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Liturgia da Palavra
Festa da Sagrada Família – Ano C – 26.12.2021
Viver a Palavra
A celebração do Natal do Senhor coloca-nos de olhos postos no Presépio de Belém contemplando Deus que se faz homem na fragilidade e na debilidade da nossa natureza, mas também na beleza e na ternura de um recém-nascido que se faz sinal e presença do amor de Deus no coração da humanidade.
Contemplando este Menino que nasce para nós, contemplamos Maria e José. Maria que no Seu sim total e disponível acolheu o projeto do Altíssimo e José que com total confiança acolheu o sonho de Deus e aceitou ser guarda e protetor do Menino e de Sua Mãe. Deste modo, no Domingo dentro da Oitava do Natal somos convidados a dar graças pelo dom da família de Nazaré como modelo de vida familiar. Queremos aprender com Maria, José e o Menino, para que também cada um de nós e cada família se tornem um lugar de acolhimento dos projetos e sonhos de Deus.
Apontar a Família de Nazaré como modelo de vida familiar não pode ser de modo nenhum a apresentação de um modelo idílico e inalcançável de vida conjugal, pois como recorda o Papa Francisco na sua exortação apostólica sobre a família, muitas vezes «apresentámos um ideal teológico do matrimónio demasiado abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Esta excessiva idealização, sobretudo quando não despertámos a confiança na graça, não fez com que o matrimónio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário» (AL 36). Deste modo, eliminando qualquer visão idílica da Família de Nazaré, devemos tomar consciência que através de uma história humaníssima, marcada também por sofrimentos e cansaços, se desenvolve a humanidade livre e libertadora do amor de Jesus.
Tal como nos recorda a Liturgia da Palavra deste Domingo e, de modo particular o texto evangélico, a Família de Nazaré não é para nós um modelo de vida familiar porque a sua vida foi isenta de dificuldades e desafios, mas porque, não obstante todos os desafios e dificuldades, foram fiéis ao desígnio de Deus. Por isso, celebrar a festa da Sagrada Família é a ocasião privilegiada para agradecer a Deus o dom da vida familiar como lugar quotidiano da procura da vontade de Deus.
A família cristã, enquanto Igreja Doméstica, é lugar privilegiado para o encontro com Deus e os irmãos, lugar onde aprendemos a amar e a cuidar, a acolher Jesus e a levá-Lo aos outros. Por isso, no coração da vida familiar deve estar presente o gesto agradecido de Ana que tendo concebido e dado à luz o seu filho Samuel o confia ao Senhor: «eu o ofereço para que seja consagrado ao Senhor todos os dias da sua vida». Na verdade, a vida é um dom a agradecer e a consagrar ao Senhor como lugar de serviço a Deus e aos irmãos.
Este mesmo dinamismo que deve caracterizar a família cristã está presente no Evangelho na peregrinação anual a Jerusalém pela festa da Páscoa. Esta imagem da família peregrina recorda-nos que a família é um lugar permanente de peregrinação em duas direções: rumo a Jerusalém, isto é, para as coisas de Deus e, em seguida, rumo a Nazaré, símbolo da vida quotidiana e da atenção aos outros.
Deste modo, a Igreja, Família de famílias, tem a exigente tarefa de ser Mãe e Mestra. Mãe que a todos acompanha, integra e acolhe e Mestra exigente que aponta o caminho da vida familiar como lugar de realização e felicidade contemplando o modelo do lar de Nazaré. in Voz Portucalense
LEITURA I – Sir 3,3-7.14-17a (gr. 2-6.12-14
O livro de Ben-Sira (também chamado “Eclesiástico”), de onde foi extraída a primeira leitura deste domingo, é um livro sapiencial e que, como todos os livros sapienciais, pretende apresentar uma reflexão de carácter prático sobre a arte de bem viver e de ser feliz. Estamos no início do séc. II a.C., numa época em que o helenismo tinha começado o seu trabalho pernicioso, no sentido de minar a cultura e os valores tradicionais de Israel. Jesus Ben-Sira, o autor deste livro, avisa os israelitas para não deixarem perder a identidade cultural e religiosa do seu Povo. Procura, então, apresentar uma síntese da religião tradicional e da sabedoria de Israel, sublinhando a grandeza dos valores judaicos e demonstrando que a cultura judaica não fica a dever nada à brilhante cultura grega.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)
Refrão: Felizes os que esperam no Senhor e seguem os seus caminhos.
LEITURA II – Col 3,12-21
Paulo estava na prisão (possivelmente em Roma, anos 61/63) quando escreveu aos Colossenses. Algum tempo antes, Paulo havia recebido notícias pouco animadoras sobre a comunidade de Colossos. Essas notícias falavam da perigosa tendência de alguns doutores locais, que ensinavam doutrinas erróneas e afastavam os Colossenses da verdade do Evangelho. Essas doutrinas misturavam práticas legalistas, práticas ascéticas, especulações sobre os anjos e achavam que toda esta mistura confusa de elementos devia completar a fé em Cristo e comunicar aos crentes um conhecimento superior dos mistérios cristãos e uma vida religiosa mais autêntica.
Sem refutar essas doutrinas de modo direto, Paulo afirma a absoluta suficiência de Cristo e assinala o seu lugar proeminente na criação e na redenção dos homens.
O texto da segunda leitura pertence à segunda parte da carta. Depois de constatar a supremacia de Cristo na criação e na redenção (primeira parte), Paulo avisa os Colossenses de que a união com Cristo traz consequências a nível de vivência prática (segunda parte): implica a renúncia ao “homem velho” do egoísmo e do pecado, e o “revestir-se do homem novo”.in Dehonianos.
EVANGELHO – Lc 2,41-52
O Evangelho que nos é proposto é o final do “Evangelho da infância” de Lucas. Ora, já sabemos que a finalidade do “Evangelho da infância” não é fazer uma reportagem sobre os primeiros anos da vida de Jesus, mas sim fazer catequese sobre Jesus; nessa catequese, diz-se quem é Jesus e apresentam-se algumas coordenadas teológicas que vão, depois, ser desenvolvidas no resto do Evangelho.
A “catequese” de hoje situa-nos em Jerusalém. A Lei judaica pedia que os homens de Israel fossem três vezes por ano a Jerusalém, por alturas das três grandes festas de peregrinação (Páscoa, Pentecostes e Festa das Cabanas – cf. Ex 23,17-17). Ainda que os rabinos não considerassem obrigatória esta lei até aos treze, muitos pais levavam os filhos antes dessa idade. Jesus tem doze anos e, de acordo com o texto de Lucas, foi com Maria e José a Jerusalém celebrar a Páscoa.
É neste ambiente de Jerusalém e do Templo que Lucas situa as primeiras palavras pronunciadas por Jesus no Evangelho. Elas são, sem dúvida, o centro do nosso relato. in Dehonianos.
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
COM O MENINO NOS BRAÇOS E NO CORAÇÃO
Atravessamos ainda a Solenidade do Natal do Senhor, dado que esta Solenidade se prolonga durante oito dias (Oitava) até à Solenidade de Santa Maria Mãe de Deus, que se celebra no primeiro Dia de Janeiro.
O Natal do Senhor põe diante do nosso olhar contemplativo uma Família humilde e bela, Jesus, Maria e José, mas traz também consigo uma forte sensibilidade Familiar, tornando-se o tempo forte da reunião festiva das nossas Famílias. Estes dois acertos são importantes para se compreender a razão pela qual, no Domingo dentro da Oitava do Natal, a Igreja celebra a Festa da Sagrada Família de Jesus, Maria e José.
Os textos da Liturgia são outra vez preciosos. O Evangelho põe no nosso coração o último episódio do Evangelho da Infância de S. Lucas, conhecido por «Encontro de Jesus no Templo» (2,41-52). Na verdade, o texto refere, logo a abrir, que «os pais de Jesus iam todos os anos a Jerusalém pela Festa da Páscoa», certamente envoltos na intensa alegria com que os judeus piedosos acorriam ao Templo do Senhor nas três Festas de Peregrinação – Páscoa, Semanas e Tendas –, cantando: «Que alegria quando me disseram: vamos para a Casa do Senhor!» (Salmo 122,1). Eram oito dias de alegria filial e fraternal, uma vez que, na Casa do Senhor, todos eram e se sentiam verdadeiramente filhos e irmãos.
Mas este belíssimo episódio guarda ainda mais alguns sabores requintados. Primeira nota: diz-nos o texto que, nessa Páscoa, Jesus já tinha completado doze anos, que o mesmo é dizer que tinha passado da infância à idade adulta, e que, portanto, sobre ele incumbia agora também o dever de subir três vezes por ano a Jerusalém e de responder pessoalmente, sem a mediação dos pais, pelo cumprimento dos mandamentos de Deus, como ainda hoje se verifica na cerimónia pública chamada «bar mitswah» [= filho do mandamento], que os rapazes judeus piedosos realizam aos 12 anos.
Segunda nota: no regresso a Nazaré, após um dia de viagem, Maria e José aperceberam-se de que Jesus «não fazia caminho com eles», e ficaram preocupados e foram procurá-lo. Sinal importante para as restantes páginas do Evangelho e para nós: quando nos apercebermos de que Jesus não está a fazer caminho connosco, devemos ficar preocupados e ir à procura dele. Por outras palavras: não podemos perder Jesus. Podemos perder coisas e tralhas que atrapalham e sobrecarregam. Mas Jesus é a nossa vida (se o perdemos, perdemo-nos!), e é Ele que todos nos pedem: «Nós queremos ver Jesus!» (João 12,21). Se o perdemos, não o temos para dar!
Terceira nota: não o encontram onde e como seria de esperar, entre os parentes e conhecidos. Quarta nota: Jesus é encontrado três dias depois no Templo (Casa de Deus), num claríssimo aceno à Ressurreição (três dias) e ao verdadeiro parentesco e identidade de Jesus (Casa de Deus). Quinta nota: está sentado na cátedra (kathezómenos) no meio dos mestres. Então Ele é o Mestre, e o seu lugar é sempre no meio de nós a ensinar.
Sexta nota: a resposta serena de Jesus à sua mãe preocupada («Olha que o teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura», diz Maria): «Não sabíeis que é para mim necessário estar nas coisas do meu Pai?», responde Jesus. Mas era óbvio que, depois da cerimónia do «bar mitswah», competia a Jesus responder pessoalmente a Deus. Note-se ainda o confronto do «teu pai», de Maria, com o «meu Pai», de Jesus. E note-se também que Jesus não se ocupa simplesmente das coisas do Pai, mas está nas coisas do Pai. Expressão fortíssima, de intimidade e dedicação total, que implica a própria vida, e não um mero negócio de coisas exteriores.
Sétima nota: embora não compreendendo, Maria guardava todas estas palavras e acontecimentos, compondo-os (symbállousa) no seu coração. Expressão belíssima que mostra bem a altura do crente verdadeiro, que não tem de compreender tudo já, mas guarda e vai compondo palavras e acontecimentos divinos numa bela melodia, como quem compõe uma música, um poema, embebida e embebecida de sentido. Sim, vê-se bem que, tal como Jesus, também Maria não se ocupa, de vez em quando, com as coisas de Deus; ela está sempre nas coisas de Deus!
Dentro da temática da Família, o Antigo Testamento traz-nos hoje um extrato sapiencial retirado do Livro de Ben-Sirá (ou eclesiástico) 3,2-6.12-14, e que nos convida ao amor dedicado aos nossos pais sempre, para que o Senhor ponha sobre nós o seu olhar de bondade.
O Salmo 128 é a música suave, de teor didático-sapiencial, que canta uma família feliz e nos mostra a fonte dessa felicidade: a bênção paternal do Senhor. «Felizes os que esperam no Senhor, e seguem os seus caminhos» é a bela litania em que o refrão nos faz entrar hoje.
Finalmente, o Apóstolo Paulo, na Carta aos Colossenses 3,12-21, exorta esposos, pais e filhos ao amor mútuo, mostrando ainda de que sentimentos nos devemos vestir por dentro e de que música devemos encher o nosso coração. Salta à vista que a misericórdia, a bondade, a humildade, a mansidão, a longanimidade, o amor, o perdão, são os vestidos importantes para a festa, mas não se compram nem vendem por aí em nenhum pronto-a-vestir. De resto, vê-se bem que andamos todos bem vestidos por fora, mas andamos muitas vezes nus por dentro! E é para aqui que aponta a exortação de S. Paulo. Nesta época de bastante consumismo e vestidos novos, convém que nunca nos esqueçamos de Deus, pois é Ele, e só Ele, que veste carinhosamente o coração e as entranhas dos seus filhos.
António Couto
ANEXOS:
- Natal – Missa da Meia-Noite – I Leitura (Is 9, 1-6)
- Natal – Missa da Meia-Noite – II Leitura (Tito 2, 11-14)
- Natal – Missa da Meia-Noite – 24.12.2021 – Ano C – Lecionário
- Natal – Missa da Meia-Noite – Ano C – Oração Universal
- Natal – Missa do Dia – I Leitura (Is 52, 7-10)
- Natal – Missa do Dia – II Leitura (Heb 1, 1-6)
- Natal – Missa do Dia – Ano C – Lecionário
- Natal – Missa do Dia – Ano C – Oração Universal
- Festa Sagrada Familia – I Leitura (Sir 3,3-7.14-17a (gr. 2-6.12-14)
- Festa Sagrada Família – II Leitura (Col 3,12-21)
- Sagrada Familia – Ano C – 26.12.2021 – Lecionário
- Sagrada Familia – Ano C – 26.12.2021 – Oração Universal
- ANO C – Ano de Lucas
IV Domingo do Advento – Ano C – 19.12.2021
Viver a Palavra
Deus Criador e Senhor de todas as coisas, que em Cristo se faz homem, escolhendo a nossa humanidade frágil e limitada como lugar da revelação do Seu amor infinito, revela-nos a nova lógica do Reino, onde aquilo que é pequeno, que é pobre e que não se impõe se torna lugar de anúncio alegre e feliz da força de Deus. A Liturgia da Palavra deste IV Domingo do Tempo de Advento constitui-se como um belo testemunho desta certeza e, assim, a pequena aldeia de Belém é o lugar escolhido para o nascimento do Messias (Profecia de Miqueias), o seio da Virgem Maria torna-se morada e habitação do Filho do Altíssimo (Evangelho de S. Lucas) e o corpo humano é o lugar de manifestação de Deus entre os homens (Epístola aos Hebreus).
Como nos recorda S. Paulo no seu epistolário, Deus escolhe os pequenos e o que é fraco aos olhos do mundo, para precisamente aí manifestar a Sua grandeza. Deste modo, também nós próprios, não obstante as nossas limitações e fragilidades, nos sentimos incluídos no grande projeto de amor e felicidade que Deus tem para a humanidade.
Em Jesus Cristo e na força reveladora da Sua Incarnação não podemos olhar para a nossa condição humana limitada e frágil como um impedimento para nos aproximarmos de Deus e dos irmãos. Quando assumida e integrada, a nossa pequenez e debilidade tornam-se lugar permanente de apelo à conversão, um desafio para em cada dia ser mais e melhor, um convite a crescer e progredir na santidade que faz das nossas vidas irradiação da beleza, da bondade e da ternura de Deus.
Olhar assim a nossa fragilidade e pequenez é também um apelo a perceber como Deus se revela no nosso quotidiano, na simplicidade dos gestos e na descrição de tantas vidas disponíveis para o serviço do Evangelho. Por isso, exercitemos o nosso olhar e aprendamos a olhar para o mundo e para os homens e mulheres que connosco se cruzam nos trilhos do tempo e da história e saibamos encontrar no quotidiano da nossa vida a presença terna e próxima de Deus que cuida de nós, que nos toma pela mão e nos aponta o caminho da santidade.
Vencendo a nossa tentação tão humana de olhar apenas para aquilo que os outros fazem de mal, procuremos como Isabel louvar o Senhor por tudo aquilo que Ele faz de bom e de belo através daqueles que se cruzam connosco. Ao ver Maria, Isabel exclamou: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre» e nestas palavras Isabel manifesta como quando nos abrimos à presença do Espírito Santo podemos contemplar as maravilhas que Deus opera no coração da história.
Como Maria, que habitada pelo Verbo de Deus, não fica indiferente ao mundo à sua volta e sabendo que a sua parenta Isabel que é de idade avançada se encontra grávida, coloca-se «apressadamente» a caminho, também nós devemos aprender esta arte de ir apressadamente ao encontro de quem precisa da nossa ajuda, da nossa presença e da nossa solicitude. Como recordava o Papa Francisco aos jovens, comentando este texto evangélico, muitas vezes, na vida, perdemos muito tempo a questionar-nos «quem sou eu?» sem colocarmos aquela que é a pergunta mais decisiva para a descoberta da nossa identidade: «para quem sou eu?». A resposta a esta pergunta há-de ajudar-nos a descobrir a nossa verdadeira identidade, pois no serviço aos irmãos, concretizamos a graça da nossa filiação divina e proclamamos, com a vida, as palavras da epístola aos Hebreus: «Eis-Me aqui: Eu venho para fazer a tua vontade».in Voz Portucalense
LEITURA I – Miq 5, 1-4a
«Viver-se-á em segurança, porque ele será exaltado até aos confins da terra. Ele será a paz»
O profeta Miqueias viveu e exerceu o seu ministério em Judá, nos sécs. VIII/VII a.C. É originário de um meio campesino e conhece bem os problemas dos pequenos agricultores, vítimas de latifundiários sem escrúpulos. Por outro lado, a sua terra natal (Moreset Gat) está rodeada de fortalezas militares; e a presença nessas fortalezas de militares e de funcionários reais faz com que os habitantes dessa região conheçam um quadro de violência, de roubos, de impostos excessivos, de trabalhos forçados… O mais grave é que os opressores consideram que Deus está do seu lado e invocam as grandes tradições religiosas de Israel para justificar a opressão.
O livro de Miqueias começa por descrever (cap. 1-3) os graves pecados de Israel e de Judá sublinhando, sobretudo, os pecados sociais, apresentando-os como infidelidade grave aos compromissos assumidos no âmbito da “aliança” e denunciando esta “teologia da opressão”. No entanto, o texto que nos é hoje proposto está integrado na segunda parte do livro (que a maior parte dos comentadores admite não vir de Miqueias, mas sim de um profeta anónimo da época do exílio na Babilónia), onde se apresenta um conjunto de oráculos de salvação, destinados a animar a esperança do Povo (cap. 4-5).in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 79 (80)
Refrão: Senhor, nosso Deus, fazei-nos voltar, mostrai-nos o vosso rosto e seremos salvos.
LEITURA II – Hebr 10, 5-10
«Eis-me aqui: Eu venho para fazer a tua vontade»
A “Carta aos Hebreus” é um texto anónimo, escrito, provavelmente, pouco antes do ano 70 e destinado a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo. É uma comunidade que já não é de fundação recente e onde o entusiasmo inicial parece ter dado lugar a uma fé “morninha” e pouco comprometida; a perspetiva de novas dificuldades provoca o desânimo; e começa a haver um real perigo de desvios doutrinais.
A “carta” é uma apresentação do mistério de Cristo, sublinhando especialmente a dimensão sacerdotal da sua missão. Recorrendo à linguagem litúrgica judaica, o autor apresenta Jesus como o “sumo sacerdote” da nova “aliança”, que faz a mediação entre Deus e os homens. Na sequência, o autor aproveita para refletir sobre a condição cristã que deriva da missão sacerdotal de Cristo: os crentes, postos em relação com o Pai por Cristo Sacerdote, são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de ação de graças e de amor.
O texto que nos é proposto pertence à terceira parte da carta (Heb 5,11-10,39). Aí, o autor reflete sobre os traços primordiais do sacerdócio de Cristo.in Dehonianos.
EVANGELHO – Lc 1, 39-45
«Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre».
«Bem-aventurada aquela que acreditou no cumprimento de tudo quanto lhe foi dito da parte do Senhor».
O texto que nos é proposto faz parte do chamado “Evangelho da Infância”. Os estudos actuais falam do “Evangelho da Infância” como um género literário especial, que se pode chamar “homologese”: é um género que não pretende ser um relato fidedigno sobre acontecimentos, mas antes uma catequese destinada a proclamar as realidades salvíficas que a fé prega sobre Jesus (que Ele é o Messias, o Filho de Deus, o Deus connosco). Desenvolve-se em forma de narração e recorre às técnicas do midrash haggádico (uma técnica de leitura e de interpretação do Antigo Testamento usada pelos rabbis judeus na época em que foi escrito o Novo Testamento).
A “homologese” utiliza, de preferência, tipologias: factos e pessoas do Antigo Testamento encontram a sua correspondência em factos e pessoas do Novo Testamento. Pelo meio, misturam-se elementos apocalípticos (aparições, anjos, sonhos), destinados a fazer avançar a narração e a explicitar as ideias teológicas e a catequese sobre Jesus. É esta mistura de elementos que podemos encontrar no Evangelho de hoje: mais do que uma informação “jornalística” sobre factos concretos, trata-se de uma catequese sobre Jesus, feita a partir de um conjunto de referências tiradas da mensagem e das promessas do Antigo Testamento.in Dehonianos.
Para os leitores:
A primeira leitura é constituída essencialmente pela palavra dirigida pelo Senhor ao Povo de Israel. Deste modo, deve ter-se em atenção a introdução ao discurso direto do Senhor Deus, que deve ser lido com o tom adequado de quem anuncia uma mensagem de esperança e salvação.
Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado com as introduções ao discurso direto: «eu disse»; «primeiro disse» e «depois acrescenta».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
A liturgia deste Domingo IV do Advento, já quase em cima do Natal do Senhor, convida-nos a contemplar com amor emocionado algumas joias da Escritura Santa.
Em Primeiro lugar, porque o Evangelho tem sempre o primeiro lugar, o Evangelho de Lucas 1,39-45. As Igrejas do Ocidente conhecem este episódio por «Visitação» de Maria a Isabel, enquanto que os nossos irmãos do Oriente preferem denominá-lo «Saudação» de Maria a Isabel. O episódio é deslumbrante, e começa por nos mostrar Maria a correr sobre os montes para ir ao encontro de Isabel. Ao correr sobre os montes, Maria reveste-se dos traços sublimes do mensageiro de Isaías 52,7, que diz: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia a Paz, que leva Boas Novas a Sião!». Claramente, Maria aparece como portadora de Notícias Felizes. Mas, ao correr sobre os montes, Maria reveste-se também do perfume do amor novo do Cântico dos Cânticos 2,8, onde se ouve a amada a dizer: «A voz do meu amado, ei-lo que vem correndo sobre os montes!». Assim, com esta simples nota narrativa, Maria aparece-nos como uma Mulher Bela, Encantada, cheia de Alegria, Esposa Amada e Habitada por Notícias Felizes, pela Notícia Feliz, isto é, pelo Evangelho em Pessoa, Jesus, que Maria humildemente serve e ternamente apresenta, mais tarde a Senhora Odighítria, venerada nas Igrejas do Oriente, que com a mão aponta o caminho verdadeiro, o seu Filho Jesus, que leva ternamente ao colo.
Seria bom que nos demorássemos longamente a contemplar esta figura de Maria, bela, leve e feliz. Contemplando esta figura cheia de beleza e de leveza, estamos já a ver, em contraluz, o retrato dos Evangelizadores do Evangelho, também belos, leves e felizes e habitados por um amor novo: sem ouro nem prata nem cobre nem alforge nem duas túnicas. E, se olharmos agora um bocadinho para nós, verificaremos logo, em contraponto, que talvez levemos peso a mais!
Esta Mulher Bela, Esposa Amada e Feliz, saúda Isabel. Não pode senão encher de Alegria o mundo de Isabel, que irrompe naturalmente num hino de louvor, acrescentando mais umas palavras à oração da «Ave-Maria», iniciada pelo Anjo: «Ave [Maria], cheia de graça, o Senhor é contigo», disse o Anjo (Lucas 1,28). Acrescenta agora Isabel: «Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre [Jesus]» (Lucas 1,42), e aponta logo a seguir Maria como «Mãe do meu Senhor» (Lucas 1,43), desvelando o seu nome grande de «Mãe de Deus», começo da «[Santa Maria], Mãe de Deus».
A segunda joia da Escritura Santa, que hoje nos é dado contemplar, é o texto singular da profecia de Miqueias 5,1-4, que começa: «E tu, Belém de Éfrata, pequena entre os clãs de Judá, de ti sairá para mim aquele que será o governador (môshel) de Israel» (Miqueias 5,1). E termina, afirmando: «E ele será a Paz!» (Miqueias 5,4).
Postando-se na esteira de luz de Isaías, Miqueias vê também que vai nascer um mundo novo. Mas de forma diferente do citadino Isaías, o camponês Miqueias não vê o mundo novo provir do Palácio ou do Templo da capital. Do Palácio e do Templo, do Rei e dos Sacerdotes, o humilde Miqueias apenas vê sair exploração, opressão, opulência, mentira e violência. É por isso que Miqueias critica asperamente os grandes da Capital que esbulham o povo, cortando a sua carne aos pedaços, e metendo-a na panela (Miqueias 3). Por isso, quando Miqueias ousa sonhar e vislumbrar um mundo novo, não é para a Capital que ele olha, mas para a província. E o condutor deste mundo novo não é um Rei nem um filho de Rei, mas um môshel, um contador de histórias ou de parábolas (meshalîm, sing. mashal), portanto, um guia sábio, simples e direto e penetrante, como Jesus, que guiará o mundo com o sabor do sol e do sal da sua humilde sabedoria. Genial esta avenida de sentido que atravessa as Escrituras Santas: Miqueias canta um môshel, um contador de histórias e de parábolas, como condutor de um mundo novo; os Evangelhos apresentam Jesus, que fala apenas em parábolas, e sem parábolas nada lhes falava (Mateus 13,34; Marcos 4,34). E nós sabemos bem que Jesus não nos guia com exércitos e carros de combate, leis, polícia, alfândega ou pesados impostos, mas com a brancura dos lírios do campo e a inocente alegria dos pássaros do céu! É por isso que Miqueias evita Jerusalém, e se volta para Belém. Os Evangelistas Mateus e Lucas, saberão ler muito bem esta preciosa indicação de Miqueias.
A terceira joia é o texto da Carta aos Hebreus 10,5-10, em que Cristo supera ao mesmo tempo o sacerdócio antigo e os sacrifícios rituais da antiga liturgia do Templo. Cristo é o novo Sumo-Sacerdote que inaugura um culto novo, oferecendo-se a si mesmo ao Pai, por nós, para nós. Nós somos do tempo, não das coisas e dos animais, mas da pessoa.
Enfim, o Salmo 80, com o nosso desejo expresso de ver o rosto de Deus: «Mostrai-nos, Senhor, o vosso rosto, e seremos salvos!». E o Natal do Senhor ali tão perto!
D. António Couto
ANEXOS:
III Domingo do Advento – Ano C – 12.12.2021
Viver a Palavra
A alegria cristã nasce do encontro íntimo e pessoal com Jesus Cristo, o Salvador e Redentor da humanidade, Aquele que oferece um sentido para a vida e desafia a percorrer com esperança e confiança o caminho da santidade. Na Liturgia da Palavra deste Domingo, o convite à alegria está estritamente ligado com o permanente desafio à conversão e à mudança de vida: «Que devemos fazer?». Por isso, alegria e conversão são palavras que caminham de mãos dadas na nossa vocação batismal porque nos recordam que a verdadeira alegria nasce de um coração que dia após dia se renova pela força transformadora do amor de Deus.
O tempo de Advento está revestido da jubilosa esperança de um Deus tão próximo de nós que assume a nossa natureza humana, para nos ensinar a verdadeira arte de nos fazermos próximos uns dos outros. «O Senhor está próximo» e esta certeza da proximidade de Deus, como nos recorda S. Paulo traduz-se num insistente convite à alegria: «Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos». Inspirados por estas palavras que compõe a antífona de entrada deste dia, este Domingo é designado como Domingo Gaudete, isto é, Domingo da Alegria e, assim, a Liturgia da Palavra, as orações e a simbologia deste Domingo estão repletas de um convite à alegria e à esperança. A palavra alegria aparece 16 vezes na Liturgia da Palavra e nas orações da missa deste dia. E se contarmos palavras relacionadas com o convite à alegria como rejubilai e exultai, então o número sobre para 24 ocorrências. Mas esta alegria não é apenas um mero contentamento, nem um sentimento fugaz e efémero de bem-estar e bom humor. É alegria que nasce do Evangelho, a alegria dos que reconhecem que a sua vida se abre a um bem maior e que não se contentam com menos que Deus e o Seu amor, revelado em Jesus Cristo como um serviço concreto aos irmãos.
Deste modo, acolhemos o convite de Sofonias e a exortação de Paulo aos Filipenses, conscientes que alegria cristã é a alegria daqueles que querem ver realizada na terra a verdade e a justiça, a alegria daqueles que não se deixam diminuir no seu desejo, nem deixam este desejo divergir e dissipar-se em alegrias fugazes que acabam por ser fontes de descontentamento próprios e alheios mas que procuram a satisfação plena que só em Deus se pode encontrar, pois é Deus o autor das mais profundas aspirações do nosso coração.
Esta alegria que se renova no encontro com Jesus Cristo reclama a disponibilidade de coração que João Baptista anuncia com o seu batismo de penitência. Por isso, também nós, interpelados pela presença e pela palavra do percursor, perguntamos como as multidões, os publicanos e os soldados: «que devemos fazer?». Para cada um, João tem uma palavra concreta e um desafio preciso. A escuta da Palavra não nos pode deixar indiferentes e o convite à alegria reclama movimentos concretos de conversão, pois um coração que em cada dia cresce na fidelidade ao Evangelho frutifica saboreando a alegria nova que brota do coração de Deus.
Os frutos da conversão que João Baptista aponta e reclama referem-se sempre ao nosso comportamento com o próximo. Fica claro, que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus passa sempre pelos nossos gestos com o próximo. No Evangelho o verbo «amar» traduz-se sempre pelas formas verbais «dar» e «dar-se». Deste modo, preparemos o Natal do Senhor com um coração agradecido pela presença terna e misericordiosa de Deus em Jesus Cristo e façamos da conversão verdadeira estrada que nos conduz à santidade.in Voz Portucalense
LEITURA I – Sof 3,14-18a
«Clama jubilosamente, filha de Sião; solta brados de alegria, Israel»
O profeta Sofonias prega em Jerusalém, durante a primeira fase do reinado de Josias (séc. VII a.C.). Nas décadas anteriores, o rei ímpio Manassés abriu o país aos costumes dos povos vizinhos, erigiu altares aos deuses estrangeiros (chegando a colocar no templo de Jerusalém a imagem da deusa Astarte), dedicou-se à adivinhação e à magia e multiplicou as injustiças, sobretudo contra os mais pobres e mais débeis. Entretanto, subiu ao trono o rei Josias, que procurou alterar este estado de coisas e promover uma verdadeira reforma religiosa; mas, na época em que Sofonias exerce o seu ministério profético, os erros de Manassés ainda se fazem sentir.
Neste contexto, Sofonias ataca a idolatria cultual, as injustiças, o materialismo, a despreocupação religiosa, os abusos da autoridade: todo este quadro configura uma situação de grave infidelidade à “aliança”; Deus não irá, diz o profeta, pactuar com esta situação.
No entanto, a intenção de Sofonias não é somente anunciar o castigo… A sua mensagem é, antes de mais, um apelo à conversão, primeiro passo para a salvação. O que o profeta pede ao seu Povo é que se volte de novo para Jahwéh, assuma as suas responsabilidades para com Deus e viva de acordo com os compromissos assumidos no âmbito da “aliança”. O texto que vamos ver, no entanto, está incluído nas “promessas de salvação”: aí, o profeta traça o quadro desse tempo novo de alegria e de felicidade, que há-de suceder-se à conversão de Judá.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Is 12,2-3.4bcd.5-6
Refrão: Povo do Senhor, exulta e canta de alegria
LEITURA II – Filip 4,4-7
«Alegrai-vos sempre no Senhor. Novamente vos digo: alegrai-vos»
Paulo, na prisão, recebeu a ajuda fraterna dos Filipenses. Retribui com uma carta em que manifesta o seu afecto pela comunidade cristã de Filipos. Depois de agradecer a Deus pela sensibilidade dos Filipenses ao anúncio do Evangelho (cf. Flp 1,11), de informar a comunidade sobre a sua situação pessoal (cf. Flp 1,12-26), de dirigir exortações várias à comunidade (cf. Flp 1,27-2,18), de dar notícias sobre Timóteo e Epafrodito (cf. Flp 2,19-30) e de denunciar as acusações que lhe fazem os seus adversários (cf. Flp 3,1-21), Paulo – consciente de que ainda nem tudo é perfeito nesta comunidade exemplar – apresenta um conjunto de recomendações diversas de carácter prático. Este texto contém algumas dessas recomendações.in Dehonianos.
EVANGELHO – Lc 3,10-18
«As multidões perguntavam a João Baptista: ‘Que devemos fazer?’».
«Eu baptizo-vos com água, mas está a chegar quem é mais forte do que eu, e eu não sou digno de desatar as correias das suas sandálias»
O Evangelho de hoje vem na sequência daquele que refletimos no passado domingo: o profeta João Baptista indica, com pormenores concretos e a grupos concretos, como proceder para percorrer esse caminho de “metanoia” e preparar a “vinda do Senhor”.in Dehonianos
Para os leitores:
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A primeira leitura constitui-se como um convite à alegria, dirigido pelo profeta Sofonias a Jerusalém. Este convite está fundamentado nesta certeza consoladora: «o Senhor teu Deus está no meio de ti». A proclamação deve ter em conta o tom alegre que marca a leitura, tirando proveito das formas verbais no imperativo: clama, solta, exulta, rejubila.
O mesmo tom alegre e exortativo está presente na segunda leitura. Uma especial atenção deve ser dada ao início da leitura, de modo que o imperativo «alegrai-vos» repetido duas vezes e o advérbio de modo «novamente» tenham a força que transmitem, pois marcam o tom de toda a leitura.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
Como tivemos oportunidade de ver e de sentir, o Evangelho do Domingo II do Advento (Lucas 3,1-6) rasga este mundo ao meio de forma clara e impiedosa. Diz o narrador, com a precisão do bisturi, que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Pilatos, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar esta lista, incluindo nela outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Salmo 149,6; Juízes 3,16-22; Hebreus 4,12). Então, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e poderoso, autorreferencial, impiedoso, insensível e indiferente, e, para espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! Com esse bisturi da Palavra, João Batista pode sempre limpar (João 15,3) o silvado que nos enche os ouvidos, lavar as gorduras que embotam o nosso humano coração e desfazer, com o martelo pneumático, o pedregulho que petrifica o nosso quotidiano.
Aí está, então, no Evangelho deste Domingo III do Advento (Lucas 3,10-18), outra vez João Batista em cena, irrompendo agora com o bisturi da Palavra direto aos ouvidos dos homens deste tempo, ouvidos obstruídos por mato e por silvas, anunciando que o tempo está maduro para limpar a eira e recolher o trigo, que a hora é de frutos novos!
«E nós que devemos fazer?» (Lucas 3,10.12.14), perguntam as multidões, os publicanos, os soldados. Perguntamos nós também. Responde João Batista, que acaba de abrir caminho por entre o mato e as silvas que obstruem o caminho que vai dos nossos ouvidos até ao nosso coração empedernido: vós não vos canseis de dar, não roubeis, não pratiqueis a injustiça, não façais violência! Amai! Reparemos que todos os frutos de conversão que João Batista menciona e reclama se referem sempre ao nosso comportamento para com o próximo. Fica claro que a conversão, isto é, o nosso voltar-se para Deus, passa sempre pelos nossos gestos para com o próximo, nomeadamente pela partilha para além do impensável. Se eu tenho duas túnicas, e o meu próximo nenhuma, devo dar-lhe uma. Fica então claro que, nesta nossa sociedade, em que poucos têm muito, muitíssimo, quase tudo, e os outros nada, andamos a brincar com o Evangelho.
Mas este verbo «partilhar» é terrível. Sem darmos por isso, é a última palavra que queremos ouvir. Na verdade, «partilhar» desvenda e despoja-nos da nossa falsa boa vontade, da nossa generosidade virtual, do nosso vão sentimentalismo religioso, enfim, da nossa hipocrisia. Partilhar não é «depositar» nos outros apenas o supérfluo, as sobras. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. Mas João Batista, verdadeiro guardião da fronteira entre este mundo que passa e o mundo que vem, anuncia também uma Presença nova, a d’Aquele-Que-Vem, com o Espírito, que dá a vida verdadeira: ei-lo que vem, o noivo, o esposo, aquele de quem eu, diz João Batista, não tenho o direito nem o poder de desatar a correia da sandália!
Desatar a correia da sandália. Não é de um simples gesto de humildade que se trata. A sandália leva-nos para o campo do direito de posse e também do direito matrimonial. Basta ler o Livro do Deuteronómio 25,5-9 sobre a Lei do Levirato e o Livro de Rute 4,7-10 acerca do casamento de Booz com Rute. O noivo, que é o primeiro a ter o direito de desposar a noiva, se quiser prescindir desse direito em favor do segundo, tira a sua própria sandália (ou é-lhe retirada) e entrega-a ao segundo na ordem do direito. Era esta a prática do direito matrimonial no antigo Israel. João Batista não pode desatar a sandália daquele que tem o direito à noiva. Só este é que é o noivo, o esposo. João Batista não é o noivo, mas indica-o. Ei-lo que está a chegar! O esposo é Cristo. E a esposa é do esposo. A hora é de alegria, é de amor, é de frutos de alegria e de amor!
Portanto, «Alegrai-vos sempre no Senhor!», porque «o Senhor está próximo!», grita de alegria o Apóstolo Paulo aos ouvidos dos cristãos de Filipos (Filipenses 4,4-7). E a lição é para nós também.
E o Profeta Sofonias (3,14-18) mantém alta a tonalidade festiva: «Rejubila, filha de Sião!,/ Solta gritos de alegria, Israel!»,/ «porque o Senhor está no meio de Ti!». Também este intenso convite é para nós, hoje, e deve ser vivido por nós, hoje e aqui, reunidos em assembleia litúrgica festiva, que confessamos uma e outra vez: «Ele está no meio de nós!».
Sempre em tom de festa e de alegria, o Salmo Responsorial, hoje um hino de louvor retirado de Isaías 12,3-6, deixa a nossa alma cheia de canções, fazendo-nos repetir (e nós repetimos o que amamos): «Povo do Senhor, exulta e canta de alegria!», ou «Exultai de alegria, porque está no meio de vós o Santo de Israel!». Sim, o povo de Deus, a sua Igreja Una e Santa, vive da música de Deus, cantando com um dos mais belos versos da inteira Escritura: «Minha força e meu canto Yah!» (Salmo 118,14; Isaías 12,2; cf. Êxodo 15,2). Yah de YHWH, como quando cantamos «Alelu-yah!» [= Louvai Yah], louvai Deus, o nosso Deus, Aquele que está no meio de nós, hoje e sempre, operando maravilhas.
Por tudo isto, e não é pouco, este Domingo III do Advento é chamado «Domingo laetare», «Domingo da alegria». Que o seja de verdade nos nossos corações. Deixemo-nos, então, atravessar pela Alegria, e sintamos bem fundo, para além da capa do nosso sentimentalismo religioso, o bisturi da Palavra de Deus e o martelo pneumático do Espírito.
António Couto
ANEXOS:
II Domingo do Advento – Ano C – 05.12.2021
Viver a Palavra
O Evangelho deste segundo Domingo do Tempo do Advento abre com a apresentação do quadro político e religioso em que se enquadra esta passagem evangélica. Numa primeira abordagem do texto, poderia parecer apenas uma apresentação do cenário político e religioso em que se insere a missão de João Baptista, apresentando-nos o seu período histórico e a sua geografia. Contudo, percebemos como o Evangelista S. Lucas nos conduz mais longe e nos faz entrar na dinâmica salvífica que Deus estabelece com a humanidade.
Na verdade, emergem sete nomes próprios que são o mapa do poder de então. O número sete é sinónimo de totalidade e representa todo o poder e autoridade de cada época e de cada lugar. Diante desta geografia de homens poderosos e instalados em belos palácios, irrompe um deserto, uma palavra dirigida com amor e um homem chamado João. A Palavra, lançada por Deus à Terra como generoso semeador, passa ao lado dos poderosos e instalados e encontra acolhimento no coração de João no deserto.
A lógica de Deus é bem diferente da lógica humana! Deus escolhe-nos a todos. Deus propõe a todos a Sua palavra cheia de amor e apelo à renovação do coração, mas apenas os corações disponíveis a podem escutar. A Palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, mas nesta frase evangélica pode muito bem figurar o nome de cada um de nós, pois hoje, neste contexto concreto e nesta geografia em que habitamos, a Palavra de Deus é dirigida a mim e a ti, a cada homem e a cada mulher, aos corações generosos e disponíveis para acolher a Boa Nova da salvação. Mas, quantas vezes, esta palavra passa à nossa porta sem a deixarmos entrar como aconteceu com os poderosos daquele tempo. Nem mesmo Anás e Caifás foram capazes de sentir a tão desejada chegada do Messias.
A palavra dirigida a João não deixou indiferente este homem que habita no silêncio e na austeridade do deserto. Movido pela palavra, percorre a região do Rio Jordão, anunciando que a novidade do Reino exige corações novos, purificados pela penitência e libertos do pecado e assim, cumprindo-se a profecia de Isaías, uma voz clama no deserto: «Preparai o caminho do Senhor».
O tempo de Advento reaviva em nós o desejo de sermos verdadeiros ouvintes da Palavra e convida-nos a entrar no mais fundo do coração para nos interrogarmos sobre o efeito que a Palavra de Deus tem na nossa vida. Aqueles que acolhem de verdade a Palavra, como João, sentem-se impelidos a sair de si mesmos, convertendo-se em discípulos missionários, irradiando nas suas vidas o que cantamos no Salmo Responsorial: «grandes maravilhas fez por nós o Senhor: por isso exultamos de alegria».
Nesta alegre espera do Senhor, proclamando as maravilhas que Ele operou e continua a operar no coração do Seu povo, somos convidados a renovar no nosso coração o desejo de sermos «puros e irrepreensíveis para o dia de Cristo», como nos recorda S. Paulo. Mas porque muitas vezes os dramas e desafios deste mundo parecem turbar a nossa esperança e desalentar o nosso coração, Baruc anuncia que a tristeza e o luto que muitas vezes nos envolvem devem dar lugar à alegria contagiante e à jubilosa esperança «porque Deus conduzirá Israel na alegria, à luz da sua glória, com a misericórdia e a justiça que d’Ele procedem».in Voz Portucalense
LEITURA I – Bar 5,1-9
«Deus conduzirá Israel na alegria, à luz da sua glória, com a misericórdia e a justiça que d’Ele procedem»
O “livro de Baruc” é um texto de autor desconhecido, embora se apresente como tendo sido redigido por Baruc, “secretário” de Jeremias, durante o exílio na Babilónia (cf. Bar 1,1-2). No entanto, a crítica interna revela (pelos dados pessoais que não quadram com aquilo que conhecemos de Jeremias, bem como pelo desenvolvimento de ideias e de perspetivas que são claramente posteriores à época do exílio) que é impossível atribuir esta obra ao “secretário” de Jeremias. O mais provável é que seja um texto escrito durante o séc. II a.C. na diáspora judaica. O autor convida os habitantes de Jerusalém a celebrar uma liturgia penitencial e exorta-os à reconciliação com Jahwéh.
O texto que nos é proposto está inserido na 4ª parte do livro, integrado numa exortação e consolação a Jerusalém – muito ao estilo do Deutero-Isaías. Depois de convidar à confissão dos pecados (cf. Bar 1,15-3,8), o autor manifesta a certeza de que Israel, iluminado pela luz da sabedoria, voltará ao “temor de Deus” (cf. Bar 3,9-4,4). Seguir-se-á o perdão; por isso, o profeta convida Jerusalém a ter coragem (cf. Bar 4,5-37) e a alegrar-se com a atitude misericordiosa de Jahwéh, em favor do seu Povo pecador (cf. Bar 5,1-9).in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 125 (126)
Refrão: O Senhor fez maravilhas em favor do seu povo.
LEITURA II – Filip 1,4-6.8-11
«Peço que a vossa caridade cresça cada vez mais em ciência e discernimento»
A Carta aos Filipenses é, talvez, a mais afetuosa das cartas de Paulo. É dirigida a uma comunidade a que Paulo se afeiçoou, que ama Paulo, que o ajuda e que se preocupa com ele.
No momento em que escreve, Paulo está na prisão (em Éfeso?). Dos Filipenses, recebeu dinheiro e o envio de Epafrodito, um membro da comunidade, encarregado de ajudar Paulo em tudo o que fosse necessário. Enviando de volta Epafrodito, Paulo agradece, dá notícias, informa a comunidade sobre a sua própria sorte e exorta os Filipenses à fidelidade ao Evangelho.
O texto da segunda leitura faz parte da “ação de graças” com que Paulo inicia a carta: ele agradece a Deus a fidelidade dos Filipenses e o seu empenho na difusão do Evangelho.in Dehonianos.
EVANGELHO – Lc 3,1-6
«Foi dirigida a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto».
«Ele percorreu toda a zona do rio Jordão, pregando um baptismo de penitência para a remissão dos pecados»
«Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas»
O texto de hoje segue-se imediatamente ao “evangelho da infância”, na versão lucana. Aqui começa, oficialmente, o Evangelho – isto é, o anúncio da Boa Nova de Jesus. Antes de começar a descrever a ação libertadora e salvadora de Jesus no meio dos homens, Lucas vai apresentar João Baptista, o profeta que veio preparar a chegada do Messias de Deus.in Dehonianos
Para os leitores:
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A proclamação da primeira leitura deve ser marcada pelo tom alegre e cheio de esperança que ecoa da profecia de Baruc e por isso, deve ter a forma de um feliz anúncio que anima a caminhada dos crentes.
A segunda leitura não apresenta nenhuma dificuldade relevante
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
UM CAMINHO DIREITINHO AO CORAÇÃO
- Sempre considerei o texto de Lucas 3,1-6, que constitui a passagem do Evangelho que temos a graça de ouvir neste Domingo II do Advento, como uma das páginas mais admiráveis, e, ao mesmo tempo, mais implacáveis que me vieram ter à mão. À primeira vista, parece que o narrador pretende apenas situar as principais figuras e os principais acontecimentos da salvação bem no coração da história e da geografia humanas. É assim que o vemos traçar com rigorosa precisão a vinda da Palavra de Deus sobre João Batista, no deserto, no 15.º ano do império (hêgemonia) de Tibério (Lucas 3,1). Como Tibério reinou de 14 a 37, o 15.º ano do seu governo corresponde, segundo o cálculo comum, ao ano 28-29, ou, segundo o cálculo siríaco, ao ano 27-28, sempre de outono a outono.
- Se a pretensão do narrador fosse apenas a de situar as figuras de João Batista e, sobretudo, Jesus, no centro da história de então, bastava a referência precisa que faz a Tibério. Mas o narrador acrescenta-lhe quatro nomes, que têm a ver com a divisão do território do reino de Herodes o Grande (37-4 a. C.): Pôncio Pilatos, governador romano da Judeia (26-36 d.C.), que condenará Jesus à morte na cruz (Lucas 23,24), como recitamos no Credo; Herodes Antipas, responsável pela prisão e decapitação de João Batista (Lucas 3,20; 9,9), e que, enquanto tetrarca da Galileia (4 a.C-39 d.C.), tem também jurisdição sobre Jesus (Lucas 13,31), sendo esse o motivo pelo qual Pilatos lhe enviará Jesus (Lucas 23,6-12). Estas duas figuras estão diretamente ligadas à morte violenta de Jesus e de João Batista. As menções de Filipe, tetrarca da Itureia e da Traconítide, regiões que se estendiam a norte e oriente do Mar da Galileia, e de Lisânias, tetrarca de Abilene, que se situava na Beqaa libanesa, parecem servir para mostrar que a história de Jesus e a salvação que Ele traz têm a ver, não apenas com os hebreus, mas com todos os povos, até os mais insignificantes, hoje diríamos, com as periferias. Os nomes de Anás e Caifás, sumos-sacerdotes de 5 a.C. a 15 d.C. e de 18 a 36 d.C., respetivamente, trazem para a cena o poder religioso judaico, que se escandalizou com o comportamento de Jesus e solicitou a sua condenação à morte.
- Ora bem, é este mapa do mundo civil e religioso que é aberto ao meio de forma clara e impiedosa pela Palavra de Deus (rhêma Theoû) que veio como um acontecimento (egéneto) sobre João Batista, no deserto (Lucas 3,2). Então, recebendo a página de outra maneira, a mais intensa, o elenco dos nomes dos grandes do mundo de então não traduz tanto a pretensão do narrador de fazer história. Em vez disso, com a precisão do bisturi, quer dizer-nos que a Palavra de Deus passa ao lado dos senhores deste mundo, e cita Tibério César, Herodes Antipas, Filipe, Lisânias, Anás e Caifás, e nós podemos sempre atualizar este elenco, incluindo nele outros nomes e o nosso também. Aí está o golpe a sangrar do bisturi de dois gumes que é a Palavra de Deus (Salmo 149,6; Hebreus 4,12). De forma grandemente sintomática, a Palavra de Deus passa ao lado deste mundo rico e saciado, poderoso e religioso, impiedoso e insensível, e, para grande espanto nosso, vai cair sobre um pobre, João Batista, que não habita em palácios, mas no deserto! E, tal como na primeira página do Livro do Génesis, a Palavra de Deus dita e feita veio (wayhîTM; egénetoLXX) sobre o caos (Génesis 1,3), ordenando-o e imprimindo-lhe um sentido, sendo depois ordenado ao homem que continuasse essa tarefa, aqui está um novo sentido imprimido à caótica história humana, sintomaticamente não pelos ricos e importantes, mas pelos pobres, e também não nas capitais, mas nas periferias, no deserto!
- No deserto nada é obra das mãos do homem. Nada é idolátrico, portanto. É tudo obra das mãos de Deus. Nova criação à vista, onde irrompe outra vez a voz de Deus: uma voz que nunca se ouviu, um silêncio que nunca se calou! Caminhos novos, retificados, plenificados. Pura engenharia divina. A salvação de Deus ao alcance de todos. Universalidade. É significativo que, ao contrário de Mateus 3,3, de Marcos 1,3 e de João 1,23, que citam apenas Isaías 40,3, Lucas alarga a citação a Isaías 40,3-5, para incluir que «toda a carne verá a salvação de Deus». «Toda a carne», isto é, toda a humanidade. Como habitualmente, Lucas é universalista e missionário (Evangelho missionário), e quer que a voz criadora de Deus desenhe caminhos novos para todos, retina em todos os ouvidos e leve a salvação a todos os corações.
- Este Domingo II do Advento serve-nos também a delícia de Baruc 5,1-9, isto é, todo o Capítulo 5 do Livro deuterocanónico de Baruc. Baruc passa por ser o secretário de Jeremias. Mas o Livro de Baruc, só conhecido em grego, é tardio. E canta, de forma esplendorosa, a cidade de Jerusalém personificada como Esposa e como Mãe. Esposa de Deus, e como tal maravilhosamente vestida e adornada, e como Mãe dos filhos de Deus, que regressam festivamente a Casa, vindos dos quatro cantos do mundo, unidos e reunidos, livres e felizes, saídos de todas as opressões, de todos os exílios, de todas as orfandades.
- Por detrás desta Esposa bela e Mãe radiante, pode ver-se em filigrana a Noiva do Apocalipse, bela como uma Esposa adornada para o seu Esposo, a Igreja nossa Mãe. No texto de Baruc, esta Esposa e Mãe recebe um nome novo, dado por Deus. Quando é Deus a dar o nome, isso significa criar: nova criatura, dileta, imagem perfeita de Deus, filha do amor, mãe do amor. Nós, que formamos esta Igreja, Esposa bela e Mãe radiante, não podemos hoje deixar de cantar bem alto a nossa gratidão e a nossa alegria. Impõe-se ainda que façamos da nossa Igreja local, da nossa Paróquia, onde nos reunimos, «a Casa carinhosa e acolhedora de Deus no meio das casas dos seus filhos e das suas filhas», para o dizer com as palavras belas de S. João Paulo II, na Exortação Apostólica Christifideles laici[30 de Dezembro de 1988], n.º 26), que alguns anos antes já tinha dito, no mesmo sentido, que a vocação da paróquia «é a de ser a casa de família, fraterna e acolhedora» (Exortação Apostólica Catechesi tradendae[16 de Outubro de 1979], n.º 67).
- Para dizer esta alegria filial, batismal, temos de cantar que «o Senhor fez maravilhas em favor do seu povo». É o Salmo 126, o canto do regresso a Casa, de um sonho feliz, da estação das canções e das colheitas. Verdadeiramente Deus cuida de nós. O Canto ritmado deste Salmo serve para nos abrir bem os olhos do coração para vermos bem as inumeráveis maravilhas com que Deus enche os nossos caminhos todos os dias. Entre a sementeira e a ceifa, entre a dor e a alegria, o inverno e a primavera, a semente não erra e não mente. Segue o seu curso natural. Suavemente. Aí está, portanto, outra vez a jubilosa procissão dos exilados! E nós, extasiados, como quem sonha, a boca cheia de riso e os lábios de canções.
- E aí está o princípio da Carta de S. Paulo aos Filipenses (1,4-6.8-11). Filipos foi a primeira comunidade cristã fundada por Paulo em solo europeu, aí pelo ano 49 ou 50. Quanta alegria, quanta ternura, quanto amor, quanta sensibilidade cristã perpassa esta bela página de São Paulo. Deliciemo-nos. Ser cristão, filho de Deus, membro desta Igreja Esposa e Mãe, é deliciar-se e ser delicioso. Este é o caminho novo que urge abrir direitinho ao nosso coração e ao coração da humanidade.
António Couto
ANEXOS:
I Domingo do Advento – Ano C – 28.11.2021
Viver a Palavra
O texto do Evangelho para este Domingo, começa por evocar os sinais presentes «no sol, na lua e nas estrelas» e descreve o modo como «as forças celestes serão abaladas». Os astros são o relógio cósmico a partir do qual a humanidade ritma o seu tempo e constrói a sucessão dos dias e dos anos: calculamos os anos da nossa vida pelas voltas dadas ao sol; os navegadores desbravaram os mares e chegaram a terras desconhecidas guiados pelos astros; os agricultores ao ritmo das fases da lua encontram o tempo mais favorável para as suas plantações e as suas colheitas. O anúncio da queda e abalo das forças celestes atemoriza e aterroriza, pois parece fazer ruir lugares onde encontramos o ritmo da vida e a orientação do caminho. Contudo, o anúncio, aparamente dramático, proclamado por Jesus, é acompanhado pela certeza de que tudo isto acontecerá acompanhado pela visão do Filho do Homem que virá numa nuvem com grande poder e glória. Desmoronam os relógios humanos e os ritmos marcados pelos astros celestes, para darem lugar ao ritmo de Deus que deve marcar o passo da história.
A espera, que habita o coração de cada homem e de cada mulher, e, que faz sonhar um mundo novo e diferente, encontra realização e plenitude no advento de Deus, que vem ao nosso encontro com grande poder e glória. O tempo da nossa vida não pode limitar-se à contabilização dos dias e horas que nos são dadas viver, mas o saborear da presença de Deus que rasga horizontes novos e faz experimentar a verdadeira sabedoria que invoca o salmista: «ensina-nos a contar assim os nossos dias, para podermos chegar ao coração da sabedoria» (Sl 90,12).
Com o primeiro Domingo de Advento, damos início a um novo ano litúrgico que não é apenas uma organização sistemática e articulada das memórias, festas e solenidades, mas a celebração do Mistério de Cristo, que ilumina o tempo e a história, e nos ensina a arte de fazer dos dias que vivemos, o tempo onde Deus actua e realiza a Sua obra de amor.
O tempo de Advento é tempo de espera alegre e jubilosa. Não esperamos um autocarro atrasado em hora de ponta ou um comboio em dia de greve. A nossa espera não desespera, porque o nosso Deus cumpre a promessa feita aos nossos pais: «dias virão, em que cumprirei a promessa que fiz à casa de Israel e à casa de Judá».
O Senhor vem! Vem, porque já veio na fragilidade e debilidade da nossa natureza inaugurar os novos céus e a nova terra. Vem, porque virá um dia no esplendor da sua glória para estabelecer os novos céus e a nova terra de modo pleno, total e definitivo. Vem, porque continuamente se faz presente na vida de cada homem por meio de tantos sinais. Deste modo, o tempo de Advento é o tempo por excelência da vida cristã, porque nos situa entre a vinda primeira de Cristo e a vinda definitiva, ensinando-nos a arte de acolher cada dia como uma visita de Deus: «Esperar é um modo de chegares / Um modo de te amar dentro do tempo» (Daniel Faria).
Viver despertos e vigilantes aguardando a vinda do Senhor não é uma alienação, nem uma projecção dos nossos desejos mais íntimos, mas o único modo de atravessar a história, semeando a esperança que brota do coração de Deus e se revela em Jesus Cristo. É tempo de «nutrir a esperança de amanhã, curando a dor de hoje» (Papa Francisco), porque a esperança que nasce do Evangelho não consiste em esperar passiva e ingenuamente um amanhã em que tudo ficará bem, mas em tornar concreta hoje a promessa de salvação de Deus.in Voz Portucalense
LEITURA I – Jer 33, 14-16
«farei germinar para David um rebento de justiça que exercerá o direito e a justiça na terra»
Estamos no ano décimo do reinado de Sedecias (587 a.C.). O exército babilónio de Nabucodonosor cerca Jerusalém e Jeremias está detido no cárcere do palácio real, acusado de derrotismo e de traição (cf. Jer 32,1). Parece o princípio do fim, a derrocada de todas as esperanças e seguranças do Povo. É neste contexto que o profeta, em nome de Jahwéh, vai proclamar a chegada de um tempo novo, no qual Deus vai “pensar as feridas” do seu povo e curá-las, proporcionar a Judá “abundância de paz e segurança” (Jer 33,6). A mensagem é tanto mais surpreendente quanto o futuro imediato parece sem saída e o próprio Jeremias é acusado de profetizar a inutilidade de resistir aos exércitos caldeus, a destruição de Jerusalém e o exílio de Sedecias (cf. Jer 32,3-5).in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)
Refrão: Para Vós, Senhor, elevo a minha alma.
LEITURA II – Tes 3, 12 – 4, 2
«O Senhor vos faça crescer e abundar na caridade uns para com os outros e para com todos, tal como nós a temos tido para convosco».
A comunidade cristã de Tessalónica foi fundada por Paulo, Silvano e Timóteo durante a segunda viagem missionária de Paulo, aí pelo ano 50 (cf. Act 17,1ss). Durante o pouco tempo que lá passou, Paulo desenvolveu uma intensa atividade missionária, de que resultou uma comunidade numerosa e entusiasta, constituída na sua maioria por pagãos convertidos (cf. 1 Tess 1,9-10). No entanto, a obra de Paulo foi brutalmente interrompida pela reação da colónia judaica… Paulo teve de fugir, deixando atrás de si uma comunidade em perigo, insuficientemente catequizada e quase desarmada num contexto de perseguição e provação. Preocupado, Paulo envia Timóteo a Tessalónica para saber notícias e encorajar na fé os tessalonicenses. Quando Timóteo regressa, encontra Paulo em Corinto e comunica-lhe notícias animadoras: a fé, a esperança e o amor dos tessalonicenses continuam bem vivos e até se aprofundaram com as provações (cf. 1 Tes 1,3; 3,6-8). Os tessalonicenses podem ser apontados como modelos aos cristãos das regiões vizinhas (cf. 1 Tes 1,7-8).in Dehonianos.
EVANGELHO – Lc 21, 25-28.34-36
«Hão-de ver o Filho do homem vir numa nuvem, com grande poder e glória».
«Erguei-vos e levantai a cabeça, porque a vossa libertação está próxima»
«Vigiai e orai em todo o tempo, para que possais livrar-vos de tudo o que vai acontecer e comparecer diante do Filho do homem»
Estamos já nos últimos dias da vida terrena de Jesus, após a sua entrada triunfal em Jerusalém. Jesus está a completar a catequese dos discípulos e, nesse contexto, anuncia-lhes tempos difíceis de perseguição e de martírio. Avisa-os, também, de que a própria cidade de Jerusalém será, proximamente, sitiada e destruída (cf. Lc 21,20-24). Ora, é neste contexto e nesta sequência que aparece o texto do Evangelho de hoje.in Dehonianos
Para os leitores:
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O início do Ano Litúrgico constitui-se como uma pertinente oportunidade para uma formação de leitores acerca da temática e da estrutura das leituras deste novo Ano Litúrgico e de modo particular do evangelista que nos irá acompanhar.
A primeira leitura é o anúncio da promessa do Senhor pela voz de Jeremias. Por isso, pede-se especial atenção à introdução da leitura – Eis o que diz o Senhor – e uma proclamação com o tom da esperança e libertação que as palavras do Senhor oferecem.
Na segunda leitura, o texto deve expressar a dimensão exortativa com que Paulo se dirige aos Tessalonicenses
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
PARA VÓS, SENHOR, ELEVO A MINHA ALMA!
«Para vós, Senhor, elevo a minha alma» (Salmo 25,1). Antífona do Cântico de Entrada que inaugura a celebração eucarística do Advento, do Ano litúrgico, do Ano inteiro. Aponta a atitude a assumir pela Assembleia fiel e orante: a oblação permanente, a oração constante. Para que esta atitude não fique esquecida, mas tome verdadeiramente conta de nós, as mesmas palavras são, em parte, repetidas no refrão do Salmo responsorial, que reclama também a confiança (bathah) em Deus. Extraordinário pórtico de entrada no Advento e no novo Ano litúrgico. Belíssima forma de viver, elevando para Deus a nossa vida: a oração é a nossa vida! A nossa vida em ascensão e oração permanente, sacrifício de suave odor, incenso puro subindo para o nosso Deus. Sempre. O Evangelho dirá com a mesma energia e alegria: «Erguei-vos e levantai a cabeça» (Lucas 21,28). É o gesto do justo justificado por Deus (Job 22,26). Página em branco, Primeira e Última, que podemos apresentar a Deus neste início de Advento e de Ano litúrgico. De Deus é a palavra e a escrita que não passa.
«Orando em todo o tempo», diz, a terminar, a lição do Evangelho deste Primeiro Domingo do Advento (Lucas 21,25-28 e 34-36). «Orar em todo o tempo» significa não se deixar enterrar na lama dos caminhos banais e fúteis deste tempo, de qualquer tempo, e que o Evangelho mostra que a busca desenfreada do sucesso e das falsas soluções da devassidão, da embriaguez e das preocupações da vida (Lucas 21,34) é uma teia que nos enreda e não nos deixa ver bem, belo e bom. Andamos sempre tão atarefados com inúmeros afazeres, campos, bois, negócios, casamentos, que ficamos com o «coração pesado» e insensível, incapaz de ver o Filho-do-Homem-que-vem (Lucas 21,27), a toda a hora, nos nossos irmãos mais pequeninos! Ora, o Advento é o Filho-do-Homem-que-vem, para que nós o acolhamos. Se o acolhermos, saímos fora da teia dos nossos afazeres que nos sufoca, o penúltimo, e entramos no mundo maravilhoso do Último, do Amor, da Liberdade, que rompe as nossas cadeias.
Sinais no sol, na lua, nas estrelas, sobre a terra, convulsões no mar, medos vários, são acontecimentos que o Antigo Testamento refere a propósito do «Dia do Senhor», com a intervenção do próprio Deus (Isaías 13,6-22; Joel 2,1-11). O facto de agora, no Evangelho que estamos a ler, tais acontecimentos aparecerem conjugados com a Vinda do Filho do Homem é a indicação clara de que esta Vinda é a manifestação de Deus (1). Além disso, os acontecimentos assinalados mostram ainda que o mundo presente não é definitivo, mas transitório, e abrem caminho para a nova criação, o novo céu e a nova terra (Apocalipse 21,1) (2). Mas é ainda percetível a nossa habituação à ordem fixa do mundo, em que nos habituámos a confiar, vindo ao de cima o desconforto sentido e o tom de angústia e confusão que as mudanças assinaladas nos trazem (Lucas 21,26) (3). E fica também a descoberto que devemos aprender a confiar, não nestas velhas realidades passageiras, mas no Dia novo que aí vem (4).
Mas que os acontecimentos assinalados abrem, não para vias negativas, mas para perspetivas de salvação, pode ver-se na atitude que Jesus indica aos seus discípulos: «Quando estas coisas começarem a acontecer, erguei-vos e levantai a cabeça, porque está próxima (eggízei) a vossa libertação (apolýtrôsis)» (Lucas 21,28). A hora é, portanto, de libertação. E note-se que Lucas usa o termo «libertação» sobretudo para retratar a nova situação de um prisioneiro a quem foram retiradas as cadeias, e a quem é concedida a liberdade. Quer isto dizer que os discípulos de Jesus não devem estar mais presos, amarrados, às situações terrenas, sempre difíceis, instáveis e transitórias, mas podem entrar «na liberdade da glória dos filhos de Deus» (Romanos 8,21). A proximidade anotada é a proximidade do Reino de Deus que, pondo em causa o nosso arco instintivo e desiderativo e as nossas amarras autorreferenciais, nos liberta, fazendo irromper em nós a gratuidade e o amor assimétrico. Esta proximidade faz-se presente em cada geração. E é por isso que, neste tempo novo, tudo é urgente e decisivo, não por ser breve, mas por estar grávido de oportunidades salvíficas.
O escritor argentino Jorge Luís Borges deixou-nos versos densos como estes, acentuando a importância e a intensidade de cada momento da nossa vida a não desperdiçar: «Não há um instante que não esteja carregado como uma arma»; «Em cada instante o galo pode ter cantado três vezes»; «Em cada instante a clépsidra deixa cair a última gota». E o poeta brasileiro Vinícius de Moraes escreveu assim num belíssimo poema: «A coisa mais divina/ Que há no mundo/ É viver cada segundo/ Como nunca mais». É assim, sempre vigilantes, amantes e esperantes, sempre à escuta e à espera de alguém, com Amor imenso e intenso, que rasga o próprio tempo, que devemos encher todos os nossos instantes, como se fosse a primeira vez, como se fosse a última vez. Tudo no Evangelho é decisivo: cada passo conta, cada gesto conta, cada palavra conta, cada copo de água conta!
Átrio de um tempo novo, habitado, «carregado» de justiça e de bondade. Obra de Deus no nosso mundo. E só dele. Obra terna, tenra e nova, como um «rebento» de um jovem casal ou de uma planta. Sinal de Primavera no meio da invernia e da lama em que nos vamos atolando, ensonados e enlatados, sem sequer darmos por isso. É, portanto, mesmo preciso que Ele venha e que nos acorde e nos levante da nossa letargia com novas pautas e novos acordes musicais! E que nos dê nomes novos a nós, aos nossos corações, às nossas cidades e aldeias, às nossas escolas, aos nossos hospitais, às nossas ruas! Dar nome é criar e recriar. Obra só de Deus. Extraordinária lição de Jeremias 33,14-16.
Paulo passa por Tessalónica (1 Tessalonicenses 3,12-4,2), ou pela nossa terra, e ensina-nos a levantar a nossa vida para Deus, para dele acolhermos o alento criador, e a rivalizarmos no pagamento das dívidas de amor que dia a dia vamos contraindo uns para com os outros. O paradigma, o modelo, o exemplo, é sempre o amor que Deus nos tem, e de que Paulo é testemunha qualificada. Há quem estranhe e pense mesmo que se trata de um mistério o facto de Paulo, quando fala de amor (agápê), quase não mencionar o nosso amor a Deus [apenas mencionado de passagem em Romanos 8,28; 1 Coríntios 2,9; 8,3; 16,22 (philéô); Efésios 6,24; 2 Tessalonicenses 3,5 e 2 Timóteo 3,4 (philéô)], para acentuar sobretudo o amor de Deus para connosco e o nosso amor para com o próximo. Na verdade, não é para estranhar, e muito menos se trata de um mistério. Na verdade, quer a Bíblia Hebraica quer o coração dos Evangelhos falam menos do nosso amor para com Deus, e muito mais do nosso amor para com o próximo e para com o estrangeiro e o inimigo! E não se trata de um amor que satisfaz o nosso desejo, mas da imitação do amor de Deus e de obedecer a um mandamento. Ora, Deus ama o desvalor e manda-nos amar como Ele ama. Então, a nossa resposta ao amor de Deus não consiste na redamatio ou retribuição a Deus do amor com que Ele nos ama, mas volta-se para a frente e traduz-se no amor ao outro, próximo, estrangeiro ou inimigo. Quer na Revelação patente no AT quer em Jesus, o amor ao próximo aparece como o lugar, o único lugar da epifania do nosso amor a Deus.
Os acordes do Salmo 25, que hoje cantamos, trazem à tona os rumos e os caminhos de Deus, que são sempre bondade, verdade, ternura e misericórdia – caminhos intransitivos, entenda-se –, que se vão insinuando mansamente dentro de nós, mais ou menos como deixou escrito, no seu Diário, com data de 23 de janeiro de 1948, o grande escritor francês George Bernanos: «Que doçura pensar que, embora ofendendo-o, não deixamos de desejar, desde o mais profundo santuário da alma, aquilo que Ele deseja».
Vem, Senhor Jesus! Vem, vem, que Te esperamos!
António Couto
ANEXOS:
Ano B
XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – Ano B 21.11.2021
Viver a Palavra
A Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas, indicando que esta festa se celebrasse «em todas as partes da terra no último Domingo de Outubro, isto é, o Domingo precedente à Festa de Todos os Santos. Do mesmo modo, ordenamos, que neste mesmo dia, em cada ano, se renove a consagração de todo o Género Humano ao Sagrado Coração de Jesus, que o nosso Predecessor de santa memória, Pio X, ordenou que se repetisse anualmente». Com a reforma litúrgica esta festa passou a ser celebrada no último Domingo do Ano Litúrgico, com o título de Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo Rei do Universo.
Depois dos tempos conturbados da Primeira Guerra Mundial, diante dos cenários de violência e destruição, o Papa Pio XI convida a contemplar Jesus Cristo, Rei do Universo, Senhor do Tempo e da História, o Príncipe da Paz que anunciou o Reino de Deus por meio de sinais e prodígios, para que diante dos reinados, soberanias e poderes passageiros deste mundo, irrompa a radical novidade de uma autoridade que se faz serviço e de um reinado que não tem fim, porque tem a marca do amor.
Os textos escolhidos para a celebração desta solenidade apontam para a novidade deste Reino instaurado por Jesus Cristo e, por isso, Aquele que proclamamos no Salmo Responsorial como Rei num trono de Luz, no texto do Evangelho, está diante de Pilatos para ser julgado.
Escutar neste dia um trecho do relato da Paixão do Evangelista S. João situa o reinado de Jesus no horizonte da Sua crucifixão e morte, recordando-nos que o nosso Rei, bem diferente dos reinos deste mundo, tem como trono uma Cruz e a Sua Coroa não é de ouro e pedras preciosas, mas de espinhos. Um Reino Novo que precisa de soldados que sejam verdadeiros discípulos missionários, isto é, homens e mulheres que impelidos pelo encontro único e irrepetível com Jesus Cristo, concebem a sua vida como construção do Reino de Amor e de Paz que Jesus veio anunciar.
Proclamar Jesus Cristo como Rei implica necessariamente confiar as nossas vidas nas Suas mãos, pois, na linguagem bíblica, reinar significa salvar, justificar, perdoar e criar. Jesus reina porque assumindo a nossa carne se entregou à morte por nosso amor e o Seu sangue derramado na Cruz salva e justifica, perdoa e recria, apontando-nos o caminho da conversão como caminho de realização e felicidade, porque de aperfeiçoamento e santidade.
Caminhar com Jesus para que no mundo se faça já presente este Reino, que será em plenitude no Céu, implica abraçar a nova lógica do Reino porque «este Reino não se identifica com os poderes triunfalistas que conhecemos, mas com os valores mais profundos do Evangelho. A moeda deste reino é a gratuidade, a bandeira é o amor, o hino é Evangelho e o exército é formado pelos humildes. As armas dão lugar aos braços para acolher, os muros transformam-se em pontes para unir. A diferença é estímulo para a comunhão e a linguagem comum é a força do Espírito».
Fascinados pelo amor que brota da Cruz de Cristo, façamos das nossas vidas um lugar de anúncio da nova lógica do Reino que se traduz num novo modo de ser e de estar, porque um novo modo de servir e amar. in Voz Portucalense
LEITURA I – Dan 7,13-14
«O seu poder é eterno, não passará jamais, e o seu reino não será destruído».
Já vimos, no domingo anterior, que o Livro de Daniel aparece na primeira metade do século II a.C., numa época em que o rei selêucida Antíoco IV Epífanes procurava impor, pela força, a cultura grega ao Povo de Deus. As imposições de Antíoco IV Epífanes foram, contudo, mal acolhidas e depararam com uma tenaz resistência, sobretudo por parte dos sectores mais tradicionais do judaísmo. Uns judeus optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heroicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helénicos com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos. Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilónia, que soube manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. Neste Livro, o autor garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos.
O texto que é proposto integra a 2ª parte do Livro de Daniel(Dan7,1-12,13). Aí o autor, recorrendo à “figura” da “visão”, apresenta-nos uma leitura profética da história, cuja finalidade é transmitir a esperança aos crentes perseguidos por causa da sua fé e dos seus valores tradicionais.
Na primeira das “visões” propostas (Dan 7,1-28), o autor do Livro apresenta “quatro grandes animais” (o primeiro “era semelhante a um leão”; o segundo era “semelhante a um urso”; o terceiro era “parecido com uma pantera”; o quarto era “horroroso, aterrador e de uma força excecional” e “tinha dez chifres”, embora lhe tivesse depois nascido um outro “chifre mais pequeno” que “tinha olhos como homem e uma boca que proferia palavras arrogantes” – Dan 7,4-8). Esses “quatro animais” evocam a sucessão dos impérios humanos… O primeiro seria o império neo-babilónico, o segundo representaria o império dos medos, o terceiro referir-se-ia ao império persa e o quarto seria o império grego de Alexandre, do qual os reis selêucidas eram os herdeiros diretos. Os “dez chifres” desse quarto animal referem-se a uma série de dez reis que se sucederam uns aos outros; e o décimo primeiro chifre, mais pequeno do que os outros, seria, seguramente, Antíoco IV Epífanes, o rei perseguidor do Povo de Deus.
Em paralelo com o quadro histórico destes impérios – todos eles conotados com o mal,com o imperialismo, com a opressão, com a perseguição ao Povo de Deus – o autor coloca, numa outra cena, “um ancião” com os cabelos e as vestes brancos “como a neve; sentado num trono feito de chamas e servido “por milhares e dezenas de milhares”, esse “ancião” decretou a morte do décimo primeiro “chifre”, bem como o fim do poderio dos “quatro animais” (Dan 7,9-12). É precisamente aqui que começa a cena descrita pelo texto da nossa primeira leitura: a entronização do “Filho do Homem” (Dan 7,13-14).in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 92 (93)
Refrão – O Senhor é rei num trono de luz.
LEITURA II – Ap 1,5-8
«Jesus Cristo é a Testemunha fiel, o Primogénito dos mortos, o Príncipe dos reis da terra».
“Apocalipse” significa “manifestação de algo que está oculto”. O nosso “Livro do Apocalipse” – do qual é retirado o trecho da nossa segunda leitura – é um livro que se apresenta como uma “revelação” sobre “as coisas que brevemente devem acontecer” (Ap 1,1) e que um tal João, exilado na ilha de Patmos (uma pequena ilha do Mar Egeu) por causa da sua fé, tem por missão comunicar aos seus irmãos na fé.
Estamos na fase final do reinado do imperador Domiciano (à volta do ano 95). As comunidades cristãs da Ásia Menor vivem numa grave crise interna, resultante das heresias, da falta de entusiasmo, da tibieza, da indiferença, do medo de dar testemunha da própria fé. Por outro lado, há também uma crise que resulta de causas externas, sobretudo da violenta perseguição que o imperador ordenou contra os cristãos: muitos seguidores de Jesus eram condenados e assassinados e outros, cheios de medo, abandonavam o Evangelho e passavam para o lado do império. Na comunidade dizia-se: “Jesus é o Senhor”; mas lá fora, quem mandava mesmo, como senhor todo-poderoso, era o imperador de Roma.
É neste contexto de crise, de perseguição, de medo e de martírio que vai ser escrito o Apocalipse. O objetivo do autor é levar os crentes a revitalizarem o seu compromisso com Jesus e a não perderem a esperança. Nesse sentido, o autor do livro começa por fazer um convite à conversão (primeira parte – Ap 1-3); passa, depois, a apresentar uma leitura profética da história humana, que dá conta da vitória final de Deus e dos seus fiéis sobre as forças do mal (segunda parte – Ap 4-22). Estes conteúdos são apresentados com o recurso sistemático ao símbolo (como é típico da literatura apocalíptica), o que torna este livro estranho e difícil, mas, ao mesmo tempo, muito belo e interpelante.
O texto da segunda leitura de hoje apresenta-nos alguns dos primeiros versículos do Livro do Apocalipse. Trata-se de uma espécie de introdução litúrgica, onde se apresenta o diálogo litúrgico entre um leitor e a comunidade cristã reunida para escutar uma proclamação. Neste diálogo, a comunidade é convidada a aceitar Cristo como o centro da história humana, a razão de ser da comunidade, a coordenada fundamental à volta da qual se estrutura e organiza toda a vida cristã.in Dehonianos.
EVANGELHO – Jo 18,33b-37
«Tu és o rei dos Judeus?».
«O meu reino não é deste mundo. Se o meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que Eu não fosse entregue aos judeus».
«É como dizes: sou rei».
O Evangelho da Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo, apresenta-nos uma cena do processo de Jesus diante de Pontius Pilatus, o governador romano da Judeia. Para trás havia já ficado o frente a frente de Jesus com os líderes judaicos, nomeadamente com Anás (sogro de Caifás, o sumo-sacerdote; Anás, apesar de ter deixado o cargo de sumo-sacerdote, continuava a ser um personagem muito influente e foi ele, provavelmente, quem liderou o processo contra Jesus – cf. Jo 18,12-14.19-24).
Pontius Pilatus, o interlocutor romano de Jesus, governou a Judeia e a Samaria entre os anos 26 e 36. As informações de Flávio Josefo e de Fílon apresentam-no como um governante duro e violento, obstinado e áspero, culpado de ordenar execuções de opositores sem um processo legal. As queixas de excessiva crueldade apresentadas contra ele pelos samaritanos no ano 35 levaram Vitélio, o legado romano na Síria, a tomar posição e a enviá-lo a Roma para se explicar diante do imperador. Pontius Pilatus foi deposto do seu cargo de governador da Judeia logo a seguir.
Curiosamente, o autor do Quarto Evangelho descreve Pontius Pilatus como um homem fraco, indeciso e volúvel, uma espécie de marioneta habilmente manobrada pelos líderes judaicos. Esta apresentação – que contradiz os dados deixados pelos historiadores da época – não deve ter grandes bases históricas: deve ser, apenas, uma tentativa de livrar os romanos de qualquer culpa no processo de Jesus. Na época em que o autor do Quarto Evangelho escreve (por volta do ano 100), não era conveniente para os cristãos acusar Roma, afirmando a sua responsabilidade no processo que levou Jesus à morte. Assim, os escritores cristãos da época preferiram branquear o papel do poder imperial e, por outro lado, fazer recair sobre as autoridades judaicas toda a culpa pela condenação de Jesus.in Dehonianos
Para os leitores:
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As leituras deste Domingo não apresentam nenhuma dificuldade aparente, contudo, devem ser preparadas cuidadosamente para que a proclamação da Palavra seja bela e digna. As leituras desta solenidade apresentam a realeza de Jesus, em contraponto com os reinos deste mundo, por isso, a proclamação das leituras deve traduzir este anúncio.
A primeira leitura da profecia de Daniel é a narrativa das visões da noite onde se anuncia a vinda do Filho do Homem que instaura um reino eterno.
A segunda leitura do Livro do Apocalipse é um texto litúrgico que apresenta um diálogo entre um leitor e a comunidade cristã reunida para escutar a proclamação. Deve haver um especial cuidado nas fórmulas litúrgicas que se concluem com um «Ámen».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra.
A SOBERANIA DO AMOR
A «Festa de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei», com esta denominação, foi instituída pelo Papa Pio XI, em 11 de dezembro de 1925, com a Carta Encíclica Quas Primas. Os tempos apresentavam-se sombrios e turvos e os céus nublados como os de hoje, e Pio XI, homem de ação, que já tinha fundado a Ação Católica em 1922, instituiu então esta Festa com o intuito de promover a militância católica e ajudar a sociedade a revestir-se dos valores cristãos. A Festa de Cristo Rei era então celebrada no último Domingo de Outubro. A reorganização da Liturgia no pós-Concílio passou esta Festa para o último Domingo do Ano Litúrgico, alterando-lhe a denominação para «Solenidade de Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo».
«O Senhor Reina». É assim que abre o Salmo 93, que hoje cantamos. Esta locução verbal – «o Senhor reina» – é também a mais usual no Antigo Testamento para dizer Deus na ação de reinar, isto é, de salvar, justificar, perdoar, criar. Na verdade, reinar é salvar, isto é, trazer a prosperidade, o bem-estar e a alegria ao seu Povo. É esta a missão do rei bíblico. Salvar é justificar. Justificar é, no seu sentido mais profundo, transformar um pecador em justo. Justificar é, portanto, perdoar. Neste profundo sentido bíblico, justificar e perdoar são ações que só Deus pode fazer, dado que, transformar um pecador em justo é igual a criar ou recriar. E da ação de criar também só Deus é o sujeito em toda a Escritura. Já se sabe que o Novo Testamento transforma o ativo «Deus Reina» no mais abstrato «Reino de Deus».
Tanta e quase indescritível riqueza, a de um Deus, que o Livro de Daniel 7,3-12 apresenta solenemente sentado no seu trono de Luz e de Fogo purificador, que inutiliza o poder das quatro bestas enormes saídas do mar com aspeto terrível, e que se assemelham a um leão com asas de águia, um urso com costelas na boca, um leopardo alado com quatro cabeças, e um monstro metálico aterrorizador, com enormes dentes de ferro que tudo tritura, cospe e espezinha debaixo das enormes patas. Tinha ainda dez chifres na cabeça, mas nasceu-lhe, entretanto, um outro mais pequeno e insolente, com uma boca que proferia palavras arrogantes. Estas bestas representam quatro impérios: babilónio, medo, persa e grego (de Alexandre Magno e seus sucessores). Os dez chifres são os reis da dinastia Selêucida, e o décimo primeiro é Antíoco IV Epifânio (175-163). O tribunal divino toma assento para julgar o arrogante Antíoco, que é morto e destruído. E vê-se então, em contraponto com as bestas que saem do mar, símbolo da desordem e do mal, o Filho do Homem que vem sobre as nuvens, do mundo celeste, portanto. A ele é entregue o reino eterno, não assente no poder prepotente da brutalidade, mas no poder manso do Amor (Daniel 7,13-14).
No Livro do Apocalipse 1,5-8, este Filho do Homem tem um nome. Chama-se Jesus Cristo. Aparece igualmente sobre as nuvens do céu e ostenta, entre outros, o belíssimo título de «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5). E é por este Amor levado ao extremo que vence, sem combater, este combate, amando, abraçando, sofrendo, sorvendo e dissolvendo o poder da brutalidade, como sucede aos poderosos da terra na batalha de Harmagedôn (Apocalipse 16,14 e 16; 17,14; 19,11-21). Também não é assim de admirar que, neste grande Livro do Apocalipse, o mar, que já vimos no Livro de Daniel como fonte da confusão e do mal, deixe de existir (Apocalipse 21,1). Vem assim a toda a luz a soberania nova do Filho do Homem, que é Jesus, «Aquele que nos ama». A sua soberania é o Amor, que é Primeiro e Último (Apocalipse 1,8). É Primeiro, e, por ser Primeiro, é também Último. Se é Primeiro e é também Último, então o Amor é a soberania verdadeira, a única soberania portanto, porque tudo o resto cai e fica pelo caminho. Entre o Primeiro e o Último instala-se o penúltimo, que é o poder velho e podre da violência e da brutalidade das bestas ferozes que nos habitam. O Bem é de sempre e é para sempre. É Primeiro e é Último. O Bem não começou, portanto. O que começou foi o mal, que se foi insinuando nas pregas do nosso coração. Mas o que começa, também acaba. Os impérios da nossa violência, malvadez e estupidez caem, imagine-se, vencidos por um Amor frágil que é desde sempre e para sempre, e que vence, sem combater, a nossa prepotência!
Tem de ser sem combater. Porque, se combatesse, usaria os nossos métodos, e apenas aumentaria a violência. É assim que Jesus atravessa as páginas dos Evangelhos e da nossa história, entregando-se por Amor à nossa violência, abraçando-a e, portanto, sofrendo-a, dissolvendo-a e absolvendo-a. É assim que o Amor Reina, Salva, Justifica, Perdoa e Recria. Os Judeus e Pilatos representam, no Evangelho de hoje (João 18,33-37), os impérios envelhecidos, podres e caducos da nossa violência e estupidez. Os quatro Evangelhos documentam a pergunta de Pilatos a Jesus: «Tu és o rei dos Judeus?» (Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3; João 18,33). Nos sinóticos, Jesus dá uma resposta breve: «Tu o dizes» (Mateus 27,11; Marcos 15,2; Lucas 23,3), para logo se remeter a um silêncio habitado e teológico (Mateus 27,12; Marcos 15,4; Lucas 23,9), à maneira do Servo de YHWH, Cordeiro conduzido ao matadouro, mas que não abriu a boca (Isaías 53,7). João, ao contrário, apresenta um longo diálogo entre Jesus e Pilatos, em que o ponto mais alto está nas palavras de Jesus: «O meu reino não é deste mundo; o meu reino não é daqui» (João 18,36). E explica bem Jesus a Pilatos e a nós que, se o seu reino fosse deste mundo, daqui, lá estariam certamente, para o defender, as suas forças militares. Em vez dessa quinquilharia, o seu Reino assenta num Amor novo e subversivo, que não pode deixar de amar a nossa violência até ao fim e ao fundo, sorvendo-lhe todo o veneno.
As coisas são de tal ordem, tão novas, que, daqui para a frente, a partir da entrada de um tal amor no mundo, todas as formas de poder se devem considerar superadas. Na verdade, Jesus é Rei na medida em que contrapõe o amor ao poder. A Igreja participa nesta soberania de Cristo, assumindo até ao fim a mais humilde e radical atitude de serviço à humanidade, não se servindo da humanidade, mas servindo a humanidade em cada ser humano, de acordo com o “código da autoridade cristã”: «Sabeis que aqueles que se consideram chefes das nações, as dominam, e os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não será assim entre vós; ao contrário, aquele que quiser tornar-se grande entre vós, seja vosso servo, e aquele que queira ser o primeiro entre vós, seja escravo de todos. Na verdade, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos» (Marcos 10,42-45). Compete à Igreja manter bem aberto este golpe que Cristo infligiu a qualquer forma de poder e a todo o mal.
Vem, Senhor Jesus! Ilumina com a tua Luz nova as trevas, as pregas e as pedras do nosso coração empedernido. Reina sobre nós, Salva-nos, Justifica-nos, Perdoa-nos, Recria-nos. Faz-nos outra vez à tua Imagem. Dissolve a besta brava que há em nós e que, à imagem de Caim, não fala, mas trucida e come o outro. Hoje é o Dia da celebração de um amor novo e de uma nova ordem assente, não no poder, mas no amor.
António Couto
ANEXOS:
- Leitura I -XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – Ano B – 21.11.2021 (Dan 7, 13-14)
- Leitura II -XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – Ano B – 21.11.2021 (Ap 1, 5-8)
- XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – 21.11.2021 – Lecionário
- XXXIV DTC – Nosso Senhor Jesus Cristo, Rei do Universo – 21.11.2021 – Oração Universal
Ano B
XXXIII Domingo Tempo Comum – Ano B – 14.11.2021
«29Assim, também, quando virdes acontecer estas coisas, sabei que Ele está próximo, às portas. 30Em verdade vos digo: Não passará esta geração sem que todas estas coisas aconteçam. 31O céu e a terra passarão, mas as minhas palavras não passarão.» Mc 13, 29-31
Viver a Palavra
Viajando de transportes públicos ou permanecendo por algum tempo numa qualquer sala de espera de um local público onde passam as notícias, depressa se fazem sentir vozes de desilusão e descontentamento, afirmando a necessidade de um mundo novo e diferente. Queremos um mundo melhor, onde cada homem e cada mulher sejam verdadeiramente felizes! A nossa esperança deve encher-se de alegria, porque este é também o desejo de Deus. O Deus do Amor, da Alegria e da Vida sonhou-nos para a felicidade, pela construção de um mundo novo e diferente com a marca do amor que se faz entrega generosa ao serviço dos irmãos.
Por isso, não nos devem assustar as palavras de Jesus: «naqueles dias, depois de uma grande aflição, o sol escurecerá e a lua não dará a sua claridade; as estrelas cairão do céu e as forças que há nos céus serão abaladas. Então, hão-de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória. Ele mandará os Anjos, para reunir os seus eleitos dos quatro pontos cardeais, da extremidade da terra à extremidade do céu». Na verdade, não são nenhuma profecia do «fim do mundo», nem um modo pedagógico de nos atemorizar para nos conduzir à conversão. Não é de terror que trata o Evangelho, mas de amor e misericórdia. Estas palavras são a certeza de que as realidades deste mundo, por maiores que elas possam parecer, são passageiras e efémeras, ao invés do amor de Deus e da Sua Palavra que permanecem como verdadeira luz que conduz a nossa história.
Por isso, temos muito a aprender com a parábola da figueira que enche o nosso coração da verdadeira esperança cristã. A esperança que brota da nossa fé não é uma esperança oca porque possui a consistência de um rosto: o rosto terno e misericordioso de Jesus Cristo, Aquele que «tendo oferecido pelos pecados um único sacrifício, sentou-Se para sempre à direita de Deus».
O Mestre ensina-nos a parábola da figueira cujos ramos tenros e folhas verdes anunciam a chegada do Verão. Coisas tenras e ternas são as que anuncia Jesus, pois a figueira que começa a brotar na Primavera, anuncia o ressurgir da natureza após o Inverno. A fé cristã recorda-nos que depois de descobrir Jesus Cristo e o seu Evangelho a nossa vida ressurge e ganha uma vida absolutamente nova. Por isso, não é o medo do que vai acabar que fica sublinhado neste Evangelho, mas a expectativa feliz da novidade de Deus, que em Jesus Cristo irrompe na nossa vida e transforma o mundo, transformando o coração de cada discípulo missionário.
«Quando virdes acontecer estas coisas, sabei que o Filho do homem está perto, está mesmo à porta». Quando as dificuldades surgem no nosso caminho, quando tudo parece perdido, quando o mundo parece desabar sobre nós, recordemos que Jesus está próximo, que Ele não é indiferente às nossas dores e angústias, mas Ele próprio as assumiu na Sua vida, abraçando a Cruz para nossa salvação.
Por isso, o único «fim do mundo» que a Liturgia da Palavra nos propõe é o fim de um mundo marcado pelo egoísmo e pela violência, pela nossa autossuficiência e pela indiferença, para que possa despontar um mundo novo, marcado pelo amor e pela misericórdia. Deste modo, o mundo tornar-se-á um lugar mais belo, pois como recorda a profecia de Daniel, quando nos abrimos à verdadeira sabedoria a nossa vida torna-se um rasto luminoso que aponta o caminho do Céu: «os sábios resplandecerão como a luz do firmamento e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade».in Voz Portucalense
LEITURA I – Dan 12,1-3
«Os sábios resplandecerão como a luz do firmamento, e os que tiverem ensinado a muitos o caminho da justiça brilharão como estrelas por toda a eternidade».
Em 333 a.C., Alexandre da Macedónia derrotou Dario III, rei dos Persas, na batalha de Issos (Síria). A Palestina, até aí sob o domínio dos Persas, ficou integrada no império de Alexandre. Alexandre procurou impor a ideia da “oikouméne”, quer dizer, a ideia de um mundo em que todos os homens eram uma só família, unidos sob uma só lei divina, em que todos os cidadãos do império eram cidadãos de uma mesma cidade e comungavam dos mesmos valores e da mesma cultura.
Quando Alexandre morreu, em 323 a.C., o império foi disputado pelos seus generais. A Palestina foi, então, objecto de disputa entre os ptolomeus, que ocupavam o Egipto, e os selêucidas, que dominavam a Síria e a Mesopotâmia. Num primeiro momento, os ptolomeus asseguraram o domínio da Palestina e da Síria; mas o selêucida Antíoco III, aliado com Filipe V da Macedónia, acabou por vencer os ptolomeus (batalha das fontes do Jordão, ano 200 a.C.) e por conquistar o domínio da Palestina.
Se o período ptolomaico tinha sido uma época de relativa benevolência para com a cultura judaica, a situação mudou radicalmente durante o reinado do selêucida Antíoco IV Epífanes (174-164 a.C.). Este rei, interessado em impor a cultura helénica em todo o seu império, praticou uma política de intolerância para com a cultura e a religião judaicas. A perseguição foi dura e as marcas da intolerância selêucida provocaram feridas muito graves no universo social e religioso judaico. Se muitos judeus renegaram a sua fé e assumiram os valores helénicos, muitos outros resistiram, defenderam a sua identidade cultural e religiosa. Uns optaram abertamente pela insurreição armada (como foi o caso de Judas Macabeu e dos seus heróicos seguidores); outros, contudo, optaram por fazer frente à prepotência dos reis helénicos com a sua palavra e os seus escritos.
O Livro de Daniel surge neste contexto. O seu autor é um judeu fiel à cultura e aos valores religiosos dos seus antepassados, interessado em defender a sua cultura e a sua religião, apostado em mostrar aos seus concidadãos que a fidelidade aos valores tradicionais seria recompensada por Jahwéh com a vitória sobre os inimigos. Contando a história de um tal Daniel, um judeu exilado na Babilónia, que soube manter a sua fé num ambiente adverso de perseguição, o autor do Livro de Daniel pede aos seus concidadãos que não se deixem vencer pela perseguição de Antíoco IV Epífanes e que se mantenham fiéis à religião e aos valores dos seus pais. Neste livro, o autor garante-lhes que Deus está do lado do seu Povo e que recompensará a sua fidelidade à Lei e aos mandamentos. Estamos na segunda metade do séc. II a.C., pouco antes do desaparecimento de cena de Antíoco (que aconteceu em 164 a.C.).
Com o livro de Daniel, inaugura-se a literatura apocalíptica. Num tempo de perseguição, o autor pretende – servindo-se de um género literário que recorre, frequentemente, a símbolos e a uma linguagem cifrada – restaurar a esperança e assegurar ao seu Povo a vitória de Deus e dos seus fiéis sobre os opressores.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 15 (16)
Refrão: Defendei-me, Senhor: Vós sois o meu refúgio.
LEITURA II – Hebr 10,11-14.18
«Porque, com uma única oblação, tornou perfeitos para sempre os que Ele santifica».
Pela última vez, neste ano litúrgico, é-nos apresentado um texto da Carta aos Hebreus. Esta “Carta” (que, mais do que uma “carta”, é uma “homilia”) destina-se a comunidades cristãs que vivem dias complicados… À falta de entusiasmo de muitos dos seus membros na vivência do compromisso cristão, junta-se a hostilidade dos inimigos e as confusões causadas à fé comunitária por certos pregadores pouco ortodoxos que ensinam doutrinas estranhas e pouco cristãs. São, portanto, comunidades fragilizadas, cansadas e desalentadas, que necessitam de redescobrir o seu entusiasmo inicial, de revitalizar o seu compromisso com Cristo e de apostar numa fé mais coerente e mais empenhada.
Nesse sentido, o autor da “Carta” apresenta-lhes o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes são chamados a fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar uma experiência de fé enfraquecida pela hostilidade do ambiente, pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
O texto que nos é proposto é parte da conclusão da reflexão sobre o sacerdócio de Cristo (cf. Heb 10,1-18). Aí, o autor repete temas desenvolvidos nos capítulos precedentes, procurando, uma vez mais, pôr em relevo a dimensão salvadora da missão sacerdotal de Jesus. O objectivo é despertar no coração dos crentes uma resposta adequada ao amor de Deus, manifestado na acção de Jesus. in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 13,24-32
«Hão-de ver o Filho do homem vir sobre as nuvens, com grande poder e glória».
«Aprendei a parábola da figueira: quando os seus ramos ficam tenros e brotam as folhas, sabeis que o Verão está próximo».
«Passará o céu e a terra, mas as minhas palavras não passarão».
O texto que nos é hoje proposto como Evangelho situa-nos em Jerusalém, pouco antes da paixão e morte de Jesus. É o terceiro dia da estadia de Jesus em Jerusalém, o dia dos “ensinamentos” e das polémicas mais radicais com os líderes judaicos (cf. Mc 11,20-13,1-2). No final desse dia, já no “Jardim das Oliveiras”, Jesus oferece a um grupo de discípulos (Pedro, Tiago, João e André – cf. Mc 13,3) um amplo e enigmático ensinamento, que ficou conhecido como o “discurso escatológico” (cf. Mt 13,3-37).
A maior parte dos estudiosos do Evangelho segundo Marcos consideram que este discurso, apresentado com uma linguagem profético-apocalíptica, descreve a missão da comunidade cristã no período que vai desde a morte de Jesus até ao final da história humana. É um texto difícil, que emprega imagens e linguagens marcadas pelas alusões enigmáticas, bem ao jeito do género literário “apocalipse”. Não seria tanto uma reportagem jornalística de acontecimentos concretos, mas antes uma leitura profética da história humana. O seu objectivo seria dar aos discípulos indicações acerca da atitude a tomar frente às vicissitudes que marcarão a caminhada histórica da comunidade, até ao momento em que Jesus vier para instaurar, em definitivo, o novo céu e a nova terra.
Os quatro discípulos referenciados no início do “discurso escatológico” representam a comunidade cristã de todos os tempos… Os quatro são, precisamente, os primeiros discípulos chamados por Jesus (cf. Mc 1,16-20) e, como tal, convertem-se em representantes de todos os futuros discípulos. O discurso escatológico de Jesus não seria, assim, uma mensagem privada destinada a um grupo especial, mas uma mensagem destinada a toda a comunidade crente, chamada a caminhar na história com os olhos postos no encontro final com Jesus e com o Pai.
A missão que Jesus (que está consciente de ter chegado a sua hora de partir ao encontro do Pai) confia à sua comunidade não é uma missão fácil… Jesus está consciente de que os seus discípulos terão que enfrentar as dificuldades, as perseguições, as tentações que “o mundo” vai colocar no seu caminho. Essa comunidade em marcha pela história necessitará, portanto, de estímulo e de alento. É por isso que surge este apelo à fidelidade, à coragem, à vigilância… No horizonte último da caminhada da comunidade, Jesus coloca o final da história humana e o reencontro definitivo dos discípulos com Jesus.
O “discurso escatológico” divide-se em três partes, antecedidas de uma introdução (cf. Mc 13,1-4). Na primeira parte (cf. Mc 13,5-23), o discurso anuncia uma série de vicissitudes que vão marcar a história e que requerem dos discípulos a atitude adequada: vigilância e lucidez. Na segunda parte, o discurso anuncia a vinda definitiva do Filho do Homem e o nascimento de um mundo novo a partir das ruínas do mundo velho (cf. Mc 13,24-27). Na terceira parte, o discurso anuncia a incerteza quanto ao “tempo” histórico dos eventos anunciados e insiste com os discípulos para que estejam sempre vigilantes e preparados para acolher o Senhor que vem (cf. Mc 13,28-37). O nosso texto apresenta-nos, precisamente, a segunda parte e alguns versículos da terceira parte do “discurso escatológico”. in Dehonianos
Para os leitores:
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A ausência de palavras e expressões de difícil pronunciação não deve permitir descurar a atenta preparação das leituras.
Na primeira leitura, a proclamação deve ter em atenção a centralidade da última frase do texto que se apresenta como conclusão e mensagem principal da leitura, mas também como convite à esperança e luz que brota da prática da verdadeira sabedoria.
A segunda leitura, como nos Domingos anteriores requer um especial cuidado nas longas frases e com várias orações.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
O FILHO DO HOMEM-QUE-VEM TRAZ UM MUNDO NOVO PELA MÃO
O Livro de Daniel terá sido provavelmente escrito no Outono do ano 164 a.C., com o objetivo de encorajar os judeus piedosos a permanecerem firmes na sua fé em plena perseguição antijudaica desencadeada três anos antes, em 167 a.C., pelo tirano Antíoco IV Epifânio, e cujos ecos se podem ver, por exemplo, no Segundo Livro dos Macabeus 6 e 7, que regista a fidelidade heroica do velho Eleazar e dos sete jovens irmãos Macabeus. Estes são, no dizer do Livro de Daniel 12,1-3, os mestres sábios (maskkilîm) e justificadores (matsddîqîm), isto é, dadores de vida: ensinam, não teorias, mas a vida verdadeira, dando a sua vida por amor: é assim que vencem os violentos, não se opondo a eles, mas amando, isto é, dando a vida e dando vida, ensinando a viver. Estes novos sábios e justificadores são, diz o Livro de Daniel, as novas estrelas que brilham para sempre! Se brilham para sempre, então estão em comunhão com Deus, que é luz que não se apaga, pois não conhece trevas nem ocaso (1 João 1,5).
Não são, portanto, as estrelas da moda, da música, do cinema ou do futebol, estrelas cadentes, de brilho efémero e passageiro! São as novas e verdadeiras estrelas de brilho permanente, inscritas no Céu ou no Livro da Vida (ver Daniel 12,1; Salmo 139,16; Isaías 4,3; Lucas 10,20; Apocalipse 20,12). As outras pobres estrelas estão, na verdade, inscritas no chão, no pó da terra (Jeremias 17,13), e lá se perdem e disperdem. Deus sabe escrever no coração (Jeremias 17,1; 31,33), na Cruz (Gálatas 3,1), e, como já vimos, no chão, e no Livro, mas também, num gesto de particular ternura, na palma da sua mão (Isaías 49,16).
O cenário do Evangelho deste Domingo XXXIII do Tempo Comum (Marcos 13,24-32) não é de terror, mas de amor! Novos céus e nova terra, saídos das mãos de Deus-Pai, com o Filho-que-Vem, e que está próximo, à porta. É como o noivo do Cântico dos Cânticos 5,2, que bate à porta, descrito pela noiva que dorme, mas escuta com um coração sempre vigilante! Única atitude da Igreja Una e Santa, que Domingo após Domingo, se reúne com emoção e alegria à volta do seu Senhor-que-Vem. Tudo tão suave e tão cheio de maravilha: o nosso Deus revelando ou simplesmente com todo o carinho desvelando, isto é, retirando o véu que encobre a verdadeira realidade, perante os nossos olhos atónitos!
Uma parte da Igreja antiga lia este «discurso escatológico» e outros textos similares do Novo Testamento no sentido da chegada iminente do «fim do mundo» (leitura ainda hoje desgraçadamente doentia nas seitas, com ano, dia e hora marcados!). Sim, é do «fim do mundo» que se trata, mas num sentido novo e inaudito: é a Palavra de Deus que não passa, e que é Amor e é Primeira e Última, sempre nova, portanto, que vem «pôr fim ao nosso mundo» de posse e egoísmo, autossatisfação e auto expansão ilimitada. É o Último, que é o Amor gratuito e desinteressado, que põe fim ao penúltimo, que é a nossa vã maneira de viver. Neste sentido novo, é de desejar que o nosso mundo velho e caduco entre em agonia e acabe já, para que comece verdadeiramente em nós e já um mundo novo e belo, cuja matriz é o Amor gratuito e incondicional. Neste sentido intenso e belo, vale a oração «Senhor, vem!» (marana tha’), porque, com sabedoria serena, sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’).
O discurso de Jesus no inteiro Capítulo 13 de Marcos não é atravessado por nenhuma angústia nem sugere qualquer corrida desenfreada e frenética. Pelo contrário, por quatro vezes, Jesus interpela os seus discípulos a um comportamento atento: «vede bem», «estai atentos», «prestai atenção», grego blépete (Marcos 13,5.9.23.33), e igualmente por quatro vezes se faz ouvir a vigilância: «estai acordados», «vigiai», grego agrypnéô e grêgoréô (Marcos 13,33.34.35.37). Depois da admirável introdução deste Capítulo (Marcos 13,1-4), com um discípulo a comunicar a Jesus o seu espanto perante as belas pedras das construções herodianas do Templo (Marcos 13,1), Jesus volta-o para outro lado, dizendo: «Vês estas grandes construções? Não ficará pedra sobre pedra que não seja destruída» (Marcos 13,2). E, sentando-se (como quem ensina) no Monte das Oliveiras, voltado para o majestoso Templo, e interrogado por Pedro, Tiago, João e André sobre o «quando» e «qual o sinal» (Marcos 13,3-4), Jesus profere então o inteiro ensinamento deste grande Capítulo 13, que aparece organizado em três Partes: 1) em Marcos 13,5-23, Jesus fala de um tempo de tribulação, em que pulularão enganadores (Marcos 13,5-6), guerras (Marcos 7-8), perseguições (Marcos 13,9-13), e outra vez guerras (Marcos 13,14-20), enganadores (Marcos 13,21-23, e uma chamada de atenção (Marcos 13,23); 2) em Marcos 13,24-27, parte central, Jesus anuncia a vinda do Filho do Homem para reunir os seus eleitos; 3) em Marcos 13,28-37, intercalam-se informações e advertências.
Note-se, colocada no centro da estrutura, que é sempre a Parte mais importante, a vinda do Filho do Homem. Não é informação nem enumeração. É anúncio, que põe fim ao penúltimo, à luz do sol, da lua e das estrelas (Génesis 1,14-19), obra do quarto dia da criação, e faz retornar tudo à luz primeira de Deus (Génesis 1,3), obra do primeiro dia da criação. Note-se ainda a importante instrução sapiencial da parábola da figueira (Marcos 13,28-29), imediatamente colocada após o anúncio da vinda do Filho do Homem: a atenção dos discípulos não deve centrar-se tanto naquilo que se vê (o verde das folhas na primavera), mas naquilo que não se vê (o verão e o Filho do Homem). Não se veem ainda, mas estão próximos. Note-se este «próximo» (eggýs) do Filho do Homem (Marcos 13,28.29) a fazer inclusão com o anúncio do Reino de Deus, igualmente próximo (eggýs), em Marcos 1,15.
O mundo-que-vem é a luz pura de Deus, obra nova e boa de Deus, e não é construído sobre as cinzas do nosso velho mundo. A homilia da Carta aos Hebreus, que hoje tivemos a graça de continuar a ouvir (10,11-14.18), faz-nos compreender que nós estamos totalmente afetados por Jesus Cristo, que nos trouxe o perdão, entregando-se por nós uma única vez, ao contrário dos sacerdotes da antiga lei, que todos os dias tinham de oferecer sacrifícios pelo pecado. Mas agora, que é o tempo do perdão, o sacrifício pelo pecado deixa de existir (v. 18).
Portanto, as pedras e as coisas, as casas e as terras nunca devem ocupar, muito menos encher, o nosso coração. Os sacerdotes, descendentes de Aarão não tinham terra distribuída em Israel. A sua herança era o Senhor (cf. Números 18,20), como cantamos hoje no Salmo 16. No seu Sermão 344, Santo Agostinho comenta assim: «O salmista não diz: “Ó Deus, dá-me uma herança”. Diz antes: “Tudo o que me podes dar fora de Ti, é vil. Sê Tu a minha herança. É a Ti que eu amo… Esperar Deus de Deus, estar cheio de Deus. Basta-te Ele; fora dele, nada te pode bastar». Esta melodia deve encher o nosso coração e este Dia de Domingo, Dia do Senhor, de doação radical, total, ao Senhor. Entenda-se: é um caminho novo que se abre à nossa frente. Sem retrocessos, sem desvios, sem distrações, sem nostalgias, sem saídas de emergência ou de segurança!
D. António Couto
ANEXOS:
Ano B
XXXII Domingo Tempo Comum – Ano B – 07.11.2021
«43Chamando os discípulos, disse: «Em verdade vos digo que esta viúva pobre deitou no tesouro mais do que todos os outros; 44porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo quanto possuía, todo o seu sustento.» Mc 12, 43-44
Viver a Palavra
Quando tudo parece perdido Deus irrompe na nossa vida, oferecendo um novo horizonte de esperança. Surpreendendo a nossa fragilidade, ensina-nos que a nossa pequenez quando oferecida totalmente como dom, se torna lugar de anúncio alegre e feliz de que a vida só se torna verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Na verdade, foi assim com a viúva que depositou tudo quanto possuía na arca do tesouro e foi também assim com a viúva de Sarepta que se preparava para tomar a última refeição com o seu filho, mas visitada pelo profeta Elias e dando tudo quanto lhe restava, não lhe faltou a farinha na panela, nem o azeite na almotolia.
Deste modo, a Liturgia da Palavra deste Domingo, coloca no nosso horizonte Jesus Cristo, Sumo e Eterno Sacerdote, que se oferece todo e de uma vez para sempre e nos convoca para a entrega total das nossas vidas, advertindo-nos para o perigo de dar apenas o supérfluo, o que nos sobra ou o que não nos interessa.
Sentindo ainda ecoar no nosso coração o desafio de Jesus no Domingo passado, recordamos o convite permanente a viver a partir de um amor a Deus com todo o coração, com toda a alma, com todo o entendimento, para que amando assim a Deus, possamos amar o que Ele ama, possamos amar os irmãos que connosco trilham a estrada da vida. Jesus reclama a nossa vida toda, para que oferecida ao serviço de Deus e dos irmãos, a sintamos cada vez mais como nossa.
Por isso, Jesus começa por nos advertir para o perigo de uma prática religiosa que vive apenas para a visibilidade das ações, ao jeito dos escribas. No fundo, o horizonte da vida de quem vive assim a sua fé é mais ateu do que cristão, pois a referência decisiva para eles é o olhar dos homens e não o de Deus. No contexto atual, numa sociedade que vive tanto do parecer e do aparecer, onde as redes sociais se tornam lugar de exposição do que fazemos e vivemos, está muito presente o perigo de expor aquilo que deveria ser vivido no recolhimento, na discrição e no silêncio. Aprendamos com Jesus e com a viúva do Evangelho, a exigente arte de dar testemunho na simplicidade do coração e na entrega total da vida.
A viúva, que deposita tudo quanto possui na arca do tesouro, testemunha que na nossa vida cristã e na entrega da vida que ela exige, não está em causa uma questão de quantidade, mas de totalidade. Quem não dá tudo, por muito que possa dar, dá ainda muito pouco. Jesus ensina-nos que quem dá apenas o supérfluo deixa a vida intacta, ao contrário do dom de si que transforma a vida para sempre. Mas não deixemos que este desafio e estas palavras fiquem apenas na poética da entrega e do amor. Pensemos no concreto do nosso quotidiano: o que estamos dispostos a dar? O que nos sobra ou o que nos faz falta? Por exemplo, quando oferecemos roupa para uma qualquer campanha de solidariedade, damos o que não nos serve ou já não está em bom estado ou a peça de roupa nova que mais gostamos?
Será este modo concreto de pensar a vida e o quotidiano que marcará a diferença. É esta mudança do coração e da vida que faz irromper no tempo e na história uma nova lógica de ser e de estar, que se traduz num novo modo de servir e amar ao jeito do Mestre que, oferecendo-se todo e até ao fim, nos abriu as portas da felicidade que tem sabor de eternidade.in Voz Portucalense
LEITURA I – 1 Reis 17,10-16
«Desde aquele dia, nem a panela da farinha se esgotou, nem se esvaziou a almotolia do azeite»
Encontramos no Livro dos Reis um conjunto de tradições ligadas à vida e à acção de uma figura central do profetismo bíblico: o profeta Elias. Essas tradições aparecem, de forma intermitente, entre 1 Re 17,1 e 2 Re 2,12.
Elias (cujo nome significa “o meu Deus é o Senhor” – o que, por si só, constitui logo um programa de vida) actua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).
Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.
Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh.
O ciclo de Elias começa com o anúncio, diante do rei Acab, de uma seca que irá atingir Israel (cf. 1 Re 17,1). Essa seca é apresentada, não tanto como um castigo pelos pecados do rei, mas sobretudo como uma forma de mostrar que é Jahwéh (e não Baal, o deus cananeu das colheitas e da fertilidade, cujo culto era favorecido por Jezabel, a esposa fenícia de Acab) o verdadeiro senhor da vida que brota, cada ano, nos campos e nos rebanhos. A implacável seca leva, contudo, Elias para a cidade de Sarepta (hoje Sarafand), uma pequena cidade da costa fenícia, a cerca de 15 quilómetros a sul de Sídon. É aí que o nosso texto nos situa.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão: Ó minha alma, louva o Senhor.
LEITURA II – Hebr 9,24-28
«Ele manifestou-Se uma só vez, na plenitude dos tempos,
para destruir o pecado pelo sacrifício de Si mesmo».
No passado domingo, o autor da Carta aos Hebreus apresentava Cristo como o sumo-sacerdote por excelência, não na linha do sacerdócio levítico, mas na linha do sacerdócio de Melquisedec… Hoje, passamos a outra secção (cf. Heb 8,1-9,28), na qual o autor apresenta Cristo como o sacerdote perfeito e explica em que consiste essa perfeição e quais as suas consequências para a vida dos fiéis.
Depois de refletir sobre a imperfeição do culto antigo (cf. Heb 8,1-6), a imperfeição da antiga Aliança (cf. Heb 8,7-13) e a ineficácia dos sacrifícios oferecidos no Templo de Jerusalém (cf. Heb 9,1-10), o autor passa a explicar aos cristãos a quem a Carta se destina porque é que o sacrifício oferecido por Cristo é perfeito (cf. Heb 9,11-14) e como é que, por esse sacrifício, Cristo se torna o mediador da Nova Aliança (cf. Heb 9,15-22). No último parágrafo desta secção (cf. Heb 9,23-28), o autor tira, para a vida dos fiéis, as consequências de tudo o que disse atrás, a propósito do sacerdócio perfeito de Cristo.
Dirigindo-se a cristãos em dificuldade, que já perderam o entusiasmo inicial e que, diante das dificuldades, correm o risco de renunciar ao compromisso assumido no dia do Batismo, o autor da Carta procura animá-los e revitalizar a sua experiência de fé.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 12,38-44
«Acautelai-vos dos escribas».
«Esta pobre viúva deitou na caixa mais do que todos os outros».
«Eles deitaram do que lhes sobrava, mas ela, na sua pobreza, ofereceu tudo o que tinha».
O nosso texto situa-nos em Jerusalém, nos dias que antecedem a prisão, julgamento e morte de Jesus. Por esta altura, adensam-se as polémicas de Jesus com os representantes do Judaísmo oficial. A cada passo fica mais claro que o projeto do Reino (proposto por Jesus) é incompatível com a visão religiosa dos líderes judaicos. Num ambiente carregado de dramatismo, adivinha-se o inevitável choque decisivo entre Jesus e a instituição judaica e prepara-se o cenário da Cruz
Jesus tem consciência de que os líderes da comunidade judaica tinham transformado a religião de Moisés – com os seus ritos, exigências legais, proibições e obrigações – numa proposta vazia e estéril. Mal servida e manipulada pelos seus líderes religiosos, a comunidade judaica tinha-se transformado numa figueira seca (cf. Mc 11,12-14. 20-26), onde Deus não encontrava os frutos que esperava (o culto verdadeiro e sincero, o amor, a justiça, a misericórdia). O próprio Templo – o espaço onde se desenrolavam abundantes ritos cultuais e sumptuosas cerimónias litúrgicas – tinha deixado de ser o lugar do encontro de Deus com a comunidade israelita e tinha-se tornado um lugar de exploração e de injustiça, “um covil de ladrões” (cf. Mc 11,15-19)…
Jesus tem presente tudo isto quando ensina nos átrios do Templo, rodeado pelos discípulos. À sua volta desenrola-se esse folclore religioso, feito de ritos externos, de grandes gestos teatrais, frequentemente vazios de conteúdo. Os “doutores da Lei” (geralmente, do partido dos fariseus; estudavam e memorizavam as Escrituras e ensinavam aos seus discípulos as regras – ou “halakot” – que deviam dirigir cada passo da vida dos fiéis israelitas), com as suas vestes especiais e os traços característicos de quem se julgava com direito a todas as deferências, honras e privilégios, são mais um elemento no quadro desse culto de mentira que Jesus tem diante dos olhos.
Em contraponto, Jesus repara no “átrio das mulheres”, onde uma viúva deposita, no tesouro do Templo, a sua humilde oferta (dons voluntários eram feitos com frequência, tendo por finalidade, por exemplo, cumprir votos). As viúvas, no ambiente palestino de então (sobretudo quando não tinham filhos que as protegessem e alimentassem), eram o modelo clássico do pobre, do explorado, do débil. in Dehonianos
Para os leitores:
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Na primeira leitura, é necessário ter em atenção o diálogo entre Elias e a viúva, com especial cuidado nas intervenções em discurso direto. Deve evitar-se quer o tom demasiado dramático, quer uma leitura indistinta do discurso direto e indireto. As palavras Sarepta e almotolia devem pronunciar-se re.p.ta (lendo o p) e al.mu.tu.li.a.
A segunda leitura possui frases longas e com diversas orações. Deve fazer-se uma preparação acurada, indicando pausas e respirações, para uma proclamação mais articulada do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
DAR O QUE SOBRA NÃO TEM A MARCA DE DEUS
Um braçado de gravetos, um copo de água, um punhado de farinha, um tudo nada de azeite. Juntando as pontas destes fios soltos, a viúva de Sarepta prepara-se para fazer uma última refeição de despedida da vida juntamente com o seu filho único. É nesta terra quase a terminar, onde já mal se tem pé, nesta vida quase a expirar, que surge Elias, o homem de Deus, conduzido por Deus, que atira à pobre mulher mais um fio de voz e de esperança a que se agarrar: Deus. Não é a quantidade que importa; o que importa é a totalidade. Pelo fio de voz e de esperança de Elias, Deus não reclama alguma coisa; reclama tudo: o coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas! E nem a farinha se esgota na amassadeira, nem o fio de azeite deixa de cair da almotolia! Extraordinária lição para a pobre viúva de Sarepta (Primeiro Livro dos Reis 17,10-16) e para nós, que atravessamos a secura da paisagem desta terra de novembro.
O coração todo, a alma toda, a confiança toda, as forças todas: assim se ouve ou se lê no famoso Shemaʽ Yisraʼel [= «Escuta, Israel], de Deuteronómio 6,4-5, que tivemos a graça de ouvir no Domingo passado. E nesse lugar se diz também a Israel que deve formar com essas palavras um fio de luz e de sentido que deve atar ao coração, às mãos, aos pés, aos filhos (Deuteronómio 6,6-9). Este fio é fundamental para segurar as pontas soltas dos podres, pobres fios da nossa vida.
Bem, neste contexto, o fio ou a linha poética e melódica do Salmo 146, que põe Deus tão perto de nós, a fazer justiça aos oprimidos, a dar pão aos que têm fome, a tomar a seu cuidado o órfão e a viúva, e a atirar-me todo para Deus, com aquele grito repetido: «Ó minha alma, louva o Senhor!». O Salmo 146 é uma espécie de carrilhão musical, e convida-nos a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo ajuda-nos a saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.
Na verdade, «Deus habita nos louvores de Israel» (Salmo 22,4). Habita nos nossos louvores, na nossa dedicação e devotação total a Ele, na nossa vida posta em melodia, fio ou linha melódica que ata o nosso coração ao coração de Deus, a nossa mão à mão de Deus. Foi assim, sacerdotalmente, que Jesus Cristo se ofereceu totalmente ao Pai e a nós e por nós, deixando-nos à espera e a viver dessa espera na esperança da sua Vinda. Um fio tenso de luz e de sentido, a que se chama esperança, nos ata para sempre a esse Senhor-que-Vem. Fio ou linha musical, vital, de cada Domingo, em que cantamos: «Senhor, vem!» (marana tha’), porque sabemos que «o Senhor vem!» (maran ’atta’). O Dia de Domingo deve imprimir em nós o «tique» da esperança, deixando-nos com o pescoço esticado para Deus, situação de quem O espera e vive da sua Vinda a todo o momento. É a Lição de Hebreus 9,24-28.
O Evangelho deste Domingo XXXII do Tempo Comum, Marcos 12,38-44, põe em cena e em claro destaque uma viúva pobre que dá a Deus a sua vida toda, em contraponto com os escribas e muitos outros, que fazem bom teatro religioso (não é o caso do escriba do Domingo passado). Excelente inclusão literária no Evangelho de Marcos: da primeira vez que Jesus aparece a ensinar em público, neste Evangelho, o povo exclama: «Este ensina com autoridade, e não como os escribas!» (Marcos 1,22); a terminar a sua atividade pública neste Evangelho, é Jesus que mostra bem que não é como os escribas (Marcos 12,38-40). A cena central passa-se no átrio das mulheres do Templo de Jerusalém, num lugar chamado «Casa do Tesouro» (bêt ha-gazît) (Marcos 12,41-44). Muita gente deitava aí muito do que lhe sobrava, mas a viúva pobre deu «tudo quanto tinha, a sua vida toda!». Fio de sentido que liga este episódio ao que já encontrámos no Primeiro Livro dos Reis 17,10-16.
O Evangelho refere que a viúva é pobre. Duplamente desfavorecida, portanto. Enquanto viúva e enquanto pobre. Mas a tecla que soa mais forte, é que deu tudo, ainda que tenha dado pouco: duas pequenas moedas (leptà dýo), ou seja, um quadrante (kodrántês). O quadrante é uma coisa insignificante: é a sexagésima quarta parte de um denário! A pobre viúva recuperá-lo-ia rapidamente, mal se pusesse a pedir! O acento não está posto na quantidade, mas na totalidade. É bom que, observando bem esta cena exemplar, aprendamos a passar da mera ajuda para o dom de nós mesmos. Dom total. O discípulo de Jesus, à maneira de Jesus, deve pôr em jogo a própria vida, e não simplesmente os adereços. Tudo, e não apenas o supérfluo. Dar o que sobra não tem a marca de Deus, não é fazer a verdadeira memória de Jesus, que se entregou a si mesmo por nós (Efésios 5,2), por mim (Gálatas 2,20). O supérfluo deixa a vida intacta. O dom de si mesmo transforma a vida para sempre. A marca deste dom é a totalidade e a definitividade.
Dar a vida toda ou entreter-se com os adereços, eis a verdadeira questão, meu irmão deste Domingo de novembro.
D. António Couto
ANEXOS:
«Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?».
«Vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me». Mc 10, 17.21
Viver a Palavra
Caminhar é verbo fundamental na conjugação da vida cristã. O homem e a mulher criados à imagem e semelhança de Deus foram sonhados para participar na vida divina e trilham os caminhos da história de pés bem assentes na terra e olhos fitos no céu. A meta do caminho não permite imobilismos e comodismos, mas coloca cada pessoa em estado permanente de saída. São diferentes as capacidades e aptidões de cada um para o caminho e as dificuldades e resistências impedem tantas vezes de alcançar o ritmo desejado e as metas aneladas. Contudo, mais do que um caminho isolado, a vida da fé constrói-se num caminho conjunto, marcado pela fraternidade e comunhão, sustentado pela caridade e aberto à esperança da construção do mundo novo. Calcorreando os trilhos do tempo e da história aprendemos a conjugar ritmos, a construir pontes, a vencer dificuldades e a conceber a vida como construção permanente.
O texto evangélico proposto para este Domingo oferece indicações fundamentais para quem se quer colocar a caminho e abre com dois andamentos tão diferentes no modo de se fazer à estrada. Jesus «ia pôr-Se a caminho» e um homem «aproximou-se correndo». Jesus é o enviado do Pai, a brisa suave que percorre os caminhos da história feito carne humana, e na serenidade do caminhar estabelece encontros que geram o verdadeiro Encontro que dá sentido à nossa existência. Aquele homem caminha apressado. A inquietação e a ansiedade invadem a sua vida. Procura a vida eterna, a vida plena e verdadeira e, porventura, tudo tem feito para descobrir qual o melhor caminho a percorrer. A sua insatisfação coloca-o em movimento com passo lesto, arrojado e confiante.
A pergunta colocada a Jesus, com ousadia e humildade (ajoelhou-se), reclamam do Mestre a indicação do caminho onde se joga a vida toda, porque a vida plena e eterna. Aquele jovem procura Jesus para se encontrar a si próprio e, se começa o caminho correndo, agora ajoelha-se e detém-se junto de Jesus. O sentido da nossa existência como caminho para uma vida plena e verdadeira só se pode encontrar em Jesus Cristo e na liberdade de coração para acolher a Sua Palavra. Jesus nada impõe, mas tudo propõe. Como sábio pedagogo, paulatinamente e progressivamente nos faz tender para a meta da nossa existência. A primeira indicação que dá àquele jovem é o cumprimento dos mandamentos e, verificando que ele já os pratica desde a sua juventude, avança na proposta radical de um caminho absolutamente livre: «falta-te uma coisa: vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me».
Falta-lhe apenas uma coisa: libertar-se do peso que impede de alcançar a meta. Uma relação nova com os bens que possui para que aprenda a possuí-los. A dificuldade em entrar no Reino dos Céus para aqueles que têm riquezas, não está no maior ou menor número de bens que possuem. O problema surge quando, colocando as suas seguranças naquilo que têm, já não são eles a possuir os bens, mas os bens que os possuem a eles. A arte de aprender a contar os dias, que pedimos no salmo, implica abraçar esta corrente de desprendimento que se conjuga nesta rajada de verbos: vai, vende, dá, vem e segue-me. Deixar o que nos prende para abraçar com maior largueza de coração, passar do horizonte do bem-estar ao horizonte do bem-maior que só Jesus e o Seu amor podem oferecer. in Voz Portucalense
NOTA IMPORTANTE:
O Domingo XXVIII do Tempo Comum, dia 10 de outubro, foi anunciado como o dia de abertura oficial do caminho sinodal para XVI Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos «Por uma Igreja sinodal: comunhão, participação e missão». O Papa Francisco, em Roma, irá assinalar o início de um caminho que pode ser decisivo na vida da Igreja. A sinodalidade é «o caminho da Igreja para o Terceiro Milénio» (Papa Francisco) e, por isso, um estilo eclesial que deve moldar toda a ação da Igreja porque caracteriza a sua identidade. Deste modo, as comunidades eclesiais devem promover junto dos fiéis uma tomada de consciência da importância da sinodalidade como modo de ser Igreja, tornando mais operativas as mais diversas estruturas de participação e gerando processos sinodais renovados e renovadores. in Voz Portucalense
LEITURA I – Sab 7,7-11
«Amei-a mais do que a saúde e a beleza e decidi tê-la como luz, porque o seu brilho jamais se extingue»
O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento (aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egipto), num meio fortemente helenizado. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.
É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.
O texto que nos é proposto integra a segunda parte do livro (cf. Sab 6,1-9,18). Aí, o autor apresenta o “elogio da sabedoria”. Este “elogio da sabedoria” pode dividir-se em três pontos… No primeiro (cf. Sab 6,1-21), há uma exortação aos reis no sentido de adquirirem a “sabedoria”; no segundo (cf. Sab 6,22-8,21), há uma descrição da natureza e das propriedades da “sabedoria”, aqui apresentada como o valor mais importante entre todos os valores que o homem pode adquirir; no terceiro (cf. Sab 9,1-18), aparece uma longa oração do autor, implorando de Jahwéh a “sabedoria”.
O que é esta “sabedoria” de que aqui se fala? É, fundamentalmente, a capacidade de fazer as escolhas corretas, de tomar as decisões certas, de escolher os valores verdadeiros que conduzem o homem ao êxito, à realização, à felicidade. Na perspetiva dos “sábios” de Israel, esta “sabedoria” vem de Deus e é um dom que Deus oferece a todos os homens que tiverem o coração disponível para o acolher. É preciso, portanto, ter os ouvidos atentos para escutar e o coração disponível para acolher a “sabedoria” que Deus quer oferecer a todos os homens.
O autor deste “elogio da sabedoria” apresenta-se a si próprio como o rei Salomão (embora o nome do rei nunca seja referido explicitamente). Na realidade, o “Livro da Sabedoria” não vem de Salomão (já vimos que é um texto escrito no séc. I a.C., por um judeu da Diáspora, possivelmente de Alexandria); mas Salomão, o protótipo do rei sábio era, para os israelitas, a pessoa indicada para apresentar a “sabedoria” e para a recomendar a todos os homens. Usando uma ficção literária, o autor coloca, pois, na boca de Salomão este discurso sapiencial.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 89 (90)
Refrão: Enchei-nos da vossa misericórdia: será ela a nossa alegria.
LEITURA II – Hebr 4,12-13
«A palavra de Deus é viva e eficaz, mais cortante que uma espada de dois gumes».
Já vimos, no passado domingo, que a Carta aos Hebreus é um sermão destinado a comunidades cristãs instaladas na monotonia e na mediocridade, que se deixaram contaminar pelo desânimo e começaram a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a viver uma fé mais coerente e empenhada.
Nesse sentido, o autor apresenta o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência, cuja missão é pôr os crentes em relação com o Pai e inseri-los nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã. Uma vez comprometidos com Cristo, os crentes devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação, pela monotonia e pelo arrefecimento do entusiasmo inicial.
O texto que nos é proposto está incluído na segunda parte da Carta aos Hebreus (cf. Heb 3,1-5,10). Aí, o autor apresenta Jesus como o sacerdote fiel e misericordioso que o Pai enviou ao mundo para mudar os corações dos homens e para os aproximar de Deus. Aos crentes pede-se que “acreditem” em Jesus – isto é, que escutem atentamente as propostas que Cristo veio fazer, que as acolham no coração e que as transformem em gestos concretos de vida.
O texto que nos é proposto é uma espécie de hino a essa Palavra de Deus que Jesus Cristo veio trazer aos homens. O objetivo do autor, com esta reflexão, é levar os crentes a escutar atentamente a Palavra proposta por Jesus.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 10,17-30
«Bom Mestre, que hei-de fazer para alcançar a vida eterna?».
«Vai vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me».
«Como será difícil para os que têm riquezas entrar no reino de Deus!».
Depois de deixar “a casa” (cf. Mc 10,10), Jesus continua o seu caminho através da Judeia e da Transjordânia, em direção a Jericó (cf. Mc 10,46), percorrendo um percurso geográfico que constitui a penúltima etapa da sua viagem para Jerusalém. Contudo, o caminho que Jesus faz com os discípulos é também um caminho espiritual, durante o qual Jesus vai completando a sua catequese aos discípulos sobre as exigências do Reino e as condições para integrar a comunidade messiânica. Desta vez, a questão posta por um homem rico acerca das condições para alcançar a vida eterna dá a Jesus a oportunidade para avisar os discípulos acerca da incompatibilidade entre o Reino e o apego às riquezas.
Na perspetiva dos teólogos de Israel, as riquezas são uma bênção de Deus (cf. Dt 28,3-8); mas a catequese tradicional também está consciente de que colocar a confiança e a esperança nos bens materiais envenena o coração do homem, torna-o orgulhoso e autossuficiente e afasta-o de Deus e das suas propostas (cf. Sal 49,7-8; 62,11). Jesus vai retomar a catequese tradicional, mas desta vez na perspetiva do Reino. in Dehonianos
Para os leitores:
A primeira leitura é um texto de estilo poético, pelo que a sua proclamação deve respeitar este estilo literário para uma melhor transmissão da mensagem.
A brevidade da segunda leitura e a aparente facilidade na proclamação do texto não devem permitir descurar a sua preparação. As frases com diversas orações exigem especial cuidado nas pausas e respirações.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
PELO BURACO DA AGULHA
Um punhado de terra, eis quanto é toda a riqueza do mundo comparada com a sabedoria que vem de Deus (Sabedoria 7,9). Por isso, pedimos, cantando, com o Salmo 90,12, que Deus nos dê a Sabedoria do coração: entenda-se o bom senso, a sensibilidade e a bondade, e que elas sejam a medida com que acertamos diariamente os nossos comportamentos e os batimentos do nosso coração.
Vem depois, no Evangelho deste Domingo XXVIII do Tempo Comum (Marcos 10,17-30), aquele homem rico, sincero, educado e de boa prática religiosa, que parece ter estado ali à espera de Jesus, pois tinha «uma coisa» que só podia tratar com Jesus. Jesus sai de casa em Marcos 10,10, para seguir o seu caminho, que é também o caminho da formação dos seus discípulos. Mal o vê, o homem rico entra subitamente NO CAMINHO de Jesus, pedindo-lhe que lhe aponte o caminho para a vida eterna. Mal ele sabia que tinha acabado de entrar nesse CAMINHO e nessa VIDA, e que bastava seguir tranquilamente Jesus até ao fim. Jesus é o Mestre novo, verdadeiro líder pró-ativo, que não ensina como os escribas. Ele sabe o caminho, mostra o caminho, faz o caminho. Por isso, passa e chama, dizendo: «Vinde atrás de Mim!».
O homem rico, educado e de boa prática religiosa entra no CAMINHO, e Jesus entra nele, pois olha dentro dele (verbo emblépô) com amor divino. Único verdadeiro olhar de Deus, que vê sempre dentro, vê sempre o coração, vê sempre com o coração.
E aquela imensa, inesquecível rajada de verbos: Vai, vende, dá, vem e segue-me!, que atravessou o coração do homem rico, e ainda hoje nos atravessa a nós. Queira Deus que atravesse verdadeiramente o nosso coração. É, estou convicto, ainda hoje, a «uma coisa» (hén) que nos falta!
E aquele homem rico, educado e de boa prática religiosa, em quem facilmente nos poderemos rever, saiu do CAMINHO, ficou sem caminho e sem horizontes, triste e tão-somente agarrado ao seu punhado de terra!
Jesus olha agora o coração e com o coração os seus discípulos, a quem trata por «filhos» (única vez no Evangelho de Marcos!), contrapondo a riqueza ao Reino de Deus. Sim, não há maneira de nos salvarmos; há apenas maneira de sermos salvos! A metáfora do camelo e do buraco da agulha é bem expressiva e impressiva, sendo o camelo o animal de maiores dimensões conhecido no mundo de Jesus e dos seus discípulos, e o buraco da agulha uma das aberturas mais pequenas!
E aquele elenco fantástico apresentado por Jesus: casas, irmãos, irmãs, mãe, pai, filhos e terras. Quase ninguém repara nisto, e somos quase sempre levados a pensar que Jesus fornece dois elencos: uma das coisas que há que deixar e outro das coisas que há que ganhar! Aí está a velha lógica das coisas materiais versus coisas espirituais! Mas Jesus apresenta apenas um elenco repetido. É a maneira de ver que deve mudar: do ter para o receber! Temos de aprender a ver o coração e com o coração, como Jesus. Podemos admirar a beleza de uma flor, mesmo quando está no jardim do nosso vizinho.
Pois, argumenta Pedro, também ele homem educado e de boa prática religiosa: «Se é assim, quem é que se salva?» E Jesus: «Aos homens é impossível, mas a Deus tudo é possível!». É, portanto, para Deus que nos devemos voltar completamente. E aí está a lição inultrapassável do Mestre pró-ativo, que sabe o caminho, mostra o caminho e faz o caminho. Escreve S. Paulo: «Jesus Cristo, sendo rico, fez-se pobre por causa de nós, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9).
A que faz eco o estranho negócio que o monge cartuxo diz que fez: «Vendi o sentimento de me julgar indispensável, e comprei a minha inutilidade», olhando para a Cruz na qual «Jesus já não era útil a ninguém, mas nos estava a salvar a todos» (Monges da Cartuxa São Bruno, Sentieri del deserto [2001], p. 26).
O Salmo 90 põe em cena a eternidade e a solidez de Deus em confronto com a fragilidade e o sabor efémero da vida humana, sempre vista no microscópio de Deus. Este confronto é cantado na elegia sapiencial dos vv. 1-10, sendo de súplica os vv. 11-17. O primeiro movimento pode resumir-se na afirmação do v. 4: «Mil anos aos teus olhos são o dia de ontem que passou, como uma vigília da noite». E o segundo movimento tem o seu ponto alto no v. 12: «Ensina-nos a bem contar os nossos anos, para chegarmos à sabedoria do coração». Estar de passagem e sermos tão frágeis como a flor da erva (vv. 5-6), não nos leva para o pessimismo, mas para viver intensamente a vida que Deus nos dá, Ele que é e permanece o nosso refúgio de geração em geração (v. 1). O grande estudioso dos Salmos, Artur Weiser (1893-1978), alemão, de tradição Evangélica, expressa bem esta realidade: «Na luz da graça de Deus, um reflexo de eternidade cai também sobre a vida e sobre a obra do homem. Da parte de Deus, a fragilidade recebe subsistência, a miséria torna-se glória, aquilo que parecia sem sentido, alcança significado… É como se a estrela de outro mundo viesse fazer luz sobre o fluir dos nossos dias».
Entretanto, não esqueçamos o bisturi da Palavra de Deus, que anda dentro de nós e opera a esclerose do nosso coração (Hebreus 4,12; cf. Salmo 149,6).
D. António Couto
ANEXOS:
«9Pois bem, o que Deus uniu não o separe o homem.» Mc 10,9
Viver a Palavra
Um grupo de fariseus aproxima-se de Jesus e dirigem-se a Ele com a intenção de O colocar à prova. No Evangelho são muitos os que se abeiram de Jesus e são tão variadas as motivações que os colocam a caminho. Dois mil anos depois, também nós integramos a multidão imensa de homens e mulheres que percorrem os trilhos da história e sentem a necessidade de se encaminharem para Jesus. Mas quais são as motivações que invadem o nosso coração? Não basta ir ao encontro de Jesus para O encontrar! É necessário criar a docilidade e a disponibilidade para fazer do encontro com Ele um lugar decisivo de transformação e de conversão. O Evangelho do Amor e da Alegria é uma proposta que reclama uma adesão livre para inscrever a nossa vida no horizonte de liberdade e de graça que o Ressuscitado na força do Espírito nos oferece.
Os fariseus trazem a Jesus uma questão muito concreta e para a qual conheciam bem a resposta. Qualquer fariseu, conhecedor da Lei de Moisés, sabia que era lícito «um homem repudiar a sua mulher», passando-lhe um certificado de divórcio. Contudo, esta permissão, segundo Jesus, é apenas sinal da dureza de coração e insere-se na longa e paciente pedagogia de Deus. A doença que Jesus mais teme é esta dureza de coração e, por isso, afirma algo de absolutamente desconcertante: nem toda a lei é divina, nem sempre é um reflexo da vontade de Deus e, por vezes, é mesmo o reflexo da dureza do nosso coração e da intransigência dos nossos esquemas e preconceitos.
O ponto de partida da reflexão cristã não é uma moral ou uma doutrina, mas o encontro único, íntimo e decisivo com Jesus Cristo. A iniciativa é sempre de Deus e do Seu amor superabundante. A fé não nasce do «pode ou não pode», do «lícito ou ilícito», mas do amor misericordioso de Deus que nos faz redescobrir a nossa verdadeira identidade e missão. Aqui não reside nenhum laxismo ou relativismo, mas a certeza de que o ponto de partida é a iniciativa amorosa de Deus que reclama a nossa adesão livre e este encontro transformador rasga horizontes novos que nos impelem a percorrer com ousadia e coragem a estrada inaudita da conversão.
Jesus recorda que a nossa vida se inscreve no sonho primordial e original de Deus que nos criou à Sua imagem e semelhança na complementaridade e alteridade que cria harmonia e gera comunhão. Por isso, o problema não é a licitude ou ilicitude do repúdio, mas o convite a manter vivo o sonho primordial e original. Jesus reafirma o projeto do Criador e recorda a missão de cuidar do mundo fazendo dele um lugar de unidade.
Jesus vai ainda mais longe e declara a igualdade entre homem e mulher no compromisso de uma construção conjunta na busca da realização e felicidade, na fidelidade ao projeto criador: «quem repudiar a sua mulher e casar com outra, comete adultério contra a primeira. E se a mulher repudiar o seu marido e casar com outro, comete adultério». O caminho é exigente, mas é possível. É uma proposta de realização e felicidade que não consente exclusão ou discriminação, mas reclama acolhimento e integração.
Acolhendo as crianças que os discípulos teimavam em afastar, Jesus recorda que o acolhimento é marca fundamental daqueles que O querem seguir. A Igreja do século XXI, a Igreja sinodal da escuta e da comunhão, só poderá realizar a sua missão como mãe acolhedora que, antes de qualquer distinção ou imposição, abre os braços da sua misericórdia e recorda que com um coração de criança acolhemos o Reino novo que Jesus veio inaugurar porque somos capazes de abrir o coração à vida nova que Deus faz despontar diante de nós. in Voz Poirtucalense
LEITURA I – Gen 2, 18-24
«Não é bom que o homem esteja só: vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele»
O texto de Gn 2,4b-3,24 – conhecido como relato jahwista da criação – é, de acordo com a maioria dos comentadores, um texto do séc. X a.C., que deve ter aparecido em Judá na época do rei Salomão. Apresenta-se num estilo exuberante, colorido, pitoresco. Parece ser obra de um catequista popular, que ensina recorrendo a imagens sugestivas, coloridas e fortes. Não podemos, de forma nenhuma, ver neste texto uma reportagem jornalística de acontecimentos passados na aurora da humanidade. A finalidade do autor não é científica ou histórica, mas teológica: mais do que ensinar como o mundo e o homem apareceram, ele quer dizer-nos que na origem da vida e do homem está Jahwéh. Trata-se, portanto, de uma página de catequese e não de um tratado destinado a explicar cientificamente as origens do mundo e da vida.
Para apresentar essa catequese aos homens do séc. X a.C., os teólogos jahwistas utilizaram elementos simbólicos e literários das cosmogonias mesopotâmicas (por exemplo, a formação do homem “do pó da terra” é um elemento que aparece sempre nos mitos de origem mesopotâmicos); no entanto, transformaram e adaptaram os símbolos retirados das narrações lendárias de outros povos, dando-lhes um novo enquadramento, uma nova interpretação e pondo-os ao serviço da catequese e da fé de Israel. Ou seja: a linguagem e a apresentação literária das narrações bíblicas da criação apresentam paralelos significativos com os mitos de origem dos povos da zona do Crescente Fértil; mas as conclusões teológicas – sobretudo o ensinamento sobre Deus e sobre o lugar que o homem ocupa no projeto de Deus – são muito diferentes.
O texto que nos é hoje proposto como primeira leitura situa-nos no “jardim do Éden”, um espaço ideal onde Deus colocou o homem que criou, um ambiente de felicidade material onde todas as exigências da vida humana estavam satisfeitas. É um lugar de água abundante e com muitas árvores (para quem sentia pesar sobre si a ameaça do deserto árido, a ideia de felicidade seria um lugar com muita água, um clima de frescura, um ambiente de árvores e de verdura abundante). O homem tinha, então, tudo para ser feliz? Ainda não. Na perspetiva do catequista jahwista, o homem não estava plenamente realizado, pois faltava-lhe alguém com quem compartilhar a vida e a felicidade. O homem não foi criado para viver sozinho, mas para viver em relação. É esse problema que Deus, com solicitude e amor, vai resolver… in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 127 (128)
Refrão: O Senhor nos abençoe em toda a nossa vida.
LEITURA II – Hebr 2,9-11
«Aquele que santifica e os que são santificados procedem todos de um só. Por isso, não Se envergonha de lhes chamar irmãos.».
A Carta aos Hebreus é um sermão de um autor cristão anónimo, provavelmente elaborado nos anos que antecederam a destruição do Templo de Jerusalém (ano 70). Destina-se a comunidades cristãs não identificadas (o título “aos hebreus” foi-lhe colado posteriormente e provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). Trata-se, em qualquer caso, de comunidades cristãs em situação difícil, expostas a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… Os membros dessas comunidades perderam já o fervor inicial pelo Evangelho, deixaram-se contaminar pelo desânimo e começam a ceder à sedução de certas doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor deste “discurso” é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé.
A Carta aos Hebreus apresenta – recorrendo à linguagem da teologia judaica – o mistério de Cristo, o sacerdote por excelência – através de quem os homens têm acesso livre a Deus e são inseridos na comunhão real e definitiva com Deus. O autor aproveita, na sequência, para refletir nas implicações desse facto: postos em relação com o Pai por Cristo/sacerdote, os crentes são inseridos nesse Povo sacerdotal que é a comunidade cristã e devem fazer da sua vida um contínuo sacrifício de louvor, de entrega e de amor. Desta forma, o autor oferece aos cristãos um aprofundamento e uma ampliação da fé primitiva, capaz de revitalizar a sua experiência de fé, enfraquecida pela acomodação e pela perseguição.
O texto que nos é proposto está incluído na primeira parte da Carta (cf. Heb 1,5-2,18). Aí, o autor recolhe e repete aquilo que a catequese primitiva afirmava sobre o mistério de Cristo: a sua incarnação, a sua paixão e morte, a sua glorificação pela ressurreição. Ao longo destes dois capítulos, o autor vai afirmando a superioridade de Jesus em relação a todas as criaturas, nomeadamente em relação aos anjos. in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 10,2-16
«Pode um homem repudiar a sua mulher?».
«Não separe o homem o que Deus uniu».
«Quem não acolher o reino de Deus como uma criança, não entrará nele».
Despedindo-se definitivamente da Galileia, Jesus continua o seu caminho para Jerusalém, ao encontro do seu destino final. O episódio de hoje situa-nos “na região da Judeia, para além do Jordão” (vers. 1) – isto é, no território transjordânico da Pereia, território governado por Herodes Antipas, o mesmo que havia assassinado João Baptista quando este o criticou por haver abandonado a sua esposa legítima. Aí, Jesus volta a confrontar-Se com as multidões e a dirigir-lhes os seus ensinamentos. Os discípulos, contudo, continuam a rodear Jesus e a beneficiar de uma instrução especial.
Entram de novo em cena os fariseus, não para escutar as suas propostas, mas para O experimentar e para Lhe apanhar uma declaração comprometedora. São esses fanáticos da Lei que vão proporcionar a Jesus a oportunidade de Se pronunciar sobre uma questão delicada e comprometedora: o matrimónio e o divórcio.
Tratava-se, na realidade, de uma questão “quente” e não totalmente consensual nas discussões dos “mestres” de Israel. A Lei de Israel permitia o divórcio (“quando um homem tomar uma mulher e a desposar, se depois ela deixar de lhe agradar, por ter descoberto nela algo de inconveniente, escrever-lhe-á um documento de divórcio, entregar-lho-á em mão e despedi-la-á de sua casa” – Dt 24,1); mas não era totalmente clara acerca das razões que poderiam fundamentar a rejeição da mulher pelo marido. Na época de Jesus, as duas grandes escolas teológicas do tempo divergiam na interpretação da Lei do divórcio. A escola de Hillel ensinava que qualquer motivo, mesmo o mais fútil (porque a esposa cozinhava mal ou porque o marido gostava mais de outra), servia para o homem despedir a mulher; a escola de Shammai, mais rigorosa, defendia que só uma razão muito grave (o adultério ou a má conduta da mulher) dava ao marido o direito de repudiar a sua esposa. A mulher, por sua vez, era autorizada a obter o divórcio em tribunal somente no caso de o marido estar afetado pela lepra ou exercer um ofício repugnante.
É nesta discussão de contornos pouco claros que os fariseus procuram envolver Jesus. Uma resposta negativa por parte de Jesus seria, certamente, interpretada como uma condenação do matrimónio de Herodes Antipas com Herodíades, a sua cunhada. A pergunta dos fariseus insere-se, provavelmente, na tentativa de encontrar razões para eliminar Jesus. in Dehonianos
Para os leitores:
Na primeira leitura deve haver especial atenção nas duas frases em discurso directo e na proclamação dos verbos que as introduzem. O leitor deve estar atento à respiração e às pausas nas frases e orações curtas, para uma leitura articulada e fluente do texto.
Na segunda leitura, as frases longas com diferentes orações exigem não só o respeito pela pontuação, como uma preparação acurada das pausas e respirações de acordo com o conteúdo e mensagem do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
A DOENÇA DA SKLÊROKARDÍA
Além dos quatro episódios que decorrem fora das fronteiras de Israel (três na Decápole, a oriente do Mar da Galileia, e um na região de Tiro, a noroeste de Israel) (ver Domingo XXIII), a ação de Jesus decorre quase toda na Galileia (Marcos 1-9) e em Jerusalém (Marcos 11-16), tendo pelo meio a viagem da Galileia para Jerusalém (Marcos 10): em Marcos 10,1, Jesus sai de Cafarnaum, onde esteve em Marcos 9,33-50; em Marcos 10,46, chega a Jericó; em Marcos 11,1, está nas imediações de Jerusalém. Serve este levantamento topográfico para situar o episódio do Evangelho deste Domingo XXVII (Marcos 10,2-16) após a saída de Cafarnaum, a caminho da Judeia e de Jerusalém, viagem feita, não pela Samaria, mas descendo pela margem oriental do Jordão, talvez na Pereia, onde a comunidade judaica era considerável (Marcos 10,1a). O narrador ainda nos informa que as multidões (óchloi), única vez no plural em Marcos, vieram ter com Ele, que, como de costume (hôs eiôthei), expressão só aqui usada em Marcos, os ensinava (Marcos 10,1b).
É também aqui que os fariseus, mais uma vez «para pôr Jesus à prova» (peirázzô) (cf. 8,11; 12,15), lhe perguntam «se é lícito (éxestin) ao homem repudiar (apolýô) a sua mulher» (Marcos 10,2). A pergunta é uma armadilha, por mais de uma razão. Primeiro, porque este modo de fazer era já usual entre os judeus. Se Jesus desse uma resposta negativa, corria o risco de provocar um alvoroço entre os homens que o ouviam. Segundo, porque podia acentuar o conflito com Herodes Antipas, que já tinha feito prender João Batista, por este ter protestado contra a sua relação irregular com Herodíades (Marcos 6,18). Terceiro, porque se desse uma resposta positiva, corria o risco de entrar numa discussão académica interminável e inútil, pois eram conhecidas interpretações diversas, entre o rigorismo e o laxismo. Por exemplo, a escola rigorista de Shammai era de opinião que a separação só devia ser permitida em caso de adultério, enquanto a escola liberal de Hillel achava que a separação era permitida por tudo e por nada.
Portanto, Jesus não se deixa apanhar na armadilha, e pergunta por sua vez aos fariseus: «O que é que vos ordenou (entéllomai) Moisés?» (Marcos 10,3). Eles tiveram de responder: «Moisés permitiu (epitrépô) escrever uma ata de divórcio e repudiar» (Marcos 10,4). Os fariseus estão a citar o Livro do Deuteronómio 24,1, e vê-se que interpretavam esta prescrição de Moisés como permissão do divórcio. De onde se deduzia que os homens (só os homens) têm o direito de repudiar as suas mulheres, direito a que as mulheres não tinham direito, pois não podiam separar-se dos seus maridos. Ouvida esta resposta, Jesus entra então na argumentação a sério, referindo que Moisés não permitiu o divórcio, mas apenas quis pôr ordem e humanidade numa situação que os homens tinham criado, e que gerava muitas complicações. Na verdade, a mulher repudiada, se o divórcio não fosse devidamente documentado, continuava ligada ao seu anterior marido, e não ficava livre para se voltar a casar; podia ser vista como uma mulher casada em fuga, e, caso se viesse a ligar a outro homem, podia ser acusada de adultério e ser condenada à morte por lapidação (cf. Deuteronómio 22,22).
Tirado isto a limpo, Jesus declara então que esta prescrição de Moisés não se destina a permitir o divórcio, mas a pôr os necessários limites à «dureza do coração» ou «esclerose do coração», a famosa sklêrokardía dos homens, a verdadeira responsável pelo divórcio (Marcos 10,5). Esclarecido então o alcance da prescrição de Moisés, meramente corretiva de uma situação que a «esclerose do coração» dos homens criou, e que, lendo bem o Livro do Deuteronómio 10,12-22, significa o fechamento do homem a Deus, à sua bondade, à sua grandeza e à sua vontade (ver a expressão em Deuteronómio 10,16 e Jeremias 4,4), Jesus passa logo a expor (Marcos 10,6-8) a vontade de Deus sobre o casal humano, como se pode ver lendo os relatos da criação: «Deus os fez homem e mulher» (Génesis 1,27); «o homem deixará o seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne» (Génesis 2,24). E conclui: «Não separe o homem o que Deus uniu» (Marcos 10,9).
Depois, em casa (Marcos 10,10), lugar da intimidade, Jesus explica aos seus discípulos que tanto incorre em adultério o homem como a mulher que abandonam os respetivos cônjuges e casam com outros (Marcos 10,11-12). Com este dizer, alargado à mulher, Jesus estende o bisturi também à nossa sklêrokardía. De facto, aos fariseus Jesus apenas falou do homem que repudia a sua mulher e casa com outra, porque, em mundo judaico, não era permitido à mulher repudiar o marido, para casar com outro. Era, porém, permitido em mundo grego. E é sabido que os destinatários diretos do Evangelho de Marcos vivem no mundo greco-romano.
E Jesus mostra de novo aos seus discípulos que é necessário romper a crosta da nossa importância, que nos separa de Deus e dos pequeninos (Marcos 10,13-16). Também aqui se trata de sklêrokardía. Em boa verdade, envoltos na crosta da nossa importância, já não sabemos receber. E o reino de Deus não é para comprar ou conquistar, mas unicamente para receber. Daí a importância das crianças para Jesus. Não é a sua inocência e candura que aqui é salientada, mas o facto de serem dependentes e confiantes.
Aí está, então, o chão do Evangelho de hoje, a vontade de Deus expressa na Criação, a que Jesus faz referência (Génesis 2,18-24). A extraordinária narrativa abre com a constatação enfática por parte de Deus de um problema gravíssimo que pode acarretar a morte do homem. Este problema chama-se «solidão». Deus é levado a afirmar: «Não é, de facto, bom (lo’-tôb) que o HOMEM (ha’adam) esteja só (lebaddô)» (Génesis 2,18a). Note-se que este enfático «não bom» colide com o «sete vezes bom» e o «SIM» que enchia Génesis 1,1-2,4a, ao todo 452 palavras em que não soa um único «não», e o «bom» se faz ouvir por sete vezes.
Tendo constatado o o grave perigo que ameaça o homem, Deus trata logo de remediar a situação, propondo-se «Fazer (‘asah) um auxílio (‘ezer) a ele correspondente (kenegdô)» (Génesis 2,18b). Note-se outra vez o uso do masculino ‘ezer, e não do feminino ‘ezrah. Neste contexto, em que ‘ezer designará a mulher, mas não só, o uso do masculino é fruto com certeza de uma escolha premeditada, sendo, por isso, de lhe atribuir especial importância. Na verdade, a exegese moderna mostrou que o título «auxílio» (‘ezer), que aparece no Antigo Testamento por 21 vezes [= Génesis 2,18.20; Êxodo 18,4; Deuteronómio 33;7.26.29; Salmo 20,3; 33,20; 70,6; 89,20; 115,9.10.11; 121,1.2; 124,8; 146,5; Isaías 30,5; Ezequiel 12,14; Os 13,9; Daniel 11,34], é, na maioria dos casos, excetuadas as duas menções do Génesis, um título dado direta ou indiretamente a Deus, que é o verdadeiro «auxílio» do homem. Trata-se, em todos os casos, de um auxílio pessoal, e não instrumental, sendo mesmo um auxílio indispensável em situações de extremo perigo, não longe da fronteira que separa a vida e a morte. Qual é então o perigo que ameaça o homem em Génesis 2,18? É certamente a solidão. E a verdadeira solidão chama-se coisificação. Sim, o homem pode perder-se no meio de objetos, coisificando também Deus e os outros. É Deus normalmente o auxílio do homem. A mulher surge na mente de Deus com o título grande de «auxílio» do varão, assim como o varão é o «auxílio» da mulher, e qualquer ser humano deve ser o «auxílio» de outro ser humano. Está assim desvendado o estranho uso, neste contexto, do masculino ‘ezer.
Por sua vez, a expressão kenegdô assenta na preposição neged [= ao lado de, diante de, contra], mas remete ainda para o hiphil higgîd [= narrar], e, portanto, para um sujeito de palavra, deixando entrever que o «auxílio» que Deus se propõe fazer seja alguém que saiba estar «ao lado de» alguém, não de forma tirânica e prepotente, mas apto para a doçura da palavra.
É então que, de um lado (tsela‘) do ser humano, Deus «constrói» (banah) a mulher (’ishshah) (Génesis 2,22). O texto diz tudo. Sendo um lado, fica logo dito que a mulher e o homem, juntos, são dois lados, que formam uma unidade, como os dois lados de uma porta ou de uma janela. Não se pode destruir um sem destruir também o outro. Por outro lado, ao usar o verbo «construir» (banah) para a mulher, fica já igualmente dito, por assonância, o mundo da mulher: «filhos» (banîm), «casa» (bêt). Quanto a ’ishshah, é simplesmente o feminino de ’îsh.
Ainda que não tenhamos reparado nisso, tivemos de esperar até agora, para ouvirmos pela primeira vez a voz humana a ecoar no cenário da criação. E é significativo que tal suceda para o homem expressar o seu alvoroço de noivo, saudando extasiado a mulher-noiva com a expressão familiar «osso dos meus ossos e carne da minha carne» (Génesis 2,23), primeiro canto de amor e ao amor que se encontra nas páginas da Bíblia. O relato da aparição da mulher não deve fazer esquecer que é relatada, em estreito paralelismo, a aparição da linguagem.
E porque são o auxílio um do outro, o lado um do outro, identificando-se um pelo outro (veja-se o jogo de ’îsh e ’ishshah), «o homem (’îsh) deixará o seu pai e a sua mãe, e se unirá amorosamente à sua mulher (’ishshah), e serão [os dois] uma só carne» (Génesis 2,24). Convenhamos em que a expressão é insólita! No sistema patriarcal, é a mulher, e não o homem, que deixa a sua família. Mas o insólito serve aqui talvez para realçar a grande força do amor, e para mostrar que é só outro amor, e só ele, que pode separar do primeiro amor, o amor dos pais. De resto, o texto não pretende, com certeza, fazer qualquer referência a um sentido matriarcal, mas quer sobretudo acentuar que são os dois a deixar um amor anterior, porque encontraram um amor mais forte. «Forte como a morte o amor»! (Cântico dos Cânticos 8,6). Inegociável o amor. Não separe o homem o que Deus uniu.
Sim, as 45 palavras hebraicas do salmo 128 enchem-nos de paz, luz, serenidade. Respira-se também a fragrância da videira e a juventude da oliveira. Mas a família cantada neste Salmo não está fechada sobre si mesma, mas aberta à comunidade por Deus abençoada. Portanto, do perímetro da casa e da mesa em que vivem e se sentam pais e filhos, avista-se e sente-se a paz da Cidade Santa, Jerusalém. Não é de admirar que a tradição judaica tenha sabido extrair deste Salmo as «sete bênçãos para as núpcias». Saboreemos o perfume deste extrato: «Bendito, ó Senhor, que concedeste ao esposo e à esposa júbilo, canto, gozo, alegria, amor, paz, fraternidade e amizade. Possam depressa e para sempre, ó Senhor, ressoar gritos de gozo em Jerusalém, cidade santa. Possa levantar-se, cheia, a voz jubilosa do esposo e da esposa e os coros gozosos de quem os acompanha na sua alegria. Bendito és tu, Senhor, que alegras o esposo com a sua esposa!».
E assim também com aquele que incarnou no nosso mundo, que deu a sua vida por nós, e sacerdotalmente nos santifica, e não se envergonha de nos chamar seus irmãos. É assim a homilia da Carta aos Hebreus que hoje iniciamos (2,9-11).
D. António Couto
ANEXOS:
42E se alguém escandalizar um destes pequeninos que creem em mim, melhor seria para ele atarem-lhe ao pescoço uma dessas mós que são giradas pelos jumentos, e lançarem-no ao mar.” Mc 9,42
Viver a Palavra
Acolhimento, testemunho coerente e conversão são os grandes desafios que emergem da Liturgia da Palavra deste XXVI Domingo do Tempo Comum.
Jesus continua a caminhar com os discípulos, conduzindo-os pela estrada nova do amor, fazendo-os experimentar a surpreendente lógica do Reino. Contudo, os discípulos sentem ainda a dificuldade de se deixar moldar pela Boa Nova que implica um acolhimento sem obstáculos nem barreiras, um testemunho coerente e credível que os introduz num caminho de conversão permanente.
«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome e procurámos impedir-lho, porque ele não anda connosco». Aquele homem expulsava demónios, restituía gente à vida e fazia-o em nome de Jesus, mas os discípulos impedem-no porque não pertencia ao grupo deles. Preocupa-os mais a defesa do grupo, que o bem que aquele homem fazia. E bem sabemos como é tão humana esta tentação, pois já na primeira leitura, Josué, vendo Eldad e Medad a profetizar, pede a Moisés que os proíba. Por isso, Jesus adverte aos discípulos: «não o proibais; porque ninguém pode fazer um milagre em meu nome e depois dizer mal de Mim. Quem não é contra nós é por nós». Diante da tentação de proibir, afastar ou condenar, Jesus convida ao acolhimento que não desiste de ninguém, que é capaz de olhar para cada fenda aberta onde o amor pode ser semeado. Ficamos perplexos com este aparente frágil, fácil e ligeiro critério de ingresso no amor: «quem não é contra nós é por nós». Mas que libertador é o Mestre que tem sempre um caminho estendido para quem O procura! A proibição e o impedimento servem apenas para afastar e excluir. O acolhimento é único caminho que pode gerar vida, conversão e arrependimento.
Diante de um mundo a transformar pela força do amor, são precisos seguidores de Jesus, com testemunho coerente e credível, pois como preveniu Jesus: «se alguém escandalizar algum destes pequeninos que creem em Mim, melhor seria para ele que lhe atassem ao pescoço uma dessas mós movidas por um jumento e o lançassem ao mar». Deste modo, porque somos frágeis e pecadores, a coerência será sempre um grande desafio que nos impele a abraçar a conversão como tarefa permanente da nossa vida cristã.
Apesar de exigente, a conversão e a renovação da vida, deve começar pelos pequenos gestos do quotidiano. Como é consolador ver como Jesus simplifica a vida: «quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa». Um copo de água, um sorriso, um abraço, uma visita a um doente, uma conversa com alguém que está sozinho: gestos pequenos e aparentemente banais, mas que semeiam no tempo e na história o amor e fazem despontar a esperança de um mundo mais fraterno e feliz.
Contudo, a mensagem final do Evangelho parece tão dura e exigente: se a tua mão, se o teu pé ou o teu olho são ocasião de escândalo, corta-os. De facto, é necessária coragem para a renúncia daquilo que pode ser obstáculo à entrada do Reino, pois a entrada não acontece a partir daquilo que possuímos ou amealhamos, como nos recorda S. Tiago na segunda leitura, mas por aquilo que somos capazes de oferecer, deixar e renunciar. A solução não está numa mão cortada, mas numa mão convertida que oferece um copo de água.
Por isso, acolhimento, testemunho e conversão semeiam a esperança do mundo novo que Jesus veio anunciar e inauguram no aqui e agora do tempo, o Reino que há-de ser em plenitude no Céu.in Voz Poirtucalense
LEITURA I – Num 11,25-29
«Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta e que o Senhor infundisse o seu Espírito sobre eles!».
O Livro dos Números (assim chamado na versão grega, pelo facto de o livro começar com uma lista de recenseamento onde são dados os números de membros de cada tribo do Povo de Deus) apresenta um conjunto de tradições – sem grande preocupação de coerência e de lógica – sobre a estadia no deserto dos hebreus libertados do Egipto. São tradições de origem diversa, que os teólogos das escolas jahwista, elohista e sacerdotal utilizaram com fins catequéticos.
No seu estado atual, o livro está dividido em três partes. A primeira narra os últimos dias da estadia do Povo de Deus no Sinai (cf. Nm 1,1-10,10); a segunda apresenta, em várias etapas, a caminhada do Povo pelo deserto, desde o Sinai à planície de Moab (cf. Nm 10,11-21,35); a terceira apresenta a comunidade dos filhos de Israel instalada na planície de Moab, preparando a sua entrada na Terra Prometida (cf. 11,1-36,13).
Mais do que uma crónica de viagem do Povo de Deus desde o Sinai, até às portas da Terra Prometida, o Livro dos Números é um livro de catequese. Pretende mostrar que a essência de Israel é ser um Povo reunido à volta de Jahwéh e da Aliança. Com algum idealismo, os autores do Livro dos Números vão descrevendo como, por ação de Jahwéh, esse grupo informe de nómadas libertado do Egipto foi ganhando progressivamente uma consciência nacional e religiosa, até chegar a formar a “assembleia santa de Deus”. Ao longo do percurso geográfico pelo deserto, Israel vai fazendo também uma caminhada espiritual, durante a qual se vai libertando da mentalidade de escravo, para adquirir uma cultura de liberdade e de maturidade. O autor mostra como, por acção de Deus (que está sempre presente no meio do Povo), Israel vai progressivamente amadurecendo, renovando-se, transformando-se, alargando os horizontes, tornando-se um Povo mais responsável, mais consciente, mais adulto e mais santo.
O episódio que hoje nos é proposto acontece pouco depois da partida do Sinai. Num lugar chamado Tabera (cf. Nm 11,3), o Povo revoltou-se por não ter comida em abundância e murmurou contra Jahwéh. Moisés, cansado e desiludido, queixou-se ao Senhor de não conseguir aguentar o fardo da condução deste Povo rebelde (cf. Nm 11,11-15); então, Jahwéh propôs a Moisés escolher setenta anciãos que, depois de ungidos pelo Espírito de Deus, ajudariam Moisés na tarefa de conduzir o Povo pelo deserto (cf. Nm 11,16-24). É precisamente neste ponto que começa o nosso texto.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão: Os preceitos do Senhor alegram o coração.
LEITURA II – Tg 5,1-6
«As vossas riquezas estão apodrecidas, e as vossas vestes estão comidas pela traça».
A Carta de Tiago termina com dois blocos de exortações onde o autor recorda aos seus interlocutores alguns dos aspetos que elencou anteriormente e que, na sua perspetiva, devem ser tidos em séria conta por parte de quem está interessado em viver a vida cristã autêntica. Para o autor, o acesso à vida plena depende das opções que o homem faz enquanto caminha nesta terra.
O primeiro bloco (cf. Tg 4,11-5,6) contém um elenco de atitudes negativas, que os crentes devem evitar a todo o custo: falar mal dos irmãos (cf. Tg 4,11-12), viver no orgulho e na autossuficiência face a Deus (cf. Tg 4,13-17), viver para os bens materiais e praticar injustiças contra os pobres (cf. Tg 5,1-6). O segundo bloco (cf. Tg 5,7-20) contém uma lista de atitudes positivas que os crentes devem assumir enquanto esperam a vinda do Senhor: paciência, perseverança e firmeza no falar (cf. Tg 5,7-12), oração (cf. Tg 5,1-18) e preocupação em reconduzir ao bom caminho o irmão que anda afastado (cf. Tg 5,19-20).
O texto que nos é proposto é um grito profético de denúncia dos ricos, do seu orgulho e autossuficiência, da sua obsessão pelos bens materiais. Este texto deve ser colocado no quadro geral de uma época de profundas desigualdades: ao lado de uma riqueza desmesurada e sem limites, vive e sofre a miséria mais aguda. A exploração do pobre e a violência contra os humildes eram, na época, fenómenos demasiado frequentes e que os cristãos conheciam bem.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 9, 38-43.45.47-48
«Mestre, nós vimos um homem a expulsar os demónios em teu nome».
«Quem vos der a beber um copo de água, por serdes de Cristo, em verdade vos digo que não perderá a sua recompensa».
Estamos ainda em Cafarnaum (cf. Mc 9,33), a cidade de pescadores situada junto do Lago de Tiberíades. Jesus está “em casa” rodeado pelos discípulos. A ida para Jerusalém está próxima e os discípulos estão conscientes de que se aproximam tempos decisivos para esse projeto em que estão envolvidos.
Apesar da sua opção inequívoca por Jesus, os discípulos continuam a dar mostras de não terem ainda conseguido absorver os valores do Reino. Para eles, o seguimento de Jesus é uma opção que deverá traduzir-se na concretização de determinados sonhos de poder, de grandeza e de prestígio… Por isso, sentem-se inquietos e ciumentos quando encontram algo que possa colocar em causa os seus interesses, a sua autoridade, os seus “privilégios”.
Jesus vai, com paciência, tentando formar os discípulos na lógica do Reino. O texto que a liturgia deste domingo nos propõe como Evangelho é mais uma instrução que Jesus dirige aos discípulos no sentido de lhes mostrar os valores que eles devem interiorizar, se quiserem integrar a comunidade messiânica.
Marcos juntou aqui uma série de “ditos” de Jesus, inicialmente independentes entre si e pronunciados em contextos diversos. Estes “ditos” apresentam, contudo, exigências várias que os discípulos de Jesus devem considerar e que, em última análise, definem a pertença ou a não pertença à comunidade do Reino.in Dehonianos
Para os leitores:
A primeira leitura é um longo discurso dos ímpios que incita a armarem ciladas aos justos e condená-los à morte. A proclamação deste texto deve valorizar as formas verbais que marcam o ritmo e o tom da leitura.
Na segunda leitura, deve haver um especial cuidado na proclamação da enumeração das características da sabedoria e nas frases interrogativas presentes no texto. Além disso, é necessário ter em consideração as afirmações finais que estabelecem uma dinâmica de causa/efeito que deve ser clara na proclamação da leitura.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
CADA COPO DE ÁGUA CONTA….
A lição do Livro dos Números deste Domingo XXVI (Números 11,25-29) mostra-nos um Moisés, não dono de nada nem de ninguém, nada ciumento ou invejoso, mas livre, cheio de bem e de bondade, completamente a céu aberto, desejoso de ver, com olhos puros, o Espírito de Deus a operar maravilhas em todas as pessoas e através de todas as pessoas. Josué representa, neste texto, a figura sombria do ciumento.
O Evangelho deste mesmo Domingo XXVI (Marcos 9,38-48) segue o mesmo rumo, e mostra-nos um Jesus feliz por ver que o bem saltou as fronteiras do pequeno grupo que o seguia, sendo praticado também por pessoas de fora. João encarna aqui a figura do Josué do texto supracitado do Livro dos Números, e quer o bem todo para Jesus e o seu grupo, vendo com maus olhos que também outros o possam realizar, talvez sobretudo porque os próprios discípulos tinham pouco antes fracassado (Marcos 9,18.28-29) onde agora veem alguém de fora ter sucesso.
Nas palavras de João, o facto é o seguinte: os discípulos de Jesus viram alguém a expulsar demónios no nome de Jesus, e trataram logo de o impedir. A razão apresentada para fundamentar este impedimento, tem, porém, o seu quê de estranho e surpreendente. Na verdade, João refere, com todas as letras, que o grupo dos discípulos impediu o homem anónimo de continuar a sua atividade «em nome de Jesus», «porque não nos seguia» (ouk êkoloúthei hêmîn) (Marcos 9,38). O problema reside todo neste «porque não nos seguia». Trata-se, de facto, de uma fórmula estranha e surpreendente, porque, no Evangelho, fala-se sempre de «seguir Jesus», e não «a nós», inclusive no único paralelo desta passagem, apresentado em Lucas 9,49, em que se lê: «porque não segue connosco» (ouk akoloutheî meth’ hêmôn). Vê-se bem que estes discípulos de Jesus ainda não perceberam a lição da humildade e do serviço do Domingo passado, querendo eles próprios estar indevidamente «no meio», ocupando ou usurpando o primeiro lugar. Sempre este nosso doentio gosto de querermos estar sempre no centro das atenções! Salta à vista que este texto notável funciona como um espelho: mostra-nos menos a figura do exorcista anónimo e mais a figura patronal assumida pelos discípulos de Jesus, que se julgam donos exclusivos de algumas funções e defendem ciosamente esse status.
Vê-se, no fundo da tela, que não basta querer o bem. Querer o bem nem sempre é bom. Por paradoxal que pareça, querer o bem pode ser mau. É de facto mau, quando queremos o bem só para nós, ciumenta e invejosamente. Às vezes, os nossos maus olhos levam-nos a retirar o bem do alcance dos outros, e até a destruí-lo, para que os outros não possam usufruir dele, e não possam nem sequer realizá-lo, beneficiando outros! Ora, o bem que divide e exclui nunca é bem. O bem mostra-se tal apenas quando faz comunhão, fraternidade, mesa, pão, água, pura alegria entre irmãos.
Um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade. Aí está outra soberana lição de Jesus. Toda a atenção, portanto, às nossas mãos, pés, olhos, coração. A mão, que indica a nossa ação, pode fazer o bem ou o mal. Se faz o mal, é melhor cortá-la, como faz o lavrador cuidadoso aos ramos secos das videiras e das árvores de fruto. O pé, que indica o nosso caminhar, pode levar-nos por e para maus caminhos. Se nos conduz para o abismo, é melhor cortá-lo. O olho, que indica os nossos desejos de bem e de amor ou de cobiça, ódio, raivas e ciúmes, pode levar-nos à mesa da alegria fraterna ou ao ciúme e à inveja. Estas últimas maneiras de ver levam-nos ao mal, e, portanto, ao sentimento venenoso de queremos o bem só para nós. Aí está como querer o bem nem sempre é bom; pode ser mau. E é melhor arrancar pela raiz este veneno mortal.
A lição de Tiago (5,1-6), que lemos e abandonamos este Domingo (no próximo Domingo começa a ler-se a Carta aos Hebreus) mostra bem, numa linguagem duríssima, que o rico é o que quer o bem só para si, retirando-o (roubando-o!) aos outros. Auto-exclui-se da comunhão, da bondade e da alegria da mesa fraterna. O resultado é a traça, o mofo, a ferrugem, a podridão, recuperando assim, em termos proféticos e sapienciais, muitos motivos patentes no Antigo Testamento. O pequeno texto da Carta de Tiago usa 119 imperativos, dos quais se ouvem três no texto de hoje. Permanentes chamadas de atenção para este mundo em que poucos têm quase tudo, e a maioria não tem quase nada. O texto da Carta de Tiago é claramente tardio, de finais do século I ou princípios do século II, mas vale para todos os tempos.
Esta linguagem duríssima aproxima-se de quanto, no texto do Evangelho de hoje aparece retratado na «geena» (Marcos 9,43.45.47), do aramaico gêhinnam, hebraico gê-hinnom, que é o nome de um vale situado a sul de Jerusalém, lugar pagão onde se realizava o culto a Moloch, onde os ímpios Acaz e Manassés tinham sacrificado os seus próprios filhos (2 Crónicas 28,3; 33,6). O piedoso rei Josias, no decurso da sua reforma religiosa, acabou com estes cultos pagãos, e destinou este lugar para queimar as entranhas dos animais. É daqui que vem o espetáculo tétrico da putrefação, vermes, fumo, fogo, (Jeremias 7,31-34; 19,1-13; 32,35), «vermes que não morrem, fogo que não se apaga» (Marcos 9,44.46.48), que fornecerão a linguagem adequada para dizer o inferno. A chapa original encontra-se em Isaías 66,24, último versículo do profeta.
Aí está, no ponto e em contraponto, a lição soberana do Evangelho de Jesus: um simples copo de água, dado com amor, pode trazer pela mão a eternidade.
O Salmo 19 é, no seu todo, uma estupenda «música teológica», como dizia Hermann Gunkel. Apresenta-se em dois quadros, que formam um belo díptico que canaliza o louvor do orante. O primeiro quadro, composto pelos vv. 2-7, é um hino ao Deus Criador. O segundo, que reúne os vv. 8-15, é um hino à Lei de Deus. Na verdade, Deus ilumina e aquece o universo com o fulgor do sol, e ilumina e acalenta o homem com o fulgor da sua Palavra contida na sua Lei revelada. Hoje contemplamos e cantamos o segundo quadro. Quem tem ouvidos, oiça então, e cante.
D. António Couto
ANEXOS:
«Que discutíeis no caminho?»
Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior.” – Mc 9,33-34
Viver a Palavra
“Que discutíeis no caminho? Eles ficaram calados, porque tinham discutido uns com os outros sobre qual deles era o maior”. Ser o maior, o primeiro, o melhor, o mais forte…. É a terrível tentação do poder! Ela nunca abandonou o próprio Jesus. As suas três tentações, no deserto, andam à volta do poder. Em toda a sua vida, até à cruz, esta tentação vai acompanhá-l’O sempre… Variadas vezes, Jesus repreende os seus discípulos, coloca-os de aviso contra a tentação do poder: “Se alguém quer ser o primeiro, que ele seja o último de todos e o servidor de todos”. Jesus pregou tudo isso com palavras e com atos. Basta recordar o episódio do lava-pés na última ceia. O poder, para Jesus, é serviço ao crescimento do amor e da vida. É preciso reconhecer que, na sua história, a Igreja agiu muitas vezes ao contrário do Evangelho… Apesar dos progressos notáveis, em particular depois do Concílio Vaticano II, há ainda muito caminho a fazer. É preciso intensificar a nossa súplica, para que o Espírito não deixe nenhum membro da Igreja tranquilo, a fim de que todos sejamos interpelados pelo Evangelho. Daí depende a credibilidade do testemunho cristão no mundo! in Dehonianos
LEITURA I – Sab 2,12.17-20
O “Livro da Sabedoria” é o mais recente de todos os livros do Antigo Testamento (aparece durante o séc. I a.C.). O seu autor – um judeu de língua grega, provavelmente nascido e educado na Diáspora (Alexandria?) – exprimindo-se em termos e conceções do mundo helénico, faz o elogio da “sabedoria” israelita, traça o quadro da sorte que espera o “justo” e o “ímpio” no mais-além e descreve (com exemplos tirados da história do Êxodo) as sortes diversas que tiveram os pagãos (idólatras) e os hebreus (fiéis a Jahwéh).
Estamos em Alexandria (Egipto), num meio fortemente helenizado. As outras culturas – nomeadamente a judaica – são desvalorizadas e hostilizadas. A enorme colónia judaica residente na cidade conhece mesmo, sobretudo nos reinados de Ptolomeu Alexandre (106-88 a.C.) e de Ptolomeu Dionísio (80-52 a.C.), uma dura perseguição. Os sábios helénicos procuram demonstrar, por um lado, a superioridade da cultura grega e, por outro, a incongruência do judaísmo e da sua proposta de vida… Os judeus são encorajados a deixar a sua fé, a “modernizar-se” e a abrir-se aos brilhantes valores da cultura helénica.
É neste ambiente que o sábio autor do Livro da Sabedoria decide defender os valores da fé e da cultura do seu Povo. O seu objetivo é duplo: dirigindo-se aos seus compatriotas judeus (mergulhados no paganismo, na idolatria, na imoralidade), convida-os a redescobrirem a fé dos pais e os valores judaicos; dirigindo-se aos pagãos, convida-os a constatar o absurdo da idolatria e a aderir a Jahwéh, o verdadeiro e único Deus… Para uns e para outros, o autor pretende deixar este ensinamento fundamental: só Jahwéh garante a verdadeira “sabedoria” e a verdadeira felicidade.
O texto que nos é proposto faz parte da primeira parte do livro (cf. Sab 1-5). Aí, o autor reflete longamente e em pormenor sobre o destino dos “justos” e o destino dos “ímpios”.
Na secção que vai de Sab 1,16-2,24, o autor do Livro da Sabedoria apresenta o quadro da vida dos “ímpios”. Depois de apresentar os raciocínios dos “ímpios” (cf. Sab 1,16-2,9) e as suas reações de desprezo face aos “justos” (cf. Sab 2,10-20), o sábio autor desta reflexão partilha com os seus leitores a sua própria crítica às atitudes incoerentes dos “ímpios” (cf. Sab 2,21-24). Mostrando o sem sentido da conduta dos “ímpios”, ele pretende dizer aos seus concidadãos que vale a pena ser “justo” e manter-se fiel aos valores tradicionais da fé de Israel.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 53 (54)
Refrão: O Senhor sustenta a minha vida
LEITURA II –. Tiago 3,16-4,3
Depois de convidar os crentes à autenticidade e coerência da fé (cf. Tg 1,2-27) e de os exortar a expressar a fé em atitudes concretas (cf. Tg 2,1-24), o autor da Carta de Tiago elenca, na terceira parte desta carta (cf. Tg 3,1-4,10), uma série de aspetos particulares que precisam da atenção e do cuidado dos crentes.
Estes aspetos particulares tratados na terceira parte da carta são, certamente, questões e situações que incomodavam as comunidades cristãs de origem judaica a quem a carta se dirige (e que não estão circunscritas à Palestina, mas espalhadas por todo o mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina, como a Síria, o Egipto ou a Ásia Menor). O primeiro espeto particular a que o autor se refere é ao cuidado a ter com a língua (cf. Tg 3,1-12); o segundo refere-se à necessidade de os crentes rejeitarem a “sabedoria do mundo” e de acolherem a “sabedoria que vem do alto” (cf. Tg 3,13-18); o terceiro é uma análise sobre a origem das discórdias que envenenam a vida das comunidades cristãs (cf. Tg 4,1-10). O texto que nos é proposto junta alguns versículos do segundo com alguns versículos do terceiro ponto.
O objetivo do autor da Carta de Tiago continua a ser, também nesta terceira parte, purificar a existência cristã e exortar os crentes para que não percam os valores cristãos autênticos.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 9,30-37
Já dissemos no passado domingo que a preocupação essencial de Marcos na segunda parte do seu Evangelho (cf. Mc 8,31-16,8) é apresentar Jesus como “o Filho de Deus”. No entanto, Marcos tem o cuidado de demonstrar que Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para cumprir a vontade do Pai e oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. É neste contexto que devemos situar os três anúncios feitos por Jesus acerca da sua paixão e morte (cf. Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,32-34).
O texto que nos é proposto neste domingo é, precisamente, o segundo desses anúncios. O grupo já deixou Cesareia de Filipe (onde Jesus, pela primeira vez, tinha falado da sua paixão e morte, como lemos no Evangelho do passado domingo) e está agora a atravessar a Galileia. Muito provavelmente, a próxima ida para Jerusalém está no horizonte dos discípulos e eles têm consciência de que em Jerusalém se vai jogar a cartada decisiva para esse projecto em que tinham decidido apostar. Nesta fase, todos acreditam ainda que Jesus irá entrar na cidade na pele de um Messias político, poderoso e invencível, capaz de libertar Israel, pela força das armas, do domínio romano.
Ao longo dessa “caminhada para Jerusalém”, Jesus vai catequizando os discípulos, ensinando-lhes os valores do Reino e mostrando-lhes, com gestos concretos, que o projecto do Pai não passa por esquemas de poder e de domínio. O nosso texto faz parte de uma dessas instruções aos discípulos. Será que eles entendem a lógica de Deus e estão dispostos a embarcar, com Jesus, na aventura do Reino? in Dehonianos
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
DESCER DE NÓS ABAIXO
No Evangelho deste Domingo XXV do Tempo Comum, continuamos a ler a chamada «secção do caminho» do Evangelho de Marcos (Ver Domingo XXIV), hoje a passagem de Marcos 9,30-37. Este texto intenso e sublime cai sobre nós como uma faca de dois gumes e envolve-nos em duas vagas avassaladoras: Marcos 9,30-32 e 9,33-37.
A primeira acontece no caminho que desce de Cesareia de Filipe para Cafarnaum, um dia de caminho e de ensinamento de Jesus aos seus discípulos. Concentração máxima: Jesus a sós com os seus discípulos (ninguém de fora os acompanha) e um único dizer na sua boca do Mestre que repetidamente ensinava: «O Filho do Homem vai ser entregue (paradídotai: pass. teológico ou divino) por Deus nas mãos dos homens, que o matarão, mas três dias depois de morto ressuscitará» (Marcos 9,31). Note-se, em todo o caso, que Jesus passará das nossas mãos violentas e assassinas, para as mãos paternais do Pai. Jesus ensina, portanto, a sua paixão, morte e ressurreição. Ficam aqui bem a descoberto as nossas mãos violentas e assassinas. Mas é estranho o comportamento dos discípulos de Jesus, que nos é dado a conhecer pelo narrador. Na verdade, aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não queriam compreender aquelas palavras e até tinham medo de as vir a compreender. É esta a mais correta tradução daquele verbo agnoéô, que não significa apenas «ignorar», «desconhecer», «não compreender», mas, mais do que isso, «não querer compreender». E era o medo de, porventura, virem a compreender que os impedia de fazer qualquer pergunta a Jesus (Marcos 9,32).
Leva tempo àqueles discípulos de Jesus, e a mim, e a nós, compreender que, se a maneira de ser de Deus é o amor, só o amor, então Ele tem de descer ao nosso nível, sujando-se na mentira do nosso coração e na violência das nossas mãos, não nos opondo qualquer resistência, que é o nosso modo habitual de fazer e que faz aumentar a violência, mas amando também a nossa violência até ao fim e ao fundo. Aqueles discípulos de Jesus (e nós com eles) não querem nem sequer pensar nesta maneira de viver e de morrer. Por isso, não querem compreender o verdadeiro caminho do amor que Jesus ensina, e, porque não querem correr quaisquer riscos, não ousam sequer fazer perguntas.
É aqui que somos atingidos em cheio pela segunda vaga do texto de hoje. Chegados a Cafarnaum, e tendo entrado na casa (seguramente a casa de Pedro), somos confrontados com uma pergunta certeira de Jesus acerca do assunto que vínhamos a debater (dialogízomai) no caminho (Marcos 9,33). Mas se já antes não arriscámos perguntar nada a Jesus, agora também não nos atrevemos a responder. O narrador passa-nos duas informações: que «eles (como nós) se calavam» (esiôpôn: imperf. de siôpáô), implicando este imperfeito um silêncio continuado (1), e que tinham disputado (dialégomai) no caminho uns com os outros sobre quem fosse o maior (2) (Marcos 9,34). Note-se que a pergunta de Jesus supõe um debate de ideias (verbo dialogízomai), mas a anotação do narrador deixa supor uma luta de interesses (verbo dialégomai). Note-se ainda o contraponto: enquanto Jesus ensina o caminho do amor humilde e oblativo, até ao fim, os seus discípulos ocupam-se de grandezas.
Neste momento, Jesus senta-se (modo enfático) e chama para si (modo enfático) os Doze, e diz-lhes (légei: pres. do verbo légô), a eles e a nós, num presente que ainda hoje ecoa no meio de nós: «Se alguém quer ser o primeiro, será o último de todos e o servo de todos» (Marcos 9,35). Entenda-se bem aquele «de todos», duas vezes dito, para evitar equívocos. Anote-se também que, no Evangelho de Marcos, Jesus só se senta três vezes (4,1; 9,35; 13,3).
E a ilustração do Mestre, que continua sentado a ensinar, agora com gestos e palavras: recebeu um criança pequena (paidíon), colocou-a no meio deles e de nós, e disse: «Quem receber uma destas crianças pequeninas, no meu nome, recebe-me a Mim…» (Marcos 9,36-37). Note-se aquele: «No meio», que é o lugar mais importante. Note-se também o «No meu nome», que significa ao jeito de Jesus. Note-se ainda que Jesus não usa jogos de estatística. Fala de uma criança apenas. E também deixa claro que, para se receber uma criança pequenina, são precisas mãos maternais, que acariciam e dão vida, ao contrário das mãos dos homens que agarram e matam, já atrás retratadas em Marcos 9,31. De resto, vê-se bem, em filigrana, que uma criança pequenina traduz todos os nossos irmãos dependentes, cuja vida depende de nós, não nos sendo permitido, portanto, abandoná-los e voltar-lhes as costas.
Tanto se pode aprender com Jesus «na casa» e «no caminho». Aprendemos a descer de nós abaixo, a abrir as nossas mãos fechadas e armadas, e a revestir-nos de gestos de amor novos, serviçais, maternais.
O justo Jesus caminha por entre o sofrimento, o desprezo e a zombaria. E assim também os seus discípulos. O fim, porém, é a glória da Ressurreição. Um breve extrato do Livro da Sabedoria (2,12.17-20) faz-nos ver os ímpios a conspirar de mil maneiras contra o justo, que os importuna com o seu comportamento, e a maquinar a sua morte, para se verem livres dele. Não faltam os motivos de zombaria, afirmando que querem verificar se é verdade o que justo diz, pois afirma que é filho de Deus, e que Deus o assistirá e libertará das mãos dos ímpios (Sabedoria 2,18). Tudo semelhante à ironia sarcástica dos zombadores que passam junto da Cruz do Senhor (Marcos 15,29-32). Mas também é oportuno ver Sabedoria 5,1-15, o quadro que forma um díptico com Sabedoria 2,1-20. Em 5,1-15, os ímpios provocadores e zombadores reencontram-se, no dia do julgamento, lado a lado com o justo que maltrataram. Ao ver o justo de pé, apavorados e atónitos, dirão entre soluços de angústia: «Este é aquele de quem outrora nos ríamos, de quem fizemos alvo de chacota, nós, insensatos! Considerávamos a sua vida uma loucura, e o seu fim infame. Como é que agora é contado entre os filhos de Deus, e partilha a sorte dos santos?» (Sabedoria 5,4-5). E confessam: «Sim, extraviámo-nos do caminho da verdade, a luz da justiça não brilhou para nós, para nós não nasceu o sol. Cansámo-nos nas veredas da iniquidade e da perdição…» (Sabedoria 5,6-7).
São Tiago 3,16-4,3 serve-nos também hoje um texto incisivo, que nos ajuda a ler o nosso mundo e o nosso coração. Inveja e discórdia produzem desordem e ações perversas (3,16). Ao contrário, a Sabedoria do alto (ánôthen) é pura (hágnê), pacífica, afável, conciliadora, misericordiosa, cheia de frutos bons, sem duplicidade nem hipocrisia (3,17). E depois, de forma penetrante e pedagógica, pergunta São Tiago: «De onde vêm as guerras e os conflitos entre vós? Não é das vossas paixões que lutam nos vossos membros? Cobiçais, e nada tendes; então, assassinais. Sois ciumentos, e nada conseguis; então, entrais em conflitos e guerras» (4,1-2a). E desvenda este não ter: «Não tendes, porque não pedis» (4,2b). E ainda: «Pedis, e não recebeis, porque pedis mal» (4,3). As lições são muitas e importantes, e têm de ser objeto de profunda reflexão.
O Salmo 54 representa a típica súplica bíblica, em que se contam três atores: o «eu» orante, «eles» (os inimigos), e Deus. Três são também os tempos em que se desenrola a oração: o passado feliz, o presente amargo, um futuro melhor, objeto de esperança. Entretanto, fica claro que Deus está sempre do lado do orante, e, por isso, o tempo está carregado de esperança. Os inimigos são descritos como estrangeiros, estranhos (zarîm). Entenda-se: gente fora da comunidade e longe de Deus, que não respeita Deus nem a maneira de viver dos justos. Também este Salmo ajuda a reler, por um lado, toda a agressividade e zombaria que atravessa os textos de hoje, que a figura do ímpio estulto incarna. Por outro lado, mostra também a segurança do justo.
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
A liturgia do 24º Domingo do Tempo Comum diz-nos que o caminho da realização plena do homem passa pela obediência aos projetos de Deus e pelo dom total da vida aos irmãos. Ao contrário do que o mundo pensa, esse caminho não conduz ao fracasso, mas à vida verdadeira, à realização plena do homem. in Dehonianos
LEITURA I – Is 50,5-9ª
O nosso texto pertence ao “Livro da Consolação” do Deutero-Isaías (cf. Is 40-55). “Deutero-Isaías” é um nome convencional com que os biblistas designam um profeta anónimo da escola de Isaías, que cumpriu a sua missão profética na Babilónia, entre os exilados judeus. Estamos na fase final do Exílio, entre 550 e 539 a.C..
A missão do Deutero-Isaías é consolar os exilados judeus. Nesse sentido, ele começa por anunciar a iminência da libertação e por comparar a saída da Babilónia ao antigo êxodo, quando Deus libertou o seu Povo da escravidão do Egipto (cf. Is 40-48); depois, anuncia a reconstrução de Jerusalém, essa cidade que a guerra reduziu a cinzas, mas à qual Deus vai fazer regressar a alegria e a paz sem fim (cf. Is 49-55).
No meio desta proposta “consoladora” aparecem, contudo, quatro textos (cf. Is 42,1-9; 49,1-13; 50,4-11; 52,13-53,12) que fogem um tanto a esta temática. São cânticos que falam de uma personagem misteriosa e enigmática, que os biblistas designam como o “Servo de Jahwéh”: ele é um predilecto de Jahwéh, a quem Deus chamou, a quem confiou uma missão profética e a quem enviou aos homens de todo o mundo; a sua missão cumpre-se no sofrimento e numa entrega incondicional à Palavra; o sofrimento do profeta tem, contudo, um valor expiatório e redentor, pois dele resulta o perdão para o pecado do Povo; Deus aprecia o sacrifício deste “Servo” e recompensá-lo-á, fazendo-o triunfar diante dos seus detractores e adversários.
Quem é este profeta? É Jeremias, o paradigma do profeta que sofre por causa da Palavra? É o próprio Deutero-Isaías, chamado a dar testemunho da Palavra no ambiente hostil do Exílio? É um profeta desconhecido? É uma figura colectiva, que representa o Povo exilado, humilhado, esmagado, mas que continua a dar testemunho de Deus, no meio das outras nações? É uma figura representativa, que une a recordação de personagens históricas (patriarcas, Moisés, David, profetas) com figuras míticas, de forma a representar o Povo de Deus na sua totalidade? Não sabemos; no entanto, a figura apresentada nesses poemas vai receber uma outra iluminação à luz de Jesus Cristo, da sua vida, do seu destino.
O texto que nos é proposto é parte do terceiro cântico do “servo de Jahwéh”.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 114 (115)
Refrão: Caminharei na terra dos vivos na presença do Senhor.
LEITURA II –Tiago 2,14-18
Continuamos a reflexão dessa “Carta de Tiago” que nos tem acompanhado nos últimos domingos. Trata-se, segundo parece, de uma carta enviada aos cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria, o Egipto ou a Ásia Menor. O objectivo fundamental do autor é exortar os crentes para que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de acepção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de acções concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 8,27-35
O texto que nos é hoje proposto é um texto central no Evangelho segundo Marcos. Apresenta-nos os últimos versículos da primeira parte (cf. Mc 8,27-30) e os primeiros versículos da segunda parte (cf. Mc 8,31-35) deste Evangelho.
A primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) tem como objectivo fundamental levar à descoberta de Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Ao longo de um percurso que é mais catequético do que geográfico, os leitores do Evangelho são convidados a acompanhar a revelação de Jesus, a escutar as suas palavras e o seu anúncio, a fazerem-se discípulos que aderem à sua proposta de salvação. Este percurso de descoberta do Messias que o catequista Marcos nos propõe termina, em Mc 8,29-30, com a confissão messiânica de Pedro, em Cesareia de Filipe (que é, evidentemente, a confissão que se espera de cada crente, depois de ter acompanhado o percurso de Jesus a par e passo): “Tu és o Messias”.
Depois, vem a segunda parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 8,31-16,8). Nesta segunda parte, o objectivo do catequista Marcos é explicar que Jesus, além de ser o Messias libertador, é também o “Filho de Deus”. No entanto, Jesus não veio ao mundo para cumprir um destino de triunfos e de glórias humanas, mas para oferecer a sua vida em dom de amor aos homens. Ponto alto desta “catequese” é a afirmação do centurião romano junto da cruz (que Marcos convida, implicitamente, os seus cristãos a repetir): “realmente este homem era o Filho de Deus” (Mc 15,39).
Cesareia de Filipe – o quadro geográfico onde o Evangelho de hoje nos coloca – era uma cidade situada no Norte da Galileia, perto das nascentes do rio Jordão (na zona da actual Bânias). Tinha sido construída por Herodes Filipe (filho de Herodes o Grande) no ano 2 ou 3 a.C., em honra do imperador Augusto.in Dehonianos
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
Também hoje, dada a importância de que se reveste, optamos por visitar mais de perto o texto do Evangelho deste Domingo XXIV do Tempo Comum (Marcos 8,27-35), disponibilizando-o em tradução literal:
«E saiu JESUS e os DISCÍPULOS d’ELE (hoi mathêtaì autoû) para as povoações de Cesareia de Filipe. E, NO CAMINHO (en tê hodô), perguntou aos DISCÍPULOS d’ELE, dizendo-lhes: “Quem dizem as pessoas que EU SOU?”. Eles disseram-LHE, dizendo: “João Baptista; outros, Elias, e outros ainda, um dos profetas”. E ELE perguntou-lhes: “E VÓS, quem dizeis que EU SOU?” Respondendo, Pedro diz-LHE: “TU és o CRISTO”. E censurou-os (epetímêsen) para não dizerem a ninguém acerca d’ELE.
E COMEÇOU A ENSINÁ-LOS (kaì êrxato didáskein autoús) que é preciso (deî) o FILHO DO HOMEM sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas, ser morto e, depois de três dias, ressuscitar. E abertamente (parrêsía) falava esta palavra. E tomando-O consigo (proslabómenos), Pedro começou a censurá-lo (epitimân) (cf. 9,31-32; 10,32-34). ELE, porém, voltando-se e vendo os DISCÍPULOS d’ELE, censurou (epetímêsen) Pedro e diz: “Vai para trás de MIM (hypáge opísô mou), satanás, pois não tens em consideração as coisas de Deus, mas as dos homens”.
E chamando para SI (proskalesámenos) a MULTIDÃO, juntamente com os DISCÍPULOS d’ELE, disse-lhes: “Se alguém quiser atrás de MIM SEGUIR (opísô mou akoloutheîn), RENEGUE (aparnêsásthô: imp. aor. de aparnéomai) a si mesmo (heautón), TOME A SUA CRUZ e SIGA-ME, pois aquele que quiser salvar a própria vida, vai perdê-la, mas o que perder a própria vida por causa de MIM e do Evangelho, vai salvá-la”» (Marcos 8,27-35).
O episódio «NO CAMINHO» de Cesareia de Filipe abre significativamente com o nome «JESUS», abandonado 89 versículos atrás, em Marcos 6,30! Forma clara e enfática de o narrador dizer ao leitor que estamos perante um episódio importante, justamente considerado o centro geométrico e teológico do Evangelho de Marcos. Ao apresentar JESUS e os seus discípulos NO CAMINHO, o narrador abre a secção central deste Evangelho (Marcos 8,27-10,52), normalmente intitulada: «O seguimento de Jesus NO CAMINHO», que é o CAMINHO que conduz da Galileia a Jerusalém, o CAMINHO da formação de Jesus aos seus discípulos. Vamos seguir a par e passo esta importante secção do Evangelho de Marcos durante sete Domingos, desde o Domingo XXIV até ao Domingo XXX.
Cesareia de Filipe, tetrarquia de Filipe, um dos filhos de Herodes o Grande, é o lugar certo para se pôr a questão da identidade de JESUS. Cesareia de Filipe, onde se encontra uma das nascentes do rio Jordão, respirava o paganismo do deus Pã e também o culto do Imperador. Aí construiu Herodes um templo dedicado ao Imperador César Augusto, e o tetrarca Filipe, filho de Herodes, deu à cidade, antes conhecida por Pânias, em honra do deus Pã, o nome de Cesareia, também em honra de César Augusto.
É aí, em Cesareia de Filipe, cidade marcada pelo paganismo e pelo culto do Imperador, que JESUS põe a questão da sua identidade. Soberanamente JESUS pergunta: «Quem dizem as pessoas que eu sou?» (8,27), para acrescentar logo de seguida: «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29). A pergunta é única em todo o arco da Escritura. Ninguém, antes ou depois de Jesus, em toda a Escritura, fez ou fará uma pergunta semelhante.
Para o povo, JESUS é um profeta. Um entre muitos. Mas para Pedro, Jesus não é apenas um entre muitos. Ele é Único e Último (cf. Marcos 12,1-12), o Rei definitivo, o Cristo, o Messias, que traz todo o bem para o seu povo («Fez tudo bem feito»: Marcos 7,37). E assim, à questão direta e enfática – «E vós, quem dizeis que eu sou?» (8,29) – posta por JESUS aos seus discípulos que de há muito o seguiam, Pedro responde: «Tu és o Cristo!». Note-se bem que JESUS não pergunta simplesmente: «Quem sou Eu?», mas: «Quem dizeis vós que Eu sou?». Dizer é mais do que um saber. Implica o compromisso, a vida, de quem diz.
À primeira vista, parece que Pedro respondeu acertadamente. Mas o contexto mostra que o discípulo não reunia competência sobre a matéria, não estava ainda em condições de fazer as operações mentais e afetivas necessárias para uma resposta correta que reunisse todos os elementos necessários de modo a implicar na resposta o respondedor. O dizer de Pedro ainda era um dizer antigo, tradicional e convencional, sem implicações pessoais. Pedro ainda não tinha nascido de novo e do alto e do Espírito. Como podia dizer JESUS? «Tu és o Cristo!», respondeu Pedro. Fosse qual fosse a ideia que Pedro tivesse de «Cristo», vê-se logo no seguimento do texto, que no «Cristo» de Pedro não entrava o sofrimento, a rejeição, a morte, a ressurreição (8,31-32). Muito menos a adesão pessoal de Pedro a este «Cristo». Na verdade, Pedro recrimina JESUS pelo CAMINHO de rejeição, sofrimento e morte que Ele acaba de mostrar como sendo o verdadeiro CAMINHO de «Cristo» segundo JESUS. O CAMINHO de «Cristo» segundo Pedro só inclui triunfo e sucesso.
Por isso, porque Pedro acertou com a resposta – na verdade, JESUS é o «Cristo» –, mas não é o «Cristo» como Pedro pensa que é, JESUS impõe soberanamente silêncio (8,30). O silêncio imposto por JESUS aos seus discípulos pode passar falsamente a ideia do chamado «segredo messiânico», segundo o qual JESUS não quereria que a sua identidade, uma vez descoberta, fosse divulgada. Trata-se, antes, de impedir que respostas, porventura certas nas palavras, mas erradas nos conteúdos, e elaboradas apenas com base em elementos convencionais e tradicionais (o «Cristo» do judaísmo), que não implicam um verdadeiro dizer pessoal, um novo nascimento do alto e do Espírito, sejam transmitidas boicotando assim o nascimento do conhecimento profundo e verdadeiro da novidade de JESUS e a implicação pessoal de quem diz JESUS e se diz face a JESUS. O verdadeiro sujeito deste dizer não o pode ser só por fazer parte de alguma instituição que confere credibilidade ao seu dizer já antes de começar a dizer, como, por exemplo, os escribas ou os próprios discípulos de JESUS.
Porque há muita coisa que os discípulos ainda têm de aprender, antes de saberem dizer JESUS, soberanamente JESUS começou a ensinar (8,31). É grandemente sintomático que o narrador empregue a mesma expressão («E começou a ensiná-los») quando JESUS ensina a semente (Marcos 4,1-2), quando ensina o pão (Marcos 6,34s.), e quando ensina a Paixão, Morte e Ressurreição (Marcos 8,31s.). Em boa verdade, JESUS é a semente e é também o pão, linguagem que ilumina e é iluminada pela Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. Veja-se o dito condensado de João 12,24: «Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto».
Já sabemos que Pedro respondeu antes do tempo com um punhado de palavras convencionais, que vinham na corrente da tradição judaica. Ainda não tinha nascido do alto e do Espírito, como sujeito novo de ação [= dizer e fazer], face à novidade de JESUS. Falta-lhe fazer aquele «caminho» transitivo e intransitivo, longo, gradual e tortuoso, da Galileia até à Cruz, que JESUS aponta logo de seguida aos seus discípulos e ao leitor. Aí nascerá para a Glória a humanidade de JESUS, ao mesmo tempo que nascerá Pedro como sujeito apto para dizer JESUS e se dizer face a JESUS. Por agora, Pedro e os discípulos e a multidão e o leitor devem «dizer energicamente não» (aparnéomai) a si mesmos e ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS, para seguir o Mestre ao longo do CAMINHO. Este «dizer não» a si mesmo implica uma forte conotação de rejeição, que Isaías usa para a rejeição dos ídolos: «Naquele dia, Israel rejeitará (aparnéomai) os seus ídolos de prata e os seus ídolos de ouro, trabalho das vossas mãos pecadoras» (Isaías 31,7). Marcos só usa esta expressão aqui e no anúncio feito por Jesus da negação de Pedro (Marcos 14,30-31) e na recordação desse anúncio por parte de Pedro (Marcos 14,72). A lição é clara: ou «dizemos não» a nós mesmos ou acabaremos sempre por «dizer não» a JESUS.
Ocupar o seu lugar «atrás de» JESUS. Note-se a tradução correta: «Vai para trás de MIM» (hypáge opísô mou) (8,33), e não: «Afasta-te de MIM», como se vê em muitas traduções. «Atrás de MIM» é o lugar do discípulo, que segue o Mestre passo a passo, que deve ter em consideração as coisas de Deus, e não as dos homens. É, de resto, a mesmíssima linguagem posta na boca de JESUS aquando do chamamento de Pedro e André: «Vinde atrás de Mim (deûte ôpísô mou)» (Marcos 1,17).
Seguindo atentamente «atrás de» Jesus neste caminho de formação que constitui a secção central de Marcos (8,27-10,52), estes sete Domingos fazem-nos viver, episódio após episódio, importantes situações pedagógicas.
O chamado «Terceiro Canto do Servo de YHWH» (Isaías 50,5-9) faz eco ao caminho do Filho do Homem e de todo aquele que o quiser seguir, aberto no Evangelho de hoje em duas vagas sucessivas (Marcos 8,31-33 e 8,34-35). Este itinerário de Jesus para a Cruz e a Ressurreição será ainda acentuado por mais duas vezes (Marcos 9,30-31 e 10,32-34), mas esta declaração será sempre acompanhada de uma declaração paralela sobre o seu discípulo (Marcos 9,35 e 10,43-45). O retrato do discípulo de Jesus deve decalcar os traços do retrato do Mestre. Tal como Jesus, também o seu discípulo tem de ser o homem da doação total, sem reservas. Assim é também o Servo de YHWH que caminha, sem recuos, enfrentando determinado o sofrimento, mas sempre assistido pelo seu Deus. Esta determinação aparece traduzida pela expressão: «Tornei o meu rosto duro como pedra» (Isaías 50,7), que é como quem diz que tomou uma decisão da qual não poderá voltar atrás. Lucas pediu emprestada a Isaías esta forma de dizer para vincar a determinação com que Jesus orienta o seu rosto na direção de Jerusalém (Lucas 9,51).
Outra vez a lição oportuna e contundente de S. Tiago (2,14-18), a lembrar-nos que a fé que professamos é um dom de Deus, e tem de ser professada, não apenas com os lábios, mas com gestos concretos de caridade. A fé com alegria recebida deve ser com alegria dita e com alegria feita em pequenos gestos de amor. Não. Não se trata da fé contra as obras, nem de Tiago contra Paulo. Veja-se o dizer de Paulo aos Gálatas: «Em Cristo Jesus nada conta… senão a fé que opera por meio da caridade» (Gálatas 5,6).
O Salmo 116 apresenta-se composto por dois painéis, que formam um díptico. O primeiro integra os vv. 1-9, e abre com: «Eu amo». O segundo reúne os vv. 10-19, e abre com: «Eu acreditei». O painel de hoje, o primeiro, abre, como vimos, com «Eu amo». O objeto deste amor do orante é Deus, o seu Deus, e são logo evocadas as razões pelas quais o orante ama o seu Deus. Porque ouviu a sua súplica, se debruçou sobre ele, salvou a sua vida, transformou as suas lágrimas em alegria, porque é bom, justo e compassivo. Sim, o nosso Deus é digno de confiança, está sempre atento à nossa vida, caminha connosco. É bom, belo e justo que nós caminhemos também com Ele.
D. António Couto
ANEXOS:
«No auge do assombro, diziam: «Faz tudo bem feito: faz ouvir os surdos e falar os mudos.» Mc7, 37
Viver a Palavra
“Effata!” “Abre-te!” Esta palavra tão simples é na realidade muito perigosa. Como diz o dicionário, abrir é fazer com que o que está fechado não o fique mais. Óbvio, mas cheio de consequências! Os Judeus de Jerusalém tinham consciência de serem o Povo eleito por Deus, posto à parte pelos outros povos. Nem pensar misturar-se aos outros povos, aos pagãos, aos estrangeiros! E eis que Jesus faz o contrário. Sai das fronteiras de Israel, vai junto dos pagãos, fazendo mesmo milagres em seu favor. É o mundo ao contrário! Ele não teme mesmo ter contacto físico com este surdo-mudo, impuro aos olhos dos Judeus fiéis. Antes de abrir os ouvidos do infeliz, é Jesus que Se abre aos estrangeiros, tornando-Se um impuro aos olhos dos Judeus. Evidentemente, é muito arriscado, ainda hoje, abrir a sua porta, mas primeiro o seu coração aos estrangeiros. Porque é preciso olhá-los ultrapassando os preconceitos, aceitando outras maneiras de pensar e de viver. Aquele que segue Jesus não pode esquivar-se à interrogação: E eu, onde estou quanto à minha abertura de coração? Jesus quer sempre vir até mim, tocar os meus ouvidos para que eu ouça melhor o grito dos meus irmãos em angústia, tocar os meus olhos para que procure encontrar o olhar de Deus sobre os outros. A um visitante que lhe perguntava para que servia um concílio, João XXIII respondeu: ” o concílio é a janela aberta. Ou ainda, é tirar a poeira e varrer a casa, e pôr flores e abrir a porta dizendo a todos: Vinde e vede, aqui é a casa do bom Deus!” Na manhã de Páscoa, já houve uma abertura, quando a pedra que fechava o túmulo de Jesus foi retirada. E antes ainda, tinha havido já uma abertura, quando o soldado romano tinha aberto o lado de Jesus com um golpe de lança. Estas duas aberturas nunca foram fechadas. Participando em cada Eucaristia, vimos beber a água e o sangue que brotam para que o grito de Jesus seja eficaz também em nós: “Effata!” “Abre-te!”. in Dehonianos
LEITURA I – Is 35,4-7ª
Dizei aos corações perturbados: «Tende coragem, não temais.»
Os capítulos 34-35 do Livro de Isaías constituem aquilo que habitualmente se chama “pequeno apocalipse de Isaías” (para distinguir do “grande apocalipse de Isaías”, que aparece nos capítulos 24-27). Descrevem os últimos combates travados por Jahwéh contra as nações (particularmente contra Edom) e a vitória definitiva do Povo de Deus sobre os inimigos. Estes dois capítulos parecem poder ser relacionados com os capítulos 40-55 do Livro de Isaías (cujo autor é esse Deutero-Isaías que atuou na Babilónia entre os exilados, na fase final do Exílio). Por que razão estes dois capítulos se apresentam separados do seu “ambiente natural” (Is 40-55)? Provavelmente, foram atraídos pelas peças escatológicas soltas de Is 28-33, e especialmente pelo capítulo 33.
O autor destes textos escreve na fase final do exílio do Povo de Deus na Babilónia (à volta do ano 550 a.C.). A intenção do profeta é consolar os exilados, desanimados, frustrados e mergulhados no desespero, porque a libertação tarda e parece que Deus os abandonou (uma temática que será desenvolvida e aprofundada nos capítulos 40-55 do Livro de Isaías). Depois de apresentar o julgamento de Deus (cf. Is 34,1-4) e o castigo de Edom (cf. Is 34,5-15), o autor descreve, por contraste, a alegria do Povo de Deus porque a libertação chegou e a transformação extraordinária do deserto sírio, pelo qual vão passar os israelitas libertados, que retornam do Exílio.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 145 (146)
Refrão: Ó minha alma, louva o Senhor.
LEITURA II – Tiago 2,1-5
«Escutai, meus caríssimos irmãos:
Não escolheu Deus os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do reino que Ele prometeu àqueles que O amam?»
Continuamos hoje a leitura dessa Carta de Tiago, enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). A expressão indica que os destinatários da missiva são, em primeiro lugar, cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria, o Egipto ou a Ásia Menor; mas a carta serve também para todos os crentes, de todas as épocas, de todas as raças e de todas as latitudes. O objetivo fundamental do autor é exortar os crentes para que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo.
O nosso texto pertence à segunda parte da carta (cf. Tg 2,1-26). Aí, o autor trata dois temas fundamentais: a fé concretiza-se no amor ao próximo, sem qualquer tipo de discriminação ou de aceção de pessoas (cf. Tg 2,1-13); a fé expressa-se, não através de ritos formais ou de palavras ocas, mas através de ações concretas em favor do homem (cf. Tg 2,14-26). No geral, este capítulo convida os crentes a assumir uma fé operativa, que se traduz num compromisso social e comunitário.in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 7,31-37
Cheios de assombro, diziam:
«Tudo o que faz é admirável: faz que os surdos oiçam e que os mudos falem».
Na fase final da “etapa da Galileia”, multiplicam-se as reações negativas contra Jesus e contra o seu projeto, apesar do rasto de vida nova que Ele vai deixando pelas aldeias e cidades por onde passa. As últimas discussões com os fariseus e com doutores da Lei a propósito de questões legais e da “tradição dos antigos” (cf. Mc 7,1-23) são uma espécie de gota de água que faz Jesus abandonar o território judeu e refugiar-Se em território pagão.
É nesse contexto que Marcos fala de uma viagem pela Fenícia, que leva Jesus a passar pelos territórios de Tiro e de Sídon – cidades da faixa costeira oriental do mar Mediterrâneo, no atual Líbano (cf. Mc 7,24). No regresso dessa incursão pela Fenícia, Jesus teria dado uma longa volta pelo território pagão da Decápole (cf. Mc 7,31). A Decápole (“dez cidades”) era o nome dado ao território situado na Palestina oriental, estendendo-se desde Damasco, ao norte, até Filadélfia, ao sul. O nome servia para designar uma liga de dez cidades, que se formou depois da conquista da Palestina pelos romanos, no ano 63 a.C. As “dez cidades” que formavam esta liga eram helenísticas e não estavam sujeitas às leis judaicas. As cidades que integravam a Decápole (bem como os territórios circundantes a cada uma dessas cidades) estavam sob a administração do legado romano da Síria. Eram território pagão, considerado pelos judeus completamente à margem dos caminhos da salvação.
É nesse ambiente geográfico e humano que o episódio da cura do surdo-mudo nos vai situar. O gesto de Jesus de curar o surdo-mudo deve ser visto como mais um passo no anúncio desse projeto que Jesus vai propondo por toda a Galileia: o projeto do Reino de Deus.in Dehonianos
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
TUDO FEZ BEM FEITO
Em termos de caixilho geográfico, a cura de um surdo-mudo narrada no Evangelho deste Domingo XXIII (Marcos 7,31-37) decorre fora das fronteiras de Israel, a oriente do mar da Galileia, na Decápole. Além do episódio de hoje, o Evangelho de Marcos regista apenas mais três episódios fora das fronteiras de Israel: também na Decápole (Gerasa), a cura de um endemoninhado (5,1-20) e a segunda «multiplicação» dos pães (8,1-9), e a Noroeste, na região de Tiro, o episódio da mulher sirofenícia (7,24-30). Estas saídas do Evangelho em pessoa para terra pagã baralham os nossos esquemas de «antes» e «depois» [primeiro os judeus, depois os gregos], próprios da nossa mentalidade fechada, mas que não cabem no amor de Deus. Além disso, podem ser vistos ainda como uma prolepse da futura pregação do Evangelho entre os pagãos.
Sendo um entre muitos relatos de cura por parte de Jesus, este episódio da cura de um surdo-mudo apresenta uma fisionomia própria assente em traços singulares. As pessoas trazem o pobre homem, incapaz de falar e de ouvir e inapto para entrar na assembleia de Deus, e pedem a Jesus que lhe imponha as mãos (Marcos 7,32). Em vez disso, Jesus faz uma série de ações: 1) toma-o à parte, para longe da multidão; 2) toca os órgãos privados da sua função: ouvidos e língua; 3) ergue os olhos para o céu; 4) suspira; 5) diz para o surdo-mudo: «Effatha, abre-te!».
Jesus atende sempre a nossa súplica. Mas não do modo que lhe pedimos. Assim: não impôs as mãos ao surdo-mudo, mas tocou com as suas mãos os ouvidos e a língua daquele homem. Entenda-se já este gesto e mais do que este gesto: é tocando com as suas mãos tudo o que está doente, que Jesus o assume e o cura. É assumindo a nossa carne toda de pecado, de recusa e violência, que Jesus cura a nossa humanidade ferida e pecadora. Ergue os olhos para o céu: gesto sacerdotal da oração sacerdotal de Jesus (João 17,1). Suspirou: suspirar (stenázô) é rezar e interceder por nós à maneira do Espírito, que intercedia por nós com «suspiros sem palavras» (stenagmòs alálêtos) (Romanos 8,26). O gesto de erguer os olhos para o céu, gesto de oração, logo traduzido no suspiro mostra que Jesus age em especialíssima relação com o Pai. De resto, no contexto de uma cura, só aqui Jesus ergue os olhos para o céu; do mesmo modo, só Marcos recorda o suspiro de Jesus (7,34; 8,12). Riquíssima simbologia. Também só aqui (Effatha) e em Marcos 5,41 (Thalitha kûm), a ordem de Jesus aparece pronunciada em aramaico, e depois traduzida em grego. Effatha (etftah, de ptah, abrir).
Depois desta sequência de gestos de Jesus, que culmina com aquela ordem (Effatha), o sucesso surge imediatamente: o surdo-mudo abre-se, e começa a ouvir e a falar (Marcos 7,35). E a multidão reage manifestando um estado de maravilha (exeplêssonto: imperf. pass. de ekplêssô) para além de todas as medidas (hyperperismòs) (Marcos 7,37a), expressão que não encontramos em mais nenhum lugar do Evangelho. E a palavra que acompanha o espanto: «Bem todas as coisas fez: os surdos faz ouvir e os mudos falar» (Marcos 7,37b). remete claramente para a obra da criação (Génesis 1).
Serve de chão ao Evangelho de hoje o texto de Isaías 35,4-7, que se integra no chamado «Pequeno Apocalipse de Isaías» (Isaías 34-35). Se o Capítulo 34 aparece construído sobre um mundo de castigo e de julgamento, de cólera e destruição, o Capítulo 35 transporta-nos para um mundo de paz de alegria, em que a marcha ao longo do deserto dos exilados hebreus que regressavam da Babilónia mais parecia uma procissão coral, que evocava e superava o primeiro Êxodo do Egito ou as peregrinações anuais e jubilosas ao Templo de Jerusalém (cf. Salmo 122). Trata-se de todo um povo que se levanta da miséria para a esperança e liberdade. É neste contexto de felicidade, novo Êxodo e nova Criação, que se leem as expressões: «Então se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos hão de desobstruir-se. Então o coxo saltará como um veado, e a língua do mudo cantará de alegria» (Isaías 35,5-6). O Evangelho de hoje mostra a realização deste sonho.
Tiago continua, na incisiva lição de hoje (2,1-5), a reclamar a nossa atenção carinhosa para com os pobres, que são os escolhidos de Deus. E adverte-nos de que não podemos encher os olhos com os ricos, e pôr de lado os pobres, pois não pode haver disjunção entre culto e vida, fé e empenho eclesial. Na verdade, a nossa fé em Cristo tem de se traduzir em obras compatíveis. A atenção e o carinho que pusermos no nosso relacionamento com os pobres será sempre o exame e a verificação da nossa fé.
É assim que o Salmo 146, que é uma espécie de carrilhão musical, nos convida a cantar os «doze belíssimos nomes» de Deus, decalcando aqui a expressão muçulmana que exalta os «99 belíssimos nomes» de Allah. É claro que os doze nomes que passaremos em revista não celebram tanto a essência divina, mas a sua ação em favor das suas criaturas, sobretudo dos mais pobres e desfavorecidos. É assim que o Salmo evoca o Deus que fez o céu, a terra, o mar, o Deus Criador (1), o Deus da verdade (ʼemet) (2), o Deus que faz justiça aos oprimidos, defensor dos últimos (3), que dá pão aos famintos (4), que liberta os prisioneiros (5), que abre os olhos aos cegos (6), que levanta os abatidos (7), que ama os justos (8), que protege os estrangeiros (9), que sustenta o órfão e a viúva (10), que entrava o caminho dos ímpios (11), o Deus que reina eternamente (12). Este maravilhoso Salmo faz-nos saborear musicalmente toda a liturgia de hoje.
D. António Couto
ANEXOS:
«O que sai do homem é que o torna impuro» Mc 7, 21
Viver a Palavra
A Liturgia da palavra deste domingo propõe-nos uma reflexão sobre a “Lei” de Deus, que não se esgota no mero cumprimento de ritos ou de práticas vazias de significado. A “Lei” de Deus (1.ª Leitura) é o caminho seguro para a felicidade e para a vida em plenitude. Para Jesus (Evangelho) a verdadeira religião não se centra no cumprimento formal das “leis”, mas num processo de conversão que leve o homem à comunhão com Deus e com os irmãos. Por isso (2.ª Leitura) a Palavra escutada e acolhida no coração tem de tornar-se um compromisso de amor, de partilha, de solidariedade com o mundo e com os homens. in Voz Portucalense
LEITURA I – Dt 4,1-2.6-8
“Agora escuta, Israel”
O Livro do Deuteronómio é aquele “livro da Lei” ou “livro da Aliança” descoberto no Templo de Jerusalém no 18º ano do reinado de Josias (622 a.C.) (cf. 2 Re 22). Neste livro, os teólogos deuteronomistas – originários do Norte (Israel) mas, entretanto, refugiados no sul (Judá) após as derrotas dos reis do norte frente aos assírios – apresentam os dados fundamentais da sua teologia: há um só Deus, que deve ser adorado por todo o Povo num único local de culto (Jerusalém); esse Deus amou e elegeu Israel e fez com Ele uma aliança eterna; e o Povo de Deus deve ser um único Povo, a propriedade pessoal de Jahwéh (portanto, não têm qualquer sentido as questões históricas que levaram o Povo de Deus à divisão política e religiosa, após a morte do rei Salomão).
Literariamente, o livro apresenta-se como um conjunto de três discursos de Moisés, pronunciados nas planícies de Moab. Pressentindo a proximidade da sua morte, Moisés deixa ao Povo uma espécie de “testamento espiritual”: lembra aos hebreus os compromissos assumidos para com Deus e convida-os a renovar a sua aliança com Jahwéh.
O texto que hoje nos é proposto apresenta-se como parte do primeiro discurso de Moisés (cf. Dt 1,6-4,43). Na primeira parte desse discurso (cf. Dt 1,6-3,29), em estilo narrativo, o autor deuteronomista põe na boca de Moisés um resumo da história do Povo, desde a estadia no Horeb/Sinai, até à chegada ao monte Pisga, na Transjordânia; na parte final desse discurso (cf. Dt 4,1-43), o autor apresenta, em estilo exortativo, um pequeno resumo da Aliança e das suas exigências. Esta secção final do primeiro discurso de Moisés começa com a expressão “e agora, Israel…”, que enlaça esta secção com a precedente: mostra-se que o compromisso que agora se pede a Israel se apoia nos acontecimentos históricos anteriormente expostos… A acção de Deus ao longo da caminhada do Povo pelo deserto deve conduzir ao compromisso.
O capítulo 4 do Livro do Deuteronómio é um texto redigido, muito provavelmente, na fase final do Exílio do Povo de Deus na Babilónia. Perdido numa terra estrangeira e mergulhado numa cultura estranha, hostilizado quando tentava afirmar a sua fé em Jahwéh e celebrá-la através do culto, impressionado com o esplendor ritual e as solenidades do culto babilónico, o Povo bíblico corria o risco de trocar Jahwéh pelos deuses babilónicos. É neste contexto que os teólogos da escola deuteronomista vão convidar o Povo a olhar para a sua história (cf. Dt 1,6-3,29), a redescobrir nela a presença salvadora e amorosa de Jahwéh e a comprometer-se de novo com Deus e com a Aliança. in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 14 (15)
REFRÃO: Quem habitará, Senhor, no vosso santuário? Ou Ensinai-nos, Senhor: quem habitará em vossa casa?
LEITURA II – Tg 1,17-18.21-22.27
“Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes”
A carta de onde foi extraída a nossa segunda leitura de hoje é um escrito de um tal Tiago (cf. Tg 1,1), que a tradição liga a esse Tiago “irmão” do Senhor, que presidiu à Igreja de Jerusalém e do qual os Evangelhos falam acidentalmente como filho de certa Maria (cf. Mt 13,55; 27,56). Teria morrido decapitado em Jerusalém no ano 62… No entanto, a atribuição deste escrito a tal personagem levanta bastantes dificuldades. O mais certo é estarmos perante um outro qualquer Tiago, desconhecido até agora (o “Tiago, filho de Alfeu” – de que se fala em Mc 3,18 e par. – e o “Tiago, filho de Zebedeu” e irmão de João – de que se fala em Mc 1,19 e par. – também não se encaixam neste perfil). É, de qualquer forma, um autor que escreve em excelente grego, recorrendo até, com frequência, à “diatribe” – um género muito usado pela filosofia popular helénica. Inspira-se particularmente na literatura sapiencial, para extrair dela lições de moral prática; mas depende também profundamente dos ensinamentos do Evangelho. Trata-se de um sábio judeo-cristão que repensa, de maneira original, as máximas da sabedoria judaica, em função do cumprimento que elas encontraram na boca e no ensinamento de Jesus.
A carta foi enviada “às doze tribos que vivem na Diáspora” (Tg 1,1). Provavelmente, a expressão alude a cristãos de origem judaica, dispersos no mundo greco-romano, sobretudo nas regiões próximas da Palestina – como a Síria ou o Egipto; mas, no geral, a carta parece dirigir-se a todos os crentes, exortando-os a que não percam os valores cristãos autênticos herdados do judaísmo através dos ensinamentos de Cristo. Denuncia, sobretudo, certas interpretações consideradas abusivas da doutrina paulina da salvação pela fé, sublinhando a importância das obras; e ataca com extrema severidade os ricos (cf. Tg 1,9-11; 2,5-7; 4,13-17; 5,1-6).
O nosso texto pertence à primeira parte da carta (cf. Tg 1,2-27). Aí, o autor apresenta, num conjunto de desenvolvimentos e de sentenças aparentemente sem ordem nem lógica, uma síntese ou guia breve da carta, pois oferece um breve panorama dos problemas que o preocupam e que ele vai tratar nos capítulos seguintes.
in Dehonianos.
EVANGELHO – Mc 7,1-8.14-15.21-23
“O que sai do homem é que o torna impuro”
Na primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30), o autor apresenta Jesus como o Messias que proclama o Reino de Deus. Deslocando-se por toda a Galileia, Jesus anuncia a Boa Nova do Reino de Deus com as suas palavras e os seus gestos, propondo um mundo novo de vida, de liberdade, de fraternidade para todos os homens. A sua proposta provoca as reacções e as respostas mais diversas nos líderes judaicos, no povo e nos próprios discípulos.
A cena que nos é hoje proposta no Evangelho mostra-nos, precisamente, a reacção dos fariseus e dos doutores da Lei à acção de Jesus. Pouco antes, Jesus tinha realizado a multiplicação dos pães e dos peixes (cf. Mc 6,34-44), propondo, com o seu gesto, um mundo novo de fraternidade, de serviço e de partilha (o “Reino de Deus”); e os líderes judaicos, sem coragem para enfrentar-se directamente com Jesus e para pôr em causa a sua proposta, escolhem os discípulos como alvo das suas críticas… Naturalmente, esses fariseus, fanáticos da Lei, vão questionar os discípulos de Jesus acerca da forma deficiente como eles cumprem a “tradição dos antigos”.
Para os fariseus, a “tradição dos antigos” não se cingia às normas escritas contidas na Lei (Torah), mas abrangia um imenso conjunto de leis orais onde apareciam as decisões e as sentenças dos rabis acerca dos mais diversos temas. Na época de Jesus, essa “tradição dos antigos” constava de 613 leis (tantas quantas as letras do Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai), das quais 248 eram preceitos de formulação positiva e 365 eram preceitos de formulação negativa. Essas leis – que o Povo tinha dificuldade em conhecer na sua totalidade e que tinha, ainda mais, dificuldade em praticar – eram, para os fariseus, o caminho para tornar Israel um Povo santo e para apressar a vinda libertadora do Messias. Vai ser, precisamente, à volta desta temática que se vai centrar a polémica entre Jesus e os fariseus que o Evangelho de hoje nos relata.
Quando Marcos escreveu o seu Evangelho (durante a década de 60), a questão do cumprimento da Lei judaica ainda era uma questão “quente”. Para os cristãos vindos do judaísmo, a fé em Jesus devia ser complementada com o cumprimento rigoroso das leis judaicas… No entanto, a imposição dos costumes judaicos levaria, certamente, ao afastamento dos cristãos vindos do paganismo. A questão que era preciso equacionar era a seguinte: o cumprimento da Lei de Moisés era importante, para a comunidade cristã? Para que o Reino que Jesus propôs se concretizasse, era necessário o cumprimento integral da Lei judaica? O Concílio de Jerusalém (por volta do ano 49) já havia dado uma primeira resposta à questão: para os cristãos, o fundamental é a pessoa de Jesus e o seu Evangelho; não é lícito impor aos cristãos vindos do paganismo o fardo da Lei de Moisés. No entanto, o problema continuou a colocar-se durante algumas décadas mais, nomeadamente a propósito dos tabus alimentares hebraicos e que os cristãos vindos do judaísmo pretendiam impor a toda a Igreja (cf. Rom 14,1-15,6).
É, provavelmente, a esta temática que o evangelista Marcos quer responder.in Dehonianos
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
PÔR O CORAÇÃO NO PREGO
Depois de termos feito durante cinco Domingos consecutivos, desde o XVII ao XXI, uma incursão pelo Capítulo VI do Evangelho segundo S. João, regressamos, neste Domingo XXII do Tempo Comum, ao Evangelho segundo S. Marcos, em que nos é dado escutar, ainda que com alguns cortes, o texto de Marcos 7,1-23.
O texto referido divide-se claramente em três partes: Marcos 7,1-13, em que os interlocutores de Jesus são os fariseus e os escribas (1); Marcos 7,14-16, em que Jesus constitui um novo auditório, chamando a multidão e falando para todos (2); Marcos 7,17-23, em que Jesus entra em casa e fala para os seus discípulos (3).
No caso dos fariseus e escribas, são estes que fazem uma pergunta a Jesus: «Por que é que os teus discípulos não seguem a tradição (parádôsis) dos antigos, e comem o pão com as mãos impuras?» (Marcos 7,5). Jesus inicia a sua resposta com uma citação de Isaías 29,13: «Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim; é vazio (mátên) o culto que me prestam, e as doutrinas que ensinam são preceitos humanos» (Marcos 7,6-7). Note-se que o texto hebraico de Isaías 29,13 abre assim: «Este povo aproxima-se (nagash) de mim só com palavras e honra-me com os lábios, pois o seu coração está longe de mim». Esta versão é fortíssima, pois reclama Jeremias 30,21 que, ao pôr Deus a fazer aproximar (nagash) de si o novo chefe que será posto à frente da comunidade que vem do exílio, justifica assim: «Na verdade, quem empenharia o coração (ʽarab ʼet-libô), aproximando-se (nagash) de mim?». «Empenhar o coração» é pôr o coração no prego, numa casa de penhores. É, portanto, igual a morrer. Portanto, o que Jesus começa por criticar aos fariseus e escribas é o facto de erguerem à sua volta uma muralha de palavras, de ficarem enredados nas palavras, e de não arriscarem a vida. Neste sentido, são apostrofados por Jesus por três vezes (modo enfático), quase com as mesmas palavras: «Vós abandonais / violais / anulais o mandamento de Deus em favor da vossa tradição» (Marcos 7,8.9.13).
Na parte do discurso dirigido aos fariseus e escribas (Marcos 7,1-13), Jesus pôs a nu o culto vazio e exterior, sem Deus e a vida nova que d’Ele vem, e só com rodeios humanos. É quanto Jesus diz com as expressões «só com os lábios, e não com o coração», «só com preceitos humanos, e sem os preceitos de Deus». Na nova vaga agora iniciada (Marcos 7,14-16), Jesus chama para junto de si a multidão, que tinha sido referida pela última vez em Marcos 6,34, e lança dois imperativos a todos: «Escutai-me e compreendei» (Marcos 7,14). É assim que Jesus reclama de todos a máxima atenção. Posto este novo cenário, Jesus enuncia então o novo princípio ético do Novo Testamento: a pureza do coração. De fora para dentro. Da fisiologia (lavar as mãos, os jarros…) para a ética assente na limpeza e na pureza do coração: «Nada há fora do homem, que entrando nele, o possa tornar impuro; são as coisas que saem do homem que tornam o homem impuro» (Marcos 7,15).
Proclamado diante de todos o novo princípio ético fundamental (o que se passa no coração é a chave da ética), Jesus separa-se da multidão e entra em casa, novo espaço relacional, e aí e desse modo, explica aos seus discípulos o princípio sapiencial, o mashal, proposto à escuta e compreensão de todos. Note-se, todavia, que são os discípulos que pedem explicações em casa (Marcos 7,17). Só eles estão com Jesus «em casa», e pretendem, não tirar-se de razões, atropelar-se com palavras, mas compreender melhor o dizer sapiencial (mashal) de Jesus à multidão. E Jesus adverte-os, como quem espera deles e de nós uma melhor compreensão. Mas explica, apontando outra vez o dedo ao coração: «Não compreendeis que tudo o que, de fora, entra no homem, não o pode tornar impuro, porque não entra no seu coração, mas no ventre, e vai para a fossa? E dizia: o que sai do homem, isso sim, torna o homem impuro. Na verdade, é de dentro do coração dos homens que saem as más intenções, imoralidades, roubos, homicídios, adultérios, cobiças, malvadez, fraudes, luxúria, mau-olhado, calúnia, soberba, insensatez. Todas estas coisas más vêm de dentro, e tornam o homem impuro» (Marcos 7,18-23). Notável elenco de vícios. E como nos dá Jesus uma extraordinária e incisiva explicação, pondo completamente a nu a nossa vida antiga, e ensinando-nos novíssimas maneiras de viver.
Vê-se bem que não basta lavar por fora. O essencial não é o «envelope» no bolso, à entrada da porta, por cima ou por baixo da mesa. Não basta, portanto, a «lavagem das mãos», a netilat yadayim, como forma exterior de traduzir a pureza interior, do coração. Na verdade, é sempre necessário manter puro o coração, e nada de exterior pode iludir ou camuflar esta ação fundamental.
Acompanha a proclamação do Evangelho de hoje a leitura do Livro do Deuteronómio 4,1-8. Fantástico discurso de Moisés ao povo reunido à entrada da Terra Prometida. O Deuteronómio inteiro é formado por quatro longos discursos proferidos por Moisés no último dia da sua vida. O assunto é insistentemente o mesmo: para viver feliz na Terra Prometida em que o povo de Israel está para entrar, isto é, para entrar e viver na Casa de Deus, perto de Deus, Israel tem de escutar e praticar os mandamentos de Deus.
E S. Tiago, na sua Carta, também hoje lida (1,17-27), insiste no mesmo tom: sede fazedores (poiêtaì) e não apenas ouvintes da Palavra de Deus (1,22) todos os dias e em todas as circunstâncias, atentos sempre aos mais pobres. É pela nossa atitude para com os pobres e necessitados (1,27), que podemos verificar se somos ou não fazedores da Palavra de Deus.
O Salmo 15 é uma «Liturgia de ingresso» no santuário, ou uma «Liturgia das portas». Constituía, na prática, uma espécie de liturgia penitencial ou exame de consciência feito à porta do Templo, para se aquilatar se a pessoa reúne condições para poder entrar no Templo. Quer isto dizer que, para alguém poder transpor o limiar do Templo, para poder ir à presença de Deus, tem de preencher uma série de requisitos morais e existenciais, e não apenas de pureza ritual, que nem sequer é falada no Salmo. Nas fachadas dos santuários do Egito e da Mesopotâmia estavam inscritas as condições requeridas para se aceder ao culto. Tratava-se, em quase todos os casos, de preceitos de natureza ritual ou exterior. Também o Talmude lembrava que «o homem não deve subir ao monte do Templo com sapatos ou bolsa ou com os pés cheios de pó; não deve reduzir os átrios do templo a entradas apressadas, e muito menos cuspir neles». Como se vê, o nosso Salmo não se entretém com ritualismos exteriores, mas requer comportamentos como o cumprimento de atos éticos e existenciais, que envolvam a justiça e a verdade, que evitem a calúnia e o insulto e a usura. Tenha-se presente que, no mundo oriental, o empréstimo interesseiro atingia, por vezes, níveis altíssimos. Por exemplo, na Mesopotâmia, as taxas de empréstimo chegaram a variar entre 17 e 50%. O nosso Salmo apela à generosidade.
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Rezar por Maria.
Frequentemente, ouvimos a expressão: “rezar à Virgem Maria”… Esta maneira de falar não é absolutamente exata, porque a oração cristã dirige-se a Deus, ao Pai, ao Filho e ao Espírito: só Deus atende a oração. Os nossos irmãos protestantes que, contrariamente ao que se pretende, por vezes têm a mesma fé que os católicos e os ortodoxos na Virgem Maria Mãe de Deus, recordam-nos que Maria é e se diz ela própria a Serva do Senhor
Rezar por Maria é pedir que ela reze por nós: “Rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte!” A sua intervenção maternal em Caná resume bem a sua intercessão em nosso favor. Ela é nossa “advogada” e diz-nos: “Fazei tudo o que Ele vos disser!”
Rezar com Maria.
Ela está ao nosso lado para nos levar na oração, como uma mãe sustenta a palavra balbuciante do seu filho. Na glória de Deus, na qual nós a honramos hoje, ela prossegue a missão que Jesus lhe confiou sobre a Cruz: “Eis o teu Filho!” Rezar com Maria, mais que nos ajoelharmos diante dela, é ajoelhar-se ao seu lado para nos juntarmos à sua oração. Ela acompanha-nos e guia-nos na nossa caminhada junto de Deus.
Rezar como Maria.
Aprendemos junto de Maria os caminhos da oração. Na escola daquela que “guardava e meditava no seu coração” os acontecimentos do nascimento e da infância de Jesus, nós meditamos o Evangelho e, à luz do Espírito Santo, avançamos nos caminhos da verdade. A nossa oração torna-se ação de graças no eco ao Magnificat. Pomos os nossos passos nos passos de Maria para dizer com ela na confiança: “que tudo seja feito segundo a tua Palavra, Senhor!” in Dehonianos
LEITURA I – Ap 11,19a;12,1-6a.10ab
«Apareceu no Céu um sinal grandioso:
uma mulher revestida de sol,
com a lua debaixo dos pés
e uma coroa de doze estrelas na cabeça».
As visões do Apocalipse exprimem-se numa linguagem codificada. Elas revelam que Deus arranca os seus fiéis de todas as formas de morte. Por transposição, a visão o sinal grandioso pode ser aplicada a Maria.
O livro do Apocalipse foi composto no ambiente das perseguições que se abatiam sobre a jovem Igreja, ainda tão frágil. O profeta cristão evoca estes acontecimentos numa linguagem codificada, em que os animais terrificantes designam os perseguidores. A Mulher pode representar a Igreja, novo Israel, o que sugere o número doze (as estrelas). O seu nascimento é o do batismo que deve dar à terra uma nova humanidade. O Dragão é o perseguidor, que põe tudo em ação para destruir este recém-nascido. Mas o destruidor não terá a última palavra, pois o poder de Deus está em ação para proteger o seu Filho.
Proclamando esta mensagem na Assunção, reconhecemos que, no seguimento de Jesus e na pessoa de Maria, a nova humanidade já é acolhida junto de Deus.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 44 (45)
Refrão: À vossa direita, Senhor, a Rainha do Céu, ornada do ouro mais fino.
LEITURA II – 1 Cor 15,20-27
«É necessário que Ele reine,
até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos seus pés».
A Assunção é uma forma privilegiada de Ressurreição. Tem a sua origem na Páscoa de Jesus e manifesta a emergência de uma nova humanidade, em que Cristo é a cabeça, como novo Adão.
Todo o capítulo 15 desta epístola é uma longa demonstração da ressurreição. Na passagem escolhida para a festa da Assunção, o apóstolo apresenta uma espécie de genealogia da ressurreição e uma ordem de prioridade na participação neste grande mistério. O primeiro é Jesus, que é o princípio de uma nova humanidade. Eis porque o apóstolo o designa como um novo Adão, mas que se distingue absolutamente do primeiro Adão; este tinha levado a humanidade à morte, ao passo que o novo Adão conduz aqueles que o seguem para a vida.
O apóstolo não evoca Maria, mas se proclamamos esta leitura na Assunção, é porque reconhecemos o lugar eminente da Mãe de Deus no grande movimento da ressurreição. in Dehonianos
EVANGELHO – Lc 1,39-56
«A minha alma glorifica o Senhor
e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador,
porque pôs os olhos na humildade da sua serva:
de hoje em diante me chamarão bem-aventurada
todas as gerações».
O cântico de Maria descreve o programa que Deus tinha começado a realizar desde o começo, que ele prosseguiu em Maria e que cumpre agora na Igreja, para todos os tempos.
Pela Visitação que teve lugar na Judeia, Maria levava Jesus pelos caminhos da terra. Pela Dormição e pela Assunção, é Jesus que leva a sua mãe pelos caminhos celestes, para o templo eterno, para uma Visitação definitiva. Nesta festa, com Maria, proclamamos a obra grandiosa de Deus, que chama a humanidade a se juntar a ele pelo caminho da ressurreição.
Em Maria, Ele já realizou a sua obra na totalidade; com ela, nós proclamamos: “dispersou os soberbos, exaltou os humildes”. Os humildes são aqueles que crêem no cumprimento das palavras de Deus e se põem a caminho, aqueles que acolhem até ao mais íntimo do seu ser a Vida nova, Cristo, para o levar ao nosso mundo. Deus debruça-se sobre eles e cumpre neles maravilhas.in Dehonianos
Para os leitores:
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
Ainda que com títulos diferentes, mas com temas e conteúdos idênticos, as Igrejas do Oriente e do Ocidente, portanto a Igreja inteira, a Una e Santa, celebra no dia 15 de agosto a maior e mais antiga festa da Mãe de Deus, a Virgem Santa Maria. No Oriente, é a festa da «Dormição» (koímêsis), enquanto, no Ocidente, prevalece a tonalidade da «Assunção» (análêmpsis).
O Evangelho deste grande Dia relata o belíssimo episódio da «Visitação» (Lucas 1,39-45) seguido do cântico da «Exultação» ou «Magnificat» (Lucas 1,46-56). Note-se outra vez uma pequena diferença de tonalidade: o episódio evangélico que o Ocidente conhece por «Visitação», recebe no Oriente o nome de «Saudação» (aspasmós). E o episódio que precede e motiva esta «Visitação» ou «Saudação» recebe no Ocidente o nome de «Anunciação» e no Oriente o nome de «Evangelização» (euangelismós) (Lucas 1,26-38). Verdadeiramente é a Leveza e a Alegria em trânsito, a caminho, ao ritmo do vento do Espírito, música nova, inefável e bendita. Vinda de Deus até Maria, até Isabel, até João Baptista, outra vez até Deus. Lembra uma pequena parábola rabínica que, quando David andava fugido de Saul, buscando refúgio nas montanhas (1 Samuel 22 e seguintes), um dia dependurou a sua harpa numa árvore, e adormeceu. Mas o vento, passando, fez as cordas da harpa exalar uma suave melodia. Verdadeira música do Espírito.
É igualmente sugestiva a intuição dos Mestres judaicos, registada por Martin Buber nos seus «Contos dos Justos». Citando o Salmo 147,1, em que se lê: «É bom cantar ao nosso Deus», Buber apresenta logo a bela interpretação que Rabbí Elimelek dava deste versículo: «É bom se o homem faz cantar Deus nele». Música divina. Assim Maria correndo sobre os montes e saudando Isabel, em casa de quem permanece cerca de três meses, e cantando as maravilhas de Deus no Magnificat, assim Isabel bendizendo Maria e bendizendo Deus, assim João Baptista, dançando ao som dessa nova música inefável, no ventre de Isabel.
Maria correndo sobre os montes: feliz evocação do mensageiro de boas notícias de Isaías 52,7: «Como são belos sobre os montes os pés do mensageiro que anuncia boas novas a Sião…». Feliz evocação também do amado do Cântico dos Cânticos 2,8, assim cantado pela amada: «A voz do meu amado: ei-lo que vem correndo sobre os montes». Assim, com este simples acorde montanhoso, o narrador e grande retratista do terceiro Evangelho traça o perfil de Maria movida, não por uma pressa qualquer, mas por uma grande notícia e pelo amor. A aclamação de Isabel: «Bendita tu entre as mulheres e bendito o fruto do teu ventre» [= «Bendita tu e bendito Deus»], lembra o duplo «Bendito» na aclamação de Judite (13,18). A locução maravilhada de Isabel: «E de onde me é dado que venha ter comigo a Mãe do meu Senhor?» (Lucas 1,43), remete para o atónito dizer de David: «E de onde me é dado que venha ao meu encontro a Arca do Senhor?» (2 Samuel 6,9). E a «dança de João» reclama a dança de David na presença da Arca do Senhor (2 Samuel 6,5.14.16.21). E os «cerca de três meses» de permanência de Maria em casa de Isabel, regressando então a sua casa (Lucas 1,56), não são, como vulgarmente se pensa, para indicar que Maria está presente no nascimento de João Baptista, pois este apenas é narrado no versículo seguinte (Lucas 1,57). É, antes, outra vez o acerto com a Arca do Senhor, que permanece cerca de três meses na casa de Obed-Edom (2 Samuel 6,11). Os acordes textuais evidentes mostram Maria como a Arca da Aliança, como, de resto, é aclamada pelo Povo de Deus, quando recita a ladainha de Nossa Senhora.
O que verdadeiramente me extasia e inebria é esta música outra, ventilando as cordas do nosso humano, e quase sempre orgulhoso, coração. Vem outra vez a propósito a velha sabedoria judaica, que nos legou esta bela pequena história: «Conta-se que, quando David terminou o Livro dos Salmos, se sentiu muito orgulhoso. Então disse para Deus: “Senhor do mundo, quem de entre todos os seres que criaste, canta melhor do que eu a tua glória?”. Naquele momento, apareceu uma rã que lhe disse: “David, não te envaideças. Eu canto melhor do que tu a glória de Deus”» (Sefer ha-Haggadah, 89b).
Aí está, a descoberto, na lição do Livro do Apocalipse (11,19; 12,1-6.10), a Arca da Aliança, a Mulher messiânica, a Igreja, Maria, grávida de um Filho que nasceu, «sinal» para sempre aceso e legível da presença viva e ativa de Deus no meio de nós, como a luz de uma vela, para a celebração festiva dos filhos de Deus reunidos. Avista-se, porém, outro «sinal» de sinal contrário, que serve para nos manter unidos e atentos no meio das dificuldades e perseguições desta vida, que, todavia, não devem toldar-nos a vista da salvação e da vitória, claramente a descoberto no horizonte onde brilha a esperança: «Agora cumpriu-se a salvação, a força e o reino do nosso Deus e a autoridade do seu Cristo» (Apocalipse 12,10).
O final da Primeira Carta aos Coríntios (15,20-27) põe um imenso selo de luz e de esperança na celebração luminosa deste Dia. Com a Ressurreição de Cristo salta à vista a poeira de toda a iniquidade e falsidade e morte, e já se vê a «assunção» da nossa frágil humanidade em Cristo e por Cristo até Deus Pai.
O belíssimo Canto de Amor, que é o Salmo 45, serve hoje para celebrar a Igreja Esposa e Mãe, e Maria Esposa e Mãe. Este belo hino, como o Cântico dos Cânticos, canta o Amor, que é sempre divino e humano. Na verdade, no amor humano pode ler-se o amor revelado por Deus, pelo que, se existe o amor, existe Deus. Não admira, por isso, que este Salmo tenha sido interpretado em clave messiânica quer no judaísmo quer no cristianismo.
Pela Constituição Apostólica Munificentissimus Deus, de 1 de novembro de 1950, o Papa Pio XII proclamava a Assunção da Virgem Maria como dogma de fé. Mas é desde os primeiros séculos do Cristianismo que o Povo de Deus aclama, proclama e vive com amor intenso esta realidade. Quantas igrejas, paróquias e dioceses a têm como padroeira! E, neste particular, este recanto Peninsular, terra de Santa Maria, não podia ser exceção. O Povo de Deus desde muito cedo aclamou a Assunção de Maria, Mãe de Deus e esperança da nossa frágil humanidade.
Um lugar guarda esta memória em Jerusalém. É preciso descer ao vale que corre a Oriente da cidade, o famoso vale do Cédron. Deixando à direita o Getsémani com as suas oliveiras seculares e a Basílica da Agonia de Jesus, muito próximo da Gruta dos Apóstolos ou da Prisão de Jesus, chega-se a um pátio pavimentado que dá para uma monumental fachada, que é o que resta de uma grande Igreja aí construída pelos Cruzados. Por detrás dessa fachada, estende-se uma escadaria que nos leva a uma cripta situada nas entranhas do vale do Cédron. É esta cripta que guarda um túmulo do século I, que a tradição cristã identifica com o túmulo de Maria, em forma de banco escavado na rocha, e que se apresenta bastante degradado devido à tentação dos peregrinos que, ao longo dos tempos, não resistiram a levar consigo um pedacinho da rocha que esteve em contacto com o corpo da «Bendita».
No dia da Solenidade da Assunção, é comovente ver aquela escadaria escura iluminada como um tapete de luz, devido às velas que os fiéis colocam em cada degrau. Conduzindo embora para um túmulo, a sensação que se cria é que aquela escadaria descendente, feita tapete de luz, abre para uma ianua coeli, «porta do céu», como também cantamos na litania de Maria.
No seguimento lógico da Assunção de Maria, a Igreja celebra oito dias depois, em 22 de agosto, a Memória da Virgem Santa Maria, Rainha, proclamação também devida a Pio XII, através da Carta Encíclica Ad Coeli Reginam, de 11 de Outubro de 1954. Mãe Elevada aos Céus, mas Mãe que vela carinhosamente pelos seus filhos. O Rei e a Rainha não são, na Bíblia, títulos de nobreza, mas traduzem a dupla função de quem deve estar particularmente próximo de Deus e particularmente próximo dos homens. Para acolher de perto toda a Palavra que vem do coração de Deus, e para trazer à humanidade a prosperidade, o bem-estar e a felicidade. Tal é a função do Rei e da Rainha.
António Couto
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Não convém interromper o Discurso, o Evangelho, o Sermão do Pão.
Capítulo 6 do Evangelho de João
XVII DTC – Jo 6, 1-15 “De onde comprareis pão para dar de comer a esta gente toda?”
XVIII DTC – Jo 6, 24-35 “O meu pai é que vos dá o Pão, o do céu, o verdadeiro.”
XIX DTC – Jo 6, 41-51 “Eu sou o Pão Vivo, o do Céu.”
XX DTC – Jo 6, 51-58 “Assim como eu vivo do Pai, quem me comer viverá de mim.”
XXI DTC – Jo 6, 60-69 “Vós não quereis ir-vos embora, pois não?”
Jo 6, 51-58
51*Eu sou o pão vivo, o que desceu do Céu: se alguém comer deste pão, viverá eternamente; e o pão que Eu hei-de dar é a minha carne, pela vida do mundo.»52Então, os judeus, exaltados, puseram-se a discutir entre si, dizendo: «Como pode Ele dar-nos a sua carne a comer?!» 53Disse-lhes Jesus: «Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do Homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós. 54Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna e Eu hei-de ressuscitá-lo no último dia, 55porque a minha carne é uma verdadeira comida e o meu sangue, uma verdadeira bebida. 56Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e Eu nele. 57Assim como o Pai que me enviou vive e Eu vivo pelo Pai, também quem de verdade me come viverá por mim. 58Este é o pão que desceu do Céu; não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram; quem come mesmo deste pão viverá eternamente.»
UMA NOVA POSSIBILIDADE NA HISTÓRIA HUMANA
Neste Domingo XX do Tempo Comum, temos a graça de escutar o texto que compõe a quinta secção (João 6,52-59) [ver Domingo XIX] da quinta Parte (João 6,25-59) do Capítulo 6.º do Quarto Evangelho [ver Domingo XVII]. Na verdade, o Evangelho deste Domingo XX começa no v. 51 e termina no v. 58, estendendo-se assim por João 6,51-58. Portanto, o v. 51, que abre o Evangelho deste Domingo XX fecha a quarta secção (João 6,41-51), e já foi lido no passado Domingo XIX. Mas, no v. 51, Jesus não está a responder à «multidão», como nos faz ler a versão oficial do texto que vai ser proclamado, mas aos «judeus», que entram em cena em João 6,41. Curiosamente, a versão do Domingo XIX está correta!
Já tivemos oportunidade de referir que cada uma das secções que compõem a quinta Parte deste Capítulo VI do Quarto Evangelho (João 6,25-59) estão ritmadas segundo o modelo «pergunta-resposta», sendo a pergunta sempre formulada pela «multidão» ou pelos «judeus», e a resposta sempre oferecida por Jesus. A pergunta dos judeus: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42), que abria a quarta secção (João 6,41-51), despoletou a resposta de Jesus sobre a sua verdadeira identidade: «Eu sou o pão vivo que desceu do céu […], pão que é a minha carne, que dá a vida» (João 6,51). A pergunta que abre a quinta secção (João 6,52-59) e que sai também da boca dos judeus, e que vem na continuidade da resposta acima referida por Jesus, soa assim: «Como pode este dar-nos a sua carne (sárx) a comer?» (João 6,52).
Esclarecedor é que o verbo «comer» apareça conjugado com «carne» (sárx) (João 6,52.53.54.56), com «pão» (ártos) (João 6,51.58) e «comigo» (me) [«o que me come»] (João 6,57). Fica claro que «comer o pão descido do céu» é «comer a carne do Filho do Homem», e que as duas expressões são equivalentes de «comer a pessoa» de Jesus, a sua identidade, o seu modo de viver. Só assim a vida verdadeira, a vida eterna, entra em nós e transforma a nossa vida, configurando-a com a de Jesus. Uma nova possibilidade entra na história humana. Tudo o que fica para trás, resume-se assim: «No deserto, os vossos pais comeram o maná, e morreram» (João 6,49). Que a vida eterna, que é Jesus, entre em nós e transforme, transfigure e configure a nossa vida à maneira de viver de Jesus, eis a temática da transparência e da mútua imanência e pertença entre nós e Jesus: «Permanece em Mim e Eu nele» (João 6,56). É a melhor e mais realista tradução da nossa comunhão eucarística. Até o verbo «comer» ganha nesta secção particular sabor e realismo. De facto, para dizer «comer», o grego do Novo Testamento usa habitualmente o verbo esthíô. Todavia, em João 6,54.56.57.58, é usado um verbo «comer» muito mais forte, o verbo trôgô [= trincar, mastigar]. De forma significativa, este verbo só é usado nas passagens atrás assinaladas e em João 13,18, no contexto da ceia da Páscoa.
D. António Couto
ANEXOS:
“Eu sou o pão que desceu do Céu” – Jo 6, 41
Viver a Palavra
«Somos aquilo que comemos!».
Esta expressão é popularmente repetida e hoje aparece frequentemente ligada a planos alimentares e programas nutricionais, para sublinhar que o que comemos diz muito sobre nós, sobre o que somos e sobre aquilo que defendemos. Esta frase que parece recentemente inventada por algum publicitário remonta a Hipócrates, pai da medicina, que há mais de 2500 anos divulgou esta ideia, acrescentando: «que o vosso alimento seja o vosso primeiro medicamento».
Sabemos que a alimentação é fundamental para uma vida saudável e, hoje mais do que nunca, sabemos do impacto que as nossas escolhas alimentares têm na nossa vida. Conscientes que esta página não se destina a refletir sobre planos alimentares e nutricionais, estas linhas servem apenas de prelúdio para tomarmos consciência que o «Pão vivo que desceu do Céu» não só sustenta a nossa caminhada como a configura e lhe aponta o rumo a traçar.
Como Elias temos consciência que temos um longo caminho a percorrer, ainda que tantas vezes possamos ser vencidos pelo desânimo e procuremos um junípero onde carpir as nossas misérias e soltar o nosso último suspiro. Também não nos contentamos com um pão cozido sobre pedras quentes e uma bilha de água que entremeie o estado de apatia ou letargia em que nos encontramos, como se estivéssemos resignados a comer, beber e dormir até que o curso dos dias ache o seu fim.
Somos filhos do Deus do amor e da vida, chamados a inscrever a nossa existência num horizonte de eternidade que preenche de sentido os dias e as horas do nosso caminhar. Por isso, como nos exorta S. Paulo: «seja eliminado do meio de vós tudo o que é azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade». Afastemos de nós o que nos afasta de Deus e dos irmãos e sejamos construtores de uma vida verdadeiramente plena que possa fazer ecoar no coração de cada homem e de cada mulher as palavras que cantamos no Salmo: «saboreai e vede como o Senhor é bom».
Na verdade, é isto mesmo que nos revela Jesus: o nosso Deus bom e misericordioso é um Deus que somos chamados a saborear. A Sua vida entregue sem medida é pão partido e repartido para a redenção do mundo. Apresentando-se como o «Pão que desceu do Céu», Jesus depara-se com a perplexidade e admiração dos judeus que murmuram entre si sobre a loucura destas palavras. Um homem que se apresenta como alimento e, mais ainda, um alimento que vem do céu, quando eles até conhecem bem o Seu pai e Sua mãe.
Acostumados a estas palavras, não nos sentimos interpelar com a força que elas deveriam provocar em nós. Não somos alimentados por um pão qualquer, tampouco somos alimentados pelo maná que não evitou a morte daqueles que o comeram. Somos nutridos pelo Pão Vivo descido do Céu, pelo alimento que oferece vida em plenitude e prenhe de eternidade.
Jesus desce do céu, faz-se pão e oferece-se em alimento. Este é o dinamismo da incarnação que deve moldar a vida de todos aqueles que dele se alimentam: descer, fazer-se pão e oferecer-se. Nestas três formas verbais encontramos os pilares de uma vida verdadeiramente eucarística. Na verdade, se quando ingerimos algum alimento, os seus nutrientes são assimilados pelo nosso organismo, também todas as vezes que nos alimentamos do Pão da Eucaristia somos chamados a configurar a nossa vida com a vida Daquele que se quer fazer presente em nós. in Voz Portucalense
LEITURA I – 1 Reis 19,4-8
«Fortalecido com aquele alimento, caminhou durante quarenta dias e quarenta noites até ao monte de Deus, Horeb».
Elias atua no Reino do Norte (Israel) durante o século IX a.C., num tempo em que a fé jahwista é posta em causa pela preponderância que os deuses estrangeiros (especialmente Baal) assumem na cultura religiosa de Israel. Provavelmente, estamos diante de uma tentativa de abrir Israel a outras culturas, a fim de facilitar o intercâmbio cultural e comercial… Mas essas razões políticas não são entendidas nem aceites pelos círculos religiosos de Israel. O ministério profético de Elias desenvolve-se sobretudo durante o reinado de Acab (873-853 a.C.), embora a sua voz também se tenha feito ouvir no reinado de Ocozias (853-852 a.C.).
Elias é o grande defensor da fidelidade a Jahwéh. Ele aparece como o representante dos israelitas fiéis que recusavam a coexistência de Jahwéh e de Baal no horizonte da fé de Israel. Num episódio dramático, o próprio profeta chegou a desafiar os profetas de Baal para um duelo religioso que terminou com um massacre de quatrocentos profetas de Baal no monte Carmelo (cf. 1 Re 18). Esse episódio é, certamente, uma apresentação teológica dessa luta sem tréguas que se trava entre os fiéis a Jahwéh e os que abrem o coração às influências culturais e religiosas de outros povos.
Para além da questão do culto, Elias defende a Lei em todas as suas vertentes (veja-se, por exemplo, a sua defesa intransigente das leis da propriedade em 1 Re 21, no célebre episódio da usurpação das vinhas de Nabot): ele representa os pobres de Israel, na sua luta sem tréguas contra uma aristocracia e uns comerciantes todo-poderosos que subvertiam a seu bel-prazer as leis e os mandamentos de Jahwéh. Após o massacre dos 400 profetas de Baal no monte Carmelo, Acab e a sua esposa fenícia juraram matar Elias; e o profeta fugiu para o sul, a fim de salvar a vida. Chegado à zona de Beer-Sheba, Elias internou-se no deserto. É precisamente nesse contexto que o episódio do Livro dos Reis que hoje nos é proposto nos situa.in Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 33 (34)
Refrão: Saboreai e vede como o Senhor é bom.
LEITURA II – Ef 4,30-5,2
«Sede bondosos e compassivos uns para com os outros e perdoai-vos mutuamente».
A nossa segunda leitura apresenta-nos, mais uma vez, um texto dessa “carta circular” que Paulo escreveu a várias comunidades cristãs da parte ocidental da Ásia Menor (inclusive aos cristãos de Éfeso), enquanto estava na prisão (em Roma, durante os anos 61-63?). Esta carta (escrita na fase final da vida de Paulo) é uma carta onde o apóstolo expõe aos cristãos, de forma serena e refletida, as principais exigências da vida nova que resulta do Batismo.
Na secção que vai de 4,1 a 6,20, temos uma “exortação aos batizados”: é um texto parenético, que tem por objetivo principal exortar os cristãos a viverem de forma coerente com o seu Batismo e com o seu compromisso com Cristo. A perícope de 4,14-15,14 (que inclui o nosso texto) deve ser entendida como um convite a viver de acordo com a condição de Homem Novo, que o cristão adquiriu no dia do seu Batismo. in Dehonianos
EVANGELHO – Jo 6,41-51
«Eu sou o pão que desceu do Céu».
«Ninguém pode vir a Mim, se o Pai, que Me enviou, não o trouxer; e Eu ressuscitá-lo-ei no último dia».
«O pão que Eu hei-de dar é a minha carne, que Eu darei pela vida do mundo»
No seu “Livro dos Sinais” (cf. Jo 4,1-11,56), João apresenta-nos um conjunto de cinco catequeses sobre Jesus; e, em cada uma delas, usando diferentes símbolos, Jesus é apresentado como o Messias que veio ao mundo para cumprir o plano do Pai e fazer aparecer um Homem Novo. Todas essas catequeses (“Jesus, a água que dá a vida” – cf. Jo 4,1-5,47; “Jesus, o verdadeiro pão que sacia todas as fomes” – cf. Jo 6,1-7,53; “Jesus, a luz que liberta o homem das trevas” – cf. Jo 8,12-9,41; “Jesus, o Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas” – cf. Jo 10,1-42; “Jesus, vida e ressurreição para o mundo” – cf. Jo 11,1-56) terminam com uma secção onde se manifesta a oposição dos judeus a essa vida nova que Jesus veio propor aos homens. João vai, dessa forma, preparando os seus leitores para aquilo que vai acontecer em Jerusalém no final da caminhada histórica de Jesus: a morte na cruz.
O texto que nos é hoje proposto apresenta-nos uma dessas histórias de confronto entre Jesus e os judeus. No final do discurso explicativo da multiplicação dos pães e dos peixes, pronunciado na sinagoga de Cafarnaum (cf. Jo 6,22-40), Jesus propusera-Se como “o Pão da vida” e convidara os seus interlocutores a aderirem à sua proposta para nunca mais terem fome. O nosso texto é a sequência desse episódio. Refere a murmuração dos judeus a propósito das palavras de Jesus e descreve a controvérsia que se seguiu. in Dehonianos
Para os leitores:
Na primeira leitura, deve ter-se em atenção à palavra «junípero» que se repete duas vezes durante a leitura, para uma correta acentuação da palavra. Deve ter-se também em consideração as frases curtas e as intervenções em discurso direto, para uma leitura articulada e fluente.
Na segunda leitura, estar atento às formas verbais na forma imperativa que evidenciam o tom exortativo que deve pautar a proclamação deste texto. Deve haver ainda um especial cuidado com a proclamação enumeração presente no texto: «azedume, irritação, cólera, insulto, maledicência e toda a espécie de maldade».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra / a Mesa da Palavra
O PÃO QUE É JESUS, E NOS LEVA A IMITAR JESUS
Continuamos, neste Domingo XIX do Tempo Comum, a revisitar o chão textual e a saborear o pão espiritual do grande Evangelho de João 6. Hoje temos a graça de escutar a secção de João 6,41-51. Importa, desde já, lembrar o leitor que esta secção se enquadra na quinta Parte deste grande Capítulo, que se estende pelos versículos 25-59 (ver atrás, Domingo XVII). Podemos agora mostrar, para efeitos de clareza e melhor compreensão, como se apresenta estruturada esta quinta Parte (João 6,25-59), para nos ocuparmos depois, mais de perto, do texto deste Domingo (João 6,41-51).
João 6,25-59 apresenta-se ritmado pelo esquema «pergunta-resposta». As perguntas saem da boca de uma «multidão» não identificada ou dos «judeus», a que se seguem as respostas de Jesus. Seguindo este ritmo, o texto de João 6,25-59 mostra-se organizado em cinco secções: João 6,25-29 (a), João 6,30-33 (b), João 6,34-40 (c), João 6,41-51 (d) e João 6,52-59 (e).
O texto que nos ocupa neste Domingo forma, portanto, a quarta secção (João 6,41-51). O leitor atento começa logo por verificar que «a multidão» (ho óchlos) não identificada que até aqui seguia Jesus (João 6,2.5.22.24) se transforma subitamente, e sem qualquer explicação, em «os judeus» (hoi ioudaîoi) (João 6,41). É visível também que, com esta súbita transformação, cresce a hostilidade e a agressividade contra Jesus, aqui traduzida pela presença do verbo «murmurar» (goggýzô), que lembra o comportamento dos Israelitas no deserto (Êxodo 15,24; 16,2 e 7-8; 17,3; Números 14,2.27.29.36). A «murmuração» (goggysmós) é uma espécie de rebelião interior, assente na insatisfação, desconfiança, inveja, ciúme e azedume contra as pessoas e contra Deus, neste caso, contra Jesus.
E qual é a razão desta «murmuração» dos judeus contra Jesus? Radica no facto de estes judeus conhecerem bem o «histórico» de Jesus, o seu pai e a sua mãe, as suas raízes humanas bem humildes, e de não poderem conciliar estes dados muito humanos com a sua origem divina (João 6,42-43). Note-se também que a «murmuração» consiste em falar mal de alguém, não diretamente, tu a tu, mas indiretamente, em 3.ª pessoa: «Não é este, Jesus, o filho de José, de quem conhecemos o pai e a mãe? Como é que diz agora: “Eu desci do céu?”» (João 6,42).
Os judeus dizem conhecer o pai de Jesus. Mas Jesus responde, apelando ao fim da murmuração: «Não murmureis entre vós» (João 6,43), e apontando o seu verdadeiro Pai, que os judeus não conhecem (ironia joanina): «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44). Jesus põe, portanto, fim à murmuração, isto é, ao falar mal de alguém, em 3.ª pessoa, abrindo um discurso novo, direto, pessoal, tu a tu: «Vir a Mim» subverte completamente o «falar de Mim». Mas este «Vir a Mim» é obra, não dos homens, que não o sabem nem podem fazer por conta própria, mas de Deus: «Todos serão ensinados por Deus» (cf. Isaías 54,13), e conclui: «Todo aquele que escutou do Pai, e aprendeu, vem a Mim» (João 6,45). Os judeus falam do pai de Jesus, José. Mas Jesus fala do seu verdadeiro Pai, Deus. De pai para Pai. Jesus aponta o verdadeiro Pai, o único que nos leva a Jesus, o pão vivo descido do céu, que é a sua «carne», isto é, a sua forma de viver, a sua identidade. Claramente: só nos identificando com Jesus, aderindo à sua forma de viver, fazendo nossa a sua vida, deixamos entrar em nós a vida eterna. Notável interligação: o IV Evangelho já nos tinha ensinado que é Jesus que explica o Pai (João 1,18) e que conduz ao Pai (João 14,6). Nesta passagem, é o Pai que explica Jesus e que conduz a Jesus.
Notar-se-á por debaixo do falar de Jesus o teclado do Antigo Testamento. Em dois momentos. Um deles é aquele: «Todos serão ensinados por Deus» (João 6,45), que é uma citação de Isaías 54,13. Todavia, a música é diferente: o texto de Isaías é restritivo, pois fala de «Todos os teus filhos» (de Jerusalém). Jesus alarga a perspetiva, falando de todos em geral. O outro é aquele: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (élkô)» (João 6,44), que tem por debaixo Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere: «Com um amor eterno, Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; élkô LXX) com carinho». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo (hebraico e grego) traduz bem. Entenda-se: Deus não desiste de nós, já não pode passar sem nós!
Como os judeus cortam laços e cavam fossos, murmurando, também Elias (1 Reis 19,4-8) se afasta de Deus e do mundo e de si mesmo. Murmurando. De acordo com a murmuração de Elias, Deus não age como devia agir, o mundo está todo pervertido, de pernas para o ar, já não faz sentido continuar a viver. Porque Deus não age como ele quer, porque o mundo não é como ele quer, Elias, desgostoso e desanimado, corre para a morte, que ele vê como a única saída para a sua vida sem Deus e sem sentido. Tudo somado, Elias não é mesmo melhor do que os seus pais (1 Reis 19,4), os do tempo do Êxodo e da travessia do deserto, e, tal como eles, também murmura, falando mal de Deus, dos outros e do mundo.
Mas Deus, o verdadeiro Deus, não fala mal de Elias, mas ama Elias, e vai conduzi-lo ao caminho certo. Não deixa morrer Elias, e vai dar-lhe lições de vida verdadeira. Manda o seu anjo, que lhe toca (como toca em nós um anjo?), fala-lhe, alimenta-o, e abre-lhe um caminho imenso para uma nova nascente. Também não fala mal de nós, mas ama-nos.
Na linha do que bem faz hoje o Apóstolo Paulo para nós na Carta aos Efésios (4,30-5,2): «Nada de azedumes, irritação, cólera, insultos, maledicências, maldade» (Efésios 4,31). Em vez disso, bons (chrêstoí) uns para com os outros, misericordiosos, perdoadores (Efésios 4,32), «imitadores (mimêtês) de Deus, como filhos amados» (Efésios 5,1). Outra vez: Deus não fala mal de nós, mas ama-nos! E vistas as coisas do nosso lado: «o amor não faz mal ao próximo» (Romanos 13,10).
O Salmo 34 põe nos lábios dos pobres a bênção (berakah), que os une a Deus para sempre, e o louvor jubiloso e intenso (tehillah), que é a sua verdadeira razão de viver (vv. 2-3). O pobre enche o olhar de Deus e fica radiante, luminoso (v. 6), sabe que Deus o escuta e o salva, e convida a saborear a bondade de Deus (v. 9). Deus segue sempre o pobre de perto, cerca-o de amor (v. 8), protege até os seus ossos para não serem quebrados (v. 21), tal como é dito do cordeiro pascal, o mais alto símbolo de libertação. No seu Caminho de perfeição, Santa Teresa de Ávila deixa-nos, talvez, um dos mais belos e e incisivos discursos sobre a pobreza: «A pobreza é um bem que contém em si todos os bens do mundo; ela confere um império imenso, torna-nos verdadeiramente donos de todos os bens cá de baixo desde o momento em que os faz cair aos pés».
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Ser amado, escolhido e destinatário da predileção de alguém é sempre momento de um contentamento humano profundo e de uma alegria e felicidade que nos calam fundo no coração. Se nas nossas relações interpessoais esta experiência é consoladora e gratificante, bem maior deveria ser a nossa alegria e júbilo por tomarmos consciência de que somos homens e mulheres profundamente amados por Deus. Além disso, não somos amados por Deus como recompensa pelos nossos méritos, pelas nossas boas ações ou pela atenção que lhe dispensamos. O amor de Deus é infinito, gratuito e prévio a qualquer iniciativa da nossa parte.
No belíssimo hino que a Liturgia da Palavra nos oferece na segunda leitura, S. Paulo recorda-nos que somos abençoados por Deus por meio de Jesus Cristo e que Nele fomos escolhidos antes da criação do mundo. Somos obra das mãos de Deus e fomos inscritos desde o início no Seu desígnio universal de salvação. Deus escolhe-nos como escolheu Amós, Maria, os Doze Apóstolos, Paulo e tantos outros ao longo da história, porém a Sua escolha e eleição não é uma imposição, mas uma escolha da nossa liberdade, da nossa vida prenhe de possibilidades e decisões.
Deus escolhe a nossa liberdade, retira-nos de uma vida autocentrada e egocêntrica e desafia o nosso comodismo e as nossas seguranças. Convoca-nos para a missão porque livremente O aceitamos seguir, nos deixamos seduzir pelo Seu amor e fizemos a experiência do encontro único, íntimo e decisivo com a Sua misericórdia.
Ele envia-nos dois a dois como enviou os Doze Apóstolos, libertando-nos de uma opção missionária autocentrada. S. Gregório Magno, no seu comentário aos Evangelhos, ensina-nos que os discípulos são enviados dois a dois, porque são dois os mandamentos da caridade e só o amor a Deus e aos irmãos entrelaçados como um único amor numa dupla direção, poderá ser protagonista da nossa missão. Na verdade, estando sozinho, o homem é levado a duvidar até de si próprio. Ao invés, caminhar juntos, percorrer unidos a mesma estrada e levar o mesmo Senhor no coração constitui a primeira e grande pregação. A comunhão e unidade constroem e estruturam a missão. O enviado não é um aventureiro isolado, mas um promotor da comunhão.
As indicações de Jesus para o caminho são precisas e radicais: «ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro; que fossem calçados com sandálias, e não levassem duas túnicas». Nestas palavras de Jesus encontramos a certeza que na missão evangelizadora o mais importante a levar não são os bens materiais ou as nossas seguranças, mas a Palavra de Jesus que antecede, acompanha e aponta a missão. Contudo, que o sentido espiritual deste envio de Jesus não impeça de ver a radicalidade que estas palavras encerram. Jesus envia os discípulos desprovidos não apenas do supérfluo, mas mesmo do essencial que poderia tornar a missão humanamente mais eficiente e produtiva: provisões de comida para o alforge ou dinheiro na bolsa para fazer frente a qualquer necessidade urgente. Jesus situa a missão cristã dentro do radicalismo evangélico que testemunha que a nossa única segurança e providência se encontra em Jesus Cristo.
Amados, escolhidos e enviados como testemunhas do amor e da misericórdia do Pai só podemos proclamar como Paulo: «Bendito seja Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, que do alto dos Céus nos abençoou com toda a espécie de bênçãos espirituais em Cristo». In Voz Portucalense
LEITURA I – Amós 7,12-15
«Foi o Senhor que me tirou da guarda do rebanho e me disse: ‘Vai profetizar ao meu povo de Israel’».
Amós, o “profeta da justiça social”, exerceu o seu ministério profético no reino do Norte (Israel) em meados do séc. VIII a.C. (possivelmente, por volta de 762 a. C.), durante o reinado de Jeroboão II. É uma época de prosperidade económica e de tranquilidade política: as conquistas de Jeroboão II alargaram consideravelmente os limites do reino e permitiram a entrada de tributos dos povos vencidos; o comércio e a indústria (mineira e têxtil) desenvolveram-se significativamente… As construções da burguesia urbana atingiram um luxo e magnificência até então desconhecidos.
A prosperidade e bem-estar das classes favorecidas contrastavam, porém, com a miséria das classes baixas. O sistema de distribuição estava nas mãos de comerciantes sem escrúpulos que, aproveitando o bem-estar económico, especulavam com os preços. Com o aumento dos preços dos bens essenciais, as famílias de menores recursos endividavam-se e acabavam por se ver espoliadas das suas terras em favor dos grandes latifundiários. A classe dirigente, rica e poderosa, dominava os tribunais e subornava os juízes, impedindo que o tribunal fizesse justiça aos mais pobres e defendesse os direitos dos menos poderosos.
Entretanto, a religião florescia num esplendor ritual nunca visto. Magníficas festas, abundantes sacrifícios de animais, um culto esplendoroso, marcavam a vida religiosa dos israelitas… O problema é que esse culto não tinha nada a ver com a vida: no dia a dia, os mesmos que participavam nesses ritos cultuais majestosos praticavam injustiças contra o pobre e cometiam toda a espécie de atropelos ao direito. Ainda mais: os ricos ofereciam a Deus abundantes ofertas, a fim de serenar as suas consciências culpadas e a fim de assegurar a cumplicidade de Deus para os seus negócios escuros… Além disso, a influência da religião cananeia estava a levar os israelitas para o sincretismo religioso: o culto a Jahwéh misturava-se com rituais pagãos provenientes dos cultos a Baal e Astarte. Essa confusão religiosa punha em sérios riscos a pureza da fé jahwista.
É neste contexto que aparece o profeta Amós. Natural de Técua (uma pequena aldeia situada no deserto de Judá), Amós não é profeta profissional; mas, chamado por Deus, deixa a sua terra e parte para o reino vizinho para gritar à classe dirigente a sua denúncia profética. A rudeza do seu discurso, aliada à integridade e afoiteza da sua fé, traz algo do ambiente duro do deserto e contrasta com a indolência e o luxo da sociedade israelita da época.
O episódio que a primeira leitura deste domingo nos propõe leva-nos até ao santuário de Betel, no centro da Palestina. Trata-se de um lugar considerado sagrado, desde tempos imemoriais. De acordo com Gn 35,1-8, Jacob construiu aí um altar e dedicou-o a Jahwéh. Mais tarde, Betel aparece como o local onde se reúne a assembleia de “todo o Israel” para “consultar Deus” (cf. Jz 20,18), para chorar diante de Deus a sua infelicidade (cf. Jz 20,26) e para se encontrar com Deus (cf. Jz 21,2). Tudo isto reflecte a importância cultual do lugar.
Quando o Povo de Deus se dividiu em dois reinos, após a morte de Salomão (932 a.C.), os reis do norte (Israel) potenciaram o culto em Betel, para impedir que os seus súbditos tivessem de deslocar-se a Jerusalém, situado no reino inimigo do sul (Judá). Então, Betel transformou-se numa espécie de “santuário oficial” do regime, onde o culto era financiado, em grande parte, pelo próprio rei. O sacerdote que presidia ao culto era uma espécie de “funcionário real”, encarregado de zelar para que os interesses do rei fossem defendidos, nesse local por onde passava uma parte significativa dos fiéis de Israel. Na época em que Amós exerce o seu ministério profético em Betel, o sacerdote encarregado do santuário era um tal Amasias. Alguns elementos que chegaram até nós parecem indiciar também a existência em Betel de uma imagem de um bezerro, que representava Jahwéh e que era adorado pelos fiéis (cf. Os 10,5)
Betel é um dos lugares onde ecoa a denúncia profética de Amós. Provavelmente, Amós criticou as injustiças cometidas pelo rei e pela classe dirigente; e, certamente, denunciou, nesse lugar, um culto que era aliado da injustiça e que procurava comprometer Deus com os esquemas corruptos dos poderosos.In Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 84 (85)
Refrão: Mostrai-nos, Senhor, o vosso amor e dai-nos a vossa salvação.
LEITURA II – Ef 1,3-14
«O Espírito Santo prometido é o penhor da nossa herança, para a redenção do povo que Deus adquiriu para louvor da sua glória».
A cidade de Éfeso, capital da Província romana da Ásia, estava situada na costa ocidental da Ásia Menor. O seu importante porto e a sua numerosa população faziam dela uma cidade florescente. Paulo passou em Éfeso na sua segunda viagem missionária (cf. Act 18,19-21) e, durante a sua terceira viagem missionária, fez de Éfeso o quartel-general, a partir do qual evangelizou toda a zona ocidental da Ásia Menor.
A nossa Carta aos Efésios é, provavelmente, um dos exemplares de uma “carta circular” enviada a várias igrejas da Ásia Menor, numa altura em que Paulo está na prisão (em Cesareia? Em Roma?). O seu portador é um tal Tíquico.
Alguns veem nesta carta uma espécie de síntese da teologia paulina, numa altura em que a missão do apóstolo está praticamente terminada no oriente. O tema mais importante da carta aos Efésios é aquilo que o autor chama “o mistério”: trata-se do projeto salvador de Deus, definido e elaborado desde sempre, escondido durante séculos, revelado e concretizado plenamente em Jesus, comunicado aos apóstolos e, nos “últimos tempos”, tornado presente no mundo pela Igreja.
O texto que nos é hoje proposto aparece no início da carta. É um hino litúrgico que deve ter circulado nas comunidades cristãs antes de ser enxertado aqui por Paulo. Este hino dá graças pela ação do Pai (cf. Ef 1,3-6), do Filho (cf. Ef 1,7-12) e do Espírito Santo (cf. Ef 1,13-14), no sentido de oferecer aos homens a salvação. In Dehonianos
EVANGELHO – Mc 6,7-13
«Jesus chamou os doze Apóstolos e começou a enviá-los dois a dois».
«Ordenou-lhes que nada levassem para o caminho, a não ser o bastão: nem pão, nem alforge, nem dinheiro».
«Os Apóstolos partiram e pregaram o arrependimento, expulsaram muitos demónios, ungiram com óleo muitos doentes e curaram-nos».
Toda a primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30) está montada à volta da ideia de que Jesus é o Messias que proclama o Reino de Deus. Como ponto de partida está um sumário-anúncio inicial (cf. Mc 1,14-15) onde se proclama a chegada do Reino; em seguida, Jesus apresenta a proposta do Reino a um grupo de discípulos, que escutam o apelo e aceitam embarcar na aventura do Reino de Deus (cf. Mc 1,16-20); depois, Marcos descreve como Jesus, com palavras e com gestos concretos, vai propondo essa nova realidade que é o Reino e vai intercalando as propostas de Jesus com as respostas positivas ou negativas dos fariseus, do povo e dos próprios discípulos (cf. Mc 1, 21-8,30)
À medida que o “caminho do Reino” avança, os discípulos vão aparecendo cada vez mais ligados a Jesus e cada vez mais implicados no projecto do Reino. Chamados por Jesus, eles responderam positivamente a esse chamamento e seguiram-n’O; depois, durante a caminhada que fizeram com Jesus, eles escutaram os ensinamentos de Jesus e testemunharam os seus gestos e sinais. Formados por Jesus na “escola do Reino”, os discípulos podem agora ser enviados ao mundo, a fim de anunciar a todos os homens a chegada desse mundo novo que Jesus chamava o “Reino de Deus”. In Dehonianos
Para os leitores:
Na primeira leitura ter em atenção as palavras de mais difícil pronunciação e menos usuais: Amasias (deve ler-se: Amazias); Betel (deve ler-se: Betél) e Sicómoros (deve acentuar-se apenas a sílaba tónica: có).
A segunda leitura é um hino litúrgico das primeiras comunidades cristãs de louvor e ação de graças. A sua proclamação deve ser feita com a solenidade de um hino, mas também com atenção às pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra
EXCESSO DE MEIOS, MÍNGUA DE FINS
O Evangelho deste Domingo XV do Tempo Comum, que narra o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13), situa-se estrategicamente entre a rejeição de Jesus na sua pátria (Marcos 6,1-6) e o martírio de João Batista (Marcos 6,14-29). O contexto é, pois, claro, intenso e dramático acerca do destino dos missionários: entre a rejeição e martírio. Mas este destino sai ainda acentuado se tivermos em conta que o martírio do João Batista (Marcos 6,14-29) está colocado entre o envio em missão dos «Doze» (Marcos 6,7-13) e o seu regresso (Marcos 6,30). Dado o contexto, não é possível evitar o entrelaçamento de destinos de Jesus, João Batista e os missionários. Em todos os casos, a rejeição e o martírio derivam do facto de as pessoas (nós) não acreditarem que a missão (claríssimo no caso de Jesus) provém de Deus!
Mas este envio em missão dos «Doze» também não pode deixar de ser visto no seguimento de Marcos 3,13-15, em que do cimo da montanha Jesus chama os que quer (fórmula de eleição), deles faz «Doze» (belíssima fórmula de criação), para estarem com Ele (fórmula de aliança e de assistência), e, finalmente, para Ele os enviar (fórmula de missão). Bem se vê que o texto deste Domingo torna operativo este último aspeto, sem anular, diminuir ou diluir aquele fortíssimo «estar com Ele». Na verdade, quando regressarem da missão, todos se reúnem à volta de Jesus (Marcos 6,30), que é assim apresentado como o marco e a referência fundamental da vida deles e da nossa.
Quer através dos verbos narrativos, quer dos elocutivos, fica claro que a iniciativa da missão dos «Doze» é de Jesus, que é o verdadeiro Senhor da missão: é Ele que chama para a missão, que envia em missão, que dá autoridade para o serviço da missão (Marcos 6,7-8), que define a leveza do equipamento (Marcos 6,8-10) e o comportamento a assumir no serviço da missão (Marcos 6,10-11). Note-se bem aquelas levíssimas recomendações negativas: nada para o caminho, nem pão, nem alforge, nem dinheiro (Marcos 6,8). É fácil de ver que estas disposições tornam os «Doze» mais pobres do que os destinatários a quem são enviados.
Este despojamento, ou empobrecimento, ou leveza, está na base da credibilidade da mensagem que devem transmitir. O narrador anota no final que os «Doze» cumpriram as diretivas de Jesus (Marcos 6,12-13). Bela maneira de testemunhar que o dizer de Jesus tem, sobre os missionários, carácter performativo: na verdade, não tendo nada de próprio para oferecer, limitam-se a desempenhar o encargo recebido e a transmitir a mensagem a eles confiada. O uso do verbo «anunciar» (kêrýssô), que significa transmitir, não a própria opinião, mas ser simplesmente arautos ou mensageiros transparentes do seu Senhor, define os «Doze» como completamente dependentes de Jesus. E a exiguidade do equipamento é para realçar a absoluta importância da mensagem, e que não se podem ocupar de nenhum outro negócio.
A lição do profeta Amós (7,12-15), que hoje temos também a graça de escutar, ilustra bem o Evangelho de hoje. Amós era provavelmente um importante criador de gado e agricultor bem-sucedido ao serviço do grande rei Ozias (787-736), de Judá, grande amante da terra e que em muito desenvolveu a agricultura, como se pode ver na descrição do Cronista (2 Crónicas 26,10). Amós seria, como diz a maioria dos estudiosos de hoje, um alto funcionário agrícola de Ozias. Mas quando Deus «pegou» nele, também Amós se despiu da riqueza da sua vida regalada e bem-sucedida, e foi para o Reino de Israel, do Sul para o Norte, equipado apenas com a mensagem que Deus o incumbiu de anunciar. Amós tinha, portanto, a sua profissão de agricultor e criador de gado, que lhe assegurava uma vida tranquila. Mas foi-lhe por Deus dada uma vocação e confiada uma missão. Nesse dia, acaba o profissional, o funcionário, e nasce o profeta. «Profeta» não é uma profissão, uma função ou uma herança. Não passa de pai para filho. É uma vocação e uma missão. E é a Palavra de Deus que, irrompendo sobre alguém, marca um final e um começo novo, constituindo-o profeta: «Não era profeta eu, nem filho de profeta eu, mas o Senhor…» (Amós 7,14-15).
Também São Paulo é modelo insigne de quem se sabe amado e escolhido por Deus desde a eternidade, desde antes de antes (Efésios 1,3-14). Por isso, não resmunga, mas exulta e exalta o único verdadeiro Senhor da sua vida, de quem dá a conhecer os desígnios da sua vontade, para que também nós o possamos servir e amar de coração inteiro.
João Batista, Jesus, os «Doze», Amós, Paulo, os missionários. São todos figuras em contracorrente de uma sociedade rica, insensível, anestesiada, dormente e indiferente. Porque sabe que é rica, é que se sente agora em crise! Estranha crise. Os textos de hoje ensinam-nos que a boa e verdadeira crise é desencadeada em nós pela Palavra de Deus. Só, de facto, Deus, Primeiro e Último, pode pôr em crise o segundo e penúltimo. Infelizmente, a crise que por aí anda parte do penúltimo e quer pôr em crise o Último. Edmund Pellegrino, médico e filósofo da medicina, recentemente falecido (2013), já nos advertiu seriamente que, no campo da medicina, há excesso de meios e míngua de fins. Mas podemos, sem medo de errar, alargar a análise de Edmund Pellegrino a todas as áreas da nossa sociedade de hoje, e dizer que vivemos na «noite do mundo», mergulhados numa cultura de excesso de meios e míngua de fins!
Escutemos, por isso, mais um pequeno extrato da Palavra pertinente do Profeta de hoje: «Eis que virão dias, oráculo do Senhor, em que enviarei a fome à terra; não fome de pão nem sede de água, mas de ouvir a Palavra do Senhor. Cambalearão de um mar a outro mar, andarão errantes do norte até ao nascente, à procura da Palavra do Senhor, mas não a encontrarão» (Amós 8,11-12).
O Salmo 85 é um canto de júbilo pela restauração pós-exílica operada por Deus em favor do seu Povo maravilhado e agradecido. Com Deus, que vem viver e caminhar connosco, vem a paz, a justiça, a verdade, a fidelidade, a salvação, o bem. A nossa terra exulta. O nosso coração exulta. Mas também hoje podemos cantar esta ação maravilhosa de Deus, que sabe sempre renovar a nossa vida e a nossa história, mesmo quando, em pleno exílio, pouco vemos. O grande filósofo e místico hebreu, Abraham Joshua Heschel (1907-1972), já nos lembrava, há uns anos atrás, que «estamos a perder a capacidade de cantar». E o famoso poeta inglês John Milton (1608-1674) lerá assim os versos 9-14 do nosso Salmo 85 numa Ode natalícia, datada de 1629: «Sim, Fidelidade e Justiça, então, / voltarão para junto dos homens, / envoltas num arco-íris, e, gloriosamente vestida,/ a Bondade sentar-se-á no meio…/ E o céu, como para uma festa,/ escancarará as portas do seu palácio excelso». Em consonância com Isaías, que grita: «Destilai, céus, lá do alto, e que as nuvens façam chover a justiça, que se abra a terra e germine a salvação, e ao mesmo tempo faça brotar a justiça». E a assinatura: «Eu, o Senhor, criei isto!» (Isaías 45,8).
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Se há marca que perpassa todo o Evangelho ao longo dos séculos é a da estupefação. O evangelho que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe é exemplo acabado disso. Os habitantes de Nazaré estão admirados com tudo o que sai da boca de Jesus e com a novidade que brota do Seu ensinamento. Jesus espanta-se com a falta de fé daquela gente. E nós, dois mil anos depois, estamos estupefactos com a resistência de coração dos patrícios de Jesus e com a atitude do «carpinteiro, Filho de Maria» que devido à fala de fé daquela gente opera apenas algumas curas e segue o Seu caminho.
O entusiasmo desvanece facilmente e, no itinerário crente, desafia à fidelidade que se constrói pela perseverança e pela capacidade de se deixar surpreender pelo devir dos dias e pela banalidade do nosso quotidiano. Os habitantes de Nazaré ao ouvirem Jesus não conseguem esconder o espanto pelas palavras que Ele dirige e, ao verem os Seus milagres, não conseguem ficar indiferentes aos prodígios por Ele realizados. Contudo, depressa passam do assombro ao menosprezo: «De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos? Não é Ele o carpinteiro, filho de Maria, e irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão? E não estão as suas irmãs aqui entre nós?».
Jesus abre o Seu coração e manifesta o seu descontentamento: «Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa». Todo o desprezo e rejeição são difíceis gerir, porém, o desprezo daqueles que nós conhecemos, que viveram e conviveram connosco e que nos viram crescer, torna-se assim mais difícil de gerir.
Mas Jesus é mesmo o «carpinteiro, filho de Maria», o «irmão de Tiago, de José, de Judas e de Simão» e «as suas irmãs estão aqui entre nós». Como é que algo de tão maravilhoso e espantoso pode acontecer na vida de quem conhecemos tão bem, de quem vimos crescer, até ajudamos a andar e pegamos Nele ao colo? É o espanto do mistério da incarnação! Deus faz-se homem, assume a nossa frágil humanidade e percorre os caminhos da nossa história. Em Jesus Cristo, Deus diz-se em linguagem humana e revela-se com mãos de carpinteiro, com sede e com fome, cansado e sofredor. Mas como é belo e consolador contemplar um Deus que toma a iniciativa de se dar a conhecer assumindo as alegrias e esperanças, os dramas e sofrimentos de cada homem e de cada mulher.
É fácil ficar admirado e espantado com um Deus que põe os cegos a ver, os coxos a andar, que ressuscita os mortos, que manda calar os ventos e as tempestades… Contudo, o nosso caminho de fé, ainda que possa ter início com um evento marcante e surpreendente, alimenta-se, cresce e fortalece-se no encontro com Jesus Cristo no quotidiano da nossa existência.
Amar e reconhecer a divindade de Jesus Cristo exige entrar no mistério da Sua humanidade. Mais, implica reconhecer que a nossa humanidade não é um obstáculo à graça de Deus e ao Seu amor, mas o lugar concreto onde ela se revela e manifesta. Aqui está presente, muitas vezes, o conflito entre quotidiano e profecia. Que o profeta seja um homem extraordinário e carismático, já o esperávamos. Mas que o profeta tenha um passado que conhecemos bem, que essa profecia esteja plasmada de quotidiano e tenha habitado uma oficina de carpinteiro, isso já parece mais difícil.
Creio que este é um dos maiores desafios para a nossa vida de fé: acolher a presença de Deus na banalidade dos dias e no quotidiano da nossa existência e ser capaz de fazer da nossa vida toda e de toda a nossa vida o lugar onde Deus se faz presente, vivo e atuante na história. In Voz Portucalense
LEITURA I – Ez 2,2-5
«Filho do homem, Eu te envio aos filhos de Israel, a um povo rebelde que se revoltou contra Mim».
Ezequiel, o “profeta da esperança”, exerceu o seu ministério na Babilónia no meio dos exilados judeus. O profeta fez parte dessa primeira leva de exilados que, em 597 a.C., Nabucodonosor deportou para a Babilónia.
A primeira fase do ministério de Ezequiel decorreu entre 593 a.C. (data do seu chamamento à vocação profética) e 586 a.C. (data em que Jerusalém foi conquistada uma segunda vez pelos exércitos de Nabucodonosor e uma nova leva de exilados foi encaminhada para a Babilónia). Nesta fase, o profeta preocupou-se em destruir as falsas esperanças dos exilados (convencidos de que o exílio terminaria em breve e que iam poder regressar rapidamente à sua terra) e em denunciar a multiplicação das infidelidades a Jahwéh por parte desses membros do Povo judeu que escaparam ao primeiro exílio e que ficaram em Jerusalém.
A segunda fase do ministério de Ezequiel desenrolou-se a partir de 586 a.C. e prolongou-se até cerca de 570 a.C. Instalados numa terra estrangeira, privados de Templo, de sacerdócio e de culto, os exilados estavam desiludidos e duvidavam de Jahwéh e do compromisso que Deus tinha assumido com o seu Povo. Nessa fase, Ezequiel procurou alimentar a esperança dos exilados e transmitir ao Povo a certeza de que o Deus salvador e libertador não tinha abandonado nem esquecido o seu Povo.
O texto que nos é proposto hoje como primeira leitura faz parte do relato da vocação de Ezequiel (cf. Ez 1,1-3,27). Depois de descrever a manifestação de Deus, num quadro que apresenta todas as características especiais das teofanias (cf. Ez 1,1-28), o profeta apresenta um discurso no qual Jahwéh define a missão que lhe vai confiar (cf. Ez 2,1-3,15). O episódio é situado “no quinto ano do cativeiro do rei Joaquín”, “na Caldeia, nas margens do rio Cabar” (Ez 1,2).
Seria um erro interpretar este relato como informação biográfica… Trata-se, antes, de mostrar – com a linguagem da época e utilizando os processos típicos da literatura da época – que o profeta recebeu uma missão de Deus e que fala e actua em nome de Deus. In Dehonianos
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 122 (123)
Os nossos olhos estão postos no Senhor, até que Se compadeça de nós.
LEITURA II – 2 Cor 12,7-10
«Basta-te a minha graça, porque é na fraqueza que se manifesta todo o meu poder».
A Segunda Carta de Paulo aos Coríntios espelha uma época de relações conturbadas entre Paulo e os cristãos de Corinto. As críticas de Paulo a alguns membros da comunidade que levavam uma vida pouco consentânea com os valores cristãos (Primeira Carta aos Coríntios) provocaram uma reacção extremada e uma campanha organizada no sentido de desacreditar Paulo. Essa campanha foi instigada por certos missionários itinerantes procedentes das comunidades cristãs da Palestina, que se consideravam representantes dos Doze e que minimizavam o trabalho apostólico de Paulo. Entre outras coisas, esses missionários afirmavam que Paulo era inferior aos outros apóstolos, por não ter convivido com Jesus e que a catequese apresentada por Paulo não estava em consonância com a doutrina da Igreja. Paulo, informado de tudo, dirigiu-se apressadamente para Corinto e teve um violento confronto com os seus detractores. Depois, bastante magoado, retirou-se para Éfeso. Tito, amigo de Paulo, fino negociador e hábil diplomata, partiu para Corinto, a fim de tentar a reconciliação.
Paulo, entretanto, deixou Éfeso e foi para Tróade. Foi aí que reencontrou Tito, regressado de Corinto. As notícias trazidas por Tito eram animadoras: o diferendo fora ultrapassado e os coríntios estavam, outra vez, em comunhão com Paulo.
Reconfortado, Paulo escreveu uma tranquila apologia do seu apostolado, à qual juntou um apelo em favor de uma colecta para os pobres da Igreja de Jerusalém. Esse texto é a nossa Segunda Carta de Paulo aos Coríntios. Estamos no ano 56 ou 57.
O texto que nos é proposto integra a terceira parte da carta (cf. 2 Cor 10,1-13,10). Aí Paulo, num estilo apaixonado, às vezes cáustico, mas sempre levado pela exigência da verdade e da fé, defende a autenticidade do seu ministério frente a esses “super-apóstolos” que o acusavam.
Como apóstolo, Paulo não se sente inferior a ninguém e muito menos aos seus detractores. Estes orgulhavam-se das suas credenciais e afirmavam por toda a parte os seus dons carismáticos… Paulo, se quisesse entrar no mesmo jogo, podia orgulhar-se de muitas coisas, nomeadamente das revelações que recebeu e das suas experiências místicas (cf. 2 Cor 12,1-4); mas ele quer apenas que o vejam como um homem frágil e vulnerável, a quem Deus chamou e a quem enviou para dar testemunho de Jesus Cristo no meio dos homens. In Dehonianos
EVANGELHO – Mc 6,1-6
«De onde Lhe vem tudo isto? Que sabedoria é esta que Lhe foi dada e os prodigiosos milagres feitos por suas mãos?».
«Um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa».
«Estava admirado com a falta de fé daquela gente».
O Evangelho de hoje fala-nos de uma visita à “terra” de Jesus. De acordo com Mc 1,9, a “terra” de Jesus era Nazaré, uma pequena vila da Galileia situada a 22 Km a oeste do Lago de Tiberíades. Esta povoação tipicamente agrícola nunca teve grande importância no universo na história do judaísmo… O Antigo Testamento ignora-a completamente; Flávio Josefo e os escritores rabínicos também não lhe fazem qualquer referência. Os contemporâneos de Jesus parecem conceder-lhe escassa consideração (cf. Jo 1,46). Nazaré é, no entanto, a cidade onde Jesus cresceu e onde reside a sua família.
A cena principal que nos é relatada por Marcos passa-se na sinagoga de Nazaré, num sábado. Jesus, como qualquer outro membro da comunidade judaica, foi à sinagoga para participar no ofício sinagogal; e, fazendo uso do direito que todo o israelita adulto tinha, leu e comentou as Escrituras.
O episódio que nos é proposto integra a primeira parte do Evangelho segundo Marcos (cf. Mc 1,14-8,30). Aí, Jesus é apresentado como o Messias que proclama, por toda a Galileia, o Reino de Deus. Na secção que vai de 3,7 a 6,6, contudo, Marcos refere-se especialmente à reação do Povo face à proclamação de Jesus… À medida que o “caminho do Reino” vai avançando, vão-se multiplicando as oposições e incompreensões face ao projeto que Jesus anuncia. O nosso texto deve ser entendido neste ambiente. In Dehonianos
Para os leitores:
Na primeira leitura, é necessário ter em atenção que grande parte da leitura se encontra em discurso direto. Apesar de não ter nenhuma dificuldade aparente, nem palavras de difícil pronunciação, os leitores devem estar atentos à pontuação e às pausas para uma leitura articulada do texto.
Na segunda leitura, deve começar-se por ter cuidado com a palavra «ensoberbeça», por ser uma palavra menos usual e de difícil pronunciação. Além disso, a proclamação da segunda parte do texto deve ser marcada pela dicotomia presente no texto entre a fraqueza da natureza humana e a força que brota do poder de Cristo.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra
DE ONDE ÉS TU?
O Evangelho deste Domingo XIV do Tempo Comum (Marcos 6,1-6) enlaça no do Domingo passado (XIII), pondo Jesus a sair de lá (ekeîthen) (Marcos 6,1), isto é, de Cafarnaum, da casa de Jairo (Marcos 5,35-43), e a dirigir-se para a sua pátria (pátris) (Marcos 6,1), ao encontro dos seus familiares e conterrâneos, sendo o sábado e a sinagoga (Marcos 6,2) o natural lugar desse encontro. Esta primeira ida de Jesus à sua pátria fica a marcar também, no Evangelho de Marcos, a última vez que Jesus ensina numa sinagoga (Marcos 1,21.23.29.30; 3,1; 6,2), e também o sábado será mencionado apenas mais uma vez, precisamente na manhã de Páscoa (Marcos 16,1).
E, portanto, tudo neste texto, neste encontro, assume um carácter decisivo. Desde logo a escolha do termo «pátria», que carrega consigo um significado mais intenso e mais amplo do que o mais habitual de «povoação». Com esta forma de dizer, este decisivo encontro com Jesus não fica apenas circunscrito a uma pequena região da Galileia, mas prefigura já o encontro de Jesus com o inteiro Israel, e a rejeição que lhe será movida por este. São mesmo já visíveis desde aqui as resistências ao Evangelho radicadas no nosso coração, e que o Quarto Evangelho porá a claro: «Veio para o que era seu, e os seus não o receberam» (João 1,11). Mas também esta última vez a ensinar na sinagoga, e este sábado que aponta para aquele último «passado o sábado» (Marcos 16,1), devem gravar em nós evocações e apelos decisivos. Tudo o que tem sabor a último carrega um particular peso específico.
Aventurando-nos um pouco mais dentro do texto, não ficaremos certamente admirados por vermos que estes conterrâneos de Jesus estejam a par das suas humildes e bem conhecidas raízes geográficas e familiares que, na mentalidade antiga, determinam a identidade e a capacidade da pessoa. Notaremos ainda, sem grande espanto, que os conterrâneos de Jesus sabem, em termos anagráficos, muito mais do que o leitor, sobre Jesus: dele sabem indicar a família, a profissão, a residência. O que nos deve espantar, isso sim, é que aqueles conterrâneos de Jesus não saibam dizer «DE ONDE» (póthen) lhe vem aquela sabedoria única e os prodígios que realiza.
Às vezes, por termos os olhos tão embrenhados na terra, nas coisas da terra, não conseguimos ver o céu! Veja-se a iluminante cena da cura do cego de nascença (João 9). Em diálogo com o cego curado, os fariseus acabam por afirmar acerca de Jesus: «Esse não sabemos DE ONDE (póthen) é» (João 9,29), ao que o cego curado responde, apontando a cegueira deles: «Isso é “espantoso” (tò thaumastón): vós não sabeis DE ONDE (póthen) Ele é; e, no entanto, Ele abriu-me os olhos!» (João 9,30). Que é como quem diz: só não vê quem não quer! Tal como o cego, e fazendo uso da mesma linguagem, também Jesus “estava espantado” (ethaúmazen) com a falta de fé dos seus conterrâneos (Marcos 6,6). Note-se bem que a falta de fé aqui assinalada não é apenas a negação de Deus. É a rejeição de Jesus em nome de uma errada conceção de Deus. Podemos dizer mesmo: para salvar a honra de Deus. Veja-se bem até onde pode chegar a nossa cegueira!
Numa altura em que se continua a falar da «receção» do Concílio II do Vaticano, dado que ainda estamos na esteira da celebração dos 50 anos da sua realização (1962-1965), podemos falar também, com as devidas distâncias, da «receção» de Jesus e do seu Evangelho. O texto diz-nos que os seus conterrâneos não o receberam, não se deixaram atravessar por Ele, pelo Céu que Ele indicava e trazia consigo. Ponte para o próximo Domingo (XV), em que ouviremos o episódio que se segue imediatamente ao de hoje (Marcos 6,7-13). Aí, Jesus enviará os seus Doze Apóstolos, dois a dois, despojados de meios ou de equipamento, para ressaltar bem a importância do Anúncio do Evangelho. Mas a ponte entre os dois textos e respectivos Domingos está em que ouviremos Jesus dizer aos seus Apóstolos: «Qualquer lugar (tópos) que não vos “receba” (déxetai)…». Os livros dizem que, em Marcos, o verbo «receber» (déchomai) está sempre referido a Jesus. Trata-se de «receber», de «acolher» Jesus. É então também fácil ver qual é o «lugar» que não «recebeu» Jesus. Mas o problema é sempre este: e nós?
A figura de Ezequiel, profeta frágil, mas que aponta para um «Deus que dá força» (etimologia do seu nome), por 93 vezes interpelado por Deus com a locução «Filho do Homem», é por Deus incumbido da missão difícil de ser sentinela (tsopeh) (Ezequiel 3,17; 33,7) da casa rebelde de Israel, junto do rio Cobar, em Tel ’Abîb (Ezequiel 1,1-3; 3,15), na Babilónia, uma espécie de «pároco dos exilados». Tel ’Abîb significa «colina da primavera» ou das «espigas». É um lugar duro de exílio, mas, porque lembra a primavera, é também um nome carregado de esperança. Os judeus deram este nome significativo a uma das primeiras colónias que fundaram na Palestina, junto da costa Mediterrânica, em finais do século XIX, onde se situa hoje a capital política de Israel. O rio Cobar é um canal de irrigação, hoje chamado Shatt Ennil, que parte do Eufrates para irrigar a cidade de Nippur, onde os Babilónios instalaram deportados oriundos de diferentes proveniências, entre os quais se contam os deportados de Judá. Na sua fragilidade e na rejeição que experimenta, o profeta Ezequiel ajuda a perceber e a «receber» melhor a figura de Jesus, o Deus feito homem, que a si mesmo se diz nos Evangelhos, por 82 vezes, «Filho do Homem».
E São Paulo dá testemunho, na Segunda Carta aos Coríntios (12,7-10) da força nova de Cristo, que o habita: «Basta-te a minha graça, pois é na fraqueza que se manifesta a minha força» (2 Coríntios 12,9). E ainda: «Quando sou fraco, então é que sou forte» (2 Coríntios 12,10).
O Salmo 123 mostra-nos a força do olhar através de uma série de olhares que se entrecruzam: os meus olhos, os olhos dos servos, os olhos da escrava, os nossos olhos. Os meus olhos e os nossos olhos estão postos em Deus; os dos servos nas mãos dos seus patrões; os da escrava nas mãos da sua patroa. Há, todavia, uma diferença entre as mãos de Deus e as dos patrões. As mãos dos patrões dão ordens. As mãos de Deus abençoam, dão, salvam, embalam com ternura, fazem graça. Portanto, o homem que reza neste Salmo não junta as mãos, mas abre-as para as de Deus, formando uma espécie de puzzle, para receber os dons de Deus; também não fecha os olhos, mas escancara-os para o céu; e tão-pouco se fecha no seu mundo interior, mas abre-se completamente para fora. O orante deste Salmo reza com as mãos e os olhos abertos, com a alma aberta.
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Como é belo ver Jesus percorrer os caminhos do tempo e da história para que a vida de Deus se cruze com a vida da humanidade! Jesus é o Verbo Eterno que se faz carne e habita no meio de nós. É o Deus eterno que assume a fragilidade e a contingência da nossa natureza. Como nos escreve S. Paulo «Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa, para vos enriquecer pela sua pobreza». Não somos os mais fortes, mas somos filhos do Deus da força e somos enriquecidos pela poderosa força da mansidão e humildade revelados na carne de Jesus, o Messias chamado Cristo.
Jesus atravessa de barco para a outra margem, encontra-se com a multidão, detém-se à beira-mar e percorre com Jairo o caminho até sua casa, tocando e deixando-se tocar por aqueles que se cruzam com Ele no caminho. Deus visita-nos e coloca-se a caminho connosco.
«A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva». É este o surpreendente e desconcertante pedido de Jairo, um notável chefe de uma sinagoga, que se coloca de joelhos diante de Jesus, procurando uma última esperança para a sua filha que está em perigo. Jesus não perde tempo a aferir sobre a gravidade da situação, a questionar a idoneidade daquele homem e da sua família ou da pertinência e disponibilidade para ir a sua casa. Jesus coloca-se a caminho com Ele e acompanha-o uma imensa multidão.
Jesus não é indiferente às nossas dores e angústias, mas também não se limita a meras palavras de circunstância ou discursos mais ou menos compadecidos das mazelas e sofrimentos alheios. Jesus continua a Sua missão de descer ao encontro da humanidade, descendo ao concreto das nossas vidas cheias de bem, bondade e beleza, mas também sujeitas à dor e sofrimento. A prontidão de Jesus para acompanhar Jairo é para nós um desafio a vivermos de olhos e coração abertos sobre o mundo como sentinelas vigilantes e peregrinos da bondade e da ternura.
O ritmo acelerado dos dias e a panóplia de trabalhos e ocupações que nos absorvem não podem ser desculpa para uma vida indiferente ao mundo e aos outros. Só a revelação da ternura poderá inaugurar um tempo novo na história e tornar as nossas vidas um lugar mais belo e o mundo num lugar melhor e mais feliz.
No frenesim da nossa vida quotidiana, cruzamo-nos com uma multidão de pessoas, que tantas vezes não passa de uma massa indistinta que ocupa os lugares do comboio e do metro e me fazem ir de pé ou uma amálgama de viaturas que ocupam as vias de trânsito e que me atrasam ou até de um conjunto de anónimos que trabalham no mesmo espaço laboral que eu ocupo. Não é assim para Jesus! A multidão não é uma massa anónima: «Vês a multidão que Te aperta e perguntas: ‘Quem Me tocou?’». Para Jesus cada um de nós é único e irrepetível e, por isso, sujeito de uma atenção única e pessoal. Como seriam diferentes os nossos dias e como os desencontros quotidianos se poderiam tornar verdadeiros lugares de encontro se fossemos capazes de fazer de cada pessoa um irmão único e irrepetível que sou chamado a acolher, a amar e a cuidar.
Aquela mulher que sofre de uma perda de sangue há doze anos alimenta a esperança que tocando ao menos nas Suas vestes poderá ficar curada. Porventura, esta mulher desconhece que tocar é sempre um gesto recíproco e que tocar em alguém ou algo implica também ser tocado por aquilo que toco. Tocando Jesus, aquela mulher é tocada pelo Seu amor que salva, cura e oferece sentido para a vida.
Num tempo onde o toque e a proximidade física nos estão vedados para que possamos manter a segurança de todos, somos convidados a ser promotores de uma cultura do cuidado que sonha criativamente o modo de habitar este tempo e rasga horizontes de esperança que permitam que através da nossa carne, Jesus Cristo continue a percorrer os trilhos da história. In Voz Portucalense
LEITURA I – Sab 1,13-15;2, 23-24
«Deus criou o homem para ser incorruptível e fê-lo à imagem da sua própria natureza».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 29 (30)
Refrão: Eu Vos louvarei, Senhor, porque me salvastes.
LEITURA II – 2 Cor 8,7.9.13-15
«Ele, que era rico, fez-Se pobre por vossa causa, para vos enriquecer pela sua pobreza».
EVANGELHO – Mc 5,21-43
«A minha filha está a morrer. Vem impor-lhe as mãos, para que se salve e viva».
«Jesus foi com ele, seguido por grande multidão, que O apertava de todos os lados».
«Porquê todo este alarido e tantas lamentações? A menina não morreu; está a dormir».
Para os leitores:
A aparente facilidade na proclamação das leituras não deve levar os leitores a descurar a sua preparação. Sobretudo, na segunda leitura, é necessário um especial cuidado nas pausas e respirações, sobretudo nas frases mais longas. Uma ajuda na preparação do texto será prestar mais atenção à pontuação do que às quebras de linha que o texto apresenta.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra
QUANDO JESUS ENTRA NA NOSSA VIDA
O Evangelho deste Domingo XIII do Tempo Comum (Marcos 5,21-43) oferece-nos dois milagres de Jesus, relatados de forma entrelaçada, um dentro do outro: o relato da cura de uma mulher que há doze anos sofria de uma hemorragia (Marcos 5,25-34), dentro do relato da chamada «ressurreição» da filha, de doze anos de idade, de Jairo, um dos chefes da sinagoga (Marcos 5,22-24.35-43).
Aí está Jesus outra vez (pálin), e pela última vez, junto do mar e no meio da multidão, retomando e culminando as situações já anotadas em Marcos 3,7-10 e 4,1. Na multidão anónima, além de Jesus, em quem estão postos todos os olhares, também o do leitor, emerge agora também um dos chefes da sinagoga, de nome Jairo, que rasga a multidão e vem religiosamente prostrar-se aos pés de Jesus e implorar-lhe muito (pollá) que vá impor as mãos à sua filhinha (tygátrion: diminuitivo de tygátêr), que está a morrer. E o narrador diz-nos que Jesus foi com ele (met’ autoû), sempre rodeado pela multidão.
Primeira grande verificação: Jesus é aquele que vai sempre connosco. Sobretudo com os que sofrem. Acompanhando-nos, partilha o nosso caminho e as nossas dores. Vai, portanto, Jesus com Jairo e a multidão que os cerca, a caminho da casa de Jairo, quando o narrador nos surpreende e fixa a objetiva nos movimentos e pensamentos de uma mulher anónima que sofria de uma hemorragia havia doze anos, situação física, social e religiosamente dolorosa, que a tornava impura e distante de Deus e das pessoas. Ei-la que, com toda a ousadia e fé e confiança, consegue chegar junto de Jesus e tocar-lhe por detrás, na fímbria do manto, de modo a que nem Jesus se apercebesse. Fá-lo e fica curada.
A história do contacto desta mulher anónima com Jesus podia terminar aqui. A mulher conseguiu os seus objetivos. Aparentemente, ninguém notou nada. É Jesus quem faz a história avançar, trazendo esta mulher do escuro para a luz. Não quer que a situação desta mulher dolorosa fique apenas no domínio físico e, por assim dizer, impessoal. Olha à sua volta e pergunta: «Quem me tocou as vestes?» (Marcos 5,30). E indo além do descuidado, superficial e insensível dizer dos seus discípulos, que se limitam à mais óbvia das reações: «Então tu vês a multidão que te aperta e dizes: “Quem me tocou?”» (Marcos 5,31). Mas Jesus, senhor de toda a situação, «olhava à volta para ver aquela (tên) que lhe tinha tocado» (Marcos 5,32). É assim que a mulher sai do seu esconderijo, e confessa a Jesus toda a verdade (Marcos 5,33). E ouve de Jesus uma palavra única, única vez dita no Evangelho no feminino!, carregada de imensa ternura, proximidade e familiaridade: «Minha filha (tygátêr), a tua fé te salvou!» (Marcos 5,34). Quanto caminho andado! Quanto amor condensado! Esta pobre mulher sofredora e humilhada é agraciada por Jesus e passa a fazer parte da sua família: «Minha filha!».
Mas estava uma menina de doze anos, moribunda, à espera da morte… ou de Jesus. O seu pai, Jairo, luta pela vida da sua filhinha, e veio buscar Jesus para ir a sua casa impor as suas mãos de bênção, portanto, de bem e de cura, sobre a sua filhinha. Todavia, enquanto caminham, chegam os seus criados, que trazem a triste notícia de que a morte chegou a casa da menina antes de Jesus. Aquele pai fica certamente destroçado, como o estavam também os demais familiares e os vizinhos, que, em tais circunstâncias, apenas sabiam chorar e entoar lamentações, como era habitual fazer entre os judeus. E Jesus, que até aqui se tinha limitado a acompanhar Jairo, sem nada dizer, diz agora para Jairo a primeira palavra audível: «Não tenhas medo; tem apenas fé!» (Marcos 5,36).
Jesus nunca chega atrasado. Ele é o Senhor que pelo caminho se demora connosco. À chegada à casa de Jairo, vê prantos e lamentações. Os orientais são excessivos na expressão dos seus sentimentos, quer de alegria, quer de dor. Contra aqueles gritos desarticulados, uma vez mais Jesus diz uma palavra carregada de sentido: «A menina não morreu, mas dorme» (Marcos 5,39). Esta maneira de falar da morte como de um sono é linguagem habitual na Igreja primitiva (1 Tessalonicenses 4,13-15; 1 Coríntios 11,30; 15,6 e 20; Mateus 27,52) e na tradição da Igreja ainda hoje. Notemos que a nossa palavra «cemitério» deriva do grego koimêtêrion, que significa literalmente «dormitório».
Jesus entra depois naquela casa e pega terna e soberanamente na mão da menina. Note-se o número pleno de sete pessoas presentes: Jesus, Pedro, Tiago e João, o pai e a mãe da menina, e a menina. A plenitude rasga a nossa planitude! Pegando ternamente na mão da menina, Jesus diz, em aramaico, língua materna de Jesus e da menina: «Talitha, qûm!» [= menina, filha, irmã, levanta-te!] (Marcos 5,41). Não passa despercebido que a palavra de Jesus interpela a própria morte, e trata aquela menina ternamente por irmã, irmãzinha, sua irmã querida. Na verdade, o aramaico Talitha é o feminino de Talyaʼ. E o aramaico Talyaʼ é a mais bela, plena e significativa palavra para dizer Jesus, pois significa ao mesmo tempo «filho», «cordeiro», «servo», «pão». Como se vê, Talyaʼ diz o Jesus todo, sendo Ele a vida verdadeira, ressuscitada, levantada, que liberta e alimenta, ressuscita e levanta.
E a sua voz é mais fina do que o silêncio (1 Reis 19,12), mais afiada e eficaz do que a lâmina do bisturi (Hebreus 4,12), mais íntima e apelativa do que a chama que, da sarça, chama Moisés (Êxodo 3,4) ou queima o coração dos dois de Emaús (Lucas 24,32) ou do que as línguas de fogo daquele ardente Pentecostes (Atos dos Apóstolos 2,3). É uma voz nova que quebra as nossas crostas, e, desde dentro, queima, purifica, limpa, corta, opera, atravessa o coração. Palavra nova, absolutamente nova, que se capta só em alta fidelidade, hi-fi, alta sintonia, alta frequência, que acorda até os que dormem nos sepulcros o sono da morte, e deles os retira (João 5,25 e 28).
Desta «ressuscitação» da menina, Jesus manda não dizer nada a ninguém (Marcos 5,43). Mas também se vê bem que esta «ressuscitação» da menina, da irmãzinha, aponta para a verdadeira e plena «ressurreição» de Jesus. E esta, a ressurreição de Jesus, não é para ser calada. É para ser anunciada aos quatro ventos, a todas as nações, a todos os corações.
Como se vê, trata-se de duas cenas únicas e belíssimas, cheias, plenas de humanidade e divindade. Passa, Senhor Jesus, à nossa porta, entra em nossa casa, veste o nosso dorido coração de festa. Faz-nos sentir que somos teus filhos e irmãos queridos. E que as nossas lágrimas de dor podem sempre transformar-se em lágrimas de amor! Porque o teu olhar carinhoso nos descobre sempre e nos faz sair dos nossos esconderijos, e a tua Palavra rasga inclusive o véu da morte!
É-nos hoje dada a graça de ler e de ouvir um pequeno extrato compósito do Livro da Sabedoria (1,13-15; 2,23-24). A Sabedoria exorciza e otimiza o mundo com a luz intensíssima da misericórdia de Deus. Este mundo exorcizado e otimizado por obra da misericórdia de Deus não pode conter em si nem a origem do pecado nem a morte. Por isso, é ao demónio, e não à mulher (cf. Ben-Sirá 25,24), nem sequer à cobra, que o autor do Livro da Sabedoria atribui a entrada do pecado no mundo (Sabedoria 2,24). Se afirma que nenhuma criatura é portadora de veneno, é para ilibar também a cobra (Sabedoria 1,14). Tudo vem de Deus. Tudo caminha para Deus.
A lição continuada da Segunda Carta aos Coríntios (8,7-15) abre-nos hoje uma janela para a teia de caridade tecida com delicadeza nas primeiras comunidades cristãs. À imagem e transparência de Jesus Cristo que, «sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza» (2 Coríntios 8,9), S. Paulo, que é, no dizer de Bento XVI, «o maior missionário de todos os tempos», e, de acordo com o Beato Paulo VI, «modelo de cada evangelizador», regeu a sua missão pela bússola: «Nós só nos devíamos lembrar dos pobres» (Gálatas 2,10). Por isso, porque a atenção para com os pobres constitui o critério de validação da missão, S. Paulo empenhou-se naquela famosa Coleta (logeía), empenhando nela todas as Igrejas da Ásia Menor, da Macedónia e da Acaia. Esta Coleta intereclesial constitui, de facto, um verdadeiro «fenómeno único» (hápax phainómenon» no mundo antigo, e são-lhe atribuídos sobretudo os nomes de koinônía [= comunhão], diakonía [= serviço] e sobretudo cháris [= graça], «a graça (cháris) servida por nós», como refere exemplarmente S. Paulo (2 Coríntios 8,19). Aí está uma imensa provocação para as Igrejas de hoje.
O Salmo 30 é uma bela e sentida Ação de Graças a um Deus que liberta o orante da tristeza, da doença, do luto e da morte, e o faz exultar de alegria, saúde, vida, dança e música de festa. O Deus aqui louvado é um Deus que muda as nossas situações difíceis e, por vezes, sem saída, em amplas avenidas floridas. É por isso que, como diz o próprio título «Cântico para a Dedicação do Templo», este Salmo anda ligado à Festa da Hanûkkah ou da Dedicação do Templo, quando Judas Macabeu entrou no Templo de Jerusalém em 164 e o fez purificar depois de um período de ocupação e paganização pelos selêucidas.
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Recentemente ao visitar uma família, quando nos preparávamos para rezar, um dos mais pequenos perguntou-me: «Padre Sérgio, como seria a nossa vida se Jesus não existisse?». Confesso que esta pergunta me tem acompanhado na oração nas últimas semanas, obrigando-me a descobrir novas razões sobre o lugar transformador da presença de Cristo nas nossas vidas. Não bastam como resposta os lugares-comuns que nos saem boca fora, nem as frases feitas sempre à medida para respostas inesperadas. É necessário entrar na oração e na vida quotidiana e descobrir o lugar decisivo que Jesus ocupa na nossa vida. Em primeiro lugar, é importante registar que não está em causa a existência de Deus e a Sua acção na nossa vida. A pergunta é precisamente que diferença haveria na nossa vida se não contássemos com a presença de Jesus que para aquele pequeno é clara e evidente.
Paulo recorda-nos a radical diferença da vida que se constrói em Jesus Cristo: «se alguém está em Cristo, é uma nova criatura. As coisas antigas passaram: tudo foi renovado». A vida em Jesus Cristo é nova e renovadora. A vida sem Cristo não seria apenas mais pobre ou com menos sentido. Na verdade, não seria vida, não teria o mesmo sabor e a mesma força, porque lhe faltaria Aquele que oferece vida verdadeira e prenhe de sentido. Jesus Cristo é o único capaz de dominar e ultrapassar os limites da nossa existência: Ele domina os ventos e marés, vence o pecado e a morte. Por isso, caminhar com Ele é fazer a experiência da força transformadora e renovadora do Seu amor.
Caminhar com Jesus, é, antes de tudo, seguir com Aquele que permanentemente nos desafia: «passemos à outra margem do lago». Como aos discípulos de outrora, Jesus conduz-nos mais longe, mais largo e mais alto. Jesus retira-nos da nossa mediocridade e aponta-nos sempre um horizonte maior e mais largo. Jesus não nos quer instalados e acomodados e ensina-nos a viver a arte de estarmos tranquilos enquanto estivermos inquietos, enquanto no nosso coração residir o desejo de progredir na estrada da santidade.
Atravessar o mar da vida implica largar as seguranças. O medo pode assolar-nos, mas dissipa-se se formos capazes de levar Jesus na nossa barca. Se é Ele que nos convoca e envia, também é Ele que nos precede e acompanha na missão. Por isso, não espanta que diante dos ventos contrários façamos a experiência do aparente sono de Deus. O medo sacode a barca ao ponto de nos fazer sentir totalmente desprotegidos e nem as seguranças de outras tempestades nem as palavras consoladoras que tantas vezes dirigimos a outros parecem fazer sentido: «Mestre, não Te importas que pereçamos?».
A mim surpreende-me sempre que diante daquela tempestade o primeiro instinto tenha sido acordar Jesus. Eles sabiam bem que Ele era o filho de José, o carpinteiro, e que sua mãe era Maria que viva em Nazaré. Não seria mais sensato gritar por Pedro ou André, Tiago ou João, pescadores acostumados às lides do mar? Jesus era aprendiz de carpinteiro na oficina de S. José… Contudo, os discípulos sabem bem que só Jesus conhece o segredo do mar e da tempestade. Sabem que muitas vezes é precisar gritar para acordar Jesus, ou melhor, para acordar dentro de nós a presença efectiva de Jesus.
Os ventos e os mares sopram e Jesus dorme. Diante da violenta força dos ventos e das ondas, a aparente fragilidade de um Deus que dorme. Caminhar com Jesus será sempre abraçar o horizonte maior e mais largo da cruz, onde diante de desafios e exigências que parecem maiores do que as nossas forças, se levanta o Deus forte que dissipa os nossos medos, afasta as nossas trevas e nos abre horizontes de esperança. In Voz Portucalense
LEITURA I – Job 38,1.8-11
«O Senhor respondeu a Job do meio da tempestade».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 106 (107)
Refrão: Cantai ao Senhor, porque é eterno o seu amor.
LEITURA II – 2 Cor 5,14-17
«Cristo morreu por todos, para que os vivos deixem de viver para si próprios, mas vivam para Aquele que morreu e ressuscitou por eles».
EVANGELHO – Mc 4,35-41
«Passemos à outra margem do lago».
«Porque estais tão assustados? Ainda não tendes fé?».
«Quem é este homem, que até o vento e o mar Lhe obedecem?».
Para os leitores:
Um alerta: que a brevidade da primeira leitura não faça descurar a sua preparação, pois é um texto que requer bastante cuidado na sua proclamação. A leitura é constituída pela resposta do Senhor a Job e mais de metade do texto é composto por uma única interrogação. Pede-se o cuidado de não deixar a entoação interrogativa para o final da frase, mas ter presente logo no início na partícula interrogativa «quem».
A segunda leitura deve ser marcada por um tom exortativo com especial atenção para as pausas e respirações para uma leitura articulada do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra
Vale a pena abrir a página com a serenidade do belíssimo episódio do Evangelho deste Domingo XII do Tempo Comum (Marcos 4,35-41):
«E diz-lhes naquele dia, à tardinha: “Passemos para a outra margem”. E tendo eles deixado a multidão, tomam-NO consigo (paralambánousin autón), assim como estava (hôs ên), na Barca (en tô ploíô), e outras barcas estavam com ELE. E acontece uma grande tempestade de vento, e as ondas atiravam-se para dentro da Barca, de maneira a ficar cheia a Barca.
E ELE estava à popa (prýmna), dormindo (katheúdôn) sobre a almofada (epì tô proskephálaion). E acordam-NO e dizem-LHE: “Mestre, Tu não Te importas que morramos?”. E, tendo acordado, ordenou ao vento e disse ao mar: “Cala-te! Acalma-te!”. E cessou o vento, e aconteceu grande bonança. E disse-lhes: “Por que tendes medo? Ainda não tendes fé?”. 41E foram amedrontados (ephobêthêsan) de um medo grande (phóbos mégas), e diziam uns para os outros: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?”».
Um Evangelho de excelência o deste Domingo XII do Tempo Comum. Um luxo. Em pleno mar da Galileia, os discípulos / apóstolos de Jesus lutam, aflitos, contra a tempestade que ameaça desfazer a pequena e frágil embarcação no meio do mar encapelado (Marcos 4,35-41). A arqueologia pôs a descoberto as pequenas embarcações de pesca do tempo de Jesus. Tinham cerca de 8 metros de comprimento por 2,5 metros de largura, tornando-se, portanto, presa fácil das ondas. E em claro e sereno contraponto, narra o Evangelho, «Jesus, à popa, dormia deitado sobre uma almofada» (Marcos 4,38). Não nos esqueçamos que a popa é o lugar de comando da embarcação. Jesus permanece, portanto, no comando da nossa barca, da nossa vida, ainda que muitas vezes nem nos apercebamos da serenidade da sua condução. A presença da almofada na pobre embarcação e do sono sereno de Jesus marcam bem o tom doce e tranquilo deste condutor diferente da nossa vida agitada. Não é a nossa agitação que conta. É o seu sono tranquilo. Ainda que algumas vezes nós caiamos na tentação, como, de resto, sucede com aqueles discípulos, de julgar o sono de Jesus como indiferença (4,38).
Canta bem a Liturgia das Horas da Igreja:
«Se me colhe a tempestade,
E Jesus vai a dormir na minha barca,
Nada temo porque a Paz está comigo».
Senhor, Tu falas, tu fazes, tu chamas, tu ordenas. Todos os caminhos vêm de ti, vão para ti. És tu o Senhor de todos os chamados, de todos os reunidos, de todos os enviados. Tu és a casa, a mesa, o caminho, o vinho, o pão, o peixe. Velas por todos: pelos pais, pelos filhos, pelos irmãos, pelos desfilhados, pelos órfãos, pelos desirmanados. Vela por nós, Senhor, orienta a nossa barca, deita-te tranquilamente à popa (Marcos 4,38): o teu sono sereno há de certamente serenar as nossas tempestades.
Marcos descreve três travessias do mar da Galileia. Além da de hoje (Marcos 4,35-41), veja-se também Marcos 6,45-52 e 8,13-21. Caracteriza-as sempre o facto de a precedê-las estar o afastamento das multidões. Por outro lado, estas travessias do mar na barca deixam Jesus a sós com os seus discípulos, possibilitando-lhes uma experiência pessoal com Ele. A barca (tò ploîon) demarca, de resto, um espaço privilegiado que Jesus condivide unicamente com os seus discípulos. Mais ninguém entra nessa barca, ainda que o solicite (veja-se Marcos 5,18).
Na travessia de hoje, levantou-se uma violenta tempestade, que encheu de água a pequena barca e de medo aqueles discípulos. Como Jesus dormia tranquilamente deitado sobre a almofada, os discípulos correram a acordá-lo, deixando no ar um certo tom acusatório por aquilo que julgavam ser o desinteresse de Jesus pela vida dos que seguiam com Ele: «Tu não te importas que pereçamos?» (Marcos 4,38).
Jesus levanta-se e mostra um modo novo de fazer bem diferente dos seus discípulos. Dirige-se primeiro ao vento e ao mar, dando duas ordens: «Cala-te! Acalma-te!» (Marcos 4,39). E parou o vento, e fez-se bonança no mar (Marcos 4,39). Só depois disto, Jesus se dirige aos seus discípulos, não com duas ordens, mas com duas perguntas: «Por que tendes medo? Ainda não tendes fé? (Marcos 4,40). Os discípulos não responderam, mas expressam a sua reação perante tudo o que viram Jesus fazer e ouviram Jesus dizer: «Quem é este, que até o vento e o mar lhe obedecem?» (Marcos 4,41).
Já lá atrás, em Cafarnaum, Jesus tinha dado ordens a um espírito impuro, e ele obedeceu (Marcos 1,26-27). Fica então claro que os espíritos impuros e as forças da natureza, que não reagem a palavras humanas, seguem à letra as ordens de Jesus. Os discípulos saem então de um temor para outro ainda maior. É o temor que resulta da experiência do poder divino, sobre humano (Êxodo 14,31). Tal como o perigo, também a salvação do perigo é superior ao homem e vence a humana impotência. O novo temor daqueles discípulos mostra o sentido que começam a ver nascer do fazer divino de Jesus. Mas expressa também o seu espanto diante da pergunta de Jesus, que deixa supor uma fé incondicionada. Em relação a um homem, uma tal fé seria impossível e sem sentido. A pergunta que os discípulos se fazem entre si é, portanto, dupla: «Quem é este que faz tais coisas e que pede uma tal fé»? Esta pergunta não exprime dúvida, mas espanto e pesquisa. Acompanhá-los-á daqui para a frente no seu caminho com Jesus.
Note-se que, no episódio hoje diante de nós estendido, a iniciativa de entrar na Barca é de Jesus (Marcos 4,35), mas também é dito que os discípulos «tomam Jesus, assim como estava, na Barca» (Marcos 4,36). Serve esta fantástica indicação, para nos apercebermos bem que, na verdade, é Jesus que conduz aqueles discípulos, estes discípulos, assim com são, assim como somos!
A lição do Livro de Job, de hoje (Job 38,1.8-11), faz boa companhia à soberba página do Evangelho. Antes de mais, mostra um Deus absolutamente soberano, incontrolável, que não surge na ponta das nossas perguntas ou pedidos. É um Deus absolutamente livre, que irrompe do seio da tempestade, isto é, do seio da liberdade, como nas antigas teofanias. Não vem para responder às muitas perguntas de Job. Vem, antes, para mostrar as maravilhas da criação que nos rodeiam, e fazer-nos perguntas, para as quais não temos resposta nenhuma. Apenas a adoração e o louvor. É assim que Deus faz passar diante de Job as páginas de um álbum repleto de maravilhas impenetráveis. E Job fica maravilhado, atónito, e reconhece que nada sabe, ou que apenas sabe decifrar um ou outro fragmento deste mapa deslumbrante. Uma das páginas deste álbum, a de hoje, é dedicada ao mar, de acordo com o Evangelho. As tintas são excepcionais: o ventre de que irrompe, as faixas em que é envolvido como uma criança quando nasce, as portas e ferrolhos que o seguram… Só pode tudo isto ser afazer de Deus!
E aí está S. Paulo na Segunda Carta aos Coríntios (5,14-17), que continuamos a ter a graça de escutar. A chave da vida de Paulo e da nossa é o amor de Cristo por nós, que deve desencadear em nós o nosso amor por Cristo, de modo a vivermos, não já para nós mesmos, em clave egoísta, egocêntrica e autorreferencial, mas para Cristo que por nós morreu e ressuscitou. E aí está uma nova e bela criatura, nascida da graça, chamada a dar graças.
Hoje temos a graça de sermos postos a cantar o Salmo 107, que, na sua estrutura, se apresenta como que composto por quatro ex-votos de pessoas libertadas no meio das diferentes dificuldades que as assolavam. O primeiro ex-voto é de um viajante que se perde e é salvo no deserto (vv. 4-9). O segundo vem de um prisioneiro, salvo das cadeias que o oprimiam (vv. 10-16). O terceiro vem de um doente libertado das suas dores e da morte (vv. 17-22). O quarto e o mais original, que será a parte cantada hoje, vem de um marinheiro libertado no meio de uma tempestade. De forma significativa, Santo Agostinho, na sua exegese espiritual e alegórica, aplica esta última parte do Salmo aos timoneiros da barca da Igreja, isto é, aos pastores que, diz ele, «quanto mais honras têm, mais perigos têm». E eu digo: é de ter a peito esta leitura sapiencial e profunda, que perfura a superfície das coisas, e nos deixa ocupados num sério exame de consciência. Diga-se ainda, que o Salmo apresenta duas palavras dominantes: uma é a hesed divina, o amor de Deus sempre fiel; a outra é a tôdah humana, a humana gratidão a Deus pelos seus feitos maravilhosos em nosso favor. As duas formam um belo abraço.
D. António Couto
ANEXOS:
Viver a Palavra
Já todos fizemos a experiência de estar a escutar alguém e não conseguir perceber o alcance das suas palavras e o seguimento do seu raciocínio. É uma experiência exigente e desconcertante, pois muitas vezes é exigente para nós interpelar constantemente a pessoa para que se faça entender. Pelo contrário, todos guardamos na memória aquele professor que era capaz de descer ao nosso nível de entendimento, fazer-se entender mesmo quando falava das matérias mais complexas e profundas. A capacidade de se tornar percetível é sinal de empatia e da aptidão para sintonizar com a experiência e a realidade do outro, para que possamos ser eficazes na mensagem que queremos transmitir. Deste modo, esta missão só é possível através de um real interesse pela realidade concreta do nosso interlocutor e uma consciência acurada da importância da mensagem que queremos dirigir.
Assim nos aparece Jesus no evangelho deste Domingo! Ele conhece bem a realidade concreta dos seus interlocutores e está consciente da importância da mensagem que tem para lhes dirigir. Jesus é o Verbo Incarnado, o Rosto da Misericórdia do Pai, Deus eterno e omnipotente dito em carne humana. Vem ao encontro da humanidade para anunciar o Reino de Deus. Este é o centro de toda a Sua missão. Tudo aquilo que disse, fez e ensinou foi para instaurar no mundo o Reino do Pai. Esse Reino está já no meio de nós, mas ainda não se realizou em plenitude: «nós estamos sempre cheios de confiança, sabendo que, enquanto habitarmos neste corpo, vivemos como exilados, longe do Senhor, pois caminhamos à luz da fé e não da visão clara». Vemos este Reino ainda entre as trevas e sombras do tempo presente, mas vislumbrando e saboreando já o Reino que se faz semente a germinar, mesmo quando dormimos, pois, ele não é um reino a conquistar ou a merecer, mas um dom a saber acolher.
Jesus fala da profundidade e da beleza deste Reino por meio de linguagem parabólica, sapiencial e concreta. Jesus sabe dizer e dizer-se utilizando as palavras que o nosso entendimento pode acolher. Utiliza as imagens que o quotidiano dos Seus interlocutores está acostumado a contemplar e assim faz-se percetível, acolhido e compreendido. Jesus fala de Deus através do quotidiano concreto e não de um silogismo filosófico ou um exuberante e enigmático raciocínio teológico.
Como ainda temos tanto a aprender com Jesus… Temos ainda tanta estrada a percorrer para entrar na verdadeira sabedoria da comunicação do Evangelho do amor! Quantas vezes nos fazemos detentores de um conhecimento profundo de Deus, comunicando-O de modo complexo, fazendo jus da profundidade dogmática e exegética do conhecimento teológico, falando dos mistérios do Reino de modo elevado e abstrato.
O Reino dos Céus é como uma semente, um pequeno grão de mostarda! O Reino de Deus diz-se na simplicidade e concretude de algo insignificante, banal e quotidiano. Assim há-de ser o nosso modo de falar de Deus: deve estar presente no mais insignificante e banal do nosso quotidiano. Na normal sucessão dos nossos dias, nos mais pequenos gestos e partilhas, na nossa vida concreta e real, sem malabarismos nem máscaras, dizer Deus que se faz presente nas nossas vidas quando criamos disponibilidade para que a semente do Evangelho possa germinar e crescer. Quando deixamos esta semente crescer e somos dóceis à ação de Deus em nós, a nossa vida alarga-se, rasgam-se novos horizontes e o arco da nossa vida torna-se uma frondosa árvore onde outros se podem acolher e saborear connosco a alegria de sermos profundamente amados por Deus e chamados a tomar parte na mesa do Seu Reino. In Voz Portucalense
LEITURA I – Ez 17,22-24
«Do cimo do cedro frondoso, dos seus ramos mais altos, Eu próprio arrancarei um ramo novo e vou plantá-lo num monte muito alto».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 91 (92)
Refrão: É bom louvar-Vos, Senhor.
LEITURA II – 2 Cor 5,6-l0
«Por isso nos empenhamos em ser-Lhe agradáveis, quer continuemos a habitar no corpo, quer tenhamos de sair dele».
EVANGELHO – Mc 4,26-34
«O reino de Deus é como um homem que lançou a semente à terra».
«A que havemos de comparar o reino de Deus? Em que parábola o havemos de apresentar?».
«Jesus pregava-lhes a palavra de Deus com muitas parábolas como estas, conforme eram capazes de entender».
Para os leitores:
Na primeira leitura, ler a frase inicial consciente de que ela abre e prepara o discurso que se segue – é Deus quem se dirige ao povo. Ter em atenção as expressões «Eu sou o Senhor» e «Eu, o Senhor, digo e faço». Estas expressões fazem parte do modo como Deus se apresenta e se identifica, por isso, deve ter-se em atenção a sua proclamação.
Na segunda leitura, deve ter-se presente o tom exortativo presente ao longo de todo o texto. Além disso, deve aproveitar-se a expressividade presente na repetição da conjunção disjuntiva «quer… quer».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar a Liturgia da Palavra
O Evangelho deste Domingo XI do Tempo Comum (Marcos 4,26-34) põe-nos na mão, nos olhos e no coração duas parábolas singulares: a da semente que germina e cresce sozinha (vv. 26-29), e a do grão de mostarda (vv. 30-32). As parábolas são pequenas, porque falam do que há de mais pequeno: a semente. A semente é a palavra (Marcos 4,14; Lucas 8,11). Ora, a semente – semente de planta, semente de animal, semente de homem – é a vida. Jesus ensina que é a palavra que semeia a vida, pois é o seu começo. Entenda-se por este prisma o começo da vida nova do Reino de Deus que pode sempre nascer em nós, quando temos a graça de ver chegar até nós a palavra do Evangelho, o próprio Evangelho em pessoa, Jesus Cristo, que nos faz nascer do alto e de novo (ánôthen) (João 3,3).
Também pequeninos são os passarinhos que vêm abrigar-se nos ramos das árvores (Marcos 4,32). As coisas pequeninas – plantas, animais, crianças – requerem uma maior atenção. Toda a atenção, portanto, à palavra de Jesus, que nos é magistralmente repartida aos bocadinhos, como migalhas de pão.
Bem entendido, o texto das duas pequenas, mas belas parábolas hoje expostas diante de nós, vem depois da chamada «parábola do semeador» ou «da semente», que é narrada em Marcos 4,1-9, e explicada em Marcos 4,13-20, mas que devemos ter bem presente para compreendermos melhor as duas pequenas parábolas de hoje. A parábola do «semeador» ou da «semente» segue o esquema «3 + 1» [caminho, terreno pedregoso, espinhos + terra boa], que é já, de per si, ilustrativo, pois nos obriga a esperar até ao fim para ver o correto e lento percurso desde a sementeira [novembro/dezembro] até à colheita [abril/maio]. É mesmo dito, na parábola, pedagogicamente, que a semente que germina depressa seca depressa (Marcos 4,5-6).
É notório que a semente é coisa bem pequenina. É o que há de mais pequeno. Mas contém inscrito no seu ADN um percurso semelhante ao de Jesus. De facto, uma vez caída à terra, dará o grão e o pão. Caída à terra, morre para nascer de outra maneira. É a Paixão. Da semente à Paixão e ao Pão: é todo o processo ou parábola de JESUS a passar diante dos nossos olhos atónitos! Portanto, se não entendemos a semente, o início do processo, pergunta Jesus, como entenderemos o inteiro processo e o seu final? (Marcos 4,13). Como entenderemos a glória sem a humildade?
De forma significativa, as duas parábolas de hoje, situadas ainda no cone de luz da parábola da «semente», só reclamam a ação humana em dois momentos distanciados no tempo: quando é lançada a semente à terra (Marcos 4,26) e quando chega o tempo da colheita (Marcos 4,29). Entre estes dois momentos, sucedem-se os dias e as noites, o homem dorme e acorda, e a semente lançada na terra germina, cresce e produz o seu fruto «automaticamente» (automátê), sem que o homem saiba «como» (Marcos 4,27-28). Não o sabia, e não o sabe, o homem simples, do campo, de então e de hoje, embora o saiba hoje a biogenética. Hoje, a ciência sabe o «como», mas também não sabe responder ao «porquê». Temos todos de começar mesmo pela atitude sublime da admiração!
E no que ao grão de mostarda diz respeito, a ação humana só é evocada quando o pequeno grão, que é a menor de todas as sementes, é semeado na terra (Marcos 4,31). Depois, só lhe é dado constatar que uma árvore cresce e deita grandes ramos, em que até os pássaros do céu se vêm abrigar (Marcos 4,32).
O que é que isto quer dizer? Quer dizer com certeza que o Reino de Deus tem o seu dinamismo próprio, e que é de crescimento. E mais do que querer saber qual é esse dinamismo, porventura para dele se apoderar e controlar e até empenhar-se no seu desenvolvimento, a reação do homem deve ser, antes de mais, de admiração, adoração, louvor e gratidão. Jesus, o Filho de Deus, Deus Ele mesmo, atravessa o nosso mundo na condição humilde da nossa humana natureza, utilizando a cultura hebraica em que nasceu, falando a língua então popular nessa cultura, o aramaico, servindo-se das imagens mais simples e próximas, ao alcance de todos: os campos, a semente, as árvores, as aves… Também passará pelo sofrimento e pela morte. Só depois virá a glória da ressurreição. E o Apóstolo Paulo dirá: o que aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós; como aconteceu a Ele, também nos acontecerá a nós! Dito por Jesus: a eles (v. 34a), aos de fora (v. 11b), tudo chega em parábolas, mas a vós (v. 11a), «aos próprios discípulos» (toîs idíois mathetaîs) (v. 34b), é dado o mistério do Reino de Deus (v. 11a), ou explicava-lhes tudo (v. 34b). De notar que a expressão «os próprios discípulos» só se encontra nesta passagem, e mostra a particularíssima relação que os une a Jesus.
A parábola do pequeno rebento do cedro, apresentada por Ezequiel (17,22-24), está em perfeita sintonia com as parábolas do Evangelho de hoje. Um pequeno rebento plantado por Deus em Israel crescerá tanto que servirá de abrigo a todas as aves do céu. E além disso servirá ainda de aviso a todas as grandes árvores do campo, pois, na verdade, Deus derruba a árvore grande e exalta a pequena, seca a árvore verde e reverdece a seca. Esta pequena parábola ganha ainda mais relevo se posta em confronto com a parábola da videira luxuriante, que é Sedecias, plantada por Nabucodonosor em 597, e que volta os seus ramos quer para a Babilónia quer para o Egipto, as duas grandes águias, os dois senhores do tempo. Não terá sucesso Sedecias, pois será apanhada nas malhas da rede de Deus, e não vingará (Ezequiel 17,1-21). Na verdade, embora tendo fugido, é alcançado por Nabucodonosor perto de Jericó, em 587. Antes de lhe serem vazados os olhos e de ser levado cego para a Babilónia, terá de ver ainda, com os seus olhos, serem mortos os seus filhos e a sua mulher. Lição: assim caem as árvores grandes! Mas a árvore pequenina, plantada por Deus continuará a crescer sem sobressaltos e servirá de morada aos passarinhos!
O Apóstolo Paulo continua, na lição contínua ou semi-contínua da Segunda Carta aos Coríntios (5,6-10), a encorajar-nos a habitar sempre na Casa do Senhor, mesmo quando habitamos ainda neste corpo, aparentemente longe do Senhor. Os verbos a que Paulo mais recorre nestes poucos versículos são os verbos endêméô e ekdêméô (três vezes cada um). O termo chave, que explica as duas formas verbais, é dêmos [= povo], com as duas partículas en [= em] e ek [= fora de]. Endêméô significa então habitar junto do seu povo, sentir-se em casa, enquanto que ekdêméô significa habitar fora do seu povo, distante de casa. A nossa casa verdadeira é estar em Casa com o Senhor. Mas enquanto estamos distantes dele, sabemos, pela fé, que é para a sua Casa que caminhamos.
O belo Salmo 92 continua a fazer vibrar em nós a música da semente, das árvores, das aves e dos dias breves e belos, da eternidade. O orante realça a imagem vegetal, fresca e verdejante, da palmeira e do cedro, verdadeiro brasão do justo. Quer a palmeira quer o cedro evocam uma vitalidade contra a qual em vão atenta o deserto. Além disso, o cedro, com a sua altura, simboliza a longevidade: pode durar um milénio. E a palmeira, phoínix no texto grego, com o seu duplo significado de palmeira e fénix, a ave da imortalidade, servirá à tradição cristã para celebrar a vitória da vida nova e eterna. No culto sinagogal, este Salmo é cantado à entrada do Sábado, ao pôr-do-sol de sexta-feira. Lê-se na Mishna: «Ao sábado canta-se o Cântico do dia de sábado (Salmo 92), Cântico para o tempo que há de vir, para o dia que será inteiramente sábado e repouso para a vida eterna. Mas é o Senhor que está por detrás de tudo isto. É por isso que é bom e belo louvá-lo.
D. António Couto
ANEXOS:
O tema deste 10.º Domingo do Tempo Comum gravita à volta da identidade de Jesus e da comunhão que Ele deseja estabelecer com aqueles que se colocam na disposição de o seguir: fica claro que Jesus não tem qualquer aliança com o Demónio e com o poder do mal e que se quer definir pela sua relação de obediência com Deus Pai, à qual convida todos aqueles que se querem sentir parte da Sua família. In Dehonianos
LEITURA I – Gen 3, 9-15
«Depois de Adão ter comido da árvore, o Senhor Deus chamou-o e disse-lhe: “Onde estás?”»
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 129 (130)
Refrão: No Senhor está a misericórdia e abundante redenção
LEITURA II – 2 Cor 4, 13- 5, 1
«Não olhamos para as coisas visíveis, olhamos para as invisíveis: as coisas visíveis são passageiras, ao passo que as invisíveis são eternas»
EVANGELHO – Mc 3, 20-35
«Jesus chegou a casa com os seus discípulos e de novo acorreu tanta gente,que eles nem sequer podiam comer»
«Tua Mãe e teus irmãos estão lá fora à tua procura»
«Eis minha Mãe e meus irmãos. Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha Mãe»
Para os leitores:
A 1.ª leitura requer uma atenta preparação em virtude dos vários diálogos.
A 2.ª leitura, não sendo particularmente difícil, requer, em todos os casos, uma adequada preparação. É necessário que o leitor tenha sempre a consciência que está a transmitir a Palavra de Deus.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar a Liturgia da Palavra
A VERDADEIRA FAMÍLIA DE JESUS
É-nos dado neste Domingo X do Tempo Comum escutar o Evangelho de Marcos 3,20-35. É um texto considerado difícil, em que são facilmente identificáveis três cenas organizadas em crescendo. Primeira cena: Marcos 3,20-21: Jesus em «casa», em Cafarnaum (cf. Marcos 1,29.32; 2,1-2), procurado por todos, e sem tempo sequer para comer. Nestas condições, os «seus» (familiares), de Nazaré, saem para tomar conta dele, pois se dizia: «está fora de si» (exéstê). Segunda cena: Marcos 3,22-30: descem os escribas de Jerusalém para verem também o que se passa com Jesus. Ao verem as maravilhas que realiza, concluem que «está possuído por Belzebu» (Marcos 3,22) ou «por um espírito impuro» (Marcos 3,30), e que «é pelo príncipe dos demónios que Ele expulsa os demónios» (Marcos 3,22). Terceira cena: Marcos 3,31-35: o próprio Jesus indica quem são os seus verdadeiros familiares: não os que estão fora e de pé, mas os que estão dentro e sentados à sua volta.
A primeira cena requer alguma atenção. A «casa» de que se fala é claramente a casa de Simão e de André, em Cafarnaum (Marcos 1,29). É aí que as multidões procuram Jesus (Marcos 3,20), como já tinha sido anotado antes em Marcos 1,33 e 2,2. Não eram, ao contrário do que algumas versões deixam entender, os familiares de Jesus, vindos de Nazaré, que «diziam: está fora de si», ou, por outras palavras, «enlouqueceu». Todo o problema reside em identificar o sujeito daquele «diziam». A forma verbal grega é élegon, que é um imperfeito impessoal, 3.ª pessoa do plural, do verbo légô. Deve, pois, traduzir-se, não que os familiares de Jesus diziam, mas que «se dizia», isto é, as pessoas diziam. Muda tudo na compreensão do texto. Os mais céticos podem sempre ver, acerca deste acerto exegético, M. Zerwich, M. Grosvenor, A Grammatical Analisis of vthe Greek New Testament, Roma, Biblical Institute Press, ed. rev., 1981, p. 109. E porque era isto que corria acerca de Jesus, os seus familiares são os primeiros que devem intervir (Deuteronómio 13,2-12; Zacarias 13,2-5).
Na segunda cena, os escribas, representantes do saber oficial de Jerusalém, afirmam logo que Jesus faz o que faz, porque está em colaboração com as forças do mal. Este raciocínio viciado é completamente desmontado por Jesus, que faz ver aos escribas que se alguém luta contra si mesmo entra em dissolução, autodestruindo-se. Não pode, portanto, ser o mal a lutar e vencer o mal. O mal só pode ser vencido pelo bem (cf. Romanos 12,21). Só a cegueira de corações empedernidos pode recusar evidência tão evidente: de facto, quem estiver postado do lado do mal, não se porá a combater o mal, pois uma tal atitude equivaleria a destruir-se a si mesmo. Confundir a fonte do bem operado por Jesus com a fonte do mal, é não querer reconhecer a ação de Deus, e reconhecer o mal como único poder, único deus. E o mal não perdoa. Conta-se que Hillel, um dos grandes Mestres do judaísmo do tempo de Jesus, ao ver um cadáver a ser arrastado por uma corrente, sentenciou: «Foste morto porque mataste, mas quem te matou também será morto!». Portanto, o mal não perdoa, e funciona em cadeia. Prender Jesus, operador só do Bem, a este cadeado do mal, é contradizer a verdade reconhecida como tal. É confundir o Bem com o mal. É neste ponto preciso que não tem perdão o pecado contra o Espírito Santo.
A terceira cena é uma bela cúpula do texto. Põe em contraponto a «casa» nova e a «casa» antiga. A casa antiga permanece vinculada ao velho livro anagráfico, que nos prende à terra, e não nos deixa ver o céu. Que nos enreda em laços familiares antigos ligados à casa antiga, e não nos deixa ver tantos novos irmãos e irmãs, pais e mães, filhos e filhas, que Deus nos dá. A família antiga, assente na terra e no sangue, fica fora e de pé. A família nova, assente no céu e na graça, fica dentro e sentada a escutar a Palavra de Jesus, para aprender a fazer a vontade de Deus.
«Onde estás?» é a pergunta que Deus faz todos os dias a cada um de nós, e que abre hoje a narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. Vale a pena inserir aqui uma história guardada por Martin Buber nos seus escritos. Conta Buber que o Rabino Shneur Zalman foi levado pelos seus adversários para a prisão de S. Petersburgo. Um dia, enquanto aguardava o julgamento, o comandante da guarda entrou na cela do Rabino. Vendo o seu ar pensativo e sério, o comandante pôs-se a falar com ele, e aproveitou para lhe colocar algumas das perguntas que se tinham levantado no seu espírito ao ler a Escritura. Por fim, perguntou: «Como se deve interpretar que o Deus Omnisciente pergunte a Adam: “Onde estás”» (Génesis 3,9). «Acredita o senhor», respondeu o Rabino, «que a Escritura é eterna e que diz respeito a todos os tempos, a todas as gerações e a todos os homens?». «Sim, acredito», respondeu o guarda. «Então», retomou o Rabino, «em cada tempo Deus interpela cada homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e anos que te foram atribuídos, já passaram muitos. Entretanto, até onde já chegaste no teu mundo?”. Deus disse, por exemplo: “Repara, já há quarenta e seis anos que estás nesta vida. Onde te encontras?”». Ao ouvir o número exato dos seus anos, o comandante teve dificuldade em controlar-se, pôs a mão no ombro do Rabino, e exclamou: «Muito bem, muito bem!». Mas o coração estremecia-lhe.
Depois da história incisiva que acabámos de transcrever, voltemos à narrativa exemplar de Génesis 3,9-15. «Onde estás?», pergunta o Deus-Que-Vem por amor ao encontro da sua criatura dileta. «Tive medo e escondi-me», respondemos nós, amedrontados. A narrativa que hoje lemos, e que também nos lê, desvenda todas as nossas inúteis estratégias de defesa, e faz-nos ver como nós nos escondemos de nós mesmos e de Deus, e como alijamos facilmente as nossas culpas sobre os outros. Correto, limpo, terapêutico, salvador, era assumirmos e confessarmos humildemente as nossas culpas. Mas não. Fugimos, escondemo-nos de nós, e respondemos: «Foi a mulher», «foi aquele», «foi aquela», e, em última análise, «foste Tu, foste Tu, Deus», porque foste Tu que me deste a maravilha de um irmão, de uma irmã, e foi esse irmão dado por Ti, essa irmã dada por Ti, que me deu a comer aquele fruto, fruto de um furto! És Tu, portanto e em última análise, o culpado. Aí estamos nós a fugir de nós mesmos, e a acusar os outros! E se não assumimos as nossas culpas, como podemos corrigir os nossos erros, e como podemos chegar a descobrir a realidade humana e divina do perdão? Sim, porque quando nos escondemos de Deus, estamos também a esconder Deus e os seus dons, a Alegria, o Amor, o Perdão. É assim que chegamos a Cristo, que veio (e tinha que vir) por amor à nossa procura. À procura da ovelha perdida e escondida.
É assim, continua S. Paulo na lição contínua da Segunda Carta aos Coríntios (4,13-5,1), que não seremos abandonados nesta tenda em ruínas, que é a nossa vida mortal. Deus vela por nós, e salva a nossa vida da ruína. É esta a experiência do orante do Salmo 116, a cuja fé e ação da fé Paulo se refere: «Também nós acreditamos, e por isso falamos (laléô) (2 Coríntios 4,13). Falar o Evangelho nunca sai de cor, mas da experiência da ação de Deus em nós. Por isso também não devemos fixar-nos na lama. Os olhos do nosso coração já devem estar postos na tenda nova e maior, no céu, onde Deus acolhe os seus filhos.
Neste sentido, o Salmo 130 surge hoje como um grito desde o abismo profundo em que muitas vezes jazemos atolados. São apenas 52 palavras hebraicas que atiramos a Deus, Senhor do Amor fiel (hesed) da Redenção (pedût). Cada orante que grita este Salmo sabe em que grau ou degrau de profundidade está. Sim, este é um dos 15 Salmos graduais ou das subidas ou das peregrinações (120-134). É uma voz que se levanta e sobe até àquele Senhor que não desprezou as nossas profundezas, mas até elas desceu, e até elas desce, para nos ajudar a subir!
D. António Couto
ANEXOS:
DEUS!
Com toda a certeza, esta é a palavra sobre a qual mais se escreveu ao longo da história: grandes tratados demonstrando a sua existência e inúmeros escritos que negam quer a necessidade do divino, quer a necessidade de relação com ele. Mas como é Deus em si mesmo? Como é que Deus se relaciona connosco?
É inegável que no mais íntimo do coração humano reside um desejo de plenitude e de transcendência. Na verdade, como nos recorda S. Agostinho, o coração humano é um coração inquieto que não se satisfaz com nada menos do que Deus e é, precisamente assim, que se torna um coração que ama. O nosso coração vive inquieto por Deus e não pode ser doutro modo, ainda que hoje o ser humano procure de tantos modos libertar-se desta inquietação. Contudo, como afirmou o Papa Bento XVI na homilia da Solenidade da Epifania, a 6 de Janeiro de 2012: «não somos só nós, seres humanos, que vivemos inquietos relativamente a Deus. Também o coração de Deus vive inquieto relativamente ao homem. Deus espera-nos. Anda à nossa procura. Também Ele não descansa enquanto não nos tiver encontrado. O coração de Deus vive inquieto, e foi por isso que se pôs a caminho até junto de nós – até Belém, até ao Calvário, de Jerusalém até à Galileia e aos confins do mundo. Deus vive inquieto connosco!».
Este Deus inquieto, que nos ama com amor infinito, que nos criou por amor e por amor nos acompanha nos caminhos da história, revela-se em Jesus Cristo e na força do Espírito Santo dá-nos a conhecer o Seu rosto terno e misericordioso. Deste modo, a Solenidade da Santíssima Trindade é a oportunidade de olharmos o coração de Deus, de entrarmos no Seu mistério de amor e comunhão para nos deixarmos envolver por esta corrente de graça que transforma a vida e o coração humano. A missão dos Apóstolos foi precisamente esta: acolher a inquietação de Deus por cada homem e mulher e levar o próprio Deus ao coração dos homens. Como discípulos missionários, também nós hoje somos chamados a deixar-nos tocar por esta inquietação de Deus, a fim de que o anseio de Deus pelo homem possa ser satisfeito.
Para entrar neste dinamismo de amor é necessário como os discípulos regressar à Galileia. Impressiona-me sempre que em diferentes relatos da Ressurreição Jesus dê aos discípulos indicação de voltarem ali. Regressar à Galileia significa voltar ao encontro primeiro com Jesus, ao momento em que deixaram que o Seu coração fosse tocado pelo incisivo convite de Jesus para partirem com Ele. É verdade que apesar da experiência que fizeram de Jesus Ressuscitado «alguns ainda duvidaram», mas isso não foi impedimento para que Jesus lhes confiasse a missão de partir e anunciar o Evangelho a todos os povos. A última palavra não pertence às nossas dúvidas ou receios. Eles fazem parte do caminho e devermos aprender a enfrentá-los. A última palavra pertence a Jesus que nos garante: «Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos». Acompanhados por esta certeza, os nossos medos dissipam-se, as nossas dúvidas desvanecem e diante de nós rasgam-se horizontes de esperança que na força do Espírito nos permitem olhar o céu e invocar «Abá, Pai». In Voz Portucalense
LEITURA I – Deut 4,32-34.39-40
«Considera hoje e medita em teu coração que o Senhor é o único Deus, no alto dos céus e cá em baixo na terra, e não há outro».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 32 (33)
Refrão: Feliz o povo que o Senhor escolheu para sua herança.
LEITURA II – Rom 8,14-17
«Se somos filhos, também somos herdeiros, herdeiros de Deus e herdeiros com Cristo; se sofrermos com Ele, também com Ele seremos glorificados».
EVANGELHO – Mt 28,16-20
«Quando O viram, adoraram-n’O; mas alguns ainda duvidaram».
«Eu estou sempre convosco até ao fim dos tempos».
Para os leitores:
A primeira leitura é constituída pelo discurso de Moisés ao povo e, por isso, deve ser proclamada com tom solene. A maior dificuldade na proclamação desta leitura são as quatro interrogações presentes no texto, sobretudo a quarta interrogação, que é uma longa frase e com diversas orações. Na leitura das frases interrogativas deve dar-se a entoação interrogativa nas partículas interrogativas ou nas formas verbais, evitando deixar a entoação para o final da frase.
Na segunda leitura ter atenção a palavra «Abá» que deve ler-se «Ábá».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar o Evangelho:
NÃO ADORES NUNCA NINGUÉM MAIS…
Mateus 28,16-20: última página do Evangelho de Mateus, que hoje, Solenidade da Santíssima Trindade, é solenemente proclamada para nós. Encerra o Evangelho de Mateus, condensa-o e resume-o, e abre aos Discípulos e Irmãos do Ressuscitado novos e insuspeitados horizontes.
Algumas notas surpreendentes enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho para o mundo: a autoridade soberana e nova de Jesus, assente, não na distância, mas na proximidade e familiaridade (1); a missão universal confiada a uma Igreja discipular, toda reunida à volta de um único Mestre e Senhor (2); só nesta página é dito que os Discípulos devem, por sua vez, ensinar, não se tornando, todavia, Mestres, mas permanecendo Discípulos (3); não ensinam, por isso, nada de próprio nem por conta própria, mas apenas «tudo o que Ele mandou» (4); a Presença nova e permanente [= «todos os dias»] do Ressuscitado na comunidade discipular (5).
A soberania nova, próxima e familiar, é já preparada pela cena anterior em que o anjo reorienta os passos das mulheres do túmulo para a Galileia, dizendo-lhes: «Indo depressa, dizei aos seus discípulos que Ele ressuscitou dos mortos e vos precede (proágei hymâs) na Galileia» (Mateus 28,7). De forma grandemente significativa, Jesus apresenta-se às mulheres no caminho, e reformula assim o dizer do anjo: «Ide e anunciai aos meus irmãos que partam para a Galileia, e lá me verão» (Mateus 28,10). Aí está a nascer a nova e indestrutível familiaridade: meus irmãos, diz Jesus, apontando para nós e envolvendo-nos num imenso abraço fraternal. E chegados à Galileia, de acordo com o dizer de Jesus, e à montanha indicada por Jesus (Mateus 28,16), é ainda Jesus que toma a dianteira e se aproxima deles e de nós (Mateus 28,18). É sempre d’Ele a iniciativa. A montanha lembra e reúne em analepse todas as montanhas que atravessam o Evangelho de Mateus: a montanha da tentação (Mateus 4,8), a das bem-aventuranças (Mateus 5,1), a da oração (Mateus 14,23), a das curas (Mateus 15,29) e a da Transfiguração (Mateus 17,1), em que é sempre Ele que abraça e abre caminhos à nossa frágil humanidade.
Aquele «Indo (poreuthéntes), fazei discípulos (mathêteúsate) de todas as nações» (Mateus 28,19) é a missão sem fim que é colocada diante dos nossos olhos, pois todas as nações são todos os corações. E «Ir» é não ficar aqui ou ali à espera. É a estrada sem medida de Abraão que se abre à nossa frente. E se medida tem é a medida sem medida da eleição, da bênção e da missão. Mas não estamos sozinhos nessa estrada. Ele está connosco todos os dias. O seu nome, a sua identidade, é estar connosco. É assim a terminar o Evangelho: «Eu convosco sou todos os dias até ao fim dos tempos» (Mateus 28,20). Note-se a intensidade e a beleza da sanduíche: «Eu convosco sou» (Egô meth’ hymôn eimi). É assim a abrir o Evangelho: «Eis que a Virgem conceberá e dará à luz um Filho, e chamá-lo-ão Emanuel, que se traduz: “Deus connosco”» (Mateus 1,23). Então é assim todo o Evangelho, como indica a figura da inclusão literária. Mas a inclusão literária em paralelismo ou em confronto vai ainda da Galileia (Mateus 4,12-17) à Galileia (Mateus 28,16), da visão (Mateus 2,11) à visão (Mateus 28,17), da adoração (Mateus 2,11; 4,9) à adoração (Mateus 28,17), do poder dado (Mateus 4,9) ao poder dado (Mateus 28,18).
E aquele «ensinando» (didáskontes) discipular, e não magistral, apela mais à nossa fidelidade do que à nossa autoridade e criatividade. De resto, para evitar dúvidas e deixar tudo claro, lá está bem expresso o conteúdo deste ensinamento novo: «tudo o que Eu vos mandei» (Mateus 28,20). É só permanecendo Discípulos fiéis que se pode ensinar. Discípulo define o estilo de vida de quem segue com fidelidade o Senhor que nos preside e nos precede sempre.
D. António Couto
ANEXOS:
Cinquenta dias depois da Páscoa os Apóstolos continuam fechados com medo. Não estão em isolamento social recomendado pelas autoridades sanitárias, mas como discípulos de Jesus de Nazaré que foi crucificado estão recolhidos em casa e, com certeza, começam a pensar o que farão para vencer o temor e avançar para o desconfinamento. Contudo, algo de surpreendente e inesperado acontece. No lugar onde se encontravam «fez-se ouvir, vindo do Céu, um rumor semelhante a forte rajada de vento, que encheu toda a casa onde se encontravam».
Este grupo que estava fechado, amedrontado e barricado em casa, subitamente encontra a audácia para enfrentar a multidão e corajosamente sai para a rua, proclamando as maravilhas de Deus nas mais variadas línguas, conforme o Espírito lhes inspirava. Estes homens não estavam habituados a fazer discursos nem eram profissionais da palavra. São homens simples que não apoiavam os seus discursos na eloquência humana mas em qualquer coisa de novo e diferente que os fazia anunciar de modo apaixonado e desassombrado as maravilhas de Deus. É o Espírito Santo, o Paráclito que o Mestre prometera e que agora desce sobre eles para os enviar em missão. Cheios do Espírito Santo, o medo deu lugar à coragem e o silêncio e o recolhimento deram lugar à proclamação da Palavra na praça pública.
A primeira leitura situa estes acontecimentos no dia de Pentecostes, isto é, cinquenta dias após a Páscoa. Por seu lado, a narrativa evangélica situa a descida do Espírito Santo «na tarde daquele dia, o primeiro da semana», isto é, no dia de Páscoa. Na verdade, a aparente contradição na descrição temporal destes acontecimentos permite-nos unir a Páscoa e o Pentecostes, recordando que o Espírito Santo é dom de Jesus Ressuscitado à Sua Igreja para que iluminados e guiados pelo Seu Espírito possam continuar no tempo e na história a Sua obra redentora.
«Recebei o Espírito Santo». O Espírito Santo é dom gratuito do amor de Deus que nos faz participar na Sua obra de amor. Deste modo, o Espírito Santo é um dom a invocar e a agradecer. Mas juntamente com o Seu Espírito, o Ressuscitado concede também a Sua paz e envia os discípulos em missão para que sejam anunciadores da Boa Nova da Paz e da reconciliação. Jesus une à missão que o Pai lhe confiou a missão de cada um de nós: «Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
Somos enviados tal como o Pai enviou o Seu Filho muito amado e unimo-nos assim à missão de Jesus para que o rosto de misericórdia e perdão do Pai continue a brilhar no mundo. Jesus envia os discípulos mostrando-lhes as mãos e o lado e confiando-lhes a missão de perdoar os pecados. Perdoar é dar através das feridas recebidas, é fazer do mal sofrido uma oportunidade para o amor e a reconciliação, é criar paz com uma superabundância de amor que vence o ódio e a violência sofridos.
Unido ao Espírito Santo, o perdão é um acontecimento muito mais escatológico do que ético porque nos faz participar no aqui e agora do tempo e da história da comunhão e da paz que se viverá em plenitude no céu. Vinde Espírito Santo! Vinde e rasgai horizontes de esperançam e tornai-nos anunciadores da nova civilização do amor para que o mundo possa ser esse lugar que Deus sonhou para nós. In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 2,1-11
«Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que se exprimissem».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 103 (104)
Enviai, Senhor, o vosso Espírito e renovai a face da terra.
LEITURA II – 1 Cor 12,3b-7.12-13
«Assim como o corpo é um só e tem muitos membros, e todos os membros, apesar de numerosos, constituem um só corpo, assim também sucede com Cristo».
EVANGELHO – Jo 20,19-23
«A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
«Recebei o Espírito Santo: àqueles a quem perdoardes os pecados ser-lhes-ão perdoados; e àqueles a quem os retiverdes ser-lhes-ão retidos».
Para os leitores:
A primeira leitura além de extensa possui palavras inusuais e de difícil pronunciação quando refere os diversos lugares de proveniência dos judeus residentes em Jerusalém: «Partos» deve ler-se «Pártos»; «medos» deve ler-se «médus»; «elamitas» deve ler-se «elamítas». As restantes devem seguir a acentuação colocada no texto.
A segunda leitura possui diversos pormenores a ter em atenção: a dualidade das frases introduzidas pelas expressões «Há diversidade» ou «há diversas»; a frase que possui as conjunções «assim». Nestas frases, as expressões e conjunções devem ser proclamadas de modo a explorar toda a expressividade do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar o Evangelho:
O ESPÍRITO SANTO E NÓS
O Evangelho da Solenidade deste Dia Grande de Pentecostes (João 20,19-23) mostra-nos os discípulos de Jesus fechados num certo lugar, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter ou impedir, nem as portas fechadas daquele lugar fechado, Vem e fica de pé no MEIO deles, o lugar da Presidência, e por duas vezes os saúda: «A paz convosco!». Mostra-lhes, não o rosto, mas as mãos e o lado, bilhete de identidade de Jesus, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, Vida dada por amor, para sempre e para todos, e vincula os seus discípulos à sua missão de dar a vida por amor: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): a sua missão começou e continua. Não terminou nem termina. Ele continua em missão. A nossa missão está no presente. O presente da nossa missão aparece, portanto, vinculado e agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). «Como o Pai me enviou, também Eu vos mando ir». Este como define o estilo da nossa missão de acordo com o estilo e a missão de Jesus. É-nos dito ainda que os discípulos ficaram cheios de alegria (o medo foi dissipado) ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo, também eles vêm com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão, Jubileu Divino do Espírito. Este sopro, este alento, só aparece neste lugar em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (naphah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.
O texto luminoso do Livro dos Atos dos Apóstolos 2,1-11 mostra-nos todos reunidos no Cenáculo e varridos ou recriados pelo vento impetuoso do Espírito, que varre as teias de aranha que ainda nos tolhem, e pelo seu fogo que nos purifica. O Espírito senta-se (kathízô) – bela e significativa expressão! – sobre nós, novo Mestre que orienta e guia a nossa vida. Verificação: eis-nos a falar outras línguas, dádiva do Espírito! Milagre: cessam incompreensões, divisões, invejas, ciúmes, ódios e indiferenças, e nasce um mundo novo de comunhão e comunicação plenas, pois todos nos entendemos tão bem como se se tratasse da nossa língua materna, da palavra antes das palavras, divina e humana lalação. Chame-se-lhe confiança, intimidade, ternura, amor. Impõe-se, nesta bela comunidade, uma atitude de vigilância permanente, pois será sempre grande a tentação de querer levar o Espírito à letra! E aí está a advertência vinda dos Coríntios, cujo falar em línguas ninguém entende (1 Coríntios 14,2), sendo preciso o recurso a intérpretes (1 Coríntios 14,28). Todos consideraríamos um absurdo a existência de um intérprete entre a mãe e o seu bebé para traduzir aquela lalação que os dois tão bem entendem!
É esta divina lalação (alálêtos) (Romanos 8,26) – única vez no Novo Testamento –, do Espírito que nos ensina a compreender que «Jesus é Senhor» (1 Coríntios 12,3) e que Deus é Pai (ʼAbbaʼ) (Gálatas 4,6; Romanos 8,15). Anote-se também a importante afirmação de que «a cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum» (1 Coríntios 12,7) e «não para proveito próprio» (1 Coríntios 10,33), sendo que o que define o proveito comum é a edificação, não de si mesmo, mas dos outros (1 Coríntios 10,23-24).
A tradição situa no Cenáculo as duas cenas acima descritas. É a sala da Ceia Primeira, do último serão de Jesus com os seus discípulos, da Aparição do Senhor aos seus Apóstolos, da eleição de Matias, da descida do Espírito Santo no Pentecostes, enfim, o primeiro lugar de encontro da primeira comunidade cristã reunida em oração com Maria (Atos 1,13-14), a primeira sede da Igreja nascente, a mãe de todas as Igrejas, a primeira domus-ecclesia [«casa-igreja»] do mundo, situada uns duzentos metros a sul da muralha de Jerusalém, em local muito próximo da Porta de Sião. O atual edifício remonta ao trabalho dos Padres Franciscanos no século XIV, e sucedeu a outras construções sucessivamente edificadas e destruídas, desde a basílica de Santa Sião [Hagía Sion], do século IV. Sintomaticamente, por se encontrar no quarteirão sul de Jerusalém, o primitivo Cenáculo resistiu à destruição romana da guerra de 70, pois os romanos atacaram e destruíram a cidade a partir da parte norte, mais facilmente expugnável.
Associada às cenas acima identificadas, a sala superior do Cenáculo [15,30 metros por 9,40 metros] assemelha-se ao Sinai com os fenómenos então lá registados. Veja-se, a propósito, a bela descrição que deles faz Fílon de Alexandria (± 20 a.C.-50 d.C.): «Deus não tinha boca ou língua, mas, com um prodígio, fez que um rombo se produzisse no ar, que um sopro se articulasse em palavras pondo o ar em movimento. Este transformou-se em fogo que tinha forma de chamas […], e uma voz ressoava do meio no fogo e descia do céu, e esta voz articulava-se no idioma próprio dos ouvintes». Mas também Babel é evocada em contraponto: em Génesis 11,7, «ninguém compreendia mais a língua do seu próximo», mas em Atos 2,6, «cada um compreendia na sua própria língua materna».
O Espírito Santo é também enviado em missão. E é Aquele que recebe o que é do Filho (João 16,14 e 15), e que o Filho recebeu do Pai. O Filho é a transparência do Pai. O Espírito Santo é a transparência do Filho. O ensinamento do Espírito Santo é o mesmo que Jesus fez e que recebeu do Pai, mas vem depois do de Jesus (João 14,26), e processa-se, ao contrário do de Jesus, não com palavras sensíveis que tocam os órgãos da audição de um público determinado, mas na interioridade da inteligência e do coração de cada ser humano. Este ensinamento interior do Espírito Santo é comparado à unção de óleo (chrísma) que penetra lentamente, como diz o Apóstolo: «Vós recebestes a unção (chrísma) que vem do Santo e todos sabeis (oídate)» (1 João 2,20); ou então: «a unção (chrísma) dele vos ensina (didáskei) acerca de todas as coisas» (1 João 2,27). É a unção que lentamente penetra em nós, ocupa o nosso interior, suaviza as nossas asperezas, cura as nossas dores e faz nascer entre nós comunidade e comunhão. Maravilhoso saber que nos assemelha a Deus, que sabe de nós (Êxodo 2,25), e nos põe em confronto com Caim, que não sabe do seu irmão (Génesis 4,9), e com Pedro, que não sabe de Jesus (Mateus 26,70.72.74).
Ensinamento novo. Não exterior, com sons e palavras, mas diretamente nas pregas da inteligência e do coração. É assim que a linguagem nova do Espírito afeta ao mesmo tempo o português e o chinês, o inglês e o russo, o católico, o muçulmano e o hebreu. É como quando, em vez de se porem a falar cada um a sua língua incompreensível para o outro, o português e o chinês entregassem uma flor um ao outro! É assim que fala o Espírito, é assim que age o Espírito, Pessoa-Dom, fonte de dons (1 Coríntios 12,3-13).
Escrevendo aos Romanos (8,9-13) e a nós, S. Paulo adverte-nos que não é «na carne» (en sarkí), mas «no Espírito» (en pneúmati), que devemos viver. E ele insiste em dizer como é importante Cristo estar «em vós» (en hymîn), e o Espírito, Aquele que ressuscitou Jesus dos mortos, habitar (oikéô) «em vós» (en hymîn). A carne tem a ver com o currículo, o status, a importância, a ganância… Para nossa instrução e mapa de vida, podemos sempre socorrer-nos do vasto elenco, sempre atualizado, das «obras da carne», que S. Paulo faz na Carta aos Gálatas: «São manifestas as obras da carne, que são: fornicação, impureza, devassidão, idolatria, magia, inimizades, rixa, ciúme, iras, ambições, dissensões, divisões, invejas, bebedeiras, orgias, e coisas semelhantes a estas, sobre as quais vos previno, como já preveni, que os que tais coisas fizerem não herdarão o Reino de Deus» (Gálatas 5,19-21). E podemos também ver o confronto que ele faz com os «frutos do Espírito», que são: «amor, alegria, paz, paciência, benevolência, bondade, fidelidade, mansidão, autodomínio» (Gálatas 5,22-23).
D. António Couto
ANEXOS:
O Salmo deste Domingo convida-nos a entoar cheios de alegria «Ergue-Se Deus, o Senhor, em júbilo e ao som da trombeta». Parece paradoxal rejubilar e exultar porque vemos o Senhor partir. Contudo, bem sabemos que a ascensão do Senhor não é uma fuga nem um abandono porque os homens e mulheres não acolheram a Sua mensagem. A ascensão do Senhor atesta a verdade da Ressurreição e faz-nos compreender que Jesus vive agora na glória do Pai, revelando assim o sentido pleno da Páscoa como entrada no Reino dos Céus e como participação da vida nova e eterna que só Jesus e o Seu amor nos podem oferecer.
A Ascensão do Senhor recorda-nos, em primeiro lugar, a meta da nossa existência, tal como rezamos na oração colecta: «a ascensão de Cristo, vosso Filho, é a nossa esperança: tendo-nos precedido na glória como nossa Cabeça, para aí nos chama como membros do seu Corpo». A Ascensão de Cristo recorda que cada homem e cada mulher são chamados a peregrinar sobre a terra mas de olhos fitos no céu onde reside a meta das suas vidas. Somos peregrinos a caminho do céu, percorrendo com alegria, coragem e radicalidade a estrada da santidade.
Celebrar esta solenidade não nos pode deixar apenas de olhos fitos no Céu, pasmados, a olhar esse Jesus que subiu aos Céus: «Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu?». De olhar fito no Céu e com os pés bem assentes no caminho que o Senhor nos chama a percorrer. Cristo parte para o Céu, mas permanece muito vivo e actuante na história pela força do Seu Espírito e convoca-nos para a missão, recomendando a cada um de nós que sejamos continuadores da Sua obra de amor: «Ide por todo o mundo».
Celebrar a Ascensão do Senhor é tomar verdadeiramente consciência da nossa missão de cristãos: «sereis minhas testemunhas em Jerusalém e em toda a Judeia e na Samaria e até aos confins da terra». Uma testemunha, tal como indica o dicionário da língua portuguesa, é uma «pessoa que presenciou ou ouviu algum fato ou dito e que dele pode dar pormenores». Ser testemunha significa ser portador da alegria da ressurreição pela experiência pessoal, íntima e decisiva de encontro com Jesus Cristo, apresentando os pormenores, isto é, narrando com a vida, em gestos concretos de amor e misericórdia, a ternura e a bondade de Deus.
Subindo ao Céu, Jesus recorda os Seus discípulos que eles terão de ser os continuadores da Sua obra redentora, que no mundo eles serão os braços que continuarão a abraçar como Jesus, que eles serão os pés que percorrerão com os homens as estradas da história, que eles serão os lábios portadores do Evangelho do amor, que eles serão presença e companhia junto de quantos estão sós e abandonados.
Por isso, dizia Jesus: «Eis os milagres que acompanharão os que acreditarem: expulsarão os demónios em meu nome; falarão novas línguas; se pegarem em serpentes ou beberem veneno, não sofrerão nenhum mal; e quando impuserem as mãos sobre os doentes, eles ficarão curados». Ainda que pareçam excessivas estas palavras são para nós: sempre que afastamos o mal da nossa vida e da vida daqueles que nos rodeiam estamos a expulsar os demónios que nos dividem e separam; sempre que com os nossos gestos e palavras anunciamos o amor, estamos a pronunciar com os nossos lábios e com a nossa vida a nova linguagem que Jesus nos veio ensinar; sempre que abraçamos as dificuldades e os desafios com coragem e ousadia, estamos a pegar em serpentes e beber veneno e a ser capazes de resistir com a força do Espírito Santo; sempre que visitamos os doentes e os reconfortamos com as nossas palavras e a nossa presença estamos a impor as mãos e a curar.
«Eles partiram a pregar por toda a parte e o Senhor cooperava com eles, confirmando a sua palavra com os milagres que a acompanhavam». Foi assim com os discípulos; há-de ser assim connosco sempre que formos capazes de disponibilizar o nosso coração para o acontecer de Deus. In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 1,1-11
«Homens da Galileia, porque estais a olhar para o Céu? Esse Jesus, que do meio de vós foi elevado para o Céu, virá do mesmo modo que O vistes ir para o Céu».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)
Refrão: Ergue-Se Deus, o Senhor, em júbilo e ao som da trombeta.
LEITURA II – Ef 1,17-23
«O Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos conceda um espírito de sabedoria e de revelação para O conhecerdes plenamente».
EVANGELHO – Mc 16,15-20
«Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda a criatura».
«O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao Céu e sentou-Se à direita de Deus».
Para os leitores:
Na primeira leitura, deve haver um especial cuidado nas frases mais longas e com diversas orações, tendo atenção às diversas pausa e respirações. No início da leitura, deve haver cuidado na pronunciação do vocativo «ó Teófilo». Na proclamação de um vocativo, não se deve empregar a mesma duração na pausa das vírgulas. A primeira deve ser praticamente omitida para que se faça a pausa na segunda de modo a não parecer existir uma interrupção no texto. Além disso, deve haver especial atenção com as frases em discurso directo e a sua articulação com todo o texto.
Na segunda leitura, insistimos na extensão das frases o que exige uma leitura pausada e articulada do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho:
COM OS OLHOS DO CORAÇÃO ILUMINADOS
Na Solenidade da Ascensão do Senhor, dada a riqueza e a delicadeza da filigrana do texto do Evangelho de Marcos 16,15-20, que constitui a sua conclusão, e que vamos ter a graça de escutar, parece-me importante começar por colocar o texto diante dos nossos olhos, começando com o v. 14:
«Em último lugar fez-se ver aos Onze, enquanto estavam à mesa, e reprovou a sua incredulidade e dureza de coração, porque não acreditaram naqueles que o tinham visto ressuscitado. E disse-lhes: “Indo por todo o mundo, anunciai o Evangelho a toda a criatura”. Quem acreditar e for batizado, será salvo, mas quem não acreditar, será condenado. São estes os sinais que acompanharão os que acreditarem: no meu nome, expulsarão demónios, falarão línguas novas, e, se pegarem em cobras nas mãos e beberem veneno mortal, não lhes fará mal; imporão as mãos aos doentes, e ficarão bem. O Senhor Jesus, depois de ter falado com eles, foi elevado ao céu, e sentou-se à direita de Deus. Eles, então, tendo saído, anunciaram o Evangelho por toda a parte, enquanto o Senhor cooperava e confirmava a Palavra com os sinais que a acompanhavam» (Marcos 16,14-20).
Trata-se da última página do Evangelho de Marcos, certamente tardia, talvez do séc. II, mas grandiosa e imponente, e cheia de referências significativas para a vida cristã de qualquer tempo e lugar. Esta página fecha o Evangelho de Marcos, condensa-o e encerra-o numa grande inclusão literária e teológica através dos termos «anunciar», «acreditar» e «Evangelho», usados a abrir o Evangelho (1,14-15) e a fechar o Evangelho (16,15-16). Mas o anúncio do Evangelho a toda a criatura (16,15) reclama também o início da inteira Escritura, a página da Criação, com o ser humano a receber de Deus o mandato de dominar a criação inteira (Génesis 1,26 e 28). É ainda nesse sentido de inclusão literária e teológica com a Criação, que as cobras, uma das quais dominou então o ser humano (Génesis 3,1-5), são agora dominadas (16,18), do mesmo modo que é o bem (kalôs), em vez da cura, que agora se estabelece sobre os doentes (16,18). É outra vez o eco intertextual da Criação, onde, no texto grego dos LXX, o bem, bom e belo (kalós) impregna por completo a Criação inteira, atravessando-a por oito vezes (Génesis 1,4.8.10.12.18.21.25.31 LXX). No texto hebraico, é por sete vezes que soa esta nota com o termo tôb, que passa o mesmo significado de bem, bom e belo (Génesis 1,4.10.12.18.21.25.31).
«O Senhor Jesus» (ho Kýrios Iêsoûs) (16,19), única menção em todos os Evangelhos, enche a cena, quer para recriminar a nossa incredulidade e dureza de coração (16,14), quer para continuar a manifestar a sua confiança em nós, dado que, não obstante a nossa incredulidade, e, talvez por isso mesmo, insiste em enviar-nos e acompanhar-nos na missão «total» do Evangelho que agora nos confia (16,15 e 20). Cai aqui por terra uma certa retórica de santidade, que falsamente defende que só os santos são idóneos para a missão de anunciar o Evangelho! E ganham espaço os que fracassaram, como os Onze e nós com eles e como eles, que anunciam a Ressurreição de Jesus, que continua vivo e atuante no meio de nós, e a prova somos nós, pois Ele mudou a nossa vida de fracassados e desistentes para testemunhas fiéis e transparentes! E esta mudança operada em nós tem de fazer parte do relato que fazemos do Evangelho.
Cinco temas enchem a página, o pátio, o átrio sempre entreaberto do Evangelho: 1) a autoridade soberana e nova de Jesus assente, não na distância e tirania, mas na proximidade e familiaridade; 2) a missão total a nós confiada; 3) o mundo novo e bom, sadio e otimizado que brota da prática do Evangelho; 4) o envolvimento de todos; 5) a Presença nova e sempre ativa e comprometida do Ressuscitado connosco.
4.1. A soberania nova, próxima e familiar de Jesus fica registada no facto de toda a operação ser realizada no «nome de Jesus» (16,17), mediante envio seu (16,15), com a sua Presença cooperante (synergéô) (16,20) e confirmante (bebaióô) (16,20), o mesmo verbo da Confirmação sacramental (bebaíôsis). Etimologicamente, deriva do verbo baínô, que significa «caminhar», e supõe terreno firme e sólido (bébaios) sobre o qual se pode caminhar com destreza e segurança. É esta destreza e solidez que a Confirmação confere aos confirmados. Sem esquecer nunca que firmeza e solidez, em chão bíblico, remetem sempre para fidelidade e confiança no domínio interpessoal. A não esquecer também, neste contexto, que só um verdadeiro soberano confia a sua história e a sua missão a gente como nós, que só deu até agora sinais de fraqueza e de pouca ou nula fiabilidade. Um grande tema bíblico desde a Criação: a omnipotência de Deus como que limitada pela nossa liberdade, concedendo-nos aqui a imensa dignidade de partilhar connosco a sua autoridade, deixando também nas nossas mãos a capacidade de fazer surgir um mundo novo, cheio de bem, de bondade e de beleza.
4.2. A missão total a nós confiada, que deve envolver «todos, tudo e sempre» (Bento XVI, Mensagem para o 85.º Dia Missionário Mundial 2011), é retratada com tinta excecional em Marcos, ao usar as expressões «indo por todo o mundo» (16,15), «anunciai o Evangelho a toda a criatura» (16,15), e «tendo saído, anunciaram por toda a parte» (16,20). É a missão total, e não por etapas. Jesus não recomenda: «a começar pela rua tal, ou pela cidade tal…». Portanto, esta missão total também não é para levar a cabo ao sabor das emergências (ver a decisão de Jesus em Marcos 1,38-39; Lucas 4,42-43). A ventania do Pentecostes ou o vento suavíssimo do Espírito deve levar alento a toda a criatura, da mesma forma que a semente do Evangelho é para ser lançada por toda a parte, em todo o tipo de terreno, como na parábola do semeador, sem qualquer estudo prévio de rentabilidade.
4.3. Mundo novo e bom, salvo, sadio e saudável, otimizado, sem forças demoníacas e sem ponta de veneno. Esta ligação e eco intertextual das narrativas da Criação faz ver a missão como nova criação, em que o homem, finalmente transparência do Deus criador e senhor, sem raivas nem ódios, ciúmes e violências, «domina» a terra e os animais, isto é, estabelece a mansidão, a doçura da palavra e a harmonia sobre a terra (Génesis 1,26-31). Até a cobra perde a astúcia e o veneno mortal que ostenta em Génesis 3,1-5, e mostra-se mansa e sujeita ao domínio das mãos do homem. À luz da missão salutar e salvadora, nenhuma criatura é portadora de veneno (cf. Sabedoria 1,14), e a doença é vencida pela bênção que sai das mãos e do coração do missionário, outra vez à imagem de Deus, que enche este mundo de bem (kalôs LXX) (16,18), que é uma nota que atravessa o texto da Criação, vincando ainda mais a inclusão literária e teológica já atrás acenada. Note-se que, em vez da presença do bem, em situação de doença, seria de esperar, não o advérbio bem (kalôs), mas o verbo curar, que se usa habitualmente em situações idênticas, dito com o verbo therapeúô (cf. Mateus 4,24; 8,16; 10,1.8; Marcos 1,34; 3,10; 6,13; Lucas 4,40; 6,18b; 9,1.6) ou iáomai (Marcos 5,29; Lucas 6,18a.19; 9,2). De notar que a nossa Eucaristia, que é com certeza a mais alta forma de oração, catequese e evangelização, assenta as suas raízes mais fundas na bênção e em bendizer, sendo a sua expressão mais antiga «O cálice da bênção que bendizemos» (1 Coríntios 10,16). Celebrar a Eucaristia é, pois, sempre um grande exercício de «bendizer», isto é, de dizer bem, e não mal, e implica mudar a nossa vida toda da clave do mal para a clave do bem. O mal divide. O bem une. Levar uma comunidade a celebrar a Eucaristia é sempre transmitir aos seus membros uma nova cultura. Não de maledicência, mas de aprendermos a pensar, querer, ver, falar e fazer bem, belo e bom, que é a fonte da comunhão.
4.4. Nós já sabemos, são muitos os documentos a dizê-lo, que esta missão do anúncio do Evangelho de Jesus compete a todos. É por natureza que a Igreja é missionária, diz-nos o Decreto Conciliar Ad gentes, n.º 2, e «evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua identidade mais profunda», insiste Paulo VI, na feliz Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14. Por isso, «a pregação do Evangelho não é para a Igreja um contributo facultativo, mas um dever que lhe incumbe» (Paulo VI, Evangelii nuntiandi, n.º 5; Bento XVI, Mensagem para o Dia Missionário Mundial, 2012). É a maneira de ser da Igreja, e é a nossa maneira de ser, dado que é a sua e a nossa identidade, vocação e graça. Mas de entre todos os Evangelhos, só esta página seleta de Marcos diz expressamente que os belos e maravilhosos «sinais» que acompanham o anúncio do Evangelho são realizados por todos os que acreditam (Marcos 16,17-18). Esta extraordinária «democratização» das maravilhas operadas por Deus por intermédio de todos os que acreditam serve para datar este texto do século II. No século I, estes prodígios estavam confinados aos Apóstolos, e, a partir do século III, será o clero o seu proprietário. Magnífico texto este, que põe todo o povo de Deus a realizar maravilhas! Portanto, queridos irmãos e irmãs, sede o que sois, sempre e em toda a parte, e não deixeis por mãos e corações alheios, as maravilhas do Evangelho que Deus vos dá para vós realizardes! É este o combustível do «Evangelho da alegria», que Deus deposita largamente no coração de todos os seus filhos e filhas, para consolação nossa e de todos os nossos irmãos e irmãs.
4.5. Chegados aqui, à última página do Evangelho de Marcos, ainda podemos verificar dois gestos opostos e significativos. Jesus terminou o seu caminho, é elevado ao céu, e senta-se à direita de Deus (16,19), sinal de preeminência e de bênção. E os discípulos de Jesus, que têm agora o mundo inteiro pela frente, levantam-se, saem, e anunciam o Evangelho (16,20). «Sair», hebraico yatsa՚, é o verbo clássico do êxodo, mas é também, de forma muito significativa, o verbo do nascimento. «Sair de si» é um dos dinamismos mais poderosos do Evangelho, que o Papa Francisco lembrou e pediu à Igreja (Evangelii gaudium [2013], n.os 20.23.27.97.259.261. A Evangelização, que implica este dinamismo, continua a ser a tarefa central e sempre nova dos discípulos de Jesus de todos os tempos. «A Igreja existe para evangelizar» (Evangelii nuntiandi [1975], n.º 14). Fica ainda claro que a Ascensão de Jesus não o retira do nosso convívio, pois Ele continua connosco, cooperando e confirmando a missão da Evangelização que nos confiou.
O Livro dos Atos dos Apóstolos retoma esta lição. «E estas coisas tendo dito, vendo (blépô) eles, ELE foi Elevado (epêrthê), e uma nuvem O subtraiu (hypolambáno) dos olhos deles (apò tôn ophthalmôn autôn). E como tinham o olhar fixo (atenízontes) no céu para onde ELE ia, eis (idoú) dois homens que estavam ao lado deles, em vestes brancas, e DISSERAM: “Homens Galileus, por que estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu”» (Atos 1,9-11).
Tanto VER. Da panóplia de verbos registados (blépô, atenízô, horáô, emblépô, theáomai), os mais fortes e intensos são, com certeza, atenízô [= «olhar fixamente»] e emblépô [= «perscrutar», «ver dentro»]. Ambos exprimem a observação profunda e prolongada, para além das aparências: VER o invisível (cf. Hebreus 11,27), VER o céu, VER a glória de Deus. Mas mais ainda do que o que se vê, estes verbos acentuam o modo como se vê. É para aí que apontam os dois homens vestidos de branco, de rompante surgidos na cena, para entregar um importante DIZER que interpreta e orienta tanto VER. Já os tínhamos encontrado no túmulo reorientando os olhos entristecidos das mulheres: «Por que (tí) procurais entre os mortos Aquele que está Vivo? Não está aqui. Ressuscitou!» (Lucas 24,5-6). Dizem agora: «Por que (tí) estais de pé, perscrutando (emblépontes) o céu? Este JESUS que foi arrebatado (analêmphtheís) diante de vós para o céu, assim VIRÁ (eleúsetai) do modo (trópos) que O vistes (etheásthe) IR para o céu» (Atos 1,11). Ao Arrebatamento de JESUS para o céu, os dois homens vestidos de branco agrafam a Vinda de JESUS. Importante colagem da Ascensão com a Vinda. E importante passo em frente para quem estava ali simplesmente especado. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Sim, Ver. Porque ELE Virá do mesmo modo que O Vistes IR. É, pois, importante guardar este Ver, viver este Ver, Ver com este Ver. Porque é Vendo assim que o SENHOR Virá. Vinda que não tem de ser relegada para uma Parusia distante e espetacular, mas que começa, hic et nunc, neste Olhar novo e significativo de quem Vê o SENHOR JESUS. Vinda que não é tanto um regresso, mas o desvelamento de uma presença permanente. Vinda já em curso, portanto, ainda que não plenamente realizada.
Verificação. Eis-nos no primeiro ATO propriamente dito dos Atos dos Apóstolos depois do Pentecostes: a cura de um coxo de nascença, descrita em Atos 3,1-10: «Então Pedro e João subiam ao Templo para a oração da hora nona [= 15h00]. E um certo homem, que era coxo (chôlós) desde o ventre da sua mãe, era trazido e posto todos os dias diante da Porta do Templo, dita a Bela, para pedir esmola àqueles que entravam no Templo. Vendo (idôn) Pedro e João, que estavam a entrar no Templo, pedia esmola para receber. Então, fixando o olhar (atenísas) nele, Pedro, com João, disse: “Olha para nós” (blépson eis hemâs). Então ele observava-os (epeîchen), esperando receber deles alguma coisa. Disse então Pedro: “Prata e ouro não tenho, mas o que tenho, isso te dou: no nome de JESUS CRISTO, o Nazareno, [levanta-te e] caminha. E, tomando-o pela mão direita, levantou-o. Imediatamente se firmaram os seus pés e os calcanhares. Com um salto, pôs-se em pé, e caminhava, e entrou com eles no Templo caminhando e saltando e louvando a Deus. E todo o povo o viu (eîden) a caminhar e a louvar a Deus. E reconheciam que era aquele que, sentado, pedia esmola à Porta Bela do Templo, e ficaram cheios de admiração e de assombro por aquilo que lhe aconteceu» (Atos 3,1-10).
Como se vê, há também um impressionante condensado de olhares a marcar este primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos. Soam no texto cinco notas visuais, servidas por quatro verbos: horáô, atenízô, blépô, epéchô.
Atenízô desenha o Olhar de Pedro e João fixado no coxo de nascença.
Blépô retrata o Ver com que o coxo é mandado olhar o Olhar dos Apóstolos. Significativo agrafo: estes dois Olhares, com atenízô e blépô, só tinham sido usados antes, no Livro dos Atos dos Apóstolos, uma única vez, precisamente no relato da Ascensão (Atos 1,9-10). De resto, blépô conhecerá apenas mais quatro menções no Livro dos Atos dos Apóstolos: duas no relato da vocação de Paulo (Atos 9,8-9), a terceira no discurso de Paulo na sinagoga de Antioquia da Pisídia (Atos 13,41; cit. de Habacuc 1,5), e a quarta e última no decurso da viagem marítima de Paulo para Roma (Atos 27,12). Atenízô, por sua vez, far-se-á notar em lugares de relevo, sempre para expressar um Ver novo e significativo, um Ver sem haver: os membros do Sinédrio fixam os olhos (atenízô) em Estêvão, e veem-no semelhante a um anjo (Atos 6,15); Estêvão, por sua vez, fixa os olhos (atenízô) no céu, e vê a glória de Deus e JESUS, de pé, à direita de Deus (Atos 7,55); Cornélio fixa os olhos (atenízô) no anjo do Senhor, que o interpela (Atos 10,4); Pedro fixa os olhos (atenízô) na visão, vinda do céu, dos animais impuros (Atos 11,6); Paulo fixa os olhos (atenízô) no mago Elimas, de Chipre, para o fulminar pela sua falsidade e malícia (Atos 13,9), e o mesmo faz no Sinédrio, dando testemunho de JESUS (Atos 23,1).
É este Ver JESUS, Ver sem haver, sem poder, sem ouro nem prata (Atos 3,6), que se fixa sobre o coxo de nascença, mandado, por sua vez, olhar para este Olhar, Ver desta maneira. Como Abraão e Moisés, convidados a Ver para receber, e não para haver, a Terra Prometida: «a terra que Eu te farei Ver» (Génesis 12,1), «que YHWH lhe fez Ver» (Deuteronómio 34,1), «Eu a fiz Ver aos teus olhos» (Deuteronómio 34,4). O narrador anota mais à frente que o coxo de nascença, agora curado, tinha mais de 40 anos (Atos 4,22), tipologia do povo perdido no deserto antes de entrar na Terra Prometida. Como o homem doente havia 38 anos, que Jesus encontra junto da piscina de Bezetha, e que será curado (João 5,1-9).
É sintomático que o Ver da Ascensão e da Vinda do SENHOR JESUS seja o Ver que preenche por inteiro o primeiro ATO dos Atos dos Apóstolos, com realce para Pedro. Mas é ainda grandemente sintomático que o primeiro ATO de Paulo, descrito em Atos 14,8-10, que é também o primeiro passo da missão perante o paganismo popular, em Listra, quase copie o primeiro ATO dos Apóstolos e de Pedro, certamente com o intuito de pôr em paralelo os dois grandes Apóstolos e os dois tempos da missão. Eis o texto referido de Atos 14,8-10: «E em Listra um homem estava sentado, sem força nos pés, coxo desde o ventre da sua mãe, e que nunca tinha andado. Este ouviu falar Paulo, o qual, tendo fixado os olhos (atenísas) nele, e tendo visto que tinha fé para ser salvo, diz com voz forte: “Levanta-te direito sobre os teus pés!”. E ele deu um salto e caminhava» (Atos 14,8-10). Aqui temos o mesmo coxo de nascença, o mesmo Olhar significativo e diaconal, sem poder, sem ouro nem prata, Ver JESUS, o mesmo levantamento do coxo. E também aqui, na sequência do texto, temos o aceno à multidão que disperdia o olhar, vendo em Paulo e Barnabé deuses em forma humana, e a mesma correção, feita por Paulo, apontando JESUS (Atos 14,11-18).
Importante agrafo da Ascensão com a Vinda do Senhor. Tanto Ver. Não é mais possível Ver a Ascensão sem Ver a Vinda. Guardemos este Olhar cheio de Jesus e olhemos agora para esta terra árida e cinzenta, para tantos corações tristes e perdidos. Nascerá um mundo muito mais belo, novos corações pulsarão nas pessoas. Os olhos do coração iluminados, como diz o Apóstolo à comunidade-mãe da Ásia Menor, Éfeso (Efésios 1,18). Um Olhar cheio de Jesus faz Ver Jesus, faz Vir Jesus!
Ponhamos tudo isto em imagem, como convém neste Domingo em que a Igreja celebra o Dia das Comunicações Sociais, instituição que tem as suas raízes diretamente no Concílio Vaticano II (Decreto Inter Mirifica, n.º 18), e que foi celebrado pela primeira vez, com mensagem de Paulo VI, em 7 de maio de 1967. Eis então diante de nós, no cume do Monte das Oliveiras, um pequeno Templo, arredondado, chamado Imbomon [= «sobre o cume»], grecização do hebraico bamah [= «lugar alto»], a 818 metros de altitude, um pouco acima da Ecclesia in Eleona [= «no Olival»], que remonta a Santa Helena, hoje Pater Noster, e a curta distância de Jerusalém, a distância do caminho de um sábado (Atos 1,12), que é de 1892 metros. As construções cristãs do Imbomon remontam ao longínquo ano de 376, com reconstrução dos Cruzados em 1152, ocupadas depois, em 1187, pelos muçulmanos. A construção dos Cruzados, que respeitava a primitiva construção, tinha no centro um tambor encimado por uma cúpula aberta no centro, justamente para servir de suporte à imagem da Ascensão patente em Atos 1,9-11. Em 1200, os muçulmanos fecharam esse ponto de luz com uma cúpula de estilo árabe, escondendo assim a visão de Atos 1,11: «Porque estais aí a olhar para o céu?».
D. António Couto
ANEXOS:
O Evangelho que escutamos neste Domingo é a resposta acabada àquilo que é a essência do cristianismo: o amor superabundante de Deus, revelado em Jesus Cristo, torna-se norma do nosso agir, pois a nossa missão como discípulos encontra-se unida à vida de Jesus, como Jesus está unido ao Pai: «assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei». Deste modo, podemos afirmar que a liturgia da Palavra deste Domingo é uma janela aberta com vista direta para o coração de Deus, pois como afirma S. João: «Deus é amor». Esta é a imagem de marca de Deus, esta é a essência da vida de Deus e configura o Seu modo de agir no mundo.
O amor corre sempre o risco de ser uma palavra banal da qual se usa e abusa e os discursos construídos a partir dele facilmente se convertem em discursos bem intencionados mas inconsequentes. Aquele que se encontra com Jesus Ressuscitado, Rosto da misericórdia do Pai, faz a experiência de que o amor não é mera afeição nem um sentimento fugaz ou banal, mas uma experiência de encontro que me faz sentir profundamente amado e chamado a construir a nova civilização do amor.
A verdadeira experiência de amar não é auto-referencial nem egocêntrica, mas alarga os meus horizontes, abre os meus olhos e o meu coração para que todos aqueles que se cruzam comigo façam a experiência de ser profundamente amados por Deus.
Deus ama-nos com um amor unilateral e assimétrico, pois Ele revelou o Seu amor enviando o Seu Filho unigénito que se entregou todo e para sempre por cada um de nós: «ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida pelos amigos». Na verdade, na vida cristã o verbo amar conjuga-se com o verbo dar e de modo particular e radical na sua forma reflexa «dar-se». Em Jesus Cristo, Deus não nos dá algo exterior a si próprio, mas o Seu próprio Filho. Se existe um princípio económico que afirma que uma determinada coisa vale o que estamos dispostos a dar por ela, então nós somos profundamente valiosos aos olhos de Deus, pois Ele esteve disposto a entregar o Seu único filho para a salvação de todos.
Este amor infinito de Deus eleva a nossa condição de servos e converte a nossa vida num lugar de experiência da amizade profunda que Deus tem por cada um de nós: «já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor; mas chamo-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi a meu Pai». A nossa condição de fragilidade e pecado não tem mais a última palavra, porque Jesus Cristo, o Ressuscitado, nos faz Seus amigos e participantes da Sua vida divina. O amor que Deus derrama em nossos corações concede-nos a verdadeira alegria, que não se contenta com contentamentos fugazes, mas se abre à alegria verdadeira e completa que só o amor de Deus pode oferecer e garantir.
O amor de Deus revelado na vida de Jesus por meio de palavras e gestos intimamente ligados entre si (DV 2) deve manifestar-se também assim na vida de cada um de nós. Apesar dos nossos limites e fragilidades, somos convidados a seguir Jesus na escola da arte de amar. Escutando a Sua palavra, alimentados pelo Pão da Eucaristia e contemplando os Seus gestos cheios de ternura e bondade, somos chamados a construir uma nova humanidade que tem consciência que o amor não é mais uma coisa a fazer, mas o modo de fazer todas as coisas. In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 10,25-26.34-35.44-48
«Eu reconheço que Deus não faz aceção de pessoas, mas, em qualquer nação, aquele que O teme e pratica a justiça é-Lhe agradável».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)
Refrão: Diante dos povos manifestou Deus a salvação.
LEITURA II – 1 Jo 4,7-10
«Amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus».
EVANGELHO – Jo 15,9-17
«Assim como o Pai Me amou, também Eu vos amei. Permanecei no meu amor».
«Disse-vos estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja completa».
Para os leitores:
Na primeira leitura, devem ter em atenção as diversas intervenções em discurso direto. Sem dramatizar exageradamente devem respeitar a forma dialógica do texto.
A segunda leitura apesar de breve e sem palavras de maior exigência na sua pronunciação, requer um especial cuidado devido às frases curtas. É necessária uma boa articulação das diferentes frases para evitar uma leitura telegráfica
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
COMO EU VOS AMEI
Sendo o Evangelho deste Domingo VI da Páscoa (João 15,9-17) a continuação imediata do Evangelho do Domingo V (João 15,1-8), e porque a sua rede terminológica continua a ser finíssima, vamos começar também por observar atentamente a sua paisagem textual:
«Como me amou (agapáô) o Pai, também eu vos amei. Permanecei no meu amor (agápê). Se guardardes os meus mandamentos, permanecereis no meu amor, como eu guardei os mandamentos do meu Pai e permaneço no seu amor. Falei-vos (laléô) estas coisas, para que a minha alegria esteja em vós, e a vossa alegria seja plenificada (plêróô). É este o meu mandamento (entolê): que vos ameis uns aos outros como eu vos amei. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá (títhêmi) a sua vida pelos seus amigos (phíloi). Vós sois meus amigos, se fizerdes as coisas que eu vos mando (entéllomai). Não mais vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz o seu senhor, mas chamei-vos amigos, porque todas as coisas que ouvi do meu Pai vo-las dei a conhecer (gnôrízô). Não fostes vós que me escolhestes, mas fui eu que vos escolhi e vos constituí para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça, para que tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dê. Isto vos mando: que vos ameis uns aos outros» (João 15,9-17).
As notas mais vezes ouvidas nesta melodia são: «Amar/Amor» (9 vezes), «mandar/mandamento» (5 vezes), «Pai» (4 vezes), «permanecer» (4 vezes), «amigos» (3 vezes), «alegria» (2 vezes), «fruto» (2 vezes). Mas a raiz, o tronco e a seiva do texto, isto é, a sua verdadeira linha melódica, reside na rede exposta do amor: a fonte do amor é o Pai, que o comunica ao Filho, o qual, por sua vez, o comunica aos seus discípulos e amigos (João 15,9-10), para que estes o vivam e, por contágio, a outros o comuniquem, fazendo-o frutificar (João 15,16). O modo é sempre o mesmo e único: guardar os mandamentos. Jesus guarda os mandamentos do Pai (João 15,10), e entrega o seu mandamento aos seus discípulos fiéis: «Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei» (João 15,12; cf. 13,34), para que estes o guardem também (João 15,10,14).
Ainda se define claramente em que consiste este amor: amar assim é dar a própria vida (João 15,13). Este «dar» aparece no texto grego expresso com o verbo títhêmi, «pôr», «apostar» a vida. Tudo fica ainda mais claro, se lermos com atenção o grande dito de Jesus no contexto do Bom e Belo Pastor: «Por isto o Pai me ama: porque Eu ponho (títhêmi) a minha vida, para de novo a receber (lambánô). Ninguém ma retira (aírô) de mim; sou Eu que a ponho (títhêmi) por mim mesmo. Tenho autoridade de a pôr (títhêmi), e tenho autoridade de a receber (lambánô) de novo. Este foi o mandamento (entolê) que recebi (lambánô) do meu Pai» (João 10,17-18). Sem qualquer equívoco agora: amar é dar a própria vida. E este amor novo, que consiste em dar a própria vida, é tudo o que o Pai manda fazer.
É, portanto, tudo o que Jesus, o Filho, faz por nós. E nos manda fazer também, dado que nos manda amar como Ele nos amou (João 13,34; 15,12), nova e paradoxal, desmesurada medida do amor, que plenifica e subverte a antiga equação nivelada: «Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Levítico 19,18). Para tanto, dá-nos a conhecer, por graça, tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio, habilitando-nos assim a rezar ao Pai (João 15,16).
O Apóstolo reforça, na sua Primeira Carta (1 João 4,7-10), a insistência no horizonte novo do amor, repetindo que «quem ama, nasceu de Deus, e conhece-o (ginôskô) (1 João 4,7), ao contrário de quem não ama, que não conhece Deus (1 João 4,8). Se Deus é amor (1 João 4,8 e 16), e se «só o semelhante conhece o semelhante», é decisivo que este amor chegue até nós, para que, sendo feitos por amor semelhantes a Deus, possamos também conhecer Deus. E expõe de novo a rede do amor, desde a sua fonte, que é o Pai, que nos amou e enviou o seu Filho Unigénito para nos dar a vida mediante a oferta propiciatória (hilasmós) da sua vida pelos nossos pecados, que absorve e absolve (1 João 4,9-10).
Atenção, porém, que o amor de Deus não é um património restrito e limitado, um exclusivo só acessível a alguns privilegiados, mediante inscrições, quotas pagas, registos, determinadas raças ou grupos. Chega a todos aqueles que o acolhem. Também esses nascem de Deus. O amor é de Deus; não é sequer prerrogativa dos discípulos de Jesus. Se quem ama nasceu de Deus, foi gerado por Deus (gennáô), então o amor não é nosso; é de Deus. Esta imensa afirmação implica que nunca nos julguemos donos do amor, pois não é nossa a patente do amor. Tem outro registo. Apenas nos é dado humildemente reconhecer que «é gerado por Deus» quem já vive no amor. Aí está, a prová-lo, na leitura de hoje do Livro dos Atos dos Apóstolos 10,25-48, o pagão Cornélio a entrar de pleno direito na comunidade dos filhos de Deus, perante o espanto dos judeo-cristãos de Jerusalém!
É sempre importante que tomemos consciência de que temos o dever de entregar este amor a outros, e não de nos fecharmos dentro de uma cerca, ainda que de rosas seja a cerca! Escreveu bem, em «As idades da vida espiritual», o conhecido teólogo russo Pavel Evdokimov: «Não permitas, Senhor, que o teu Amor e a tua Palavra sejam na minha vida como um santuário, que uma vedação separa da casa e da estrada». Um tal fechamento seria pecar contra o Amor.
D. António Couto
ANEXOS:
Em cada ano, no IV Domingo da Páscoa, somos convidados a colocar o nosso olhar em Jesus, Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. A imagem bucólica do pastor fazia parte do quotidiano dos que escutavam Jesus e manifestava a solicitude, o desvelo, a dedicação e o cuidado do pastor para com o seu rebanho. Hoje, nos nossos ambientes mais industrializados e urbanizados, esta imagem pode perder a sua força evangelizadora. Na verdade, a figura do pastor transmitia uma proximidade e atenção desconcertantes que contrasta com o mercenário que não sente as ovelhas como suas e quando vê abeirar-se o perigo, coloca-se em fuga. Não se pode ser pastor de segunda a sexta, com folgas e feriados. Ser pastor implica uma disponibilidade e atenção constantes, uma ternura e desvelo que cuida, ama, conhece, nutre e protege.
Jesus é «o Bom Pastor». Ele não se apresenta apenas como um pastor, mas «o bom» Pastor. A bondade é marca característica do Seu ser e agir. De olhar fixo em Jesus, Bom e Belo Pastor, também nós queremos aprender a arte de ser «bom», tomando consciência que a bondade não é mais uma coisa a fazer, mas o modo como fazemos todas as coisas.
«Conheço as minhas ovelhas, e as minhas ovelhas conhecem-Me». O verdadeiro pastor não cuida do rebanho em abstrato nem trata das ovelhas como uma massa indiscriminada, mas dá a cada uma um nome, conhece as suas qualidades e limites e protege-as de acordo com as suas necessidades e carências. Como recorda o biblista Raymond E. Brown no seu comentário ao Evangelho de João, os rebanhos que pastavam nas montanhas da Judeia pertenciam a diversos proprietários e, assim, cada pastor fazia-se reconhecer junto das suas ovelhas através da sua voz e pelo nome com que as chamava.
Mesmo que o rebanho possa já ser numeroso, o pastor não descansa enquanto não reunir todas as ovelhas e, por isso, escutamos Jesus afirmar: «tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir». Para Jesus, ninguém é dispensável, nem é admissível desistir seja de quem for, pois cada um de nós é precioso e necessário para que o rebanho possa estar completo. Acolher, procurar, ir ao encontro é palavra de ordem de uma Igreja que se quer fiel ao mandato de Jesus Cristo e que caminha animada pela força do Espírito Santo.
«Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamarmos filhos de Deus». Somos filhos muito amados de Deus e, por isso, irmãos uns dos outros. Pertencemo-nos porque somos pertença de Deus pela filiação divina. Filiação e fraternidade caminham indissociavelmente e impelem-nos a construir uma cultura da ternura e do cuidado. É muito curioso que apesar de Jesus sublinhar esta atenção e cuidado no conhecimento das suas ovelhas, chamando cada uma pelo seu nome, os evangelhos falam sempre de rebanhos e não de ovelhas isoladas. Quando se fala de uma ovelha sozinha ou separada é para descrever uma situação negativa de uma ovelha perdida que se afastou do rebanho, que deixou de seguir o pastor e ouvir a sua voz.
Não podemos permitir que ninguém se possa perder, ficar à margem ou ser descartado. Podemos e devemos respeitar a liberdade e as opções de cada um, mas temos de oferecer sempre o acolhimento e o acompanhamento que não deixa ninguém para trás, apontando sempre Jesus Cristo e o Seu Evangelho como único caminho de salvação.
Mas até onde deve ir a nossa entrega e dedicação? Jesus é muito claro: «Eu dou a vida pelas minhas ovelhas». Enquanto não dermos tudo, damos muito pouco. Enquanto não oferecermos a nossa vida toda, a nossa entrega estará incompleta.
In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 4, 8-12
«Não existe debaixo do céu outro nome, dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117(118)
Refrão: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se pedra angular.
LEITURA II –1 Jo 3, 1-2
«Vede que admirável amor o Pai nos consagrou em nos chamarmos filhos de Deus».
EVANGELHO – Jo 10, 11-18
«Eu sou o Bom Pastor. O bom pastor dá a vida pelas suas ovelhas».
«Tenho ainda outras ovelhas que não são deste redil e preciso de as reunir; elas ouvirão a minha voz e haverá um só rebanho e um só Pastor».
Para os leitores:
A brevidade das duas leituras e a inexistência de palavras mais incomuns não pode permitir descurar a preparação dos textos. Ambos os textos exigem uma aturada preparação nas pausas e respirações e ambos são marcados por um tom alegre e jubiloso pela ressurreição de Jesus Cristo (1.ª leitura) e pela boa notícia de que em Jesus Cristo somos filhos muito amados de Deus (2.ª leitura).
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Domingo IV da Páscoa. Domingo do Bom, Belo, Perfeito e Verdadeiro Pastor. É este o significado largo do adjetivo grego kalós e do hebraico tôb, que qualifica o nome Pastor. Por isso, hoje é também o Dia do Bom e Belo Pastor, e Dia Mundial de Oração pelas Vocações, que são sempre um dom do amor de Deus à sua Igreja e ao mundo.
O Evangelho que marca o ritmo deste Dia Grande é João 10,11-18, que surge enquadrado na Festa judaica anual da Dedicação do Templo (ver João 10,22). Situemo-nos. O selêucida Antíoco IV Epifânio tinha profanado o Templo de Jerusalém, introduzindo lá cultos pagãos. Isto aconteceu em 167 a. C. Contra esta helenização e paganização do judaísmo lutaram os Macabeus, e, em 164 a. C., Judas Macabeu procedeu à Purificação do Templo e à sua Dedicação ao Deus Vivo. É este importante acontecimento que deve ser celebrado todos os anos, durante oito dias, com a Festa da Dedicação, a partir do dia 25 do mês de Kisleu, que, no ano em curso de 2018, corresponde ao nosso dia 3 de dezembro.
A Festa da Dedicação, em hebraico hanûkkah, celebra-se durante oito dias, e tem como símbolo o candelabro de oito braços. Relata o Talmude que, quando os judeus fiéis entraram no Templo profanado pelos pagãos helenistas, encontraram uma única âmbula de azeite puro (kasher) de oliveira para reacender o candelabro de sete braços, em hebraico menôrah, que é um dos símbolos de Israel, e que deve arder em permanência, noite e dia, diante do Deus Vivo. Todavia, uma âmbula de azeite duraria apenas um dia, e eram precisos oito dias para preparar novo azeite puro. Pois bem, o azeite daquela única âmbula durou milagrosamente oito dias! Daí que, na Festa da Dedicação, se acenda um candelabro de oito braços, chamado hanûkkiyyah. Mas acende-se apenas uma luz por dia, depois do pôr-do-sol, aumentando progressivamente até estarem acesas as oito luzes. Além disso, e ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, que alumiam o interior do Santuário e da casa de família respetivamente, as Luzes do candelabro da Dedicação, refere o ritual, devem ser vistas cá fora: devem alumiar o ambiente social, político, comercial e cultural. E também ao contrário das luzes da menôrah e do Sábado, não se acendem todas de uma vez, mas progressivamente, uma por dia, porque, quando as condições são adversas (paganismo helenista, paganismos modernos, escuro), não basta acender uma luz e mantê-la. É preciso aumentar constantemente a luz. Mais luz. Mais. Mais luz.
Como este simbolismo é importante para os dias de hoje! Está escuro cá dentro e lá fora, o mundo parece desconstruir-se, o paganismo é galopante! Mais do que nunca, é preciso, portanto, não apenas manter a luz, mas aumentá-la progressivamente. E está em maravilhosa sintonia com a Luz Grande que deve alumiar este Domingo do Bom e Belo Pastor, que é Jesus, verdadeira Luz do mundo, Dom do Amor de Deus ao nosso coração. Atear esta Luz de Jesus no nosso coração é sempre o segredo maior do Dia Mundial de Oração pelas Vocações.
O resto é a força e a beleza da imagem do Bom Pastor, que dá a Vida Eterna às suas ovelhas, que as segura pela mão, que as conhece, que as ama, enquanto elas escutam a voz do Bom Pastor e o seguem. Maravilhosa Comunhão. Música encantatória.
A figura do Pastor Belo e Bom como que salta da página selada, para surgir em pessoa à nossa frente. Ao dizer «Eu sou», está também, ao mesmo tempo, a dizer «vós sois». Está, portanto, a estabelecer uma relação pessoal de proximidade, confiança e intimidade connosco, bem expressa, de resto, pelos verbos «chamar pelo nome», «conhecer», «ouvir a voz», «dar a vida». Note-se que, no mundo bíblico, o «conhecimento» não exprime teoria ou teorias, mas é a expressão viva, quase corpórea, do contacto pessoal e do diálogo amoroso. O bocadinho da Primeira Carta de S. João, hoje lido (3,1-2), mostra também a maravilha deste conhecimento novo, que faz de nós «filhos de Deus» (tékna Theoû) e «semelhantes a Ele» (hómoioi autô). Em boa verdade, «só o semelhante conhece o semelhante». Por isso e para isso, Deus se fez primeiro semelhante a nós, homem verdadeiro, para nos tornar depois semelhantes a Ele, «deuses por graça» (cf. João 10,34-35). Por isso também, Jesus, o Filho, nos dá a conhecer tudo o que ouviu do Pai (João 15,15), o divino colóquio. E se, na inteira história humana, se pode afirmar, como faz a Escritura Santa, que «nunca ninguém viu Deus» (João 1,18), essa visão, em versão transformante, fica, todavia, em aberto, para o cume da nossa vida de filhos de Deus, como diz o Apóstolo, hoje: «semelhantes a Ele seremos, porque o veremos como Ele é» (1 João 3,2).
Mas esta vida livre, verdadeira, plena e bela, assente na verdade e na confiança, sem mentiras nem imposturas nem malabarismos, deixa ver em expresso contraponto o seu oposto. É que também saltam da página os ladrões, os salteadores, os mercenários, que, em vez de conjugarem os verbos acima indicados para traduzir a relação do Pastor Belo e Bom com o seu rebanho, conjugam antes os verbos «roubar», «matar», «destruir», «abandonar», «fugir». Como esta página antiga e sempre nova de João 10,11-18 lê e desvenda os tempos de hoje! Pedro já tinha montado este cenário no Sinédrio (Atos 4,8-12), apresentando outra vez aos chefes do povo e anciãos (Atos 4,8), membros do Sinédrio, este Jesus, que vós crucificastes e Deus ressuscitou dos mortos (Atos 4,10), como o único em que há salvação (Atos 4,12). Ele é o Bom e Belo Pastor, dador de vida, face ao qual os membros do Sinédrio fazem claramente a figura de mercenários, impostores e ladrões! Mas esta história seriada vem já da primeira página do Génesis, desde aquele fruto a nós dado (Génesis 1,29), ou por nós furtado (cf. Génesis 3,6) – fruto de um furto! –, história que emerge novamente nas últimas páginas de Mateus, que nos mostram ainda melhor o verdadeiro fruto a nós dado na Eucaristia (Mateus 26,26-29) e no Ressuscitado, Fruto novo que deve ser dado a toda a gente (Mateus 28,1-10.16-20), vendo-se, todavia, já no escuro, em contraluz, os impostores que congeminam e propagam, para tentar anular a força daquele Fruto, a lenda de um furto (Mateus 27,62-66; 28,11-15).
Mas o texto grandioso de João 10,11-18 passa também mensagens intemporais que, em cada tempo e lugar, devem interpelar a comunidade cristã. Assim, quando Jesus diz: «Eu sou a porta», não está a usar uma linguagem da ordem da arquitetura e da carpintaria. É de uma porta pessoal que se trata. E esta porta pessoal tem um nome e um rosto: Jesus de Nazaré, Jesus de Deus. E esta porta serve para «entrar e sair». «Entrar e sair» é um merisma [= figura literária que diz o todo acostando duas extremidades] que traduz a nossa vida toda. É a nossa vida toda sempre em referência a Jesus Cristo. Entende-se, não com a atual criação industrial de gado, em que os animais estão quase sempre em clausura e o pasto lhes é fornecido em manjedouras apropriadas, visando sempre uma maior produtividade, mas com os «apriscos» [= mais abrir do que fechar, como indica o étimo latino «aprire»] antigos, em que os animais se recolhiam apenas para se protegerem do frio da noite e dos assaltos das feras ou dos ladrões, e procuravam fora o seu alimento, sempre conduzidos pelo pastor.
Note-se ainda que os Evangelhos falam sempre de rebanho, e não de ovelhas separadas. Quando falam de uma ovelha sozinha, é para descrever a situação negativa de uma ovelha desgarrada ou perdida, que se perdeu do rebanho ou da comunidade, e deixou de seguir o pastor e de ouvir a sua voz. Note-se também que as ovelhas «entram pela porta», mas não é para ficarem descansadas e recolhidas, fechadas sobre si mesmas. É para sair, pois é fora que encontrarão pastagem. Lição para a comunidade dos discípulos de Jesus de hoje e de sempre: o trabalho belo que nos alimenta e nos mantém saudáveis espera-nos lá fora! Que Deus nos dê então sempre um grande apetite!
D. António Couto
ANEXOS:
Apesar da liturgia da Semana Santa e mais concretamente do Tríduo Pascal nos oferecerem um relato detalhado de todo o processo da paixão e crucifixão de Jesus, a ressurreição de Jesus acontece durante o silêncio da madrugada, na intimidade de Jesus com o Pai. Deste modo, o testemunho da ressurreição de Jesus não chega até nós pela descrição do modo como ela aconteceu, mas pelo testemunho daqueles que se encontraram com o ressuscitado. Um testemunho cheio de força e entusiasmo, de convicção e ousadia que contrasta com o medo que os assaltou durante o processo da condenação e crucifixão de Jesus. Basta pensar no testemunho destemido de Pedro, na primeira leitura deste Domingo. Pedro corajosamente diante da multidão proclama a boa notícia da ressurreição. Acusando a multidão de ter agido por ignorância no processo da morte de Jesus, convida-os ao arrependimento e à conversão para que também eles confessem a sua fé em Jesus Ressuscitado e se tornem também testemunhas da alegria da Páscoa.
Como contrasta este discurso de Pedro com as palavras titubeantes com que negava conhecer Jesus no pátio da casa do Sumo Sacerdote! O encontro com o ressuscitado transforma de tal modo a vida e o coração que nada nem ninguém os fará recuar e temer no anúncio da vida nova que Jesus ressuscitado oferece.
A novidade da ressurreição de Jesus irrompe no tempo e na história como garantia de que o bem trinfa sobre o mal e que pela ressurreição de Jesus também a nossa vida se inscreve no horizonte de vida e ressurreição que a Páscoa de Jesus nos oferece. Como é sempre belo e reconfortante ler as palavras do Papa Francisco na exortação apostólica pós-sinodal Christus Vivit: «Contempla Jesus feliz, transbordando de alegria. Alegra-te com o teu Amigo que triunfou. Mataram o Santo, o Justo, o Inocente, mas Ele venceu. O mal não tem a última palavra. Também na tua vida, o mal não terá a última palavra, porque o teu Amigo, que te ama, quer triunfar em ti. O teu Salvador vive» (CV 126).
A afirmação de que a ressurreição de Jesus se vive e experimenta como encontro íntimo e pessoal com Aquele que por mim se entregou à morte e ressuscitou glorioso, não me desliga da comunidade nem me permite uma experiência isolada da fé, mas recorda-me como o ressuscitado se faz presente no meio dos discípulos e lhes comunica o seu amor e a sua paz: «A paz esteja convosco». A experiência pascal é comunitária e o testemunho da ressurreição ganha consistência, força e concretização na alegria e na beleza de caminhar juntos, estabelecendo laços fraternos e comunitários que permitem ver, tocar e comer juntos.
Na verdade, para dissipar os medos e as dúvidas, Jesus pronuncia os verbos mais simples e familiares: vede, tocai, comamos juntos… Os discípulos rendem-se à evidência da ressurreição não pelos sinais teofânicos mais espetaculares, mas pela contemplação das marcas da paixão, por poder tocar o corpo do ressuscitado e saborearem juntos uma refeição. Jesus entra na nossa vida, não como uma ideologia ou uma formulação intelectual e abstratas, mas plasmando a nossa vida concreta: a nossa ação, o nosso toque, a nossa comunhão e partilha fraterna.
Somos convidados a continuar hoje a experiência de Jesus ressuscitado vendo o rosto de tantos irmãos nossos que atravessam o limiar da dor e do sofrimento, tocando as suas feridas que nos recordam as marcas da paixão do ressuscitado e participando da mesa da comunhão e da partilha que perpetua no tempo e na história a presença Daquele que por nós morreu e ressuscitou. In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 3,13-15.17-19
«O Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus de nossos pais, glorificou o seu Servo Jesus».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 4
Fazei brilhar sobre nós, Senhor, a luz do vosso rosto
LEITURA II –1 Jo 2,1-5ª
«Ele é a vítima de propiciação pelos nossos pecados, e não só pelos nossos, mas também pelos do mundo
EVANGELHO – Lc 24,35-48
«Os discípulos de Emaús contaram o que tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido Jesus ao partir do pão».
«Vós sois as testemunhas de todas estas coisas».
Para os leitores:
A primeira leitura é constituída por um discurso em que Pedro proclama a ressurreição e acusa os que o ouvem de terem agido por ignorância no processo da condenação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ser marcada pelo tom alegre e jubiloso da proclamação da ressurreição e ter um especial cuidado para evitar um severo tom acusativo e condenatório.
A brevidade da segunda leitura não deve permitir descurar a sua preparação e requer sobretudo uma acurada preparação das pausas e respirações, sobretudo na articulação entre as diversas frases que iniciam com a conjugação adversativa, «mas» ou copulativa «e».
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
É-nos dada hoje, Domingo III da Páscoa, a graça de escutar a página sublime do Evangelho de Lucas 24,35-48, em que Jesus Ressuscitado se faz ver aos seus discípulos reunidos, que são «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), dissipa as suas dúvidas e os seus medos, e lhes indica o sentido da Escritura, ao mesmo tempo que abre diante dos seus olhos o sentido obrigatório da missão. Podem assaltar-nos questões como estas: a) o que terá acontecido àqueles discípulos depois da morte de Jesus?; b) como chegaram ao ponto de afirmar a sua ressurreição?; c) terão sido vítimas de alguma desmedida ilusão?; d) autoconvenceram-se de que a obra de Jesus não podia terminar com aquela morte?; e) é a partir de si mesmos que chegam à fé na ressurreição, e que começam a anunciar convictamente que Jesus está vivo? A página do Evangelho de hoje ajuda-nos a compreender melhor os acontecimentos.
Ainda os dois discípulos de Emaús faziam exegese demorada (exegoûnto: impf. de exêgéomai) das coisas acontecidas no caminho e de como Jesus se deu a conhecer (egnôsthê: aor. pass. de ginôskô) a eles (autoîs), dativo do beneficiário, no partir do pão (en tê klásei toû ártou) (Lucas 24,35), quando o próprio Ressuscitado irrompeu e ficou de pé no MEIO deles (o lugar da presidência), e saudou-os, dizendo: «A Paz convosco!» (Lucas 24,36). O leitor estaria à espera de uma receção apoteótica, do rebentamento de recalcadas emoções, de incontidos gritos de júbilo e de alegria. E, em vez disso, assistimos ao extravasar de medos, perturbação e dúvidas, pois o que pensavam estar a ver diante deles, no MEIO deles, era um espírito, um fantasma! (Lucas 24,37 e 39).
Esta reação é importante, e manifesta que estes discípulos de Jesus, após aquela morte de Jesus, já tinham desistido de Jesus e nada mais esperavam dele (Lucas 24,21). Qualquer novo início só poderia vir de fora, só poderia vir de Deus. Naqueles discípulos não se vislumbrava nenhuma réstia de esperança, nenhuma acha ainda fumegava. Tudo cinza do mais cinzento que há. É a maneira de a Bíblia inteira realçar a intervenção de Deus. Deus não intervém como consequência de um pedido ou desejo nosso, para satisfazer os nossos anseios ou projeções mais insistentes. É sempre pura iniciativa sua, do nosso lado impensável, imprevisível e incontrolável. Ao mostrar as coisas desta maneira, a Bíblia, toda a Bíblia, antecipa-se em muitos séculos aos «mestres da suspeita» (Feuerbach, Marx, Nietzsche e Freud) e dissolve avant la lettre a sua denúncia de um Deus produzido ou projetado pelos nossos anseios e desejos.
É assim que Jesus vem sem ser esperado e sem se fazer anunciar. E porque não era possível, da nossa parte, acreditar que fosse Ele, Ele tem de se identificar. Para o fazer, não exibe, porém, qualquer fotografia ou documento. Mostra as mãos e os pés (Lucas 24,39-40), como em João 20,20 e 27 mostra as mãos e o lado, que levam a reconhecer o Ressuscitado como o Crucificado, sendo as mãos e os pés, como as mãos e o lado, as marcas da sua vida dada. Note-se uma vez mais que não é pelo rosto que identificamos Jesus Ressuscitado. Senão aqueles discípulos, que com Ele tinham convivido de perto, tê-lo-iam identificado sem demora. É a sua maneira de ser que diz Quem Ele é. E a sua maneira de ser é dar a vida. De ser e de estar connosco. No meio de nós (Lucas 24,36) e à nossa frente (Lucas 24,43), presidindo-nos e precedendo-nos.
Sintomático que aqueles discípulos, vendo o que veem, nada digam. Permanecem mudos. Eles que antes estavam cheios de palavras… Mas Jesus continua a ser, é sempre, não o simples orador à maneira de escribas, mas Aquele que fala com autoridade (Marcos 1,22). Ele é a Palavra criadora de mundos novos e de corações novos (João 1,3). Quando Ele surge, um mundo novo começa a acontecer. Dentro e fora de nós. E como é que podemos falar se ainda estamos a nascer?! Portanto, Ele fala (laléô): «É necessário (deî) que se cumpram todas as coisas escritas (gegramména) na Lei de Moisés e nos Profetas e nos Salmos acerca de mim (perì emoû). […] Assim foi escrito (gégraptai) que o Cristo havia de sofrer (1) e de ressuscitar dos mortos ao terceiro dia (2) e de ser anunciada (kêrýssô) (3) no seu nome a conversão para a remissão dos pecados a todas as nações» (Lucas 24,44-47). E acrescenta com autoridade: «Vós sois testemunhas (mártyres) destas coisas» (Lucas 24,48).
A partir deste luminoso falar revelatório (laléô) de Jesus fica claro, para nós, que a Missão do anúncio do Evangelho não é facultativa, mas insere-se na necessidade do plano de Deus, ao mesmo nível da morte e da ressurreição de Jesus. De forma clara, o cristão é batizado na morte de Cristo e vive a vida nova da Ressurreição de Cristo, mas tem de viver também do/e para o anúncio do Evangelho. É este o único lugar do Novo Testamento que guarda esta tripla necessidade: sofrimento e morte de Jesus (1), ressurreição de Jesus (2), anúncio do Evangelho a todas as nações (3). Nos outros lugares do Novo Testamento, esta necessidade afeta apenas as duas primeiras realidades.
Esta necessidade teológica fica registrada no uso do verbo grego deî e das coisas para sempre escritas em todas as Escrituras. O para sempre escritas fica gravado no uso dos dois perfeitos (gegramména e gégraptai, respetivamente particípio perfeito passivo e perfeito passivo do verbo gráphô). Se o uso do perfeito indica o «para sempre», o uso da forma passiva aponta para Deus, tratando-se, como é usual classificar-se, de um passivo divino ou teológico.
Importa ainda precisar que este necessário anúncio do Evangelho não afeta apenas os Onze, mas «os Onze e os outros com eles» (Lucas 24,33), entenda-se, todos os discípulos de Jesus, pois é perante todos [«os Onze e os outros com eles»] – não há mudança de cenário – que Jesus pronuncia o luminoso falar revelatório de Lucas 24,44-47. Sem equívocos então: esta missão afeta-nos a todos, todos os discípulos de Jesus de todos os tempos. Fica ainda claro que o anúncio (kêrygma) do Evangelho não decorre por conta e risco do anunciador (kêryx), que não o faz em seu próprio nome; antes, apresenta-se sempre vinculado a Jesus Cristo, pois o anúncio é feito «em seu nome» (Lucas 24,47), é Ele que envia o anunciador. E este anúncio do Evangelho não fica circunscrito a um horizonte limitado, paroquial, diocesano, nacional, continental, pois o seu verdadeiro horizonte são «todas as nações» (Lucas 24,47), «todos os lugares», todos os corações.
Bem se vê que é, neste ponto preciso e nesta necessidade, que S. Paulo, «o maior missionário de todos os tempos» (Bento XVI) e «modelo de cada evangelizador» (Beato Paulo VI), enxerta a sua vida e se entende a si mesmo, pois confessa: «Evangelizar não é para mim um título de glória, mas uma necessidade que se me impõe desde fora (epíkeitai). Ai de mim se não Evangelizar!» (1 Coríntios 9,16).
Impõe-se ainda uma anotação sobre aquela importante afirmação final de Jesus, que nos designa como testemunhas (mártyres). É a primeira vez que os discípulos são designados como testemunhas. No mundo de hoje, tal como o conhecemos, falar de testemunhas é falar de alguém que, tendo presenciado um acidente ou um crime, se compromete depois, no tribunal, a apresentar o seu ponto de vista sobre o sucedido. Alguém, portanto, que é chamado a comprometer-se com uma história que não é a dele. Para evitar chatices, acabamos muitas vezes por dizer logo à partida que não vimos nada. Mas, aqui, é Jesus que nos designa como testemunhas. Convenhamos que esta designação dos cristãos como testemunhas não tem sido nem é habitual. A linguagem corrente cataloga-nos mais depressa como «praticantes» ou «não-praticantes». Mas aqui somos designados como «testemunhas» dos acontecimentos de Jesus Cristo. Aquando da necessária substituição de Judas no colégio apostólico, Pedro traça assim os requisitos necessários que devem presidir à escolha do novo membro que venha a entrar no grupo dos Doze: «É necessário (deî), pois, que, dos homens que vieram connosco (synérchomai) durante todo o tempo em que entrou e saiu à nossa frente o Senhor Jesus, tendo começado desde o Batismo de João até ao dia em que Ele foi arrebatado (anelêmphthê) diante de nós, um destes se torne connosco testemunha (mártys) da sua Ressurreição» (Atos 1,21-22). Somos, portanto, chamados a envolver-nos de tal modo na história e na vida de Jesus, a ponto de a fazermos nossa, para a transmitir aos outros, não com discursos inflamados ou esgotados, mas com a vida! Sim, aquela história e aquela vida são a nossa história e a nossa vida. Aí está o estilo da testemunha e do evangelizador.
D. António Couto
ANEXOS:
O Evangelho deste Domingo situa-se: «na tarde daquele dia, o primeiro da semana». Os discípulos estavam reunidos com medo dos judeus, mas Jesus coloca-se no meio deles e saúda-os com a Sua Paz, mostra-lhes as marcas da Paixão e concede-lhes o dom do Espírito Santo para que eles sejam sinal de reconciliação e de paz junto daqueles a quem são enviados.
Mas Tomé, aquele a quem chamavam Dídimo, não estava com o grupo neste momento e, tendo regressado, afirma que só acreditará se vir com os seus próprios olhos e tocar com as suas mãos. Por isso, Jesus volta a aparecer aos Seus discípulos e o Evangelho indica que tudo isto aconteceu «oito dias depois».
As indicações temporais que o Evangelho nos apresenta não são apenas as anotações jornalísticas para situar a ação descrita. Nestas indicações temporais encontramos o ritmo da vida da Igreja: «o primeiro da semana» e «oito dias depois». Este é o ritmo da assembleia cristã que hebdomadariamente, isto é, semanalmente, se reúne, Domingo após Domingo, para celebrar a sua fé e proclamar a certeza de que o Ressuscitado acompanha a Sua Igreja, oferecendo-lhe a Sua Paz e concedendo-lhe o dom do Espírito.
Por isso, cada Domingo é o Dia do Senhor, dia de festa e de alegria, onde a comunidade cristã reunida à volta da mesa do altar, escutando a Palavra do Senhor e partilhando o Seu pão, renova a certeza desse amor maior que se faz entrega total e plena na Cruz. Ninguém está dispensado desta reunião festiva dos filhos de Deus. A aventura da Fé não é uma aventura isolada à qual nos propomos sozinhos. Como Tomé, quando nos afastamos da comunidade, o desafio de acreditar torna-se mais difícil e exigente. Aquele que se afasta da comunidade afasta-se da experiência comunitária de Jesus, do lugar privilegiado onde Deus se revela e manifesta como Rosto da misericórdia do Pai.
O Evangelho apresenta Tomé como Dídimo, isto é, gémeo. Na verdade, Tomé não está sozinho. Também nós duvidamos, vacilamos e titubeamos, sobretudo quando nos propomos a caminhar sozinhos, quando nos afastamos da comunidade ou quando ferimos a comunhão e unidade pelas divisões e discórdias que nos afastam dos outros e que afastam os outros. O melhor testemunho que a Igreja pode oferecer ao mundo é a sua comunhão e unidade, com comunidades acolhedoras, geradoras de relações fraternas, para que guiadas e iluminadas pelo Espírito Santo se tornem lugares da Paz que só o Ressuscitado e o Seu infinito amor podem oferecer e garantir.
«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós». O Ressuscitado identifica-se diante dos discípulos mostrando-lhes «as mãos e o lado». As marcas da paixão identificam Jesus e revelam que o Ressuscitado é Aquele que oferece a Sua vida por nós. Mas também hoje, Jesus continua a revelar as marcas da Sua paixão e do Seu sofrimento nas chagas dolorosas dos que se cruzam connosco. Confessar a fé em Jesus Cristo Ressuscitado é viver atento ao sofrimento dos irmãos e procurar responder com gestos concretos de proximidade e misericórdia.
Somos discípulos missionários. Somos enviados ao jeito de Jesus, para que as nossas vidas se tornem feliz anúncio da misericórdia de Deus. Não basta sermos crentes, precisamos ser credíveis, proclamando com a vida aquilo que os nossos lábios professam. In Voz Portucalense
LEITURA I – Actos 4,32-35
«A multidão dos que haviam abraçado a fé tinha um só coração e uma só alma».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 117 (118)
Aclamai o Senhor porque Ele é bom: o seu amor é para sempre.
LEITURA II –1 Jo 5,1-6
«Esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé».
EVANGELHO – Jo 20,19-31
«A paz esteja convosco. Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós».
«Porque Me viste acreditaste: felizes os que acreditam sem terem visto».
Para os leitores:
A primeira leitura é a descrição da vitalidade e comunhão vivida na comunidade nascente. A proclamação desta leitura deve ter presente o tom narrativo, mas também o entusiasmo e a maravilha do modo como cresciam em número e santidade os primeiros cristãos.
A segunda leitura é um hino de ação de graças ao Pai pela salvação revelada em Jesus Cristo. Ao tom de louvor e ação de graças que deve caracterizar a proclamação desta leitura, junta-se a recomendação de uma acurada preparação das pausas e respirações sobretudo nas frases mais longas e com diversas orações.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
A IDENTIDADE DO RESSUSCITADO NÃO PASSA PELO ROSTO, MAS PELAS MÃOS E CORAÇÃO ABERTOS: VIDA DADA POR AMOR, PARA SEMPRE, PARA TODOS!
Em 30 de abril do ano 2000, o Papa São João Paulo II consagrou o Domingo II da Páscoa como «Domingo da Divina Misericórdia». Compreende-se que, nesse mesmo dia, tenha canonizado a religiosa e mística polaca Santa Faustina Kowalska (1905-1938), primeira canonização do novo milénio, que, no seu Diário, registava o pedido que lhe fazia Jesus de a Igreja vir a instituir solenemente o primeiro Domingo depois da Páscoa (como então se dizia) como Festa da Divina Misericórdia.
Novos percursos se abrem, e é aqui que se inicia o Evangelho do Domingo II da Páscoa (João 20,19-31), Os discípulos estão num lugar, com as portas fechadas, por medo dos judeus. O Ressuscitado, vida nova e modo novo de estar presente, que nada nem ninguém pode reter, vem e fica no MEIO deles, o lugar da Presidência, e saúda-os: «A paz convosco!». Mostra-lhes as mãos e o lado, sinais que identificam o Ressuscitado com o Crucificado, e agrafa-os à sua missão: «Como o Pai me enviou (apéstalken: perf. de apostéllô), também Eu vos mando ir (pémpô)». O envio d’Ele está no tempo perfeito (é para sempre): está sempre em missão; o nosso está no presente, e passa. O presente da nossa missão aparece, portanto, agrafado à missão de Jesus, e não faz sentido sem ela e sem Ele. Nós implicados e imbricados n’Ele e na missão d’Ele, sabendo nós que Ele está connosco todos os dias (cf. Mateus 28,20). É-nos dito que os discípulos ficaram cheios de alegria ao verem (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) o Senhor. Tal como o Outro Discípulo (cf. João 20,8), também eles veem com um olhar histórico (tempo aoristo) a identidade do Senhor. O sopro de Jesus sobre eles é o sopro criador (emphysáô), com o Espírito, para a missão frágil-forte do Perdão. Este sopro só aparece aqui em todo o Novo Testamento! Mas não é difícil construir uma bela ponte para Génesis 2,7, para o sopro ou alento (napah TM / emphysáô LXX) criador de Deus no rosto do homem.
A identidade do Senhor Ressuscitado está para além do rosto. Por isso, vê-lo não implica necessariamente reconhecê-lo, como sucede em não poucas páginas dos Evangelhos. A identidade do Ressuscitado não é do domínio da fotografia. Vem de dentro. Reside na sua vida a nós dada por amor até ao fim, aponta para a Cruz. Por isso, Jesus mostra as mãos e o lado aberto, mãos dadas e coração aberto, sinais abertos para entrar no sacrário da sua intimidade, dádiva infinita que rebenta as paredes dos nossos olhos embotados e do nosso coração empedernido. Entenda-se também que a missão que nos é confiada é mostrar Jesus. Está bom de ver que não basta exibir as capas do catecismo que mostram um Jesus de olhos azuis e cabelo louro encaracolado. Só o podemos mostrar com a nossa vida dele recebida, e igualmente dada e comprometida.
O narrador informa-nos logo a seguir que, afinal, Tomé (Toma’), chamado Gémeo (Dídymos), não estava com eles quando veio Jesus. Dídymos é, na verdade, a tradução literal, em grego, do aramaico Toma’ [= «Gémeo»]. Mas os outros diziam-lhe repetidamente (élegon: imperf. de légô), imperfeito de duração, com a mesma linguagem da Madalena, mas no plural: «Vimos (heôrákamen: perf. de horáô) o Senhor!» (João 20,25). Portanto, também eles são testemunhas, pois viram e continuam a ver o Senhor, de acordo com o tempo perfeito do verbo grego. Mas Tomé quer tudo controlado e verificado, ponto por ponto, e refere: «Se eu não vir (ídô: conj. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) nas suas mãos a marca dos cravos, e não meter o meu dedo na marca dos cravos e não meter a minha mão no seu lado, não acreditarei» (João 20,25).
Novo desarme: oito dias depois, estavam outra vez os discípulos com as portas fechadas (mas o medo já não é mencionado), e Tomé estava com eles. Veio Jesus, ficou no MEIO, saudou-os com a paz, e dirigiu-se logo a Tomé desta maneira: «Traz o teu dedo aqui e vê (íde: imper. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo) as minhas mãos, e traz a tua mão e mete-a no meu lado, e não sejas incrédulo, mas crente!» (João 20,27). Aí está Tomé adivinhado, desvendado e desarmado. Também ele podia ter pensado: «E como é que ele sabia que eu queria fazer aquilo?». Tomé cai aqui, adivinhado e antecipado, precedido por Aquele que nos precede sempre. Não quer tirar mais provas. Diz de imediato: «Meu Senhor e meu Deus!» (João 20,28), uma das mais belas profissões de fé de toda a Escritura. E Jesus diz para ele: «Porque me viste e continuas a ver (heôrakás me), tempo perfeito de horáô, acreditaste e continuas a acreditar (pepísteukas), tempo perfeito de pisteúô; felizes (makárioi) os que, não tendo visto (idóntes: part. aor2 de horáô) com um olhar histórico (tempo aoristo), acreditaram (pisteúsantes: part. aor. de pisteúô)!» (João 20,29), tempo aoristo. Esta felicitação é para nós.
Notável o percurso dos Discípulos. Fechados e com medo, viram Jesus entrar e ficar no MEIO deles, sem que as portas e as paredes constituíssem obstáculo. Trocaram o medo pela alegria, e também eles começaram a ver de forma continuada o Senhor e a dizê-lo repetidamente. Notável e exemplar para nós o percurso de Tomé, chamado Gémeo: não estava com a comunidade, tão-pouco aceitou o seu testemunho; queria provas. Mas quando veio Jesus e o adivinhou, precedendo-o e presidindo-o, entregou-se completamente! Tomé, chamado Gémeo! Irmão gémeo! Irmão gémeo de quem? Meu e teu, assim pretende o narrador. De vez em quando, também nós não estamos com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. Por vezes, também duvidamos e queremos provas. Como Tomé, chamado Gémeo. Salta à vista que também devemos estar com a comunidade. Como Tomé, chamado Gémeo. E professar convictamente a nossa fé no Ressuscitado que nos preside (no MEIO) e nos precede sempre. Como Tomé, chamado Gémeo.
D. António Couto
ANEXOS:
CEIA DO SENHOR
Com esta celebração da Ceia do Senhor, em Quinta-Feira Santa, a Igreja Una e Santa reacende a memória da instituição da Eucaristia, do Sacerdócio e da Caridade, e dá início ao Tríduo Pascal da Paixão e Ressurreição do seu Senhor (o Tríduo Pascal prolonga-se até às Segundas Vésperas de Domingo), que constitui o ponto mais alto do Ano Litúrgico, de onde tudo parte e aonde tudo chega, coração que bate de amor em cada passo dado, em cada gesto esboçado, em cada casa visitada, em cada mesa posta, em cada pedacinho de pão sonhado e partilhado. É assim que Deus nos dá a graça de caminhar durante todo o Ano Litúrgico, dia após dia, Domingo após Domingo, sempre partindo da Páscoa do Senhor, sempre chegando à Páscoa do Senhor.
«Páscoa» quer dizer «passagem», e põe em cena «passageiros». Com os antigos pastores beduínos seminómadas, que preenchem a memória da pré-história de Israel, aprendemos a passar festivamente para um tempo novo, do inverno para a primavera, numa festa noturna, ao luar, na primeira lua cheia da primavera, que marca o início da transumância ao encontro de novas pastagens. Com os hebreus, no Egito, conforme o colorido relato do Êxodo que hoje Deus nos deu a graça de ouvir (Êxodo 12,1-14), sedentarizámos e atualizámos a festa da primeira lua cheia da primavera dos antigos pastores seminómadas de Israel, e aprendemos a passar da escravidão para a liberdade, que é um caminho sempre novo, nunca terminado e sempre a recomeçar, com a cintura apertada, sandálias nos pés, cajado na mão, lume novo aceso no coração. Com Jesus Cristo, aprendemos a passar do pecado para a graça, da soleira da porta para a mesa, da morte para a vida em abundância, da nossa casa para a Casa do Pai. É assim que nós, por graça feitos filhos no Filho, aprendemos a ser estrangeiros e hóspedes, tranquilamente sentados em Casa e à Mesa daquele único Senhor que servimos e que nos diz: «Toda a terra é minha, e vós sois, para Mim, estrangeiros e hóspedes», como se pode ler no Livro do Levítico 25,23.
É aí que estamos todos, meus irmãos. Aí, entenda-se, em Casa e à Mesa, hospedados. E é somente aí e daí, que podemos compreender o grande Capítulo 13 do Evangelho de S. João, que Hoje ouvimos nos nossos ouvidos, e que relata em vez da Ceia Primeira um lava-pés. Ceia Primeira, e não Última, porque nós continuamos à Mesa (o que é este Altar?) a celebrar esta Ceia (o que é este Pão e este Vinho?). E a recomendação atenta de S. Paulo, que nos lembra que nós continuamos a comer este Pão e a beber este Vinho sempre novo: «Sempre que comerdes deste Pão e beberdes deste Cálice, anunciais a morte do Senhor, até que Ele venha» (1 Coríntios 11,26). Anunciar a morte do Senhor não é, todavia, entristecer-nos, chorar ou vestir de luto. Não é esta a vocação cristã. É preciso compreender, e é o que S. Paulo nos quer dizer, que anunciar a morte do Senhor é anunciar a Dádiva da Vida por amor, para sempre e para todos!
Mas é à Mesa que estamos, meus irmãos, nesta tarde e nesta Ceia Primeira de Quinta-Feira Santa, hospedados na Casa do único Senhor da nossa Vida, «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5), Jesus Cristo. Reparemos então bem em tudo o que Ele faz e diz no Evangelho de hoje (João 13,1-15), porque tudo n’Ele é exemplar e programático para nós. Diz-nos o narrador atento que Jesus «DEPÕE (títhêmi) o manto» a abrir a cena, no v. 4, e «RECEBE (lambánô) o manto» a fechar a cena, no v. 12. DEPOR e RECEBER são, aos nossos olhos encantados, os mesmos verbos com que, no Capítulo 10.º, o Bom Pastor «DEPÕE (títhêmi) a vida» e «RECEBE (lambánô) a vida» (v. 17). Ora, DEPOR a vida e RECEBER a vida são a imensa e penetrante tradução da Cruz. E entre uma e outra coisa, entre «DEPOR o manto» e «RECEBER o manto», «DEPOR a vida» e «RECEBER a vida», no centro geométrico e teológico do lava-pés (v. 8), aí está a advertência solene que Jesus dirige a Pedro e a cada um de nós: «Se não te lavo, Pedro, não tens parte comigo!» (João 13,8).
«Ter parte com» Cristo é participar no seu supremo serviço de amor até dar a vida para receber a vida. «Ser lavado» e «ter parte com» e «estar puro» é linguagem bíblica de ordenação sacerdotal. Basta ler o texto do Livro dos Números 18,20, juntamente com os Capítulos 29 e 40 do Livro do Êxodo e o Capítulo 8.º do Livro do Levítico, acerca da ordenação sacerdotal de Aarão e dos seus filhos.
Digamos tudo outra vez, seguindo passo por passo este imenso Capítulo 13 do Evangelho de S. João: no v. 4, Jesus DEPÕE o manto, com o mesmo verbo com que, em João 10,17, Jesus DEPÕE a vida; no v. 12, Jesus RECEBE o manto, com o mesmo verbo com que, no mesmo João 10,17, Jesus RECEBE a vida. No v. 4, DEPÕE o manto ou a vida. No v. 12, RECEBE o manto ou a vida. No v. 8, que é o centro geométrico e teológico entre 4 e 12, Jesus lava os pés a Pedro, e diz-lhe: «Se não te lavo, Pedro, não terás parte comigo». Isto é, não participarás da minha vida Dada e Recebida. Compreenda-se então que este Lava-pés não é um simples gesto de humildade por parte de Jesus. Este Lava-pés é a verdadeira ordenação sacerdotal dos discípulos de Jesus!
Por isso, Jesus diz, num imenso dizer revelatório ainda a retinir nos nossos ouvidos e a ecoar em tudo o que fazemos: «Como Eu vos fiz, fazei vós também!» (João 13,15). Vê-se bem, meus irmãos, que não é tanto o que se faz que interessa. Interessa muito mais o como se faz. O segredo é dar a vida por amor, para sempre, para todos. Jesus é o único Mestre que ensina a Viver desta maneira. E é assim que fica bem à nossa vista o significado da instituição da Eucaristia, do Sacerdócio e da Caridade.
António Couto
PAIXÃO DO SENHOR
Foi-nos dada a graça de nos reunirmos aqui, na Casa de Deus, nesta Sexta-Feira Santa, para celebrarmos, unidos de alma e coração à Igreja inteira, a Una e Santa, a Paixão do único Senhor da nossa vida, «Aquele que nos ama» (Apocalipse 1,5), Jesus Cristo.
E foi-nos dado seguir, passo a passo, com a conversão do coração e o louvor no coração, o imenso relato da Paixão do único Senhor da nossa vida, a partir do Evangelho segundo S. João (18,1-19,42). Foi assim que atravessámos o Cedron e entrámos no «jardim». É de noite, mas arde a LUZ, a LUZ, a LUZ. É verdade que já não estamos todos. Judas perdeu-se na NOITE, na NOITE, na NOITE (João 13,30). Virá depois com archotes e lanternas – mísero sucedâneo da LUZ – e com armas (João 18,3). Vem prender a LUZ, mas cai encandeado (João 18,6). Tem de ser a LUZ a ofuscar-se por amor e a entregar-se a ele por amor. Neste ponto preciso, refere o relato de Marcos que nós fugimos todos, abandonando-o (Marcos 14,50). E fugidos andaremos, e perdidos, na noite e no frio, até sermos outra vez por Ele encontrados e recolhidos. Mas já, entretanto, Pedro, perdido, se acolhe a outra luz e se aquece a outro lume (João 18,18). E, interpelado, nega ter andado com Jesus, ter alguma coisa a ver com Jesus, ter parte com Jesus. Nega mesmo conhecer Jesus (Marcos 14,67-71; João 18,17-27).
Até que o galo canta, e começa a nascer o dia para Pedro (Marcos 14,72; João 18,1-27). Notemos que quando Judas sai, é de NOITE, e que, depois da negação de Pedro, o DIA nasce com o canto do galo. O relato de Pedro faz parte integrante do relato da Paixão, e não é um seu acompanhamento secundário. É o relato do anunciador. O canto do galo é um sinal. Traz para a cena a obra criadora do primeiro dia, em que, segundo o relato do Génesis, «Deus separou a luz e as trevas» (Génesis 1,3-5). Aqui, em contraponto, estão as trevas de Judas e a luz nascente para Pedro. Obra luminosa e criadora. Mas também anunciadora, porque este canto exerce uma função de referência entre as fases do tempo: nenhum animal é mais querigmático do que o galo. Iremos encontrá-lo sobre os nossos antigos campanários, mas já, antes disso, o encontrámos muitas vezes sobre os primeiros sarcófagos cristãos.
Mas vejamos ainda melhor a qualidade ou falta dela do testemunho que damos de Jesus. Também aqui a página do Evangelho é admirável e implacável. Jesus acaba de dizer ao Sumo-Sacerdote que não o interrogue a Ele, mas que interrogue aqueles que ouviram os seus ensinamentos, pois não falou às escondidas, mas em público (João 18,19-21). Impressionante verificarmos que, ao mesmo tempo que Jesus faz esta afirmação dentro do Palácio, Pedro esteja a ser interrogado cá fora, e responda negando tudo! (João 18,17.25-27).
Mas Jesus prossegue o seu caminho de amor até ao fim. Até à Cruz. É lá que se revela o rosto do doentio gosto pela morte que nos habita. «Salva-te a ti mesmo!» (Lucas 23,35.37.39), gritamos nós repetidamente zombando, porque o que queremos mesmo, não é que Ele se salve; o que queremos mesmo é assistir ao doentio espetáculo da morte! Não quero que penseis, meus irmãos, que isto são coisas do passado, e que não têm nada a ver connosco. Não. O que estou a dizer acerca deste doentio gosto pela morte passa-se hoje. Como gostamos nós de ver os nossos irmãos a atolar-se na lama! A tanto chegou a nossa malvadez! Um ódio sem motivo, sem fundo, nos habita (Salmo 35,19; 69,5; João 15,25). Sim, Ele é o Justo. Ele é a Bondade absolutamente gratuita, sempre Primeira e radical, igualmente sem motivo, sem fundo. Ele ama Primeiro (1 João 4,19), quando éramos ainda pecadores (Romanos 5,8). Por isso, em vez de à nossa violência oferecer mais violência, Ele acolhe-a e acolhe-nos por amor, e por amor a nós se entrega, declarando assim ultrapassados e inúteis os nossos mais requintados ódios e os nossos mais sofisticados instrumentos de guerra (cf. Isaías 2,2-4; Miqueias 4,1-3). Ali, naquele Corpo Crucificado, morto por amor, e por amor exposto por escrito diante dos nossos olhos atónitos (Gálatas 3,1), morre o nosso desejo de morte, o nosso pecado, apagado pelo fogo do amor, que declara o nosso pecado completamente inútil, inutilizado, anulado e ultrapassado (cf. Colossenses 2,14).
Ainda vamos a tempo de ver que, sob o olhar do Crucificado, quatro soldados levam as coisas de Jesus, que, para o efeito, dividem em quatro partes: uma para cada um deles (João 19,23). O contraponto, belo, vem de quatro mulheres (a mãe de Jesus, / a irmã de sua mãe, / Maria, mulher de Cléofas, / e Maria Madalena), que não levam as coisas de Jesus, mas se abraçam à Cruz de Jesus (pará tô staurô), como se ela fosse uma pessoa (João 19,25). Elas abraçam e levam o amor de Jesus!
Na Cruz, Jesus reza o salmo 22, todo, desde «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?» (Salmo 22,2), até «Esta é a obra do Senhor!» (Salmo 22,32), que são as últimas palavras do Salmo 22, que deixam a claro que é de Deus a obra da Cruz! É assim, nos braços do Pai, que Jesus morre, sendo depois o seu corpo descido da Cruz e carinhosamente envolvido em panos de linho literalmente encharcados com 32 quilos e 800 gramas de perfume! (João 19,39), à imagem do Rei messiânico cantado no Salmo 45,9. Foi sepultado no jardim, num sepulcro novo, no qual ainda ninguém tinha sido deposto (João 19,41). O Rei é sempre o primeiro em tudo. Vem depois aquela madrugada da Ressurreição.
Por isso, depois disso, por causa disso, os primeiros cristãos rapidamente fizeram deste Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto. O Imperador Adriano (117-138) soterrou o Santo Sepulcro e paganizou-o, estabelecendo ali cultos pagãos com a clara intenção de afastar os cristãos: no lugar do Santo Sepulcro, pôs a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore. O mesmo fez, de resto, em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, quando em 13 de Setembro de 326, por indicação de um habitante de Jerusalém, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, descobriu a Cruz do Senhor, mandou logo demolir as construções pagãs. Foi assim que vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela basílica da Anástasis, que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a adoração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. A peregrina Egéria, da Galiza, que em finais do século IV, visitou demoradamente os Lugares Santos, diz-nos que a Santa Cruz era então exposta à adoração dos fiéis duas vezes no ano: em 14 de Setembro e em Sexta-Feira Santa. Egéria descreve assim a adoração de Sexta-Feira Santa: «desde as 08h00 da manhã até ao meio-dia», «todos passavam, um por um: inclinam-se, tocam a Cruz com a fronte, e depois com os olhos a Cruz e a inscrição, a seguir beijam a Cruz e saem, sem que ninguém toque com a mão na Cruz» (Itinerarium, 36,5; 37,3).
António Couto
Domingo de Pascoa e da Ressurreição do Senhor
É madrugada! Está escuro lá fora mas também no coração de Maria Madalena. Porém, nem a penumbra da noite nem a tristeza que invade o seu coração a detêm. Sai de manhãzinha e vai apressadamente ao sepulcro. Testemunhou com os seus olhos os milagres e prodígios do Mestre, contemplou a força do Seus braços que levantavam os caídos e ressuscitavam os mortos, maravilhou-se com tantas vidas transformadas pela suave ternura da Sua palavra doadora de sentido que não se conforma com a Sua morte. Como escreveu Gabriel Marcel: «amar é dizer: tu não morrerás!».
Ao contrário das narrativas de Marcos e de Lucas que indicam que as mulheres que se dirigem ao sepulcro levam perfumes e aromas, seguindo assim as tradições funerárias próprias da sua cultura, nesta narrativa, Maria Madalena nada leva consigo. No crepúsculo daquela jornada que marcará indelevelmente o curso da história, ela dirige-se ao sepulcro, transportando apenas a história de libertação e de vida que o crucificado lhe ofereceu quando outrora a acolheu e renovou no seu coração a esperança e a confiança. Como pode morrer Aquele que lhe ofereceu um horizonte novo de vida? Como pode estar ausente Aquele cuja presença transformou o seu coração e a sua história?
Chegada ao sepulcro e vendo a pedra removida, dirige-se apressadamente ao encontro de Pedro e do discípulo amado e, como anota Ermes Ronchi, não afirma que levaram o corpo do Senhor, mas apenas «levaram o Senhor do sepulcro», como se Ele ainda estivesse vivo. Maria Madalena entrevê desde já o cumprimento das palavras do Cântico dos Cânticos: «o amor é mais forte do que a morte» (Ct 8,6). Maria sabe que um amor maior não pode morrer e que os gestos e palavras de Jesus preenchiam de eternidade os limites e fragilidades da humanidade.
As multidões que seguiam Jesus, bem como os Seus discípulos e seguidores mais próximos, ficaram presos ao fracasso da Sua paixão e crucifixão e esqueceram rapidamente as palavras que Jesus lhes houvera dito: «O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar» (Lc 9,22). Ouviram que Ele haveria de morrer, sofrer e ser crucificado mas não escutaram nem compreenderam que Ele haveria de ressuscitar. Prenderam o seu coração ao provisório e esqueceram o que é pleno e definitivo. Na vida de Jesus, como na vida de quantos O seguem, a morte e o sofrimento têm carácter de transitoriedade e de provisoriedade porque só a ressurreição e a vida nova que brota da Sua Páscoa é verdadeiramente plena e definitiva.
Jesus ressuscitou e a boa notícia que brotou do sepulcro vazio, mas cheio de sinais, ecoa de geração em geração renovando o coração e a vida de quantos se deixam iluminar pela luz nova e plena da Páscoa. Diante das trevas e sombras que pairam no nosso tempo, a Igreja é chamada a ser portadora da luminosa notícia da manhã de Páscoa para que o mundo saiba e acredite que o amor venceu a morte, que a graça venceu o pecado e que a cruz de Cristo nos abriu as portas da eternidade. A pandemia que nos envolve e o sofrimento que atravessam tantos irmãos nossos são provisórios e transitórios como provisória e transitória foi a paixão e morte de Jesus. Plena e definitiva é a glória. Total e duradoira é a ressurreição e a vida nova que Jesus Ressuscitado nos oferece. Por isso, caminhemos com renovada esperança os trilhos da história fazendo ecoar no coração de cada homem e de cada mulher a mais bela notícia: «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».
Leitura dos Actos dos Apóstolos – Actos 10, 34a.37-43
«Deus ungiu com a força do Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo o bem».
Salmo Responsorial – Salmo 117 (118)
Este é o dia que o Senhor fez: exultemos e cantemos de alegria.
Leitura da Epístola do apóstolo São Paulo aos Colossenses – Col 3,1-4
«Se ressuscitastes com Cristo, aspirai às coisas do alto, onde está Cristo, sentado à direita de Deus».
Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João – Jo 20,1-9
«No primeiro dia da semana, Maria Madalena foi de manhãzinha, ainda escuro, ao sepulcro e viu a pedra retirada do sepulcro».
«Ainda não tinham entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dos mortos».
É madrugada! Está escuro lá fora mas também no coração de Maria Madalena. Porém, nem a penumbra da noite nem a tristeza que invade o seu coração a detêm. Sai de manhãzinha e vai apressadamente ao sepulcro. Testemunhou com os seus olhos os milagres e prodígios do Mestre, contemplou a força do Seus braços que levantavam os caídos e ressuscitavam os mortos, maravilhou-se com tantas vidas transformadas pela suave ternura da Sua palavra doadora de sentido que não se conforma com a Sua morte. Como escreveu Gabriel Marcel: «amar é dizer: tu não morrerás!».
Ao contrário das narrativas de Marcos e de Lucas que indicam que as mulheres que se dirigem ao sepulcro levam perfumes e aromas, seguindo assim as tradições funerárias próprias da sua cultura, nesta narrativa, Maria Madalena nada leva consigo. No crepúsculo daquela jornada que marcará indelevelmente o curso da história, ela dirige-se ao sepulcro, transportando apenas a história de libertação e de vida que o crucificado lhe ofereceu quando outrora a acolheu e renovou no seu coração a esperança e a confiança. Como pode morrer Aquele que lhe ofereceu um horizonte novo de vida? Como pode estar ausente Aquele cuja presença transformou o seu coração e a sua história?
Chegada ao sepulcro e vendo a pedra removida, dirige-se apressadamente ao encontro de Pedro e do discípulo amado e, como anota Ermes Ronchi, não afirma que levaram o corpo do Senhor, mas apenas «levaram o Senhor do sepulcro», como se Ele ainda estivesse vivo. Maria Madalena entrevê desde já o cumprimento das palavras do Cântico dos Cânticos: «o amor é mais forte do que a morte» (Ct 8,6). Maria sabe que um amor maior não pode morrer e que os gestos e palavras de Jesus preenchiam de eternidade os limites e fragilidades da humanidade.
As multidões que seguiam Jesus, bem como os Seus discípulos e seguidores mais próximos, ficaram presos ao fracasso da Sua paixão e crucifixão e esqueceram rapidamente as palavras que Jesus lhes houvera dito: «O Filho do Homem tem de sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, pelos sumos sacerdotes e pelos doutores da Lei, tem de ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar» (Lc 9,22). Ouviram que Ele haveria de morrer, sofrer e ser crucificado mas não escutaram nem compreenderam que Ele haveria de ressuscitar. Prenderam o seu coração ao provisório e esqueceram o que é pleno e definitivo. Na vida de Jesus, como na vida de quantos O seguem, a morte e o sofrimento têm carácter de transitoriedade e de provisoriedade porque só a ressurreição e a vida nova que brota da Sua Páscoa é verdadeiramente plena e definitiva.
Jesus ressuscitou e a boa notícia que brotou do sepulcro vazio, mas cheio de sinais, ecoa de geração em geração renovando o coração e a vida de quantos se deixam iluminar pela luz nova e plena da Páscoa. Diante das trevas e sombras que pairam no nosso tempo, a Igreja é chamada a ser portadora da luminosa notícia da manhã de Páscoa para que o mundo saiba e acredite que o amor venceu a morte, que a graça venceu o pecado e que a cruz de Cristo nos abriu as portas da eternidade. A pandemia que nos envolve e o sofrimento que atravessam tantos irmãos nossos são provisórios e transitórios como provisória e transitória foi a paixão e morte de Jesus. Plena e definitiva é a glória. Total e duradoira é a ressurreição e a vida nova que Jesus Ressuscitado nos oferece. Por isso, caminhemos com renovada esperança os trilhos da história fazendo ecoar no coração de cada homem e de cada mulher a mais bela notícia: «Jesus Cristo ressuscitou! Aleluia! Aleluia!».
TÚMULO ABERTO, MAS NÃO VAZIO: CHEIO DE SINAIS
- «Esta é a Obra do Senhor!», assim gritava com «voz forte» (grito de Vitória e de Revelação) Jesus na Cruz, decifrando a Cruz, recitando o Salmo 22 todo (entenda‑se a metonímia de Mateus 27,46 e Marcos 15,34, citando apenas o início). Particularmente ao longo da Semana Santa, dita «Grande» ou «dos Mistérios» pela Igreja do Oriente, Deus expôs (proétheto) diante dos nossos olhos atónitos – e logo a partir do Domingo de Ramos – o Rei Vitorioso no seu Trono de Graça e de Glória, que é a Cruz (veja‑se aqui demoradamente Romanos 3,24‑25), tomando posse da sua Igreja‑Esposa para o efeito redimida na «água e no sangue» (João 19,34; Efésios 5,25‑27), isto é, no Espírito Santo, conforme ensina Jesus com «voz forte» (!) no grande texto de João 7,37-39. Para aqui apontava também a «caminhada» quaresmal, a qual – vê‑se agora claramente – só daqui podia afinal ter partido. É este «o Mistério Grande» (Efésios 5,32) que nos foi dado a conhecer por Deus (Romanos 16,25‑26; 1 Coríntios 2,7‑10; Efésios 3,3‑11; Colossenses 1,26‑27). E só Deus pode dar tanto a conhecer (veja‑se agora o texto espantoso de Efésios 3,14‑21). É quanto Deus operou na Cruz! Por isso, exultamos e nos alegramos (com a Chará, a alegria grande da Páscoa), pois «este é o Dia que o Senhor fez» (Salmo 118,24) e em que o Senhor nos fez! É o «Primeiro Dia» (Mateus 28,1; Marcos 16,2 e 9; Lucas 24,1; João 20,1 e 19; Atos 20,7; 1 Coríntios 16,2), e tal permanecerá para sempre (!), o «Dia do Senhor, o Dia Grande» (Atos 2,20; Apocalipse 1,10), o Domingo, todos os Domingos, o Ano Litúrgico todo, o Ano da Graça do Senhor, em que a Igreja‑Esposa, redimida, santificada, bela (apresentada no Apocalipse com voz forte), celebra jubilosamente o seu Senhor, à volta do altar, do ambão, do batistério: tudo «sinais» do túmulo aberto do Senhor Ressuscitado, donde emerge continuamente a mensagem da Ressurreição. Aleluia!
- O Domingo de Páscoa na Ressurreição do Senhor oferece-nos o grande texto de João 20,1-10, com a descoberta do túmulo aberto, mas não vazio! Túmulo aberto: a pedra muito grande (Marcos 16,4) do poder da morte tinha sido retirada, e o Anjo do Senhor sentou-se sobre ela (Mateus 28,2), impressionante imagem de soberania e vitória! Mas não vazio: está, na verdade, cheio de sinais, que é preciso ler com atenção: um jovem sentado à direita com uma túnica branca (Marcos 16,4), dois homens com vestes fulgurantes (Lucas 24,4), as faixas de linho no chão e o sudário enrolado noutro lugar (João 20,6-7). É importante ler os sinais e ouvir as mensagens! Se o túmulo estivesse vazio, como vulgarmente e inadvertidamente dizemos, estávamos perante uma ausência cega e muda. Na verdade, os sinais e as mensagens mostram uma presença nova que somos convidados a descobrir.
- O texto imenso de João 20,1-10 coloca-nos ainda diante dos olhos o início de diferentes percursos por parte de diferentes figuras face aos sinais encontrados ou ainda não, lidos ou ainda não:
- A Madalena vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) que até causa aflição a pedra retirada (êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. De facto, até dói e aflige que se veja o inefável como quem vê uma coisa qualquer, cegos como estamos tantas vezes pelos nossos preconceitos! Esta pedra para sempre retirada por Deus reclama e estabelece contraponto com a pedra por algum tempo retirada (aoristo de aírô) pelos homens do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41). Cega pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Mas o leitor atento e competente do IV Evangelho não estranha esta cegueira da Madalena. É que o narrador informa-nos que ela anda ainda no escuro (João 20,1), e, no IV Evangelho, quem anda na noite e no escuro, anda perdido na incompreensão e na cegueira, e nada entende ou dá bom resultado. A oposição luz – trevas atravessa de lés-a-lés o inteiro texto do IV Evangelho. A Luz verdadeira que vem a este mundo para iluminar todos os homens é Jesus (João 1,9). Sem esta Luz que é Jesus, andamos às escuras, na noite, na cegueira, na dor, no fracasso, na incompreensão. É assim, narrativamente – e, portanto, exemplarmente, para nós, leitores –, que somos levados a constatar como Nicodemos, que anda de noite (João 3,2) e nada entende, como os discípulos, que nada pescam de noite (João 21,3) e no meio do escuro andam perdidos (João 6,17-18), como o homem da noite na noite perdido, que é Judas (João 13,30; 18,3), enfim, como Pedro, perdido na noite e no meio dos guardas (João 18,17-18).
- A notícia levada pela Madalena põe em movimento Simão Pedro e o «discípulo amado». Anote‑se a progressão e repare-se atentamente nos verbos utilizados: 1) Maria Madalena vai ao túmulo, e vê (blépô) a pedra (da morte) retirada. 2) O outro discípulo, «o discípulo amado», corria juntamente com Pedro, mas chegou primeiro (!), inclina-se e vê (blépô) as faixas de linho no chão. 3) Pedro, que corria juntamente com «o discípulo amado», mas SEGUINDO-O e chegando depois… Na verdade, ainda em João 18,15, os dois SEGUIAM Jesus, que é a correta postura do discípulo. Pedro, porém, não SEGUIU Jesus até ao fim: ficou ali estacionado no pátio do Sumo-Sacerdote! Mais do que isso e pior do que isso, em vez de estar com Jesus, Pedro ficou com os guardas, a aquecer-se com os guardas! (João 18,18). Pedro, portanto, não fez o curso ou o percurso de discípulo de Jesus até ao fim! Deixou por fazer umas quantas unidades curriculares. É por isso que agora tem de SEGUIR alguém que tenha SEGUIDO Jesus até ao fim. É por isso, e só por isso – nada tem a ver com idades (Pedro mais idoso, o «discípulo amado» mais jovem!) – que Pedro tem agora de SEGUIR o «discípulo amado», chegando naturalmente ao túmulo atrás dele. Note-se ainda que, não obstante um ir à frente e o outro atrás, correm os dois juntos. É aquilo que ainda hoje vemos na catequese e na mistagogia cristãs: corremos sempre juntos, mas alguém vai à frente, para ensinar o caminho aos outros! Belíssima comunhão em corrida!
- Pedro, que corria juntamente com o «discípulo amado», mas SEGUINDO-O, entra no túmulo que o «discípulo amado» cuidadosamente sinaliza e lhe aponta (ele é o grande sinalizador de Jesus: veja-se João 13,24 e 21,7), e vê (theôréô: um ver que dá que pensar e que abre para a fé: cf. João 2,23; 4,19; 6,2.19.40.62) as faixas de linho no chão e o sudário que cobrira o Rosto de Jesus, à parte, dobrado cuidadosamente, como «sinal» do Corpo ausente do Ressuscitado! Conclusão: o corpo de Jesus não foi roubado, como supôs a Madalena equivocada! Os ladrões não costumam deixar a casa roubada tão em ordem! Por isso, Pedro vê com o olhar de quem fica a pensar no que se terá passado… Talvez seja coisa de Deus… Com a indicação preciosa de que o véu foi cuidadosamente retirado do seu Rosto, a Revelação convida agora a contemplar o Rosto divino no Rosto humano do Ressuscitado: vendo‑o a Ele, vê‑se o Pai (cf. João 14,9).
- «O discípulo amado» entrou, viu com um olhar histórico (tempo aoristo) de quem vê por dentro a identidade (verbo grego ideîn), e acreditou (v. 8). É o olhar de quem vê o inefável, verdadeiro clímax do relato: anote‑se a passagem do verbo ver do presente para o aoristo, e de fora para dentro: «o discípulo amado» viu na história a identidade dos «sinais»: toda a Economia divina realizada! O relato evangélico é sóbrio, mas rico e denso. Fiel a esta intensa sobriedade, a arte cristã nunca se atreveu a representar a ressurreição antes dos séculos X-XI. É tal o fulgor da Luz deste mistério, que ficará sempre no domínio do inefável, que simultaneamente ilumina e esconde.
- A narrativa de João 20 abre com a Madalena, que vai de manhã cedo, ainda escuro, ao túmulo, e vê, com um olhar normal (verbo grego blépô) a pedra retirada(êrménos) para sempre e por Deus (João 20,1), tal é o significado imposto por êrménos, particípio perfeito passivo de aírô. Conforme a grandiosa narrativa, a Madalena tem diante dos olhos o inefável. Mas cega como está pelos seus preconceitos, a Madalena falha a visão do inefável, e corre logo, equivocada, a levar uma falsa notícia: «Retiraram (aoristo de aírô) o Senhor do túmulo, e não sabemos onde o puseram» (João 20,2). Não é de admirar, dado que a Madalena anda pelo escuro, e, no IV Evangelho, quem anda no escuro ou na noite, não vê a Luz.
- Ainda que não faça parte do Evangelho deste Dia Grande, vale a pena, para que não fique perdido, acostar aqui o percurso que a Madalena continua a fazer em João 20,11-18. Mudou de olhar. Aparece agora junto do túmulo a chorar, inclina-se e vê, agora também (como Pedro) com um ver que dá que pensar (verbo grego theôréô), dois anjos vestidos de branco (cor divina), estrategicamente colocados no túmulo, como sinais. Perguntam à Madalena: «Mulher, por que choras?». Na verdade, ela ainda está do lado da morte, do escuro, da dor, da tristeza. A paisagem em que se move ou a página que a move ainda é o Capítulo 19 de João, daquele Jesus morto por mãos humanas retirado (João 19,38), daquele Rei por mãos humanas retirado (João 19,15[2x]), ou até daquela pedra por mãos humanas retirada do túmulo de Lázaro (João 11,39 e 41) – em todos os casos o verbo aírôno aoristo –, não sabendo ainda ler a pedra para sempre retirada por Deus, de João 20,1. É ainda à procura de um corpo morto que ela anda. De um corpo morto a que ela se acha com direito de posse. Talvez seja este o preconceito que lhe tolhe o olhar e a impede de ver o inefável. Na verdade, responde assim à pergunta feita pelos dois anjos: «Retiraram o meu Senhor, e não sei onde o puseram» (João 20,13). Note-se outra vez o aoristo do verbo aírô, e note-se agora também o possessivo «meu» afeto a Senhor.
- Voltando-se para o jardim, vê, outra vez com um ver que dá que pensar (theôréô), um homem de pé, que ela pensa ser o jardineiro, mas que, na verdade, é Jesus, que a deixa espantada com a segunda pergunta que lhe faz: «Mulher, por que choras? (normal, pois ela continuava a chorar); a quem procuras?». Esta segunda pergunta desvenda a Madalena, retirando-a dos preconceitos que a cegam. Precedendo-a, antecipando-se a ela, adivinhando-a com aquela pergunta direita ao coração, Jesus dá-se a conhecer à Madalena, deixando-a a pensar mais ou menos assim: «E como é que este desconhecido sabe que eu ando à procura de alguém neste jardim?». Compreendendo-se compreendida, a Madalena começa a sair aqui da sua cegueira, mas ainda precisa de algum tempo para mudar de paisagem, de margem, de página, do Capítulo 19 para o Capítulo 20. A resposta que dá é elucidativa: «Se foste tu que olevaste, diz-me onde opuseste, e eu o retirarei» (João 20,15).
- Ao responder com um pronome três vezes repetido, que esconde o nome, vê-se bem que a Madalena sabe que aquele desconhecido bem sabe quem ela procura. E confessa aqui o intento que desde aquela madrugada, ainda escuro, a movia: retirar para si aquele corpo morto! Manifesta que anda ainda perdida no Capítulo 19, quando responde «em hebraico» (hebraïstí) a Jesus que acabava de pronunciar o nome dela: «Maria!» (João 20,16). A locução adverbial «em hebraico» (hebraïstí) é uma ponte para João 19,13 e 17. Equivocada como anda, ainda quer reter o Ressuscitado, mas não pode: aprende ainda que nada nem ninguém pode reter o Ressuscitado, aquela vida nova, aquele modo novo de estar presente! Leva tempo até passar da margem da morte para a margem da vida verdadeira! E finalmente vai anunciar aos discípulos, que Jesus significativamente chama «meus irmãos» (João 20,17), enviada pelo Ressuscitado: «Vi (heôraka) o Senhor!» (João 20,18). Nova mudança de olhar. O que ela diz agora é: Vi e continuo a ver o Senhor! É o que significa o verbo grego horáô, no tempo perfeito. É o olhar da testemunha que vê o inefável! Aqui termina a Madalena o seu longo e belo percurso, e sai de cena.
É o amor, ainda que imperfeito,
É o amor, ainda que com defeito,
É o amor que faz correr a Madalena.
É o amor, ainda que imperfeito,
É o amor, ainda que com defeito,
É o amor que faz chorar a Madalena.
Mas tu sabes, meu irmão da páscoa plena,
Tu sabes que há outro amor em cena,
E é esse amor que faz amar a Madalena.
- Os primeiros cristãos rapidamente fizeram do Santo Sepulcro o seu primeiro e mais venerado lugar de culto, que o Imperador Adriano (117-138) soterrou e paganizou, estabelecendo ali cultos pagãos (no lugar da Ressurreição, colocou a estátua de Júpiter, e, no Calvário, pôs uma estátua de Vénus em mármore), com o intuito de desviar deles os cristãos. O mesmo fez em todos os lugares santos da Palestina. Todavia, Em 326, Santa Helena, mãe do imperador Constantino, que aí terá descoberto a Cruz do Senhor, mandou demolir as construções pagãs, e vieram à luz outra vez os primitivos e venerados lugares cristãos, que foram então englobados num magnífico edifício Constantiniano, consagrado no dia 13 de Setembro do ano 335, e que era formado pela Anástasis, grandioso mausoléu que guardava no centro o Santo Sepulcro, o Triplo Pórtico, que abrigava o rochedo do Gólgota, e o Martyrium, que guardava o lugar da crucifixão e morte do Senhor. No dia imediatamente a seguir à dedicação da Basílica, 14 de Setembro desse ano 335, teve lugar e origem a veneração da Cruz de Cristo, hoje, Festa da Exaltação da Santa Cruz. Esta comemoração ganhou novo relevo quando, em 630, o imperador Eráclio derrotou os Persas, e as relíquias da Cruz foram trazidas processionalmente para Jerusalém. Esta bela Basílica Constantiniana foi danificada por diversas invasões e ocupações. A atual Basílica do Santo Sepulcro, que os ortodoxos e os árabes chamam Anástasise Qiyama, termos que em grego e árabe significam «Ressurreição», é fruto de cinquenta anos de trabalho dos Cruzados (1099-1149). Aqui estão guardadas as mais fundas raízes da nossa vida cristã, hoje quase uma espécie de «condomínio» de três Igrejas cristãs, infelizmente separadas entre si: a igreja greco-ortodoxa, a romano-católica e a armena. Aqui se sente ao vivo a mesma e comum fé pascal, mas também o drama da separação.
- Na Leitura que hoje escutamos do Livro dos Atos dos Apóstolos (10,34-43), os Apóstolos dão testemunho do que viram. Foi‑lhes dado ver exatamente para dar testemunho. Viram e testemunham o Batismo de Jesus, a execução da sua missão filial batismal, a sua Morte na Cruz, a sua Ressurreição Gloriosa, a sua Vinda Gloriosa. Mas os Apóstolos insistem que também os Profetas [= Antigo Testamento] dão testemunho d’Ele Ressuscitado, no qual se cumpre para nós a «remissão dos pecados», o Jubileu divino do Espírito Santo (v. 43). A base profética é imponente: Jeremias 31,34; Isaías 33,24; 53,5‑6; 61,1; Ezequiel 34,16; Daniel 9,24. Ver depois João 20,19‑23. «As Escrituras» (então o Antigo Testamento) apontam para o Ressuscitado! O Ressuscitado remete para «as Escrituras». Cumplicidade entre o Ressuscitado e «as Escrituras». Na verdade, o Ressuscitado cumpre e enche as «Escrituras». Não está depois delas ou no fim delas. Está no meio delas, fá-las transbordar, transborda delas.
- O Capítulo III da Carta aos Colossenses (3,1-4) trata a «vida nova» em Cristo, que é vida batismal, operada pelo Espírito Santo que faz morrer e renascer na Fonte da Graça. Por isso, adverte solenemente Paulo: «procurai as coisas do alto» (v. 1), «pensai as coisas do alto» (v. 2), exortação que ecoa ainda no Diálogo que antecede o Prefácio: «Corações ao alto!», a que respondemos com a alegria e a sabedoria do Espírito: «O nosso coração está em Deus!», enquanto ecoa ainda em cada coração habitado pelo Espírito o «Glória a Deus nas alturas!».
- Em alternativa a Colossenses 3,1-4, pode ler-se e escutar-se 1 Coríntios 5,6-8. A sua linguagem é da cor da Páscoa (grego páscha, hebraico pesah). O Novo Testamento usa o termo grego páscha[= Páscoa] por 28 vezes, assim distribuídas: 24 vezes nos Evangelhos + Atos 12,4 e Hebreus 11,28, todas em referência exclusiva à Páscoa hebraica do Antigo Testamento; as duas menções que faltam são precisamente 1 Coríntios 5,7 e Lucas 22,15, esta com o precioso lógionde Jesus: «Desejei ardentemente esta Páscoa (toûto tò páscha) comer convosco». Em 1 Coríntios 5,7, lemos a expressão tò páscha hêmôn etýthê Christós, cuja tradução não pode ser «Cristo, a nossa Páscoa, foi imolado», como se vê habitualmente, mas «durante a nossa Páscoa (hebraica), foi imolado Cristo». Os motivos são gramaticais (tò páscha hêmôn é um acusativo adverbial) e teológicos: o cordeiro da páscoa não é um sacrifício imolado; não é queimado sobre o altar; não é oferecido ao Senhor (só o que é oferecido ao Senhor é sacrifício); é convivialmente comido em família. Sacrifício da Páscoa era a ʽôlat-tamid, o holocausto perpétuo, diário, o sacrifício de dois cordeiros, filhos de um ano, um de manhã e outro de tarde, conforme Êxodo 29,38-42 e Números 28,3-8, e que, sendo diário, precedia qualquer celebração festiva. Só depois deste sacrifício quotidiano, se procedia, em dias de festa, como é a Páscoa, ao sacrifício da festa propriamente dito, sacrifício suplementar, e que, na Páscoa, consistia num «sacrifício de ovelhas e bois», este sim, «Páscoa imolada para o Senhor» (Deuteronómio 16,2). De notar também que o Novo Testamento desconhece em absoluto o adjectivo «pascal», de que nós fazemos uso indiscriminado, e não pensado. A restante linguagem da cor da Páscoa que 1 Coríntios 5,6-8 mostra é o fermento (hamets) e os pães ázimos (matstsôt). Servem os termos para Paulo reclamar dos cristãos vida nova (pães ázimos), sem malícia (fermento velho).
D. António Couto
ANEXOS:
- Apoio às Leituras Vigília Pascal – Ano B – 03.04.2021
- Triduo – Ano B – Lecionário
- Ceia do Senhor – 5ª Feira Santa Leitura I (Ex 12, 1-8.11-14)
- Ceia do Senhor -5ª Feira Santa(resto Leitura I e Leitura II (1 Cor 11, 23-26)
- Celebração da Paixão do Senhor – 6ª Feira Santa – Leitura II (Heb 4, 14-16_5, 7-9)
- Celebração da Paixão do Senhor – 6ª Feira Santa- resto da Leitura I
- Celebração Paixão Senhor – 6ª Feira Santa – Leitura I (Is 52, 13-53,12)
- Oração Universal – Quinta-Feira Santa-01.04.2021
- Oração Universal – Sexta-Feira Santa-02.04.2021
- Oração Universal – Vigilia Pascal
- Oração Universal -Domingo de Páscoa
Com a celebração do Domingo de Ramos na Paixão do Senhor damos início à Semana Santa onde somos convidados a fixar o nosso olhar na Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus. A Semana Santa inicia e termina com um evangelho de festa, marcado pela alegria. Iniciamos a celebração deste Domingo com a proclamação do Evangelho que narra a entrada de Jesus em Jerusalém onde é aclamado com brados de alegria e de júbilo que ainda hoje repetimos na celebração da Eucaristia: «Hossana! Bendito O que vem em nome do Senhor! Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai David! Hossana nas alturas!» e na soleníssima noite de Páscoa haveremos de escutar o solene anúncio da Ressurreição gloriosa. Contudo, esta moldura de alegria e de festa encerra no seu interior a paixão e morte, o duro caminho da paixão que escutamos no Evangelho da missa.
O sofrimento e a morte, a paixão e a crucifixão não têm a última palavra. Com Jesus somos chamados a percorrer o caminho da Cruz mas conscientes que caminhamos do transitório para o pleno e definitivo. Só a Ressurreição de Jesus é plena e definitiva! Apesar da inevitabilidade do sofrimento e da morte na nossa peregrinação terrena, tomamos consciência de que o sofrimento e a morte têm carácter de provisoriedade, enquanto a ressurreição e a vida eterna se revestem de plenitude e eternidade.
O nosso Deus não é indiferente às nossas dores e angústias, dores e sofrimentos, mas assumiu a nossa condição humana fazendo suas as dores da humanidade: «Cristo Jesus, que era de condição divina, não Se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio. Assumindo a condição de servo, tornou-Se semelhante aos homens. Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz».
Nunca será demais ler, meditar e contemplar estas palavras da Carta de S. Paulo aos Filipenses. Em Jesus Cristo, Deus cheio de amor vem ao nosso encontro, assume a nossa frágil humanidade para nos elevar com Ele à glória da divindade. Assume a natureza frágil e provisória para nos fazer tomar parte da promessa total, plena e definitiva.
Deus desce para que juntos possamos subir. O caminho quaresmal que percorremos é expressão concreta deste caminho como nos recordava o Papa Francisco na celebração de Quarta-feira de Cinzas: «Hoje inclinamos a cabeça para receber as cinzas. No termo da Quaresma, abaixar-nos-emos ainda mais para lavar os pés dos irmãos. A Quaresma é uma descida humilde dentro de nós e rumo aos outros. É compreender que a salvação não é uma escalada para a glória, mas um abaixamento por amor».
Contemplando o caminho da cruz entramos nesta nova lógica da vida cristã: a vida é tanto mais nossa, quanto mais for dos outros; a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida. Um novo modo de ser e de estar que se traduz numa nova forma de servir e amar. O pão partido e repartido e o cálice partilhado à volta da mesa perpetuam no tempo e na história a entrega da cruz e, por isso, reunidos para celebrar a Eucaristia no Domingo de Ramos na Paixão do Senhor celebramos a paixão e morte de Jesus mas aclamando a glória da Ressurreição. Como aquela multidão de outrora, queremos sair à rua para acolher e aclamar Jesus que continua a visitar-nos no rosto sofredor dos nossos irmãos, em tantas situações de carência e debilidade que silenciosamente continuam a gritar e a reclamar a nossa presença.
In Voz Portucalense
LEITURA I – Is 50,4-7
«o Senhor Deus veio em meu auxílio, e, por isso, não fiquei envergonhado».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 21 (22)
Refrão – Meu Deus, meu Deus, porque me abandonastes?
LEITURA II – Filip 2,6-11
«Aparecendo como homem, humilhou-Se ainda mais, obedecendo até à morte e morte de cruz».
EVANGELHO – Mc 14,1-15,47
«Todos vós Me abandonareis, como está escrito: ‘Ferirei o pastor e dispersar-se-ão as ovelhas’. Mas depois de ressuscitar, irei à vossa frente para a Galileia».
«José comprou um lençol, desceu o corpo de Jesus e envolveu-O no lençol; depois depositou-O num sepulcro escavado na rocha e rolou uma pedra para a entrada do sepulcro».
Para os leitores:
A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação. Requer uma leitura pausada e atenta que exprima toda a densidade e intensidade dramática do texto. A última frase exige uma especial atenção para que se possa transmitir a confiança e esperança que o auxílio de Deus oferece.
A segunda leitura é um hino litúrgico e poético e apresenta duas partes distintas: uma primeira mais dramática e uma segunda mais jubilosa e marcada pela exaltação de Jesus. A proclamação desta leitura deve ter presente todos estes elementos. A narrativa evangélica da Paixão do Senhor, na ausência de diáconos, pode ser lida por mais dois leitores, reservando a parte de Cristo ao sacerdote. Tendo em conta os diversos diálogos e a dimensão do texto, aqueles que participam na leitura devem fazer uma acurada preparação das diversas intervenções ao longo do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Batizado com o Espírito Santo no Jordão, confirmado com o Espírito Santo no Tabor, Jesus realizou a sua missão filial batismal anunciando o Evangelho do Reino de Deus e fazendo as suas «obras». A sua «viagem» chega agora ao fim, em Jerusalém, onde o seu Batismo deve (plano divino) ser consumado (ainda Lucas 12,49‑50) na sua Morte Gloriosa: única Fonte do Espírito Santo para nós, porque única Fonte da Vida Eterna verdadeiramente Dada (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). De facto, não se alcança através da nossa planificação. As coisas supremas não são planificáveis. Já estão prontas para receber. A missão filial batismal do Filho de Deus finalmente consumada! É que fomos, de facto, batizados na sua Morte (Romanos 6,3), e, com Ele, fomos já com‑sepultados, com‑ressuscitados, com‑vivificados e com‑sentados na G1ória! (Efésios 2,5‑6; Colossenses 2,12‑13: tudo verbos cunhados por Paulo e postos em aoristo histórico!). Formamos, por isso, «a Igreja que Ele amou» (Efésios 2,25). A este amor de Cristo pela Igreja chama Paulo «o mistério grande» (Efésios 5,32). Nós, a Igreja do amor de Cristo, somos, portanto, a esposa bela, a nova Jerusalém (Apocalipse 19,7‑9; 21,2.9-27) que, juntamente com o Espírito, diz ao Senhor Jesus: Vem! (Apocalipse 22,17).
O tom deste Domingo de Ramos é dado pela bela página de Marcos 11,1-10, que nos mostra o Rei messiânico a tomar posse da sua Cidade, a «Cidade do Grande Rei» (Salmo 45,5; 47,2-3; Tobias 13,11; Mateus 5,35), a Esposa bela que nascerá do seu Sangue: Esposa cúmplice da Morte do Esposo, e beneficiária da Morte do Esposo! Esposa, portanto, e no entanto! Que ao encontro do Esposo desce em vestido de noiva, não de viúva! (Apocalipse 21,2). O Rei messiânico toma posse da sua Cidade, a Filha de Sião, a Esposa; vem montado sobre o jumento da paz, e não sobre cavalos de guerra, cumprindo Zacarias 9,9. De notar que Zacarias escreveu esta página deslumbrante de um Rei diferente, pobre, manso e humilde, em contraponto com o imponente espetáculo do grande Alexandre Magno, quando este, em finais do século IV a. C., descia a costa palestinense a caminho do Egito, com todo o seu arsenal de riqueza e de prepotência militar! Estendem-se as capas e ramos de árvores no caminho: assim se procedia quando o rei subia ao trono (cf. 2 Reis 9,13). A multidão canta «Hossana» [= «Salva, por favor!»] (Salmo 118,5), saudando o Rei-que-Vem, «Aquele-que-Vem» (título divino) (Salmo 118,26), com o Reino de David, o novo David!
Dado o insólito da situação, não é possível não reparar que Jesus não entra em Jerusalém como Peregrino ou Mestre ou Taumaturgo. Mas como o Rei futuro prometido, pobre e humilde, anunciado em Zacarias 9,9. Por isso, nesta última etapa do seu caminho, desde Betfagé e Betânia, perto do Monte das Oliveiras, até à Cidade de Jerusalém, Jesus não vai a pé, como sempre andou nos caminhos das cidades e aldeias da Palestina, ou de barco, quando se tratava de atravessar o mar da Galileia. Agora, neste último troço da sua viagem, Jesus faz questão de o percorrer, não a pé, mas montado num jumento, ainda não montado por ninguém (Marcos 11,2): o Rei é o primeiro em tudo! E toda a temática relativa ao jumento montado por Jesus torna-se tão evidente, que não pode passar despercebida a ninguém. Basta reparar na distribuição dos dez versículos desta passagem (Marcos 11,1-10): sete ocupam-se com a meticulosa procura do jumento e com o modo simples e novo, sem arreios, como Jesus o monta!
Ainda hoje, no domingo de Ramos, não obstante o ambiente abertamente hostil aos cristãos que se respira, se faz, desde Betfagé, uma pequena aldeia hoje totalmente muçulmana com um pequeno santuário à guarda dos Franciscanos, uma impressionante procissão e manifestação de fé que, descendo o Monte das Oliveiras, termina na Igreja de Santa Ana, junto da porta de Santo Estêvão (ou dos Leões).
O Evangelho que enche este Domingo de Ramos na Paixão do Senhor é o imenso e impressionante relato da Paixão de Marcos 14,1-15,47 (note-se que o texto soma 119 dos 677 versículos que contabiliza o inteiro Evangelho de Marcos), que marca o ritmo da «Semana Santa», que as Igrejas do Oriente chamam «Semana Grande», e que o antigo rito da Igreja de Milão conhecia por «Semana Autêntica». Somos nós, portanto, carregando os nossos ódios, raivas, mentiras, invejas e violências, seguindo a par e passo o Rei manso e obediente que a nós e por nós se entrega por amor, absorvendo, absolvendo e dissolvendo assim o nosso lado sombrio e pecaminoso. Momentos decisivos em que a Esposa bela, por graça tornada bela, segue o Esposo passo a passo: a unção para a sepultura em Betânia (Marcos 14,3-9), a Ceia Primeira (e não última!) (Marcos 14,12-31), o abismo do Getsémani (Marcos 14,32-42), a prisão (Marcos 14,43-52): todos o abandonam (Marcos 14,50); Jesus fica sozinho, verdadeiro «Resto de Israel», os processos e a condenação (Jesus afirma‑se como «o Bendito», «o Filho de Deus», «o Messias», «o Rei»), a entrega à morte de cruz por Pilatos (Marcos 15,15), mas, na verdade, por Deus (1 Coríntios 11,23: paredídeto: passivo divino!), a coroa de espinhos, a Cruz santa e gloriosa, as três tentações por parte dos que passavam, dos sacerdotes, dos demais crucificados: «salva‑te a ti mesmo», «desce da cruz» (Marcos 15,29‑32), a oração do Salmo 22 (todo): começa «Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?», e termina «esta é a obra do Senhor!», a agonia e a Morte precedida do grande grito (Marcos 15,33 e 37), que indica a Vitória de Deus, enfim, a sepultura. Proclamação da máxima Obra de Deus no mundo, a indizível Economia divina na vida terrena do Filho de Deus! A proclamação deve seguir‑se com a conversão do coração, e, sobretudo, com o louvor no coração.
Quem atravessa com extremosa atenção este imenso texto, há de por força reparar no silêncio prolongado de Jesus perante testemunhas e acusações falsas. Este silêncio aparece condensado e referido em dois momentos, que são também os únicos em que Jesus quebra o silêncio para responder a duas perguntas. Primeira anotação: «Levantando-se então o sumo-sacerdote no meio deles, interrogou Jesus, dizendo: “Nada respondes a estes que testemunham contra ti?”. Ele, porém, ficou calado, e nada respondeu. O sumo-sacerdote interrogou-o de novo: “És tu o Cristo, o Filho do Bendito?”. Então Jesus disse: “Eu sou!”» (Marcos 14,60-62). Segunda anotação: «Pilatos interrogou-o: “Tu és o Rei dos judeus?”. Ele então respondeu e disse-lhe: “Tu o dizes!”. E acusavam-no os sumo-sacerdotes de muitas maneiras. Então Pilatos interrogou-o novamente e disse-lhe: “Não respondes nada? Vês de quantas coisas te acusam!”. Jesus, porém, nada mais respondeu» (Marcos 15,2-5). Vê-se bem que Jesus apenas quebra o silêncio por duas vezes, para responder a duas perguntas sobre a sua identidade.
Vendo bem, somos todos levados a percorrer e a reviver as últimas decisivas vinte e quatro horas de Jesus, desde as 15h00 de Quinta-Feira Santa até perto das 18h00 de Sexta-Feira Santa:
15h00 = Preparação da Ceia
18h00 = Ceia Primeira!
21h00 = Getsémani
24h00 = Prisão de Jesus
03h00 = Pedro nega e o galo canta
06h00 = Jesus diante de Pilatos
09h00 = Crucifixão de Jesus
12h00 = as trevas em vez da Luz!
15h00 = Morte de Jesus
18h00 = Sepultamento de Jesus
Note-se que, na cronologia dos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), esta Quinta-Feira é o dia da Preparação da Páscoa, comendo-se a Ceia Pascal logo após o pôr-do-sol (no calendário religioso hebraico já é Sexta-Feira, dado que o dia começa com o pôr-do-sol). Como se vê, esta cronologia vê na Ceia de Jesus com os seus Discípulos uma Ceia Pascal. Também de acordo com esta cronologia, Jesus é preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado em Sexta-Feira, Dia da Páscoa dos judeus, o que seria muito estranho! O Evangelho de S. João apresenta outra cronologia, hoje defendida pela maioria dos estudiosos, segundo a qual Jesus terá comido uma Ceia, a sua Ceia Nova em Quinta-Feira, mas não a Ceia ritual da Páscoa dos judeus, e foi preso, julgado, condenado, crucificado, morto e sepultado, em Sexta-Feira, dia da Preparação, antes da Ceia ritual da Páscoa dos judeus, que João coloca no Sábado, e não na Sexta-Feira. No seu Livro sobre Jesus de Nazaré, Bento XVI defende também esta cronologia joanina. De resto, as Igrejas do Ocidente seguem a cronologia dos Sinópticos: por isso, a nossa Eucaristia é com pão Ázimo, derivado do ritual da Ceia da Páscoa dos judeus. Por seu lado, as Igrejas do Oriente seguem a cronologia joanina, sendo a sua Eucaristia com pão comum, dado não derivar do ritual da Páscoa dos judeus.
D. António Couto
ANEXOS:
A fama de Jesus estendia-se ao longe e ao largo e a notícia dos milagres, sinais e prodígios que realizava difundia-se por toda a região. Jesus não era mais um profeta que falava das coisas de Deus, mas na Sua pregação palavras e gestos, intimamente ligados entre si, falavam de Deus e irrompiam no tempo e na história revestidos de uma novidade que a todos desconcertava. Deste modo, não nos surpreende que as multidões acorram a Jesus e que de toda a parte surjam homens e mulheres que querem ver com os seus próprios olhos tudo quanto se diz deste Jesus de Nazaré.
O Evangelho que escutamos neste quinto Domingo da Quaresma apresenta «alguns gregos» que tendo vindo a Jerusalém se aproximam de Filipe para lhe fazer um pedido: «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Analisando o grego em que este texto foi escrito, encontramos o verbo ideîn (ver) que é muito mais que um ver físico e curioso, mas a procura da verdadeira identidade de Jesus. Estes homens não querem apenas ver Jesus, mas sobretudo ver quem é Jesus. Este conhecimento está para lá de uma visão exterior ou de uma análise comportamental, porque implica uma relação de intimidade que permite ir para lá do que veem os olhos e do que ouvem os ouvidos, para entrar no conhecimento íntimo e pessoal Daquele que veio para revelar o rosto misericordioso do Pai.
É curioso o modo como o desejo daqueles gregos chega a Jesus: vão ter com Filipe, Filipe vai ter com André e os dois juntos vão ter com Jesus. É a dinâmica eclesial do encontro com Jesus Cristo. Os discípulos que seguem e acompanham Jesus são interpelados por aqueles que O procuram e estes, por sua vez, procuram que aconteça o verdadeiro encontro com Jesus. Filipe poderia fazer uma breve apresentação de Jesus, falar-lhes daquilo que o Mestre diz e faz, comunicando a mensagem que Ele veio trazer. Contudo, Filipe opera de modo diverso. Em primeiro lugar, não age sozinho, pois a resposta à pergunta e ao pedido «quem é Jesus?» não se responde isoladamente, cada um por si, mas em comunhão e comunidade. Filipe e André, que levam a Jesus os pedidos daqueles homens, são figura da Igreja, chamada a viver e a caminhar na unidade e na comunhão, levando a Jesus os pedidos e intenções da humanidade inteira e fazendo presente no tempo e na história o rosto misericordioso de Jesus Cristo que revela o amor e a ternura do Pai.
Jesus poderia limitar-se a uma apresentação sumária da sua biografia ou a um belo discurso sobre a sua missão. Contudo, Jesus escolhe fazer a revelação da Sua mais plena e verdadeira identidade: o grão de trigo lançado à terra e o crucificado elevado da terra que atrairá todos a si. Jesus não pretende um conhecimento fugaz que faz acumular conhecimentos e informações, mas uma relação íntima e pessoal que transforma a vida e ensina um novo modo de relação dos homens e mulheres entre si e deles todos juntos com Deus.
Tantos séculos depois continuamos a dizer como os gregos «Senhor, nós queríamos ver Jesus». Queremos conhecer a Sua verdadeira identidade e entrar em relação com Ele. Conhecer alguém apenas por aquilo que dizem dela, ainda que possa ser um bom ponto de partida, é sempre insuficiente, pois conhecer implica relação, proximidade e encontro.
Encontramos a verdadeira identidade de Jesus numa vida feita grão de trigo lançada à terra que germina, cresce e dá fruto, pois a vida, quanto mais se dá, mais se recebe e quanto mais se entrega aos outros, mais se torna nossa e de Deus: a vida é verdadeiramente vida quando entregue sem medida.
In Voz Portucalense
LEITURA I – Jer 31,31-34
«Dias virão, diz o Senhor, em que estabelecerei com a casa de Israel e com a casa de Judá uma aliança nova».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 50 (51)
Refrão: Dai-me, Senhor, um coração puro.
LEITURA II – Hebr 5,7-9
«Apesar de ser Filho, aprendeu a obediência no sofrimento e, tendo atingido a sua plenitude, tornou-Se para todos os que Lhe obedecem causa de salvação eterna».
EVANGELHO – Jo 12,20-33
«Senhor, nós queríamos ver Jesus».
«Se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica só; mas se morrer, dará muito fruto».
Para os leitores:
A primeira leitura não apresenta nenhuma dificuldade aparente na sua proclamação, contudo, deve ler-se com um tom alegre e feliz como quem anuncia uma bela e boa notícia.
A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a sua preparação. Apesar de breve, apresenta dois parágrafos com diversas orações, pelo que é essencial uma preparação das pausas e respirações do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
A «caminhada» quaresmal aproxima‑se da sua meta e do seu verdadeiro ponto de partida: a Cruz Gloriosa, onde resplandece para sempre o Rosto do imenso, indizível amor de Deus por nós. Nesta altura do percurso (supõe‑se que encetámos uma subida «espiritual»: entenda‑se no Espírito Santo e com o Espírito Santo), batizados e catecúmenos devem estar já a ser Iluminados por essa Luz, a ponto de se desfazerem das «obras das trevas» e de abraçarem as «obras da luz», como verdadeiros discípulos que seguem o Mestre até ao fim, que é também o princípio, a Fonte da Vida verdadeira donde jorra o Espírito Santo (sempre Atos 2,32-33; João 19,30 e 34; 7,38-39). Os catecúmenos têm neste Domingo V da Quaresma os seus terceiros «escrutínios»: última «chamada» para a Liberdade antes da Noite Pascal Batismal.
O Evangelho deste Domingo V da Quaresma (João 12,20-33) apresenta-nos o último discurso e a última aparição de Jesus em público, aos olhos da «multidão» (João 12,29 e 34), antes da narrativa da Ceia e da Paixão. Pouco depois, o evangelista diz‑nos que «Jesus se retirou e se escondeu deles» (João 12,36). A nós, porém, foi‑nos dado conhecer o Mistério deste escondimento, que o não é senão para se vir a manifestar (leia‑se de novo inteligentemente o lógion de Jesus no Evangelho de Marcos: «nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,22), e que esclarece o Mistério da Luz-que-vem (!), que é Ele, no versículo anterior). Em boa verdade, este Jesus que agora se esconde da multidão manifestar-se-á definitivamente, aos olhos de todos (também aos nossos!), na Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a esta geração (Mateus 12,39‑40; 1 Coríntios 1,20‑24): «olharão para aquele que trespassaram» (João 19,37).
É neste contexto que «uns gregos» (João 12,20) querem ver (ideîn) Jesus (João 12,21). São gregos de nascimento (hellênes), mas já não são pagãos. São prosélitos ou «tementes a Deus», que receberam o dom do «temor de Deus» (cf. At 10,2.22.35; 13,16.26), e se converteram dos ídolos ao Deus único, aderindo ao monoteísmo de Israel e à prática dos mandamentos. Tão-pouco são os chamados «helenistas» (hellênistai), hebreus na diáspora, que falavam a língua grega e tinham aderido à cultura grega. Note-se, desde já, o verdadeiro alcance deste desejo de ver, formulado com o verbo ideîn. De ideîn deriva, em português, ideia e identidade. A formulação deste ver com o verbo ideîn implica, portanto, que aqueles gregos não são movidos por mera curiosidade, não pretendem ver apenas Jesus por fora, isto é, ver o aspeto ou o rosto de Jesus. Eles pretendem ver a identidade de Jesus, ou seja, pretendem ver quem é Jesus. Ora, ver quem é Jesus não se resolve em cinco minutos, num simples relance de olhos. Implica uma longa e intensa convivência com Jesus.
Comunicam este seu desejo a Filipe, o qual, por sua vez, o comunica a André. Filipe e André são conterrâneos, naturais de Betsaida Julia (João 1,44), situada nos confins da Galileia e no limiar do mundo helénico, e são os dois únicos Apóstolos com nome claramente grego. Contam-se também entre os primeiros discípulos que, querendo saber quem era Jesus, se dirigiram a Ele, e que logo comunicaram a sua experiência a outros, e os conduziram a Jesus (cf. João 1,35-46). Pelos vistos, não se cansaram nem esqueceram esse jeito de fazer, e é assim que os vemos no episódio de hoje a desempenhar com diligência o seu papel de fazer de ponte entre a humanidade e Jesus. Os dois levam a mensagem a Jesus (João 12,22). E Jesus marca a hora da entrevista: desde agora e para sempre. É este o sentido do a hora veio (João 12,23). Veio (elêluthen: perf2 de érchomai) e fica para sempre: assim o indica o perfeito usado no texto grego. Esta hora que veio é a hora da morte, ressurreição, glorificação (um único acontecimento), é a hora da Cruz Gloriosa, último e único sinal dado (por Deus) a «judeus» e a «gregos», portanto, a todos. A entrevista começou e não termina mais, pois o futuro anunciado do discípulo é o presente do Mestre, a Glória celestial em que está: «onde eu estou (eimí), aí estará (éstai) também o meu servo» (João 12,26).
Para o leitor atento do IV Evangelho, esta hora (hôra) de Jesus de há muito era esperada, dado que, em episódios sucessivos, Jesus e o narrador vão orientando para ela o olhar dos seus discípulos. Acontece logo nas bodas de Caná, quando Jesus diz: «ainda não chegou a minha hora» (João 2,4). E, em Jerusalém, no decurso da Festa das Tendas, o narrador informa-nos por duas vezes que os judeus bem queriam prendê-lo, mas não o fazem «porque ainda não tinha chegado a sua hora» (João 7,30; 8,20). Sempre durante a Festa das Tendas, o próprio Jesus enche esta hora com conteúdo novo e significativo, quando diz: «O meu tempo (kairós) ainda não chegou» (João 7,6). Kairós não é o mero tempo cronológico, mas o tempo grávido, verdadeira enchente da Palavra de Deus e da nossa resposta, até transbordar. Sem Deus e a sua Palavra primeira e criadora, que está antes das coisas e do homem, que faz acontecer as coisas e o homem, não há kairós nem chrónos. Chrónos é o segmento de tempo que nos é dado viver. Kairós é este segmento de tempo com relevo, o tempo grávido de beleza e de amor, que requer de nós a adequada resposta à Palavra primeira e criadora de Deus.
Aí está a inaudita história nova do grão de trigo: «Se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; mas se morrer, produz (phérô) muito fruto» (João 12,24). É fácil ver neste único grão de trigo, e neste grão de trigo único, e na sua história de produção nova e incalculável, o próprio Jesus. Sim, esta é a sua história, mas vê-se também, olhando em contraluz o grão de trigo e o seu percurso, a inteira história humana, em que do abaixamento, do sangue inocente, da humildade e da humilhação, brota sempre vida nova. Paradoxal: a morte a produzir fruto abundante. O v. 25, logo a seguir, esclarece e amplia este paradoxo, com Jesus a dizer bem alto: «quem se agarra à sua vida, perde-a». Portanto, é forçoso que o discípulo de Jesus olhe para o chão, e aprenda a lição do grão de trigo semeado. Mas é igualmente necessário, e em simultâneo, olhar para o céu, para o alto, para o cume, para a Cruz, para poder ser, por graça, arrastado por Jesus (v. 32). Só assim se pode perceber e receber a vida eterna, a vida divina. Fora deste paradigma, nada. Apenas agarrar-se a esta vida e «receber glória uns dos outros» (João 5,44).
Aquele «veio a hora» enche o tempo, leva-o e eleva-o à sua plenitude, e vê-se toda a latitude aberta diante dos nossos olhos atónitos. É a hora da Cruz Gloriosa, avenida para sempre aberta entre Deus e nós. Graça a transbordar. Tempo novo. É importante acentuar que são «uns gregos», também os gregos, que querem ver Jesus (João 12,20-21). Cenário grandioso, muito para além do imaginado, mas que mostra bem a largueza da ambiência desta hora e da audiência que segue Jesus para escutar esta cena altíssima da Revelação de Jesus acerca da chegada da sua hora, que é a Cruz Gloriosa. Jesus terminará a suprema Revelação desta hora, dizendo: «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (João 12,32). E os próprios fariseus tinham confessado imediatamente antes do início do nosso texto: «O mundo (ho kósmos) veio atrás dele (opísô autoû)!» (João 12,19).
D. António Couto
ANEXOS:
«O que é a Quaresma?». Esta é uma pergunta frequente que os catequistas gostam de dirigir aos seus catequizandos. Com a exceção de um ou outro comentário mais desestabilizador afirmando ser um conhecido jogador de futebol, a resposta das crianças, adolescentes ou jovens é unânime: «a Quaresma é o tempo de preparação para a Páscoa». Na verdade, a Quaresma é o tempo que nos conduz à celebração da Páscoa da Ressurreição e, por isso, tempo de preparação para a celebração da mais importante solenidade do calendário litúrgico. Contudo, é tempo de preparação para a verdadeira Páscoa, aquela que nos liberta do pecado e da morte e nos faz entrar na vida nova e ressuscitada que Jesus nos oferece.
Deste modo, a Quaresma é tempo de conversão e penitência e abre o nosso coração para a alegria nova da renovação de vida e transformação do coração. A Quaresma é o tempo feliz de experimentar o amor superabundante de Deus que envia o Seu Filho não para condenar o mundo, mas para o redimir, salvar e levar à sua plena realização.
Muitas vezes a Quaresma parece um «puxar a fita atrás» e percorrer o caminho da condenação, paixão e crucifixão de Jesus até à ressurreição. Contudo, a Quaresma não é um recuar no tempo para reviver o sofrimento e entrega de Jesus. A Quaresma que atravessamos para chegar à celebração da Páscoa faz-se sempre depois da Páscoa da Ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, porque Ele ressuscitou e está vivo e, por isso, vivemos a Quaresma como tempo alegre e feliz da presença do Ressuscitado que nos convida à conversão.
Neste itinerário de penitência e renovação de vida, emerge o IV Domingo da Quaresma, Domingo Laetare, que sublinha a alegria que a conversão oferece à vida e com as palavras de Isaías cantamos na antífona de entrada: «Alegra-te, Jerusalém; rejubilai, todos os seus amigos. Exultai de alegria, todos vós que participastes no seu luto e podereis beber e saciar-vos na abundância das suas consolações».
A Liturgia da Palavra deste Domingo sublinha a estreita relação entre alegria e amor, recordando que a verdadeira alegria nasce da certeza de que Deus nos ama e nos chama a participar da Sua vida divina entrando neste dinamismo de amor. Como recorda o Segundo Livro das Crónicas, Deus envia sem cessar os Seus mensageiros para recordar o amor de Deus que converte e quer salvar o homem e a mulher do seu mau caminho. Este amor revelado de modo pleno e definitivo em Jesus Cristo, como nos recorda S. Paulo, «restituiu-nos à vida com Cristo».
Nas noites escuras da nossa existência, onde o medo e a vergonha tantas vezes nos invadem como aconteceu com Nicodemos, podemos sentir a voz de Jesus que dissipa o medo e afasta o temor: «Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna». O mundo e a criação, cada homem e cada mulher são desmedidamente amados por Deus, ao ponto de Ele lhe enviar o Seu único Filho para o redimir e salvar.
Esta graça que Deus nos concede, fazendo de cada um de nós filhos muito amados de Deus, desafia-nos a entrar neste dinamismo de amor, fazendo de cada um de nós verdadeiros instrumentos e sinais de que o mundo não é para ser julgado e condenado, mas amado, salvo e redimido e, por isso, como afirmou o Padre Virginio Rotondi: «o mundo amado apaixonadamente por Deus não pode deixar de ser amado por nós».
In Voz Portucalense
LEITURA I – 2 Cr 36,14-16.19-23
«O Senhor, Deus de seus pais, desde o princípio e sem cessar, enviou-lhes mensageiros, pois queria poupar o povo e a sua própria morada».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 136 (137)
Refrão: Se eu me não lembrar de ti, Jerusalém, fique presa a minha língua.
LEITURA II – Ef 2,4-10
«Deus, que é rico em misericórdia, pela grande caridade com que nos amou».
EVANGELHO – Jo 3,14-21
«Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho Unigénito, para que todo o homem que acredita n’Ele não pereça, mas tenha a vida eterna».
«Quem pratica a verdade aproxima-se da luz, para que as suas obras sejam manifestas, pois são feitas em Deus.».
Para os leitores:
A primeira leitura exige uma acurada preparação quer pela extensão do texto, quer por algum vocabulário menos usual. Além disso, é necessário ter em atenção as frases longas com diversas orações.
Este mesmo cuidado deve ser tido em conta na preparação da segunda leitura, onde é necessário preparar bem as pausas e respirações para uma proclamação mais eficaz do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Com o olhar cada vez mais fixo na Cruz Gloriosa, em que foi entronizada a Luz que dá a Vida verdadeira, batizados e catecúmenos continuam a sua «caminhada» quaresmal: memória do batismo [= execução do programa filial batismal] para os batizados, preparação para o batismo por parte dos catecúmenos (Sacrosanctum Concilium 109), que têm neste IV Domingo da Quaresma os seus segundos «escrutínios»: segunda «chamada» para a Liberdade.
O Evangelho deste Domingo IV da Quaresma (João 3,14-21) mostra-nos a toda a luz o «Filho do Homem», que deve (deî) ser levantado [= crucificado/exaltado/glorificado] como o verdadeiro «Servo do Senhor» (Isaías 52,13), logo identificado com Cristo Jesus (Filipenses 2,9), o Filho Unigénito de Deus, «a Luz que veio ao mundo» (João 3,19; 12,46), para dar a Vida ao mundo (João 1,4; 3,15‑16). Veio (elêlythen) ao mundo e permanece acesa no mundo, como indica o perfeito usado no texto grego. Marcos recorre à crueza da linguagem para nos fazer compreender melhor o Mistério desta Luz-que-vem: «Vem a Luz (!) para ser colocada debaixo do alqueire ou debaixo da cama? Não, antes, para ser colocada sobre o candelabro? Na verdade, nada está escondido que não seja para se manifestar» (Marcos 4,21‑22). Tendo vindo na humildade da condição humana, esta Luz foi entronizada na Cruz onde arde para sempre: suprema manifestação do infinito, insondável, impenetrável, incompreensível, indizível amor de Deus: «Deus amou (êgápêsen: aoristo histórico!) tanto o mundo»! (João 3,16). Assim manifestada na Cruz Gloriosa, esta Luz dá a Vida verdadeira a quem para ela olhar como a imagem da cobra levantada no deserto (Números 21,8‑9). «Hão de olhar para aquele que trespassaram» (João 19,37). «Quando eu for levantado da terra, arrastarei (hélkô) todos a mim» (João 12,32). «Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então sabereis que “Eu Sou”» (título divino) (João 8,28).
Quanto à força daquele arrasto operado por Jesus, continua Jesus a ensinar-nos, em outra lição, que também pode ser levado a cabo pelo Pai: «Ninguém pode vir a Mim (eltheîn prós me), se o Pai, que me enviou, não o arrastar (hélkô)» (João 6,44). Vê-se bem, por debaixo do falar de Jesus, o teclado do Antigo Testamento, nomeadamente Jeremias 31,3 [38,3 LXX], que refere textualmente, pondo Deus a falar: «Com um amor eterno Eu te amei; por isso te arrastei (mashak TM; hélkô LXX) com carinho (hesed TM; oiktírêmôn LXX)». É demasiado pobre não reparar nisto. É demasiado belo reparar nisto. Há neste amor de Deus por nós uma paixão declarada, força ou coação que o verbo arrastar traduz bem. Mas a expressão completa é: «arrastar com carinho». Entendamos então, se Deus nos der a graça e o dom do entendimento, que Deus luta por nós, arrasta-nos tantas vezes, mas sempre com carinho! Tomar consciência desta realidade: estupendo programa quaresmal!
Para ter a Vida verdadeira, é necessário ver [= acreditar] o Filho (João 3,36; 6,40), Luz da Luz, que brilha sobre a Cruz, novo e último candelabro do amor de Deus (Atos 2,36). Ver o Filho é obra do Espírito Santo em nós (1 Coríntios 12,3). Para O ver é necessário ter nascido da água e do Espírito (cf. João 3,5), claríssima alusão ao batismo, a grande iluminação que abre os nossos olhos para o divino (Hebreus 6,4‑5: texto espantoso!) e nos faz «filhos da luz», operadores das «obras da luz», que não têm parte com as «obras das trevas» (Efésios 5,8‑14).
Ver o Filho do Homem levantado na Cruz é ver passar dois filmes: 1) o da nossa violência e malvadez, postas a descoberto naquele rosto desfigurado, naquelas chagas abertas, naquele sangue a escorrer ou já coalhado: está ali, bem diante de nós, a imagem do pecado que está em nós; 2) ali passa também o filme do imenso amor de Deus, que não faz frente à minha violência, mas a abraça, única maneira de a absorver, dissolver e absolver. A cura não é mágica. Exibida a imagem da cobra escondida que há em nós e que de nós se alimenta como um parasita ou um ídolo – de facto, alimenta-se de nós, vive à nossa custa: leia-se, com o dom do entendimento, Génesis 3,14, em que se lê que a cobra se alimenta de pó [ՙaphar], sendo que só o homem é modelado do «pó da terra» (Génesis 2,7) –, conhecemos agora a doença de que padecemos. Podemos, portanto, começar a tratar-nos. E o remédio também está ali posto bem diante dos nossos olhos: é o amor subversivo!
D. António Couto
ANEXOS:
Quem é este Jesus de que nos fala o Evangelho? Onde está o Jesus manso e humilde, doce e compassivo a que nos habituamos? Tendo subido a Jerusalém, na proximidade da Páscoa judaica, Jesus entrou no templo e indignou-se com tudo aquilo que viu: «os vendedores de bois, de ovelhas e de pombas e os cambistas sentados às bancas».
Acredito que algumas pessoas, se tivessem oportunidade, retirariam esta passagem dos Evangelhos. Nela encontramos um Jesus frontal, bem diferente do Jesus que proclamou sobre o monte «Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra» ou se dirigia aos mais pequenos, dizendo «Deixai vir a mim as crianças e não as impeçais de vir ter comigo, pois delas é o Reino do Céu». Porventura, outros aproveitam esta passagem para justificar os seus atos mais violentos. Contudo, qualquer uma das atitudes será sempre abusiva e desproporcionada.
O mercado de ovelhas e bois, bem como os cambistas facilitava a vida daqueles que vinham ao tempo apresentar as suas ofertas. Não era prático, sobretudo para os que vinham de mais longe, trazer as ovelhas, as pombas, os cordeiros ou os bois que desejavam oferecer a Deus. Um outro problema era a questão da moeda: as pessoas traziam consigo as suas moedas locais e no templo a moeda que se usava era o siglo. Deste modo, a presença dos cambistas facilitava a vida daqueles que desejavam deixar a sua oferta no templo.
Em primeiro lugar, importa pensar que quer na nossa vida pessoal, quer na vida comunitária devemos ter cuidado com a absolutização do critério do mais prático. Se absolutizamos o pragmatismo, pode haver muitas coisas importantes que se perdem e outras que se pervertem. A vida cristã implica abraçar o caminho exigente da relação íntima e pessoal com o Deus revelado em Jesus Cristo. Evidentemente que não estou a afirmar a necessidade de optar sempre pelo caminho mais difícil ou por aquilo que é mais exigente por capricho ou masoquismo, pois, em diversas circunstâncias da nossa história, a vida é já suficientemente difícil e exigente pelas dificuldades e sofrimentos do caminho.
Jesus é frontal, mas não é violento. Jesus toma um chicote de cordas, mas não bate em ninguém nem em nenhum animal. Deitou por terra o dinheiro dos cambistas e derrubou as mesas, mas não feriu ninguém. Jesus assumiu, neste acontecimento, um gesto profético na linha do profetismo de Israel. Um gesto profético é uma ação simbólica que transmite uma mensagem clara que atinge o coração de cada homem e cada mulher.
Esta frontalidade de Jesus, num gesto profético tão radical e ousado, convida-nos a viver também esta frontalidade na nossa vida: frontais connosco mesmos na luta contra o pecado; frontais com situações à nossa volta que estão erradas e não devemos pactuar; frontais com aqueles que se cruzam connosco, abraçando com ternura a dureza das relações humanas. Seguir Jesus, implica seguir a radicalidade e a verdade que o Evangelho reclama das nossas vidas.
«Não façais da casa de meu Pai casa de comércio!». Como é urgente e necessário fazer ecoar estas palavras de Jesus. Quantas vezes a nossa relação com Deus e os irmãos se faz na lógica comercial dos ganhos a obter e dos bens a alcançar. A relação com Deus e os outros será tanto mais verdadeira quanto mais se contruir na lógica da gratuidade que rasga novos horizontes de esperança e transforma o coração de cada homem e de cada mulher num lugar de bondade, ternura e misericórdia. In Voz Portucalense
LEITURA I – Ex 20, 1-17
«Eu sou o Senhor, teu Deus, que te tirei da terra do Egipto, dessa casa de escravidão».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 18 (19)
Refrão: Senhor, Vós tendes palavras de vida eterna.
LEITURA II –1 Cor 1,22-25
«Pois o que é loucura de Deus é mais sábio do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens».
EVANGELHO – Jo 2,13-25
«Estava próxima a Páscoa dos judeus e Jesus subiu a Jerusalém».
«Fez então um chicote de cordas e expulsou-os a todos do templo, com as ovelhas e os bois».
«Destruí este templo e em três dias o levantarei»
Para os leitores:
Na primeira leitura, ter em atenção a extensão do texto na proclamação da forma longa. Além disso, deve haver um especial cuidado nas diversas repetições no início de cada frase, sobretudo da conjunção coordenativa correlativa «nem» e do advérbio «não».
A segunda leitura, apesar da sua brevidade, reclama uma especial atenção com as frases mais longas e com diversas orações
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
No programa de «preparação» para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã, o Domingo III da Quaresma está marcado pelos primeiros «escrutínios» para os catecúmenos: primeira «chamada» para a liberdade.
O texto do Evangelho deste Domingo III da Quaresma constitui uma importante passagem no tecido do IV Evangelho (João 2,13-22). Jesus apresenta-se como tempo novo e Templo novo, novo espaço relacional, caminho novo aberto para o PAI, nova paginação e compreensão das Escrituras. Da Páscoa dos judeus (A) à Páscoa de Jesus (A’), do Templo antigo (B) ao Santuário novo (B’), tendo no meio o caminho da memória que começam a fazer os discípulos de Jesus (C), como podemos constatar no texto a seguir transcrito:
«2,13E estava próxima a Páscoa dos judeus, e JESUS subiu a Jerusalém. (A)
14E ENCONTROU no TEMPLO (hierón) os vendedores de bois e ovelhas e pombas, e os cambistas sentados. 15E, tendo feito um chicote de cordas, expulsou todos do TEMPLO (hierón), as ovelhas e os bois, bem como os cambistas, espalhou as moedas, derrubou as mesas, 16e disse aos que vendiam as pombas: “Tirai isto daqui! Não façais da CASA DO MEU PAI (oíkos toû patrós mou) CASA de COMÉRCIO (oíkos emporíou)”. (B)
17Recordaram-se os discípulos d’ELE que está escrito: “O zelo da tua CASA (toû oíkou sou) me devorará”. (C)
18Responderam então os judeus e disseram-LHE: “Que sinal nos mostras de que podes fazer estas coisas?” 19Respondeu JESUS e disse-lhes: “Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)”. 20Disseram então os judeus: “Em quarenta e seis anos foi edificado este SANTUÁRIO (naós), e tu em três dias o levantarás (egeírô)?” (B’)
21Isto, porém, dizia do SANTUÁRIO do seu corpo (toû naoû toû sômatos autoû). 22Quando, pois, foi ressuscitado dos mortos (êgérthê), recordaram-se os discípulos d’ELE que tinha dito isto, e acreditaram na Escritura e na palavra que JESUS tinha dito» (João 2,13-22). (A’)
O episódio aparece situado e datado. O lugar é Jerusalém e o seu Templo. O tempo é a Festa da Páscoa. Ora, uma FESTA é, na tradição bíblica, um ENCONTRO marcado (mô‘ed) , plural mô‘adîm, de ya‘ad [= marcar um encontro]. Um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros. Sendo um ENCONTRO marcado com Deus e com os outros, então é sempre um espaço de alegria, de filialidade e de fraternidade. E se a FESTA é de peregrinação, como é a PÁSCOA, aqui referida [as outras duas são as SEMANAS ou PENTECOSTES e as TENDAS], então a alegria, a filialidade e a fraternidade são ainda mais intensas, dado que FESTA de peregrinação se diz, na língua hebraica, hag, plural hagîm. E o nome hag remete para o verbo hag [= dançar], e deriva de hûg, que significa círculo, e, portanto, família, lareira, encontro, alegria, música, roda, dança, vida.
ENCONTRO, filialidade, fraternidade: marcas acentuadas por JESUS que, em vez de Templo de pedra (hierón), diz CASA (oíkos) – com particular afeto, CASA DO MEU PAI –, sendo a CASA paterna o lugar do ENCONTRO e da intimidade, e não das coisas, da superficialidade, da banalidade, do consumismo, do mercado. Nos paralelos de Mateus, Marcos e Lucas, citando Isaías 56,7, JESUS fala do Templo usando a expressão forte «A MINHA CASA» (ho oîkós mou) (Mateus 21,13; Marcos 11,17; Lucas 19,46).
É neste sentido que o Livro dos Atos dos Apóstolos nos mostra a comunidade-mãe de Jerusalém a frequentar assiduamente o Templo, salientando, no entanto, que a sua maneira de prestar culto a Deus acontecia nas CASAS. Do Templo para as CASAS (Atos 2,46). Não se trata de uma simples mudança de lugar, mas de uma diferente conceção do espaço: não se trata de um espaço local, mas relacional. O novo espaço cultual é a comunidade que vive filial e fraternalmente, verdadeira transparência de Jesus. A extensão deste espaço chama-se comunhão.
Sintomático é que, postos estes pressupostos, o texto refira, não que JESUS ENCONTROU filhos e irmãos, mas que ENCONTROU vendedores, banqueiros e comerciantes, contra a profecia de Zacarias 14,21, que refere que «Não haverá mais vendedor na CASA de YHWH dos exércitos naquele dia». «A CASA DO MEU PAI», «A MINHA CASA», por um lado, e o MERCADO, por outro lado, são lugares incompatíveis. São maneiras diferentes de conceber e ocupar o espaço.
No texto que estamos cuidadosamente a ler, o Templo é dito com três vocábulos diferentes – hierón, oíkos e naós – com significações diferentes: edifício de pedra, casa familiar, santuário (ou lugar da presença de Deus).
Quando, num dos típicos «mal-entendidos» do IV Evangelho, JESUS diz: «Destruí este SANTUÁRIO (naós), e em três dias o levantarei (egeírô)» (João 2,19), os judeus não conseguem distinguir entre o naós pessoal que JESUS levantará em três dias e o hierón feito de pedra que demorou 46 anos a construir (João 2,20). Em claro contraponto, o narrador explica bem, num genitivo epexegético, que JESUS «dizia isto do SANTUÁRIO do seu corpo» (toû naoû toû sômatos autoû) (João 2,21). Entenda-se: do SANTUÁRIO que é o seu corpo. Com esta explicação do narrador, fica claro que é JESUS o «lugar» da adoração de Deus, a verdadeira «Casa de Deus» (cf. João 1,51), o SANTUÁRIO de Deus.
A anotação do narrador, em João 2,22, faz-nos ver ainda que foi também assim que entenderam os discípulos a partir da Ressurreição de Jesus. Lição para os leitores: num tempo em que já não há Templo em Jerusalém, os leitores crentes do IV Evangelho experimentam a PRESENÇA de JESUS Ressuscitado como o seu verdadeiro «Templo».
D. António Couto
ANEXOS:
Continuamos a caminhar com Jesus rumo à Páscoa. Depois de termos ido com Ele ao deserto, somos agora convidados a subir com Ele ao monte: «Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles». Com Jesus, somos conduzidos ao Pai que pela força do Espírito nos faz entrar nesta comunhão de amor que envolve as Pessoas da Trindade.
O cimo do monte, as vestes resplandecentes, Moisés e Elias, a nuvem que os cobre e a voz vinda do céu proporcionam a Pedro, Tiago e João uma verdadeira teofania que os faz ver cumpridas as promessas veterotestamentárias e lhes antecipa a glória do Ressuscitado. Hoje a humanidade também se sente envolvida por um tempo de incerteza e escuridão que clama pela luz do Ressuscitado e faz de nós testemunhas de que mesmo diante das trevas e inseguranças do nosso tempo, a luz de Jesus Cristo continua a brilhar.
Por isso, subamos ao monte com Jesus!
O monte é na longa tradição bíblica lugar de encontro com Deus, até porque subir a um lugar elevado faz-nos estar geograficamente mais próximos do Céu. Desde a antiguidade que os sítios geograficamente elevados eram assinalados como lugar de espiritualidade e encontro com o divino. Além disso, subir a um lugar elevado também permite olhar a planície e o vale de um modo novo e diferente. Deste modo, ao subirmos com Jesus ao monte, somos convidados a olhar a nossa vida, o mundo e os outros de um modo renovado. Olhar o tempo e a história com o olhar de Jesus permite-nos adquirir um novo horizonte de esperança, pois somos capazes de libertar o nosso olhar do imediatismo do nosso metro quadrado para uma visão maior e mais larga da história que tende e caminha para a plenitude da eternidade.
Contemplamos Moisés e Elias que atestam como Jesus é o enviado do Pai para cumprir as promessas da antiga aliança. Moisés e Elias ainda que entre sombras puderam ver a Deus: Moisés contemplou o Senhor revelado na saraça ardente (Ex 3,1-4,17) e Elias, escondido na caverna foi convidado a ver o Senhor passar na brisa suave (1 Rs 19,9-18). Junto de Jesus no monte, eles testemunham que o Transfigurado é a revelação plena e definitiva do Pai.
A nuvem que os envolve com a sua sombra faz ressoar uma voz vinda do céu: «Este é o meu Filho muito amado: escutai-O». As nuvens que tantas vezes nos cobrem continuam a trazer dentro de si a certeza de que as dificuldades e as tribulações do tempo e da história não têm a última palavra, pois a única palavra plena e definitiva é a Palavra de Jesus que o Pai nos convida a escutar. É certo que a fragilidade da nossa existência e a contingência do tempo que atravessamos nos abala e nos faz tantas vezes vacilar. Por isso, nunca nos podemos cansar de escutar as palavras que S. Paulo dirigiu aos romanos e que hoje dirige a cada um de nós: «Se Deus está por nós, quem estará contra nós? Deus, que não poupou o seu próprio Filho, mas O entregou à morte por todos nós, como não havia de nos dar, com Ele, todas as coisas?».
Subamos com Jesus ao monte! Percorramos com esperança este tempo da Quaresma, e façamos dele um tempo de alegre conversão. Como os discípulos, ainda somos aprendizes sobre o que significa ressuscitar dos mortos, mas a luz resplandecente do Ressuscitado rasga para nós horizontes de esperança e conduz-nos à verdade plena e definitiva que só o Senhor Jesus nos pode revelar. In Voz Portucalense
LEITURA I – Gen 22,1-2.9a.10-13.15-18
«Porque obedeceste à minha voz, na tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 115 (116)
Refrão: Caminharei na terra dos vivos, na presença do Senhor.
LEITURA II – Rom 8,31b-34
«Se Deus está por nós, quem estará contra nós?».
EVANGELHO – Mc 9,2-10
«Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João e subiu só com eles para um lugar retirado num alto monte e transfigurou-Se diante deles».
«Perguntavam entre si o que seria ressuscitar dos mortos».
Para os leitores:
Na primeira leitura deve ter-se em conta as várias intervenções em discurso direto que dominam todo o texto. Os diversos diálogos devem ser bem articulados para uma melhor compreensão do texto.
A segunda leitura, apesar da sua brevidade, exige uma acurada preparação uma vez que é composta apenas por frases interrogativas. Deve evitar-se dar a entoação interrogativa unicamente no final das frases, aproveitando as partículas interrogativas e as formas verbais.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Batizado com o Espírito Santo (Marcos 1,9-10), chamado pelo Pai «o Filho meu», «o Amado» (Marcos 1,11), tentado durante quarenta dias no nosso deserto, mas superando a prova, dominando pela doçura os animais e a nossa selvagem animalidade, Jesus, totalmente vinculado ao Pai, pois d’Ele é o Filho, o Amado, vincula-se também à nossa humana condição e vincula-nos a Si («Vamos» [ágômen]: o mesmo dizer vinculativo em Marcos 1,38, na hora da Missão, e Marcos 14,42, na hora da Paixão), refazendo os nossos caminhos há muito por nós abandonados. O seu caminho filial batismal é agora também o nosso caminho.
O Evangelho de Marcos refere, de facto, que Jesus nos fez deixar para trás os nossos planos (Marcos 1,37), e nos levou consigo, na hora da Missão, a Anunciar o Evangelho de Deus pelos caminhos da Galileia (Marcos 1,38), prolepse fantástica da inteira vida cristã, discipular e apostólica: com Jesus nos caminhos da sua Missão, que passam também pelo caminho da sua Paixão (Marcos 14,42). A locução «no caminho» (en tê hodô), usada sobretudo na importante secção do seguimento de Jesus «no caminho» (Marcos 8,27-10,52), fazendo-se aí ouvir por cinco vezes (Marcos 8,27; 9,33.34; 10,32.52), ajuda-nos a compreender ainda melhor que o discípulo de Jesus deve aprender a «dizer vigorosamente não» (apernéomai) a si mesmo (Marcos 8,34), expressão fortíssima empregada no texto grego de Isaías para dizer «desfazer-se dos seus ídolos de ouro e prata» (Isaías 31,7), para fazer completamente seu o mesmo caminho de Jesus.
É assim que chegamos ao Evangelho deste Domingo II da Quaresma (Marcos 9,2-10), em que nos é mostrada, no meio do caminho de Jesus, a cena extraordinária da Transfiguração de Jesus. A iniciativa começa por ser de Jesus, que toma consigo (paralambánô) Pedro, Tigo e João, e os faz subir (anaphérô) a um monte alto, mas passa logo para Deus com o passivo divino ou teológico «foi transfigurado» (metemorphôthê: aoristo passivo de metamorphéô) (Marcos 9,2). É a segunda vez que Jesus toma consigo apenas Pedro, Tiago e João (a primeira foi aquando da ressuscitação da filha de Jairo: 5,35-43). O facto de os levar para um monte alto, significa que o que se vai passar cai fora da agitação da vida quotidiana; a transfiguração de Jesus não se realiza na praça pública ou perante uma grande multidão. Não é narrada a figura de Jesus transfigurado. Apenas se fala das suas vestes brancas de uma brancura não terrena (Marcos 9,3). Fala-se também da «aparição» de Elias com Moisés (Marcos 9,4). A «aparição» de Moisés e Elias faz-nos compreender que Jesus não surge de improviso, mas se insere numa longa história que retrata a solicitude de Deus com o seu povo. «Aparição»: literalmente «fez-se ver» (ôpthê: aoristo passivo de horáô) «a eles» (autoîs). Trata-se de um passivo intransitivo, isto é, são Moisés e Elias que se fazem ver. De per si, os nossos olhos não têm capacidade de ver tanto. Por isso também, aquele «a eles» é gramaticalmente chamado um dativo do beneficiário. É também desta maneira que são apresentadas as aparições de Deus no Antigo Testamento e as do Ressuscitado no Novo Testamento.
Em Marcos 9,5, Pedro reage a tanto ver. Mas o seu dizer não se ajusta ao contexto, é manifestamente desapropriado. Tendas terrenas não podem abrigar seres celestes. Por isso, certeiramente nos diz o narrador que «não sabia o que dizia» (Marcos 9,6).
E eis o clímax do relato, com a introdução de dois elementos divinos: a nuvem e a voz, símbolos respetivamente da presença velada de Deus e da sua transcendência (Êxodo 24,16). Da nuvem uma voz, a voz de Deus, o único que sabe dizer bem o que se passa: «Este é o Filho meu, o Amado» (Marcos 9,8). Notem-se duas pequenas diferenças em relação ao cenário do Batismo. Aí, a voz de Deus provém do céu (não da nuvem), e dirige-se a Jesus, em 2.ª pessoa: «Tu és o Filho meu, o Amado» (Marcos 1,11). Aqui, a voz provém da nuvem, e dirige-se a nós, em 3.ª pessoa. É, portanto, a apresentação que Deus nos faz do Seu próprio Filho. Tanto que, acrescenta logo o imperativo: «Escutai-O» (Marcos 9,8). Com este divino dizer, o Pai vincula a Si o Seu Filho do modo mais profundo: Deus não se revela a si mesmo, como no Êxodo, mas revela o Filho, e vincula-nos a nós também ao Seu Filho, sendo Ele a Palavra que devemos escutar todos os dias, a Pessoa a quem devemos prestar atenção todos os dias. Note-se que o Filho é, antes de mais, aquele que recebe a vida, e só depois aquele que tem uma missão para cumprir. Está aqui o escândalo da revelação: Deus não se qualifica apenas como Criador e Pai que dá a vida, mas também como Filho que a recebe!
Eis-nos, portanto, outra vez a sós com Jesus (Marcos 9,8), que põe a Transfiguração em linha com a Ressurreição, abrindo-nos já proleticamente os caminhos da Missão depois da Ressurreição. Que a Transfiguração deve ser vista à luz da Ressurreição, fica bem patente no dizer das Igrejas do Oriente que chamam à Festa da Transfiguração, que se celebra no dia 6 de agosto, «a Páscoa do verão». Mas está também claro na ordem dada por Jesus ao descer do monte de «A ninguém narrarem (diêgéomai) o que viram senão quando o Filho do Homem ressuscitar dos mortos» (Marcos 9,9).
Jesus impõe, portanto, na nossa pauta musical pausa e bemol. Na verdade, não podemos dizer a Transfiguração do Senhor, antes da Ressurreição do Senhor e independentemente da Ressurreição do Senhor. E não podemos, porque não sabemos. E não sabemos, porque é só o Ressuscitado que faz vir o Espírito Santo sobre nós. Veja-se a lição do Livro dos Atos dos Apóstolos: «Este Jesus, Deus o Ressuscitou, e disto todos nós somos testemunhas. Exaltado à direita de Deus, tendo recebido do Pai a promessa do Espírito Santo, derramou-o, e é o que vedes e ouvis» (2,32-33). E o comentário preciso e precioso do narrador às palavras que Jesus acabava de proferir: «Isto disse do Espírito que haviam de receber os que tinham acreditado n’Ele, pois não havia ainda Espírito [para nós], porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (João 7,39). Pausa e bemol, porque importa que não sejamos nós a falar. Importa que seja o Espírito Santo a falar em nós. Toda a atenção, neste sentido, para o grande dizer de Jesus: «Quando vos conduzirem, entregando-vos, não vos preocupeis com o que ides falar (laléô); mas o que vos for dado (dothê: conj. aor. pass. de dídômi) nessa hora, isso falai (laléô); na verdade, não sois vós que falais (laléô), mas o ESPÍRITO SANTO» (Marcos 13,11). Falar, com o verbo laléô, é linguagem de revelação.
A tradição situa o «monte alto», que abre o episódio da Transfiguração (Marcos 9,2), no Tabor, um monte de forma arredondada que se ergue nos seus 582 metros no meio da planície galilaica de Jesrael ou Esdrelon. No sopé do Tabor ainda hoje se encontra a aldeia palestiniana de Daburiyya, cujo eco evoca a personagem bíblica mais importante desta região, a profetisa Débora. As Igrejas do Oriente conhecem este episódio da Transfiguração por «Metamorfose» (Metamórphôsis), a partir das palavras do texto: «E transformou-se (metemorphôthê) diante deles [= Pedro, Tiago e João], e as suas vestes tornaram-se resplandecentes, grandemente brancas» (Marcos 9,2-3). O branco é a cor divina. E a luz é o seu vestido, conforme o dizer do Salmo 104,2: «Vestido de Luz como de um manto». E, nesse cone de luz, o Apóstolo exorta-nos: «Caminhai como filhos da luz», e lembra-nos que «o fruto da luz é toda a bondade, justiça e verdade» (Efésios 5,8 e 9).
D. António Couto
ANEXOS:
«O Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto». No início deste tempo da Quaresma, o Evangelho convida-nos a contemplar Jesus que é impelido para o deserto, onde será tentado por Satanás. Jesus é o Homem Novo na plenitude do Espírito. Ungido pela força do Espírito de Deus vem para cumprir a vontade do Pai.
Batizados em Cristo, também nós somos enviados pela força do Espírito para percorrer os caminhos da missão. Parece sempre paradoxal e até estranho que o Espírito conduza Jesus ao deserto para ser tentado. Recordando o caminho percorrido pelo Povo de Israel a caminho da terra da promessa, percebemos como o deserto é lugar de tribulação e provação. Quantas vezes o Povo se afastou da Lei de Deus, se revoltou contra o Senhor e até adorou outras divindades. Contudo, também sabemos como foram tantas as manifestações da solicitude e do poder de Deus ao logo do caminho do deserto e como Deus, apesar da infidelidade do Povo, saciou a sua sede com a água que jorrou do rochedo, lhes fez chegar o maná e a carne para comer, lhes ofereceu a Lei, os acompanhou durante o dia numa coluna de nuvem e de noite numa coluna de fogo para os iluminar.
Deste modo, o deserto pode ser um lugar de perdição e afastamento de Deus, mas pode ser também uma oportunidade para um renovado encontro com o Senhor. As tentações são isto mesmo! São lugares de confronto com a nossa fragilidade e liberdade e o importante é fazer de cada tentação a oportunidade para renovar o nosso sim a Deus e à Sua vontade. Conduzido pelo Espírito ao deserto e sendo tentado por Satanás, Jesus mantém-se firme na fidelidade ao projeto do Pai. Cada batizado, diante de cada tentação, revestido da força do Espírito, é chamado a renovar a Sua opção por Deus e pelo Seu amor.
Porém, o deserto, tal como as tentações da nossa vida são um lugar provisório, por isso, depois da prisão de João, Jesus partiu para a Galileia e iniciou a Sua pregação, fazendo ecoar as Suas primeiras palavras: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
Sempre que escuto as palavras de Jesus «cumpriu-se o tempo», não consigo deixar de pensar como tantas vezes empregamos esta expressão para falar sobre o final do tempo da gravidez e o momento de uma mulher dar à luz. Efetivamente, o anúncio do Reino é anúncio alegre e jubiloso de uma vida nova que está a despontar. O Reino de Deus está próximo e já se pode saborear na presença terna e amorosa de Jesus Cristo. Por isso, é tempo de arrependimento e de conversão, tempo da alegre transformação do coração que torna a vida num lugar mais belo e o mundo num lugar mais feliz.
A conversão e o arrependimento só se podem conjugar com a plena e consciente adesão ao Evangelho. Aquele que se encontrou com Jesus e acolheu o Seu Evangelho como Palavra de Vida abraça uma nova forma de ser e de estar que se caracteriza por um modo novo de servir e amar. Assim, a conversão transforma-se num lugar feliz de aperfeiçoamento permanente, que nos permite reconhecer na nossa fragilidade e no nosso pecado uma oportunidade de crescimento e de renovação do coração e da vida. A vida de quantos entram neste dinamismo de conversão transforma-se num arco-íris luminoso que continua a irradiar no tempo e na história a certeza de que Deus não nos abandona. In Voz Portucalense
LEITURA I – Gen 9,8-15
«Sempre que Eu cobrir a terra de nuvens e aparecer nas nuvens o arco, recordarei a minha aliança convosco».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)
Todos os vossos caminhos, Senhor, são amor e verdade, para os que são fiéis à vossa aliança.
LEITURA II – 1 Pedro 3,18-22
«Esta água é figura do Batismo que agora vos salva, que não é uma purificação da imundície corporal, mas o compromisso para com Deus de uma boa consciência».
EVANGELHO – Mc 1,12-15
«O Espírito Santo impeliu Jesus para o deserto. Jesus esteve no deserto quarenta dias e era tentado por Satanás».
«Jesus partiu para a Galileia e começou a pregar o Evangelho».
Para os leitores:
Na primeira leitura, Deus dirige-se ao povo estabelecendo uma aliança. A proclamação desta leitura deve ser marcada pela alegria que nasce da certeza de que Deus não abandona o Seu povo. Além disso, deve ter-se em atenção as longas frases com diversas orações que requerem uma acurada preparação nas pausas e respirações.
O mesmo cuidado deve ser tido na segunda leitura, pois algumas das quebras do texto no lecionário não correspondem às pausas e respirações.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Só secundariamente a Quaresma «prepara» para a Ressurreição do Senhor. Na verdade, todos os «Tempos» e todos os Domingos do Ano Litúrgico – portanto, também a Quaresma e os seus Domingos – estão depois da Ressurreição e por causa da Ressurreição. E é só sob a intensa luz do Senhor Ressuscitado com o Espírito Santo (Batismo consumado: Lucas 12,49‑50) que a Igreja – e cada um de nós – pode celebrar autenticamente a sua fé, proceder à correta «leitura» das Escrituras e encetar a «caminhada» quaresmal. Neste sentido, todos os batizados são chamados a refazer com Cristo batizado o seu programa batismal, cujo conteúdo e itinerário conhecemos: desde o Batismo no Jordão, passando pela Transfiguração / Confirmação no Tabor, até à Cruz e à Glória da Ressurreição (Batismo consumado!), escutando e anunciando sempre e cada vez mais intensamente o Evangelho do Reino e fazendo sempre e cada vez mais intensamente as «obras» do Reino (Atos dos Apóstolos 10,37-43: texto emblemático). Os catecúmenos, acompanhados sempre pela Assembleia dos batizados, «preparam‑se» intensamente para a Noite Pascal Batismal, início e meta da vida cristã.
O Evangelho deste Domingo I da Quaresma (Marcos 1,12-15) oferece-nos a figura de Jesus, acabado de apresentar pelo Pai como «o Filho meu, o amado, em quem está o meu comprazimento» (Marcos 1,11), como sintetizador perfeito da vida do povo de Israel e da nossa. Eis, portanto, Jesus impelido pelo Espírito no deserto, durante quarenta dias tentado por satanás, em harmonia com os animais selvagens, servido pelos anjos (Marcos 1,12-13). Excelente analepse em que o narrador faz Jesus descer ao chão de Israel, para assumir as suas fragilidades, elevando a dura realidade do pecado do povo no deserto, e do nosso pecado, a um registo de salvação. O deserto foi lugar de tentação e de queda para o povo de Israel durante quarenta anos, o tempo de uma geração, uma vida inteira, o tempo todo. Mas o deserto era também o lugar da graça, pois era Deus que no deserto conduzia o seu povo, como se recita no velho «credo» de Israel. Esquecendo a graça de Deus que nos conduz, facilmente nos atolamos na areia do deserto, e não se passa a prova. Eis, então, que Jesus desce a esse chão arenoso, ao nosso chão, experimenta a nossa condição. Atravessa e supera a prova, impelido pelo Espírito da graça. Novo aceno. O homem, eu e tu, nós, recebemos de Deus o mandato do domínio manso da terra e dos animais (Génesis 1,26 e 28). Sem sucesso. Mas também aqui, neste chão da criação, Jesus desce ao nosso nível, e salva o nosso fracasso, soberanamente convivendo com os animais selvagens. Mensagem de Paz e Harmonia. O texto de Marcos não perde tempo a descrever o conteúdo das tentações, nem a ação dos atores, como vemos em Mateus (4,1-11) e Lucas (4,1-13). Marcos apenas faz descer o Filho de Deus ao nosso chão arenoso e escorregadio, mostrando bem a sua comunhão connosco e o seu domínio manso, novo e seguro. Do mesmo modo que, pouco depois, estando nós atarefados e aflitos em pleno mar encapelado, filmará Jesus a dormir serenamente na nossa barca, à popa (lugar de comando), com a cabeça suavemente deitada numa almofada (Marcos 4,35-41).
Note-se também que o «deserto» bíblico, mencionado no texto, não se ajusta ao que dizem os dicionários ou enciclopédias. Até contradiz esses dizeres. Na verdade, não é um lugar geográfico, mas teológico, pois é apresentado com muita água (João 3,23), cumprindo Isaías 35,6-7, 41,18 e 43,19-20, com árvores (canas) (Mateus 11,7; Lucas 7,24) e relva verde (Marcos 6,39), cumprindo Isaías 35,1 e 7 e 41,19. É um lugar provisório e preliminar, preambular, longe do que é nosso, onde se está «a céu aberto» com Deus, onde troará a voz do seu mensageiro (Isaías 40,3), de João Batista (Mateus 3,1-3), do próprio Messias segundo uma tradição judaica recolhida em Mateus 24,26. O deserto é o lugar onde se pode começar a ver a «obra» nova de Deus (Isaías 43,19). Mas é um lugar provisório, onde estamos de passagem, e não definitivo, para se habitar lá (à maneira dos Essénios). Sendo um lugar provisório e de passagem, aponta para o definitivo, que é a Terra Prometida, onde Deus fará habitar e descansar o seu povo fiel. Este deserto é uma metáfora da nossa vida, onde sabemos que estamos de passagem. O deserto é todo igual: não tem pontos de referência nem marcos de sinalização. Quer dizer que só podemos prosseguir rumo à Terra Prometida e à Vida verdadeira, se tivermos um bom guia. Aí está o deserto como lugar onde temos de saber escutar a «Voz do fino silêncio» de Deus e ler atentamente o mapa da sua Palavra. Agora temos a companhia do Filho, que veio em nosso auxílio.
Mas, atenção. Depois do pequeno, mas consolador filme a que acabámos de assistir, em que vimos Jesus a descer ao nosso chão, assumindo e salvando os nossos fracassos, preparemo-nos para ouvir pela primeira vez a sua voz. Sendo os seus primeiros dizeres, são, naturalmente, prolépticos e programáticos para o inteiro Evangelho de Marcos.
Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros, isto é, pessoas enviadas e estreitamente vinculadas a quem as envia, em nome de quem anunciam em voz alta e clara a mensagem de que são incumbidos. A clara vinculação a quem nos envia é mesmo mais importante do que a mensagem a transmitir. E é dito o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.
E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações de Jesus, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da iniciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspetivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança, entenda-se, da Palavra amante de Deus que, entrando em nós, reclama a nossa resposta amante que transforma a nossa vida. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.
D. António Couto
ANEXOS:
Ao ler os textos que a Liturgia da Palavra deste Domingo nos propõe, recordei-me de um episódio narrado pelo Padre Ermes Ronchi numa visita a um leprosário na Amazónia. Quando estavam na Eucaristia e cada um colocava as suas intenções, um dos leprosos pediu o seguinte: «peçamos ao Senhor que ajude o padre Ermes, porque na Europa é muito difícil manter a fé». O padre Ermes não conseguiu ficar indiferente àquele homem que ao invés de pedir por si próprio, pediu pela Europa e pela evangelização que ele era chamado a fazer. Curioso com a fé daquele homem, no final da Eucaristia foi falar com ele e perguntou-lhe: «quando te encontrares com o Senhor, vais perguntar-lhe por que razão eras leproso?» e eles respondeu-lhe: «não lhe vou perguntar nada porque sempre confiei Nele».
Surpreendentemente, os tempos difíceis e exigentes de provação e doença são muitas vezes uma ocasião para renovar a confiança em Deus e encontrar um sentido para a vida. A doença que atingia aquele homem não era capaz de lhe retirar a sua fé nem fazer vacilar a confiança que depositava em Deus. Sabemos que este processo não é imediato e muitas vezes requer um caminho de aprofundamento e amadurecimento da fé.
O leproso que se abeira de Jesus no Evangelho deste Domingo acredita que Jesus o pode curar: «Se quiseres, podes curar-me». Contudo, aquele homem é ainda um aprendiz na arte de compreender a vontade de Deus e acredita que essa pode não ser a Sua vontade. Creio que muitas vezes também nós estamos ainda longe de compreender que a vontade de Deus a nosso respeito é algo de bom e de belo, que Deus nos ama e quer o nosso bem. Recordo que na minha infância me surpreendia ouvir, diante da morte de alguém que partir inesperadamente ou até vítima de uma catástrofe: «foi a vontade de Deus». A vontade de Deus não pode ser o bode expiatório para aquilo que não compreendemos e, na verdade, como afirma S. Paulo a vontade de Deus é «que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade».
Jesus quer que aquele homem se cure e, mais do que isso, fá-lo voltar ao convívio social. Como escutamos na primeira leitura aquele que contraía a lepra devia afastar-se e ficar isolado de todos. Com Jesus aquele homem restabelece a saúde do corpo e integra-se de novo na vida social.
Se as marcas da lepra o faziam afastar-se de todos, a marca que Jesus deixou na vida daquele homem fazem-no partir para comunicar a todos o que Jesus lhe fez. O encontro com Jesus gera uma felicidade que é de tal modo transbordante que nos impele a partir para levar a todos a força transformadora do Seu amor.
Deste modo, a ação missionária da Igreja só será verdadeiramente frutuosa e fecunda quando estiver revestida desta alegria libertadora que Jesus oferece. Quando anunciamos Jesus não somos meramente portadores de uma doutrina ou moral, mas comunicamos a vida de Jesus, que está vivo e que se faz presente e atuante na história. Por isso, aquilo que temos para comunicar não é algo exterior a nós, mas a experiência alegre e libertadora que fizemos Dele: «todos somos chamados a dar aos outros o testemunho explícito do amor salvífico do Senhor, que, sem olhar às nossas imperfeições, nos oferece a sua proximidade, a sua Palavra, a sua força, e dá sentido à nossa vida. O teu coração sabe que a vida não é a mesma coisa sem Ele; pois bem, aquilo que descobriste, o que te ajuda a viver e te dá esperança, isso é o que deves comunicar aos outros» (EG 121). In Voz Portucalense
LEITURA I – Lev 13,1-2.44-46
«Todo o tempo que lhe durar a lepra, deve considerar-se impuro e, sendo impuro, deverá morar à parte, fora do acampamento».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 31 (32)
Refrão: Sois o meu refúgio, Senhor; dai-me a alegria da vossa salvação.
LEITURA II – 1 Cor 10,31-11,1
«Sede meus imitadores, como eu o sou de Cristo».
EVANGELHO – Mc 1,40-45
«Se quiseres, podes curar-me».
«No mesmo instante o deixou a lepra e ele ficou limpo».
«Ele, porém, logo que partiu, começou a apregoar e a divulgar o que acontecera, e assim, Jesus já não podia entrar abertamente em nenhuma cidade».
Para os leitores:
Na primeira leitura, é necessário ter em atenção as diversas frases em discurso direto, bem como as frases que as introduzem. Além disso, deve ter-se em conta a correta pronunciação das palavras menos usuais como: «esbranquiçada» e «andrajoso».
A brevidade da segunda leitura não deve fazer descurar a preparação do texto. Deve ter-se em atenção o tom exortativo do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
O Evangelho de Marcos 1,40-45, que hoje, neste Domingo VI do Tempo Comum, tivemos a graça de ver e de escutar, continua a mostrar que Jesus, que é «o Reino de Deus em pessoa» (autobasileía, como bem refere Orígenes), Aquele que se fez nosso próximo para sempre (Marcos 1,15), continua a passar pelos nossos caminhos, a cruzar-se com as nossas dores, e a assumi-las sobre si, curando a nossa pele chagada e o nosso esclerosado coração. Sim, o Evangelho de hoje não é apenas para ouvir. É também para ver atenta e demoradamente, pois oferece aos nossos olhos, sobretudo ao olhar do coração, o cenário extraordinário de um leproso ajoelhado aos pés de Jesus, que provoca a comoção visceral de Jesus, entenda-se o amor maternal de Jesus, levando-o a estender a sua mão soberana sobre o leproso, como fez Deus em ação de condescendência e de libertação no Livro do Êxodo, e a tocar no leproso sem receio de qualquer contágio.
A cena evangélica é comovente e surpreendente, desarmante, como é sempre, para a nossa pobre e aplanada esquadria, para os nossos trejeitos e preconceitos, a notícia ousada e feliz que se chama Evangelho. Contra todas as regras estabelecidas, que impunham aos leprosos o isolamento e a distância de Deus (não podiam frequentar o Templo ou a sinagoga) e dos homens (não podiam entrar nas povoações), a que se associava o facto de terem de andar com o rosto escondido por qualquer trapo de miséria, e ainda o grito de «impuro, impuro», que deviam trazer sempre nos lábios (Levítico 13,45), para que as pessoas ditas boas, ao ver um homem sem rosto e ao ouvir o seu grito, deles se pudessem distanciar o mais possível, pondo-se a seguro do impuro, eis hoje um leproso que ousa aproximar-se de Jesus e colocar-se de joelhos diante dele, implorando dele a cura (Marcos 1,40). É, nos Evangelhos, o único doente que se coloca de joelhos diante de Jesus, implorando a sua cura. O gesto é o seu verdadeiro pedido, que as palavras que diz apenas iluminam. Ele sabe que a sua cura só pode ser um dom de Deus.
Um leproso, diziam os rabinos, era como um morto em vida. Separado de Deus e da comunidade do louvor de Deus, isto é, da comunhão de vida com Deus, o leproso em tudo se assemelhava aos mortos, que também estavam separados de Deus e fora do louvor de Deus, que é a verdadeira nascente da vida (Salmo 6,6; 88,6; Isaías 38,18). Neste sentido, o Livro de Job define a lepra como o «primogénito entre os mortos» (Job 18,13). Tanto assim era que uma eventual cura da lepra suscitava o mesmo efeito, o mesmo espanto, de uma ressuscitação da morte!
As vísceras maternais de Jesus comovem-se (splagchnízomai) quando vê o estado miserável deste seu filho (Marcos 1,41). O verbo splagchnízomai indica o desarranjo interior, nas vísceras (splágchna), e vísceras maternais (hebraico rahamîm). Por isso, Jesus não pode repelir o seu filho necessitado. Pelo contrário, estende a sua mão sobre ele, gesto de divina soberania (Êxodo 3,20; 7,5; Salmo 138,7), e toca-lhe, e estabelece comunicação com ele, falando para ele (Marcos 1,41). Para Jesus, não há gente para acolher, e gente para evitar ou repelir. A todos acolhe, sobretudo aos piores e aos que estão em pior estado. Tocando-lhe, Jesus assume sobre si a lepra daquele pobre homem. É assim que o salva e nos salva. Jesus não passa por nós de forma sobranceira ou à tangente; desce ao nosso mundo, ao nosso fundo, e assume e paga a conta por inteiro. Nunca deixemos de cravar os olhos naquela Cruz, até percebermos bem que aquelas chagas são as nossas chagas, e que aquelas dores são as nossas dores.
Com este seu comportamento de radical proximidade física e afetiva, Jesus diz-nos que nos devemos abeirar de todas as pessoas, nomeadamente dos doentes e marginalizados ou descartados, sempre incluindo e nunca excluindo, com uma atitude próxima, compassiva, calorosa e familiar, no polo oposto de qualquer comportamento indiferente, cético ou assético.
«Quero, fica limpo!», diz Jesus (Marcos 1,41), e nasce um homem novo, com o rosto destapado, por Deus descoberto, para ser visto e admirado, saído das mãos puras de Deus e da sua Palavra mansa e criadora (Génesis 1; João 15,3). Um grito se calou: «impuro, impuro!». Um novo grito nasceu: o do ANÚNCIO (kêrýssô) do Evangelho (Marcos 1,45). É o terceiro ANUNCIADOR depois de João Baptista (Marcos 1,4.7) e de Jesus (Marcos 1,14.38.39). Outros se seguirão (Marcos 3,14; 5,20; 6,12; 7,36; 16,15). Também nós. Sim, é aí que nos enxertamos nós, queridos irmãs e irmãs. Sim, também nós estamos depois do milagre em nós realizado. Por isso, temos, antes de mais, de entender que a mão estendida, soberana e carinhosa de Deus tocou em nós, e nos curou, e nos levantou, e rebentou os nossos odres velhos, ressequidos, carcomidos, e nos enviou com uma notícia ousada e feliz, ardente, explosiva, comovente.
Atirai fora os odres, velhos e novos. Há muito que acabaram os almocreves! A notícia boa e feliz, isto é, o Evangelho, não se leva em vasilha nenhuma. Levai-o nas entranhas, nos pés, nas mãos, no rosto, no coração. Ah!, antes que me esqueça: atirai também fora o ouro, a prata, o cobre, a outra túnica, o bastão, as sandálias. E aproveitai para virar também os bolsos do avesso! Deve haver por lá algum cotão!
D. António Couto
ANEXOS:
O tempo é um dom precioso que Deus coloca em nossas mãos e geri-lo bem é um grande desafio para cada um de nós. Quantas vezes fazemos a experiência de chegar ao final do dia e sentir que devíamos ter aproveitado melhor o tempo, dedicado mais atenção a alguns aspetos que foram descurados e ter saboreado a oportunidade de mais um dia que o Senhor nos deu a viver.
A nossa vida e o frenesim do nosso quotidiano muitas vezes envolvem-nos de tal maneira que nos impedem de viver e aproveitar convenientemente cada momento. Contudo, importa impor ritmos e tempos que nos ajudem a aproveitar e a saborear a beleza da vida. O tempo e a história são o lugar no qual se inscreve a nossa breve existência e, por isso, diante de nós coloca-se o desafio de viver o tempo aproveitando-o como oportunidade única de encontro e reencontro. Cada dia, cada semana, cada ano são uma nova oportunidade de ser mais, de ser melhor, de fazer diferente, saboreando aquilo que a vida nos oferece e transformando o lugar em que vivemos, trabalhamos ou nos divertimos naquilo que o Senhor sonhou para nós.
No Evangelho deste Domingo acompanhamos uma jornada típica de Jesus. S. Marcos apresenta-nos o ritmo de um dia da vida de Jesus com as suas diversas ocupações, prioridades e encontros. Jesus, o Verbo Eterno, habita o nosso tempo e faz dele lugar da manifestação do amor do Pai. A consciência de que o Seu alimento é fazer a vontade Daquele que O enviou, imprime no Seu quotidiano um ritmo e uma marca diferente. Jesus não se deixa levar pelo ativismo das muitas coisas a fazer, nem se demora na análise e programação estéril das várias coisas a realizar. Jesus articula sabiamente contemplação e ação, proximidade e encontro, anúncio e missão. Faz e ensina a fazer, realiza com as Suas próprias mãos e convida a colaborar na Sua obra. Parte ao encontro de todos e acolhe os que Dele se aproximam, mas também tem necessidade de se recolher na intimidade com o Pai para renovar a consciência da missão e dar sentido aos passos percorridos.
Jesus, procurado por todos, procura a intimidade com o Pai e ao romper da jornada retira-se para um lugar ermo para rezar. Como é inspirador e salutar começar a jornada, não com o corre-corre de quem vai atrasado e tem tantas coisas para fazer, mas com a serenidade do encontro com o Pai que dá sentido e plenitude aos nossos dias e aos nossos afazeres.
Jesus cura aqueles de quem se aproxima, realiza milagres, oferece a saúde corporal e aponta caminhos de plenitude e totalidade. Não se deixa confinar e parte, fazendo-nos partir com Ele: «vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».
Nos relatos das curas e milagres de Jesus há sempre um aspeto que me impressiona: a capacidade de Jesus de nos erguer da nossa situação de vítimas para nos tornar protagonistas. Nesta passagem vemos a sogra de Pedro, que uma vez restabelecida, levanta-se e começa a servi-los. Ser protagonista e construtor ativo da nova civilização do amor é o caminho que somos chamados a encetar, contudo, tantas vezes, a vitimização impede-nos de progredir, crescer e chegar mais alto. Por isso, como Paulo queremos assumir a urgência da evangelização e dizer com a nossa vida: «fiz-me tudo para todos, a fim de ganhar alguns a todo o custo. E tudo faço por causa do Evangelho, para me tornar participante dos seus bens». In Voz Portucalense
LEITURA I – Job 7,1-4.6-7
«Os meus dias passam mais velozes que uma lançadeira de tear e desvanecem-se sem esperança».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 146 (147)
Refrão: Louvai o Senhor, que salva os corações atribulados.
LEITURA II – 1 Cor 9,16-19.22-23
«E tudo faço por causa do Evangelho, para me tornar participante dos seus bens».
EVANGELHO – Mc 1,29-39
«Jesus saiu da sinagoga e foi, com Tiago e João, a casa de Simão e André».
«Jesus aproximou-Se, tomou-a pela mão e levantou-a».
«Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de pregar aí também, porque foi para isso que Eu vim».
Para os leitores:
A primeira leitura apresenta a angústia e inquietação que invade o coração de Job. A proclamação deste texto deve ter em atenção as diversas interrogações presentes no texto, bem como a interpelação que Job dirige a cada um de nós.
A segunda leitura apesar de não apresentar nenhuma dificuldade aparente exige um especial cuidado nas pausas e respirações para uma melhor articulação do texto. Além disso, este texto deve ser marcado por um tom de esperança e alegria, testemunhando a urgência e a necessidade de me envolver no anúncio do Evangelho.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Aí está diante de nós o Evangelho do Domingo V do Tempo Comum, Marcos 1,29-39, no seguimento imediato da proclamação feita no Domingo passado (Marcos 1,21-28). De madrugada a madrugada. Depois de entrarem [Jesus e os seus discípulos; ninguém como Marcos vincula Jesus aos seus discípulos] em Cafarnaum, na manhã de sábado entra Jesus na sinagoga de Cafarnaum e ensinava (Marcos 1,21). Ei-los agora que saem [Jesus e os seus discípulos: verbo no plural] da sinagoga, e entram na casa de Simão e de André (Marcos 1,29). Trata-se de um «relato de começo». Saindo da casa antiga, entram, uns 30 metros a sul, na casa nova, de Pedro. A sogra de Simão está deitada com febre. Jesus segura-lhe (kratéô) na mão (Marcos 1,31), expressão lindíssima que indica no Antigo Testamento o gesto protetor com que Deus protege o orante (Salmo 73,23), Israel (Isaías 41,13), o seu servo (Isaías 42,6). E a sogra de Simão «levantou-se» (êgeírô), verbo da ressurreição, e pôs-se a servi-los (diêkónei: imperfeito de diakonéô) de forma continuada, como indica o uso do verbo no imperfeito. A sogra de Simão é uma das sete mulheres que, nos Evangelhos, «servem» Jesus e os outros. Ela é bem a figura da comunidade cristã nascente, que passa da escravidão à liberdade, da morte à vida, gerada, protegida, guardada e edificada por Jesus no lugar seguro da casa de Pedro.
À tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana [o dia muda com o pôr do sol], toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes. Note-se que os demónios continuam impedidos de falar, exatamente porque sabiam quem Ele era (Marcos 1,34). Pode parecer estranho este silenciamento de quem sabe! Mas é exatamente para ficar claro que acreditar em Jesus não é isolar uma definição exata de Jesus, mas aderir a Ele e à sua maneira de viver. E este afazer é trabalho nosso, não dos demónios.
Na madrugada do mesmo primeiro dia da semana, muito cedo, de madrugada a madrugada, tendo-se levantado (anístêmi), outra prolepse da madrugada da Ressurreição que já se avista no horizonte, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), mas os discípulos correm logo a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter. Ninguém o quer perder (Marcos 1,36-37).
Mas Jesus desconcerta os seus discípulos, e abre-lhes já os futuros caminhos da missão: «VAMOS, diz Jesus, a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Importante e intenso dizer. ANUNCIAR, verbo grego kêrýssô, é todo o afazer de Jesus, enche por completo o seu programa e o seu caminho. Ora, ANUNCIAR, kêrýssô, é dizer em voz alta a MENSAGEM que outro nos encarregou de transmitir. Aqui, o outro é Deus. Jesus é, então, o MENSAGEIRO de Deus. O ANUNCIADOR, o MENSAGEIRO, não fala em seu próprio nome, não emite opiniões. Fala em nome de Deus.
Prossigamos. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos, apontando-lhes já o seu futuro trabalho de ANUNCIADORES do Evangelho pelo mundo inteiro. Mas é igualmente importante aquele TAMBÉM inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»]. É como uma ponte que une duas margens. Se, por um lado, proleticamente, aponta o futuro, por outro lado, analepticamente, classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira «jornada de Cafarnaum», em que o verbo ANUNCIAR (kêrýssô) nunca apareceu. Ficamos, portanto, a saber que a toada do ANÚNCO do Evangelho é ensinar, libertar, acolher, curar, recriar.
D. António Couto
ANEXOS:
Precisamos de homens e mulheres cujas palavras não sejam somente lugares comuns ou palavras estéreis e vazias que preencham apenas silêncios sem gerarem vida, nem oferecerem sentido. Atravessamos um tempo onde o nosso quotidiano é preenchido por tantas palavras desde as redes sociais aos mais tradicionais meios de comunicação como os jornais, a rádio ou a televisão. Contudo, parece que estas palavras apenas nos distraem do essencial e não são capazes de ir ao âmago das nossas inquietações e interrogações.
Acredito que esta perceção não seja apenas dos tempos hodiernos e que cada tempo e época da história sintam a necessidade de palavras revestidas de uma autoridade nova e diferente que ofereça sentido e rasgue novos horizontes de confiança e esperança. Seguramente, os contemporâneos de Jesus alimentavam também esta esperança e ao ouvirem, naquele Sábado, na sinagoga de Cafarnaum, as palavras de Jesus, não conseguiram esconder o entusiasmo e estupor.
Maravilhados, elogiavam a autoridade que brotava das palavras de Jesus e despontam em nós a curiosidade de conhecer sobre o que falava Jesus naquele dia. Sabemos apenas que a autoridade de Jesus não brotava meramente da eloquência das suas palavras, nem dos seus doutos conhecimentos acerca da Lei e dos Profetas, pois ela contrasta com a dos escribas que apesar de saberem muitas coisas e de serem especialistas nas coisas de Deus, «dizem, mas não fazem» (cf. Mt 23,3).
Em primeiro lugar, a autoridade de Jesus brota da coerência das Suas palavras. Em Jesus dizer e fazer são coincidentes e a palavra e a ação comunicam a mesma realidade, revelando o amor do Pai: «esta ‘economia’ da revelação realiza-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e confirmam a doutrina e as realidades significadas pelas palavras; e as palavras, por sua vez, declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido» (DV 2). É esta coerência que espanta quantos escutam Jesus, pois a Sua vida constrói-se em consonância com aquilo que as Suas palavras anunciam.
Contudo, esta autoridade manifesta-se também na relevância que a Sua mensagem representa para a nossa vida. Jesus incarnou, percorreu os caminhos da Judeia e da Galileia partilhando das alegrias e esperanças, angústias e sofrimentos dos homens e mulheres do Seu tempo. Jesus não é indiferente às dores e desesperanças dos que se cruzam consigo, mas toca as chagas dos que Dele se aproximam e transforma a dor e o sofrimento em cura e vida. Não se limita a um olhar compadecido e a palavras mais ou menos consoladoras, mas toca as feridas, cura-as e oferece um sentido novo.
Aquele homem absolutamente perturbado que aparece possuído por um espírito impuro grita: «Que tens Tu a ver connosco, Jesus Nazareno?». Na verdade, Jesus é o «Santo de Deus» e, por isso, tem tudo que ver connosco. A grande novidade da revelação evangélica é a certeza de que Jesus tem tudo que ver com a nossa existência e que a nossa vida é preciosa aos olhos de Deus, de tal modo, que Ele enviou o Seu Filho ao mundo, para que morrendo na cruz nos libertasse do pecado e da morte.
Por isso, vivemos alimentados por uma renovada esperança e mesmo atravessando momentos difíceis e exigentes, como a pandemia que estamos a viver, queremos acolher no coração e na vida as palavras de S. Paulo: «não queria que andásseis preocupados». O amor de Jesus e a Sua presença viva e ressuscitada são garante de esperança e fonte da nossa confiança. In Voz Portucalense
LEITURA I – Deut 18,15-20
«O Senhor, teu Deus, fará surgir no meio de ti, de entre os teus irmãos, um profeta como eu; a ele deveis escutar».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 94 (95)
Refrão: Se hoje ouvirdes a voz do Senhor, não fecheis os vossos corações.
LEITURA II – 1 Cor 7,32-35
«Tenho em vista o que mais convém e vos pode unir ao Senhor sem desvios».
EVANGELHO – Mc 1,21-28
«Jesus chegou a Cafarnaum e quando, no sábado seguinte, entrou na sinagoga e começou a ensinar».
«Uma nova doutrina, com tal autoridade, que até manda nos espíritos impuros e eles obedecem-Lhe!».
«E logo a fama de Jesus se divulgou por toda a parte, em toda a região da Galileia».
Para os leitores:
A primeira leitura é composta pelas palavras que Moisés dirige ao povo. Contudo, é necessário ter em atenção que nas suas palavras Moisés evoca as palavras do povo a Deus no Horeb e as palavras que Deus lhe dirige. Estas intervenções devem ser tidas em conta na proclamação da leitura, para uma correta articulação do texto.
Na segunda leitura, é necessário ter em conta o tom exortativo do texto
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
«Eis que faço novas todas as coisas» (Apocalipse 21,5), diz Deus. De tal modo novas, diz Deus, que ninguém pode dizer: «Já o sabia» (Isaías 48,7).
É assim também o Evangelho deste Domingo IV do Tempo Comum (Marcos 1,21-28). Eis Jesus a entrar com os seus discípulos em Cafarnaum, na sinagoga deles, e ensinava e ordenava tudo de forma nova. Tão nova que inutilizava todas as comparações e catalogações (Marcos 1,22). Não era membro de nenhuma confraria, academia, partido, ordem profissional ou instituição, que à partida lhe conferisse algum crédito, alguma autoridade. Nenhum crédito, nenhum currículo, nenhum diploma, o precedia. A sua autoridade começava ali, no próprio ato de dizer ou de fazer. E as pessoas de Cafarnaum foram tomadas de tanto espanto, que tiveram de constatar logo ali que saía dos seus lábios e das suas mãos um mundo novo, belo e bom, ordenado segundo as pautas da Criação (Marcos 1,22 e 27). Um vendaval manso de graça e de bondade encheu Cafarnaum, e transvazava como um perfume novo de amor e de louvor por toda a região da Galileia e da missão (Marcos 1,28). Saltava à vista que Cafarnaum não podia conter ou reter tamanha vaga de perfume e lume novo.
As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que diziam os escribas, e como diziam os escribas. Não eram senão repetidores, talvez mesmo apenas repetentes de pesadas e cansadas doutrinas que se arrastavam na torrente de uma velha e gasta tradição. Os escribas diziam, diziam, diziam, recitavam o vazio (Salmo 2,1), compraziam-se na sua própria boca, nas suas próprias palavras (Salmo 49,14), e nada, nada, nada acontecia: nenhum calafrio na alma, nenhum rio nascia no deserto, ninguém estremecia ou renascia. Mas Jesus começou a falar, e as pessoas de Cafarnaum sentem um frémito, um estremecimento novo (Isaías 66,2 e 5), assalta-as uma comovida emoção, uma lágrima de alegria lhes acaricia o coração. Era como se acabassem de escutar aquela palavra única que há tanto tempo se procura, palavra criadora que nos vai direitinha ao coração, a ternura e a surpresa permanente de quem leva uma criança pela mão!
As pessoas de Cafarnaum sabiam bem o que eram os exorcismos, e como se faziam os exorcismos. Estavam muito em voga naquele tempo. Eram longos, estranhos, complicados, cheios de fórmulas mágicas e ritos esotéricos. Mas Jesus diz uma palavra criadora: «Cala-te e sai desse homem», e tudo fica de imediato resolvido! (Marcos 1,25-26).
Abre-se um debate. O primeiro de muitos que o Evangelho de Marcos vai abrir. «O que é isto?» (Marcos 1,27), perguntam as pessoas de Cafarnaum, que nunca tinham visto tanto e tão novo e tão prodigioso ensinamento.
Mas é apenas o começo da jornada deste maravilhoso ANUNCIADOR do Evangelho de Deus (Marcos 1,14). Logo a abrir o seu Evangelho, Marcos ensina-nos que a jornada iniciada naquele primeiro sábado em Cafarnaum salta os clichés habituais, e vai de madrugada a madrugada, de modo a deixar já bem à vista aquela outra sempre primeira madrugada da Ressurreição! Jesus começa de manhã na sinagoga (Marcos 1,21); caminha depois 30 metros para sul, e entra, pelo meio-dia, na casa de Pedro e levanta da febre para o serviço do Evangelho a sogra de Pedro (Marcos 1,29-31); à tardinha, já sol-posto, primeiro dia da semana, toda a cidade de Cafarnaum está reunida diante da porta daquela casa, para ouvir Jesus e ver curados por Ele os seus doentes (Marcos 1,32-34); de madrugada, muito cedo, Jesus sai sozinho para rezar (Marcos 1,35), e os discípulos correm a procurá-lo para o trazer de volta a Cafarnaum, pois, dizem eles, todas as pessoas o querem ver e ter (Marcos 1,36-37). Ninguém o quer perder.
Desconcertante reviravolta. Jesus diz aos seus discípulos atónitos: «VAMOS a outros lugares, às aldeias vizinhas, para que TAMBÉM (kaí usado adverbialmente) ali ANUNCIE (kêrýssô) o Evangelho» (Marcos 1,38). Com este grávido dizer, Jesus deixa claro que ANUNCIAR o Evangelho enche por completo o seu programa e o seu caminho. Com aquele vamos [«vamos a outros lugares»], Jesus desinstala e agrafa a si os seus discípulos para este trabalho de ANÚNCIO do Evangelho seja a quem for, seja onde for. Com aquele também inclusivo [«para que também ali anuncie o Evangelho»], Jesus classifica como ANÚNCIO do Evangelho todos os afazeres da inteira jornada de Cafarnaum: ensinar, libertar, acolher, curar, recriar: é esta a toada do ANÚNCIO do Evangelho.
ANUNCIAR (kêrýssô) é então o afazer de Jesus. E qual é a primeira nota que soa quando Jesus se diz com o verbo ANUNCIAR? É, sem dúvida, a sua completa vinculação ao Pai, de quem é o arauto, o mensageiro, o ANUNCIADOR. Pura transparência do Pai, de quem diz e faz o que ouviu dizer (João 7,16-17; 8,26.38.40; 14,24; 17,8) e viu fazer (João 5,19; 17,4). Recebendo todo o amor fontal do Pai, bebendo da torrente cristalina do amor fontal do Pai (Salmo 110,7; cf. 1 Reis 17,4), Jesus, o Filho, é pura transparência do Pai, e pode, com toda a verdade dizer a Filipe: Filipe, «quem me vê, vê o Pai» (João 14,9). É mesmo aqui que reside a sua verdadeira AUTORIDADE e a verdadeira NOVIDADE do seu MODO novo de dizer e de fazer, que se chama ANUNCIAR.
A primeira nota de todo o ANUNCIADOR ou Arauto ou Mensageiro não assenta na capacidade deste, mas na sua fidelidade Àquele que lhe confia a mensagem que deve anunciar. É em Seu nome que diz o que diz, que diz como diz. No Enviado é o Rosto do Enviante que se deve ver em contraluz ou filigrana pura. No Enviado ou Mensageiro ou Anunciador é verdadeiramente Deus que visita o seu povo.
D. António Couto
ANEXOS:
Como é belo e reconfortante ver Jesus a percorrer os caminhos da Galileia. O Verbo faz-se carne e, revestido da nossa natureza, percorre os trilhos deste mundo, colocando-se no meio dos homens e mulheres, partilhando a sua humana condição, anunciando a proximidade do Reino e o convite a viver a radicalidade evangélica que abre a nossa vida à conversão.
Na perícope evangélica deste Domingo, escutamos as primeiras palavras que Jesus profere no Evangelho de Marcos: «Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho». Chegou o tempo da graça em que Deus visita o Seu Povo enviando o Seu Filho Jesus. Em Jesus Cristo, Deus faz-se próximo. Tão próximo que assume a nossa natureza humana e convida-nos a entrar nesta dinâmica de proximidade: aproxima-se de nós, para que aprendamos a viver a verdadeira proximidade que tem o nome de fraternidade.
Ao escutar as palavras de Jesus – «cumpriu-se o tempo» – recordo-me do modo como nos referimos tantas vezes ao nascimento de uma criança, quando se afirma que se cumpriu o tempo para uma mulher dar à luz. Efetivamente, é de vida nova que nos falam estas palavras! É a novidade do Reino a irromper no tempo e na história e a apontar o horizonte novo da vida eterna para onde todos somos chamados. O Reino de Deus está próximo e, no aqui e agora do tempo, somos chamados a viver a perene tensão entre o «já» e o «ainda não».
O Reino de Deus está próximo e reclama um coração livre e despojado para que possa acolher a novidade trazida por Jesus. O aqui e agora que nos é dado viver são o lugar e o tempo concreto onde somos chamados a construir a nova civilização do amor. Contudo, bem sabemos que não temos morada permanente sobre a terra e acreditamos que este Reino só se realizará em plenitude no Céu.
Nestas primeiras palavras de Jesus encontramos o movimento descendente e ascendente que caracterizam o dinamismo da salvação. Jesus que assume a nossa condição humana para nos elevar à participação da sua natureza divina. O Reino de Deus que vem até nós para que possamos pela conversão e adesão de coração ao Evangelho subir até Deus e entrar na comunhão plena com Ele.
Acreditar no Evangelho é muito mais do que reconhecer a veracidade das suas palavras e informações. Acreditar no Evangelho significa aderir com a vida àquilo que os nossos ouvidos escutam e transformar o coração para que a fé professada com os lábios se transforme em gestos concretos de amor e misericórdia.
Deste modo, acolher o Evangelho significa abrir espaço no coração para que a Boa Nova de Jesus tenha lugar na nossa vida. Muitas vezes, nas nossas meditações e pregações reclamamos a necessidade de nos libertarmos do nosso egoísmo, da nossa autossuficiência, da nossa maldade… Contudo, criar espaço para acolher a Boa Nova de Jesus significa também libertarmo-nos dos nossos projetos, das nossas expectativas, das nossas seguranças e disponibilizar a vida para o acontecer de Deus. Avançar sem medo de levar apenas como bastão de apoio a Palavra de Jesus e a certeza da Sua presença.
Simão, André, Tiago e João são referências fundamentais desta capacidade de deixar a normalidade da vida para abrir o coração à iniciativa de Jesus: «eles deixaram logo as redes e seguiram Jesus». Deixar as redes que nos prendem pela segurança que nos oferecem para nos abrir à confiança que liberta e oferece vida nova e plena de sentido é o desafio que somos chamados a abraçar permanentemente para que a nossa vida se torne verdadeiramente cristã. In Voz Portucalense
LEITURA I – Jonas 3,1-5.10
«Os habitantes de Nínive acreditaram em Deus, proclamaram um jejum e revestiram-se de saco, desde o maior ao mais pequeno».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 24 (25)
Refrão: Ensinai-me, Senhor, os vossos caminhos.
LEITURA II – 1 Cor 7,29-31
«De facto, o cenário deste mundo é passageiro».
EVANGELHO – Mc 1,14-20
«Cumpriu-se o tempo e está próximo o reino de Deus. Arrependei-vos e acreditai no Evangelho».
«Vinde comigo e farei de vós pescadores de homens».
Para os leitores:
Na primeira leitura, devem ter em atenção as duas intervenções em discurso direto.
Na segunda leitura, devem ter cuidado na leitura da frase central do texto não apenas pela sua grande extensão, mas na dicotomia que descreve cada oração e que deve ser sublinhada na proclamação do texto.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Par a acompanhar o Evangelho.
Neste Domingo III do Tempo Comum é-nos dada a graça de escutar o Evangelho de Marcos 1,14-20. Não é a primeira vez que Jesus surge em cena. Já o tínhamos contemplado a dirigir-se da Galileia para o Rio Jordão, para ser batizado por João Batista (Marcos 1,9). Mas ainda não tínhamos ouvido a sua voz. Ouvimo-la agora pela primeira vez. Serão, portanto, dizeres importantes e programáticos.
Mas antes de ouvirmos, pela primeira vez, a voz de Jesus, anotemos desde já dois notáveis dizeres do narrador, que atravessam em filigrana o inteiro Evangelho de Marcos, unindo os caminhos e os destinos de João Batista, de Jesus e dos seus discípulos. O primeiro é este: «Depois de João ter sido entregue (paradothênai: inf. aor. pass. de paradídômi)» (Marcos 1,14). Trata-se de uma prolepse, que serve para ver já o que irá suceder a Jesus, acerca de quem o verbo será usado 13 vezes (Marcos 3,19; 9,31; 10,33; 14,10.11.18.21.41.42.44; 15,1.10.15), e aos seus discípulos (Marcos 13,9.11.12). O segundo é o uso do verbo anunciar (kêrýssô) para traduzir o afazer primeiro de Jesus (Marcos 1,14). E, mais uma vez, este verbo é um fio condutor que une Jesus (Marcos 1,14.38.39), João Batista (Marcos 1,4.7), os Doze (Marcos 3,14; 6,12), algumas pessoas curadas por Jesus (Marcos 1,45; 5,20; 7,36) e a Igreja de Jesus (Marcos 13,10; 14,9). Mas o verbo grego kêrýssô (anunciar), antes de nos fazer dizer ou escutar mensagens, implica radical fidelidade do anunciador ou mensageiro em relação a quem lhe confia a mensagem e o envia a anunciá-la. Fica, portanto, claro que, antes de pregar, ensinar e curar, Jesus, os seus discípulos, a sua Igreja, são mensageiros fiéis, sempre vinculados a Deus, e a sua primeira missão é testemunhar esta proximidade e compromisso. E percebe-se agora bem o conteúdo da mensagem: «O Evangelho de Deus» (Marcos 1,14). Sem equívocos então: a primeira coisa que fica expressa com esta linguagem, é que Jesus, o seu precursor (João Batista) e seguidores (discípulos), se apresentam completamente vinculados a Deus e ao seu Evangelho [= «Notícia Feliz»], vivem de Deus e da Sua Notícia Boa, não agem por conta própria, não são emissores da sua própria sabedoria ou opinião.
E aí está então o primeiro dizer de Jesus, articulado em duas declarações inseparáveis: «Foi cumprido (peplêrotai: perf. pass. de plêróô) o tempo (ho kairós),/ e fez-se próximo (êggiken: perf. de eggízô) o Reino de Deus (he basileía toû theoû)» (Marcos 1,15). O acento cai sobre os dois perfeitos que abrem enfaticamente as declarações, e revelam que o Evangelho é em primeiro lugar o anúncio da inciativa divina, Deus em ação, que abre ao homem novas e belas perspectivas. O perfeito passivo (peplêrotai), que qualifica o kairós, indica bem que Jesus não se refere a qualquer segmento de tempo cronológico, mas àquele específico do cumprimento, posto expressamente sob a intervenção definitiva de Deus. Só Deus pode agir sobre o tempo cronológico, tornando-o kairós, tempo grávido de alegria e de esperança. Uma vez mais, o anúncio precede a ordem: Jesus não começa com normas e exigências, mas assinala quanto Deus já fez e está a fazer, por sua gratuita iniciativa, em nosso favor. Só depois, e como normal consequência, surgem na boca de Jesus dois imperativos: «Convertei-vos» (matanoeîte) e acreditai (pisteúete) no Evangelho» (Marcos 1,15), que traduzem o que compete aos homens fazer. Jesus não é um moralista, mas um Evangelizador.
Vem logo, para não se afastar da fonte, o tempo de chamar, de romper amarras, de «ir atrás de» (Marcos 1,16-20). Mas tudo começa ainda com o ver e o fazer primeiros e criadores de Jesus. Jesus viu Simão e André, Tiago e João, e chamou-os: «Vinde atrás de mim, e farei de vós…». É o ver e o fazer do Criador (Génesis 1). Está em cena um verdadeiro chamamento de Jesus. É dele toda a iniciativa. Não são os discípulos que se apresentam a Jesus, pedindo trabalho. E não é como colaboradores, com remuneração e férias asseguradas, que Jesus os assume. Jesus apenas vê e chama. Espanta aquele «imediatamente» deixaram… e foram «atrás de» Jesus. Sem reticências nem calculismos. E nem sequer sabem onde os conduzirá o caminho em que agora entram. Confiança total em Jesus.
Perante o que nos é dado ver, uma primeira pergunta nos assalta, irrompendo sobre nós como uma onda súbita: Quem pode dar uma ordem assim? Mas, ainda antes de esboçarmos a resposta, já uma segunda vaga, que tempera a primeira, cai sobre nós: Quem merece uma tal confiança.
D. António Couto
ANEXOS:
O exercício da escuta é uma arte exigente e tanto mais árdua quanto maior é o número de vozes e interpelações que nos assaltam diariamente. Vivemos rodeados de meios de informação e ferramentas que nos colocam em diálogo e relação com inúmeras pessoas ao longo do dia. Este turbilhão de solicitações e interpelações provocam a nossa capacidade de escuta e de atenção na relação com quantos se cruzam no nosso caminho.
Quantas vezes já desejamos que o telemóvel não chamasse ou que a campainha não tocasse! Escutar é uma arte exigente e muitas vezes o frenesim quotidiano impede-nos de cultivar uma atitude de disponibilidade para a escuta. Contudo, como afirma Bernard Häring «quem não sabe escutar não pode falar com a esperança de ser ouvido». O verdadeiro diálogo pressupõe a capacidade de falar com liberdade e escutar com humildade: falar com a liberdade de quem procura dizer a palavra certa e apropriada para aquele momento e escutar com a humildade de quem não sabe tudo e quer aprender e crescer no confronto com o outro.
Escutar o outro é também a porta para chegarmos ao totalmente Outro que dá sentido à nossa existência. A arte da escuta e o discernimento que ela exige conduz-nos ao encontro com o Deus revelado em Jesus Cristo, pois a nossa carne humana é lugar de manifestação e revelação de Deus. Contudo, como Samuel precisamos de exercitar a capacidade de escuta e descobrir, na presença daqueles que Deus coloca na nossa vida, uma ajuda para um discernimento mais assertivo e eficaz. Heli torna-se o facilitador da relação de Samuel com Deus, pois «Samuel ainda não conhecia o Senhor, porque, até então, nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor».
Ajudado por Heli a distinguir a voz de Deus entre tantas vozes, Samuel aprende a arte de criar disponibilidade para acolher a palavra de Deus: «Falai, Senhor, que o vosso servo escuta». Esta atitude de disponibilidade conduz Samuel a contemplar as maravilhas de Deus e a fazer a experiência de um Deus que o ajuda a crescer e a contemplar como a Sua palavra é performativa e operativa no tempo e na história.
O nosso tempo precisa de homens e mulheres que como Heli nos educam para a arte de criar disponibilidade para escutar a voz de Deus e que como João Baptista nos apontem o caminho que nos conduz ao encontro único e decisivo com Jesus Cristo.
João Baptista consciente da sua missão de percursor, vendo Jesus a passar, não hesita em indicar aos seus discípulos o «Cordeiro de Deus». Esta liberdade de coração e de vida é fundamental na arte de acompanhar e revela-nos a verdadeira identidade cristã: viver a alegria do encontro com Jesus apontando aos outros Aquele que pode oferecer a verdadeira felicidade e a verdadeira vida.
Cada um de nós, ao longo do seu percurso, encontrou pessoas que como João Baptista nos apontaram o caminho de Jesus. Contudo, foi necessário a experiência pessoal, única e irrepetível – «Vinde ver» – para que se pudesse construir uma verdadeira e autêntica relação com Jesus Cristo.
Esta experiência única e irrepetível não nos permite ficar encerrados e abre-nos à partilha e comunicação da alegria maior que o nosso coração não pode conter. É o verdadeiro dinamismo da evangelização! Um coração verdadeiramente evangelizado contagia outros e conduz os outros a Jesus e ao Seu Evangelho. Aqui encontramos também a natureza eclesial da evangelização: a Igreja é um Povo que caminha na unidade do Pai, do Filho e do Espírito Santo (LG 4). Ainda que o ato de acreditar seja pessoal, ninguém acredita sozinho e o ato de fé em Jesus Cristo abre-nos à comunhão da Igreja.
In Voz Portucalense
LEITURA I –1 Sam 3,3b-10.19
«Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39 (40)
Refrão: Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade.
LEITURA II – 1 Cor 6,13c-15a.17-20
«Não pertenceis a vós mesmos, porque fostes resgatados por grande preço: glorificai a Deus no vosso corpo».
EVANGELHO – Jo 1,35-42
«Estava João Baptista com dois dos seus discípulos e, vendo Jesus que passava, disse: «Eis o Cordeiro de Deus».
«Jesus voltou-Se; e, ao ver que O seguiam, disse-lhes: «Que procurais?».
Para os leitores:
Na primeira leitura, o leitor deve ter em atenção as diversas intervenções em discurso direto, articulando-as para uma eficaz proclamação do texto.
Na segunda leitura, o leitor deve ter o cuidado de articular as diversas frases e orações com pausas e respirações, tendo em atenção o equilíbrio entre as frases mais longas e as muito curtas. Além disso, o leitor deve ter em atenção a proclamação das frases interrogativas, evitando acentuar apenas as palavras finais e tendo especial cuidado com a extensão da segunda interrogação.
I Leitura:
(ver anexo)
II Leitura:
(ver anexo)
Para acompanhar o Evangelho.
O Evangelho deste Domingo II do Tempo Comum (João 1,35-42) faz-nos ver no primeiro plano João Baptista e Jesus. João Baptista permanece lá «estacado» (eistêkei), em Bethabara [= «Casa de passagem»], desde João 1,28, imóvel e sereno e atento. O lugar em que permanece parado, define-o e define-nos: é um umbral ou limiar. Todo o umbral ou limiar é um lugar de passagem. Estamos de passagem. João Baptista ocupa, portanto, o seu lugar estreito e aberto entre o des-lugar e a casa, o deserto e a Terra Prometida, entre o Antigo e o Novo Testamento. João coloca-se estrategicamente do outro lado do Jordão, onde um dia o povo do Êxodo parou também, para preparar a entrada na Terra Prometida, atravessando o Jordão (Josué 3). É desse lugar de passagem, mas em que está parado como um guarda ou sentinela vigilante, que João vê bem (emblépô) Jesus a passar (peripatoûnti). E logo o apresenta como o Cordeiro de Deus. Apresenta-o a nós, e põe-nos em movimento atrás d’Ele. Riquíssima apresentação de Jesus. Na verdade, Cordeiro diz-se na língua aramaica, língua comum então falada, talya’. Mas talya’ significa, não só «cordeiro», mas também «servo», «filho» e «pão». Aí está traçada, com uma pincelada de mestre, a identidade de Jesus.
E aí vamos nós a segui-l’O, agora no Caminho que conduz a Casa. «Onde moras?», é a questão que nos move (João 1,38). E a resposta-convite de Jesus: «Vinde e vede» (João 1,39) aviva e sacia a nossa sede. Fomos e vimos quem era (ideîn) e morámos com Ele um dia (João 1,39), simbolismo para indicar de agora em diante, sempre. Percebemos logo que era aquela a nossa Casa. Por isso, André, um de nós, o Prôtóklêtos Andréas, o «primeiro chamado», como o chama ainda hoje a Tradição Oriental, foi logo chamar, «primeiro chamante», o seu irmão Simão, e trouxe-o de casa para a Casa, para Jesus (João 1,40-42). O resto é com Jesus. «Olhando-o por dentro (emblépô autô), Jesus disse: “Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro”» (João 1,42). Depois é Filipe que é chamado por Jesus, sem introdução ou explicação (João 1,43). E Filipe conduz a Jesus Natanael, também sem qualquer explicação ou demonstração convincente.
É importante precisar que a demonstração é frágil face à experiência que implica a vida. Na verdade, a eficácia do testemunho acontece, não quando a testemunha incita o destinatário a inclinar-se ou a render-se perante as provas, mas quando o incita a fazer, por sua vez, a experiência, levando-o a implicar a própria vida. A experiência da testemunha é sempre mais forte e mais radical do que as provas que eventualmente queira dar. É por isso que Filipe fala de Jesus a Natanael, mas face às objeções deste, não lhe dissipa as dúvidas (João 1,45-46), mas diz-lhe simplesmente: «Vem e vê!» (João 1,46).
Mas voltemos ao chamamento decisivo, aquele que muda o nome, isto é, segundo a mentalidade bíblica, a pessoa e a sua vida. Diz Jesus: «Tu és Simão, o filho de João; serás chamado Kêphâs, que se traduz Pedro» (João 1,42). O termo hebraico normal para dizer «rocha», «rochedo», «pedra firme» é tsûr ou sela‘, que designa mesmo Deus no AT por 33 vezes. Mas o hebraico também conhece o termo keph, aramaico kêpha’, que designa a rocha, não tanto na sua solidez, mas a rocha escavada, oca, espécie de gruta que serve de lugar de refúgio e acolhimento, onde os pássaros fazem os seus ninhos, os animais guardam as suas crias e os homens se refugiam em caso de guerra: não é sólido, mas dá solidez e proteção a uma vida nova. Este segundo veio de termos, que traduzem a ideia de guardar, proteger, abraçar, envolver, alarga-se num vasto campo onomatopaico: kaph, palma da mão; keph, rochedo esburacado (grutas); kêpha’ (aramaico), rochedo esburacado; kêphãs (grego), rochedo esburacado e acolhedor, nome dado por Jesus a Pedro em João 1,42, única vez nos Evangelhos; kipah, folha de palmeira, que serve para proteger do sol, e cobertura que os judeus ortodoxos usam na cabeça, para indicar a proteção de Deus; kaphar, cobrir, perdoar; kaporet, cobertura, perdão. Sendo de teor onomatopaico, este som existe na composição de vocábulos em todas as línguas.
Nasce aqui, portanto, um Simão Pedro novo, casa aberta e acolhedora, atento, próximo, cuidadoso e carinhoso, frágil, com a missão pastoral de alimentar e cuidar de todos os filhos de Deus. Mas, entenda-se sempre bem, a casa é Deus, e são de Deus os filhos que nela são gerados, acolhidos, alimentados.
ANEXOS:
Eucaristia pelo Facebook
Celebração da Eucaristia – Matriz – IV Domingo de Páscoa – 25 de abril de 2021
Preside à celebração o Pároco Padre Albino Reis
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Celebração da Eucaristia – Matriz – III Domingo de Páscoa – 18 de abril de 2021
Preside à celebração o Pároco Padre Albino Reis
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Celebração da Eucaristia – Matriz – II Domingo de Páscoa – 11 de abril de 2021
Preside à celebração o Pároco Padre Albino Reis
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Celebração da Eucaristia – Matriz – Domingo de Páscoa – 04 de abril de 2021
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Celebração da Eucaristia – Igreja da Sagrada Família – Vigília Pascal – 03 de abril de 2021
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Celebração da Eucaristia – Igreja da Sagrada Família – 6ª feira Santa – Paixão e Morte do Senhor – Adoração da Santa Cruz – 02 de abril de 2021
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Celebração da Eucaristia – Igreja da Sagrada Família – 5ª feira-Santa – Ceia do Senhor – 01 de abril de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – Domingo de Ramos – 28 de março de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – V Domingo da Quaresma – 21 de março de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – IV Domingo da Quaresma – 14 de março de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – III Domingo da Quaresma – 07 de março de 2021
Preside à celebração o Pároco Padre Albino Reis
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Celebração da Eucaristia – Matriz – II Domingo da Quaresma – 28 de fevereiro de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – I Domingo da Quaresma – 21 de fevereiro de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – VI Domingo do Tempo Comum – 14 de fevereiro de 2021
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Celebração da Eucaristia – Matriz – V Domingo do Tempo Comum – 07 de fevereiro de 2021
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Celebração da Liturgia da Palavra
Matriz – IV Domingo do Tempo Comum – 31 de janeiro de 2021 – em união paroquial e eclesial com o nosso Pároco, Padre Albino Reis e sua família, no momento do funeral do Pai João Reis.
Preside à celebração o Diácono José Luís
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Agenda
Fevereiro 2021 – Descarregar em PDF ou Excel
Março 2021 – Descarregar em PDF ou Excel
Abril 2021 – Descarregar em PDF ou Excel
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Agosto 2021 –Descarregar em PDF ou Excel
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