemas do mundo e dos dramas dos homens… Mas é uma tomada de consciência dos projetos de Deus para o mundo e um ponto de partida para o compromisso com o “Reino”. Só na comunhão e no diálogo íntimo com Deus percebemos os seus projetos e recebemos a força de Deus para nos empenharmos na transformação do mundo. No meio da azáfama do dia a dia, conseguimos reservar momentos para o encontro e o diálogo com o Pai? Estamos conscientes da importância de escutar o Pai, de tentar entender e acolher os seus projetos para nós e para o mundo? in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura apresenta a angústia e inquietação que invade o coração de Job. A proclamação deste texto deve ter em atenção as diversas interrogações presentes no texto, bem como a interpelação que Job dirige a cada um de nós.

            A segunda leitura apesar de não apresentar nenhuma dificuldade aparente exige um especial cuidado nas pausas e respirações para uma melhor articulação do texto. Além disso, este texto deve ser marcado por um tom de esperança e alegria, testemunhando a urgência e a necessidade de me envolver no anúncio do Evangelho.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

AINDA A «JORNADA DE CAFARNAUM», E JOB, O HOMEM QUE DÓI

            Aí está diante de nós o Evangelho do Domingo V do Tempo Comum, Marcos 1,29-39, no seguimento imediato da proclamação feita no Domingo passado (Marcos 1,21-28). De madrugada a madrugada. Depois de entrarem [Jesus e os seus discípulos; ninguém como Marcos vincula Jesus aos seus discípulos] em Cafarnaum, na manhã de sábado entra Jesus na sinagoga de Cafarnaum e ensinava (Marcos 1,21). Ei-los agora que saem [Jesus e os seus discípulos: verbo no plural] da sinagoga, e entram na casa de Simão e de André (Marcos 1,29). Trata-se de um «relato de começo». Saindo da casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro. A sogra de Simão está deitada com febre. Jesus segura-lhe (kratéô) na mão (Marcos 1,31), expressão lindíssima que indica no Antigo Testamento o gesto protetor com que Deus protege o orante (Salmo 73,23), Israel (Isaías 41,13), o seu servo (Isaías 42,6). E a sogra de Simão «levantou-se» (êgeírô), verbo da ressurreição, e pôs-se a servi-los (diêkónei: imperfeito de diakonéô) de forma continuada, como indica o uso do verbo no imperfeito. A sogra de Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, «servem» Jesus e os outros. Ela é bem a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à vida, gerada, protegida, guardada e edificada por Jesus no lugar seguro da casa de Pedro.

            À tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana [o dia muda com o pôr do sol], toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes. Note-se que os demónios continuam impedidos de falar, exatamente porque sabiam quem Ele era (Marcos 1,34). Pode parecer estranho este silenciamento de quem sabe! Mas é exatamente para ficar claro que acreditar em Jesus não é isolar uma definição exata de Jesus, mas aderir a Ele e à sua maneira de viver. E este afazer é trabalho nosso, não dos demónios.

            Na madrugada do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, de madrugada a madrugada, tendo-se levantado (anístêmi), outra prolepse da madrugada da Ressurreição que já se avista no horizonte, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), mas os discípulos correm logo a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter. Ninguém o quer perder (Marcos 1,36-37).

            Mas Jesus desconcerta os seus discípulos, e abre-lhes já os futuros caminhos da missão: «VAMOS, diz Jesus, a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Importante e intenso dizer. ANUNCIAR, verbo grego kêrýssô, é todo o afazer de Jesus, enche por completo o seu programa e o seu caminho. Ora, ANUNCIAR, kêrýssô, é dizer em voz alta a MENSAGEM que outro nos encarregou de transmitir. Aqui, o outro é Deus. Jesus é, então, o MENSAGEIRO de Deus. O ANUNCIADOR, o MENSAGEIRO, não fala em seu próprio nome, não emite opiniões. Fala em nome de Deus.

            Prossigamos. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos, apontando-lhes já o seu futuro trabalho de ANUNCIADORES do Evangelho pelo mundo inteiro. Mas é igualmente importante aquele TAMBÉM inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»]. É como uma ponte que une duas margens. Se, por um lado, proleticamente, aponta o futuro, por outro lado, analepticamente, classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira «jornada de Cafarnaum», em que o verbo ANUNCIAR (kêrýssô) nunca apareceu. Ficamos, portanto, a saber que a toada do ANÚNCO do Evangelho é ensinar, libertar, acolher, curar, recriar.

            Jesus, o Médico divino, curou a sogra de Pedro e muitos doentes. Eis o contraponto vindo hoje do Livro de Job (7,1-7), o homem que dói e grita por socorro. Em nome do homem, Job procura um sentido para a vida humana breve, frágil e nem sempre feliz e gratificante. Pede a graça de uma mão. Os amigos aparecem, mas, em vez de servirem de consolo, entretêm-se à procura de razões que expliquem a desgraça caída sobre Job. E assim, em vez de consolarem Job, atiram-no para a vala do lixo do pecado sem redenção e sem remédio. Já se vê que também só Deus poderá curar Job e todo o humano frágil e dorido que ele representa. É para ele também o salutar EVANGELHO de hoje. Para ele, e para nós. Bem vistas as coisas, todos somos eleitos de Deus. E o eleito é sempre alguém que abre livremente a mão para receber um dom.

            Por causa de Jesus e à maneira de Jesus, cai sobre Paulo também a graça e a missão de EVANGELIZAR (1 Coríntios 9,16-23). É neste caminho belo de EVANGELIZADOR que Paulo anda, mas não é por sua iniciativa ou gosto. É «uma necessidade (anagkê) que lhe é imposta desde fora (epíkeitai)» (1 Coríntios 9,16). Desde fora, isto é, desde Deus, contra quem não vale a pena lutar (Atos 26,14). Sim, a vida nova de Paulo assenta nessa derrota sofrida (katelêmphthen: aor. passivo de katalambánô) no caminho de Damasco (Filipenses 3,12), que lhe é imposta por Jesus, que desequilibra para a frente, e para sempre, a vida de Paulo (Filipenses 3,13-14). Sem esse desequilíbrio para a frente, para o Evangelho, para Cristo, a vida de Paulo começaria a arruinar-se, como indica a «fórmula de desgraça», introduzida por aquela interjeição «Ai» (hôy hebraico; ouaí grego), que fecha o v. 16. Esta inclinação para a frente traduz também a devotação de Paulo a todos (1 Coríntios 9,19-23), «tudo para todos» (1 Coríntios 9,22), «por causa do Evangelho» (1 Coríntios 9,23).

            O Salmo 147 mantém-nos atentos e fiéis cantores das obras boas de Deus, que opera sempre em nosso favor, debruçando-se sobre nós com amor providente, curando todas as nossas feridas, as do coração e as do nosso corpo chagado. Mas sobretudo porque nos põe a cantar, e cantar a Deus é bom e faz bem!

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 (Job 7, 1-4.6-7)
  2. Leitura II do Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 (1 Cor 9, 16-19.22-23)
  3. Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 – Lecionário
  4. Domingo V do Tempo Comum – Ano B – 04.02.2024 – Oração Uniiversal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024

Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro, que começou a gritar: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno? Vieste para nos perder? Sei quem Tu és: o Santo de Deus». Jesus repreendeu-o, dizendo: «Cala-te e sai desse homem». O espírito impuro, agitando-o violentamente, soltou um forte grito e saiu dele. Mc 1, 23-26

Viver a Palavra   

            Precisamos de homens e mulheres cujas palavras não sejam somente lugares-comuns ou palavras estéreis e vazias que preencham apenas silêncios sem gerarem vida, nem oferecerem sentido. Atravessamos um tempo onde o nosso quotidiano é preenchido por tantas palavras desde as redes sociais aos mais tradicionais meios de comunicação como os jornais, a rádio ou a televisão. Contudo, parece que estas palavras apenas nos distraem do essencial e não são capazes de ir ao âmago das nossas inquietações e interrogações.

Acredito que esta perceção não seja apenas dos tempos hodiernos e que cada tempo e época da história sintam a necessidade de palavras revestidas de uma autoridade nova e diferente que ofereça sentido e rasgue novos horizontes de confiança e esperança. Seguramente, os contemporâneos de Jesus alimentavam também esta esperança e ao ouvirem, naquele Sábado, na sinagoga de Cafarnaum, as palavras de Jesus, não conseguiram esconder o entusiasmo e estupor.

Maravilhados, elogiavam a autoridade que brotava das palavras de Jesus e despontam em nós a curiosidade de conhecer sobre o que falava Jesus naquele dia. Sabemos apenas que a autoridade de Jesus não brotava meramente da eloquência das suas palavras, nem dos seus doutos conhecimentos acerca da Lei e dos Profetas, pois ela contrasta com a dos escribas que apesar de saberem muitas coisas e de serem especialistas nas coisas de Deus, «dizem, mas não fazem» (cf. Mt 23,3).

Em primeiro lugar, a autoridade de Jesus brota da coerência das Suas palavras. Em Jesus dizer e fazer são coincidentes e a palavra e a ação comunicam a mesma realidade, revelando o amor do Pai: «esta ‘economia’ da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido» (DV 2). É esta coerência que espanta quantos escutam Jesus, pois a Sua vida constrói-se em consonância com aquilo que as Suas palavras anunciam.

Contudo, esta autoridade manifesta-se também na relevância que a Sua mensagem representa para a nossa vida. Jesus incarnou, percorreu os caminhos da Judeia e da Galileia partilhando das alegrias e esperanças, angústias e sofrimentos dos homens e mulheres do Seu tempo. Jesus não é indiferente às dores e desesperanças dos que se cruzam consigo, mas toca as chagas dos que Dele se aproximam e transforma a dor e o sofrimento em cura e vida. Não se limita a um olhar compadecido e a palavras mais ou menos consoladoras, mas toca as feridas, cura-as e oferece um sentido novo.

Aquele homem absolutamente perturbado que aparece possuído por um espírito impuro grita: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?». Na verdade, Jesus é o «Santo de Deus» e, por isso, tem tudo que ver connosco. A grande novidade da revelação evangélica é a certeza de que Jesus tem tudo que ver com a nossa existência e que a nossa vida é preciosa aos olhos de Deus, de tal modo, que Ele enviou o Seu Filho ao mundo, para que morrendo na cruz nos libertasse do pecado e da morte.

Por isso, vivemos alimentados por uma renovada esperança e mesmo atravessando momentos difíceis e exigentes, como a pandemia que estamos a viver, queremos acolher no coração e na vida as palavras de S. Paulo: «não queria que andásseis preocupados». O amor de Jesus e a Sua presença viva e ressuscitada são garante de esperança e fonte da nossa confiança. in Voz Portucalense

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Continuamos até 25 de janeiro o Oitavário de Orações pela Unidade dos Cristãos. Em cada ano o Pontifício Conselho para a Promoção da Unidade dos Cristãos e a Comissão Fé e Constituição do Conselho Mundial de Igrejas propõe um conjunto de materiais para ajudar a viver esta semana de oração para que a unidade desejada por Cristo seja uma realizada e esteja presente no coração de todos os cristãos. O tema para este ano é retirado do Evangelho de Lucas: «Amarás ao Senhor teu Deus… e ao teu próximo como a ti mesmo» (Lc 10,27). Na internet podem ser encontrados os diferentes materiais e subsídios, que poderão ser utilizados litúrgico-pastoralmente ajudar os fiéis a viver melhor esta semana e a fazer da unidade dos cristãos não apenas um desejo, mas uma realidade (http://www.christianunity.va/). in Voz Portucalense (adaptado)

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Marcos.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Deuteronómio 18,15-20

Moisés falou ao povo, dizendo:
«O Senhor teu Deus fará surgir
no meio de ti, de entre os teus irmãos,
um profeta como eu; a ele deveis escutar.
Foi isto mesmo que pediste ao Senhor teu Deus
no Horeb, no dia da assembleia:
‘Não ouvirei jamais a voz do Senhor meu Deus,
nem verei este grande fogo, para não morrer’.
O Senhor disse-me:
‘Eles têm razão;
farei surgir para eles, do meio dos seus irmãos,
um profeta como tu.
Porei as minhas palavras na sua boca
e ele lhes dirá tudo o que Eu lhe ordenar.
Se alguém não escutar as minhas palavras
que esse profeta disser em meu nome,
Eu próprio lhe pedirei contas.
Mas se um profeta tiver a ousadia
de dizer em meu nome o que não lhe mandei,
ou de falar em nome de outros deuses,
tal profeta morrerá’».

CONTEXTO

O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém (cf. 2 Re 22,3-13) no 18.º ano do reinado de Josias (622 a.C.). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel, libertou-o da escravidão do Egito e fez com Ele uma aliança eterna, acompanhou-o na sua caminhada pelo deserto, deu-lhe a Terra Prometida… O Povo de Deus – esse povo com quem Deus se comprometeu – é o Povo eleito, a propriedade pessoal de Javé.

A finalidade fundamental dos catequistas deuteronomistas, ao formular esta teologia, é levar o Povo de Deus a um compromisso firme e exigente com a Lei de Deus, proclamada no Sinai. É um convite firme ao Povo de Deus no sentido de abraçar a aliança com Javé e de viver na fidelidade aos compromissos assumidos.

Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab, antes da entrada do Povo na Terra Prometida. Pressentindo a proximidade da morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Javé.

O texto que a liturgia deste dia nos propõe apresenta-se como parte do segundo discurso de Moisés (cf. Dt 4,44-28,68). Trata-se de um texto que integra um conjunto legislativo sobre as estruturas de governo do Povo de Deus (cf. Dt 16,18-18,22). Em concreto, o texto refere-se a uma dessas estruturas: o profetismo.

O fenómeno profético não é exclusivo de Israel, mas é um fenómeno relativamente conhecido entre os povos do Crescente Fértil. Entre os cananeus, os movimentos proféticos apareciam com relativa frequência, normalmente ligados à adivinhação, ao êxtase, a convulsões, a delírios (habitualmente provocados por instrumentos sonoros, gritos, danças, etc.). A multiplicidade de experiências proféticas obriga, exatamente, a pôr o problema do discernimento entre a verdadeira e a falsa profecia… O que é que carateriza o verdadeiro profeta? Quando é que um profeta fala, realmente, em nome de Deus? Este problema devia pôr-se, particularmente, no Reino do Norte, na época de Acab (874-853 a.C.) e de Jezabel, quando os profetas de Baal dominavam. As tradições sobre o profeta Elias (cf. 1 Re 17-2 Re 13,21) traçam esse quadro de confronto diário entre a verdadeira e a falsa profecia.

O catequista deuteronomista refere-se, precisamente, a esta questão. Ele apresenta, aqui, os critérios para que o Povo possa distinguir o verdadeiro e o falso profeta.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Moisés exerceu a sua missão profética no séc. XIII a.C.; mas os profetas não são figuras extintas de um passado que não volta. Deus, para se fazer presente na história dos homens, sempre chamou e enviou pessoas para serem sinais vivos da sua presença na vida do mundo. E isto continua a acontecer no nosso tempo e na nossa história. No momento do nosso Batismo fomos ungidos com o óleo do crisma, que nos constituiu profetas. Recebemos, nesse dia, a missão de sermos sinais vivos de Deus no meio dos nossos irmãos. Estou consciente deste compromisso? Tenho procurado ser um profeta de Deus no meio dos homens e mulheres que caminham comigo?
  • O profeta é a voz de Deus que ecoa no mundo dos homens. Ele tem a responsabilidade de dizer aos homens aquilo que Deus pretende transmitir-lhes. Por isso, o profeta deve viver em permanente escuta de Deus. Só assim saberá o que deve, em nome de Deus, dizer àqueles a quem é enviado. Procuro escutar Deus, dialogar com Ele, acolher as suas indicações, ler os seus sinais, antes de ir ao encontro dos meus irmãos para lhes testemunhar as indicações de Deus?
  • Consciente de que é um instrumento de Deus no meio da comunidade humana, o profeta deve levar muito a sério a missão que lhe foi confiada. A missão profética não é um passatempo ou um compromisso para as horas vagas; também não é algo que posso levar a sério ou deitar fora, conforme a minha disposição de momento. Trata-se de um compromisso que decorre da minha vocação batismal e que eu tenho de assumir com fidelidade absoluta e total empenho.
  • Se o profeta é designado para tornar presente no meio dos homens o projeto de Deus, ele não pode utilizar a missão em benefício próprio. O profeta não deve ceder à tentação de se vender aos poderes do mundo e pactuar com eles, a fim de concretizar a sua sede de poder; não pode “vender a alma ao diabo” para daí tirar algum benefício; não deve utilizar o seu ministério para conseguir sucesso, para promover a sua imagem e obter os aplausos das multidões. A missão profética tem de estar sempre ao serviço de Deus, dos planos de Deus, da verdade de Deus, e não ao serviço de esquemas pessoais, interesseiros e egoístas. in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 94 (95)

Refrão:  Se hoje ouvirdes a voz do Senhor,
não fecheis os vossos corações.

Vinde, exultemos de alegria no Senhor,
aclamemos a Deus, nosso Salvador.
Vamos à sua presença e dêmos graças,
ao som de cânticos aclamemos o Senhor.

Vinde, prostremo-nos em terra,
adoremos o Senhor que nos criou;
pois Ele é o nosso Deus
e nós o seu povo, as ovelhas do seu rebanho.

Quem dera ouvísseis hoje a sua voz:
«Não endureçais os vossos corações,
como em Meriba, como no dia de Massa no deserto,
onde vossos pais Me tentaram e provocaram,
apesar de terem visto as minhas obras».

LEITURA II – 1 Coríntios 7,32-35

Irmãos:
Não queria que andásseis preocupados.
Quem não é casado preocupa-se com as coisas do Senhor,
com o modo de agradar ao Senhor.
Mas aquele que se casou preocupa-se com as coisas do mundo,
com a maneira de agradar à esposa,
e encontra-se dividido.
Da mesma forma, a mulher solteira e a virgem
preocupam-se com os interesses do Senhor,
para serem santas de corpo e espírito.
Mas a mulher casada preocupa-se com as coisas do mundo,
com a forma de agradar ao marido.
Digo isto no vosso próprio interesse
e não para vos armar uma cilada.
Tenho em vista o que mais convém
e vos pode unir ao Senhor sem desvios.

CONTEXTO

O texto da Carta aos Coríntios que nos é dado escutar neste 4.º domingo comum é a continuação de um outro – da mesma carta – que ouvimos no 3.º domingo comum. É o mesmo contexto e a mesma problemática.

Paulo havia sido questionado pelos cristãos de Corinto sobre o melhor estado de vida, do ponto de vista cristão: o do matrimónio ou o do celibato. Era uma questão pertinente, para uma comunidade que oscilava, nas questões relativas à vivência da sexualidade, entre uma moral laxista (típica de uma cidade portuária, onde chegavam marinheiros de todo o Mediterrâneo e onde pontificava Afrodite, a deusa grega do amor) e uma moral marcada por tendências filosóficas que propunham o desprezo pelas realidades materiais, nomeadamente o casamento.

Na sua resposta, Paulo explica que não tem “nenhum preceito do Senhor” sobre esta questão, e que tanto o casamento como o celibato são caminhos possíveis, perfeitamente aceitáveis, para o cristão. Mas lembra que “o tempo é breve” (o tempo entre a primeira vinda de Jesus e a sua segunda vinda); e, nesse cenário, o mais importante é que os crentes não absolutizem as realidades passageiras e vivam de olhos postos no encontro com o Senhor, que não tarda.

É neste enquadramento que Paulo apresenta o elogio da virgindade.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Por detrás das afirmações que Paulo faz neste texto está a convicção de que as realidades terrenas são passageiras e efémeras e não devem, em nenhum caso, ser absolutizadas. Não se trata de propor uma evasão do mundo e uma espiritualidade descarnada, insensível, alheia ao amor, à partilha, à ternura; mas trata-se de avisar que as realidades desta terra não podem ser o objetivo final e único da vida da pessoa. Esta reflexão convida-nos a repensar as nossas prioridades e a não ancorar a nossa vida em realidades transitórias.
  • Paulo vê na castidade por amor do Reino uma forma de vida que liberta o coração do homem para o serviço de Deus e dos irmãos. E na verdade, hoje como ontem, muitos homens e mulheres sentem-se chamados por Deus a viverem deste jeito para serem mais livres na sua doação e no seu serviço. Nem sempre o mundo os aprecia e entende. Muitas vezes são mesmo criticados e ridicularizados pela sua opção. Mas essas pessoas generosas, de coração livre, que colocaram o serviço de Deus e dos irmãos como prioridade absoluta, são um dom de Deus à Igreja e ao mundo. Estamos conscientes disso e agradecemos a Deus esse dom?
  • Os irmãos e as irmãs que optaram pela castidade para se entregarem ao serviço de Deus e dos irmãos devem viver a sua vocação sem amargura, sem frustração, sem tristeza. Eles não “perderam” irremediavelmente as coisas bonitas da vida; mas, de forma livre e consciente, escolheram um amor maior e mais universal. Essa escolha é fonte inesgotável de alegria e de paz. E eles devem dar testemunho, no meio do mundo, dessa alegria e dessa paz.in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,21-28

Jesus chegou a Cafarnaum
e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga
e começou a ensinar,
todos se maravilhavam com a sua doutrina,
porque os ensinava com autoridade
e não como os escribas.
Encontrava-se na sinagoga um homem com um espírito impuro,
que começou a gritar:
«Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?
Vieste para nos perder?
Sei quem Tu és: o Santo de Deus».
Jesus repreendeu-o, dizendo:
«Cala-te e sai desse homem».
O espírito impuro, agitando-o violentamente,
soltou um forte grito e saiu dele.
Ficaram todos tão admirados, que perguntavam uns aos outros:
«Que vem a ser isto?
Uma nova doutrina, com tal autoridade,
que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!»
E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte,
em toda a região da Galileia.

CONTEXTO

Na primeira parte do Evangelho que escreveu (cf. Mc 1,14-8,30), Marcos leva-nos numa viagem pela Galileia à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores de Marcos são convidados a acompanhar o dia a dia de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a notar os seus gestos libertadores, a aderir à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe atinge o seu momento culminante em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Rodeado já pelos primeiros discípulos, Jesus começa a revelar-Se como o Messias-libertador, que está no meio dos homens para lhes apresentar a proposta de salvação que Deus Lhe confiou.

A cena situa-nos em Cafarnaum (em hebraico Kfar Nahum, a “aldeia de Naum”), uma pequena cidade situada na costa noroeste do Lago Kineret (o Mar da Galileia). A sua importância advinha de estar ao lado da estrada onde passavam as caravanas provenientes da Síria. De acordo com os Evangelhos Sinópticos, é aí que Jesus se vai instalar durante o tempo do seu ministério na Galileia. Vários dos discípulos – Simão e seu irmão André, Tiago e seu irmão João – viviam em Cafarnaum.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Aquele homem “com um espírito impuro” que interpela Jesus na sinagoga de Cafarnaum representa todos os homens e mulheres, de todas as épocas, que são reféns do egoísmo, do orgulho, da autossuficiência, do medo, da exploração, da exclusão, da injustiça, do ódio, da violência, do pecado; representa essa humanidade que percorre um caminho à margem de Deus e das suas propostas, que aposta em valores efémeros e escravizantes ou que procura a vida em propostas falíveis ou efémeras. Para todos nós que, de uma forma ou de outra, vivemos mergulhados nesta realidade desumanizadora, o relato de Marcos deixa uma Boa Notícia: Deus não Se conforma com o facto de os homens trilharem caminhos de morte, e virá sempre ter connosco para nos oferecer a liberdade e a salvação.
  • Para Marcos, a proposta de Deus chega torna-se realidade viva e atuante em Jesus. Ele é o Messias libertador que, com a sua vida, com a sua palavra, com os seus gestos, com as suas ações, vem propor aos homens um caminho novo de liberdade e de vida. Ao egoísmo, Ele contrapõe a doação e a partilha; ao orgulho e à autossuficiência, Ele contrapõe o serviço simples e humilde a Deus e aos irmãos; à exclusão, Ele propõe a tolerância e a misericórdia; à injustiça, ao ódio, à violência, Ele contrapõe o amor sem limites; ao medo, Ele contrapõe a liberdade; à morte, Ele contrapõe a vida. Estou disponível para caminhar com Jesus, para acolher as suas propostas, para abraçar o seu projeto, para acolher a libertação que Ele me veio oferecer?
  • Os discípulos de Jesus são as testemunhas, aqui e agora, da sua proposta libertadora. Eles têm de continuar a missão de Jesus e de assumir a mesma luta de Jesus contra todos os “demónios” que introduzem no mundo dinâmicas criadoras de sofrimento e de morte. Ser discípulo de Jesus é percorrer o mesmo caminho que Ele percorreu e lutar, se necessário até ao dom total da vida, por um mundo mais humano, mais livre, mais solidário, mais justo, mais fraterno. Os seguidores de Jesus não podem ficar de braços cruzados, a olhar para o céu, enquanto o mundo é construído e dirigido por aqueles que propõem uma lógica de egoísmo e de morte; mas têm a grave responsabilidade de lutar, objetivamente, contra tudo aquilo que desumaniza os filhos e filhas de Deus. Essa é também a minha luta?
  • O texto refere o incómodo do “homem com um espírito impuro”, diante da presença libertadora de Jesus. O pormenor faz-nos pensar nas reações agressivas e intolerantes – por parte daqueles que pretendem perpetuar situações de injustiça e de escravidão – diante do testemunho e do anúncio dos valores do Evangelho. Apesar da incompreensão e da intolerância de que são, por vezes, vítimas, os discípulos de Jesus não devem deixar-se encerrar nas sacristias, ficando à margem da história por medo ou comodismo; mas devem assumir corajosamente e de forma bem visível o seu empenho na transformação das realidades políticas, económicas, sociais, laborais, familiares.
  • Aquele homem dominado “por um espírito impuro” não deve ter entrado pela primeira vez na sinagoga de Cafarnaum naquele sábado. Provavelmente participava habitualmente na liturgia sinagogal, escutava a Palavra de Deus que era lida e as explicações dos escribas. Mas só nesse dia se sentiu questionado e incomodado pela Palavra que escutou. Porquê? Porque Jesus proclamou e explicou a Palavra de uma forma nova, “com autoridade”, com aquela autoridade que lhe vinha da sua experiência de Deus? É possível. E a Palavra de Deus que ecoa todos os dias nas nossas celebrações comunitárias? Transmite uma experiência de Deus e faz-nos sentir a presença de Deus? Provoca alguma transformação no coração dos que a escutam? Interroga-nos, desafia-nos, provoca-nos, inquieta-nos ou deixa-nos impávidos, indiferentes e sempre adormecidos?
  • A luta contra os “demónios” que desfeiam o mundo e escravizam os homens nossos irmãos é sempre um processo doloroso, que gera conflitos, divisões, sofrimento; mas é, também, uma aventura que vale a pena ser vivida e uma luta que vale a pena travar. Embarcar nessa aventura é tornar-se cúmplice de Deus na construção de um mundo de homens livres.in Dehonianos

Para os leitores:

            A primeira leitura é composta pelas palavras que Moisés dirige ao povo. Contudo, é necessário ter em atenção que nas suas palavras Moisés evoca as palavras do povo a Deus no Horeb e as palavras que Deus lhe dirige. Estas intervenções devem ser tidas em conta na proclamação da leitura, para uma correta articulação do texto.

Na segunda leitura, é necessário ter em conta o tom exortativo do texto

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

EIS QUE FAÇO NOVAS TODAS AS COISAS!

«Eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21,5), diz Deus. De tal modo novas, diz Deus, que ninguém pode dizer: «Já o sabia» (Isaías 48,7).

É assim também o Evangelho deste Domingo IV do Tempo Comum (Marcos 1,21-28). Eis Jesus a entrar com os seus discípulos em Cafarnaum, na sinagoga deles, e ensinava e ordenava tudo de forma nova. Tão nova que inutilizava todas as comparações e catalogações (Marcos 1,22). Não era membro de nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional ou instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma autoridade. Nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o precedia. A sua autoridade começava ali, no próprio ato de dizer ou de fazer. E as pessoas de Cafarnaum foram tomadas de tanto espanto, que tiveram de constatar logo ali que saía dos seus lábios e das suas mãos um mundo novo, belo e bom, ordenado segundo as pautas da Criação (Marcos 1,22 e 27). Um vendaval manso de graça e de bondade encheu Cafarnaum, e transvazava como um perfume novo de amor e de louvor por toda a região da Galileia e da missão (Marcos 1,28). Saltava à vista que Cafarnaum não podia conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo.

As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que diziam os escribas, e como diziam os escribas. Não eram senão repetidores, talvez mesmo apenas repetentes de pesadas e cansadas doutrinas que se arrastavam na torrente de uma velha e gasta tradição. Os escribas diziam, diziam, diziam, recitavam o vazio (Salmo 2,1), compraziam-se na sua própria boca, nas suas próprias palavras (Salmo 49,14), e nada, nada, nada acontecia: nenhum calafrio na alma, nenhum rio nascia no deserto, ninguém estremecia ou renascia. Mas Jesus começou a falar, e as pessoas de Cafarnaum sentem um frémito, um estremecimento novo (Isaías 66,2 e 5), assalta-as uma comovida emoção, uma lágrima de alegria lhes acaricia o coração. Era como se acabassem de escutar aquela palavra única que há tanto tempo se procura, palavra criadora que nos vai direitinha ao coração, a ternura e a surpresa permanente de quem leva uma criança pela mão! Não deixa de espantar que o narrador nos diga que Jesus ensinava, e que nada nos diga acerca do conteúdo desse ensinamento. Reporta apenas a impressão que as palavras de Jesus suscitam nos ouvintes. Um tal modo de proceder serve para nos fazer entender, desde o princípio, que o que verdadeiramente interessa é a pessoa de Jesus, e não a sua doutrina.

As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que eram os exorcismos, e como se faziam os exorcismos. Estavam muito em voga naquele tempo. Eram longos, estranhos, complicados, cheios de fórmulas mágicas e ritos esotéricos. Mas Jesus diz uma palavra criadora: «Cala-te e sai desse homem», e tudo fica de imediato resolvido! (Marcos 1,25-26).

Abre-se um debate. O primeiro de muitos que o Evangelho de Marcos vai abrir. «O que é isto?» (Marcos 1,27), perguntam as pessoas de Cafarnaum, que nunca tinham visto tanto e tão novo e tão prodigioso ensinamento.

Mas é apenas o começo da jornada deste maravilhoso ANUNCIADOR do Evangelho de Deus (Marcos 1,14). Logo a abrir o seu Evangelho, Marcos ensina-nos que a jornada iniciada naquele primeiro sábado em Cafarnaum salta os clichés habituais, e vai de madrugada a madrugada, de modo a deixar já bem à vista aquela outra sempre primeira madrugada da Ressurreição! Jesus começa de manhã na sinagoga (Marcos 1,21); caminha depois 30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da febre para o serviço do Evangelho a sogra de Pedro (Marcos 1,29-31); à tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes (Marcos 1,32-34); de madrugada, muito cedo, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), e os discípulos correm a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter (Marcos 1,36-37). Ninguém o quer perder.

Desconcertante reviravolta. Jesus diz aos seus discípulos atónitos: «VAMOS a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Com este grávido dizer, Jesus deixa claro que ANUNCIAR o Evangelho enche por completo o seu programa e o seu caminho. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos para este trabalho de ANÚNCIO do Evangelho seja a quem for, seja onde for. Com aquele também inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»], Jesus classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira jornada de Cafarnaum: ensinar, libertar, acolher, curar, recriar: é esta a toada do ANÚNCIO do Evangelho.

ANUNCIAR (kêrýssô) é então o afazer de Jesus. E qual é a primeira nota que soa quando Jesus se diz com o verbo ANUNCIAR? É, sem dúvida, a sua completa vinculação ao Pai, de quem é o arauto, o mensageiro, o ANUNCIADOR. Pura transparência do Pai, de quem diz o que ouviu dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e faz o que viu fazer (João 5,19; 17,4). Recebendo todo o amor fontal do Pai, bebendo da torrente cristalina do amor fontal do Pai (Salmo 110,7; cf. 1 Reis 17,4), Jesus, o Filho, é pura transparência do Pai, e pode, com toda a verdade dizer a Filipe: Filipe, «quem me vê, vê o Pai» (João 14,9). É mesmo aqui que reside a sua verdadeira AUTORIDADE e a verdadeira NOVIDADE do seu MODO novo de dizer e de fazer, que se chama ANUNCIAR.

A primeira nota de todo o ANUNCIADOR ou Arauto ou Mensageiro não assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe confia a mensagem que deve anunciar. É em Seu nome que diz o que diz, que diz como diz. No Enviado é o Rosto do Enviante que se deve ver em contraluz ou filigrana pura. No Enviado ou Mensageiro ou Anunciador é verdadeiramente Deus que visita o seu povo.

Pertinho de Deus, cheio de Deus, Jesus leva Deus aos seus irmãos. É esta a Autoridade de Jesus. A lição do Livro do Deuteronómio de hoje (18,15-20) anuncia um profeta novo, como Moisés. É Jesus o profeta «como Moisés», mais do que Moisés, com a boca repleta das palavras de Deus (Deuteronómio 18,18). E não só a boca, mas também as mãos e o coração. Bem diferente dos escribas e dos falsos profetas e do povo rebelde no deserto. Estes dispensam a Palavra de Deus. O que querem ter na boca é pão e carne. O que recolheu menos, no deserto, diz-nos o extraordinário relato do Livro dos Números 11,31-35, recolheu 4500 kg de carne de codorniz (Números 11,32). E começaram a meter a carne à boca com tamanha avidez, que morreram de náusea! Foram encontrados mortos, ainda com a carne entre os dentes, por mastigar (Números 11,33). Vê-se que é urgente libertar o coração, as mãos, a boca. Vive-se da Palavra. Morre-se de náusea.

Numa página sublime do Livro dos Números (17,17-26), Deus ordena a Moisés que recolha as varas de comando dos chefes das doze tribos de Israel, para, de entre eles, escolher um que exerça o sacerdócio em Israel. Em cada vara foi escrito o nome da respetiva tribo. Por ordem de Deus, o nome de Levi foi substituído pelo de Aarão. As doze varas foram colocadas, ao entardecer, na presença de Deus, na Tenda do Encontro. Na manhã seguinte, todos puderam ver que da vara de Aarão tinham desabrochado folhas verdes, flores em botão, flores abertas e frutos maduros (Números 17,23). Dos frutos é dito o nome: amêndoas! Vara de amendoeira em flor e fruto, que, por ordem de Deus, ficará para sempre na sua presença, diante do Propiciatório (cf. Hebreus 9,4), entre Deus e o povo, para impedir que o pecado do povo chegue a Deus, e para facilitar que o perdão de Deus chegue ao povo. Já ninguém estranhará agora que o candelabro (menôrah) que, noite e dia, / ardia/ na presença de Deus, estivesse ornamentado com flores de amendoeira (Êxodo 25,31-35; 37,20-22). E também já ninguém estranhará que a tradição judaica tardia refira que a vara do Messias havia de ser de madeira… de amendoeira.

Aí estão as coordenadas exatas do lugar do sacerdote e do bispo: entre Deus e o povo. Mais concretamente: pertinho de Deus, mas de um Deus que faz carícias ao seu povo, um Deus que ama e que perdoa; pertinho do povo, o suficiente para lhe entregar esta carícia de Deus.

Face a esta urgência, esta grandeza, esta beleza Primeira e Última, Novíssima, tudo o resto deve ser relativizado. Uma única grande devoção, dedicação, amor, deve nortear a nossa vida: a nossa total dedicação a Cristo, sem oscilação nem distração. Grande ensinamento de S. Paulo, hoje, na sua Primeira Carta aos Coríntios 7,32-35.

Sim, não nos é permitido adormecer ou entorpecer, de modo a ficarmos inativos, infecundos, indiferentes, insensíveis, tipo «tanto faz!». O Salmo 95, que hoje cantamos, e que é, para os judeus fiéis, a oração de ingresso ou de entrada no sábado (reza-se sexta-feira ao pôr-do-sol), e para nós, cristãos, o Salmo invitatório recitado todas as manhãs, é o mais quotidiano dos Salmos. E deve ser um permanente despertador para não nos deixarmos andar ao sabor de qualquer música, mas apenas e sempre ao sabor da música de Deus. Sim, não é tempo de nos instalarmos aqui, em qualquer «aqui». É necessário levar a todos os lugares e a todas as pessoas este vendaval manso de graça e de bondade que um dia Jesus desencadeou em Cafarnaum.

Tu, Senhor, Tu passas, Tu amas, Tu falas,
E um caminho novo se abre a nossos pés,
Uma luz nova em nossos olhos arde,
Átrio de luminosidade,
Pão
De trigo e de liberdade,
Claridade que se ateia ao coração.
 

Lume novo, lareira acesa na cidade,
És Tu, Senhor, o clarão da tarde,
A notícia, a carícia, a ressurreição.
 

Passa outra vez, Senhor, dá-nos a mão,
Levanta-nos,
Não nos deixes presos no nevão
Do Montemuro ou de Cafarnaum.
 

É necessário que o zum-zum
Do Evangelho
Atravesse outras aldeias e cidades,
Corra de rua em rua,
De quelho em quelho,
Entre em cada coração
Novo ou velho,
E faça nascer uma teia de irmãos,
Que se dão as mãos.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 (Deut 18, 15-20)
  2. Leitura II do Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 (1 Cor 7, 32-35)
  3. Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 – Lecionário
  4. Domingo IV do Tempo Comum – Ano B – 28.01.2024 – Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024

Viver a Palavra    

Como é belo e reconfortante ver Jesus a percorrer os caminhos da Galileia. O Verbo faz-se carne e, revestido da nossa natureza, percorre os trilhos deste mundo, colocando-se no meio dos homens e mulheres, partilhando a sua humana condição, anunciando a proximidade do Reino e o convite a viver a radicalidade evangélica que abre a nossa vida à conversão.

Na perícope evangélica deste Domingo, escutamos as primeiras palavras que Jesus profere no Evangelho de Marcos: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Chegou o tempo da graça em que Deus visita o Seu Povo enviando o Seu Filho Jesus. Em Jesus Cristo, Deus faz-se próximo. Tão próximo que assume a nossa natureza humana e convida-nos a entrar nesta dinâmica de proximidade: aproxima-se de nós, para que aprendamos a viver a verdadeira proximidade que tem o nome de fraternidade.

Ao escutar as palavras de Jesus – «cumpriu-se o tempo» – recordo-me do modo como nos referimos tantas vezes ao nascimento de uma criança, quando se afirma que se cumpriu o tempo para uma mulher dar à luz. Efetivamente, é de vida nova que nos falam estas palavras! É a novidade do Reino a irromper no tempo e na história e a apontar o horizonte novo da vida eterna para onde todos somos chamados. O Reino de Deus está próximo e, no aqui e agora do tempo, somos chamados a viver a perene tensão entre o «já» e o «ainda não».

O Reino de Deus está próximo e reclama um coração livre e despojado para que possa acolher a novidade trazida por Jesus. O aqui e agora que nos é dado viver são o lugar e o tempo concreto onde somos chamados a construir a nova civilização do amor. Contudo, bem sabemos que não temos morada permanente sobre a terra e acreditamos que este Reino só se realizará em plenitude no Céu.

Nestas primeiras palavras de Jesus encontramos o movimento descendente e ascendente que caracterizam o dinamismo da salvação. Jesus que assume a nossa condição humana para nos elevar à participação da sua natureza divina. O Reino de Deus que vem até nós para que possamos pela conversão e adesão de coração ao Evangelho subir até Deus e entrar na comunhão plena com Ele.

Acreditar no Evangelho é muito mais do que reconhecer a veracidade das suas palavras e informações. Acreditar no Evangelho significa aderir com a vida àquilo que os nossos ouvidos escutam e transformar o coração para que a fé professada com os lábios se transforme em gestos concretos de amor e misericórdia.

Deste modo, acolher o Evangelho significa abrir espaço no coração para que a Boa Nova de Jesus tenha lugar na nossa vida. Muitas vezes, nas nossas meditações e pregações reclamamos a necessidade de nos libertarmos do nosso egoísmo, da nossa autossuficiência, da nossa maldade… Contudo, criar espaço para acolher a Boa Nova de Jesus significa também libertarmo-nos dos nossos projetos, das nossas expectativas, das nossas seguranças e disponibilizar a vida para o acontecer de Deus. Avançar sem medo de levar apenas como bastão de apoio a Palavra de Jesus e a certeza da Sua presença.

Simão, André, Tiago e João são referências fundamentais desta capacidade de deixar a normalidade da vida para abrir o coração à iniciativa de Jesus: «eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus». Deixar as redes que nos prendem pela segurança que nos oferecem para nos abrir à confiança que liberta e oferece vida nova e plena de sentido é o desafio que somos chamados a abraçar permanentemente para que a nossa vida se torne verdadeiramente cristã. in Voz Portucalense (adaptado)

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No dia 30 de setembro de 2019, o Papa Francisco instituiu o Domingo da Palavra de Deus pedindo que se celebre em cada ano no III Domingo do Tempo Comum. Deste modo, este Domingo é uma oportunidade para valorizar a importância da Palavra de Deus na vida da Igreja e na vida de cada batizado. A Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos publicou, no dia de 17 de dezembro de 2020, uma nota sobre este Domingo. O texto encontra-se disponível na página oficial do Vaticano e nele podem encontrar-se orientações que ajudam as comunidades a valorizar e viver este Domingo. Como proposta sublinho o que vem indicado no n. 9: «na proximidade ou nos dias sucessivos ao Domingo da Palavra de Deus é conveniente promover encontros formativos para realçar o valor da Sagrada Escritura nas celebrações litúrgicas; pode ser uma oportunidade para aprender mais sobre como a Igreja em oração lê a Sagrada Escritura».

Fica em anexo um documento atualizado para melhor viver este V DOMINGO DA PALAVRA DE DEUS.

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Jonas 3,1-5.10

A palavra do Senhor foi dirigida a Jonas nos seguintes termos:
«Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive
e apregoa nela a mensagem que Eu te direi».
Jonas levantou-se e foi a Nínive,
conforme a palavra do Senhor.
Nínive era uma grande cidade aos olhos de Deus;
levava três dias a atravessar.
Jonas entrou na cidade, caminhou durante um dia
e começou a pregar nestes termos:
«Daqui a quarenta dias, Nínive será destruída».
Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus,
proclamaram um jejum
e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno.
Quando Deus viu as suas obras
e como se convertiam do seu mau caminho,
desistiu do castigo com que os ameaçara
e não o executou.

CONTEXTO

O “Livro de Jonas” foi, muito provavelmente, escrito na segunda metade do séc. V a.C., entre 440 e 410 a.C. Conta-nos uma história bonita e edificante, mas que provavelmente não é real. Trata-se de um texto que poderíamos classificar no género “ficção didática”. Dito de outra forma: o Livro de Jonas não é uma coleção de oráculos proféticos proferidos por um homem chamado Jonas, nem sequer um relato de caráter histórico; mas é uma obra de ficção, escrita com a finalidade de ensinar e educar.

Estamos nos anos posteriores ao Exílio na Babilónia. A política dos líderes judaicos – especialmente Esdras e Neemias – favorecia o nacionalismo e o fechamento do Povo de Deus aos outros povos. Por um lado, sublinhava-se o facto de Judá ser o Povo Eleito de Deus, o povo preferido de Deus, um povo diferente de todos os outros; por outro, considerava-se que todos os outros povos eram inimigos de Deus, odiados por Deus, que deviam ser inapelavelmente condenados e destruídos por Deus.

Reagindo contra a ideologia dominante, o autor do “Livro de Jonas” apresenta Javé como um Deus universal, cuja bondade e misericórdia se estendem a todos os povos, sem exceção. A escolha de Nínive como a cidade destinatária da ação salvadora de Deus não é casual: Nínive, situada na margem oriental do rio Tigre, capital do império assírio a partir de Senaquerib, tinha ficado na consciência dos habitantes de Judá como símbolo do imperialismo e da mais cruel agressividade contra o Povo de Deus (cf. Is 10,5-15; Sof 2,13-15).

É precisamente esta cidade que Javé quer salvar. Por isso, chama Jonas e convida-o a ir a Nínive pregar a conversão. No entanto, Jonas, como os outros seus contemporâneos, não está interessado em que Javé perdoe aos opressores do Povo de Deus e recusa-se a cumprir o mandato divino. Em lugar de se dirigir para Nínive, no Oriente, toma o barco para Társis, no Ocidente. Na sequência de uma tempestade, Jonas é atirado ao mar e engolido por um peixe. Mais tarde, o peixe vai depositá-lo em terra firme. Jonas é, de novo, chamado por Deus para a missão em Nínive.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Nesta catequese que nos é oferecida pelo autor do Livro de Jonas tomemos nota, antes de mais, daquilo que se sugere sobre Deus. Segundo o nosso catequista, Deus ama todos os homens e mulheres, sem exceção e de forma incondicional. Ele ama até os maus e os opressores; no seu coração de Pai, todos têm lugar. Esta lógica exclui, naturalmente, a eliminação do pecador: Deus não quer a morte de nenhum dos seus filhos; o que quer é que eles se convertam e percorram, de mãos dadas com Ele, o caminho que conduz à Vida plena, à felicidade sem fim. É este Deus que somos chamados a descobrir, a aceitar e a amar. O nosso caminho é mais leve e mais feliz quando sabemos que, seja qual for a amplitude dos nossos fracassos, o nosso Deus nunca nos descartará.
  • Nós temos, por vezes, alguma dificuldade em aceitar esta lógica de Deus. Em certas circunstâncias, preferíamos um Deus mais duro e exigente, que se impusesse decisivamente aos maus, que frustrasse os seus projetos de violência e de injustiça, que não desse qualquer hipótese àqueles que ameaçam o nosso bem-estar e a nossa segurança, que condenasse ostensivamente aqueles que não partilham a nossa visão da fé… A Palavra de Deus que hoje nos é servida apresenta-nos um Deus de coração misericordioso, que escancara as portas a todos e que ama até aqueles que consideramos maus. Deus deve converter-se à nossa lógica, ou seremos nós que devemos converter-nos à lógica de Deus? Diante desse Deus que nunca fecha a porta a ninguém, fará algum sentido olharmos para o mundo que está para além das portas das nossas igrejas como um mundo que nos ameaça e diante do qual temos de assumir uma atitude defensiva e condenatória?
  • O texto sugere também que aqueles que consideramos “maus” estão, por vezes, mais disponíveis para acolher os desafios de Deus e para escutar o seu chamamento, do que os “bons”. Muitas vezes, aqueles que têm comportamentos “certinhos”, religiosamente corretos, podem estar de tal forma instalados nas suas certezas, que já não tenham espaço para se deixarem questionar por Deus. Teremos disponibilidade para pôr em causa as nossas seguranças e as nossas certezas inabaláveis para nos deixarmos desafiar pela contínua novidade de Deus e pelo seu sempre renovado convite à conversão?
  • Há também neste texto uma severa denúncia do racismo, da exclusão, da marginalização, da xenofobia. A Palavra de Deus alerta-nos para a necessidade de ver em cada pessoa que caminha ao nosso lado um irmão, independentemente da sua raça, da cor da sua pele, da sua cultura, das suas diferenças, ou até da sua bondade ou maldade. Como vemos e como acolhemos os nossos irmãos imigrantes que a vida trouxe até nós e que colaboram connosco na construção do mundo: como inimigos, culpados por todos os males do universo, ou como irmãos por quem somos responsáveis e que Deus nos convida a acolher e a amar? Como nos situamos face aos nossos irmãos diferentes – pela raça, pela cultura, pelos valores, pelos hábitos de vida: como gente que nos incomoda e que temos de afastar para o mais longe possível, ou como irmãos que nos podem ajudar a questionar as nossas cómodas certezas, as nossas seguranças absolutas, os nossos preconceitos inabaláveis?
  • Jonas, o homem que Deus chamou, mas que procurou evitar comprometer-se na missão, convida-nos a reflectir sobre a resposta que temos dado ao chamamento de Deus. O nosso comodismo, o nosso bem-estar, os nossos medos, o nosso egoísmo, a nossa miopia, alguma vez nos impediram de acolher o chamamento de Deus e de abraçar a missão que Deus nos entregou? E temos consciência de que ignorar os desafios de Deus é, em boa parte, falhar o sentido da nossa vida? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)

Refrão: Ensinai-me, Senhor, os vossos caminhos.

Mostrai-me, Senhor, os vossos caminhos,
ensinai-me as vossas veredas.
Guiai-me na vossa verdade e ensinai-me,
porque Vós sois Deus, meu Salvador.

Lembrai-Vos, Senhor, das vossas misericórdias
e das vossas graças, que são eternas.
Lembrai-Vos de mim segundo a vossa clemência,
por causa da vossa bondade, Senhor.

O Senhor é bom e reto,
ensina o caminho aos pecadores.
Orienta os humildes na justiça
e dá-lhes a conhecer os seus caminhos.

LEITURA II – 1 Coríntios 7,29-31

O que tenho a dizer-vos, irmãos,
é que o tempo é breve.
Doravante,
os que têm esposas procedam como se as não tivessem;
os que choram, como se não chorassem;
os que andam alegres, como se não andassem;
os que compram, como se não possuíssem;
os que utilizam este mundo, como se realmente não o utilizassem.
De facto, o cenário deste mundo é passageiro.

 CONTEXTO

As Cartas de Paulo aos Coríntios – e particularmente a primeira – refletem a realidade de uma comunidade jovem, viva e entusiasta, mas com problemas e dificuldades muito particulares… As luzes e sombras da comunidade cristã de Corinto resultam, em parte, de ser uma comunidade que provém do mundo grego – isto é, de um mundo animado e estruturado por dinamismos muito próprios, com uma grande vitalidade, mas ao mesmo tempo com valores e dinâmicas que tornam difícil o acolhimento dos valores de Jesus. Na comunidade cristã de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em se inserir num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

Um dos sectores onde se nota particularmente o choque entre a fé cristã e a cultura helénica é nas questões de ética sexual. Neste âmbito, a cultura coríntia balouçava entre dois extremos: por um lado, um grande laxismo (como era normal numa cidade marítima, onde chegavam marinheiros de todo o mundo e onde reinava Afrodite, a deusa grega do amor); por outro lado, um desprezo absoluto pela sexualidade (típico de certas escolas influenciadas pela filosofia platónica, que consideravam a matéria um mal e que faziam do não casar um ideal absoluto).

O desejo de Paulo é o de apresentar um caminho equilibrado, face a estes exageros: condenação sem apelo de todas as formas de desordem sexual, defesa do valor do casamento, elogio do celibato (cf. 1 Cor 7).

Provavelmente, os coríntios tinham consultado Paulo acerca do melhor caminho a seguir – o do matrimónio ou o do celibato. Paulo responde-lhes na primeira carta que lhes dirige (cf. 1 Cor 7). O texto da segunda leitura deste domingo é parte dessa resposta. Paulo considera que não tem, a este propósito, “nenhum preceito do Senhor”; no entanto, o seu parecer é que quem não está comprometido com o casamento deve continuar assim e quem está comprometido não deve “romper o vínculo” (1 Cor 7,25-28).in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A todo o instante somos colocados diante de realidades diversas e contrastantes e temos de fazer as nossas escolhas. A mentalidade dominante, a moda, o politicamente correto, os nossos preconceitos e interesses egoístas interferem frequentemente com as nossas opções e impõem-nos valores que nem sempre são geradores de liberdade, de paz, de vida verdadeira. Mais grave, ainda: muitas vezes, endeusamos determinados valores efémeros e passageiros, que nos fazem perder de vista os valores autênticos, verdadeiros, definitivos. O texto sugere um princípio a ter em conta, a propósito desta questão: os valores deste mundo, por mais importantes e interessantes que sejam, não devem ser absolutizados. Não se trata de desprezar as coisas boas que o mundo coloca à nossa disposição; mas trata-se de não colocar nelas, de forma incondicional, a nossa esperança, a nossa segurança, o objetivo último da nossa vida. Como me situo face a isto? Até que ponto os valores efémeros a que dou importância me condicionam e me impedem de olhar para horizontes mais vastos e mais puros?
  • Na verdade, o cristão deve viver com a consciência de que “o tempo é breve”. Ele sabe que a sua vida não encontra sentido pleno e absoluto nesta terra e que a sua passagem por este mundo é uma peregrinação ao encontro dessa vida verdadeira e definitiva que só se encontra na comunhão plena com Deus. Para chegar a atingir esse objetivo último, o cristão deve converter-se a Cristo e segui-l’O no caminho do amor, da entrega, do serviço aos irmãos. Tudo aquilo que deixa um espaço maior para essa adesão a Cristo e ao seu caminho deve ser valorizado e potenciado. É aí que deve ser colocada a nossa aposta. in Dehonianos.

EVANGELHO – Marcos 1,14-20

Depois de João ter sido preso,
Jesus partiu para a Galileia
e começou a proclamar o Evangelho de Deus, dizendo:
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus.
Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Caminhando junto ao mar da Galileia,
viu Simão e seu irmão André,
que lançavam as redes ao mar, porque eram pescadores.
Disse-lhes Jesus:
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Eles deixaram logo as redes e seguiram-n’O.
Um pouco mais adiante,
viu Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João,
que estavam no barco a consertar as redes;
e chamou-os.
Eles deixaram logo seu pai Zebedeu no barco com os assalariados
e seguiram Jesus.

CONTEXTO

A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objetivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.

O texto que nos é hoje proposto aparece, exatamente, no princípio desta caminhada de encontro com o Messias e com o seu anúncio de salvação. Neste texto, Marcos apresenta aos seus leitores os primeiros passos da ação do Messias libertador.

O lugar geográfico em que o texto nos situa é a Galileia: uma região situada a norte da Palestina, em permanente contacto com os territórios pagãos e, por isso, considerada pelas autoridades religiosas de Jerusalém uma terra de onde “não podia vir nada de bom”. Terra insignificante e sem especial relevo na história religiosa do Povo de Deus, a “Galileia dos gentios” parecia condenada a continuar uma região esquecida, marginalizada, por onde nunca passariam os caminhos de Deus e a proposta libertadora do Messias.

Uma referência ainda ao “mar”, chamado “da Galileia”, em cujas margens Jesus encontrou os seus primeiros discípulos: trata-se de um lago de água doce, com cerca de 21 km de comprimento e 11 de largura máxima, na época de Jesus rico em peixe e com as margens cobertas de vegetação abundante, incluindo vinhedos. Era também chamado “mar de Kineret”, ou “mar de Tiberíades”. Nas suas margens situavam-se diversas cidades referidas nos evangelhos: Magdala, Corozaim, Betsaida e Cafarnaum. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A nossa experiência de todos os dias mostra-nos a existência de sombras que desfeiam o mundo e que ameaçam a nossa existência tranquila. E nós, ameaçados por essas sombras, deixamos que a angústia, a desilusão e o desespero se apossem de nós. Para onde caminhamos? Para um beco sem saída? Para um qualquer final dramático e infeliz? Jesus veio dizer-nos que, no projeto de Deus, está um mundo diferente – um mundo de harmonia, de justiça, de reconciliação, de amor e de paz. A esse mundo novo, Jesus chamava o “Reino de Deus”. E foi essa a realidade que Ele colocou no horizonte da história dos homens. Ora, esse Reino não morreu naquela cruz onde tentaram calar Jesus e o seu projeto. Reparemos nos sinais da presença do Reino de Deus na nossa história do séc. XXI. Por cada gesto de violência e de maldade que desfeia o nosso mundo, há mil outros gestos de amor, de partilha, de perdão, de cuidado que tornam o mundo mais bonito, mais humano e mais feliz. O Reino está a fazer-se, todos os dias. Somos testemunhas desse Reino? Somos arautos da esperança?
  • Para que o “Reino de Deus” se torne uma realidade cada vez mais impactante, o que é necessário fazer? Na perspetiva de Jesus, o “Reino de Deus” exige, antes de mais, a “conversão”. Converter-se implica alterar as nossas atitudes de egoísmo, de orgulho, de autossuficiência, de comodismo e de voltar a escutar Deus e as suas propostas, para que aconteça, na nossa vida e à nossa volta, uma transformação radical – uma transformação no sentido do amor, da justiça e da paz. Pessoalmente, o que devo mudar na minha maneira de pensar e de agir para que o Reino de Deus seja uma realidade mais presente na minha vida e na vida dos que me rodeiam? E, no que diz respeito aos valores que a sociedade de que faço parte cultiva, quais favorecem e quais impedem a construção do Reino de Deus?
  • Para que o Reino aconteça é preciso também “acreditar” no Evangelho. Em concreto, isso significa aderir a Jesus, acolher o seu projeto, escutar as suas palavras, aprender com os seus gestos de amor, de serviço, de doação, de perdão. As palavras e os gestos de Jesus estão integrados na minha vida e transparecem na minha forma de tratar, de servir e de cuidar aqueles irmãos e irmãs que caminham ao meu lado? Os meus gestos e palavras dão testemunho desse mundo mais humano e mais fraterno que Jesus nos veio ensinar a construir?
  • Desde que começou a anunciar o Reino de Deus, Jesus rodeou-se de discípulos. Pedro, André, Tiago, João e alguns outros cruzaram-se com Jesus, ouviram o seu chamamento e foram com Ele. Eram homens simples, com defeitos e virtudes, como qualquer um de nós; mas tiveram a coragem de corresponder ao convite de Jesus e de embarcar com Ele na aventura de construir o Reino de Deus. A nós, Jesus lança todos os dias o mesmo convite. Estamos dispostos a fazer da construção do Reino a nossa prioridade? Estamos dispostos a ir atrás de Jesus, mesmo que isso implique deixarmos para trás certos projetos pessoais? Aquele compromisso que, no dia do nosso batismo, assumimos com Jesus, está a ser concretizado na nossa vida?
  • Jesus confia aos seus discípulos – quer àqueles que chamou nas margens do mar da Galileia, quer a nós – a missão de serem “pescadores de homens”. É uma missão que não passou de moda: hoje, como ontem, há muitos irmãos nossos que vivem mergulhados nas águas revoltas do egoísmo, da violência, da exploração, da solidão, da doença… E Jesus conta connosco para lhes dar a mão, para aliviar o seu sofrimento, para lhes levar esperança, para humanizar as suas vidas. Sentimos a responsabilidade desta missão? Sentimo-nos responsáveis por levar alívio e esperança a cada homem ou a cada mulher que sofre? Sabemos que também por aí passa a construção do Reino de Deus? in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, devem ter em atenção as duas intervenções em discurso direto.

Na segunda leitura, devem ter cuidado na leitura da frase central do texto não apenas pela sua grande extensão, mas na dicotomia que descreve cada oração e que deve ser sublinhada na proclamação do texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

QUANDO DEUS VEM, VÊ, FAZ E CHAMA…

Neste Domingo III do Tempo Comum é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1,14-20. Não é a primeira vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Marcos 1,9). Mas ainda não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão, portanto, dizeres importantes e programáticos.

Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Mas o verbo grego kêrýssô (anunciar), antes de nos fazer dizer ou escutar mensagens, implica a radical fidelidade do anunciador ou mensageiro em relação a quem lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la. Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a sua primeira missão é testemunhar esta proximidade e compromisso. E percebe-se agora bem o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.

E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.

Vem logo, para não se afastar da fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» (Marcos 1,16-20). Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus viu Simão e André, Tiago e João, e chamou-os: «Vinde atrás de mim, e farei de vós…». É o ver e o fazer do Criador (Génesis 1). Está em cena um verdadeiro chamamento de Jesus. É dele toda a iniciativa. Não são os discípulos que se apresentam a Jesus, pedindo trabalho. E não é como colaboradores, com remuneração e férias asseguradas, que Jesus os assume. Jesus apenas vê e chama. Espanta aquele «imediatamente» deixaram… e foram «atrás de» Jesus. Sem reticências nem calculismos. E nem sequer sabem onde os conduzirá o caminho em que agora entram. Confiança total em Jesus.

Perante o que nos é dado ver, uma primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: Quem pode dar uma ordem assim absoluta? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal confiança?

Temos hoje a graça de ouvir um bocadinho da profecia de Jonas e dos trejeitos que o chamamento de Deus desencadeia na sua vida (Jonas 3,1-5.10). «Jonas, o hebreu» (Jonas 1,9), bem ouve o chamamento e a ordem de Deus para ir pregar contra Nínive, a cidade inimiga (Jonas 1,1-2). À primeira vista, devia Jonas levar por diante a sua missão com prazer, pois tratava-se de ir dizer à cidade inimiga que Deus tinha decretado o seu fim. Mas Jonas não quer ir, e não é por sentir piedade de Nínive. Bem pelo contrário. Jonas sabe que Deus é um Deus gracioso e misericordioso (hannûn werahûm), que se arrepende do mal (Jonas 4,2). E Jonas sabe também que, indo dizer a Nínive: «Ainda quarenta dias e Nínive será destruída» (Jonas 3,4), os habitantes de Nínive mudarão a sua vida, o que levará Deus a mudar também o seu plano e a não destruir a cidade. É porque sabe tudo isto e quer mesmo que Nínive seja castigada, que Jonas não quer ir lá pregar. Na verdade, apanha, no porto de Jafa, um navio que vai para Társis, para ocidente e não para oriente, para fugir de Deus e da missão que Deus lhe confiou (Jonas 1,3). Mas Deus é mais forte, e Jonas acaba, por vias travessas, por ir parar a Nínive. É a contragosto que prega. E quando verifica que os ninivitas se converteram, o que ele já sabia que iria acontecer, e que Deus também amava Nínive, Jonas foi tomado por grande desgosto (Jonas 4,1), e pede mesmo a Deus que lhe dê a morte (Jonas 4,3), pois a vida assim deixou de ter sentido.

Vendo melhor as coisas, «Jonas, o hebreu», está com certeza na viragem do século V para o século IV, época de Esdras, que manda dissolver os matrimónios mistos contraídos pelos exilados durante o Exílio ou após o regresso a Sião (Esdras 10; cf. Deuteronómio 7,3). Com esta medida, que deve ter tido um enorme impacto na consciência judaica, os conservadores como que cancelavam da sua história o catastrófico episódio do Exílio, lançando uma ponte que ligava a nova época judaica diretamente ao antes do Exílio. A personagem Jonas incarna bem este Israel particularista e míope, ao contrário do autor do Livro, que testemunha admiravelmente um universalismo salvífico próximo já do espírito do NT. Jonas representa o judaísmo fechado, que pensa que se salvará, fechando-se sobre si mesmo. Esta tentação também afeta a Igreja, e também a nós, de tempos a tempos. Às vezes só vemos inimigos ao redor, e amuralhamo-nos. Vistas as coisas do lado de um Deus que ama a todos, só nos é permitido abrir todas as portas e a todos escancarar o coração. Um coração inquinado asfixia e morre.

A lição do Apóstolo é hoje breve e intensa (1 Coríntios 7,29-31). São Paulo começa por dizer, em tradução literal: «O tempo (ho kairós) já está a enrolar as velas (synestalménos: perf. pass. de sy(v)-stéllô)» (1 Coríntios 7,29). Entenda-se: o tempo da oportunidade dada, da enchente da Palavra de Deus por nós já respondida ou ainda não, está a acabar; já está a enrolar as velas, como fazem os marinheiros quando a embarcação se aproxima da terra. E termina, afirmando: «Passa, na verdade, o esquema (tò schêma) deste mundo» (1 Coríntios 7,31). Bem entendido: «O (filme) que passa na tela é este mundo!». Se assim é, devemos aprender a saber relativizar a maneira como habitualmente nos agarramos às nossas ideias feitas e às coisas deste mundo, desde o casamento, aos bens possuídos, aos negócios, aos currículos, aos primeiros lugares. Grande lição de São Paulo em 1 Coríntios 7,29-31. A nossa vocação traduz-se na adesão ao Último, que reclama o desprendimento do penúltimo e um amor desmedido.

O Salmo 25, que hoje fica a ecoar no nosso pobre coração, mostra-nos um fino e delicado jogo de olhares entre o orante fiel e um Deus sensibilíssimo, que olha para nós sempre com ternura paternal, refúgio permanente para os pobres e pecadores. Deixo aqui a ressoar as palavras da grande mística muçulmana do século VIII, Rabiʽa, que viveu em Bassorá, no Iraque, e que, para responder à pergunta: «Como chegaste a um grau tão elevado na vida espiritual?», respondeu: «Repetindo ininterruptamente: “Meu Deus, refugio-me em ti para me defender de tudo o que me distrai de ti, e de todo o obstáculo que se interpõe entre mim e ti”» (I detti di Rabiʽa, IV).

Jesus é Deus que desce ao nosso mundo,
Caminha pelas nossas estradas,
Percorre as nossas praias,
Visita as nossas casas,
Vem ter connosco aos nossos lugares de trabalho.

 Jesus é Deus que passa, ama e chama.
Mas não nos chama a responder a um inquérito,
A preencher uma ficha,
Responder a uma entrevista,
Fazer uma inscrição,
Pagar a matrícula,
Aprender uma doutrina.

 Não é como os escribas que Jesus ensina ou examina.
Nem sequer nos entrega um projeto de vida,
Uns apontamentos, um guião, caneta, tinta, mata-borrão.
Chama-nos apenas a segui-lo no caminho:
«Vinde atrás de Mim!»,
E partilha logo connosco a sua vida toda,
Como uma boda.

 Não nos põe primeiro a fazer um teste,
Não nos ama nem chama à condição,
Não tem lista de espera,
Não nos põe num estágio,
Num estado,
Num estrado,
Numa estante,
Mas num caminho!

 E um dia mais tarde,
Ouvi-lo-emos dizer ainda: «Ide!».
É sempre no caminho que nos deixa.
Nunca se desleixa,
Não apresenta queixa,
Não paga ao fim do mês,
Pede e dá tudo de uma vez.

 Vem, Senhor Jesus!
Vem e ama!
Vem e chama por mim outra vez!

 

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo III do Tempo Comum – Ano B -21.01.2024 (Jonas 3, 1-5.10)
  2. Leitura II do Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 (1 Cor 7, 29-3)
  3. Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 – Lecionário
  4. Domingo III do Tempo Comum – Ano B – 21.01.2024 – Oração Universal
  5. Propostas do Dicastério para a Evangelização – Domingo da Palavra 2024 – português
  6. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024

Viver a Palavra       

Concluído o tempo das Festas de Natal com a celebração da Festa da Epifania e celebrada a Festa do Batismo de Jesus entramos no Tempo Comum. A liturgia do 2.º Domingo do Tempo Comum convida-nos a descobrir que Deus conta connosco para concretizar, no mundo e na história, o seu projeto; e propõe-nos acolher, com disponibilidade e generosidade, os desafios de Deus.in Dehonianos (adaptado)

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – 1 Samuel 3,3b-10.19

Naqueles dias,
Samuel dormia no templo do Senhor,
onde se encontrava a arca de Deus.
O Senhor chamou Samuel
e ele respondeu: «Aqui estou».
E, correndo para junto de Heli, disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Mas Heli respondeu:
«Eu não te chamei; torna a deitar-te».
E ele foi deitar-se.
O Senhor voltou a chamar Samuel.
Samuel levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Heli respondeu:
«Não te chamei, meu filho; torna a deitar-te».
Samuel ainda não conhecia o Senhor,
porque, até então,
nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor.
O Senhor chamou Samuel pela terceira vez.
Ele levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Então Heli compreendeu que era o Senhor
que chamava pelo jovem.
Disse Heli a Samuel:
«Vai deitar-te; e se te chamarem outra vez, responde:
‘Falai, Senhor, que o vosso servo escuta’».
Samuel voltou para o seu lugar e deitou-se.
O Senhor veio, aproximou-Se e chamou como das outras vezes:
«Samuel! Samuel!»
E Samuel respondeu:
«Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».
Samuel foi crescendo;
o Senhor estava com ele
e nenhuma das suas palavras deixou de cumprir-se.

CONTEXTO

O Livro de Samuel situa-nos no período histórico que vai de meados do séc. XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.). É durante esse arco temporal que diversas tribos da região – quer as que tinham regressado do Egito com Moisés, quer outras que há vários séculos habitavam a terra de Canaã – vão estreitar laços, de forma a constituírem uma unidade política. Nos últimos anos do séc. XI a.C., essas tribos vão unir-se à volta da realeza davídica.

Os primeiros capítulos do Livro de Samuel situam-nos ainda na fase pré-monárquica. Nessa fase observa-se, por um lado, um processo crescente de sedentarização, de consolidação e de unificação das tribos no território de Canaã, a partir de determinados elementos unificadores, como sejam os “juízes”, os pactos de defesa diante dos inimigos comuns, as federações de tribos vizinhas e os santuários que periodicamente acolhem a Arca da Aliança e assentam as bases da fé monoteísta; por outro lado, observa-se também a precariedade das coligações defensivas diante dos ataques inimigos, a escassa consciência unitária, o descrédito de alguns “juízes”, todo um conjunto de debilidades que geram instabilidade e incerteza… As instituições tribais revelam-se inadequadas para responder aos novos desafios, nomeadamente à pressão militar exercida pelos filisteus. O modelo monárquico dos povos vizinhos parece ser a solução ideal para abordar os novos desafios da história.

Samuel aparece nesse tempo de transição da vida tribal para a monarquia. Pertence à tribo de Efraim, uma tribo instalada no centro do país, na montanha de Efraim (onde, aliás, Samuel exerce o seu ministério). O Livro de Samuel apresenta-o como um “juiz” (narra-se o seu nascimento maravilhoso nos mesmos moldes que o nascimento de Sansão – 1 Sm 1; cf. Jz 13); mas logo se diz que ele foi educado no templo de Silo, onde estava depositada a Arca da Aliança (1 Sm 2,18-21) – o que pode significar que exercia igualmente funções litúrgicas. Mais tarde irá ser chamado, num período de desolação, a conduzir o Povo no combate contra os filisteus.

Samuel é, portanto, uma figura complexa e multifacetada, simultaneamente juiz, sacerdote e chefe dos exércitos. Faz a ponte entre uma época de confusão e de escassa consciência unitária, para uma época onde começa a estruturar-se uma organização mais centralizada.

O texto que a liturgia de hoje nos propõe como primeira leitura apresenta a vocação de Samuel. A cena coloca-nos no santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança. Samuel, consagrado a Deus por sua mãe, era servidor do santuário (cf. 1 Sm 1,11.22-28).

Mais do que um relato fidedigno de acontecimentos concretos, este texto deve ser visto como uma catequese sobre o chamamento de Deus e a resposta do homem, redigida de acordo com o esquema típico dos relatos de vocação.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A vocação é sempre uma iniciativa, misteriosa e gratuita, de Deus. O profeta deve ter plena consciência de que na origem da sua vocação está Deus e que a sua missão só se entende e só se realiza em referência a Deus. Um profeta não se torna profeta por iniciativa própria, para realizar sonhos pessoais, ou porque entende ter as “qualidades profissionais” requeridas para o cargo… O profeta torna-se profeta porque um dia escutou Deus a chamá-lo pelo nome e a confiar-lhe uma missão. Todos nós, chamados por Deus a uma missão no mundo, não podemos esquecer isto: a nossa missão vem de Deus e tem de se desenvolver em referência a Deus. Como profetas, não nos anunciamos a nós próprios, não vendemos os nossos sonhos, não impomos aos outros a nossa visão pessoal das coisas; mas anunciamos e testemunhamos Deus e os seus projetos no meio dos nossos irmãos.
  • O relato da vocação de Samuel situa-nos num quadro temporal próprio: de noite, quando já terminaram as tarefas do dia e quando o santuário de Silo está envolvido na tranquilidade, na calma e no silêncio… Provavelmente, o catequista autor deste texto não escolheu este enquadramento por acaso. Ele quis sugerir que é mais fácil detetar a presença de Deus e ouvir a sua voz nesse ambiente favorável de silêncio que favorece a escuta. Quando corremos de um lado para o outro, afadigados em mil e uma atividades, preocupados em responder às solicitações que nos chegam de todos os lados, dificilmente temos espaço e disponibilidade para ouvir a voz de Deus e para detetar esses sinais discretos através dos quais Ele nos indica os seus caminhos. O profeta necessita de tempo e de espaço para rezar, para falar com Deus, para interrogar o seu coração sobre o sentido do que está a fazer, para ouvir esse Deus que fala nas “pequenas coisas” a que nem sempre damos importância. Procuro reservar tempo para interiorizar a Palavra de Deus, para dialogar com Ele e para responder aos desafios que Ele me lança? Estou disponível para escutar o Espírito, como exige o modo sinodal de ser Igreja?
  • São muitas as “vozes” que ouvimos todos os dias, vendendo propostas de vida e de felicidade. Muitas vezes, essas “vozes” confundem-nos, alienam-nos e conduzem-nos por caminhos onde a felicidade não está. Como identificar a voz de Deus no meio das vozes que dia a dia escutamos e que nos sugerem uma colorida multiplicidade de caminhos e de propostas? Samuel não identificou a voz de Deus sozinho, mas recorreu à ajuda do sacerdote Heli… Na verdade, aqueles que partilham connosco a mesma fé e que percorrem o mesmo caminho podem ajudar-nos, com as suas palavras e com o seu testemunho, a identificar a voz de Deus. A nossa comunidade cristã desafia-nos, interpela-nos, questiona-nos, ajuda-nos a purificar as nossas opções e a perceber os caminhos que Deus nos propõe.
  • Depois de identificar essa “voz” misteriosa que se lhe dirigia, Samuel respondeu: “fala, Senhor; o teu servo escuta”. É a expressão de uma total disponibilidade, abertura e entrega face aos desafios e aos apelos de Deus. É evidente que, na figura de Samuel, o catequista bíblico propõe a atitude paradigmática que devem assumir todos aqueles a quem Deus chama. Como é que me situo face aos apelos e aos desafios de Deus? Com uma obstinada recusa, com um “sim” reticente, ou com total disponibilidade e entrega? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39 (40)

Refrão: Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade.

Esperei no Senhor com toda a confiança
e Ele atendeu-me.
Pôs em meus lábios um cântico novo,
um hino de louvor ao nosso Deus.

Não Vos agradaram sacrifícios nem oblações,
mas abristes-me os ouvidos;
não pedistes holocaustos nem expiações,
então clamei: «Aqui estou».

«De mim está escrito no livro da Lei
que faça a vossa vontade.
Assim o quero, ó meu Deus,
a vossa lei está no meu coração».

«Proclamei a justiça na grande assembleia,
não fechei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi a justiça no fundo do coração,
proclamei a vossa bondade e fidelidade».

LEITURA II – 1 Coríntios 6,13c-15a.17-20

Irmãos:
O corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor,
e o Senhor é para o corpo.
Deus, que ressuscitou o Senhor,
também nos ressuscitará a nós pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?
Aquele que se une ao Senhor
constitui com Ele um só Espírito.
Fugi da imoralidade.
Qualquer outro pecado que o homem cometa
é exterior ao seu corpo;
mas o que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo.
Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo,
que habita em vós e vos foi dado por Deus?
Não pertenceis a vós mesmos,
porque fostes resgatados por grande preço:
glorificai a Deus no vosso corpo.

CONTEXTO

No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca de 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. Ao sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os líderes da comunidade judaica e foi expulso da sinagoga.

Corinto, cidade nova e próspera, era a capital da Província romana da Acaia e a sede do procônsul romano. Servida por dois portos de mar, nela se cruzavam pessoas de todas as raças e religiões. Era a cidade do desregramento para os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo e que, após semanas de navegação, chegavam com vontade de se divertir. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.

Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maioria dos membros da comunidade era de origem grega, embora de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).

De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).

Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. No centro da cidade, o templo de Afrodite, a deusa grega do amor, atraía os peregrinos e favorecia os desregramentos e a libertinagem sexual. Os cristãos, naturalmente, viviam envolvidos por este mundo e acabavam por transportar para a comunidade alguns dos vícios da cultura ambiente. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.

Em 1 Cor 6,12 aparece uma frase – possivelmente do próprio Paulo – que servia a alguns cristãos de Corinto para justificar os seus excessos: “Tudo me é permitido” … Paulo explica que “tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente; tudo me é permitido, mas eu não me farei escravo de nada”. Na sequência, Paulo recorda aos membros da comunidade as exigências da sua adesão a Cristo. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Somos todos chamados a integrar o “corpo” de Cristo. No dia do nosso Batismo respondemos positivamente ao convite que, nesse sentido, nos foi feito; e depois, ao longo do caminho, reiterámos vezes sem conta esse compromisso… Vivemos conscientes disso? Essa opção fundamental é uma realidade que temos sempre presente em todos os passos do nosso percurso de vida?
  • A adesão a Cristo implica assumirmos comportamentos coerentes com o que Jesus nos disse em palavras e em gestos; implica segui-l’O no caminho do amor incondicional, do serviço simples e gratuito, da doação total a Deus e aos nossos irmãos. Assim, nada do que é egoísmo, exploração, violência, prepotência, mentira, abuso dos direitos e dignidade do outro, procura desordenada do bem próprio à custa do outro, poderá entrar, como normalidade, na vida do discípulo de Jesus. O meu comportamento no contexto familiar, no espaço onde exerço a minha vida profissional, no meu círculo de relações é condizente com a minha qualidade de discípulo de Jesus?
  • A propósito, Paulo coloca o problema da vivência da sexualidade… Essa importante dimensão da nossa realização como pessoas não pode concretizar-se em ações egoístas, que nos escravizam a nós e que instrumentalizam os outros; mas tem de concretizar-se num quadro de amor verdadeiro, de relação, de entrega mútua, de compromisso, de respeito absoluto pelo outro e pela sua dignidade. Neste campo surgem, com alguma frequência, denúncias de comportamentos e atitudes, dentro e fora da Igreja, que afetam e magoam pessoas frágeis e indefesas. Devemos ter sempre isto bem claro: qualquer comportamento abusivo que desrespeite a dignidade e a autonomia dos outros irmãos e irmãs que se cruzam connosco constitui uma grave subversão dos valores de Jesus.
  • “Tudo me é permitido” – dizia-se no tempo de Paulo e repete-se hoje… Será a liberdade um valor absoluto? Para os discípulos de Jesus, a liberdade não pode traduzir-se em comportamentos e opções que neguem a nossa opção fundamental por Cristo. Há quem ache que só nos realizaremos plenamente se pudermos fazer tudo o que nos apetecer… Contudo, o cristão sabe que “nem tudo lhe convém”. Aliás, certas opções contrárias aos valores do Evangelho não conduzem à liberdade, mas à dependência e à escravidão.
  • Qual é o verdadeiro “culto” que Deus pede? Como é que traduzimos, em gestos concretos, a nossa adesão a Deus? Paulo sugere que o verdadeiro culto, o culto que Deus espera, é uma vida coerente com os compromissos que assumimos com Ele, traduzida em gestos concretos de amor, de entrega, de doação, de respeito pelo outro e pela sua dignidade. in Dehonianos.

EVANGELHO – João 1,35-42

Naquele tempo,
estava João Baptista com dois dos seus discípulos
e, vendo Jesus que passava, disse:
«Eis o Cordeiro de Deus».
Os dois discípulos ouviram-no dizer aquelas palavras
e seguiram Jesus.
Entretanto, Jesus voltou-Se;
e, ao ver que O seguiam, disse-lhes:
«Que procurais?»
Eles responderam:
«Rabi – que quer dizer ‘Mestre’ – onde moras?»
Disse-lhes Jesus: «Vinde ver».
Eles foram ver onde morava
e ficaram com Ele nesse dia.
Era por volta das quatro horas da tarde.
André, irmão de Simão Pedro,
foi um dos que ouviram João e seguiram Jesus.
Foi procurar primeiro seu irmão Simão e disse-lhe:
«Encontrámos o Messias» – que quer dizer ‘Cristo’ –;
e levou-o a Jesus.
Fitando os olhos nele, Jesus disse-lhe:
«Tu és Simão, filho de João.
Chamar-te-ás Cefas» – que quer dizer ‘Pedro’.

CONTEXTO

Este trecho integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Nessa secção, a principal preocupação do autor é apresentar a figura de Jesus.

João, o autor do Quarto Evangelho, convida-nos a participar numa montagem cénica. Diante dos nossos olhos, diversas personagens vão entrando no palco e apresentam-nos Jesus. As declarações que lhes são postas na boca não são palavras de circunstância, mas são afirmações categóricas, carregadas de significado teológico, que nos convidam a mergulhar no mistério de Jesus. O quadro final que resulta destas diversas intervenções apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer aparecer o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.

João Baptista tem um lugar especial neste contexto de apresentação de Jesus. O seu testemunho aparece no início e no fim da secção – cf. Jo 1,19-37; 3,22-36), como se ele tivesse mais a dizer do que qualquer outro. De facto, a catequese cristã sempre o viu como “o percursor do Messias”, aquele que Deus enviou para preparar os homens para acolherem Jesus.

O nosso texto põe ainda em cena três discípulos: André, um outro discípulo não identificado e Simão Pedro. Os dois primeiros são apresentados como discípulos de João e é por indicação de João que seguem Jesus. Trata-se de um quadro de vocação que difere substancialmente dos relatos de chamamento dos primeiros discípulos apresentados pelos sinópticos (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11). Em todo o caso, estamos diante de um modelo de chamamento e de seguimento de Jesus, mais do que uma reportagem sobre um acontecimento real. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Começamos há poucos dias um novo ano. Que programa temos para o caminho? O autor do Quarto Evangelho tem uma proposta irrecusável a fazer-nos para este ano… Convida-nos a redescobrir Jesus que passa, a ir atrás dele, a entrar na casa dele, a partilhar a sua vida e o seu projeto, a interiorizar as suas atitudes fundamentais… Se aceitarmos, espera-nos uma aventura inolvidável, uma experiência profundamente libertadora, um percurso que nos conduzirá a uma Vida de plena realização. Aceitamos o convite?
  • “Que procurais?” – pergunta Jesus àqueles dois discípulos que ousaram ir atrás dele… A todos nós que nos sentimos insatisfeitos, que não nos conformamos com a mediocridade, que temos sede de mais humanidade e de mais paz, que não estamos dispostos a passar o nosso tempo de vida comodamente refugiados na nossa estéril zona de conforto, que nos questionamos sobre a forma como o nosso mundo está a ser construído, Jesus pergunta também: “Que procurais?” Estamos conscientes de que Jesus é a fonte que pode saciar a nossa sede de Vida? E estamos disponíveis para dar testemunho de Jesus a todos os homens e mulheres que vivem perdidos no labirinto da vida e que não sabem como dar sentido à sua existência?
  • De acordo com esta bela página do Evangelho segundo João, a adesão a Jesus só pode ser radical e absoluta, sem meias tintas nem hesitações. Os dois primeiros discípulos não discutiram o “ordenado” que iam ganhar, se a aventura tinha futuro ou se estava condenada ao fracasso, se o abandono de um mestre para seguir outro representava uma promoção ou uma despromoção, se o que deixavam para trás era importante ou não era importante; simplesmente “seguiram Jesus”, sem garantias, sem condições, sem explicações supérfluas, sem “seguros de vida”, sem se preocuparem em salvaguardar o futuro se a aventura não desse certo. A aventura da vocação é sempre – e para nós também – um salto, decidido e sereno, para os braços de Deus.
  • André e o outro discípulo contaram com a ajuda de João Batista para encontrar Jesus e se decidirem a ir atrás dele. Este pormenor lembra-nos o papel dos irmãos da nossa comunidade na nossa caminhada de fé e na nossa descoberta de Jesus. A fé não é um caminho solitário, que cada um percorre isoladamente; mas é uma experiência comunitária, vivida no diálogo e na partilha com os irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado e com quem nos reunimos, ao menos no “dia do Senhor”, para rezar e celebrar. A comunidade cristã é o espaço habitual onde a minha fé se expressa, se concretiza, se confronta e se desenvolve?
  • O encontro com Jesus é um caminho que tem de me levar ao encontro dos irmãos e que deve tornar-se, em qualquer tempo e em qualquer circunstância, anúncio e testemunho. Quem experimenta a vida e a liberdade que Cristo oferece, não pode calar essa descoberta; mas deve sentir a necessidade de a partilhar com os outros, a fim de que também eles possam encontrar o verdadeiro sentido para a sua existência. “Encontrámos o Messias” deve ser o anúncio jubiloso de quem encontrou Jesus, fez com Ele uma verdadeira experiência de vida nova e anseia por levar os irmãos a uma descoberta semelhante.
  • João Baptista nunca procurou apontar os holofotes para a sua própria pessoa e criar um grupo de adeptos ou seguidores que satisfizessem a sua vaidade ou a sua ânsia de protagonismo… A sua preocupação foi apenas preparar o coração dos seus concidadãos para acolher Jesus. Depois, retirou-se discretamente para a sombra, deixando que os projetos de Deus seguissem o seu curso. João ensina-nos a nunca nos tornarmos protagonistas ou a atrair sobre nós as atenções; a sermos testemunhas de Jesus, não de nós próprios. in Dehonianos

Para os leitores:

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

VINDE E VEDE!

O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,35-42) faz-nos ver no primeiro plano João Batista e Jesus. João Batista permanece lá «estacado» (eistêkei), em Bethabara [= «Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Batista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. João coloca-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué 3). É desse lugar de passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti). Perfil exato: Jesus a passar: Ele é o caminho (Jo 14,6); João não é o caminho: está parado. E logo João aponta Jesus como o Cordeiro de Deus. Aponta-o e apresenta-o a nós, e põe-nos em movimento atrás d’Ele. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, talya’. Mas talya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada, com uma pincelada de mestre, a identidade de Jesus: Cordeiro, Servo, Filho e Pão de Deus.

Seja qual for o perfil adotado, deparamo-nos sempre com a verdadeira identidade de Jesus, na sua verdade e simplicidade. O «Cordeiro» é manso e dócil, e Jesus não vem ter connosco com um fulgor que cega ou um poder que esmaga. Vem como quem ama e serve com radical humildade e mansidão. Entenda-se bem ainda que este Cordeiro é de Deus, pertence a Deus, é Deus o seu pastor (cf. Salmo 22).

E aí vamos nós a segui-l’O, agora no Caminho. Ele é o caminho. Sem caminho, temos de ficar parados. Jesus pergunta: «O que procurais?» (João 1,38). Jesus não faz uma afirmação, mas uma pergunta. Não começa uma aula, mas um colóquio vital. Reconhece neles e em nós homens à procura, que ainda não sabem dizer o que procuram, mas desejam saborear o pão que só Jesus pode dar na sua Casa. «Onde moras?», é, portanto, a questão que os move e nos move (João 1,38). E a resposta-convite de Jesus: «Vinde e vede» (João 1,39) aviva e sacia a nossa sede. Uma vez mais, Jesus não nos entrega um livro ou um guião com doutrinas e preceitos para nós estudarmos e sabermos, mas chama-nos a viver uma relação pessoal de comunhão com Ele. Assim, também eles, e nós com eles, não podemos manter-nos a uma distância de segurança, não comprometida, como meros turistas ou espectadores. A indicação da hora pelo narrador pode querer dizer-nos que, para aqueles dois, e para nós também, aquela hora foi e será sempre uma hora decisiva. Fomos e vimos quem era (ideîn) e morámos com Ele um dia (João 1,39), simbolismo para indicar de agora em diante, sempre. Percebemos logo que era aquela a nossa Casa. Por isso, André, um de nós, o Prôtóklêtos Andréas, o «primeiro chamado», como o qualifica ainda hoje a Tradição Oriental, foi logo procurar, encontrar (o uso do verbo grego eurískô supõe um encontro depois de uma busca; não um encontro por acaso) e chamar, «primeiro chamante», o seu irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (João 1,40-42). O resto é com Jesus. «Olhando-o por dentro (emblépô autô), Jesus disse: “Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro”» (João 1,42). Depois é Filipe que é chamado por Jesus, sem introdução ou explicação (João 1,43). E Filipe conduz a Jesus Natanael, também sem qualquer explicação ou demonstração convincente.

É importante precisar que a demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. Na verdade, a eficácia do testemunho acontece, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se ou a render-se perante as provas, mas quando o incita a fazer, por sua vez, a experiência, levando-o a implicar a própria vida. A experiência da testemunha é sempre mais forte e mais radical do que as provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a Natanael, mas face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (João 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente: «Vem e vê!» (João 1,46).

Mas voltemos ao chamamento decisivo, aquele que muda o nome, isto é, segundo a mentalidade bíblica, a pessoa e a sua vida. Diz Jesus: «Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro» (João 1,42). O termo hebraico normal para dizer «rocha», «rochedo», «pedra firme» é tsûr ou sela‘, que designa mesmo Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também conhece o termo keph, aramaico kêpha’, que designa a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos; kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, que diz também a cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça, para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas.

Nasce aqui, portanto, um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos, alimentados.

O contraponto musical vem hoje do Primeiro Livro de Samuel 3,3-19, com Deus a chamar uma e outra vez o jovem Samuel, que «ainda não conhecia o Senhor» (1 Samuel 3,7), e Eli, sacerdote do santuário de Silo, a fazer bem o papel de Guia Espiritual. Depois de discernir a Voz de Deus que chamava Samuel, é para Deus que Eli remete Samuel, com a indicação precisa: «Fala, Senhor, que o teu servo escuta» (1 Samuel 3,9). E o texto termina com o belo resumo do narrador: «E Samuel crescia, o Senhor estava com ele, e nenhuma das suas palavras deixou cair por terra» (1 Samuel 3,19). Extraordinário programa de vida para a Igreja inteira e cada cristão em particular.

E São Paulo, na Primeira Carta aos Coríntios 6,13-20, traça em contraluz a radiografia da grande cidade de Corinto, capital da província romana da Acaia, com muitas divisões, distrações, idolatrias e imoralidades, coisas em tudo semelhantes ao que se vê hoje nas grandes metrópoles modernas. E aponta aos cristãos de Corinto e de hoje o caminho do Evangelho: o corpo que, no mundo bíblico, diz a pessoa toda, integral, é para o Senhor, e o Senhor é para o corpo.

A toada musical que hoje embala a nossa vida está em consonância com a docilidade e o rumo novo, para o Senhor, que devemos empreender. Na verdade, canta assim o Salmo Responsorial de hoje: «Sacrifício e oblação não Te agradaram, mas escavaste-me os ouvidos» (Salmo 40,7), expressão forte que a Carta aos Hebreus cita atualizando assim: «Sacrifício e oblação Tu não quiseste, mas formaste-me um corpo» (Hebreus 10,5). Sim, dá para entender, que o corpo é para oferecer ao bom Deus, num culto novo de todos os dias (cf. Romanos 12,1). Mas, para que a melodia chegue ao coração, também é verdade, como diz o Salmo e nos lembra poeticamente Nelly Sachs, talvez seja necessário escavar bem os ouvidos. Nelly Sachs (1891-1970), de origem judaica, nascida em Berlim, refugiada em Estocolmo a partir de 1940, recebeu o prémio Nobel de literatura em 1966.

Deixamos aqui um extrato de um poema:

«Se os profetas irrompessem
pelas portas da noite
com as suas palavras abrindo feridas
nas rotinas do nosso quotidiano
(…)

Se os profetas irrompessem
pelas portas da noite
à procura de um ouvido como pátria

Ouvido humano
obstruído por mato e por silvas
será que saberias escutar?».

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I do Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024 (1 Sam 3, 3b-10.19)
  2. Leitura II do Domingo II do Tempo Comum- Ano B – 14.01.2024 (1 Cor 6, 13c-15a.17-20)
  3. Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024- Lecionário
  4. Domingo II do Tempo Comum – Ano B – 14.01.2024- Oração Universal
  5. ANO B – O ano do evangelista Marcos
  1. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024

    Viver a Palavra       

                A liturgia deste dia celebra o Batismo de Jesus. Evoca o momento em que Jesus, ungido pelo Espírito Santo e apresentado aos homens como “Filho Amado” de Deus, abraçou a missão que o Pai lhe entregou: recriar o mundo, fazer nascer um Homem Novo. E propõe-nos, a todos nós que fomos batizados em Cristo, que tiremos desse facto as consequências que se impõem. in Dehonianos.

                                                  + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + + +

             Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

            E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

    LEITURA I – Isaías 42,1-4.6-7

    Diz o Senhor:
    «Eis o meu servo, a quem Eu protejo,
    o meu eleito, enlevo da minha alma.
    Sobre ele fiz repousar o meu espírito,
    para que leve a justiça às nações.
    Não gritará, nem levantará a voz,
    nem se fará ouvir nas praças;
    não quebrará a cana fendida,
    nem apagará a torcida que ainda fumega:
    proclamará fielmente a justiça.
    Não desfalecerá nem desistirá,
    enquanto não estabelecer a justiça na terra,
    a doutrina que as ilhas longínquas esperam.
    Fui Eu, o Senhor, que te chamei segundo a justiça;
    tomei-te pela mão, formei-te
    e fiz de ti a aliança do povo e a luz das nações,
    para abrires os olhos aos cegos,
    tirares do cárcere os prisioneiros
    e da prisão os que habitam nas trevas».

    Contexto:

                O texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). Este profeta anónimo cumpriu a sua missão profética na Babilónia, na fase final do Exílio (entre 550 e 539 a.C.). Tinham passado algumas dezenas de anos desde que Nabucodonosor havia destruído Jerusalém e arrastado para o cativeiro a maior parte dos habitantes de Judá. Os judeus cativos desesperam porque o tempo vai passando e a libertação (anunciada por Ezequiel, um outro profeta do tempo do Exílio) nunca mais acontece. Será que Deus se esqueceu das suas promessas?

    O Deutero-Isaías sente que Deus o envia a dizer aos seus concidadãos, exilados e desanimados, palavras de esperança. Cumprindo o mandato de Deus, o profeta fala da iminência da libertação, comparando-a ao antigo êxodo, quando Deus salvou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); e anuncia-lhes, também, a reconstrução de Jerusalém, a cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).

    No meio desta proposta “consoladora” do Deutero-Isaías aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de um personagem misterioso e enigmático, que os biblistas designam como o “Servo de Javé”. Esse personagem será Jeremias, o profeta que tanto sofreu por causa da missão? Será o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho de Deus num cenário tão difícil? Será Ciro, rei dos persas, que alguns anos depois libertará os judeus exilados e autorizará o seu regresso a Jerusalém? Não sabemos ao certo. Mas esse “Servo de Javé” é apresentado como um predileto de Javé, chamado para o serviço de Deus, enviado por Deus aos homens de todo o mundo. A sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra. O sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo. Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detratores e adversários.

    O texto que hoje nos é proposto é parte do primeiro cântico do “Servo” (cf. Is 42,1-9). in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • A história do “Servo de Javé”, que recebeu a plenitude do Espírito para ser “luz das nações”, abrir “os olhos aos cegos”, tirar “do cárcere os prisioneiros” e “da prisão os que habitam nas trevas”, lembra-nos, desde logo, que Deus age através de “profetas” a quem confia a transformação do mundo e a libertação dos homens. No dia em que fomos batizados, recebemos, também nós, o Espírito que nos capacitou para uma missão semelhante à desse “Servo”. Tenho consciência de que cada batizado é um instrumento de Deus na renovação e transformação do mundo? Estou disposto a corresponder ao chamamento de Deus e a assumir a minha responsabilidade profética? Os pobres, os oprimidos, os que “jazem nas trevas e nas sombras da morte”, os que não têm eira nem beira, nem voz nem vez, nem convite para se sentar à mesa da humanidade podem contar com a minha solidariedade ativa, com a minha ajuda fraterna, com o meu abraço, com a minha partilha generosa?
    • A missão profética só faz sentido à luz de Deus: é sempre Ele que toma a iniciativa, que escolhe, que chama, que envia e que capacita para a missão… Aquilo que fazemos, por mais válido que seja, não é obra nossa, mas sim de Deus; o nosso êxito na missão não resulta das nossas qualidades, mas da iniciativa de Deus que age em nós e através de nós. Somos apenas colaboradores de Deus, “humildes trabalhadores da vinha do Senhor”. É sempre Deus que projeta e que age, através da nossa fragilidade, para oferecer ao mundo a Vida e a salvação. Esquecer isto pode conduzir-nos à arrogância, à autossuficiência, à vaidade, ao convencimento; e, sempre que isso acontece, a nossa intervenção no mundo acaba por desvirtuar o projeto de Deus.
    • Atentemos ainda na forma de atuar do “Servo”: ele não se impõe pela força, pela violência, pelo dinheiro, ou pelos amigos poderosos; mas atua com suavidade, com mansidão, com humildade, no respeito pela liberdade dos irmãos e irmãs a quem é enviado… É esta lógica – a lógica de Deus – que eu utilizo no desempenho da missão profética que Deus me confiou? in Dehonianos.

    SALMO RESPONSORIAL – Salmo 28 (29)

    Refrão: O Senhor abençoará o seu povo na paz.

    LEITURA II – Atos 10,34-38

    Naqueles dias,
    Pedro tomou a palavra e disse:
    «Na verdade,
    eu reconheço que Deus não faz aceção de pessoas,
    mas, em qualquer nação,
    aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável.
    Ele enviou a sua palavra aos filhos de Israel,
    anunciando a paz por Jesus Cristo, que é o Senhor de todos.
    Vós sabeis o que aconteceu em toda a Judeia,
    a começar pela Galileia,
    depois do batismo que João pregou:
    Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré,
    que passou fazendo o bem
    e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio,
    porque Deus estava com Ele».

    Contexto:

                Os “Atos dos Apóstolos” são uma catequese sobre a “etapa da Igreja”, isto é, sobre a forma como os discípulos assumiram ou continuaram o projeto salvador do Pai e o levaram – após a partida de Jesus deste mundo – a todos os homens.

    O livro divide-se em duas partes. Na primeira (cf. At 1-12), a reflexão centra-se na difusão do Evangelho dentro das fronteiras palestinas, por ação de Pedro e dos Doze; na segunda (cf. At 13-28), conta-se a expansão do Evangelho fora da Palestina (sobretudo por ação de Paulo): no Mediterrâneo, na Ásia Menor, na Grécia, até atingir Roma, o coração do império.

    O texto de hoje está integrado na primeira parte dos “Atos”. Insere-se numa perícope que descreve a atividade missionária de Pedro na planície do Sharon (cf. At 9,32-11,18) – isto é, na planície junto da orla mediterrânica palestina. Em concreto, o texto propõe-nos o testemunho e a catequese de Pedro em Cesareia Marítima, em casa do centurião romano Cornélio. Convocado pelo Espírito (cf. At 10,19-20), Pedro entra em casa de Cornélio, expõe-lhe o essencial da fé e batiza-o, bem como a toda a sua família (cf. At 10,23b-48). O episódio é importante porque Cornélio é a primeira pessoa completamente pagã (o etíope evangelizado e convertido por Filipe e de que se fala em At 8,26-40 era “prosélito” e por isso já estava ligado ao judaísmo) admitida na comunidade cristã por um dos Doze. Admite-se, assim, que o Evangelho de Jesus não deve ficar circunscrito às fronteiras étnicas judaicas, mas é uma Boa Notícia destinada a todos os homens e mulheres, de todas as raças e culturas.

    Cesareia Marítima, cidade reconstruída por Herodes, o Grande, ficava na costa palestina. Era a sede do poder romano, pois era aí que residiam os governadores romanos da Judeia (como Pôncio Pilatos, o governador que, pelo ano 30, autorizou a morte de Jesus). A cidade foi evangelizada pelo diácono Filipe (cf. At 8,40).in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • Jesus recebeu o Batismo e foi ungido com a força do Espírito; depois, “passou pelo mundo fazendo o bem e curando todos os que eram oprimidos pelo demónio”. Em cada passo do caminho que percorreu, Ele distribuiu, em gestos concretos, bondade, misericórdia, perdão, solidariedade, amor… Nós, cristãos, que “acreditamos” em Jesus, que nos comprometemos com Ele e O seguimos, assumimos este “programa”? Nós, que fomos batizados e ungidos com a força do Espírito, testemunhamos também, em gestos concretos, a bondade, a misericórdia, o perdão e o amor de Deus pelos homens? Empenhamo-nos em libertar todos os que são oprimidos pelo demónio do egoísmo, da injustiça, da exploração, da exclusão, da solidão, da doença, do analfabetismo, do sofrimento?
    • “Reconheço que Deus não faz aceção de pessoas” – diz Pedro no seu discurso em casa de Cornélio. E nós, filhos desse Deus que ama a todos da mesma forma e que a todos oferece igualmente a salvação, aceitamos todos os irmãos da mesma forma, reconhecendo a igualdade fundamental de todos os homens em direitos e dignidade? Temos consciência de que a discriminação de pessoas por causa da cor da pele, da raça, do sexo, da orientação sexual ou do estatuto social é uma grave subversão da lógica de Deus?in Dehonianos.

    EVANGELHO – Marcos 1,7-11

    Naquele tempo,
    João começou a pregar, dizendo:
    «Vai chegar depois de mim
    quem é mais forte do que eu,
    diante do qual eu não sou digno de me inclinar
    para desatar as correias das suas sandálias.
    Eu batizo na água,
    mas Ele batizar-vos-á no Espírito Santo».
    Sucedeu que, naqueles dias,
    Jesus veio de Nazaré da Galileia
    e foi batizado por João no rio Jordão.
    Ao subir da água, viu os céus rasgarem-se
    e o Espírito, como uma pomba, descer sobre Ele.
    E dos céus ouviu-se uma voz:
    «Tu és o meu Filho muito amado,
    em Ti pus toda a minha complacência».

    Contexto:

                O Evangelho deste domingo refere o encontro entre Jesus e João Batista, nas margens do rio Jordão. Na circunstância, Jesus foi batizado por João.

    João foi o guia carismático de um movimento de cariz popular, que anunciava a proximidade do “juízo de Deus”. No final do ano 27 ou princípio do ano 28, a sua voz começou a ouvir-se lá para os lados do deserto de Judá, nas margens do rio Jordão, num lugar que a tradição identifica com o atual Qasr El Yahud, a cerca de 10 quilómetros do Mar Morto. A mensagem proposta por João estava centrada na urgência da conversão (pois, na opinião de João, a intervenção definitiva de Deus na história para destruir o mal estava iminente) e incluía um rito de purificação pela água.

    O judaísmo conhecia ritos diversos de imersão na água, sempre ligados a contextos de purificação ou de mudança de vida. Era, inclusive, um ritual usado na integração dos “prosélitos” (os pagãos que aderiam ao judaísmo) na comunidade do Povo de Deus. A imersão na água sugeria a rutura com a vida passada e o ressurgir para uma vida nova, um novo nascimento, um novo começo. No que diz respeito ao Batismo proposto por João, estamos provavelmente diante de um rito de iniciação à comunidade messiânica: quem aceitava este “batismo”, renunciava ao pecado, convertia-se a uma vida nova e passava a integrar a comunidade que esperava o Messias.

    O texto que hoje nos é proposto faz parte de um tríptico (cf. Mc 1,2-8; 1,9-11; 1,12-13) onde Marcos define, logo no início do seu Evangelho, a identidade e a missão específica de Jesus: Ele é o Messias, o Filho de Deus enviado ao mundo para oferecer aos homens a salvação de Deus. Marcos irá, nos capítulos seguintes, desenvolver estas coordenadas.in Dehonianos.

    INTERPELAÇÕES

    • O episódio do batismo de Jesus coloca-nos frente a frente com um Deus que aceitou identificar-Se com o homem, partilhar a sua humanidade e fragilidade, a fim de oferecer ao homem um caminho de liberdade e de vida plena. Eu, filho deste Deus, aceito ir ao encontro dos meus irmãos mais desfavorecidos e estender-lhes a mão? Partilho a sorte dos pobres, dos sofredores, dos injustiçados, sofro na alma as suas dores, aceito identificar-me com eles e participar dos seus sofrimentos, a fim de melhor os ajudar a conquistar a liberdade e a vida plena? Não tenho medo de me sujar ao lado dos pecadores, dos marginalizados, se isso contribuir para os promover e para lhes dar mais dignidade e mais esperança?
    • Jesus, o Filho Amado de Deus, veio ao encontro dos homens, solidarizou-se com as suas dores e limitações e quebrou o muro que nos separava de Deus. Ao ser batizado no rio Jordão, foi ungido pelo Espírito de Deus e abraçou, sem reticências, a missão que o Pai lhe confiava: propor e construir o Reino de Deus. Todos nós que fomos batizados em Cristo recebemos o mesmo Espírito de Deus que Ele recebeu e entramos na comunidade do Reino. No dia do nosso batismo recebemos a missão de colaborar com Jesus na construção de um mundo mais fraterno e mais humano. Temos sido fiéis a essa missão? O nosso compromisso batismal é uma realidade que procuramos renovar a cada passo, ou é letra morta que não toca a forma como vivemos? Somos batizados “de assinatura” (porque o nosso nome aparece num qualquer livro de registos de Batismo), ou somos cristãos de facto, que procuram seguir Jesus em cada passo do caminho e colaborar com Ele no sentido de curar o mundo das suas feridas?
    • Jesus sempre levou muito a sério aquela declaração de Deus que se escutou junto do rio Jordão: “Tu és o meu Filho muito amado, em Ti pus toda a minha complacência”. Esse amor que o Pai lhe dedicava sempre sustentou as opções de Jesus e sempre iluminou o caminho que Ele ia percorrendo (mesmo quando no horizonte estava a cruz, o abandono dos amigos, o aparente fracasso da missão). Sustentado pelo amor de Deus, Jesus assumiu incondicionalmente o projeto do Pai de dar vida à humanidade. Obedeceu em tudo ao Pai, sem reticências de qualquer espécie. É esta mesma atitude de obediência radical, de entrega incondicional, de confiança absoluta que eu – filho amado de Deus – assumo na minha relação com o Pai? O projeto de Deus é, para mim, mais importante de que os meus projetos pessoais ou do que os desafios que o mundo me lança? Como Jesus, confio plenamente no Pai, nas suas propostas, no seu cuidado, no seu amor?
    • Depois de batizado e de ser ungido pelo Espírito, Jesus não se instalou numa crença religiosa de meias tintas ou de serviços mínimos. Animado pela força do Espírito, partiu para a Galileia a anunciar o Reino de Deus e a testemunhar – com palavras e com gestos – o projeto libertador do Pai. É dessa forma – coerente, comprometida, apaixonada – que eu procuro viver a missão que Deus me confiou no dia em que eu fui batizado? Os meus irmãos e irmãs maltratados pela vida e pelos homens podem contar com o meu empenho em levar-lhes a carícia do Deus que cura e que dá Vida? in Dehonianos

    Para os leitores:

    I Leitura (ver anexo)

    II Leitura: (ver anexo)

    Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

    FESTA DO BATISMO DO SENHOR

                Passado o Advento e as Festas Natalícias, estamos agora no umbral do chamado «Tempo Comum» do Ano Litúrgico que, ao contrário do que se possa pensar, não é um «Tempo secundário», mas fundamental na vida celebrativa da Igreja Una e Santa. Na verdade, ao longo deste «Tempo Comum», Domingo após Domingo, a Igreja Una e Santa, Batizada e Confirmada, Esposa Amada de Cristo, é chamada a contemplar de perto, episódio após episódio, toda a vida histórica do seu Senhor, desde o Batismo no Jordão até à Cruz e à Glória da Ressurreição.

                Esta apresentação só é possível porque, em cada um dos Anos Litúrgicos, é proclamado, Domingo após Domingo, praticamente em lição contínua, um Evangelho inteiro. Neste Ano B, é-nos dada a graça de ouvir o Evangelho segundo Marcos, por todos considerado o mais antigo dos Evangelhos, escrito, com certeza, durante a guerra judaica (66-70), mas antes da destruição de Jerusalém e do Templo no ano 70. Em termos formais, é um Evangelho em que se sucedem os episódios, como num filme, sendo diminuta a parte discursiva. O leitor ou ouvinte vê passar diante de si uma série de episódios em rede, sendo constantemente convidado a implicar-se no que vê, perguntando, interpretando, fazendo seu o programa das personagens ou dele se distanciando, ou simplesmente manifestando o seu espanto e encanto.

                O Primeiro Domingo do «Tempo Comum» coloca então diante de nós o episódio do Batismo de Jesus no Jordão, que acontece logo a abrir o Evangelho segundo Marcos 1,7-11. O texto apresenta-se em duas vagas: Marcos 1,7-8, apontando para João Batista, e Marcos 1,9-11, apontando para Jesus.

                Deixamos aqui algumas anotações para facilitar a compreensão da figura de João Batista, apresentada na primeira vaga do texto: 1) João Batista surge em cena, em pleno deserto, sem qualquer apresentação prévia, sem pai nem mãe, como se tivesse chovido do céu (Marcos 1,4); 2) atravessa-o uma dupla tarefa: anunciar Aquele-que-Vem (érchetai), «O mais-forte-do-que eu» (ho ischyróterós mou) (Marcos 1,7), e, porque se trata de Alguém muito importante, advertir o povo de Israel que não basta ficar à espera dele, mas que é necessário preparar-se para a sua chegada (Marcos 1,2-5.7-8); 3) esta preparação requer quatro coisas: conversão, confissão dos pecados, obter o batismo e a remissão dos pecados (Marcos 1,4-5); 4) a missão de João Batista reveste-se de algumas particularidades: a região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém saíam (ezeporeúeto: imperf. de ekporeúomai) ao encontro de João Batista (Marcos 1,5); 5) curiosamente não é João que vai ao encontro das pessoas, como tinham feito os profetas antes dele, e como fará também Jesus, que sai e percorre as cidades e aldeias ao encontro das pessoas; é este, de resto, o estilo dos Evangelizadores: ir ao encontro das pessoas, e não ficar à espera delas; 6) João parece um ponto fixo no deserto: é lá que vive, é lá que prega, e as pessoas vão lá escutá-lo; 7) é descrita a forma como anda vestido e o que come (Marcos 1,6), quer para mostrar a sua austeridade, quer para o vincular à figura de Elias (2 Reis 1,8); 8) contra o ritual habitual, não são as pessoas que tomam o banho lustral de purificação, mas é João que as batiza na água do Jordão; 9) Este gesto é tão insólito e característico de João, que lhe vale o título de Batista, não só no NT, mas também em Flávio Josefo.

                É dito ainda que João proclamava ou anunciava (ekêryssen: imperf. de kêrýssô) (Marcos 1,7). O verbo está no imperfeito, o que implica uma proclamação repetida e prolongada, mas o narrador não se alonga sobre o conteúdo da referida pregação. Também se diz, de forma quase telegráfica, que João batiza com água, e Aquele-que-Vem batizará com o Espírito Santo (Marcos 1,8), omitindo-se a menção do fogo e outros elementos de julgamento presentes em Mateus e Lucas. Marcos pretende apenas mostrar os dois batismos como preparação e cumprimento.

                E a anotação da incompetência (ikanós) de João para desatar a correia das sandálias d’Aquele-que-Vem (Marcos 1,7), o que significa? Será simplesmente uma confissão de humildade por parte de João face a Alguém que lhe é incomparavelmente superior? Esta tonalidade está certamente presente, mas não esgota a metáfora das sandálias. Trata-se, desde logo, de um dizer importante, pois encontramo-lo por cinco vezes no NT: Mateus 3,11; Marcos 1,7; Lucas 3,16; João 1,27; Atos 13,25. Num célebre artigo, intitulado «As sandálias do Messias noivo», o insigne exegeta hispano-germânico e grande amigo de Portugal, Luís Alonso Schoekel, levou este dizer e esta metáfora para o domínio da esponsalidade do Messias. Explica ele: de acordo com o referido nos Salmos 60,10 e 108,9, «pôr a sandália sobre» significa «tomar posse de»; é, portanto, linguagem jurídica de posse. Em Deuteronómio 25,5-9, o não-cumprimento da lei do levirato implica que seja retirada a sandália ao cunhado não cumpridor da lei, gesto que garante a sua perda de posse no domínio matrimonial. Aqui já se trata de direito matrimonial. Em Rute 4,7-10, temos um caso jurídico concreto, em que o que tem o direito de resgatar o património e de desposar Rute, prescinde desse direito. Para o dizer juridicamente, em reunião pública realizada à porta da cidade (Rute 4,1), o homem em causa tira a sandália e entrega-a a Booz, que fica assim com o direito de resgatar o património e de desposar Rute. A metáfora da sandália em Marcos 1,7 e nos demais dizeres do NT que anotámos significa também que é Jesus o noivo, a quem assiste o direito de desposar Israel, e que a João não assiste esse direito ou competência.

                A segunda vaga do relato (Marcos 1,9-11) assinala o ponto alto do texto. João tinha anunciado a Vinda de Alguém incomparavelmente superior a ele. As expetativas estão no auge. Quando virá e de onde virá? Primeira surpresa: eis que vem Jesus, diz o narrador, de Nazaré da Galileia, terra desconhecida do interior da província e do mundo rural, nunca referida no AT. Natanael tem razão quando pergunta: «De Nazaré poderá vir alguma coisa boa?» (João 1,46). Vem do povo, e vem com o povo, no meio do povo, solidário com o povo. Na verdade, nova surpresa, não começa logo a batizar, mas é batizado por João no rio Jordão (Marcos 1,9). Com o povo, no meio do povo, não ao lado do povo. Jesus vem, portanto, no meio do povo pecador que se submete a um batismo de conversão para a remissão dos pecados. Entenda-se bem que Jesus se submete ao mesmo batismo a que o povo se submete, não porém para a remissão dos próprios pecados, mas os dos outros. Grande gesto de solidariedade connosco, prolepse já da sua vida inteira e do batismo de sangue da Cruz (Marcos 10,38).

                Se este Jesus está no meio de nós, completamente solidário connosco, o texto mostra-o também completamente unido a Deus, a quem tem livre acesso. É para significar esta sua perfeita união com Deus, que os céus se abrem, cumprindo Isaías 63,19, e o Espírito desce, não «sobre ele», mas «para dentro dele» (eis autón) (Marcos 1,10), para permanecer nele de modo íntimo e estável. O Espírito não transforma Jesus, mas torna transparente a sua identidade. Esta nota da sua união com Deus sai logo reforçada pela voz que vem dos céus, portanto, autorizada e reveladora: «Tu és (Sý eî) o Filho Meu (ho hyiós mou), o Amado (ho agapêtós), em Ti (en soí) o meu Enlevo (eudokéô) (Marcos 1,11), deixando ver em filigrana a figura do Rei messiânico do Salmo 2,7 e do Servo do Senhor de Isaías 42,1. Mas é sobre Jesus que recai toda a atenção, pois desde que entra em cena, é ele o sujeito ou o destinatário de todas as ações: «vem de Nazaré», «é batizado por João», «sai da água», «vê os céus abrirem-se e o Espírito descer», «a voz que vem dos céus é dirigida a Ele e fala para Ele». Jesus, por seu lado, permanece em completo silêncio.

                Diante dos olhos atónitos de João, e também dos nossos, fica, portanto, Jesus que, connosco e no meio de nós, como um de nós, desce ao rio Jordão para ser connosco batizado. Extraordinária a epígrafe que Pedro, na lição de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos, põe sobre a vida de Jesus: «Passou fazendo o bem e curando todos» (Atos 10,38). Para nos curar, é preciso passar pelo meio de nós. O Jordão é o rio de Cristo e dos cristãos. Rasga, de alto-a-baixo, a terra de Israel, mas atravessa também as páginas dos dois Testamentos! Desce do sopé do Hermon e vai desaguar no Mar Morto, fazendo um percurso sinuoso de mais de 300 km (104 km em linha reta), e o seu nome ouve-se por 179 vezes nas páginas do Antigo Testamento e 15 vezes no Novo Testamento. As suas águas curam (2 Reis 5,14: Naamã) e dão acesso à vida nova: é atravessando-o que o Povo entra na Terra Prometida (Josué 3,14-4,24). É ainda belo ver que, depois de um percurso de mais de 300 km, o Jordão entra no Mar Morto, onde, através de uma intensa evaporação, parece subir ao céu, lembrando Elias que sobe ao céu desde o leito do Jordão (2 Reis 2,8-11). É lembrando estes cenários, sobretudo o do Batismo que também cura e dá acesso à vida nova, que muitas Igrejas Orientais chamam «Jordão» ao canal que conduz a água para a fonte batismal, que todos os anos é benzida precisamente neste Dia da Festa do Batismo do Senhor.

                Ilustra bem o episódio do Batismo de Jesus no Jordão o chamado «Primeiro Canto do Servo do Senhor» (Isaías 42,1-7), hoje também lido, que põe em cena Deus e o seu Servo. Deus chama este Servo «meu Servo», diz que o segura e sustenta e que lhe dá o seu Espírito, e confia-lhe uma missão em ordem à verdade e à justiça, à mansidão e ao ensino, à libertação e à iluminação, entenda-se, à vida em plenitude, de todas as nações. Verdadeiramente, Deus é a vida deste Servo, que Ele ampara, leva pela mão e modela. Linguagem de criação, confidência e providência.

                Há ainda a registar uma expressão forte para dizer a missão de mansidão confiada por Deus a este seu Servo: «Não fará ouvir desde fora a sua voz» (Isaías 42,2). Ora, se não faz ouvir a sua voz desde fora, então é porque a faz ouvir desde dentro. O grande pensador do século XX, de origem hebraica, Emmanuel Levinas, glosava, nas suas lições talmúdicas, este texto em sentido messiânico, dizendo que «o Messias é o único Rei que não reina desde fora». Se não reina desde fora, então não reina com poder, dinheiro, impostos, armas ou decretos. Se não reina desde fora, reina desde dentro, aproximando-se das pessoas, descendo ao nível das pessoas, amando as pessoas. Está bom de ver que Jesus vai assumir a identidade deste Servo e vai cumprir por inteiro a sua missão.

                Para não esquecer: esta bela missão de Jesus, Batizado com o Espírito no Jordão e declarado o Filho Amado, deve ser a nossa bela missão de Batizados com o Espírito Santo e filhos amados de Deus. É ainda como filhos que devemos hoje entoar também as notas deste Gloria in excelsis Deo do Antigo Testamento, que é o belíssimo Salmo 29. A voz (qôl) que por sete vezes se ouve no Salmo bem pode ser a Voz do Pai que se dirige ao Filho no Batismo do Jordão e continua a ressoar na pregação Apostólica como se do setenário dos dons do Espírito Santo ou dos Sacramentos se tratasse. Escreveu São Gregório Magno: «A voz de Deus troa admiravelmente porque, como força escondida, penetra nos nossos corações».

    António Couto

    ANEXOS:

    1. Leitura I da Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024 (Is 42, 1-4.6-7)
    2. Leitura II da Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024 (Act 10, 34-38)
    3. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024- Lecionário
    4. Solenidade do Batismo do Senhor – Ano B – 07.01.2024- Oração Universal
    5. ANO B – O ano do evangelista Marcos

Domingo da Sagrada Família de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023

Solenidade da Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024

Viver a Palavra       

De olhos postos no Presépio de Belém, contemplamos Maria, José e o Menino: a Sagrada Família de Nazaré. O mistério da incarnação – evento, princípio e critério da revelação de Deus – não é apenas uma circunstância a partir da qual Deus se revela, mas o modo que Deus escolheu para se manifestar e dar a conhecer.

«O Verbo fez-se carne e habitou no meio de nós» (Jo 1,14). A incarnação é um acontecimento fundamental através do qual Deus feito homem se dá a conhecer. Este acontecimento que marca indelevelmente e definitivamente a história constitui também o princípio a partir do qual Deus se relaciona com os homens e mulheres: Deus salva o homem através do homem e assumindo a nossa humanidade «por meio de palavras e gestos intimamente unidos entre si» (DV 2) revela o amor misericordioso do Pai. Deste modo, o mistério da incarnação é também chamado a ser critério para a nossa ação pastoral. Contemplando o Verbo feito carne, queremos fazer presente o evangelho no mundo, habitando cada cultura e cada tempo, transformando cada realidade humana para que possa ser elevada à plenitude do amor divino.

Deus quis que Jesus nascesse numa família e que assumindo a nossa natureza humana revelasse o lugar fundamental que a família ocupa no tempo e na história como célula fundamental da sociedade, lugar de afeto e relação e primeiro âmbito de socialização. Deste modo, no Domingo dentro da Oitava do Natal, somos convidados a contemplar a família de Nazaré para encontrar nela uma escola da arte de ser família e do modo de ser Igreja: «Nazaré é a escola em que se começa a compreender a vida de Jesus, é a escola em que se inicia o conhecimento do Evangelho» (Papa S. Paulo VI).

O evangelho deste Domingo situa-nos nos dias da purificação, em que, segundo a Lei de Moisés, o filho primogénito deve ser consagrado ao Senhor. Nas figuras de Simeão e Ana, que recebem Jesus no Templo, esta passagem evangélica apresenta-nos duas coordenadas fundamentais na arte de ser família cristã e também na arte de ser Igreja ao serviço do evangelho.

Simeão é descrito como «homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel; e o Espírito Santo estava nele». Este homem guiado e iluminado pelo Espírito que lhe tinha revelado que ele não morreria sem contemplar o Messias, acolhe Jesus em seus braços, bendizendo a Deus. Ele é figura da família e da Igreja chamada a viver guiada e iluminada pelo Espírito Santo e que dia após dia deve crescer na arte de acolher Jesus. A família, bem como a Igreja enquanto família das famílias cristãs, realizará plenamente a sua missão se for capaz de ser um lugar da presença de Jesus, um átrio de fraternidade e comunhão que vive alegre e jubilosamente a sua vocação.

Ana apresentada como uma mulher de «idade muito avançada» que «não se afastava do templo, servindo a Deus noite e dia, com jejuns e orações», também está presente naquela ocasião e começou a louvar a Deus e a falar a todos daquele Menino e da esperança da libertação que Ele era portador. Deste modo, Ana é modelo para a família e para Igreja da arte de levar Jesus aos outros e proclamar a libertação que só a Sua presença no meio de nós pode oferecer.

Que cada família, iluminada e conduzida pelo Espírito Santo, saiba viver inspirada pelo exemplo da família de Nazaré e ao jeito de Simeão e Ana saibam reconhecer os sinais da presença de Jesus no tempo e na história e cresçam na arte de O levar aos irmãos, louvando, bendizendo e proclamando as maravilhas que só o Seu amor pode operar em nós. in Voz Portucalense.

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Estamos num novo Ano Litúrgico – o Ano B. Durante todo este ano litúrgico – 2023/2024 -, acompanhamos o evangelista S. Marcos em grande parte das proclamações do Evangelho. Deste modo, como preparação, poderá ser oportuna uma proposta de formação para todos os fiéis acerca do Evangelho de S. Mateus.

E faremos isso. Em anexo à Liturgia da Palavra ficará disponível um texto sobre o evangelista Marcos. Também poderão melhorar os conhecimentos bíblicos – do Novo Testamento, mas também do Antigo Testamento – em https://paroquiavilarandorinho.pt/fbiblica/.Proporciona-se a todos os fiéis, um maior conhecimento deste precioso tesouro que é a Sagrada Escritura.

LEITURA I – Sir 3,3-7.14-17a

«Quem honra seu pai obtém o perdão dos pecados, e acumula um tesouro quem honra sua mãe».

Contexto:

O Livro de Ben Sirá (chamado, na sua versão grega, “Eclesiástico”) é um livro de carácter sapiencial que, como todos os livros sapienciais, tem por objetivo deixar aos aspirantes a “sábios” indicações práticas sobre a arte de bem viver e de ser feliz. O seu autor é um tal Jesus Ben Sirá, um “sábio” israelita que viveu na primeira metade do séc. II a.C.

A época de Jesus Ben Sirá é uma época conturbada para o Povo de Deus. Os selêucidas (uma família descendente de Seleuco Nicator, general de Alexandre Magno, que herdou parte do império de Alexandre, o Grande, quando este morreu, em 323 a.C.) dominavam a Palestina e procuravam impor aos judeus, mesmo pela força, a cultura helénica. Muitos judeus, seduzidos pelo brilho da cultura grega, abandonavam os valores tradicionais e a fé dos pais e assumiam comportamentos mais consentâneos com a “modernidade”. A identidade cultural e religiosa do Povo de Deus corria, assim, sérios riscos… Neste contexto, Jesus Ben Sirá, um “sábio” judeu apegado às tradições dos seus antepassados, escreve para preservar as raízes do seu Povo. No seu livro, apresenta uma síntese da religião tradicional e da “sabedoria” de Israel e procura demonstrar que é no respeito pela sua fé, pelos seus valores, pela sua identidade que os judeus podem descobrir o caminho seguro para serem um Povo livre e feliz. in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Os nossos pais foram, em nosso favor, instrumentos do Deus criador. Através deles, Deus chamou-nos à vida. Sentimo-nos gratos aos nossos pais por eles terem aceitado colaborar com Deus, dando-nos vida e cuidando de nós ao longo do caminho que temos vindo a percorrer? Lembramo-nos de lhes demonstrar, com ternura e amor, a nossa gratidão?
  • Apesar da sensibilidade moderna aos direitos humanos e à dignidade das pessoas, a nossa civilização cria, com frequência, situações de abandono, de marginalização, de solidão, cujas vítimas são, muitas vezes, aqueles que já não têm uma vida considerada produtiva, ou aqueles a quem a idade ou a doença trouxeram limitações. No entanto, do ponto de vista de Deus, nenhum ser humano é “descartável”, ou estará alguma vez fora do prazo de validade. Não podemos admitir – com a nossa indiferença ou com o nosso silêncio cúmplice – que as pessoas em situação de fragilidade sejam abandonadas na berma da estrada, sempre que o mundo caminha a um ritmo que elas não podem acompanhar. Tenho consciência disto?
  • É verdade que a vida de hoje é muito exigente a nível profissional e que nem sempre é possível a um filho estar presente ao lado de um pai que precisa de cuidados continuados ou de acompanhamento especializado. No entanto, se alguma vez as circunstâncias impuserem a necessidade de afastamento de um pai idoso ou descapacitado do ambiente familiar, isso não pode significar abandono e condenação à solidão. Seremos sempre responsáveis por aqueles que cativamos, e ainda mais por aqueles que foram, para nós, instrumentos do Deus criador e fonte de vida.
  • O capital de maturidade e de sabedoria de vida que os mais idosos possuem é considerado por nós uma riqueza ou um desafio ridículo à nossa modernidade e às nossas certezas?
  • Face à invasão contínua de valores estranhos que, tantas vezes, põem em causa a nossa identidade cultural e religiosa (quando não a nossa humanidade), o que significam os valores que recebemos dos nossos pais? Avaliamos com maturidade a perenidade desses valores, ou estamos dispostos a renegá-los ao primeiro aceno dos “valores da moda”? in Dehonianos.

SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)

Refrão: Ditosos os que temem o Senhor, ditosos os que seguem os seus caminhos.

LEITURA II – Col 3,12-21

«Suportai-vos uns aos outros e perdoai-vos mutuamente, se algum tiver razão de queixa contra outro».

Contexto:

A Igreja de Colossos, destinatária desta carta, foi fundada por Epafras, um amigo de Paulo, pelos anos 56/57. Tanto quanto sabemos, Paulo nunca visitou a comunidade…

Hoje, não é claro para todos que Paulo tenha escrito esta carta (o vocabulário utilizado e o estilo do autor estão longe das cartas indiscutivelmente paulinas; também a teologia apresenta elementos novos, nunca usados nas outras cartas atribuídas a Paulo); por isso, é um pouco difícil definirmos o ambiente em que este texto apareceu…

Para os defensores da autoria paulina, contudo, a carta foi escrita quando Paulo estava prisioneiro, possivelmente em Roma (anos 61/63). Epafras teria visitado o apóstolo na prisão e deixado notícias alarmantes: os Colossenses corriam o risco de se afastar da verdade do Evangelho, por causa das doutrinas ensinadas por certos doutores de Colossos. Essas doutrinas misturavam práticas legalistas (o que parece indicar tendências judaizantes) com especulações acerca do culto dos anjos e do seu papel na salvação; exigiam um ascetismo rígido e o cumprimento de certos ritos de iniciação, destinados a comunicar aos crentes um conhecimento mais adequado dos mistérios ocultos e levá-los, através dos vários graus de iniciação, à vivência de uma vida religiosa mais autêntica.

Sem refutar essas doutrinas de modo direto, o autor da carta afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.

O texto que nos é hoje proposto pertence à segunda parte da carta. Depois de constatar a supremacia de Cristo na criação e na redenção (primeira parte), o autor avisa os Colossenses de que a união com Cristo traz consequências a nível de vivência prática (segunda parte): implica a renúncia ao “homem velho” do egoísmo e do pecado e o “revestir-se do Homem Novo” (Cl 3,9-11). in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • A nossa vida de todos os dias é, a cada instante, marcada por tensões, ansiedades, conflitos e problemas que mexem com o nosso equilíbrio e a nossa harmonia. Perdemos o controlo, tornamo-nos quezilentos e conflituosos, criticamos os outros com palavras que magoam, assumimos poses de arrogância e de superioridade, enchemos as redes sociais com comentários infelizes… Talvez nos faça bem cada dia, em jeito de exame de consciência, reservar um momento para olhar para Jesus e para confrontar os nossos gestos, as nossas palavras, as nossas escolhas com os gestos, as palavras e as suas opções. Esse “confronto” pode ajudar-nos a situar as perspetivas e a recentrar a nossa vida nesse viver “em Cristo” que é a vocação do cristão.
  • A nossa primeira responsabilidade vai, evidentemente, para aqueles que connosco partilham, de forma mais chegada, a vida do dia a dia (a nossa família). Esse amor, que deve revestir-nos sempre, traduz-se numa atenção contínua àquele que está ao nosso lado, às suas necessidades e preocupações, às suas alegrias e tristezas, aos seus sorrisos e às suas lágrimas? Traduz-se em gestos sentidos e partilhados de carinho e de ternura? Traduz-se num respeito absoluto pela liberdade e pelo espaço do outro, por deixar o outro crescer sem o sufocar? Traduz-se na vontade de servir o outro, sem nos servirmos dele?
  • A expressão “esposas, sede submissas aos vossos maridos” é, evidentemente, uma expressão anacrónica, que deve ser devidamente contextualizada no universo cultural e social do séc. I, mas que hoje não faz sentido. Para os que vivem “em Cristo”, o valor que preside às relações é o amor… E o amor não comporta submissão ou superioridade, mas igualdade fundamental em dignidade e direitos. O mesmo Paulo dirá, noutras circunstâncias, que para os que vivem “em Cristo” “não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher”, porque todos são um só em Cristo Jesus (Gl 3,28). É este o horizonte que deve estar sempre diante dos nossos olhos. in Dehonianos.

EVANGELHO – Lc 2,22-40

«Ao chegarem os dias da purificação, segundo a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, para O apresentarem ao Senhor».

«O Menino crescia, tornava-Se robusto e enchia-Se de sabedoria».

Contexto:

O interesse fundamental dos primeiros cristãos não se centrou na infância de Jesus, mas na sua mensagem e proposta; por isso, a catequese cristã dos primeiros tempos interessou-se, de forma especial, por conservar as memórias da vida pública e da paixão do Senhor.

Só num estádio posterior houve uma certa curiosidade acerca dos primeiros anos da vida de Jesus. Coligiram-se, então, algumas informações históricas sobre a infância de Jesus; e esse material foi, depois, amassado e trabalhado, de forma a transmitir aquilo que a catequese primitiva ensinava sobre Jesus e o seu mistério. O chamado “Evangelho da Infância” (de que faz parte o texto que nos é hoje proposto) assenta nessa base; parte de algumas indicações históricas e desenvolve uma reflexão teológica para explicar quem é Jesus. Nesta secção do Evangelho, Lucas está muito mais interessado em dizer quem é Jesus, do que em contar-nos factos memoráveis da sua infância.

Lucas propõe-nos, hoje, o quadro da apresentação de Jesus no Templo. Segundo a Lei de Moisés, todos os primogénitos (tanto dos homens como dos animais) pertenciam a Javé e deviam ser oferecidos a Javé (cf. Ex 13,1-2.11-16). O costume de oferecer aos deuses os primogénitos é um costume cananeu que, no entanto, Israel transformou no que dizia respeito aos primogénitos humanos: estes não deviam ser oferecidos em sacrifício, mas resgatados por um animal, que seria imolado ao Senhor.

De acordo com Lv 12,6-8, quarenta dias após o nascimento de uma criança, esta devia ser apresentada no Templo, onde a mãe oferecia um ritual de purificação. Nessa cerimónia, devia ser oferecido um cordeiro de um ano (para as famílias mais abastadas) ou então duas pombas ou duas rolas (para as famílias de menores recursos). É precisamente neste cenário que o Evangelho de hoje nos situa.in Dehonianos.

INTERPELAÇÕES

  • Lucas apresenta-nos uma família – a Sagrada Família – em que Deus é a referência fundamental. Por quatro vezes (vers. 22.23.24.27), Lucas refere, a propósito da família de Jesus, o cumprimento da Lei de Moisés, da Lei do Senhor ou da Palavra do Senhor. A família de Jesus, Maria e José é, portanto, uma família que escuta a Palavra de Deus e que constrói a sua existência ao ritmo da Palavra de Deus e dos desafios de Deus. Maria e José sabiam que uma família que escuta a Palavra de Deus e que procura responder aos desafios postos por essa Palavra é uma família com um projeto de vida com sentido; e sabiam que uma família que se deixa guiar pela Palavra de Deus é uma família que se constrói sobre a rocha firme dos valores eternos. Que importância é que Deus assume na vida das nossas famílias? Procuramos que cada membro das nossas famílias cresça numa progressiva sensibilidade à Palavra de Deus e aos desafios de Deus? Encontramos tempo para reunir a família à volta da Palavra de Deus e para partilhar, em família, a Palavra de Deus?
  • Quando numa família Deus “conta”, os valores de Deus passam a ser, para todos os membros daquela comunidade familiar, as marcas que definem o sentido da existência. O espaço familiar torna-se, então, a escola onde se aprende o amor, a solidariedade, a partilha, o serviço, o diálogo, o respeito, o cuidado, o perdão, a fraternidade universal, o cuidado da criação, a atenção aos mais frágeis, o sentido do compromisso, do sacrifício, da entrega e da doação… São esses valores – os valores de Deus – que procuramos cultivar na nossa comunidade familiar?
  • Segundo a Lei judaica, todo o primogénito devia ser consagrado e dedicado ao Senhor. Também Jesus é apresentado no Templo e consagrado ao Senhor. Nas nossas famílias cristãs há normalmente uma legítima preocupação com o proporcionar a cada criança condições ótimas de vida, de educação, de acesso à instrução e aos cuidados essenciais… Haverá sempre uma preocupação semelhante no que diz respeito à formação para a fé e em proporcionar aos filhos uma verdadeira educação para a vida cristã e para os valores de Jesus Cristo? Os pais cristãos preocupam-se sempre em proporcionar aos seus filhos um exemplo de coerência com os compromissos assumidos no dia do Batismo? Preocupam-se em ser os primeiros catequistas dos próprios filhos, transmitindo-lhes os valores do Evangelho? Preocupam-se em acompanhar e em potenciar a formação e a caminhada catequética dos próprios filhos, em inseri-los numa comunidade de fé, em integrá-los na família de Jesus, em consagrá-los ao serviço de Deus?
  • Simeão e Ana, os dois anciãos que acolhem Jesus no Templo de Jerusalém, não são pessoas desiludidas da vida, que vivem voltadas para o passado sonhando com um tempo ideal que já não volta; mas são pessoas voltadas para o futuro, atentas ao Deus libertador que vem ao seu encontro, que sabem ler os sinais de Deus naquele menino que chega e que testemunham diante dos seus conterrâneos a presença salvadora e redentora de Deus no meio do seu Povo. Os anciãos – quer pela sua maturidade, sabedoria e equilíbrio, quer pelo tempo de que normalmente dispõem – podem ser testemunhas privilegiadas dos valores de Deus, intérpretes dos sinais de Deus, profetas credíveis que obrigam o mundo a confrontar-se com os desafios de Deus. É preciso que não vivam voltados para o passado, refugiados numa realidade que aliena, transformados em “estátuas de sal”, mas que vivam de olhos postos no futuro, de espírito aberto e livre, pondo a sua sabedoria e experiência ao serviço da comunidade humana e cristã, ensinando os mais jovens a distinguir entre o que é eterno e importante e o que é passageiro e acessório. in Dehonianos

Para os leitores:

            Na primeira leitura, é importante ter em conta as repetições que surgem no texto (Quem honra seu pai), bem como a forma exortativa marcada pela presença de verbos no modo imperativa.

Na segunda leitura, deve haver especial cuidado na proclamação das enumerações e ter sempre presente o tom exortativo que atravessa todo o texto.

I Leitura (ver anexo)

II Leitura: (ver anexo)

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

Sagrada Família de Jesus, Maria e José – 31.12.2023

COM O MENINO NOS BRAÇOS E NO CORAÇÃO

Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.

O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.

O Evangelho que temos Hoje a graça de escutar vem de Lucas 2,22-40. Compõe a cena um velhinho chamado Simeão, nome que significa «Escutador», que vive atentamente à escuta, em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta frequência, alta definição, alto amor, e que o Evangelho apresenta como um homem justo e piedoso, que esperava a consolação de Israel. Ora, esse velhinho que vivia à espera e à escuta, com carinhosa atenção e coração vigilante, veio ao Templo sob o impulso do Espírito (en tô pneúmati). Fica aqui declarada a qualidade da energia e da alegria que move o velho e querido Simeão: não é movido a carvão, nem a água, nem a vento, nem a petróleo e seus derivados, nem a eletricidade, nem sequer a energia nuclear. Simeão é movido pelo Espírito Santo. Maneira novíssima de viver, pausa e bemol na nossa impetuosidade, na nossa vontade de aparecer e de fazer, pausa e bemol nos nossos protagonismos e vontade de poder. Falamos quase sempre antes do tempo, e não chegamos a dar lugar à suave voz do Espírito. Na verdade, adverte-nos Jesus: «Não sois vós que falais, mas o Espírito Santo» (Marcos 13,11; cf. Mateus 10,20; Lucas 12,12). Portanto, é urgente esperar! Regressemos, pois, à beleza de Simeão. Ao ver aquele Menino, recebeu-o carinhosamente nos braços. Por isso, os Padres gregos dão a Simeão o título belo de Theodóchos [= «recebedor de Deus»]. É então que Simeão entoa o canto feliz do entardecer da sua vida, um dos mais belos cantos que a Bíblia regista: «Agora, Senhor, podes deixar o teu servo partir em paz, porque os meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos, Luz que vem iluminar as nações e glória do teu povo, Israel!» (Lucas 2,29-32).

E, na circunstância, também uma velhinha chegou carregada de Graça e de Esperança. Chamava-se Ana, que significa «Graça». É dita «Profetisa», isto é, que anda, também ela, sintonizada em Hi-Fi, alta-fidelidade, alta definição, alto amor, com a Palavra de Deus escutada, vivida e anunciada. Diz ainda o texto que era filha de Fanuel, nome que significa «Rosto de Deus», e que era da tribo de Aser, que quer dizer «Felicidade». Tanta intimidade com Deus! Também esta velhinha, serena e feliz, com 84 anos, número perfeito de números perfeitos (7 x 12), teve a Graça de ver aquele Menino. E diz bem o texto do Evangelho que Ana «falava daquele Menino a todos os que esperavam a libertação de Jerusalém» (Lucas 2,38). Outra vez a beleza inteira do díptico do Evangelho de Lucas: Simeão e Ana. Simeão esperava e Ana anunciava. Eis aqui presente, nestes dois maravilhosos velhinhos, a inteira Escritura dos dois Testamentos, e o retrato a corpo inteiro do Consagrado, que, na Bíblia hebraica, se diz Nazîr, um nome passivo e recetivo, totalmente dedicado a Deus, conduzido por Deus, «compondo» com emoção os acontecimentos de Deus no seu coração.

Simeão e Ana viram a Luz e exultaram de Alegria. Hoje somos nós que nos chamamos Simeão e Ana. Somos nós que recebemos esta Luz nos braços, e que ficamos a fazer parte da família da Felicidade e a viver pertinho de Deus, Rosto a Rosto com Deus, Escutadores atentos do bater do coração de Deus, movidos pelo Espírito de Deus, Recebedores de Deus, Anunciadores de Deus. Rezamos hoje para que, nesta sociedade de coisas e de números (cf. Isaías 5,8), os filhos e filhas de Deus vivam cada vez mais Rosto a Rosto com Deus, e deem testemunho no mundo deste Dom maravilhoso.

Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben Sira (ou Eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.

O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor, e seguem os seus caminhos», é a bela litania em que o refrão nos faz entrar.

Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão são vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. De resto, vê-se bem que andamos todos bem vestidos por fora, mas andamos muitas vezes nus por dentro! E é para aqui que aponta a exortação de S. Paulo. Nesta época de bastante consumismo, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos.

Neste Domingo da Festa da Sagrada Família é naturalmente a Família que está no centro da cena. Nos tempos conturbados que vivemos, atravessados por pandemias várias, é decisivo que a Família seja cada vez mais vista como esteio da sociedade, e, como tal, respeitada, protegida e promovida, e não vilipendiada, triste realidade a que vamos assistindo dia após dia

Santa Maria de um amor maior,

Do tamanho do Menino que levas ao colo,

Diante de ti me ajoelho e esmolo

A graça de um lar unido ao teu redor.

 

Protege, Senhora, as nossas famílias,

Todos os casais, os filhos e os pais,

E enche de alegria, mais e mais e mais,

Todos os seus dias, manhãs, tardes, noites e vigílias.

 

Vela, Senhora, por cada criança,

Por cada mãe, por cada pai, por cada irmão,

A todos os velhinhos, Senhora, dá a mão,

E deixa em cada rosto um afago de esperança.

 

António Couto

 

Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.

SANTA MARIA, MÃE DE DEUS – 01.01.2024

Oito dias depois da Solenidade do Natal do Senhor, que a liturgia oriental designa significativamente por «a Páscoa do Natal», eis-nos no Primeiro Dia do Ano Civil de 2024, tradicionalmente designado como Dia de «Ano Bom», a celebrar a Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus.

A figura que enche este Dia, e que motiva a nossa Alegria, é, portanto, a figura de Maria, na sua fisionomia mais alta, a de Mãe de Deus, como foi solenemente proclamada no Concílio de Éfeso, em 431, mas já assim luminosamente desenhada nas páginas do Novo Testamento.

É assim que a encontramos no Lecionário de hoje. Desde logo naquela menção sóbria, e ousamos mesmo dizer pobre, com que Paulo se refere à Mãe de Jesus, escrevendo aos Gálatas: «Deus mandou o seu Filho, nascido de mulher, nascido sujeito à Lei» (Gálatas 4,4). Nesta linha breve e densa aparece compendiado o mistério da Incarnação, enquanto se sente já pulsar o coração da Mariologia: Maria não é grande em si mesma; é, na verdade, uma «mulher», verdadeiramente nossa irmã na sua condição de humana criatura. Não é grande em si mesma, mas é grande por ser a Mãe do Filho de Deus, e é aqui que ela nos ultrapassa, imaculada por graça, bem-aventurada, nossa mãe na fé e na esperança. Maria não é grande em si mesma; vem-lhe de Deus essa grandeza.

O Evangelho deste Dia de Maria (Lucas 2,16-21) guarda também uma preciosidade, quando Lucas nos diz que «todos os que tinham escutado as coisas faladas pelos pastores ficaram maravilhados, mas Maria GUARDAVA (synetêrei) todas estas Palavras que aconteceram (tà rhêmata), COMPONDO-as (symbállousa) no seu coração» (Lucas 2,18-19). Em contraponto com o espanto de todos os que ouviram as palavras dos pastores, Lucas pinta um quadro mariano de extraordinária beleza: «Maria, ao contrário, GUARDAVA todas estas Palavras que aconteceram, COMPONDO-as no seu coração». Há o espanto e a maravilha que se exprimem no louvor e no canto, e há o espanto e a maravilha que se exprimem no silêncio e na escuta qualificada e comovida. Maria, a Senhora deste Dia, aparece a GUARDAR com enlevado carinho todas estas Palavras que acontecem, todos estes acontecimentos que falam e não esquecem. O verbo GUARDAR implica uma atenção extremada e carinhosa, como quem leva nas suas mãos uma coisa preciosa. Este GUARDAR atencioso e carinhoso não é, porém, o ato de um momento, mas a atitude de uma vida, uma vez que o verbo grego está no imperfeito, que implica duração. O outro verbo belo mostra-nos Maria como que a COMPOR, isto é, a «pôr em conjunto» (symbállô), a simbolizar, a organizar, para melhor compreender e se fazer compreender. É como quem, com aquelas Palavras, COMPÕE um Poema, uma Sinfonia, e se entretém a vida toda a trautear essa melodia e a conjugar novos acordes de alegria.

Esta solicitude maternal de Maria, habitada por esta imensa melodia que nos vem de Deus e nos reconcilia, levou o Papa Paulo VI, a associar, desde 1968, à Solenidade de Santa Maria, Mãe de Deus, a celebração do Dia Mundial da Paz. Basta fazer bem as contas para nos apercebermos que celebramos hoje o 57.º Dia Mundial da Paz.

De Deus vem sempre um mundo novo, belo, maravilhoso. Tão novo, belo e maravilhoso, que nos cega, a nós que vamos arrastando os olhos cansados pela lama. Que o nosso Deus faça chegar até nós tempo e modo para ouvir outra vez a extraordinária bênção sacerdotal, que o Livro dos Números guarda na sua forma tripartida: «O Senhor te abençoe e te guarde. / O Senhor faça brilhar sobre ti a sua face e te seja favorável. / O Senhor dirija para ti o seu olhar e te conceda a paz» (Números 6,24-26).

Por isso, bem podemos hoje, com o Salmo 67, juntar as nossas vozes às vozes dos povos de toda a terra no mesmo louvor ao Deus que a todos faz graça e misericórdia. O Salmo 67 é uma oração de bênção em forma de petição. Em termos técnicos, equivale a uma epiclese: não «eu Te bendigo», mas «Deus nos bendiga». O nosso Salmo 67 recolhe os temas da bênção sacerdotal de Números 6,24-26, como a graça, a luz, a benevolência, a paz, pondo o plural onde estava o singular, por assim dizer, «democratizando» a bênção, agora dirigida a todos, onde, na bênção sacerdotal do Livro dos Números, se dirigia apenas a Israel.

Olhada por Deus com singular olhar de Graça foi Maria, também Pobre, também Feliz, Bem-aventurada, Santa Maria, Mãe de Deus, que hoje celebramos em uníssono com a Igreja inteira. Para ela elevamos hoje os nossos olhos de filhos enlevados.

Mãe de Deus, Senhora da Alegria, Mãe igual ao Dia, Maria. A primeira página do ano é toda tua, Mulher do sol, das estrelas e da lua, Rainha da Paz, Aurora de Luz, Estrela matutina, Mãe de Jesus e também minha, Senhora de janeiro, do Dia primeiro e do Ano inteiro.

Abençoa, Mãe, os nossos dias breves. Ensina-nos a vivê-los todos como tu viveste os teus, sempre sob o olhar de Deus, sempre a olhar por Deus. É verdade. A grande verdade da tua vida, o teu segredo de ouro. Tu soubeste sempre que Deus velava por ti, enchendo-te de graça. Mas tu soubeste sempre olhar por Deus, porque tu soubeste bem que Deus também é pequenino. Acariciada por Deus, viveste acariciando Deus. Por isso, todas as gerações te proclamam «Bem-aventurada»! Por isso, nós te proclamamos «Bem-aventurada»!

Senhora e Mãe de Janeiro, do Dia Primeiro e do Ano inteiro. Acaricia-nos. Senta-nos em casa ao redor do amor, do coração. Somos tão modernos e tão cheios de coisas estes teus filhos de hoje! Tão cheios de coisas e tão vazios de nós mesmos e de humanidade e divindade! Temos tudo. Mas falta-nos, se calhar, o essencial: a tua simplicidade e alegria. Faz-nos sentir, Mãe, o calor da tua mão no nosso rosto frio, insensível, enrugado, e faz-nos correr, com alegria, ao encontro dos pobres e necessitados.

  1. Que seja, e pode ser, Deus o quer, e nós também podemos querer, um Ano Bom, cheio de Paz, Pão e Amor, para todos os irmãos que Deus nos deu! E que Santa Maria, Mãe de Deus e nossa Mãe nos abençoe também. Ámen!

Que Deus nos abençoe e nos guarde,
Que nos acompanhe, nos acorde e nos incomode,
Que os nossos pés calcorreiem as montanhas,
Cheios de amor, de paz e de alegria,
Que a tua Palavra nos arda nas entranhas,
E nos ponha no caminho de Maria.

 O amor verdadeiro está lá sempre primeiro.
fiat que disseste, Maria, é de quem se fia
Num amor maior do que um letreiro.
Vela por nós, Maria, em cada dia
Deste ano inteiro,
Para que levemos a cada enfermaria,
A cada periferia,
Um amor como o teu, primeiro e verdadeiro.

Santa Maria da Paz,
Ensina-nos como se faz.

António Couto

ANEXOS:

  1. Leitura I da Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 (Sir 3, 3-7.14-17a)
  2. Leitura II da Festa da Sagrada Família de Jesus, Masria e José – Ano B – 31.12.2023 (Col 3, 12-21)
  3. Festa da Sagrada Familia de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 – Lecionário
  4. Festa da Sagrada Familia de Jesus, Maria e José – Ano B – 31.12.2023 – Oração Universal
  5. Festa de Santa Maria Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024 – Lecionário
  6. Festa de Santa Maria Mãe de Deus – Ano B – 01.01.2024 – Oração Universal
  7. Mensagem do Papa Francisco para o 57º Dia Mundial da Paz – 01.01.2024
  8. ANO B – O ano do evangelista Marcos

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